Luis Alberto de Abreu Restauração Da Narrativa (1)

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Luis Alberto de Abreu Restauração Da Narrativa

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Falar mais obre a narrativa dramtica12A RESTAURAO DA NARRATIVALuis Alberto de AbreuABSTRACTO texto lana alguns elementos de raciocnio sobre o processo histrico de distanciamento dos valores pblicos e privados e de como isso afetou profundamente no s a geometria da cena como alterou e limitou as funes de seus criadores e a relao espetculo/pblico. E prope um reequilibro dos elementos picos e narrativos, fundamentais na arte teatral, como umas das formas de busca da restaurao da unidade entre espetculo e pblico. Sempre admirei o surpreendente processo que leva um paleontlogo a refazer, a partir de um fragmento de osso, no s toda a ossatura de um animal pr-histrico como seu aspecto, hbitos, costumes, o meio em que viveu e uma multido de informaes sobre aquele espcime. Guardadas as devidas propores como um fascinante jogo de investigao policial onde um pequeno e significativo detalhe se compe com inmeros outros, formando uma geometria que nos d o rosto do criminoso, o aspecto de um animal ou o retrato de uma sociedade. Penso que foi por causa desse fascnio que me habituei a querer ler sinais e me tornei dramaturgo. Dramaturgia no mais do que ler sinais por trs de uma ao ou de uma expresso humana. Em Media, Eurpedes nos revela um universo profundamente humano a partir de um crime brbaro. O mesmo faz Ibsen que, a partir de uma pequena nota de pgina policial constri Casa de Bonecas, um texto fundamental na moderna histria da dramaturgia.Foi a capacidade de ler sinais, imagino, que levou Mikhail Bakhtin, a escrever Cultura popular na Idade Mdia e no Renascimento, um livro que considero fundamental para qualquer dramaturgo ou estudioso ligado a teatro ou no. Nele, o fillogo russo, a partir de um sinal (o riso) discute, entre outras coisas, todo o processo que levou a sociedade a transitar de uma forte noo de corpo social presente na Idade Mdia afirmao de corpo individual como noo predominante no perodo do Romantismo. No bojo dessa transformao (e isso j deduo minha), valores, procedimentos, aes, imagens, histrias coletivas perdem a importncia em relao a valores, procedimentos, aes, imagens e histrias individuais.Foi tambm a tentativa de ler sinais que me levou a prestar ateno na organizao urbana das cidades coloniais brasileiras e no que elas tm em comum tanto com o estudo de Bakhtin quanto com a questo proposta no ttulo dessa reflexo: a restaurao da narrativa. Nas cidades coloniais brasileiras as moradias eram construdas segundo um padro determinado. Suas portas abertas durante o dia e apenas cerradas noite, suas janelas sem trancas, davam acesso direto rua ou praa e vice-versa, sem espaos intermedirios entre o domnio pblico e o privado. Portas e janelas, mais do que instrumentos de iluminao, arejamento ou segurana tinham o valor simblico de proporcionar o acesso fcil, livre de embaraos ao espao ntimo e privado da casa. O portal da casa permitia o fluxo constante de informaes, a relao estreita entre o mundo pblico e o privado. As moradias atuais so construdas de acordo com um padro diferente. Entre a soleira da casa e a rua, estabeleceram-se quintais, caladas, muros, portes, grades, lanas, cacos de vidro, interfones. As explicaes para essas diferenas na maneira das pessoas se relacionarem com o espao urbano, com certeza, vo alm de razes de segurana. A relao ntima entre os espaos fsicos pblico e privado, sugerida pela urbanizao catica daquelas cidades (ruas de traado tortuoso em razo da distribuio das casas, moradias desalinhadas que avanavam sobre a via pblica, ruas sem sada que terminavam abruptamente numa porta de residncia) indica que a mesma indefinio de fronteiras se estabelecia nos mais variados nveis das relaes humanas. E, em especial, na cultura. No interior de uma noo forte de corpo social estabelece-se um imaginrio comum de