Lusbet & o olho do abismo abundante , Floriano Martins ... · Como recobrar o revés das coisas?...

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LUSBET & O OLHO DO ABISMO ABUNDANTE

2004

I.

Há dias os ossos estavam perdidos. Sem eles impossível investigar o que se dera. Algo de estranho mostra sinais de uma escritura sobrenatural. Mas antes de se encomendar a alma do morto era indispensável recuperar-lhe os ossos. Sombras perdem as forças, confessam íntimos caprichos. Palhaços se deixam lamber pelas feras, em horas e lugares entrecortados de lamentos. Um deles grita: jamais pensamos no céu. Desçamos a procurar. E por ali se foram.

II.

D. Leopoldo flutua sobre um campo de cactos. Recorda o corpo da filha destroçado pelos corvos do reino, a filha diante de si e a terrível indagação de Díaz-Casanueva: Quem faz listas de moscas mortas neste tempo? E flutuando observa a festa que fazem os vermes em uma terra antes habitada por xamãs e mulheres esplêndidas com seis braços. Um lamento estilhaça aquela visão e as carnes putrefatas da filha ali escrevem, cegas, um outro abismo sob os pés de quantos restaram.

III.

Lusbet abre os olhos a pedido do pai, o corpo coberto pela chuva-sangue de uma dor desejosa de vingança. Os olhos começam a ser mastigados por visões conflitantes, a infância no esplendor de um reino e a brutalidade de corpos lhe esculpindo asco e mesmo o cuspe de voracidade animalesca. D. Leopoldo faz com que o corpo da filha seja abocanhado por areias gulosas. E ainda planando, entregue a um suplício silencioso, se desfaz de toda ideia de mito.

IV.

Estou sem pele para nada. Toda a minha força se esquiva de mim, ocultando-se sob a língua. Um grosso de expectativas me quer alucinado pela razão. Abro minhas carnes e não dizem nada. Apenas um coro maldito, um coro de vísceras que em nada me reconforta, se excede quase monótono: há que seguir vivendo. Mais tarde as velhas da tribo virão despertar-me do vazio, acariciando o sexo instável. Como entretê-las ante a memória da filha morta? E aposto que entre sussurros uma delas – como distingui-las? –, comentará com ar quase disperso sobre o destino dos ossos perdidos. Que outro homem se resignaria à sedução dessas almas envelhecidas?

V.

Procurou um corpo que se assemelhasse ao da filha, percorrendo as sombras, rosto após rosto, em um largo fôlego de memória e percepção. Jamais havia experimentado tanta luxúria, meter-se em corpos distintos, dentro e fora do tempo, anulando as leis mais severas, enfiando-se no olhar e no deleite de inúmeras jovens, sem lhes saciar desejo algum, apenas em busca de um mínimo traço que as identificassem com Lusbet. Esteve entre asas, nadadeiras, garras, ante o carrasco de renovadas metamorfoses, enterrou-se nas dobras mais viscosas da noite, misturou-se a cócegas, palpitações, suspiros frenéticos, um gotejo de volúpia transtornada, e igualmente submergiu em corpos arrastados pelo desespero, corpos inchados ou desfigurados, afogados em atormentada solidão, jovens asfixiadas por pais e amantes, sangradas pela veia de uma furtiva pantomima, enigmáticas mortes, sob o aplauso de muitos, veneração e histeria, víboras à espreita de seios, estupor de corpos boiando no tempo, e nenhum deles, um único que fosse, se distinguia de Lusbet. De joelhos tombado D. Leopoldo chorou sobre as ruínas daquelas visões, sem poder contar com a semelhança.

VI.

Como despertar a contra-noite? O velho bruxo indaga-se retornando ao repouso do sótão em que vive, ao inútil convívio com o fogo, desde que a vida tornou-se escuridão perfurada por mais escuridão. Sente-se sabedor das rotas do abandono. As velhas o despem para dormir, e escravos à volta conversam entre si e riem, simulando a normalidade no reino. Em sonhos a voz de René Daumal o lembra o quanto que não sabemos recordar. A miséria daquele pesadelo é excessiva e não lhe faz entender: o corpo desmembrando-se, partes buscando cair nas mãos de um guia, outras sugadas por um círculo branco de equívoca magia e umas mínimas vísceras arrastando-se perdidas como bestas sem razão de ser. Os olhos de D. Leopoldo como eclipses tremeluzentes, vigílias de um absurdo aniquilado há muito. Como recobrar o revés das coisas? Entre poções, venenos, misturas sem limites, o sonho do bruxo lhe corrói a memória. Não terá como escapar da jaula do esquecimento.

VII.

