LUKÁCS E O ESTRANHAMENTO EM MARX

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LUKÁCS E O ESTRANHAMENTO EM MARX Maria Norma Alcântara Brandão de Holanda Professora da Universidade Federal de Alagoas Doutoranda em Serviço Social pela Univ. Fed. do Rio de Janeiro Introdução O texto que ora apresentamos traz alguns elementos para a reflexão acerca do estranhamento (Entfremdung) tal como pensado pelo filósofo húngaro Georg Lukács a partir da sua interpretação dos escritos de Marx sobre essa categoria. O que implica considerá-lo como um complexo pertencente ao mundo dos homens e em permanente relação com a totalidade social. Pretendemos aqui desenvolver o que consideramos como a contradição central do fenômeno em questão: o desenvolvimento das forças produtivas ao tempo em que conduz a uma elevação das capacidades humanas, tem igualmente provocado, em circunstâncias históricas particulares, um rebaixamento das individualidades. Antes, porém, é necessário circunscrevê-lo no interior do ser social enfatizando os seus traços ontológicos gerais. Fundamento ontológico do estranhamento Iniciamos enfatizando o caráter de historicidade que Lukács confere ao estranhamento, quando no início do IV capítulo do volume II’’ de sua Ontologia assinala que se trata de "um fenômeno exclusivamente histórico-social que se apresenta em determinada altura do desenvolvimento em si, e a partir desse momento assume na história formas sempre diferentes, cada vez mais claras". Ele parte do fato de que o estranhamento "não tem nada a ver com uma condition humaine em geral e tanto menos possui uma universalidade cósmica". Sua gênese se dá no interior do complexo objetivação/alienação enquanto "uma ação de retorno da esfera objetivada sobre a individuação (e sobre a totalidade social, com todas as mediações cabíveis); uma ação, todavia, que reproduz a desumanidade socialmente posta.

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LUKÁCS E O ESTRANHAMENTO EM MARX

Maria Norma Alcântara Brandão de Holanda

Professora da Universidade Federal de Alagoas

Doutoranda em Serviço Social pela Univ. Fed. do Rio de Janeiro

Introdução

O texto que ora apresentamos traz alguns elementos para a reflexão acerca do estranhamento (Entfremdung) tal como pensado pelo filósofo húngaro Georg Lukács a partir da sua interpretação dos escritos de Marx sobre essa categoria. O que implica considerá-lo como um complexo pertencente ao mundo dos homens e em permanente relação com a totalidade social.

Pretendemos aqui desenvolver o que consideramos como a contradição central do fenômeno em questão: o desenvolvimento das forças produtivas ao tempo em que conduz a uma elevação das capacidades humanas, tem igualmente provocado, em circunstâncias históricas particulares, um rebaixamento das individualidades. Antes, porém, é necessário circunscrevê-lo no interior do ser social enfatizando os seus traços ontológicos gerais.

Fundamento ontológico do estranhamento

Iniciamos enfatizando o caráter de historicidade que Lukács confere ao estranhamento, quando no início do IV capítulo do volume II’’ de sua Ontologia assinala que se trata de "um fenômeno exclusivamente histórico-social que se apresenta em determinada altura do desenvolvimento em si, e a partir desse momento assume na história formas sempre diferentes, cada vez mais claras". Ele parte do fato de que o estranhamento "não tem nada a ver com uma condition humaine em geral e tanto menos possui uma universalidade cósmica". Sua gênese se dá no interior do complexo objetivação/alienação enquanto "uma ação de retorno da esfera objetivada sobre a individuação (e sobre a totalidade social, com todas as mediações cabíveis); uma ação, todavia, que reproduz a desumanidade socialmente posta.

Portanto, é fato ontológico decisivo para o filósofo húngaro que o estranhamento não é uma categoria geral, suprahistórica, ao contrário, se trata de uma categoria portadora de um caráter histórico-social assumindo formas particulares de se explicitar segundo situações historicamente determinadas.

Por não se constituir num fenômeno autônomo, o estranhamento, "em todas as circunstâncias, se desenvolve a partir da inteira estrutura econômica da respectiva sociedade, é a esta indissoluvelmente articulado, e não é jamais dissociável do nível das forças produtivas e do modo de ser das relações de produção.

Entretanto, esses elementos dizem respeito tão somente ao "lugar ontológico" do estranhamento; sua "essência concreta" está exatamente no significado que assume, em dadas circunstâncias históricas, aquela contradição de origem entre desenvolvimento das forças produtivas e crescimento das individualidades humanas.

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Demarcado o campo por onde devemos transitar e assinalado o cuidado que tem Lukács, a exemplo de Marx, quanto ao aspecto de historicidade do estranhamento por nós considerado da maior importância, podemos avançar naquilo que de fato nos interessa nesta exposição, isto é, na contradição básica acima referida.