mitos, crenas, histrias, memria, etc. do interior desse imaginrio comum, pblico e permevel, que ao mesmo tempo em que invade a memria e os valores do indivduo, abriga e agrega suas contribuies, que as pessoas extraam o material para suas expresses simblicas ritos, mitos, arte. foi de dentro de um imaginrio e de experincias tornadas comuns que floresceu a narrativa como transmissora de conhecimento e, mais importante, de experincias individuais para o repertrio coletivo. Qualquer alterao em quaisquer dos planos o concreto e o simblico provoca alterao na forma de expresso humana. Esse o raciocnio do filsofo Walter Benjamin, em seu ensaio primoroso O Narrador Consideraes sobre a obra de Nikolai Leskov , onde analisa a decadncia da forma narrativa a partir das relaes concretas do homem e o trabalho. A decadncia da narrativa est intimamente ligada decadncia do imaginrio comum. O IMAGINRIONo existe experincia coletiva. Existem acontecimentos, fatos coletivos, como a guerra, peste e morte que em determinado momento podem atingir indivduo ou sociedade como um todo. No entanto, a experincia de cada um desses acontecimentos s pode ser absorvida individualmente. O que no quer dizer que uma experincia no possa ser compartilhada, imaginada, comunicada e sensibilizada. Ao contrrio, de fundamental importncia que toda experincia humana significativa possa ser comunicada tendo em vista a criao de um repertrio comum de experincias, material bsico para o desenvolvimento de uma conscincia coletiva. E conscincia coletiva o que plasma o surgimento de um destino comum. E destino comum o que orienta e d forma ao que chamamos de comunidade, cidadania ou nao.Essa transmisso de experincias individuais para a esfera coletiva d forma ao que chamamos imaginrio. Um imaginrio - repertrio de imagens comuns a uma cultura e, em decorrncia, de histrias, tipos, crenas, conceitos e comportamentos - necessariamente uma criao coletiva. Mais, um imaginrio determinado por condies objetivas, sociais, histricas. Ou seja, no h a possibilidade de um indivduo criar uma imagem fora do imaginrio de seu meio. Por exemplo, na Idade Mdia seria possvel haver um herege mas nunca um ateu dentro daquele imaginrio totalmente religioso. O que no quer dizer que o imaginrio no seja algo profundamente dinmico. Cabe ao artista, ao homem criador, perceber, nas condies objetivas do processo histrico e social, as possibilidades de surgimento de novas imagens e dar luz a novas histrias, idias, crenas, que vo integrar o imaginrio de sua poca. Juntando as coisas todas: o fato de as casas coloniais serem voltadas para as ruas e praas; a gradativa perda, atravs dos sculos, da noo de corpo social; a necessidade de compartilhamento de experincias (individuais) para a constituio de um imaginrio (coletivo), tudo isso, creio, tem relao direta com o tipo de arte que fazemos e, em especial, com a dramaturgia. Antes, porm, necessrio esclarecer que o processo de perda da noo de corpo social no , por si s, negativa. Ao contrrio, correspondeu abertura do fantstico caminho de fortalecimento da noo de indivduo e decorrentes noes de independncia, liberdade individual, humanismo. O gradativo afastamento do homem da natureza e do corpo social, o homem que se sabe diferente e isolado, que tem um destino prprio, quase desenraizado de seu meio, fez derivar a histria da civilizao para outro rumo. O Davi, de Michelngelo, com seu semblante pensativo e algo aflito, como se carregasse o peso de seu prprio destino, tido como um marco no processo que haveria de colocar o homem no centro da Histria e da criao. Na dramaturgia, Hamlet, de Shakespeare, igualmente considerado o prottipo do homem moderno, um homem em conflito, envolvido com a pesada herana de seus pais e que oscila, indeciso, na busca um novo caminho. Essas duas imagens iluminaram o caminho da afirmao do indivduo perante a natureza e o corpo social. A questo que se coloca se no necessrio, hoje, avaliar ambos os caminhos (o pblico e privado, indivduo e corpo