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"Meu testamento e tacit de resolver pais nada hd pmoa ·ser dividido. Meus parentes nao precisam fazer rebuli~o nem lamentar-se. Pedra que rola nao cria limo. Meu carpal ~b, se eu pudesse escolber Gostaria de fe-fo reduzido a cinzas Que depois sel'iam espalhadas pela brisa suave. Etas ajudariam algumas /lores a crescer. Talvez alguma flor en/raquecida. Assim retomaria a vigor. Este e meu ultimo dese;o. Boa sayle a todos voces.}J

Joe Hill (0 lendario cantor norte-americana, fuzilado na Peniten­ciaria Estadual de Utah, na madrugada do dia 19 de no­vembro de 1915.)

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Romance-reportagem

Grande tern sido a controversia nos Estados Unidos em torno do genero rornance-reportagern, que foi iniciado pelo ja consagrado romancista Truman Capote, com seu best sel­ler A sangue-frio, cnde narra assassinatos que de fato ocor­reram nos Estados Unidos. Outros autores seguiram a trilha aberta por Capote, neste genera que logo se mastrou pole­mica, entre eles Tom \"Xlolfe, para char apenas urn. Veio a acontecer uma curiosa ambivalencia. Por urn lado, as livros vendiarn horrores e tinham apoio de alguns criticos. Por outro, eram atacados pelos crfticos que ainda estao a espe­ra da great american novel que nao acreditavam poder set realizada desta forma.

Com todo 0 cuidado que deve ter urn critico ao depa­rar urn genera novo, aproximei-me dele, tirando minhas pr6-prias conclus6es. Em primeiro lugar, acho que a critica nunea esta aparelhada para 0 novo, sempre se mostrando cautelasa e preferinda reconsagrar as ja consagrados nos generas tra­dicionais. Em segundo lugar, acho que 0 talen to criador de urn escritor sobrep6e-se e supera qualquer veleidade de ge­nera au tematiea. Nao leva muita em canta a critica antago­nica dos Estados Unidos por essas raz6es. Nao se pode cri­ticar urn genera, uma ternatiea. Para mim e indiferente que urn assunto surja na mente de urn autor como mera fruto de sua imagil1a~ao (a que, salvo alguns casas de fic~ao cientffica, e raro) au que 0 autor recolha fatos veridicos e casendo-os construa urn romance. E urn trulsmo dizer que nenhum es­critor cria do nada. E urn fato incontestavel que a maioria dos ramances invent ados de uma cadeira do papai sofrem da inconsistencia de estorias inventadas e faIsas. Cada escritor adiciona a sua realidade circunjacente urn pOlleo au muite do seu pader eatalisador e estruturador. Alguns dos nossos me­Ihores romancistas basearam-se erri fatos historicos au mesma

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em acontecimentos e pessoas reais para fazer seus romances, que tanto mais apelam para a sensibilidade do publico quan­to as personagens se mostram vivos, capazes de sair das pa­ginas dos livros e conversar conosco. Bastaria citar Jorge Amado, este grande recriaqor de personagens novas com base em pessoas preexistentes, este mesmo que ja foi acusa­do de ser muito mais urn reporter que urn ficcionista, para vermos que a reportagem esta na base do romance, e digo reportagem enquanto transcri~ao de fatos que tiveram urn acontecer real mas que nas paginas dos Iivros passam a ter urn acontecer merarnente ficcional, pais que surge deles uma nova verdade enriquecida e dirigida subjetivamente pelo autor, e portanto desIigando-se em sua essencia dos fatos reais, ou seja, os fatos se redimensionam atraves do filtro criativo do autor, ganhando vida nova, sentido novo. Que e A la recherche du temps perdu se nao uma longa e anal1ti­ca reportagem da aristocracia decadente que Proust conheceu de perto? Afora a sutil penetra<;:ao psicologica que 0 autor exerce num universo que eleva a cumes de fantasia, resta a perfeita descri<;:ao do jogo social da epoca.

Ao lermos Lucio Flavio, 0 passageiro da ago11ia, de Jose Louzeiro, sentimos no livro a forte presen~a do romancista Louzeiro. Parca fiadora do destino do bandido, que, partin­do de uma est6ria real, contribuiu tanto para enriquece-Ia que deu ao romance personalidade nova e autonoma. Lucio Flavio ganha uma objetividade propria atraves da otica sub­jetiva de Louzeiro, que soube pegar urn personagem real e definido, decompo-Io e criar urn novo personagem, exterior-' mente semelhante a Lucio Flavio, 0 assaltante, dai 0 valor do reporter Louzeiro, mas interiormente engrandecido e dig­nificado, dal 0 valor do ficcionista Louzeiro.

Diga-se 0 que se disser do romance-reportagem, nele so prevalece do jornalismo aquilo que 0 faro de reporter soube ver como de interesse geral. No mais a habilidade unica e exclusiva e a do narrador. Pouco importa a originalidade do tema. Shakespeare jamais inventou uma de suas pe<;:as. Eram todas baseadas em fatos historicos, novelas, ou mesmo outras pec;as que existiam. Sua grandeza foi a de saber recoser este material, emprestar-Ihe dignidade literaria e impregna-Io de humanidade. Da mesma forma, num romance-reportagem, 0

autor fica num plano inferior se se limita ao relato de fatos sensacionaHstas e nao da a estes corpo e estrutura.

No caso de Lucio PlavioJ 0 passageiro da agoniaJ a inte­ligencia e poder criativo do romancista podem ser notados

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desde· a tecnica de abertura do livro, a selel,'ao dos seus epi­sodios, ate 0 tratamento que da .aos personagens,. principal­mente ao protagonista, que analisa em mais profundidade, bern como aos dois mundos que se entrechocam com toda a brutalidade - 0 dos marginais versus 0 dos policiais, em que 0 autor nao poupa as tintas para rnostrar os desmandos e corrup<;:6es da pol1cia, a viol"ncia e a coragem dos margi­nais. De fora, as espectadores inocentes que tremem de rnedo so cle ouvir pronunciar certos nomes, a propria socie­clade que gerou os criminosos tern ocorrencia esporaclica no livro, mas tern uma fun<;:ao bipolar em si e na mente dos bandidos. N otem que a viol"ncia dos marginais nao se de­sencadeia it toa sobre urn elemento qualquer da populal,'ao. Quando matam, sao soldados de uma perpetua guerra, que no livro nao tern urn momento sequer de tregua e nos leva do prindpio ao fim num embalo so.

A gente comum tambem tern urn lugar nas fantasias de Lucio Flavia, que urn dia quis ser politico, mas ve-se arras­tado numa rocla-viva de crimes, numa corrida onde 0 carro perdeu 0 freio. Entao a garra de romancista se revela, crian­do dentro de todo urn universo de brutalidade momentos de lirismo compassivamente humano, momentos em que as fe­ras se esquecem de sua pele de lobo e sao vistas em sua di­men sao profundamente humana, corpo e alma, vontades e ambic;5es humanas que urn determinismo inexaravel empur­rou para a chacina.

Notavel e 0 poder de penetra<;:ao que tern Louzeiro na alma do marginal, e 0 conseguiu atraves da uniao de anos de vivencia como reporter com sua sensibilidade de poeta. Para mim, que nao acompanhei nos jornais as peripecias que envolveram a vida real do personagem, 0 livro poderia ser apenas urn romance. Com todos os ingredientes que se po­dem exigir de uma narral,'ao que nao se prende a superficia­lidade intr1nseca dos fatos e mergulha neste emaranhado de conflitos que e a alma humana, dal retirando li<;:6es e reve­lal,'6es que poderiam passar despercebidas. Dizer que Lucio Flavio assume no livro dimens6es de urn Quixote poderia parecer ousado, nao fora a intent;ao do autor em ve-Io como tal. Duro, siro, cruel, sim, e inescrupuloso, mas na medida de urn codigo de valores desenvolvido a partir da necessida­de de sobreviver numa selva onde, apos 0 primeiro pas so adentro, somente a astucia, a frieza e uma capacidade incrl­vel de arrostar as circunstancias mais desumanas podem ga­rantir, a bout de so·u/fle, mais urn minuto de vida. E e na

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imagem do moinho de vento, com suas pas girando e arras­tando a protagonista para uma aventura cnde a unica sarda e a morte, que encontramos a metafora fundamental do livro. Depois vern 0 grande cansa~o que se abate sobre 0 sagaz assaltante que ja nao pode segurar 0 fio de Ariadne no labi­rinto do crime. 0 permanente jogo de gato erato da policia e dos marginais chega a tal ponto de complexidade que Lu­cio, senhor absoluto das regras do jogo, cai em confusao, quando muita antes nos, leitores incautos, ja nos haviamos surpreendido e tateavamos na sordidez do submundo do cri­me em busca de uma atitude para assumir, em busea de uma compreensao global dos fatos. Quem sao os bandidos, quem sao as mocinhos? Nao ha no livro nenhum desses her6is mi­tologicos forjados por Hollywood. E nos, no aconchego dos nossos lares, livres dos pesadelos que campeiam pelo roman­ce, sentimos na espinha urn frio de meda, e talvez olhemos em volta e tenhamos urn certo sentimento de culpa, pais po­demos ter 0 que desejamos sem atravessar a fronteira da le­galidade policial, com nossos direitos ungidos e sacramenta­dos, nossa seguran~a pequeno-burguesa.

Realizou Louzeiro, a meu ver, uma pequena obra-prima no genera. Desde a maneira como a tematica e abordada, ate a fidelidade da linguagem e a desabrida coragem que teve de nos revelar, sem toques eufemisticos, Jllla realidade que continua a se processar em llOSSOS dias e que nos ajuda me­lhor a en tender a fera que mora dentro de cada urn de nos.

Ildasio Tavares lornal de Letras, junho de 1976

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Marco Aurelio nao entendia por que Armandinho 0

chamara. Combinaram a viagem a Goiania e, de repente, fa­lava em Sobradinho. Nao entendia. Estiveram juntos, ate tarde, e nao parecia haver modi£ica~5es no plano. Meteu-se no blusao de couto para enfrentar 0 frio da madrugada em Brasilia, puxou 0 fecho ecler ate 0 pesco~o, enquanta espe­rava 0 motor do carro aquecer.

Rodando nas pistas desertas aquela hora, pensava entao na possibilidade de uma fuga de Armandinho. Fora desco­berto na cas a da Avenida W-3? 0 carro avan~ou silencioso no arrampado da garagem, coberto de trepadeiras.

Tocou a campainha e, no abrir da porta, 0 que ve sao os companheiros do Rio, amigos d~ infancia em Bonsucesso. Ocupavam as poltronas, em plena madrugada, falavam, fa­lavam.

Latas e garrafas de cerveja na mesinha do centro. Ar­mandinho preparando mais sanduiches. Lucio Flavio pronti­ficou-se a fazer 0 cafe. Estava fumando ha horas, precisava de urn born cafe.

- Surpresa, pessoal? - perguntou Marco Aurelio, di­rigindo-se a Nijini Renato, irmao de Lucio.

- Coisa de rotina. Fernando C. O. diz que precisavam passar uns tempos

em Brasilia, respirar at puro, preparar-se para entrar numa boa.

- Os otarios daqui tao com a grana, irmao - comen­tou Micu~u.

Fernando C. O. continua falando, falando, Nijini Re­nata acentua detalhes. Armandinho corta os sanduiches, en­che os pratos. Micus;u e 0 primeiro a pegar urn peda~o, com bastante presunto. Marco Aurelio diz preferir urn pouco do cafe que Lucio ia fazer. Na verdade, preocupava-se com aque-

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la falac;ao, nao acreditava que, assim, de estalo, pudessem ou devessem alterar os p'lanos.

Os companheiros de Lucio Flavio tinham sempre muita coisa a contar, mas ele proprio quase nada dizia. Estava com a barba por fazer, olhos amortecidos de sono. Para chegar logo a Brasilia, s6 fizeram uma parada. E 0 tempo todo quem dirigiu foi Lucio. Viajaram em dois carros: urn Opal a e a camioneta C-14.

- Problemas na estrada? - indagou Marco Aurelio. - Quase nada. S6 urn palhac;:o da Policia Rodoviaria

que queria ir pro ceu, perto de Santos Dumont. Micuc;:u nao deixou.

Acham grac;:a. Lucio ja estava na cozinha, ocupado com o cafe. Fernando C. O. explicou que 0 novo plano incluia Goiania. Ia ser de rachar. Antes, tinham de descansar num lugar seguro. Ai, pensaram na chacara, petto de Sobradinho.

- Sabe, la tem muito eucalipto. De manha aquilo e perfumado como uma caixa de sabonetes. E nao fica exata­mente na cidade. A casa ta la nos fundos do terreno. Quem passa na estrada nem sonha que more alguem, ali - expli­cou Armandinho.

Lucio Flavio reaparece na sala e aconselha a que nao divaguem sabre coisas serias. Senta-se na poltrona, vai to­mando 0 cafe na caneca.

- Na chacara se fala 0 que tem de falar - diz ele. Voltando-se para Armandihho, pergunta: - Que carro esta com voce? Armandinho responde estar sem carro. Ele e Marco

Aurelio usavam em comum 0 CorceI grena. - Pra ninguem desconfiar que voce deu no pe, acho

bom deixar 0 carro na garagem. De jeito que a vizinhanc;:a possa ver. Se viaja no Opala e na C-14. Leva-se so 0 indis­pensavel. Nada de mudanc;:as.

