Lula, o homem e a imagem - critica do filme Lula, o filho do Brasil, de Fábio Barreto

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Lula, o homem e a imagem [Crítica do filme Lula, o filho do Brasil, de Fábio Barreto] CINEMA Michel Goulart da Silva * Estreou nas salas de cinema de todo o país, no início deste ano, um dos filmes que mais vinha causando polêmicas, antes mesmo de chegar ao público: Lula, o filho do Brasil, de Fábio Barreto. Se o filme vinha causando tantas polêmicas antes mesmo de sua estreia, certamente não se deve a suas qualidades ou debilidades estéticas, mas a seu significado político. Tanto foram expressas posições de idolatria ao filme por parte de setores da esquerda como de repulsa por parte da direita que nutre um intenso ódio pela figura política de Lula. Embora seja um fenômeno político importante para a esquerda, na medida em que se trata de filme acerca da principal liderança construída pelos trabalhadores nas últimas décadas, parte da esquerda optou pelo “não vi e não gostei”, fazendo comentários ocos a respeito do filme e, em grande medida, reproduzindo em seus comentários as críticas oriundas da direita. Essas formas de olhar a obra cinematográfica, que partem de ideias prévias a respeito de Lula e não da análise do próprio filme, não levam em conta o filme em todas as suas contradições. Não se pode deixar de pensar o filme como parte de um projeto de construção de um ídolo, forjando um novo herói do povo brasileiro, algo como um novo Getúlio Vargas. Diferente do que pensam as análises mais superficiais, o filme não é uma ação do governo visando a eleição da candidata de Lula nem uma política de Estado com a finalidade de fazer propaganda ideológica. Trata-se de um projeto político de longo prazo, que aposta no fortalecimento do imaginário que apresenta Lula como grande líder popular e na consagração de sua administração como modelo econômico, social e político. Fazendo uma analogia entre Lula e Getúlio Vargas, pode-se também pensar a figura do líder trabalhista para além de sua vida física. No cenário político brasileiro, durante pelo menos duas décadas, esteve presente a imagem de Getúlio Vargas. Na imagem construída, Mestrando em História na Universidade de Santa Catarina (UDESC). Bolsista da Fundação de Apoio à Pesquisa Científica e Tecnológica do Estado de Santa Catarina (FAPESC). Getúlio supostamente esteve sempre próximo do povo para ouvir seus anseios e levar a cabo medidas que favoreciam os trabalhadores. Com isso, seus principais herdeiros políticos, em especial João Goulart e Leonel Brizola, também políticos do PTB gaúcho, pareciam carregar certa aura emanada de Getúlio Vargas. Eles também construíram a imagem de políticos que, apesar de sua origem em elites rurais, representavam os interesses do povo. Por outro lado, se levarmos em conta a ideia de “populismo”, seria possível incluir nesse espectro getulista os mais diferentes políticos, inclusive políticos não trabalhistas, como Adhemar de Barros e Jânio Quadros, mas que também construíram a imagem de políticos que ouvem os anseios populares, ou seja, mesmo sem ter afinidades políticas com Getúlio, teriam supostamente a mesma forma de fazer política. Pensando nessa comparação entre Getúlio e Lula, talvez a máquina de propaganda seja a principal diferença entre os dois. Getúlio fez do Estado sua principal forma de promoção, gravando sua imagem em livros didáticos e infantis, jornais, rádios. Entre 930 e 954, com um breve intervalo entre 945 e 950, houve intenso investimento do Estado brasileiro para forjar um Getúlio Vargas que, embora ampliando direitos e a democracia, garantia a ordem econômica e social. Mas em todos esses momentos sua figura esteve próxima ao Estado, como um messias que, por meio do governo, tinha vindo à terra para salvar o povo. Nesse Estado, que muitas vezes ganhou o adjetivo de “getulista”, estava a salvação dos trabalhadores e dos pobres. Lula também procura construir essa imagem da estabilidade e para isso também se utiliza do Estado. Mas há duas importantes diferenças em relação a Getúlio Vargas. Deve-se levar em conta, em primeiro lugar, que há uma indústria cultural muito mais desenvolvida que ajuda a construir a figura de Lula e com a qual Getúlio Vargas contava de forma bastante limitada. Hoje, embora receba abundantes recursos públicos, essas mídias que colaboram na construção da imagem de Lula são grandes corporações privadas, em alguns casos inclusive com capital externo. Por outro lado, Lula em sua política não aposta no Estado como salvador, mas na manutenção da

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Lula, o homem e a imagem

[Crítica do filme Lula, o filho do Brasil, de Fábio Barreto]