social, criao individual e imaginrio) e talvez equilibrar novamente os elementos. A questo se coloca porque, no mbito do teatro, foi o progressivo isolamento do indivduo de seu meio que possibilitou o fortalecimento e subseqente predominncia de um gnero de invejvel poder dramtico, mas significativamente frgil no que se refere apreenso do mundo real. A predominncia do melodrama, como veremos mais adiante, determinou o afastamento dos contedos narrativos antes fortemente presentes no teatro.DA TRAGDIA AO MELODRAMATalvez a perda de um imaginrio onde os homens possuam bravura herica, coragem e habilidade para afrontar os grandes desafios da existncia, diminuiu em ns mesmos a capacidade de nos reconhecermos com tais valores. E se isso verdade, diminuiu bastante em ns esses poderes. Mais precisamente diminuiu nossa capacidade de reconhec-los em ns prprios. Parece haver relao direta entre o enfraquecimento da capacidade de luta, fora moral e grandeza dos objetivos dos personagens e o progressivo abandono do gnero trgico e a conseqente adoo do melodrama como gnero preferencial no sculo passado. Preferncia esta que permanece at os dias de hoje. No creio que caiba estabelecer juzo de valor sobre assunto. Os gneros todos, da farsa ao melodrama, passando pelo drama e pela tragdia, so importantssimos enquanto revelam esferas da alma e dos conflitos humanos com vigor e propriedade que os tornam insubstituveis. Se a afirmao da noo de indivduo foi um bem inestimvel para o ser humano o mesmo se pode dizer do desenvolvimento e aperfeioamento de novos gneros como o drama e o melodrama. A questo que se coloca o que perdemos nesse processo. Visto sob a tica da mitologia, o melodrama, est relacionado a uma mentalidade adolescente. Nada de negativo nisto se no considerarmos a adolescncia uma experincia humana negativa - tanto a adolescncia quanto o melodrama esto relacionados aquisio dos sentimentos e fora. Na mitologia, o heri adolescente porta uma pequena faca (no uma espada que smbolo do heri-guerreiro adulto) e sai pelo mundo. ajudado por um parceiro poderoso e no humano e est sujeito ao acaso e s foras mgicas ( na trajetria adulta -drama e tragdia- o heri depende fundamentalmente de si e seu destino determinado pela sua ao). Nas trajetrias mticas relacionadas ao heri adulto no existe o acaso, elemento fundamental no melodrama (doenas repentinas, golpes da sorte so acontecimentos que tem forte interferncia num melodrama). Ao contrrio do drama e da tragdia, o heri do melodrama necessariamente uma vtima. Despossudo de fora, ele sucumbe ao dos elementos externos, de viles e vils, incapaz de suplantar os limites das leis e da moral. No investe contra e nem consegue se libertar do poder da famlia ou da sociedade. Muitas vezes incapaz de perceber que a origem de seus males social. Em geral, o heri melodramtico no vai alm de seu quintal, no vai alm de relaes familiares e humanas de pouca profundidade. Digo em geral porque algumas peas desse gnero tratam os sentimentos humanos de forma profunda e verdadeira, tornando, em minha opinio, obras primas, apesar de no descerem s vastas complexidades da tragdia ou do drama. Personagens trgicos como Electra e Orestes matam Clitemnestra, sua me; Dr. Stockman, personagem dramtico de O Inimigo do Povo, de Ibsen, abre luta aberta contra seu prprio irmo e contra a sociedade; Nora , protagonista do drama Casa de Bonecas, tambm de Ibsen, abandona marido e famlia. Mas a famlia Tyrone, no primoroso melodrama Longa Jornada Noite Adentro, de Eugene ONeil, decai e sofre sem identificar a origem de seus males. Encerrados dentro de seu prprio mundo individual, os heris melodramticos desconhecem as foras da terra, do mundo e das ruas dos quais ele se exilou. Enquanto os heris trgicos chegam ao mundo como heris de cultura, personagens que vo transformar o mundo, derrogar velhas leis e trazer novas, lutar decididamente contra a herana e imagens dos pais e das tradies do cl ou da sociedade, o enfraquecido heri melodramtico sucumbe a