Marco Aurelio e Armandinho, ajudados por Micu<;:u e Nijini Renato, comec;:am a separar um colchao, almofad6es e todos os embrulhos de mantimcntos da geladeira. Nao de­veriam mostrar-se em Sobradinho. Assim, tinham de levar um bom abastecimento de generos.

- Aquela cidade ta cheia de tiras e dedos-duros -afirmava Fernando C. O.

Era muito cedo, 0 transito na W-3 nao havia alcanc;:ado a intensidade maxima, que ocorre por volta das sete, oito horas. Micuc;:u veio de re na C-14 ate a entrada da casa. 0 Opala ficara discretamente estacionado duas quadras adiante.

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Quando a camioneta estava carregada, 0 grupo divi­diu-se. Na C-14 entraram Micuc;:u e Nijini Renato. No Opa­la, Armandinho, Marco Aurelio, Lucio Flavio e Fernando C.O.

Marco Aurelio assumiu a direc;:ao. Rodou pela W-3, to­mou a estrada de acesso a L-2. Enquanto Lucio falava, ex­plicando detalhes do plano que deveria se completar em Goiania e Goias Velho, ele admirava os volumosos fIocos de nevoa desfiando-se na galharia seca dos arvoredos. Em alguns pontos da pista, agora bern larga, com fortes declives, as gavi5es desciam para catar rnigalhas. E so com 0 carro ja bern perto tratavam de voar. Marco Aurelio ficava pensan­do na fibra daquelas aves: olhos duros, como se estivessem em permanente estado de odio. Pelo retrovisor avistava de novo os gavi5es retornando ao mesmo lugar. Aves teimosas. o sol ja estava alto, e a considerar pela rapida dissipac;:ao da nevoa, aquele seria urn dia quente no planalto, capaz de provocar combustao espontanea na folharada seca do cer· rado.

Distanciados de Brasflia, a estrada alongava-se por re­gi6es elevadas, descia em longos trechos ladeirentos. Numa zona de plantac;:6es de hortalic;:as de um lado, eucaliptos do outro, muito pra la da Granja do Torto, Lucio Flavio co­mec;:ou a historia de poucas palavras. Estava ao lado de Mar­co Aurelio, enquanto Fernando C. O. e Armandinho aco­modavam-se no banco traseiro.

- 0 que voces nao conseguiram entender e que so macho entra nas grandes jogadas. Nada de pensar em coisas isoladas. Imaginar que podiam me fazer de trouxa. Nao se deve mentir uns pros outros. Nao foi assim que a gente combinou? .

- Mas eles sao cabec;:as-duras - responde la de tras Fernando C. O.

- E pra quem tern cabec;:a dura, s6 ha urn remedio -afirmou Lucio Flavio.

Estava com 0 dedo no gatilho, apontando a arma para Marco Aurelio. Armandinho tentou reagir, Fernando C. O. aplicou-lhe uma gravata. E cada veZ que ele queria falar, ia apertando a chave.

- Bico fechado que tua vez ainda nao chegou - dizia Fernando C. 0., rindo nervosamente.

Marco Aurelio nao sabia a quem prestar atenc;ao, se a estrada au ao revolver. Ai come~ou a explicar coisas que, pelo visto, Lucio Flavio nao ignorava. Primeiro relembrou

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o negoclo com as tres carras que Armandinho disse ter per­dido na viagem a Salvadoc Na verdade, negociaram com os carras em Bela Horizonte, com 0 intruJao que Lucio naD co­nheda. Depois faloll no que era mais grave: 0 cantata com urn homem de Pernambuco.Um tal de Durvalino Ribeiro, enviado de Severino Lima, 0 che£ao do neg6cio por la.

- E 0 que foi que Durvalino Ribeiro disse? Como e que sabem que ele e homem de Severino e nao da policia? Quem sao voces, seliS putos, pra meter 0 bedelho cnde nao e da conta? Queriam deixar a gente fora da jogada? Era isso? - quem assim falava era Fernando C. O. E apertava mais a chave de bra~o.

Armandinho contorcia-se, batendo com os pes no banco dianteiro, mas nao conseguia dizer coisa alguma. Estava com o rosta ficando roxo, olhos saltados, a Hngua de fora, baba grossa escorrendo.

- Nao pensava nada - responde Marco Aurelio. -Fazia 0 que Armandinho mandava. Pra mim ele tava agindo de acordo com voces. Nunea me intrometi.

Lucio Flavio nao esperou ele terminar. Acionou 0 gati­Iho. No estampido do tiro a bala entrou do lado direito do rosto, saiu na altura da fronte. As maos de Marco Aurelio foram afrouxando 0 volante, 0 carro come<,;ou a guinar na pista, atravessou por cima de uns torr6es de barro alto, avanc;ou pelc mata rasteiro. Lucio segurou 0 volante, pisou com for~a no pedal do freio, por cima, mesmo, dos pes de Marco Aurelio. Sua camisa clara ficou salpicada de sangue. A cabe~a de Marco Aurelio tombou para 0 lado da porta mas ele nao estava morto. Sacudia-se nuns estreme~6es, como se 0 corpo se recusasse a perder os movimentos. 0 carro ficou no lugar onde parou. Lucio foi para a estrada, esperar a camioneta que vinha atnis. Nao demorou, ela apa­receu. Fez sinal para que entrassem na dire~ao do barranco.

Micu~u e Nijini Renato saltaram. Pegaram Marco Aure­lio, colocaram no banco traseiro. Fernando C. O. saiu do autom6vel ainda prendendo Armandinho na chave de bra<;o. Agora 0 corpo estava mole, as pernas tropegas, largadas. Lucio Flavio encostou 0 cano da arma no ouvido esquerdo de Armandinho, fez outro disparo. No mesmo instante Fer­nando livrou-o do golpe e 0 corpo tombou no chao, urn fio de sangue alastrando-se pelo rosto moreno. Micu,;u e Ni­jini 0 carregaram tambem e foram botar por cima do corpo de Marco Aurelio, na C-14. Arrumaram sobre eles os em­brulhos e quinquilharias que traziam, deram marcha Ii re e

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alcan~aram a estrada. Lucio e Fernando C. O. voltaram ao Opala. Pouco depois passavam pela C-14. S6 que nao' esta­vam mais a caminho de Sobradinho. lam agora na dire<;ao de Brasilia, pois seu destino era Luziania. Na C-14, dirigi­da por Nijini Renato, Micu<;:u comentava:

- Esses putos mereciam isso mesmo. A gente dando urn duro do cacete no Rio e os dais sacanas aqui, querendo passar todo mundo pra tras. J a se viu?

- De qualquer forma e muito chato - argumentava Nijini. - Marco Aurelio e Armandinho eram amigos da gente. Sei que tavam err ados , mas e duro. Lucio deve tei aporrinhado.

No Opala, ao contrario, nem Lucio, nem Fernando di­ziam qualquer palavra. 0 carro havia atingido 0 eixo monu­mental, avan<;ava rapidamente para fora da cidade. Logo es­tariam na estrada que ia para Luziania. E so entao Lucio falou:

- Mais adiante vamos encontrar 0 rio Corumba. Para por la.

Passava do meio-dia quando chegaram perta do rio. A regiao era pobre. No extenso areal, s6 os retorcidos troncos de unha-de-gato e de jurubeba. Urn vento morno, vindo das entranhas do planalto, sacudia as escassas folhas verdes na­quela desola~ao. Ao suave rumor do vento, unia-se 0 maru­lhar do rio, atravessando areias, contornando zonas rochosas, espumando na curva remansosa, 1.1 on de havia capins de fa­lha larga e forma<;6es de mururus sobre as aguas.

Nijini Renato e Micu<;u desenrolaram 0 amarrado de arame, puseram-se a fazer cintos com as pedras que Fernan­do C. O. conseguira. Depois os cintos foram colocados nos corpos de Armandinho e de Marco Aurelio. Mas, quando este ultimo foi puxado do banco da C-14, ainda tinha os mesmos estremec;6es da hora em que recebera a tiro.

- Parece gato de sete fOlegos! Sera que esse bicho nao sabe n1.orrer, Deus do ceu! - comentou Micuc;u.

Pegou uma pedra para golpear na cabe<;a, mas Lucio Flavio se aproximou e fez outro disparo. Os bra~os e as pernas de Marco Aurelio se distenderam, entregando-se de­finitivamente a morte. Os cord6es da vida se afrouxaram de vez.

Fernando e Micw;;u tiraram a roupa, deixaram arruma­das perto do Opala, caminhal"alTI nus para dentro do rio, car­regando Armandinho. Quando a agua ja batia no peito, sol­taram 0 corpo que foi afundando, afundando. Fizeram 0

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mesmo com Marco Aurelio. Voltaram, vestiram-se, trataram de alcanc;:ar a estrada. Lucio entao, olhando 0 rio, a florac;:ao do mururu par entre a capim, disse:

- Nao gosto de fazer isso. Era 0 jeito. Bandido sem moral e pior do que puta do Mangue.

Acionaram as motores, os carros movimentaram-se de­vagar no deserto de areias e torr6es aflorando, vermelhos. Ai, nao sabe por que, em cada urn daqueles torr6es parecia estar vendo 0 tosto de Marco Aurelio, os olhos calmos, as palavras repetindo:

- Fiz 0 que ele mandou. Pensei que tava de acordo com voces. Como ia saber?

A voz apagada no barulho do tiro, filetes de sangue, da cor dos torr6es que povoavam toda aquela imensidao, como cabec;:as decepadas. Fechou os olhos, afundou-se no assento do carro, ficou esperando que atingissem a pista. Mas, com os olhos fechados, as vis6es dos ton'6es no descampado eram mais nitidas. E no vento morna, ou no proprio ruida do motor, a voz tranquil a de quem nao teme:

- Pra mim ele tava agindo de acordo com voces. Como ia saber?

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II

Em LuzHlnia, entraram na rua principal, com arvores de urn lado e do outro. Na pracinha de canteiros floridos pararam. Pegaram as pistolas no porta-Iuvas, meteram na cintura. Fernando deu partida no carro que rodou lentamen­te ate a esquina onde havia 0 banco. Passaram devagar pela porta, estacionaram urn quarteirao adiante. A C-14 tambem passou pelo banco mas parou ao lado do predio. Estava com os pneus atolados de lama, lataria respingada. Com todos aqueles embrulhos que conduzia, mais os colch6es aparecen­do, era semelhante a carto de lavrador.

Nijini Renato saltou com Micuc;:u e calmamente anda­ram ate 0 Opala. Reuniram-se a Lucio e Fernando. Foram ver 0 cruzamento par onde deveriam atravessar e, dali, pegar a ruazinha que os levaria de volta a via principal e a estrada. Nijini Renato abriu 0 papel onde estava 0 trac;:ado. Conferia. No bar, pediram batida de limao, Lucio preferiu cafe forte. Enquanto 0 garc;:om servia, foi ao banheiro. Queria sondar melhor 0 ambiente. Molhou a cabec;:a, deixou a agua escorrer por dentro da camisa. Esfregou 0 lenc;:o no tosto, sempre atento aqueles homens que ali estavam. Alguns falando, outros simples mente escutando. Urn ventilador no teto gi­rava monotonamente, as moscas cobriam as mesas e as doces no balcao. Tomou 0 cafe, Micuc;:u ja havia pago. Sairam com a mesma cautela com que haviam chegado. Mas, agora, quan­do Lucio apurava a ouvido para as mais leves sons, a que ouvia era a voz de Marco Aurelio:

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mao. Era uma carabina URKO e urn revolver 38. Nijini ma­nejaria a carabina, ele se sentia melhar com 0 revolver.

Uns trinta minutos depois, quando faltava menos de meia hora para 0 banco fechar, Nijini Renato e Micu~u vi­ram a porta do Opala abrir. Lucio e Fernando come~aram a caminhar. Lucio estava de Deulos escuros e havia passado 0

pente nos cabelos. Fernando usava 0 blusao de couro que tirara de Marco Aurelio. Trazia debaixo do bra~o uma pe­quena pasta. Passaram pela C-14 e agora Nijini somente os via pelo retrovisor. Entraram no banco.

A mocinha de rosto sardento, cabelos lisos, aneis de hippie nos dedas, as atendeu. Fernando colocou a pasta no baldo. Queria abrir uma conta. A mocinha sardenta foi pegar os formularios, Lucio examinava as funcionarios. Fer­nando come~ou a preencher a ficha cadastral. Perguntou algo relativo a rnovimentat;ao da conta, que a mocinha nao sabia explicar. Pediu informa<;ao a Dutro funcionario, que estava ao telefone. A mocinha sardenta esperando que 0 colega ex­plicasse. Fernando e Lucio aguardando. Uma velhota no caixa recebeu algumas cedulas, retirou-se devagar. 0 relogio na parede parecia trabalhar tao alto que perturbava Lucio. A mocinha retornou com a explicac;;ao. Fernando continuou escrevendo. Ai fez outra indaga~ao. Desta f"ita a mocinha sardenta assegurava que 56 com 0 gerente. Ela tinha visto 0

deposito de vinte mil cruzeiros, a cifra elevada evitava des­cOhfian~as .