Todos os nomes do mistério requerem a mesma dor: cego de mim, entrego-me a espelhos que me levam à destruição de casas invisíveis por todo o reino, oh mundo apegado ao fio de expiações da transcendência, quem serão esses mortos cativos de meus extravios? Onde se esconde a errante plenitude que se assemelha à perda de Lusbet? Mostrem seus rostos, deuses descarnados e ávidos de súplicas, revelações subjugantes, mostrem-se, farrapos transparentes, à medida do corpo de um homem qualquer, um simples barqueiro, um pastor, um velho domador de feras. Mostrem-se ante o umbral por onde se arrastam conjuros e um prodígio de ritos afogados, sim, o mesmo umbral por onde se foi Lusbet arrancada de meu convívio, o mesmo onde ressurgem despojos de mitos e agonias por decifrar, mostrem-se, mostrem-se, apenas peço, atendam à voz de um pai que se desfaz, cujo cetro se agita sem mais sentido algum.

VIII.

O velho bruxo caminha descalço sobre brasas. Dali surgem visões como navalhas degolando a noite, imagens como plumas arrebatadas pelo vento corroendo-lhe o espinhaço. Riem os palhaços do reino, com sombras desgarradas e largos sapatos alados. Estão de volta do céu e contam sobre tribos nômades que cruzavam os desertos do Sol. Os palhaços refazem espectros que haviam perdido a cor e com alguns pedaços de abismos nas mãos dizem: encontramos, encontramos os ossos perdidos. D. Leopoldo parece não ser tocado por nada. Caminha e procura em si um significado para o desaparecimento dos ossos. Aromas revirados, nada mais se identifica. O reino é um asilo. Corpos humanos pendem de árvores, pedras com asas bicam vestígios de sonhos. E não se sente o cheiro de um único desejo. O velho percebe então que o reino não tem nome.

IX.

Torrentes no espírito escrevem o nome a ser esquecido tão logo pronunciado. Linguagem desfolhada dentro e fora dos rituais. As feras desgarram as carnes apodrecidas, os ossos partidos do homem gemendo. O reino inteiro planeja se desfazer, fora do alcance de D. Leopoldo. A morte de Lusbet não passou de um vestígio, anúncio cifrado do aniquilamento de preces, louvações, alegrias e penas. Qual a desprezível falta que impede o homem de vir a ser bom? Onde o pomar de astúcias com seus ovos repletos de humores? E alguém agregue uma terceira pergunta para que não se rompa o conjuro.

X.

Um labirinto negro: pedras da memória corroídas por dentro. Erosão de sentidos, nódulos de uma dor lacerada, tensão que se recicla a golpes de novas visões interrompidas. Peles, fibras, relevos, símbolos de um desejo castigado pela evidência: ossos perdidos. Ruptura esculpida, páginas de um diário tratadas como sucata do imaginário. Morte mimética do reino, arqueologia do visível, tapumes intervindo na mobilidade do assombro. D. Leopoldo ergue o braço tentando ordenar o caos: espelhos que não se comunicam entre si. Metal e madeira: eis o reino convertido em uma instalação: feridas migratórias, hábil mecanismo de deslizamentos, peneiras dispostas a confundir o sol. O velho bruxo contesta gemidos adormecidos na própria aflição. Entre os guardados de uma angústia ancestral encontra: como entender a quem rejeita reconstruir?, madeira gravada submersa no desconsolo do eco.

XI.

…Lusbet minha, desvendo em ti uma graça órfica recoberta por musgos, partituras que são atalhos para os mistérios mais entranháveis, coreografia de ânforas que guardam consigo o esplendor de teus deleites, oh filha, que estranho júbilo de quedas conservas no esqueleto, ária como um canto que nos puxa para uma súbita distância. Marcas meu caminh…

Enquanto fala, D. Leopoldo revira guardados no sótão: vasos com cinzas, runas, estatuetas. Espinhaços de pequenas bestas, valises abertas com escadarias no íntimo, mechas enlaçadas. Tições celebram o timbre da ansiedade do velho que busca entre ícones em desuso um encontro, algo que lhe escute a dor, uma carnação. (Não virão lobos destroçar-me a alm…) Vasculha e resmunga, jogando objetos de um lado a outro, o sótão já esburacado por aqueles arremessos, quando lhe acorre um livro empoado, veloz em pequenas pernas, um anjo no sombrio acaso evocado, e lhe abre uma página onde se escondem nódoas de extintos rituais, aos olhos de Leopoldo uma brenha de frases canta incendiada – eis o abismo, diz, a tez imersa em espanto. E se põe a entoar as chamas do anunciado sortilégio.

XII.