um mundo que desconhece e a leis morais e regras sociais que no consegue mudar. O mundo algo misterioso e assustador, um sistema indecifrvel, e o palco de luta do heri melodramtico no o mundo catico ou a sociedade organizada sob leis opressoras e injustas. O universo de luta do heri melodramtico o dos seus sentimentos. E esses sentimentos so limitados pelas leis, pelos preceitos religiosos e pelos bons costumes. E, ainda mais, poderamos dizer que, embora os sentimentos sejam o elemento fundamental do melodrama esse gnero sobrevive principalmente no do exerccio dos sentimentos mas de sua negao. Os heris dramticos ou trgicos vivem os sentimentos com toda a intensidade e, muitas vezes, so punidos exatamente por isso, pelo descomedimento, pela falta de medida com que o vivem. Os heris melodramticos tentam viver seus sentimentos sem conseguir alcan-los, seja por acidente, pela ao do vilo ou por fraqueza moral. Ao perder o contato com a praa, com as ruas, com a comunidade, enfim, o homem perde seu imaginrio, abandona a fonte de sua cultura e diminuem-se consideravelmente a quantidade e a qualidade das experincias que podem ser comunicadas. Seu repertrio de imagens, sem o acrscimo das imagens apreendidas no contato e conflito com outros homens, reduz-se quelas geradas apenas a partir de si prprio (os sentimentos) e advindas no contato e conflito com seu reduzido meio familiar e crculo social (moral). Os prprios sentimentos sem o sadio conflito com a complexidade do mundo real tendem a permanecer na superfcie ou a se tornar idealizados. Ao abandonar as ruas o homem diminui substancialmente sua capacidade de aprender. O saber distancia-se do sentir. bem caracterstico que nossa poca tenha especial predileo pelo melodrama. um gnero que retrata fielmente a perplexidade da maioria de ns com um mundo que no mais conhecemos. Um mundo complexo, vil, catico, violento e inimigo, do qual nos afastamos para o aparente porto seguro de nossa casa e dos nossos sentimentos (desde que no escavemos esses sentimentos at as profundidades abissais dos instintos). Que distncia enorme do drama ou da tragdia em que os personagens investem em direo ao mundo para transform-lo em algo possvel de ser ordenado e habitado! A CRISEDesde que comecei minha carreira profissional como dramaturgo, h vinte anos, ouo falar em crise. Hoje me pergunto se possvel fazer arte em qualquer lugar do mundo sem crise. Isso no quer dizer que tenha me habituado a ela, mas que a considero elemento fundamental do processo criativo, situada no mesmo nvel de importncia da observao, da reflexo, da ateno ou da intuio. A crise norteia e nos faz mais espertos. interessante verificar que o afastamento da ntima convivncia entre o pblico e o privado, o indivduo e a cultura, expresso nas moradias das antigas cidades, um smbolo que oculta mudanas muito expressivas nas relaes humanas e artsticas. A perda do imaginrio levou a danos que somente agora comeam a ser percebidos de forma evidente. Por exemplo, a to comentada crise relacionada ao fluxo de pblico no teatro, cinema, literatura e outras artes, uma dessas evidncias. Obviamente, a crnica crise determinada pela falta de interesse do pblico pela produo cultural tem mltiplas e importantes razes. So levantadas desde razes histricas at a quase nula sensibilidade das instituies governamentais em incentivar o acesso da populao aos bens culturais; o peso da mdia e os interesses da indstria cultural, entre outras. Todas essas razes possuem slidas justificativas. Mas uma razo pouco aventada, e, talvez a mais importante, seja a que explica que o desinteresse do pblico se deve ao fato de que talvez a produo cultural no esteja falando a mesma lngua que ele, nem veiculando as imagens extradas de um imaginrio comum. Talvez a grande aventura da busca da individualidade iniciada no Renascimento tenha se exacerbado de tal forma a ponto de esquecermos da existncia de um corpo social, de um imaginrio cultural. Talvez o artista tenha renunciado a ser o meio de