Abriu a portinhola do baldo, suspendeu a parte de cima, Fernando C. O. passou, levando consigo a pequena pasta ja aberta. 0 gerente, urn senhor risonho, oculos de aros prateados, estendeu a mao para recebe-Io. 0 guarda estava na entrada, Lucio nao tirava os olhos dele. Fernando aceitoll 0 convite para sentar, Lucio fez sinal ao guarda. Es­tava com 0 cigarro na mao e pedia fosforo. 0 homem che­gou perto, ele apontou a arma:

- Vamos assaltar 0 banco e nao gostamos de barulho. o guarda foi empurrado pela mesma portinhola por

onde passara Fernando, conduzido pela mocinha sardenta. 0 gerente estava palido, alguns funcionarios ainda sem perce­ber direito os fatos. Lucio Flavio repetiu:

- Todo mundo deitado no chao. 0 expediente ter­mlnOD.

o caixa tentou movimento, urn disparo na sua direC;ao, ele caiu, agarrando-se ao balcao. Micuc;u· apareceu, baixou a

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porta. 0 gerente continuava sem querer abrir 0 cafre, Lucio chegou perto.

_ Anda, filho da puta. Urn segundo mais e leva urn tiro no meio da cara.

Apontou a arma, puxou 0 gatilho. 0 gerente, aflito, nao sabia mais 0 que fazia. Levantou-se atordoado, cami­nhou para junto do cofre, enquanto Micu~u limpava a ga­veta do caixa.

Fernando C. O. abriu a pasta do gerente, jogou tudo que tinha dentro no chao, Micu~u colocou 0 dinheiro nela. Nao demorou muito, Lucio Flavia reapareceu. Trazia nume­rosas mac;os de notas grandes e mandou Micuc;u apanhar 0

resto. A mocinha sardenta soluc;ava baixo, urn funcionario teirnava em mover-se para socorrer a caixa, esvaindo-se em sangue.

Avan~a urn pouco mais e te meto bala - disse Fer-nando. o homem ficou paralisado, somente os solu~os da mo-cinha e 0 relogio na parede podiam ser ouvidos. A pasta foi fechada, Micuc;u ja prendera 0 gerente no cafre e, agora, vinha a parte eHI que ele era pedto: colocar num pequeno banheiro mais de dez pessoas. Foi preciso Lucio Flavio em­purrar com forc;a, para que a porta trancasse. Retornando calmamente pelo salao vazio, chegaram a rua. Micuc;u entrou na C-14, Lucio e Fernando foram para 0 Opala, Ia adiante. E tudo parecia concluido, quando. a mulher baixota e gorda, que fazia a limpeza, e nao viram onde estava metida, apa­receu na calc;ada, gritando, gesticulando:

_ Socorro! Policia! Assaltaram 0 banco! Micu~u, de dentro mesmo da C-14, acionou 0 gatilho,

a mulher foi caindo, num desmaio. Lucio e Fernando corre­ram para 0 carro. Os que iam passando socorreram a rnu­lher baleada. Formou-se uma roda de curiosos em torno dela. 0 Opala nao pegou na primeira tentativa. Nijini Re­nato arrancou com a camioneta, pra dar cobertura. 0 motor do Opala comec;a a funcionar, 0 carro parte, fazendo os pneus cantar. Em velocidade, entra no cruzamento. A C-14 vai colada, atras. Urn grupo de quatro au· cinco homens mete-se na £rente, tentando cor tar a fuga. Urn deles e atin­gido pelo automovel e jogado a distancia, no rneio de uns carrinhos de frutas. 0 Opala e a C-14 chegam a travessa que ia sair na rua principal. 0 Opala avanc;a uns cinquenta metros, para bruscamente. A C-14 tambem fora freada e ago­ra Nijini Renato manobrava, atravessando-a no rneio da rua.

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Page 10: Lucio Flavio - Passageiro da Agonia.pdf

Quebrou a chave na ignic;:ao, correu com Micuc;:u para 0 Opala.

Na rua principal tudo e calma: Lucio estacionou perto de uma carreta, Micuc;:u fez a troca das placas do Opala, bo­tall outras como senda de Luziania. E a viagem continuou, agora no rumo da estrada. De longe viram os policiais. Se­melhante ao que Nijini Renato £izera, eles colocaram a via­tura atravessada, impedindo a pista. Lucio rodava a rnais de cem quil6metros na direc;:ao deles. Micuc;:u estava apavorado. Nijini Renato e Fernando segurando-se como podiam. Perto, bem perto do carro e dos policiais, Lucio brecou com vio­l~ncia. 0 Opala rodopiou, passou por cima de um arrampa­do, entre 0 paste de cimento e uma cerea, as calotas dian­teiras desprenderam-se com um barulhao no asfalto, Lucio nao se perturbava', elevando sempre mais a ve1ocidade, 0

carro de novo na pista, as policiais hI longe, tentando Ina­Dobrar a viatura que haviam transformado em barreira.

Nos primeiros momentos da volta 0 Opala chegou a fazer cento e setenta qui16metros e Lucio achava que naD desenvolvia, estava agarrado no chao, bom seria um Dodge envenenado. Correram mais de uma hora, entrando com furia nas curvas, beirando precipicios na ultrapassagem de caminh5es e carretas, ou sirnplesmente disparando no acos­tamento de contramao, quando 0 cia direita apresentava im­pedimento. Num trecho em que DaO havia acostamento, nem de urn lado, nem do outro, Lucio avan~ou na pista de COll­

tramao, 0 motorista de urn onibus se assombrou com aquilo, desgovernou-se e saiu da estrada. Na regiao de mato baixo, muito capim e erva-santa, ele deixou a estrada. Pas sou a di­rec;:ao a Fernando C. 0., dizendo:

- E tua vez. Nijini Renato, refeita dos sustos, brincou: - Agora ja se pode contar a grana. Se e que Micuc;:u

consegue raciocinar. - Puxa, cara, se tu pega uma Ferrari 0 Fittipaldi tava

fodido! Fernando ligou de novo 0 motor. Pelo lado de fora 0

carro estava todo amassado. Um pedac;:o do para-choque tra­seira se partira Da hora da passagem entre 0 poste e a cerca. No mais, a direC;ao estava boa e a motor funcionando nor­malmente, embora bastante quente.

Mais adiante se bota agua no radiador. o Opala foi avanc;:ando pelo mato baixo, ramagens fa­

zendo rumor no chao do carro.

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- Quando aparecer arvoredos maiores, se esconde 0

carro - diz Lucio Fhicio. - Nilo se pode arriscar. Eles ago­ra ja sabem. Tao se mexendo par af pra nos agarrar.

Nijini Renato contava 0 dinheiro. Fernando queria sa-ber quanto pegaram.

_. J a conferi trinta e cinco miL - Mais do que voc~ ia depositar - diz Micuc;:u, rindo. Todos acham grac;:a. S6 Lucio nao percebe a brincadeira.

Estava serio, olhar perdido na distilncia. - AIguma coisa errada? - indagou Nijini. - Nilo. Tudo OK. Vamos em frente. Quando 0 carro

nao agiientar mais se salta e anda ate Paracatu. S6 que nao se tom a onibus. 0 primeiro otatio que pintar de automovel se bota ele embaixo e vai embora.

. - Legal, maninho. Assim a gente chega logo em casa - comenta Micuc;u.

- Sabe quanto temos na mao, pessoal? - pergunta Nijini Renato.

Expectativa nos olhos de cad a um. - Cinqlienta e cinco mil! Nunca pensei que aquele

banquinho guardasse tanta grana. - E 0 neg6cio do perfume e do frasco pequeno. Mo­

rou? - diz Micuc;u, sempre disposto a uma brincadeira. - Quanto e que se tem de dar ao Ze Soares? - per­

gunta Lucio a Fernando. - Nao sei ao certo. Parece que ele falou em vinte mil. Dai em diante, e por mais de duas horas, Lucio Flavio

nao disse mais nada. Os companheiros tagarelavam, riam, contavam piadas. Ele olhava e nao dizia nada. No vago ru­mor do carro avanc;ando sabre as ervas, no final da tarde com gavi6es empoleiraclos, luz murchando na planfcie como flor, 0 que via era 0 rosto de Marco Aurelio entre as pedras do deserto, a voz dispersa na aragem:

- Como podia saber? Antes de aparecerem as arvores, para ocultar 0 carro,

o motor comec;ou a dar uns estalos e parou. Fernando C. o. olhou 0 painel:

- Foi-se embora a gasolina. Cada urn pegou sua arma e preparou-se para a caminha­

da. Nijini Renato estava com a carabina e Lucio Flavia com uma 45. A tiracolo ele levava uma bois a de couro com bas­tante munic;ao, tanto para a pistola quanta para as Dutras armas. Fernando e Micuc;:u tambem tinham bolsas de balas.

- Que lugar sera este? - perguntou Nijini.

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- Nao fa~o a menor ideia - respondeu Fernando. - Ternos de andar naquele furno, ate vet 0 que vai

aeon tecer -- disse Lucio. - E se a gente for parar em Mato Grosso, bicho?

considerou Micw;u. - Nada disso. A qualquer hora se topa com uma es­

trada secundaria e toma orienta<;ao - ex plica Lucio Flavia. A noi te se fechara eln to1'no deles. N a in1ensidao do

ceu, as primeiras estrelas come<;aran~ a brilhar. Fora 0 rUITIOr

dos pr6prios movimentos que £azian1, nenhum barulho se escutava por ali. Nem as aves de habitos noturnos parecimn existir.

nato. Que fazemos com a carro? - guis saber Nijini Re-

Muito facit. S6 riscar urn f6sforo. Queimado, nin­guem vai encontrar gualquer ilupressao que nos comprometa - diz Lucio Flavio.

- E se encontrar da na meSlua - acentua ironicamen-te Micu~u.

As labaredas foram lentamente envolvendo a lataria, as vidros estalando) Hnguas de fogo estendendo-se para a in­terior do veicuIo, outras aparecendo por baixo, a borracha dos pneus derretendo e a cheiro forte enchendo 0 ar. Quan­do estavam longe, ainda viam 0 clarao. Lucio Flavia ia na frente) seguido de Micu<,;u, Nijini e Fernando. 0 terreno era firme e aspero, COIn muita pedra miuda. Vencida a parte de ITIato ralo, comec;aralU a penetrar num verdadeiro intrin­cado de galhos que se quebravam com estales secos a sua passagem. Foi af que Nijini Renato sugeriu urn Iugar onde pudessem ficar, reiniciando viagem de madrugada.

1s50 e adino. Mas te lembra que nao se ta fazeado urn piquenique - respondeu Lucio. _ Vamos elU frente enquanto puder. So se para na estrada.

o ceu, agora, estava pontilhado de estrelas, os vaga­lumes multiplicavam-se. Lucio temia de algurna fonna nao encontrar a estrada tao cedo. Olhou 0 relogio e ja passava urn poueo das nove horas. Estava suado, as pes doendo den­tro das botas, mas tetia de prosseguir. La pelas tantas avis­taram a Iuzinha amarelada. Foram andando no rumo dela. Quando estavam perto, Lucio deu instruc;6es:

Eu vou na dire~ao da casa. Nijini rodeia pelo lado esquerdo. Micuc;u pelo outro. Fernando me da cobertura. Sc for alguma malandragem, salve-se quem puder.

Pouco depois tados se enColltravam ao redor do casebre

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de porta e janela fechadas. A lamparina de 6leo estava pen­durada no varaI do cercado) onde havia tres vacas. Era para afugentar morcegos. Lucio Ftivio bateu na janela:

- 0 de casa! Urn cachorro come<;ou a Iadrar, apareceu na porta da

cozinha, veio ate onde estavam, ficoD latindo, latindo. Outta luz se acendeu e urn hornem perguntou:

- Quem ta ai? - U ns cac;adores que se perderam, an1igo! o hornen1 apareceu segurando 0 candeeiro. Era urn tipo

moreno, bern mais alto que Lucio e Nijini. Perguntou de onde estavaiU vindo, Lucio explicou, ele respondeu que iam no caminho errado. Para atingir a rodovia deveriam andar DO rUD10 oeste. Exatamente 0 contrario do que estavam fa­zendo. Ofereceu-lhes mochos para sentar no terreiro. O£e­receu agua e disse que tinha urn pouco de comida. Quando estavam sentados, apareceu urn velhinho, embrulhado num resto de cobertor de la:. Disse algumas coisas ao homem mo­reno, que nem Lucio nem seus companheiros entenderam, acocorOl.l-se perto. 0 rapaz voltou trazendo uns pratos de estanho e dizendo que aquele velho era seu pai. Conhecia 0

territorio em que estavam con10 a palma da mao. Lucio per­guntou como 0 rapaz moreno se chamava e ele respondeu;

- Sou Beni. 0 pai e Benicio. A gente nao mora aqui, nao. E s6 na epoca da ferra que se vern. Se proeura 0 gado que ta tresmalhado pelos balcedos e volta. A gente e de Cris­talina. J a se ta aqui uns dais meses.

Nijini Renato conta que sao de BrasIlia, mas tinham ido para as bandas de Luziilnia fazer umas ca~adas. Depois o grupo dividiu-se e eles ficaram sem rumo. Enquanto fala­vaIU, 0 velho continuava acocorado, cobertor de la: nos OID­

bros, arrastando no chao. A luz fraca do candeeiro ilumina­va-lhe a rosto, malares salientes avultavam, olhos fundos, a boca murcha.

- Meu velho tern oitenta anos. Comec;ou como va­queiro e ate bern POliCO era rastejador.