O primeiro traço que queremos demarcar aqui, nos conduz ao fato de que o crescimento das capacidades, peculiar ao desenvolvimento das forças produtivas, se converte – sempre em situações historicamente determinadas – em obstáculos ao devir da personalidade humana, ou seja, no seu próprio estranhamento.

Argumenta o pensador húngaro que Marx, por diversas vezes, se referiu a essa problemática. Em Teorias sobre a mais valia, por exemplo, segundo Lukács, Marx teria afirmado que, em algumas circunstâncias, o desenvolvimento das forças produtivas enquanto "desenvolvimento da riqueza da natureza humana como fim em si" se efetiva mediante "um processo no qual os indivíduos são sacrificados".

É preciso ter claro, no entanto, que o que está em questão não é o desenvolvimento das forças produtivas. Contudo, ao reconhecer sua importância, Lukács, inspirado em Marx, enfatiza seus limites ontológicos os quais se expressam no âmbito do desenvolvimento econômico-social:

O desenvolvimento das forças produtivas é necessariamente também o desenvolvimento da capacidade humana, mas – e aqui emerge praticamente o problema do estranhamento – o desenvolvimento da capacidade humana não produz obrigatoriamente o [desenvolvimento] da personalidade humana. Ao contrário: justamente potencializando capacidades singulares, pode desfigurar, aviltar, etc., a personalidade do homem.

É essa "antítese dialética" que o pensador húngaro chama de estranhamento. E ela se encontra ineliminavelmente na base de todos os modos de se apresentar do fenômeno em questão. Sabemos que no plano ontológico essa contradição assume formas particulares de se explicitar. Todavia, permanece em todas as suas manifestações – independentemente de sua forma ou conteúdo – essa antítese de fundo entre desenvolvimento da capacidade e desenvolvimento da personalidade. E tanto mais desenvolvidas as forças produtivas mais evidente de torna tal contradição.

Não é difícil perceber, por exemplo, que as exigências postas pelo desenvolvimento da economia ao mesmo tempo em que tem desencadeado um enorme crescimento dos indivíduos, tem igualmente produzido no mundo inteiro um nível de desumanidade que atinge patamares jamais constatados em estágios inferiores de desenvolvimento.

Refletindo sobre o trabalho estranhado, Marx, nos Manuscritos econômico-filosóficos de 1844 escreve: "quanto mais produz o operário com seu trabalho, mais o mundo objetivo, estranho que ele cria em torno de si, torna-se poderoso, mais ele empobrece, mais pobre torna-se seu mundo interior e menos ele possui de seu". Nesse preciso sentido, e partindo da via que lhe é central – a Economia Política Clássica – Marx demonstra que "a miséria do operário está em razão inversa do poder e da grandeza de sua produção". Quer dizer, quanto mais produz, maior é a sua miséria.

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Logo, "a produção não produz unicamente o homem como uma mercadoria, a mercadoria humana, o homem sob forma de mercadoria; de acordo com tal situação, produ-lo ainda como um ser espiritual e fisicamente desumanizado...".

Isso nos faz entender a afirmação de Antunes, segundo a qual, "o que deveria se constituir na finalidade básica do ser social – a sua realização no e pelo trabalho – se converte em meio de subsistência. [...] O que deveria ser a forma humana de realização do indivíduo reduz-se à única possibilidade de subsistência do despossuído". Nesse sentido, e ainda segundo Antunes, "[...] sob o capitalismo, o trabalhador repudia o trabalho; não se satisfaz, mas se degrada, não se reconhece, mas se nega. [...] O seu trabalho não é, portanto, voluntário, mas compulsório, trabalho forçado".

Tem-se, pois, como resultado, uma vida que, ao invés de se tornar plena de sentido, se expressa no plano puramente instintivo, animal: "[..] o homem (o operário) não se sente mais livremente ativo senão em suas funções animais, comer, beber e procriar, assim como, ainda, habitar, vestir, etc., e que em suas funções de homem ele não se sente mais que um animal. O bestial torna-se o humano e o humano torna-se bestial".

É evidente que as funções do comer, do beber, do procriar, etc., são "funções autenticamente humanas", porém, conforme afirma Marx, isoladas abstratamente do resto do campo das atividades humanas e por isso se tornando o fim último e único, elas tornam-se bestiais.

Ora, se o desenvolvimento das forças produtivas ao tempo em que desenvolve as capacidades individuais faz nascer em grandes proporções a reprodução da desumanidade, evidencia-se aqueles limites ontológicos imanentes a tal desenvolvimento sobre os quais já nos referimos e que funda a contradição entre o crescimento das singulares capacidades dos homens e o desenvolvimento de autênticas individualidades.