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EM

A

Michel Goulart da Silva�*

Estreou nas salas de cinema de todo o país, no início deste ano, um dos filmes que mais vinha causando polêmicas, antes mesmo de chegar ao público: Lula, o filho do Brasil, de Fábio Barreto. Se o filme vinha causando tantas polêmicas antes mesmo de sua estreia, certamente não se deve a suas qualidades ou debilidades estéticas, mas a seu significado político. Tanto foram expressas posições de idolatria ao filme por parte de setores da esquerda como de repulsa por parte da direita que nutre um intenso ódio pela figura política de Lula. Embora seja um fenômeno político importante para a esquerda, na medida em que se trata de filme acerca da principal liderança construída pelos trabalhadores nas últimas décadas, parte da esquerda optou pelo “não vi e não gostei”, fazendo comentários ocos a respeito do filme e, em grande medida, reproduzindo em seus comentários as críticas oriundas da direita.

Essas formas de olhar a obra cinematográfica, que partem de ideias prévias a respeito de Lula e não da análise do próprio filme, não levam em conta o filme em todas as suas contradições. Não se pode deixar de pensar o filme como parte de um projeto de construção de um ídolo, forjando um novo herói do povo brasileiro, algo como um novo Getúlio Vargas. Diferente do que pensam as análises mais superficiais, o filme não é uma ação do governo visando a eleição da candidata de Lula nem uma política de Estado com a finalidade de fazer propaganda ideológica. Trata-se de um projeto político de longo prazo, que aposta no fortalecimento do imaginário que apresenta Lula como grande líder popular e na consagração de sua administração como modelo econômico, social e político.

Fazendo uma analogia entre Lula e Getúlio Vargas, pode-se também pensar a figura do líder trabalhista para além de sua vida física. No cenário político brasileiro, durante pelo menos duas décadas, esteve presente a imagem de Getúlio Vargas. Na imagem construída,

� Mestrando em História na Universidade de Santa Catarina (UDESC). Bolsista da Fundação de Apoio à Pesquisa Científica e Tecnológica do Estado de Santa Catarina (FAPESC).

Getúlio supostamente esteve sempre próximo do povo para ouvir seus anseios e levar a cabo medidas que favoreciam os trabalhadores. Com isso, seus principais herdeiros políticos, em especial João Goulart e Leonel Brizola, também políticos do PTB gaúcho, pareciam carregar certa aura emanada de Getúlio Vargas. Eles também construíram a imagem de políticos que, apesar de sua origem em elites rurais, representavam os interesses do povo. Por outro lado, se levarmos em conta a ideia de “populismo”, seria possível incluir nesse espectro getulista os mais diferentes políticos, inclusive políticos não trabalhistas, como Adhemar de Barros e Jânio Quadros, mas que também construíram a imagem de políticos que ouvem os anseios populares, ou seja, mesmo sem ter afinidades políticas com Getúlio, teriam supostamente a mesma forma de fazer política.

Pensando nessa comparação entre Getúlio e Lula, talvez a máquina de propaganda seja a principal diferença entre os dois. Getúlio fez do Estado sua principal forma de promoção, gravando sua imagem em livros didáticos e infantis, jornais, rádios. Entre �930 e �954, com um breve intervalo entre �945 e �950, houve intenso investimento do Estado brasileiro para forjar um Getúlio Vargas que, embora ampliando direitos e a democracia, garantia a ordem econômica e social. Mas em todos esses momentos sua figura esteve próxima ao Estado, como um messias que, por meio do governo, tinha vindo à terra para salvar o povo. Nesse Estado, que muitas vezes ganhou o adjetivo de “getulista”, estava a salvação dos trabalhadores e dos pobres.

Lula também procura construir essa imagem da estabilidade e para isso também se utiliza do Estado. Mas há duas importantes diferenças em relação a Getúlio Vargas. Deve-se levar em conta, em primeiro lugar, que há uma indústria cultural muito mais desenvolvida que ajuda a construir a figura de Lula e com a qual Getúlio Vargas contava de forma bastante limitada. Hoje, embora receba abundantes recursos públicos, essas mídias que colaboram na construção da imagem de Lula são grandes corporações privadas, em alguns casos inclusive com capital externo. Por outro lado, Lula em sua política não aposta no Estado como salvador, mas na manutenção da

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Contra a Corente �

ordem do mercado, acompanhada de perto pelo Estado, e numa indefinível “força popular”, que se manifesta nas eleições e num certo “caráter brasileiro”. Não há espaço para um governo dos trabalhadores, mas para um “governo de todos”, que mantenha intocado o status quo.