- Uma profissao perigosa, a de rastejador - comen­ta Mieuc;u com ironia, mas Beni nao percebe. Nijini faz at de riso, Fernando C. O. esta serio, Lucio Flavia tentando descobrir a rumo que tinham a seguir naquele mundo de trevas, pontilhado de estrelas la muito alto.

- Ele ouve bern 0 que se diz? - quer saber Nijini, referindo-se ao velho.

- Com certa dificuldade, mas ouve - responde Beni.

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- Quer dizer que voces arrebanham 0 gada por aqui - comenta Lucio.

- Pois sim! - diz Beni. - Devem ter uns bons cavalos pro trabalho - acres-

centa Fernando C. o. - Nao sao dos piores. Dao conta do recado - confir­

rna Beni. E onde tao eles? - indaga Micu,;u.

- Pros lados da cacimba - diz Beni. - Vou the fazer uma proposta, Beni - explica Lucio

Flavia. - Nao se tern mantirnentos, tamos longe de cas a e ape. Se voce nos conseguir quatro cavalos, vai ganhar urn born dinheiro. A gente espera ate de manha.

- Pode passar urn tempao sem pensar em trabalho -diz Fernando C. o.

Beni fica indeciso, na realidade nao tern guatro cavalos, nem sabe como poderia consegui-los ali por perto.

- Dou dez mil cruzeiros pel os quatro cavalos - afir­rna Lucio Flavio.

Beni responde que nao poderia tomar decis6es sem pri­meiro ouvir a opiniao do pai. Agacha-se no canto cnde esta o veIho, 0 rosto magro recortado na cIaridade tremula do candeeiro. Explica em voz baixa 0 que acabaram de the pro­por. 0 velho nao se altera, mas responde igualmente baixo para 0 filho. E 0 que diz nao agrada a Beni. Ele argumenta. Lucio Flavia esta atento, mas nao ouve bern as palavras do velho. Beni se Ievanta, diz que 0 pai nao queria vender as cavalos. Entao explica que na verdade s6 tinham dois e ia set diffcil, logo cedo, conseguir quem vendesse as outros dois. Nijini Renato pensa entao na solu,;ao mais simples: queimar Beni e 0 velho teimoso, pegar as cavalos onde es­tivessem, it em frente. Lucio, no entanto, e contra esse tipo de violencia.

- Nao se deve obriga-los a fazer 0 que nao querem. Beni volta a falar com 0 pai. Lucio e os companheiros

reuniram-se perto do curral onde estavam as vacas e a lam­parina de 6leo, espantando morcegos. De longe, olham 0 vul­to robusto de Beni, eurvado sobre 0 corpo magro e imovel do velho. Desta vez parece mais alegre.

- 0 pai encontrou uma solu"ao melhor. Nao se vende os cavalos e todos podem chegar ate a estrada.

Micu,;u nao estava entendendo. Como e que 0 velho pensava resolver 0 problema? Ai Beni disse que no barracao dos materiais havia uma carro~a. Atrelariam nela os dois

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cavalos e ele levari a 0 grupo ate a estrada. Lucio ficou sur­preso com a ideia.

_ Nao tinha pens ado nisso. Claro que e melhor. E nao se perde tempo descobrindo caminho.

_ Taf, se voce fizer isso por nos, Beni, vamos ficar agradecidos do mesmo jeito e the damos uma grana firme - disse Nijini Renato.

_ Quanto acha que seria born pra ele, Lucio? - quis saber Fernando.

_ Se tiver disposto a nos levar agora, aeho que se pode dar ate mil cruzeiros.

Beni e humilde. As cifras de que os desconhecidos falam parecem nao sensibiliza-lo. Viajar aquela hora era outro problema que ele nao resolvia sem consultar 0 velho. Retorna dizendo que poderiam ir. 0 pessoal se anima. Cada urn proeura arrumar as bolsas, recolocar as armas na cintura. Nijini segura a carabina, Beni leva a facao. Antes de sair curva-se sobre 0 velho, fala alguma coisa que os outros nao ouvem. Vao ate 0 barradio que na noite imensa os desco­nhecidos nao sabiam on de ficava. Andaram mais au menos meia hora, quando Beni informou que estavam perto. De fato, logo chegaram a urn local onde havia caes latindo. Beni, sempre na frente, disse que as cachorros nao mordiam. 0 barraeao era do mesmo tipo do casebre onde estiveram: pa­redes irregulares, de barro batido, coberta de pindovas. Beni tiroll a tranea de uma porta larga, sumiu nas trevas e 13. dentro acendeu urn lampiao. 0 grupo todo entrou. A carro­c;a era pequena, com enormes rodas de madeira, os aros pro­tegidos por chapas de ferro. Beni mandou que esperassem, suoliu de novo na escuridao. Quando retornou, trazia as cavalos. Atrelou-os na carroc;a. Tirou os taipais, sentou na frente. Lucio, Nijini, Fernando e Micuc;u sentaram-se atras. Dns de costas para os outros, a fim de manter 0 equilibrio do precario vekulo. Beni sacudiu as redeas e os eavalos co­mec;aram a movimentar-se. As rodas de madeira com os aros de ferro faziam barulho no chao de pedregulho, galhos secos estalavam por baixo, Beni contando que eonhecia urn boea­do daquele sertao, mas 0 pai conhecia mui to mais. As vezes costumava cac;ar, mas nao tinha uma espingarda que prestas­se e par isso mesmo, sempre que ia pro mato, levava Ven­tania, 0 diozinho que vira nascer e agora, aos dais anos de idade, tinha se tornado 0 maior farejador de pacas e cutias da regiao. Micw;u esticava a conversa com Beni e dizia:

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- Com 0 dinheiro que vai receber pode muito bern comprar a tal espingarda e bastante muni~ao.

- E 0 que vou fazer, coni a ajuda de Deus - respon­dia Beni.

Por volta das duas horas da madrugada haviam chega­do a uma estrada de terra. Beni nao sabia como se chamava, mas disse que por ela passavam caminh6es que iam pegar carregamento de Inilho e arroz na Fazenda Rasa, de seu Ma­neco Siqueira. Sabia tambem que, andando um born peda~o por ela, chegariam ao asfalto. E foi 0 que aconteceu, urn pOlleD mais tarde.

A carro~a avan~ou pela beirada do asfalto e logo pas sou urn carro em alta velocidade. Depois mais Dutro e urn oni­bus. Lucio se orientara pela placa do 6nibus: Brasilia-Rio. Disseram a Beni que iam ficar por ali, ate tomar uma con­du~ao. Nijini Renata acendeu 0 isqueiro, retirou mil cruzei­ros da bolsa de couro, deu a ele. Eram duas notas de qui­nhentos que disse nunca ter vista antes. A principia' fieau ate confuso e Fernando percebeu que nao estava entendendo que aquilo fosse dinheiro de verdade. Lucio interferiu:

- E melhor dar dinheiro trocado. Nijini Renata percebeu a mancada, passou notas de

cern e de cinqiienta para Beni. Ele agradeceu, puxou as re­deas dos cavalos e iniciou 0 caminho de volta. Quando tinha andado uns vinte metros, 0 vulto diluindo-se nas trevas, Mi­CUC;U opinou ser hora de liquidar com aquele homem, que poderia criar problemas. A principio Lucio Flavio nao disse nada. Nijini Renato respondeu que Micu~u tinha razao. Beni podia muito bern ter desconfiado que nao eram ca~adores coisa alguma e sair direto dali para urn posto policial, avisar onde estavam.

- Deixem 0 homern em paz - afirmou Lucio, encer­rando a conversa. - Se fizer uma sacanagem, quando os tiras aparecerem, ja estaremos longe. Isso e que interessa. Que tao nos procurando por tudo que I" lugar, nao tenham duvida. 0 importante I" sair logo daqui.

- Tira-se a roupa, enche-se com folhas, bota-se os sapatos por perto. 0 motorista vai parar, pens an do que al­guem morreu atropelado. Para pra ver a desgra~a alheia e se estrepa.

Lucio escolheu a roupa de Fernando, por causa do blu­sao de couro. Is80 chama mais a atenc;ao, concordaram todos. A roupa, estofada de folhas, ficou parecendo urn judas em dia de Aleluia. Deitaram 0 boneco no meio da pista, os bra-

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~os abertos, urn sapato aqui, outro acola. No lugar da cabe­<;a colocaram uma meia com bastante areia e 0 bone que Micw;u trazia na balsa. Acocoraram-se no acostamento, fica­ram contando 10rota5. Nijini Renato recordava a mocinha sardenta do banco, Micuc;u argumentava' que a coroa das prolniss6rias era n1elhor, tinha umas cox as de fazer gosto, enquanto Fernando era de opiniao que 0 melhor do banco trouxeram na balsa de couro. Lucio Flavio, sent ado no as­falto, queixo apoiado nos joelhos, maos tran~adas nas per­nas, estava distante. 0 silencio da noite parecia nao ter fim. Na queda de uma estrela, que de5creveu enorme area lumi­nasa, ao inves de fazer urn pedido, como a mae ensinara, deixava-se veneer pela saudade de Janice, dos dias bons que convertera em amargura, do pai para 0 qual era indiferente, completamente a oposto de Beni, que nao botava a sela no cavalo sem antes consultar a velho Benfcio. Em silencio, ainda, viajando por caminhos que ninguem poderia cruzar, via como e curta a ponte que 1iga 0 bern e 0 mal. E no do que passa por baixo dessa ponte, 1a estava boiando 0 rosto palido de Marco Aurelio, a voz escapando na linha dos ventos:

_ Fazia 0 que Armandinho mandava. Nunca me in-trometi.

Antes do barulho do motor, viram urn ponto luminoso muito distante. 0 ponto partiu-se em dais e as focos foram crescendo. Nijini achava que era urn caminhao, Micuc;u afir­mava ser urn autom6vel.

_ Tomara que venha de farois altos ate aqui, pra poder ver 0 boneco de longe - dizia Fernando.

_ E 0 que deve fazer. Neste trecho da estrada, escuro desse jeito, ningu6n and a com farol baixo - considerava Lucio Flavio.

Agora dava para ouvir 0 rUldo do motor e dos pneus no asfalto. Eles se abaixaram na valeta do acostamento. 0 carro diminuiu a marcha, parou. Salram correndo. Lucio abriu a porta do lado direito, surpreendeu 0 motorista que ainda nao havia saltado. Era uma Rural. Alem do motorista viajava do lado dele urn crioulo gordo. Nijini apontou a carabina) os homens sal taram com as maos para cima.

_ Nao se vai fazer mal a ninguem. Queremos s6 0

carro emprestado. Depois se devolve. Os homens estav-am apavorados. Fernando tirou 0 blu­

sao de couro do boneco, vestiu. Entraram na camioneta~ Ni­jini ao volante. Em poucos segundos tinham desaparecido.

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III

o cara alto, branco e calvo, vestia uma capa comprida. Tinha bra,os peludos, cabe10s grossos aparecendo por baixo da pulseira niquelada do relogio. Descansava um dos bra­<;os no balcao do barzinho, perto das torres de energia eletri­ca, enquanto bebericava uma batida de limao. Queria saber do paradeiro de Lucio Fhivio. Os poucos hom ens aquela hora no barzinho disseram que ha muito tempo nao bot a­vam os oIhos em Lucio. Os garotos corriam na rua sem caI­<;amento, desapareciam no descampado onde havia lixo jo­gado nos pes dos carrapateiros. 0 policial olhava tudo aquilo com indiferen<;a. Os cabos eletricos, estendendo-se de uma torre para a outra, formavam grandes arcos. Embora a dia Fosse de sol, com bastante movimento nas ruas de Bonsuces­so, aqueIes fios se arqueando de torre a torre davam ar an­gustiado ao barro. 0 policial admirava a fia<;ao pesada, as grades de sustentac;ao das torres. Nao gostaria de morar na­quele lugar. Pensava nisso e nas crianc;as correndo desca]c;as, sem camisa, sem nada. 0 dono do barzinho esticava urn papo inconsequente, relembrava fatos pass ados da vida de Lucio FLivio, quando ele era urn garoto iguaI aos que esta­vam correndo na rua, atras da pipas.

- Eu acredito em castigo do ceu, seu Emilio. Tenho quase certeza que Deus castigou a familia de dona Zulma e de seu Osvaldo Lirio. Nao se pode pensar em outra coisa. o que essa gente tem sofrido por causa dos filhos nao e brincadeira.

- E 0 cunhado, que tambem deu pra ladrao - ressal­tava seu Vicentino Albuquerque, ferroviario da Central do Brasil.

o policiaI 56 de vez em quando acrescentava urn deta­Ihe all outro na conversa que se alongava. Estava mais preo­cupado em ficar ali pela porta, olhando a rua. Esperava pas-

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sar alguem que Ihe pudesse dar a informac;ao. 0 papo dos que bebericavam continuava:

_ Um diasai dos meus cuidados e disse: dona Zulma, procure um pai-de-santa. Fac;a um trabalho como deve ser. Recorra a Iemanja enquanto e tempo. 0 Demonio se apo~ derou dos seus filhos. Ela nao acredi ta ness as coisas. Nunca mais the disse nada - era 0 preto ve1ho Dondinho quem assim falava. Sentara-se a uma mesa, fumando cachimbo. 0 policial sentou na cadeira do lado dele. Dondinho ja estava embranquecendo os cabelos, olhos embac;ando de velhice.

_ 0 senhor conhece bern a famflia de Lucio? - per-guntou 0 policial.