expresso das variadas experincias humanas para expressar a si prprio. Talvez o artista tenha aberto mo de expressar o mundo e a vida para expressar o prprio mundo e os prprios sentimentos. E talvez o prprio mundo e os prprios sentimentos no sejam assim to importantes. Pelo menos para o pblico. No que a totalidade da produo cultural atual seja apenas feita de consideraes em torno do umbigo de seus prprios realizadores. Ao contrrio, percebe-se em grande parte da produo artstico-cultural um empenho decisivo em questionar e encontrar formas de comunicao mais eficientes com o pblico. A pergunta se essas formas eficientes no esto intimamente ligadas recuperao de um imaginrio comum.RESTAURAR A NARRATIVAO longo e lento processo de afirmao dos valores do indivduo alcana at os dias de hoje. E se, durante esse processo, houve poca em que tanto os valores coletivos quanto os do indivduo conviveram, hoje, est claro, existe uma sobrevalorizao dos valores individuais em detrimento dos outros. E, paradoxalmente, na poca da chamada cultura de massa que a noo de indivduo se impe de maneira to avassaladora. Ou talvez o prprio conceito de massa como agrupamento infinito, amorfo e semiconsciente de seres propicie a sobrevalorizao do indivduo. O apelo da propaganda para que o indivduo se destaque da massa amorfa! Isso s pode ser feito apoiando-se e reafirmando em si, ad infinitum, a noo de indivduo em contraposio massa informe. Sem pretender aqui discutir o conceito de massa para mim no mnimo uma impropriedade -, o fato que, neste fim de sculo, o poder transformador da arte parece ter se esgotado e seus caminhos parecem ter conduzido a becos sem sada. Parece que enquanto as populaes aumentam geometricamente dinamizando de maneira aguda as relaes sociais, inversamente as manifestaes artsticas vem minguar seus pblicos e, como que excludas do poderoso processo que movimenta a sociedade contempornea, recolhem-se a seus guetos com suas diminutas platias. Fato caracterstico e, a meu ver, revelador do distanciamento entre espetculo e pblico a perda que o teatro vem sofrendo, nos ltimos trs sculos de seus contedos narrativos. O que era elemento constitutivo do espetculo entre os gregos ou mesmo na poca de Shakespeare hoje se limita a resqucios, praticamente. Uma ou outra reminiscncia deste ou daquele personagem nos informam que a narrativa tambm est presente num espetculo, como um apndice de que, se no estiver inflamado, no se percebe a existncia. O fato que os contedos narrativos numa pea teatral no so apenas elementos estilsticos e sua perda corresponde a um prejuzo to gigantesco que chega quase a descaracterizar a arte teatral. Atualmente tomamos arte dramtica como sinnimo de arte teatral esquecendo-nos de que a arte da narrativa sempre teve lugar marcante na arte teatral. E, dada a importncia da conjugao dessas duas artes no teatro creio ser til abrir um parntese para a discusso desse tema. O ONTEM E O AQUI E AGORAExistem, a meu ver, dois elementos fundamentais que estruturam o que convencionou-se chamar fenmeno teatral. E no coincidncia que esses mesmos elementos estejam tambm presentes tanto no mito quanto no rito religioso: o aqui e o agora. Teatro uma arte efmera e presente e isso quer dizer que sua existncia se d no momento em que o espetculo acontece em sua relao com o pblico. Terminado o espetculo, terminou a arte teatral. Teatro uma arte que s tem existncia em seu momento presente. Isso parece uma obviedade, mas sua prpria essncia. Teatro a ao presente, a emoo presente, o ator e o pblico presentes. Teatro no simplesmente uma histria contada, uma experincia viva, na definio de Eric Bentley. Sensaes como xtase, gozo, catarse, emoes, alheamento, vivncia alm do concreto da existncia, so elementos necessariamente presentes tanto no rito religioso quanto no mito ou no teatro. Com uma grande diferena: embora a experincia viva, o aqui, agora defina o teatro, h outro elemento que o separa tanto da religio quanto do mito e lhe d outra geometria e