Como em Lukács nenhuma personalidade independe da sociedade em que vive, mas é a ela ontologicamente vinculada, "quanto mais um problema de estranhamento atinge e move pessoalmente um homem na sua verdadeira individualidade, tanto mais ele é social, genérico. De modo que, as ações deste homem tanto mais precisamente miram a generalidade para-si, quanto mais tornam-se pessoais, independente do fato de que ele tenha clara e exata consciência".

É sobre esse complexo problemático que nos deteremos logo a seguir.

 

Generalidade humana em-si e para-si

Toda relação social, seja ela estranhada ou não, comporta uma dimensão humano-genérica e, portanto, a possibilidade de uma generalidade humana para-si, tanto na realidade objetiva quanto no seu reflexo pela consciência. Consideradas como determinações ontológico-universais do ser social, as dimensões – o em-si e o para-si – se articulam pela mediação de diferentes particularidades historicamente produzidas. Dessa forma,

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as mediações de cada particularização fazem com que um ou outro pólo da relação seja, a cada instante, mais ou menos predominante, mais ou menos decisivo para os processos em curso. Todavia, independente dessa variação da relação entre em-si e para-si, o em-si tem sua existência sob a forma de ‘uma realidade operante praticamente’ ‘enquanto a generalidade humana para-si é produzida [...] somente como possibilidade.

Decorre daí que, enquanto o em-si das individualidades surge espontaneamente no cotidiano da vida social, o para-si necessita de um pôr teleológico de qualidade superior que apenas pode ser objetivado pelo "homem que é capaz de elevar-se com a consciência para além da própria particularidade".

Ora, se o para-si pressupõe uma teleologia qualitativamente superior posta a partir de decisões conscientes tendo em vista uma nova sociabilidade, os estranhamentos só podem vir a ser em constante contradição com o para-si, já que se constituem num obstáculo à generalidade humana.

Contudo, não será apenas através de uma elevação espiritual para além da particularidade que os estranhamentos serão superados já que são fenômenos portadores de determinações histórico-sociais. Ou seja, trata-se de fenômenos concretos que ocorrem em situações sociais concretas. Sua autêntica superação exige, portanto, muito mais do que uma atividade teórica, exige, acima de tudo, uma atividade prática. Por outro lado, não podemos perder de vista que "quanto mais um homem permanecer particular, mais é impotente frente aos influxos estranhantes".

Desse ponto de vista, evidencia-se um indissolúvel imbricamento entre os estranhamentos e o processo de individuação e deste com a sociabilidade. O que nos leva a concluir que indivíduo e sociedade só existem e se reproduzem em permanente interrelação, pois no homem singular estão contidas determinações do gênero humano na medida em que o elemento genérico próprio à categoria trabalho é um dos nexos que sintetiza a individualidade.

Se é verdade que aquela contradição de origem entre desenvolvimento da capacidade e desenvolvimento da personalidade é o nódulo central do fenômeno do estranhamento, não é menos verdadeiro que este último "não abrange, não obstante a sua relevância, a inteira totalidade do ser social do homem, e de outra parte, ele não reduz (salvo nas deformações subjetivistas) a uma antítese abstrata entre subjetividade e objetividade, entre homem singular e sociedade, entre individualidade e sociabilidade".

Logo, conforme assegura Lukács, "não há nenhum tipo de subjetividade que não seja social nas suas raízes e determinações mais profundas". Nesse sentido, as relações que se estabelecem entre a totalidade social e os atos singulares e que têm na cotidianidade suas expressões imediatas, fazem com que as ações pessoais exprimam um significado para além da simples decisão individual. Porém, "em circunstâncias normais" permanece um campo de manobra onde as decisões pessoais atuam no sentido de responder às necessidades imediatas. Daí a importância de se levar em conta além das determinações causais, o momento subjetivo, a consciência que têm ou não as individualidades sobre os processos estranhantes a que são submetidas no cotidiano da vida social.

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Referências Bibliográficas

ANTUNES, R. A Rebeldia do Trabalho, São Paulo: Editoras Ensaio e da UNICAMP, 1988.

LESSA, S. A Centralidade do Trabalho na Ontologia de Lukács. Tese de Doutoramento, Unicamp, 1994.

________ "Estudo sobre a categoria do estranhamento em Lukács", versão 2, janeiro de 1998.

LUKÁCS, G. "L’estraniazione", in: Per una ontologia dell’essere sociale, vol. II’’, cap. IV, Roma: Riuniti, 1981.

MARX, K. "Manuscritos econômico-filosóficos de 1844", in: Economia, Política e Filosofia, R. de Janeiro: Melso, 1963.

___________ Manuscritos econômico-filosóficos, Textos Filosóficos, trad. de Artur Mourão, Lisboa: Edições 70, LDA, 1963.