_ Desde que apareceu por aqui. Os Lirio vieram de Minas. E, pelo que via e sentia, era uma familia de posses. Depois 0 povo comec;ou a con tar historias. Que seu Osvaldo Lirio tinha sido figura importante la na politica do PSD mi­neiro. Urn cidadao de Ia me disse um dia que, nao fosse seu Osvaldo Lirio, 0 irmao de Marcial do Lago nao tinha sido eleita. E sabe quem ajudou 0 pai na campanha?

Velho Dondinho faz uma pausa, tira 0 cachimbo da

boca: _ 0 Noquinha. E assim que se chama Lucio Flavio

por aqui. _ Noquinha? - repete 0 policial, como se nao tivesse

entendido da primeira vez. _ Seu Osvaldo Lirio era um desenhista de mao-cheia.

E a mae, uma beleza de criatura - continua Dondinho. o policial olha de novo a rua, Dondinho tira uma ba­

forada do cachimbo. Toda manha ele vinha para aquela mesa, nos fundos do bar de seu Tadeu. Tomava no maximo dais trat;ados. Cruzava as pernas, pes negros e encascorados no chinelo se arrebentando, ficava ali, horas e horas, aba­nando as moscas. Nao tinha pressa. Nunca teve. La pelo meio do ana, quando comec;avam as ensaios da Escola de Samba Imperatriz Leopoldinense, era que se agitava urn pou­co. Ajudava na decorac;ao. Fabricava formas de gesso, sobre elas modelava ornamenta<;6es de papelao. Diziam que Don­dinho era urn dos moradores mais antigos de Bonsucesso. Quando chegou ali havia poucas casas, 0 carrapato tomava conta de tuda, junto com 0 mata-pasta e as ramadas de me­lao-de-sao-caetano. Depois foi chegando mais gente, as casas tomando os espa<;os vazios, apareceram as torres com aque­la sinistra fia<;ao e nao raras vezes Dondinho havia advertido no bar de seu Tadeu:

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- Vai ser um tempo dificiI pra Bonsucesso. Automo­veis e 6nibus por aqui. Agora sera a correria e a cavilac;ao.

As ruas de terra cobriram-se de asfalto. Automoveis e 6nibus aumentando cada vez mais. Dondinho limitou suas andan,as.' Saia do barraco, perto do conjunto dos ex-comb a­tentes, vinha para 0 bar de seu Tadeu. Quando nao era isso, ia sentar na pedra que ficava debaixo dos carrapateiros mais altos. As vezes os moleques que jogavam bola e empi­navarn pipas mexiam com ele. Escondiam 0 bastao, oculta­vam-lhe os chinelos debaixo das foIhas secas. Numa dessas vezes, quando os meninos chegaram perto da pedra, Dondi­nho fez que tava dormindo, mas £icau observando. Por aca­so apareceu Noquinha e acertou 0 garote que ia fugindo com o bastao.

- Ele foi sempre respeitado peIos ou tros. Quando se enfezava, brigava com menino ben1. maior. E levava a me­lhor. Em ou tras vezes trazia urn livre COIn figuras e vinha me mostrar. Olhava aquelas gravuras de cidades distantes, dizia que urn dia ia ate la. E me convidava tambem para ir. Era assim 0 Noquinha. Urn menino sonhador. Queria ir a lugares distantes, desses que a gente ve nas revistas.

- Vovo entao acha que esse bandido e um born cara? - pergunta 0 policiaI.

- Nao tou falando de bandido, mo,o - respondeu Dondinho. - Falo do garoto que veio pra ca com cerra ida­de e aqui terminou de se criar. Se deu no que deu, foi culpa nossa. Ou mais nossa do que dele. E esse mundo ai fora que ta -transtornando as pessoas e as pr6prias coisas. E a Zona SuI, afundada nos vicios. E a pobreza, que nem todos po­dem suportar. Foi dona Zulma que nao procurou Iemanja. Foi seu Osvaldo Urio que muitas vezes brigava com os ga­rotos. Principalmente com Noquinha, que sempre teve urn genic danado. E sala correndo atnis da crianc;a, gritando in­sultos. Seu Osvaldo me perdoe, mas ele pecou contra Deus e as meninos.

- Vovo - diz 0 palidal -, as pessoas sao 0 que sao. Se a gente for analisar tudo direitinho a policia nao prende ninguem.

Dondinho fez urn arzinho de risa, acrescenta: - E isso faz diferen,a? Urn dia, faz muito tempo, tava

aqui oeste mesma Iugar quando diversos companheiros seus apareceram. Ja vinham de arffia na mao. Invadiram 0 bar de seu T adeu, mandaram servir bebida, nao pagarmTI e de­pais comec;aram a espancar os rapazes que tomavam cerveja.

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Diziam que todo mundo que tava aqui era maIandro. Abri­ram as portas do camburao enos levaram. Quando 0 delega­do perguntou se eu era urn maIandro tambem, disse que era. Pra policia, todo pre to e maIandw. Se t:l num bar to­mando cerveja, alem de malandro e safado. Deve ser preso. Nunca me queixei da sorte. Tou the contando isso, agora, pra vet que as coisas nao sao bern como diz. As pessoas sao o que a policia quer que elas sejam.

o policiaI calvo, de brao;:os peludos aparecendo de den­tro cia manga da capa, nao se importou com 0 que dizia Don­dinho. Foi ate'a porta, fez sinal, apareceu 0 garoto de uns catorze anos. Disse algumas palavras, 0 menino saiu.

- E capaz de trazer uma dica qualquer. Seu Tadeu explica: - PeIo que sei, 0 apartamento de dona Zulma e de

seu Osvaldo esta fechado. Nao sei pra onde foram. Nao fa,o a menor ideia.

o policial pediu mais uma batida de amendoim, colo­cou as moedas no balcao. Olhou sorridente para velho Don­dinho, disse alto:

- Olha aqui, vovo! Nao sou como aquela cambada que Ihe encanou. Tou pagando a bebida.

o velho .tambem fez arzinho de riso, soprou a fuma,a do cachimbo, que foi se alargando, adelgao;:ando, desapareceu.

- PeIo vista, todos aqui gostam do Noquinha - afir­mou 0 policial. - E se gostam tanto dele - prosseguiu -por que nao lhe dizem que 0 crime nao compensa?

Olhou para Dondinho, enquanto levantava 0 copo com a batida de amendoim, 0 velho fez que nao entendeu a in­direta, nao quis complicar-se na resposta. Pegou 0 bastao e foi saindo.

Seu Vicentino Albuquerque, vendo Dondinho atraves-sar a rua, sempre lentamente, disse a seu Emilio;

- Ali vai urn preta de alma branca. Nao se afoba. Seu Vicentino, que nao gostava de policiais, acentuou: - Nem se assusta. 0 que tern de dizer, diz. Com jeito

e muita pondera.;ao. o policial fez que nao entendeu aquele papo. Esfregou

as maos peludas, esperando 0 garoto voltar. Ai, na porta do bar, apareceu a viatura. Outros policiais saltaram, entrara111 no bar, Dois estavam fardados, Urn outro vestia terno es­curo e usava chapeuzinho de feltro, abas curtas. Pediram Cana pura. Seu Tadeu, que ia iniciar a varric;ao do bar, parou o que estava fazendo, foi atende-los. 0 de terno escuro, bai-

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Page 16: Lucio Flavio - Passageiro da Agonia.pdf

xo e atarracado, perguntou ao tipo calvo, de maos e bra~os peludos, se havia novidade.

- 0 homem aqui e" heroi e tem nome de mulherzinha. Um crioulo velho que ja "se mandou disse que 0 nome dele e Noquinha.

Os policiais acharam gra~a na maneira como 0 calvo, de maos peludas, falou.

- No-qui-nha? - indagou 0 homem atarracado de terno escuro.

- Era so 0 que faltava - diz 0 cabo, fardado. Seu Vicentino Albuquerque preparou-se para sair. Na

mesa ficou seu Emilio, que estava com a cerveja pelo meio. Parou de ler 0 jornal. Sabia que aquele movimento todo no bar nao terminaria em boa coisa. Sem mais nem menos, como retomando uma conversa ha: pOlleD interrompida, e sempre esfregando as maos grandes e peludas, 0 policial de cap a comprida voltou-se para seu Emilio:

- E se 0 No-qui-nha aparecer aqui e tacar fogo num de voces, como acabou de fazer com Armandinho e Marco Aurelio, 0 que e que vao achar do born menino?

Seu Emilio nada respondeu. 0 tipo atarracado apoiou­se com as maos na mesa, dedos com grossos aneis, berrou forte:

- 0 homem te fez uma pergunta. Ta esperando a res­posta. Ou tu e surdo?

Seu Tadeu enxugava copos sem necessidade. Apenas para disfar~ar.

- Nao tenho nada contra Lucio Flavio - respondeu seu Emilio.

- Lucio Flavio, nao: No-qui-nha! - disse ironicamen­te 0 policial calvo.

- 0 neg6cio nao e saber se tu tern ou nao tern nada contra ele - respondeu 0 tipo atarracado. - 0 que se quer saber e onde a familia do filho da puta se esconde. Ele ma­tou dois ban didos da pr6pria curriola e assaltou urn banco. A gente ta na pegada dele. Deu pra entender?

Seu Emilio continuou calado. 0 garoto que 0 policial estava aguardando apareceu.

Bad no apartamento de dona Zulma, ninguem res­pondeu. A vizinha disse que ela saiu desde on tern e nao voltou.

Nao acredito nisso - falou 0 tipo atarracado. E perguntou: - Pra onde foi 0 preto velho que sabe historias do bandido?

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- Cabo, da urn passeio por ai, ve se descobre 0 ho­memo Nao se sai hoje daqui sem uma informa~ao.

o policial atarracado tomou mais uma batida, esfregou as bei~os com· as costas da mao. A viatura ja: partira, 0 bar estava em silencio. Seu Emilio continuava tomando a" cer­veja. 0 melhor e que pudesse sair dali 0 quanta antes. 0 ar ficara carregado. A simples presen~a daqueles tipos 0 an­gustiava. Arrependimento de nao ter saido com seu Vicen­tino Albuquerque. Era tarde. Se ameapsse ir embora, po­deria precipitar os acontecimentos.

A viatura nao custou a aparecer. Desta vez estacionou bern em frente ao barzinho. 0 cabo entrou segurando Don­dinho pelo bra~o, como se 0 trouxesse preso. Seu Emilio teve ganas de quebrar a garrafa na cara dos filhos da puta. Seu Tadeu, por tras do baldo, ficou paralisado. Era inadmis­sivel como tratavam Dondinho. S6 0 preto velho nao se queixava. Deixava-se sacudir, puxar, empurrar, como urn ba­neco. 0 hornem atarracado a segurou com arnbas as maos pelos ombros, obrigou-o a sentar.

- Nos vamos tOffiar umas e outras, meu velho - co­me~ou ele. - Enquanto nao souber 0 que desejo, se bebe. E voce vai beber mais do que eu. Sabe como e. Questao de considera~ao. Alem disso, tou trabalhando. Fica chato. A turma de cima da bronca. Nao gosta. Voce, nao. E dono de sua vontade.

o tipo calvo colocou uma garrafa de Praianinha na pe­quena mesa de marmore e dois copos. Dondinho ate entao nao tinha dito uma so palavra. Olhava pacientemente aque­

.les tipos: 0 atarracado, de maos gordas e aneis nos dedas, 0

calvo, de cap a comprida, quase arrastando nos sapatos, 0 mu­lato que estava fardado, revolver avolumando debaixo da tunica cinza. 0 homem dos aneis nos dedos encheu dois copos.

- Vamos come~ar, meu velho - disse ele. Dondinho pediu outro copo. 0 tipo abrutalhado nao

entendeu a esquisitice. Seu Tadeu trouxe 0 copO. Dondinho encheu de Praianinha, disse com urn ar de riso:

- E pra madrinha Janaina. Nao fa~o nada sem 0 con­sentimento dela - falou, sem se referir a ninguem.

- E ela consentiu que a gente bebesse junto? - per­guntou cinicamente 0 policial, debochando do preto velho.

- Acho que sim, meu fiIho - respondeu Dondinho. o tipo abrutalhado comenta, voltando-se para a com­

panheiro calvo, de capa comprida:

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- Ta vendo como e born ter madrinha? Dondinho, de urn gole s6, tomou metade do copo. 0

policial bebeu urn pouco. - Voce sabe muita coisa de Bonsucesso, DaD e verda­

de? - perguntou. - Como todo mundo da minha idade sabe. Nem mais,

nem menas, E onde esta Lucio Flavio? - insistiu 0 policiaL

- Cumprindo a sina dele - afirmou Dondinho. - Tou perguntando coisa objetiva - disse 0 policial

irritado. - Quero saber onde ele ta, agora. Ou alguem da familia dele. S6 isso.

Fez Urn arzinho de risa, tomou outro gole da Pl'aiani­nha. Dondinho virou 0 resto do copo. 0 policial colocou mais.

- Se soubesse on de ele tava eu nao the dizia - afir­mou 0 velho.

- Que e isso, vovo. N6s tamos do seu lado. S6 quere­mos saber uma coisinha sem importancia. Nao vamos fazer mal pro garoto - disse 0 tipo atarracado. - Ja vi que voce vai ter de beber bastante para aclarar as ideias _ acres­centou.

Dondinho nao se fez de rogado. Virou 0 copo. Tomou a cac;:hac;;:a de urn unico trago.