O filme Lula, o filho do Brasil não é, portanto, apenas propaganda eleitoral para o pleito presidencial, a ocorrer neste ano, mas projeto de consolidação de um imaginário político entre os trabalhadores. O trabalhismo existiu para além de seus principais líderes e até hoje Brizola e Vargas são lembrados e reverenciados (derrotado pelo golpe civil-militar de �964, João Goulart tornou-se figura marginal na memória histórica). Nesse sentido, pode-se pensar que mesmo se Dilma for derrotada no pleito de outubro, há uma forma de fazer política, de relação com a população, de atendimento aos interesses dos eleitores, enfim, um conjunto de marcas deixadas por Lula das quais o novo presidente não poderá escapar.

José Serra, se eleito, mesmo carregando os “pecados” neoliberais do governo FHC e assumindo o papel de candidato de direita, dificilmente poderá escapar de fazer um governo com traços “populistas” (que, em seu linguajar, é um termo pejorativo). Inclusive, na campanha do candidato tucano, apesar de alguns rompantes isolados de extrema direita, o governo Lula não é apresentado de forma negativa, mas como um governo que, em função de alguns limites, não conseguiu avançar tanto quanto poderia. O governo anterior, do próprio PSDB, teria dado as bases para um maior desenvolvimento do país. Lula conseguiu avançar apenas parcialmente, sendo necessário, portanto, trazer de volta um governo “tucano” para que o Brasil dê os saltas que Lula não teria conseguido dar.

O “lulismo” como herançaSeria possível, portanto, afirmar que Lula, ao deixar

o governo, deixa uma cultura política bastante particular, algo que vem sendo chamado por alguns de “lulismo”. O filme acerca da vida de Lula, de certa forma, procura ressaltar os traços dessa cultura política, criando uma mistura entre o homem, o político, o filho e o marido. Esse filho carrega os traços de sua mãe, não apenas da mãe biológica mostrada no filme, mas uma nação inteira que também é sua mãe. Nessa metáfora, da nação como mãe, mostra-se uma mãe protetora, apoiando os filhos nos momentos de grande dificuldade e sempre dando conselhos que os ajudem na caminhada da vida. Uma mãe que está sempre presente e que luta com todas as suas forças para dar aos seus filhos um futuro melhor.

O Brasil, essa mãe metafórica de Lula, que dá o melhor de si por seus filhos, pode então ser interpretado como uma nação que, apesar do sofrimento e das situações limite em que as desventuras acabam lhe colocando – que não dependem dela, mas de fatores externos – arranca de si própria todas as forças para proteger seus filhos.

Uma nação que, apesar dos sofrimentos e das privações, ao dar o melhor de si, constrói trabalhadores honestos, homens e mulheres, que não desistem de lutar. São todos “teimosos”, como Lula, e têm a mãe como guia.

Essa imagem de perseverança, resumida na singela palavra teimosia, não apenas perpassa o filme inteiro como se mistura com outra palavra forte, coragem. Há, de um lado, a teimosia de Lula e seus irmãos que, apesar da postura contrária do pai, continuam a estudar, com apoio da mãe. Teimosia de Lula que, apesar das dificuldades, realiza o curso técnico de torneiro mecânico e, apesar da falta de emprego, persiste até ter novamente a oportunidade de ser operário.

Mas, se Lula e seu povo são teimosos, também carregam como marca a cautela, fazendo, como sugere a mãe, as coisas de forma pensada. Dessa forma, há em Lula tanto um ímpeto quase irracional de quem luta para sobreviver e alcançar seus sonhos, ao lado de um homem meticuloso e que, para chegar ao desejo, mede cautelosa e cuidadosamente seus passos.

Essa cautela, quando chega na esfera da política, materializa-se numa política pragmática. Esta é a manifestação mais clara dos limites políticos do filme, em que o mito mostra os motivos de ter chegado onde chegou. Em um filme pago por multinacionais brasileiras e estrangeiras, seu protagonista insiste muitas vezes que não é inimigo dos patrões e que está apenas lutando pelos interesses dos trabalhadores, como salário e melhores condições de vida e trabalho.

Lula parece carregar uma espécie de trauma, de quando, acompanhando seu irmão, viu cenas e grande violência promovida por um grupo de operários. Esses são mostrados como baderneiros e sectários, uma massa irracional cuja ação é movida pelo ódio e não pela busca de melhores condições para os trabalhadores. Um contraste é feito, nesse ponto. Enquanto esse grupo apresentado como baderneiro veste camisas brancas e limpas, de colarinho branco, os operários nas fábricas, aqueles que seriam sérios e trabalhadores, e que não se metem em confusão nem são violentos, vestem azul e estão manchados pelo trabalho.