alcance. Teatro, embora seja um bem do esprito tambm algo profano, concreto, onde o xtase algo comedido, onde as alturas das emoes que podem no ter limites no rito religioso so circunscritas ao mundo real. No teatro, o contato com o espiritual no um fim em si, como no rito religioso o contato com a divindade o objetivo final. No teatro, e no falamos apenas do teatro grego, o xtase necessita de um sentido, um lgos, uma razo. Ouso at refletir que o lgos tambm est presente nas religies, afinal existem a doutrina, os preceitos e se no existissem, existe a organizao, a geometria do rito. Religio e arte, no entanto, abrigando os mesmos elementos possuem objetivos opostos: o lgos na religio visa ao xtase, ao contato com o divino, teofania. Na arte, o xtase cdigo de acesso ao logos, ao re-conhecimento da trajetria humana. Teatro tambm uma forma de saber. Reflito que se a ao teatral no geral e os dilogos, no particular, dizem respeito ao presente, re-presentao, ao aqui, agora, a narrao diz respeito aos fatos acontecidos, ao ontem, ao passado. Bem, fatos acontecem em determinado lugar e em determinada poca. Por conseqncia, o universo preferencial da narrao o universo histrico, o tempo e os acontecimentos concretos da histria do homem. E, nesse sentido, a narrao funciona como cdigo de acesso ao lgos, ou seja, tem o poder de inserir, com vantagens, na ao teatral o territrio concreto das relaes humanas (sociais, polticas, econmicas e outras) onde se d a trajetria dos personagens. O personagem, assim, atravs da narrao, se insere no territrio, no tempo e no espao histricos, e, a, busca um sentido pra sua ao e para sua existncia. E desse conflito, das relaes entre a personagem e seu universo histrico possvel surgir o lgos, a razo entre dois elementos contraditrios: personagem e meio.Isto posto, uma questo se levanta, bvia: No possvel obter-se o logos to somente com a ao representada, sem a insero da narrativa? A resposta tambm um bvio sim. Mas porque, ento, os gregos e Shakespeare utilizavam tanto a narrativa? No seria porque a narrativa potencializa a representao? E se ela tem essa potncia como isso se d na cena? O SISTEMA NARRATIVOO teatro desde o seu surgimento tem sido um sistema integrado de elementos picos e dramticos: em pocas mais remotas com forte predominncia de elementos picos e em pocas mais recentes com mais acentuada presena do elemento dramtico. No sculo XIX o equilbrio desses elementos foi fortemente alterado. Uma srie bastante grande de fatores contribuiu para isso. E o teatro tornou-se um sistema fundamentalmente dramtico. O exlio da narrativa no teatro provocou distores. Uma delas pode ser verificada na artificialidade de alguns textos melodramticos, no idealismo extremado, na bonomia inverossmil, no carter maniquesta de seus heris e viles. Os personagens, extrados do contexto das relaes humanas reais, tornam-se apenas emblemas de virtude ou vcio. Afastados do fazer real, das relaes humanas, a nica realidade que resta a subjetividade dos sentimentos. O teatro torna-se mais e mais sentir, torna-se mais xtase e emoo e menos saber. Nesses textos melodramticos at admirvel a capacidade tcnica dos seus autores em provocar emoo no pblico com personagens absolutamente desprovidos de humanidade. Personagens nessas peas so ferramentas hbeis para extrair emoo das platias, mas muitas vezes no so, absolutamente, personagens pertencentes ao mundo real. A emoo paira exacerbada na atmosfera, mas carece de sentido. Talvez seja por isso que, hoje, nos causa riso o tom exageradamente emotivo desses velhos textos. Foi contra essa emoo fora de contexto que Brecht se insurgiu e com seu teatro pico props um novo re-equilbrio dos elementos picos e dramticos presentes no teatro. Mas o ostracismo da narrativa no teatro provocou outras mudanas. O espetculo teatral tomou uma nova configurao: de arte sonora, cujo sentido privilegiado de acesso era a audio (em ingls, platia ainda audience) o espetculo teatral tornou-se algo a ser, em primeiro lugar, visto. O pblico