Quando foi a primeira vez que voce viu No-qui-nha? - queria saber 0 policial.

- Ja faz tempo. Nem me lembro direito. o hornem de maDS gordas e muitos aneis tornou a en­

cher 0 copo. Tomou outro gole. 0 preto· velho vai falando, falando. Os olhos estao distantes, os cabelos como pimenta­do-reino ja muito brancos. 0 calvo, de maos peludas, tam­bern sentou-se ao redor da mesa. Encostado no balcao ficou o cabo.

Por causa do carro da polkia, da procura de Dondinho pelo conjunto e do seu Emilio que estava la dentro, 0 bar­zinho comec;ou a atrair curiosos. Algumas mulheres, diversos homens e muitas crianc;as, estavam na rua, em frente a por­ta. Tambem apareceram dois tipos que ninguem conhecia. Entraram, encostaram-se no balcao, pediram cacha~a. Seu Tadeu encheu os copos. Jogaram urn pouco fora, homena­geando 0 santo, comec;aram a bebericar. Nao falavam urn com 0 outro. Voltaram-se para a mesa onde estavam as po­lidais e Dondinho. 0 cabo des.confiou, tomou posi<;:iio. Mas as desconhecidos nao estavam dispostos a atitudes sutis.

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Tanto era assim que 0 mais alto avan~ou na dire~ao d.a mesa, onde 0 tipo atarracado fazia perguntas. Bateu forte no mat­more; decidiu:

- Meu chapa, tau aqui para tomar umas e outras, nao pra olivir teu interrogat6rio. E voce ja cleve estar cansado dessa lengalenga.

o cabo saeou do rev6lver, disparou. 0 homem estra­nho, que nem seu Tadeu, nero seu Emilio jamais tinham vista por aquelas bandas, voltou-se contra 0 policial que ainda empunhava a arma, segurou-o pela gola do· d6lma, como se fosse urn menino, esmurrOU-Q na cara uma vez, duas, tres, cinco, dez. Quando largou a casaco, 0 cabo esta­va desacordado.

o tipo atarrac"'do esquecera completamente Dondinho e agora .curvava-se em desespero sabre 0 companheiro calvo, de maos peludas. Tinha sido atingido pelo disparo do cabo e sangrava de urn lado das costelas. 0 homem das maos de aneis foi ficando nervoso. Gritou pelo outro policial quefi­cara la fora, na viatura. Ele entrou correndo. Ai as meninos ja estavam praticamente dentro do barzinho, seguidos dos homens e das mulheres, que metiam a cabec;a na porta, es­pionando.

Dondinho nao se mexeu do lugar. Continuava saborean­do a Praianinha, como se nada de anormal estivesse ocorren­do. Seu Emilio tomava sua cerveja e nao se incomodava com a sorte do policial calvo, de maos peludas. 0 tipo atarracado dava ordens ao soldado que entrara correndo. Finalmente pegaram 0 ferido, levaram para a viatura. Depois vieram buscar 0 cabo que ainda estava jogado no chao, sem senti­dos. 0 carro arrancou com violencia, na dire<;:ao da Avenida Suburbana, sirena gritando alto. Na confusao que se formou, nem seu Tadeu, nem seu Emilio viram para onde os dois desconhecidos foram. Seu Tadeu recolheu as capos, reorga­nizou as cadeiras nas mesas, disse aos meninos:

- Vamos embora. A confusao terminou. Vamos pra casa.

Seu Emilio olhou Dondinho, achou gra<;:a. 0 velho tam­bem sorriu. Pegou a bastao, tratou de ir saindo. Arrastava os pes e dizia:

- Sao os de cima que nos ajudam. Os de baixo que vern em socorro da gente. Madrinha Janaina nao esqueceu o preto velho. Vou bater cabe<;:a por ela, queimar vela de boa cera. .

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Page 18: Lucio Flavio - Passageiro da Agonia.pdf

IV

A Hospedaria Silas eta urn casarao do tempo do impe­rio. Ficava perta do Campo de Sao Cristovao. Ramadas de ffeus e oitizeiros, carregados de poeira, encobriam-lhe a fa­chada, onde havia algumas esculturas da influencia renascen­tista. Os janel6es, na parede com grandes placas cobertas de limo, estavam despencando. Alguns, abertos ha muito tempo, nao conseguiam mais fechat. Neles penduravam-se imundos cotci6es, com roupas estendidas. A escada, outro­ra polida, corrimao terminando numa cabes;a de dragao, agora estava gasta, tabuas desprendendo. E cada vez que a tabua de urn degrau soltava 0 hospedeiro mandava 0 empre­gado colocar uma de caixote de querosene, para abreviar 0

trabalho e reduzir despesas. Os quartos da hospedaria, habi­tados POt motoristas, mecanicos e cartegadores de onibus e caminhao, eram divididos com tabiques. Alinhavam-se de urn e do ~Utro lado do extenso corredor. Num desses quar­tos, com nome trocado e espessa barba posti<,;a, estava hos­pedado Lucio Flavio. Na volta de Goias 0 grupo se desfez: Micu\,u ficou numa pensao da Rua do Catete. Nijini Renato estava num hotel de segunda, na Avenida Mem de Sa, bern perto da delegacia, e Fernando C. O. numa pen sao da Rua Bela, tambem em Sao Crist6vao. Fazia uma semana que se ocultavam em diferentes enderes;os, esperando as investiga­s;6es diminuir. Naquela tarde chuvosa Nijini Renata galgou rapidamente a escaclaria precaria do casarao e nao viu nin­guem. Foi avan\,ando pelo corredor, comes;ou a chamar pelo nome que identificava 0 irmao:

- Jorge! Uma porta abriu, apareceu Lucio Flavio. Nijini sentou­

se na unica cadeira existente no quarto. Estava nervoso, e quando conseguiu falar, a primeira coisa que disse e que haviam prendido Micus;u, no Largo do Machado.

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_ 0 filho da puta foi de bobeira entrar num cafe, 0

tira grampeou. Agora, j3. viu, nao? _ Claro. Vao meter 0 cacete e ele acaba contando ate

o que nao se fez. Nao acha melhor cair fora daqui? - perguntau

Nijini. Certo. A gente se manda uns tempos por aL Fribur­

go, talvez - disse Lucio. E come\,ou a arrumar as poucas pe\,as de roupa que ti­

nha. Escondido no meio delas 0 pacote de dinheiro, 0 revol­ver, as caixas de balas. Nao aceitou 0 carro de Nijini. Achava que tomando urn taxi e, se passivel, urn onibus, estaria mais segura. Nijini saiu da hospedaria, enquanto Lucio terminava a arruma\,ao da mal eta . Mas nao se dirigiu logo ao Volks­wagen, uma esquina adiante. Parou na porta de uma loja, fez urn pouco de hora, olhando bern as esquinas, estudando os tipos que pareciam policiais. Sabia que, de agora em dian­te, as coisas apertariam. Os tiras estariam em movimento, em todos os lugares, procurando surpreende-los. Quando entrou no carro e partiu, nada havia de anormal, petta da Hospedaria Silas.

Lucio Flavio nao teria a mesrna impressao. Na cals;ada, segurando a maleta, chamou urn taxi do ponto que ficava perta. 0 carro avan~ou silencioso. 0 lTIotorista abriu a porta dianteira. Lucio enttou. Nao rodaram cinqiienta metros, quando dois hornens levantaram-se do banco traseiro. Urn deles segurou Lucio no pescos;o, 0 outro agarrou-o pelos bras;os. 0 carro parou, ele foi passado para junto dos desco­nhecidos, esmurrado no rosto e no estomago, brac;os virados para tras e algemados. 0 moreno forte, com blusao de es­tampaclos, disse ao outro, de terno escuro, dedos cheios de aneis:

- Vamos ver Ia em Pilares ate onde vai a macheza deste bicho.

o motorista sartiu: - Que ele caiu direitinho, caiu. _ Caiu ou nao caiu, No-qui-nha? - perguntou 0 tipo

abrutalhado, de terno escuro. o moreno, de blusao estampado, segurou-o pelo rosto,

bateu-lhe com a mao espalmada: - Responde, peste. Caiu ou nao caiu? - Deixa ele. Nao vai perder por esperar - afirmava

o tipo abrutaIhado.

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o policial de blusao abriu a maleta, traduziu seu espan­to num assovio:

- Chefe, olha s6! 0 pinta ta forrado de grana. o motorista olhava pelo retrovisor. 0 tipo abrutalhado

abriu 0 pacote de notas: - Fiiuuu! Depois comec;ou urn papa que passou a interessar Lucio

Flavio. - A gente vai botar a mao nesse tutu. E bieo fechado.

Se entregar os pontos ta fodido. E olha que a ordem conti­go e botar pra quebrar.

- Quem sao voces? - Eu sou 0 132. Ele (0 de blusao estampado) e 0

Carcara. 0 motorist a nao tern nome, nem dinheiro. Ta na mesma da gente.

- E por onde anda 0 Mauro Moretti? - perguntou Lucio Flavio.

o tipo abrutalhado desviou a conversa, Lucio insistiu na pergunta, ele respondeu que nao sabia.

Voces trabalham pra ele? Os policiais se entreolharam. 0 de blusao explicou: - Nao e propriamente que a gente trabalhe. Sabe

como e. Tamos na dele porque e bacana as pampas. Moretti nao gosta de vet ninguem mendigando. T:i por dma da car­ne-seea.

o tipo atarracado abriu 0 pacote de dinheiro, come;;ou a contar, nota por nota. Lucio, sentado entre as dais, ia olhando as ruas tao familiares. Umas com mais arboriza<;;ao, outras com casas baixas, espac;os gramados onde meninos pobres disputavam partida de futebol. Num instante, en­quanta os policiais discutiam a respeito do dinheiro, ele ia lembrando de muita coisa: as pipas que empinava, os livros que lera, as telas que imaginara pintar. E acima de tudo, lembrava as hist6rias contadas por Dondinho, 0 preto velho que falava de lugares distantes, de praias ensolaradas e flo­restas com animais encantados. E mais uma vez voltava a prisao. Mais uma vez era arrastado as torturas. 0 dinheiro que seria sua libertac.;ao, bern ali, dividido entre os tipos que nao tiveram 0 menor trabalho, nao correram 0 menor risco. No paredao onde havia cartazes de publicidade, 0 rosto da mulher sorrindo porque tinha saude perfeita, 0 homem que dava saltos na motocicleta porque usava cal<;;as de tal tecido, e por tras desses rostos impressos em grandes folhas de papel, la onde nenhuma outra pessoa poderia distingui-Io,

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a cabe<;a de Marco Aurelio, calnc se estivesse impressa em tinta amarela, libios igualmente amarelos, repetindo:

- Como podia saber? Fazia 0 que mandava. Na hospedaria, algumas noites acordara com aquelas

palavras de Marco Aurelio. Agora ele estava no paredao, como estaria 11.a sala de torturas, na solitaria, na cela.

- Pra voce nao hi mais esperanc;a. Esta completamen­te perdido.

Era 0 pai falando. Lucio dizia coisas desagradaveis que no momenta da raiva nao podia controlar:

- Voce e 0 grande culpado. Sempre com seu medo. Sua vida terminou sendo uma merda. A viver assim prefiro morrer. Por que nao teve coragem de financiar minha cam­panha a vereador? Por que se acovardou? Em Belo Hori­zonte a gente tinha amigos. Por que safmos de la:, como uns fugitivos? Voce, na verdade, e 0 culpado. Nao se esforc;ou para dar a oportunidade que pretendia.

Isso foi ha tanto tempo. 0 velho Osvaldo Lirio se en­furecia. A mae entrava na discussao, em defesa do filho. Quando 0 silencio voltava aquela casa pobre de Bonsucesso, Lucio compreendia que as coisas nem sempre acontecem como queremos. Quase nunca. E tinha vontacle de voltar ao velho, tornar a dizer que ele DaO era tao culpado assim. N a realidade a culpa era de todo mundo; do pais onde os mo<;;os nao tinham oportunidades, dos propries moc;os.

"Primeiro fui eu. Agora e Nijini. Quando isso vai aca­bar? Quando lTIeU pai podera deitar-se elTI paz consigo e com todas nos?»

Lucio s6 despertou das recotdaC;6es na hora em que Carcan} bateu amigavelmente nas suas costas e se preparou para saltar. 0 carro tinha estacionado numa esquina erma, o matagal crescendo.

- Ta tudo certo do nosso lado. 0 132 da 0 resto do recado.

Saltou rindo, a porta se fechou e 0 carro continueu a Inarcha. Lucio sabia que Carcara estava levando trinta mil cruzeiros e par esse prec;o as eoisas tinham de ficar bern definidas.

Voee vai estar no interrogat6rio? - pergunta a 132.

Nao sei. Tudo depende. Nao depende porra nenhuma. Agora nos tames au

nao tamos no mesmo barco? - argumenta Lucio Flavia. - Vamos admitir que sim - concorda 0 policial.

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- Ainda nao deu pra entender - responde Lucio. - Claro que se vai fazer 0 possive!. J a nao disse? S6

que nao po de ser de forma ostensiva. Se 0 doutor delegado descobrir a transa, ja imaginou a merda que da? - afirma o policia!.

- 0 neg6cio, meu care, e simples: quero saber com quem posso contar Oll nao - diz Lucio Flavia, incisivo.