O tempo perdia o pesponto de simetrias aflitivas. Qualquer linguagem guarda um resto de si para uma sopa de vertigens. Os deuses são domésticos e vivem mascando quimeras. O homem crê em distrações essenciais. Que homem? Os manuais são astutos, requerem uma fé predestinada. A humanidade de cada um limita-se à aceitação de normas. Não lembro. Isto não se passou comigo. O homem mói a si mesmo como um adorador de restos. Um provedor de precariedades. É tarde. Era inevitável. Procuro esquecer. Que mais se pode moer, entre ossos e imagens? A ideia, qualquer ideia, é um relógio sendo ajustado, um reflexo de nódulos no dorso do tempo. As cidades se tornam invisíveis ou inacreditáveis, mapas de viagem são recuperados, pálpebras devolvem a visão diabólica de olhos imersos em um suspiro de enigmas. Tudo se inverte com o esmero do instante. O homem se guarda de que? Em que crê o pranto? O pródigo só tem olhos para si.

XIII.

O coração humano desconhece repouso.

Henriqueta Lisboa

Quebro o meu ser até que me vejas. Não há nada aqui, pouco menos adiante. Um galope de enigmas deforma a memória, os espelhos febris com que percorres meu corpo. Diante de ti um santuário de visões. Partes de mim como árvore em completa desordem. Pequenas feras que fingem naturalidade à espera de um leitor que as alimente. Lugar de excesso onde tudo tem fim e um manuscrito aturde precários lamentos: o coração humano desconhece repouso. Desaperto-me, Lusbet, ignoro princípios, movo-me de uma lâmpada a outra, não me vês, não me vês, sei que não me vês. Perco-me nas dobras de teu mapa como uma vertigem desambientada. Deveria estar saindo de ti e não sendo buscado fora.

XIV.

Corto a pele de tua fala, e ali me encontro enroscado em pêndulos fulgurantes, livros relidos com páginas arrancadas, um jogo de chamas penetrando os ossos e uma pergunta enrugada a repetir-se: o que é feito de Leopoldo? Tua maldição é um desterro, filha, e o tambor sombrio da voz arrasta consigo os vultos bestificados que devoram a substância de tudo quanto nos une. Nem mesmo decepando todos os sentidos haverá como escapar do cipoal que se ramifica por toda a cena, a corpulência da folhagem que opera dentro de nós com vazios ardilosos.

Um homem dividido, como o velho bruxo, não encontra descanso enquanto não identifica os vultos que lhe rondam o espírito. Enrosca-se no próprio corpo à procura de uma chave. Por instantes quer desfazer-se de toda magia.

XV.

A quem te diriges, criatura errante? Recebo na face tuas cintilações, golpes de rutilante escuridão que me cega. Quantas épocas devo remontar até que te mostres como verdadeiramente és? Regurgito sombras supurantes, falos deformados, trombetas fantasmas, ícones desterrados, cenário de massacres e sodomias, embaraço de filósofos humilhados pela impossibilidade de explicarem as horrendas visões que lhes atormentam as noites, magia decaída, sagração alucinada da fealdade, linguagem à deriva, tudo. Como um cadáver cujo nome reluta em aceitar, regurgito tuas trevas em decomposição. Percebo a floração de relâmpagos cegos em teu sexo, gradil com ex-votos dependurados, vísceras expostas como santas seduzidas por vermes, um soluço sangrento de toda sorte de vagabundos após a ceia no que resta desse corpo com que me acenas. E uma voz ainda em ti soletra o horror de tanta morte. A quem te diriges?

XVI.

Um abrigo a desfazer-se, em queimações e brasas, brota dos olhos do bruxo ao ouvir as palavras da filha morta. Sabe que ali estão elas como se o próprio reino lhe dirigisse a palavra. Lusbet é a semelhança e o trêmulo desconhecido. A voz não cessa e o cadáver já quase todo desfeito jorra lâminas que são etapas que são o destino de todo o reino. Cenas que afluem como novos labirintos que levam a memória do velho impostor a recuos que se convertem em um bailado de aparições. Um grande tacho repleto de crânios mostra-se como o centro da ceia. Ao redor figuras aladas ostentam o sexo rígido e largos seios e um rosto feminino. Multiplicam-se incontáveis e uma euforia estronda enquanto as criaturas começam a devorar os crânios, o membro empinando-se ainda mais. D. Leopoldo percebe o inadiável retorno à pedra, o desfalecimento de tudo quanto conheceu em vida. E as imagens tornam-se chagas na pele do tempo. Lusbet lhe devolve à matéria errante de toda a ruína humana. Por ali haverá que recomeçar a construir um outro labirinto.

XVII.