torna-se espectador, aquele que v. Isso provocou alteraes profundas na relao do espetculo teatral com o pblico. Este passa a assistir o espetculo. Esse assistir no desprezvel nem deixa de ser uma boa relao com a platia, mas o fato que fomos levados ao esquecimento de outras relaes. No bojo do assistir, a quarta parede torna-se de fato uma instituio e o ato teatral torna-se profundamente representado. O espetculo comea a acontecer fundamentalmente no palco. O assistir representao ainda preserva a imaginao do pblico, mas, talvez, como menos intensidade. No sistema narrativo, ao contrrio, o pblico o interlocutor privilegiado, a relao olho no olho entre personagens no palco transfere-se para olho no olho entre ator/narrador/personagem e pblico. A ponte obstruda pela quarta parede novamente aberta. O sistema narrativo tambm lana mo da maior contribuio que pblico pode trazer ao espetculo: uma imaginao ativa. Atravs da narrativa o pblico tambm construtor das imagens do espetculo e o espetculo teatral, ao invs de ser um sistema predominantemente sensvel, torna-se tambm um sistema fortemente imaginativo. No entanto, a vantagem maior do sistema narrativo que ele no exclui o vigor da representao dramtica. Ao contrrio, a abriga dentro de si, possibilitando inumerveis combinaes entre narrao e representao. O limite , de fato, a imaginao do palco e da platia. CONCLUSOEsta , de fato, uma concluso precria. Tanto no que se refere s infinitas possibilidades do sistema narrativo quanto no que diz respeito a alguns tpicos levantados nesta generalizada reflexo. Cada um dos elementos e afirmaes aqui levantados exigiria espao maior, reflexo mais arguta e, seguramente, a contribuio de outros artistas e tericos interessados no tema. O que podemos concluir dos elementos aqui expostos que a restaurao da narrativa e o aprofundamento da pesquisa cnica em torno de suas caractersticas (a transmisso de experincias humanas e no de meras informaes apenas uma delas ) pode se juntar a uma srie de iniciativas que visam a restaurao de um imaginrio comum entre palco e platia e, a partir disso, construir um novo relacionamento. Bertolt Brecht com seu teatro pico apenas iniciou um caminho que pretendia um novo equilbrio entre os elementos picos e dramticos existentes no teatro. Peter Weiss, Heiner Mller, Bernard-Marie Kolts e outros aprofundaram esse caminho, mas a pesquisa das possibilidades do sistema narrativo apenas se inicia. Creio firmemente que o sistema narrativo um sistema de ganhos. um sistema complementar ao sistema dramtico/representativo e no exclui nenhuma conquista desse ltimo. Ao contrrio, provoca, lana desafios a todos os criadores e re-introduz o pblico como elemento construtor do espetculo teatral. Sem a imaginao do pblico o teatro narrativo no existe. Ao propor a partilha imaginativa de experincias humanas, o teatro narrativo solicita algo alm da mera geometria esttica. Prope e pede a restaurao da antiga unidade entre o pblico e o privado, o indivduo e sua comunidade, a fora progressista e de ruptura da imaginao individual e a solidez do imaginrio coletivo. Lus Alberto de Abreu dramaturgo e estudioso de dramaturgia. H mais de dez anos desenvolve estudos nessa rea com autores jovens, no Grupo dos Dez (So Paulo) e Grupo ABC de Dramatugia (Escola Livre de Teatro de Santo Andr). Prepara livro sobre a relao entre a estrutura dramatrgica e os mitos e arqutipos. Escreveu Foi Bom, meu Bem?, Bella Ciao, Lima Barreto, Ao Terceiro Dia e Guerra Santa, entre outras peas. H sete anos mantm , em So Paulo, com o diretor Ednaldo Freire a Fraternal Companhia de Arte e Malas-Artes, o Projeto de Comdia Popular Brasileira. Atualmente voltado ao teatro narrativo desenvolve pesquisas que tem como base o teatro N, visando criao de uma forma teatral breve e intensa. Entre suas peas criadas dentro do sistema narrativo destacam-se O Livro de J, dirigida por Antonio Arajo com o Grupo Teatro da Vertigem, Iepe e Till Eulenspiegel, com a Fraternal, dirigidas por Ednaldo Freire.