- Com a gente e papa-Hrme, nae e mesmo, I\1ano? - repete 0 policial, desta vez dirigindo-se ao motorista.

- E born que saiba 0 seguinte, 132: nao tamos s6 nessa transa. Ha gente boa por tras. Ou pensa que ja fugi uma porrada de vezes da penitenciaria, de gra<;a? - explica Lucio.

- Fugi, deixando muita erva na minha esteira. Ha: uma verdadeira industria de fugas nos presidios. S6 que eu sei descobrir 0 caminho exato. Por isso e que desejo saber do teu compromisso. Se esta comigo, esta tambem com Ni­jini Renato, Fernando C. 0., Micuc;:u, Antonio Branco, Wil­sao e outros que vau contando depois. Se nos trair, como fez com 0 Alma Pen ada, a barra vai pesar para 0 teu lado. E a partir de hoje passo a incluir 0 l'vlano no nosso cfrculo de amizades. - 0 motorista sorri, sempre olhando pelo retrovisor. - Vou agiientar a parada ai em Pilares e depois exigir que agiientem tambem. E olho por olho, dente por dente. 0 fiIho da puta ·que tentar me aleijar, vai morter de­golado. Ten.ho gente pra esse servic;:o. Se for diffeil pegar 0

sacana, se degola urn parente dele. Olho por olho, dente por dente. E a sigla. Da esse ala pro candidato a carrasco.

o taxi estacionou por tras de umas viaturas policiais. A rua era de pedras, ladeada de casas baixas. 0 predio de aparencia mais s6lida era cnde funcionava a dependencia po­!icia!. Lucio FL,vio saltou, 132 segurando-o pelo cinturao. A can1isa estava fora das cah;;as. Logo vieram dais outros poli­ciais armados, para ajudar 132. Entraram por uma sala de tacos se desprendendo, passaram por Dutra onde havia uns bancos compridos, com suspeitos e queixosos aguardando a vez de serem ouvidos. Lucio Flavia nao precisava vet para saber que os olhares estavam concentrados nele. Depois da quinta fuga cia penitenchiria, era considerado delinquente de alta periculosidade, avanc;:ando rapidamente para 0 lugar de destaque: inimigo publico numero 1. Com as maos pre­sas pelas algemas, bra<;os voltados para tras, fkava numa posic;:ao que deixava alguns policiais excitados. Um velho

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alto, de grandes maos vermelhas, segurou-o pelo pescoc;o com furia, deu-lhe urn bofetao.

- Isso e pelo que fizeram com minha filha, no teu ultimo assalto de banco - comentou.

Lucio, a cara avermelhando de urn lado, nao se enfu­receu.

- Breve, torno a fugir da prisao. Ai vou ao banco, saber se tua filha vale a pena.

o policial avanc;:ou de novo para ele, 132 se meteu na frente, outros investigadores que estavam por petto evitaram a agressao. Lucio olhava 0 veIho, fazia arzinho de riso. Ter­minou sendo levado para a saleta onde havia pilhas de Dia­rio da Justir;a e Diario O/icial amontoados, cobertos de poei­ra. A saleta nao tinha janelas. Uma lampada de sessenta velas, no teto alto, forrado de tabuas estreitas, iluminava 0

pequeno compartimento. A espera fazia-o entender que 0 de­legado titular ainda nao havia chegado, para tomar 0 depoi­mento ... E, mesmo quando aparecesse, teria de conVQcat as au toridades do presidio. Cada uma delas jun taria as faltas, os papeis se avolumariam e no final de longas falac;:6es, dia apos dia, a coisa seria toda encaminhada ao 2.° Tribunal do Juri. No tribunal, urn cidadao circUl1specto, como se estivesse para 1.1 do bem e do mal, 0 olharia do alto e decidiria: culpa­do! Mais cinco anos, mais dez a11.Os, mais vinte anos de prisao.

Quase uma hora depois, ainda olivia as risadas dos in­vestigadores, as explicac;:6es de 132, relatando os momentos culminantes da prisao. E, para encobrir a ausencia de Car­cad, dizia coisas que Lucio achava grac;:a. Os detalhes da captura, narrados por 132, tinham lances cinematogdficos em que, naturalmente, ele, mais do que Carcara, eram apre­sent ados como verdadeiros mocinhos. As risadas se prolon­gavam enquanto Lucio comec;ava a sentir fame dos infernos. Bate na porta, 0 investigador aparece. Lucio faz dais pedi­dos: que os brac;:os foss em colocados na posic;:ao normal. Que lhe trauxessem urn sandufche.

- 0 principe nao quer tambem uma cerveja? - per-guntou 0 tipo mulato e baixo.

Para irrita-Io, Lucio respondeu: - Nao tenho pequenas vfcios. - Tu nao perde por esperar - comenta 0 velho que

lhe dera 0 bofetao. o investigador acha razoavel 0 pedido de Lucio. Chama

o servente, manda trazer urn sandufche. Enquanto esperava o lanche e 0 delegado, a porta se fechou novamente. Mas

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de uma coisa estava certo: 132 enquadrava~se como mais um da turma que poderia facilitar as coisas na prisao. Sentou~se numa pilha de jornais encostada na parede fria, considereu que 0 dinheiro nao fora de todo perdido.

Urn ratinho saiu assustado de tras dos jornais velhos, correu pelo meio da sala, procurando ocultar-se. Lucio ficou atento it afli<;ao do bicho; quase igual a sua. Distinguia-se apenas pelo sangue-frio, un1 pouco de argulha e muita au­dacia.

- Mas, por quanto tempo? Por quanta tempo? Nao sabe por que, lembrava 0 velho Dondinho. Das

hist6rias que contava. Dos seus her6is, que eraln todas ho­mens bons. Recordava aquela voz calma e baixa, explicando:

- Her6i e quem fica vivo, filho. Pra viver e preciso ciencia. Acredite no negro velho. Muita ciencia.

Nao acreditou em Dondinho ou esquecera suas pala­vras? Nao deu importiincia. Garotos nao ligam pra nada. Encostado naquela parede £ria, olhando 0 rato correr de um lado para a Dutro, longinquas imagens refletiarn-se Durn es­pelho: a alegria de aprender a dirigir; seguran<;a de fazer ao. volante 0 que as outros nao faziarn; uma certa necessidade de exibir-se. Era 0 melhor em bilhar, sinuca ou conduzindo um carro. Tao born quanto Paulo de Paris.

- Cade teu carro, Lucio? - 0 pai vai comprar um, qualquer hora. Mas era mentira. Desde que mudaram de Belo Hori­

zonte para 0 Rio, desde que 0 velho fizera a campanha elei­toral de Carlos do Lago, desde que recusara cargos no gover­no de Juscelino Kubitschek, as coisas foram murchando ao seu redor. E Lucio sempre respondendo aos que the pergun­tavam pelo carro:

- Qualquer hora 0 pai traz. Sabia que era mentira. Mas nao se preocupava muito

com isso. Um dia iria para Vila Velha. Ficaria por ]a um ternpao. Pintaria quadros, escreveria urn livro. E mais tarde, com seu proprio esforc;o, teria e carro. Nao se 'incomodava que isso demorasse. Incomodava-se de l1ao estar logo em Vila Velha, na casa de que a mae tanto falava. Havia urn terreno ample em volta, arvores e trepadeiras floridas, passaros mis­turando-se no meio das pitangas maduras.

Paulo de Paris e que nao topava com essa de cas a em Vila Velha. E dizia, fazendo blague:

- A gente vive 0 tempo que quer? Coisa nenhumal Viu 0 Joao da Baiana. Foi tomar banho na Barra e ate hoje.

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o mar engoliu. Assim, 0 ql)e se pode pegar hoje, nao se deixa pra amanha.

Manda servir ou tro chope. Paulo de Paris era mais velho que Noquinha e 0 dono do bar advertia:

- Olha esse neg6cio de menor aqui dentro. Nao vai me complicar.

Paulo de Paris era 0 maioral nas rodas mais respeitadas. Estava sempre bem arrumado e sabia falar. Quando contava urn caso, os outros ficavam ouvindo. Noquinha foi se habi­tuando a respeita-lo. As mocinhas gostavam de Paulo de Pa­ris. As vezes ele aparecia numa bicicleta nova, que nenhum outro garoto do conjunto dos ex-combatentes tinha. E dava voltas e· mais voltas na pracinha, ate cansar. Os meninos pe­diam para andar, ele nao deixava. Noquinha chegava, ele of ere cia a bicicleta. Sentava no meio-fio, dizendo alto:

- Esse sabe se equilibrar. E urn bamba! No final das tardes Paulo de Paris convidava Noquinha

para a cinema. Dona Zulma amea<;ava nao deixar. 0 filho fazia cara feia, prometia no dia seguinte nao sail' de casa, ficaria preparando as li<;6es. Ela deixava. Noquinha botava a melhor roup a, passava 0 pente nos cabelos.

Tarde da noite, seu Osvaldo nao conseguia dormir. -Onde sera que esse menino se meteu, Zulma?

Ela nao pode responder. Os dois ficavam esperando. Discutiam baixo. 0 pesado silencio da madrugada envolvia o conjunto. S6 as carros passando na Avenida Suburbana perturbavam aquela paz. Perto, bern perto, 0 barulho do taxi, portas se fechando, e Noquinha.

- Onde te meteste, menino? - quer saber dona Zul­rna, pergunta seu Osvaldo.

Noquinha nao gosta daquilo. Enfezava-se com as inda­ga<;6es. Pelo que diz, foi ao cinema com Paulo de Paris. Depois ficaram batendo papo na galeria do Rio-Palace, na Rua Cardoso de Morais. Mexia no fogao, trazia para a mesa a prato que a mae deixara pronto. E ela terminava levantan­do, a fim de ajuda-lo. Para nao deixa-Ia ainda mais triste, contava-Ihe agrada:veis mentiras. Urn mau pressentimento obrigava-a a repetil':

- Cuidado, filho, com esse tal Paulo de Paris. Nao se meta com rapazes. Procura amizade com meninos de tua idade.

- Esses garotos daqui sao todos uns bobocas, mae -respondia Noquinha.

o rata desaparece no momenta em que Lucio ouve

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vozes do outro lado da porta. Alguem que perguntou pelo preso e 132 respondendo. Depois os passos, as vozes, ruido de chave na fechadura. 0 crioulo de ar nervoso traz 0 san­dufche. Joga farelos de pao e presunto no meio da sala. Espera que 0 bicho venha comer.

- 0 medo ou a fome? o ratinho se aproximando, ·esquivo. Os ruidos por tras

da porta aumentando. Pelos passos, ha mais pessoas entran. do. Algum caso de rotina ou ja seria 0 pessoal do presidio? Talvez sim, talvez nao. Na segunda mordida que da no san­duiche, algo de estranho: urn papel metido na massa do pao. Pequeno. A conta de caber quatro palavras: "Teu caso com Bechara".

Ja ouvira falar nesse nome. A cabe~a dando voltas. A fome sumida, esquecida, 0 medo se avolumando naquela sala estreita, com uma lampada fraca tentando evitar as trevas.

- Bechara? Recordava-se, finalmente. Era 0 policial que investigava

ass altos a banco. E lembrava-se do que Ihe dis sera Fernan­do C. O.

- Nao cai nas garras desse homem. Ele quer arrancar tua lingua. Acha que castigo de bandido deve ser como no Oriente; mao cortada, olho furado. E economia pro Estado, seguranp pra sociedade.

Mais ruidos na fechadura da porta. Aparece 132. Esta afobado. Joga um papel e come~a a fechar 0 cadeado. Aos policiais armados de metralhadora, limita-se a dizer:

- To tudo em ordem. Tudo em ordem. E no papel que jogou Lucio Fhivio Ie: "Dr. Bechara e um homem duro. Vai botar pra que­

brar. Agiienta firme ate que se possa dar um jeito. Ja falei com Moretti. Ta: sintonizado".

Lucio sente um frio percorrer-Ihe a espinha. Das outras vezes foram os alicates de bicos de borracha apertando-Ihe os dedas, os socas no estomago, a palmat6ria vibrando na sola dos pes, testfculos inchados nos choques eletricos. Desta vez 0 que seria?

"Coragem, Lucio! Coragem!" Sua voz interior repetia. A voz de Dondinho repetia. A

voz de Janice repetia. Por onde andariam aquela hora? Que seria feito de

Dondinho? Estaria no barraco, bolando ornamenta~6es da Imperatriz Leopoldinense? E Janice? Ja saberia da prisao?

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Falatorio alto do outro lado da porta e no meio daquela confusaa tada uma voz grossa:

- Senta' ai, bandido. A porta de vaivem, que se abria e fechava com estalo, e

novamente a voz grossa ordenando: - Leva 0 bandido para 0 confessiomirio. Passos vindo, indo, sapatos rangendo nas tabuas. Lucio

Flavio sabe que estao levando 0 bandido. Mas quem sera? Passos na escada que nae conhecia e de novo 0 silencio. Horas mais tarde a chave sendo introduzida de leve na fecha­dura. Lucio de prontidao. Na porta 0 homem corpulento e alto:

- E tua vez. Lucio se movimenta. Os soldados que estao com as

metralhadoras VaG a tras. Seguem por urn corredor estrei to) o homem corpulento e alto na frente. Tudo que Lucio Flavio Olive sao as pr6prios passos. AI. comec;am a descer a escacla tambem estreita. Ela faz um S e vai se tornando cada vez mais escura. Tern dificuldade em distinguir os degraus, mas o homem a sua frente e imperturbavel. Parece conhecer bem aquele lugar. Quando a escada termina, avanc;;am por outro corredor e chegam a uma porta que logo se abre. A sala e grande, sem jane1as. Num canto ha uma mesa ordinaria, poli­da de preto. Uma maquina de escrever ja bern velha e algu­mas folhas de papel. Chega um tipo gordo, cabelo bem pen­teado, coloca uma folha de papel na mfiquina. No meio da sala, s6 de short, est" sentado Micu~u, bra~os amarrados para tras, as pernas amarradas tambem. A porta se abre nova men­teo Entram quatro sujeitos encapuzados. 0 tipo alto e forte, que era 0 delegado Bechara, reaparece. Senta comodamente numa cadeira com 0 espelho voltado para a frente, apoia os brac;;os. Os encapuzados perfilam-se ao redor de Micu~u.