Com uma adaga o velho riscava as visões à procura de um sinal de existência. Já não sabia o que tinha diante de si. Mesmo à continuação dos golpes não retinha a consciência dos motivos. Frio e exaustão recolhiam-no a um emaranhado do próprio corpo. Toda semelhança é um confronto. Percebe os talhos nos braços assinados pela adaga demasiado contígua à lâmpada que viceja uns brotos finais de assombro. Dali em diante tudo cessa. Não reconhece mais a sombra ou o nome. Houve um reino, decerto. O mesmo homem que se distancia dos primatas por uma ordenação do caos desordena a história para que nada faça sentido. Não há mais voz por maldizer. As igrejas todas foram fundadas e enredaram-se na falsificação sistêmica de preces e desvarios. Igrejas são instituições financeiras que são governos que são concessões que são a sagração de toda miséria humana. Não há corredores úmidos ou espelhos nascentes. A circularidade é um novelo. As boas ações são serpentes cegas. Não importa o quanto nos sentimos estrangeiros. Somos parte íntima desse anúncio eterno de tempestade que é a retórica da derrota do humano em nós. Os ossos perdidos? Desde que a memória se desata em uma sucessão de avidezes, todos os ossos estão perdidos. Como é possível matar indiscriminadamente e ir buscar refúgio em Dioniso? Que absurdo entusiasmo nos leva ao suicídio? Seguimos escavando túmulos e cumprindo à risca o calendário de interesses rabiscados em agendas. Hoje o homem não passa de um desconfronto, anulada a analogia que o libertava de si mesmo, desterro que reflete uma vocação pelo fabrico de máscaras. A ideia de ser tantos em um só tanto foi bíblica quanto iluminou a ciência em um turbilhão que eliminou as relações entre visível e invisível, pondo por terra toda perspectiva de antagonismo. O conflito reafirma a correspondência de guerra: eliminação sumária dos dissídios. A semelhança é um transtorno. O imaginário perdeu o controle da nau. Tudo prefere morrer. Há consciência no bosque, nas cadeias rochosas, em um sabá de elementos químicos, assembléias inconcebíveis decidem pelo aniquilamento de uma perspectiva humana. O homem não cabe mais ali. E no entanto segue a proliferar conflitos latentes: mística do óbvio, crateras adventícias, roubo de imagens, penúria multiplicada com explicações. Não há interregno, é sempre o mesmo, um firmamento propício à anulação da personalidade. O tempo é uma viscosidade. A memória desfeita talvez relute ante uma premência de refazer-se. Mas por onde recomeçar sem antes erradicar vícios de linguagem, fraudes de estilo e abusos de poder?

XVIII.

Estamos privados de todas as habilidades. Desaprendemos a enterrar os mortos, perdemos o significado dos nomes, esquecemos a lógica do acaso. Expostos a uma mitologia de ausências, dentro e fora apenas névoa, o mundo parece não ir além dela, talvez esteja vivendo um entranhável romance com a animalidade perdida. Que estranha relação haverá entre o cansaço e o hábito? A opinião será um capricho? Lusbet é uma paisagem deslocada. O corpo mastigado pela fome amaldiçoada dos servos do reino. Objetos subitamente desaparecem do lugar de origem. O jade empregado na imagem dos ossos perdidos desfez-se na memória doída da morte de Lusbet. Leopoldo pode fazer o tempo esperar, reter a aparência das coisas, a pronúncia de uns tantos desejos. Sabe, no entanto, que a magia é tão transitória quanto a dor. A memória enferma o homem, lhe impõe hábitos que se esquivam quando necessários. O esquecimento é uma arte praticada pelo clero, a burguesia, a aristocracia, o mundanismo imperial. O velho bruxo é parte disto. A trapaça dos ossos perdidos frustrou-se pela coincidência com o infortúnio de Lusbet. O círculo se repete.

XIX.

Ao fim do abismo, o homem desaparece. Desfaz-se em desejos que não soube mais ocultar. Tem ainda nos braços a filha que acabara de possuir. Desconhece o ciclo de contradições em que se encontra. Apenas ri, enquanto arranha na pele de seu anjo pequenos sinais.

XX.

Eis o ponto. Um derrame de ilusão, a acolhida brusca de todas as vertigens, vazio onde não cessamos de cair. E para um obscuro ardil convergem sombras e visões, luxúrias da imagem, brotos agônicos como manuscritos na areia da praia. Assim o cavalgar do tempo. Não mais Lusbet ou Leopoldo, ossos perdidos ou reino sem nome. O selo rompe-se como um presságio: tudo se extingue, tudo recomeça. Preparemos os versos para o retorno da presença humana entre nós.