Lula é diferente, optando por negociar sempre se sem se guiar por “ideologias” que pregam a guerra entre as classes. Lula constrói sua imagem como conciliador. Os burgueses não são inimigos, afinal, nas palavras de Lula, “pagam o nosso salário”. Lula não quer tomar o poder nem quer ser um político, mas apenas representar os interesses dos trabalhadores e lutar por eles. Mais do que isso, quer uma paz social, em que patrões e empregados possam se entender evitando atritos.

Mas, se está aí o ponto fraco político do filme, curiosamente também está o seu ponto forte, que é a denúncia das ações criminosas da repressão ditatorial. Quando os operários vão à greve, é porque os espaços de negociação terminaram e se veem obrigados a forçar algum

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tipo de acordo que lhes deem garantia. É a repressão que politiza os operários e as greves e que reprime e prende esse sindicalismo “conciliador” de Lula. Ou seja, nesse regime repressivo não há espaço nem mesmo para lutas sindicais que se pretendem pacíficas. Para os ditadores, o ideal seria um sindicalismo ligado diretamente ao Estado, e não um sindicalismo autônomo e combativo, ainda que pragmático, visando os resultados imediatos.

Um novo mito?No filme constrói-se a imagem de Lula como um

homem em quem todos deveriam se espelhar e seguir o exemplo. Seu sofrimento é o mesmo de todo o povo, o que faz dele uma espécie de síntese de um povo sofrido que, apesar das dificuldades, luta e vence na vida. Essa é a figura que se quer fortalecer no imaginário popular, procurando fundir e reforçar a imagem do grande líder popular, do homem trabalhador e também de família.

O filme ressalta, portanto, um conjunto de imagens conservadoras, trabalhando com o imaginário popular do líder, numa tentativa de eternizar um novo político que, como Getúlio Vargas, possa estar presente em todas as futuras eleições mesmo sem concorrer. Há, portanto, um projeto político, que não é apenas de um grupo particular, mas que pode ser utilizado pelo conjunto das forças políticas, se aproximando do imaginário construído em torno de Lula. Lula estará futuramente presente, na imagem que os trabalhadores procuram ou sonham para si, uma imagem sem projeto de emancipação, mas que defende a conservação e consegue sintetizar desejo de mudança com elementos simbólicos conservadores da sociedade.

A classe operária na luta contra a ditadura (1964-1980)

Edições Iskra, 2008. Uma crítica à história oficial e petista sobre o ascenso operário

no Brasil dos naos 70 e 80 buscando esclarecer o presente.

Realismo socialista

O estilo atual da pintura oficial soviética leva o nome de “realismo socialista”. Certamente, esse

nome foi dado por algum chefe de escritório dos negócios artísticos. O realismo consiste em imitar os daguerreótipos feitos nas províncias

durante o último quartel do século XIX; o caráter “socialista”, com certeza, na maneira de mostrar os acontecimentos, com os efeitos das fotografias afetadas - isto é, nunca se sabe onde acontecem. Não se pode deixar de sentir uma repugnância física - é ao mesmo tempo cômico e terrível - à

leitura dos poemas e novelas, à vista das fotos de quadros ou de esculturas nos quais funcionários

armados com penas, pincéis ou burris sob a vigilância de outros funcionários armados com

máusers, louvam chefes “de prestígio” e “geniais” que na realidade não têm a menor centelha de gênio ou grandeza. A arte da época stalinista permanecerá como a expressão mais crua da profunda decadência da revolução proletária.

Mas isso não se limita às fronteiras da U.R.S.S. A pretexto de reconhecimento tardio da Revolução

de Outubro, a ala esquerda dos intelectuais ocidentais ajoelhou-se diante da burocracia

soviética. Os artistas dotados de caráter e talento são, em geral, marginalizados. E foi assim

que, com o maior descaramento, fracassados, carreiristas e desprovidos de dons guindaram-se à primeira fila. Inaugurou-se a era dos centros e escritórios de toda espécie, dos secretários de ambos os sexos, das inevitáveis cartas de

Romain Rolland, das edições subvencionadas, dos banquetes e dos congressos, em que é difícil descobrir a linha divisória entre a arte e a G.P.U. Apesar de sua vasta extensão, esse movimento

militarizante não deu origem a nenhuma obra que possa imortalizar o seu autor ou aqueles que, do

Kremlin, a inspiraram. (Arte e revolução, Leon Trotski, �7/6/�938)