- Vamos come~ar - diz Bechara. - Querosaber toda a verdade. Desde quando saiu da prisao, ate 0 assalto em Luziania. Se a hist6ria nao conferir com ados outros, temos urn meio de avivar tua mem6ria. Vamos hi.

Micuc;;u comec;;a a falar, 0 escrivao datilografa com rapi­dez. Diz 0 que fizeram e 0 que nao fizeram. De vez em quando 0 delegado faz perguntas, coloca afirma~6es em duvi­da, Micuc;u retrocede, conta de novo.

- Como explica a morte de Marco Aurelio e Arman­dinho? Mataram eles 1:i mesmo em Brasilia au nao?

Sobre is so Micuc;u nao tern rnuito 0 que dizer. E tam­bern nao pode afirmar que Lucio e quem poderia explicar

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melhor. Teme a policia, mas teme Lucio acima de tudo. E Lucio esta bern ali perto. Nao fala porque nao e sua vez. E sabe bern como e interrogatorio. Quem se intromete quando nao e chamado apanha como cachorro sem dono.

Bechara insiste. Micu~u esta indeciso. Sacode a cabe~a, olhos avermelhados de sono e desespero. Urn dos encapuza­dos aperta-lhe a garganta. Os dedos grossos VaG afundal,do devagar, Micuc;u tern a tosto congestionado, olhos saltados, a lingua sainda. Quando as maos se abrem, outro encapuzaclo aplica-Ihe urn tremendo telefone e ele apaga. Urn policial pega 0 balde d'agua, joga em cima. Micu~u vai recobrando as sentidos.

o delegado repete a pergunta. Micu~u nao responde. Outro encapuzado aperta-lhe as palpebras com os polegares. Micw;u grita, tenta mexer-se, a cadeira sacode mas nao sai do lugar, os olhos estao quase saltando das orbitas. Lucio vira a cara para nao ver. 0 policial torna a jogar agua. E a pergunta se repete:

- Quero a historia completa - diz Bechara. - La-drao nenhum me faz de besta.

Foi a gente que matou os dois - afirma Micu~u. A gente quem? - pergunta 0 delegado. Eu, Lucio, Nijini e Fernando C. O. E por que mataram? Nao sei. A ordem era matar - responde Micuc;:u. Ordem de quem?

Novamente Micu~u indeciso. Nao pode dizer aquilo. Jamais cliria. Seria sua propria condenac;ao a morte. Nao cliria. Os encapuzados pegam os cassetetes de borracha, co­me<;am a bater. Primeiro nos ombros, no abdome, nas per­nas. Micu~u resiste. Depois as borrachadas 0 atingem na cabec;a e no Tosto. 0 sangue corre da testa, as olhos inchados, os beic;:os inchados.

- Quero saber de quem era a ordem - repete inflexf­vel 0 delegado.

Ele ja nao pode falar. Sacode apenas a cabe~a. Novo jato d'agua fria 0 atinge. 0 delegado insiste na pergunta, ele se recusa a falar. Mais agua e jogada e as borrachadas sao reini­ciadas. A cabec;a de ]VIicu~u pen de pra frente, como se tivesse morrido. E desamarrado da cadeira e deitado no chao. 0 que cuida do balde d'agua se aproxima e da urn banho em Micu~u. Sabe que dentro de alguns minutos despertara e continuara senda interrogado.

Lucio permanece de pe, entre as dais policiais armadas

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de rnetralhadoras. 0 delegado acende urn cigarro, olha 0 relo­gia. Lucio gostaria de saber as horas. Nao entende por que, mas gostaria. Micuc;u volta a mexer-se. Esta todo arrebetlta­do. Mesmo assim e levado novarnente para a cadeira. Nova­mente os brac;os colocados para tras e presos com as algemas. Urn dos encapuzados garante:

_ Agora ele vai falar, chefe! Segura a cabe~a de Micu~u, enfia-Ihe urn estilete de ac;:o

no nariz. Ele da urn tremendo urro, os olhos esbugalhados, urna tira vermelha descendo.

Quem deu a ordem? - pergunta 0 delegado. Lucio Flavio. Mas nao me obrigou a matar. Tou

com ele e sou do bando desde 0 come~o. Da urn banho de mangueira no homem. Mete iodo

nas ventas dele e manda botar na cela - ordena Bechara. _ Vamos Ia com 0 outro - diz 0 delegado, sern se

mover da cadeira. Lucio Flavio e empurrado para 0 lugar onde estivera

Micuc;:uc - Tira a roupa dele. Completarnente nu, Lucio Flavio e amarrado a cadeira,

brac;:os algemados para tras. _ Por que mataram Armandinho e Marco Aurelio? -

pergunta Bechara. - Coisa particular. Bechara se enfurece com a resposta, segura Lucio pelos

cabelos, aplica-Ihe violenta bofetada. _ Aqui nao tem nada de particular, patife. Quero sa­

ber de tudo. Por que mataram os dois? Nao responde. Urn dos encapuzados aplica-lhe uma cute­

lada no ombro, Lucio chora de dor, mas nao fala. Os outros tres estao transport an do urn tonel para 0 meio da sala. 0 policial que cuida do balde corne~a a despejar agua no tonel.

_ Vai te arrepender se nao falar. Vou te estourar os pulm6es.

o tonel esta com bastante agua. Ele e retirado da cadei­ra e virado de cabe~a para baixo. Os policiais sobem nas ca­deiras, apoiam-se com os pes na borda do tonel, mergulham Lucio de cabec;:a, na agua. Afunda em silencio. Bechara fica olhando 0 relogio. Da urn sinal, Lucio e puxado para fora.

_ Por que mataram as coleguinhas? Nao responde. E metido novamente no tonel. Dessa vez

passa mais tempo e desmaia. Esticarn ele no chao. 0 encapu­zado que tern 0 estilete fura-o nas virilhas. 0 sangue se alas-

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tra, Lucio estremece, olhos fechados. 0 delegado interfere: - Parece que apagou meSillO.

Ficarn esperando. Lucio se mexe de novo. Urn dos enca­puzados se curva sobre ele, joelho pressionando no peito, a mao esbofeteando firme na cara.

- Acorda, vagabundo! Lucio geme de dor, maos segurando as virilhas, onde

entrou 0 estilete. De novo na cadeira, as brat;;os sao pastas para tnis, as pernas atadas com tiras de couro.

- Fala, filho da puta, senao eu te mato! Em poucos instantes Lucio Flavio esta exausto. Arque­

jando por causa dos mergulhos prolongados, das bordoadas nos ombros e no rosto, da espetada com 0 estHete nas viri­lhas. Bechara encosta a cabe<;a perto da sua, repetindo a per­gunta e Lucio nao espera para ver 0 que ia dar: cospe-Ihe na cara. 0 homem da: urn salto, mas nao se livra da cuspara­da, que escorre por cima do olho direito. 0 delegado procura afobado pelo len<;o, vai ate 0 canto onde havia uma pia, umas latas vazias, uns panos e vassouras, montes de papeis em­pilhados.

- Nao fa<;am nada com ele. Tenho uma ideia melhor pra acabar com a macheza desse puto.

Retorna enxugando 0 rosto no len<;o. Senta de novo na cadeira, manda 0 escrivao ligar, chamando 0 carcereiro. Em poucos minutos ele aparece. 0 delegado cochicha, como se transmitisse urn segredo. 0 homem vai embara. Demora urn pouco e volta conduzindo tres crioulos algemados. Urn deles ja e bern velho.

- Agora vamos ver se tu e macho de verdade _ diz Bechara.

- Conta a hist6ria toda ou vai chupar 0 cacete de todos eles. E vai chupar ate cada urn deles gozar.

Urn dos crioulos, cabe~a pelada, faz urn 50rri50 sinistro, os dentes da frente faltando, a cicatriz por cima do nariz. 0 delegado da 0 sinal aos homens encapuzados. Lucio e arran­cado da cadeira e obrigado a ajoelhar-se. Os tres marginais tiram 0 cal<;ao.

- Conta ou nao conta? - repete 0 delegado. Lucio nada responde. Urn dos encapuzados empurra-Ihe

a cara com a pe. A marca do sapato fica por dma da testa. - Cara do Cao, segura a cabe<;a dele e faz como se

fosse uma puta do Mangue. Nao guero conversa, nero demo­ra nisso.

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Cara do Cio obedece. Mas 0 pau esta mole. Naquele clima nao consegue endurecer. 0 delegado se impacienta:

- Tu e 'homem, ou que porra e que e? Dois encapuzados seguram Lucio pela cabe<;a, urn deles

aproxima-Ihe 0 estilete do olho. 0 pau do crioulo enche-Ihe a boca, as poIiciais come9am a rir, 0 crioulo roc;ando as maos grossas e desajeitadas nos cabelos daquele que sabia ser 0

rei dos bandidos. Ai, em vez do condenado sentir prazer nisso, come~ou a chorar. Chorava sem que as poIiciais no­tassem. Somente Lucio sentia as lagrimas quentes caindo-Ihe no rosto. Naquele momento mesmo ja nao tinha nenhuma magoa de Cara do cao. E enquanto permanecia como motivo de escarnio e da mais profunda baixeza, admitiu ser chegada sua hora de morrer. Tudo que £izera ate entao fora errado. Profundamente errado. Agora, era tempo de acabar-se.

Nao se passaram cinco minutos, urn dos encapuzados segura-o pelos cabelos, arrasta-o para 0 meio da sala, enquan­to alguns diziam que ele estava era gostando.

- Se deixassem, ficaria ali a madrugada toda - di­ziam alguns investigadores debochando.

Bechara volta a fazer a pergunta, mas sabe que jamais Lucio Flavio respondera. Mesmo assim, interroga. 0 enca­puzado do estilete crava-o de novo na altura dos rins. Lucio contorce-se, enquanto se inicia a sessao de pancadaria. Ignora o que aconteceu depois disso. Nao sabe quanto tempo per­maneceu desacordado. Quando abriu os olhos, muito deva­gar, em qualquer dia, e pode mexer com as maos, e pode escorregar os dedos de leve pelo rosto, sentiu que estava todo cheio de ferimentos. Movimentoll as pernas e terminou concluindo duas coisas que 0 decepcionaram bastante: con­tinuava vivo e com os ossos inteiros. POllca a pouco, foi recordando: a sala imunda, no andar abaixo do nivel da rua, a pia num canto, ele ajoelhado, sendo obrigado a chupar 0

pau de Cara do Cao, 0 ladrao chorando em silencio por causa daquela malvadeza. Entao Lucio Flavio sentiu profunda an­gustia e as lagrimas come<;aram a cair. Lagrimas por ele mes­mo, por Micu<;u, por ·Nijini Renato que nao sabia onde andava, por Fernando C. O. E a visao do mundo assim, emba<;ada de lagrimas, 0 distanciava para aqueles dias em que tudo come<;ara como brincadeira com Paulo de Paris, 0

moc;o que usava glostora nos cabelos, estava sempre de roupa engomada e aparecia no conjunto residencial com a bicicleta nova e comec;ava a dar voltas.

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A cela era minuscula. Mal podia mexer-se. A luz e 0 ar entravam pelo ret~ngulo, do tamanho de urn tijolo, aberto na parte inferior da porta. Apalpou as paredes semi-escureci­das, examinou as cantos, nao encontrou a roupa. Estava nu, sentado no cimento. Estirou-se por completo no chao, Hcau sentindo aquela frieza alastrar-se pelo corpo. Deitou 0 rosto, bern em frente it luz, a compreensao de que era urn bicho invadindo-o. Tudo que conseguiu ver era a nesga da manha ensolarada no pedac;;o de rua estreita, tenues folhas de erva miuda apontando nas gretas das pedras. Vagamente, como se estivesse saindo de feroz bebedeira, procurava recompor as fatos, mas abriam-se daros imensos, que 0 faziam percler a noc;;ao do tempo. Recordava a tortura no tone! d'agua, 0

espancamento com cassetetes. Apos is so nae sabia de mais nada. Como saiu daquela sala? Para onde tinham ido os ho­mens com capuz negro na cabec;;a? Como chegou it solitaria? Nao sabia sequer em que lugar estava. Por mais que olhasse a nesga ensolarada, nao podia orientar-se. Pelo retangulo en­trava urn ventinho brando, que fazia doer menos as feridas nos olhos. E no silencio da aragem, as unhas de urn cao avanc;ando, avanc;ando. 0 die se aproxima, ele estende a mao, toca-Ihe 0 pelo farto e sujo. 0 cao lambe-Ihe a mao, vai embora, fica ouvindo 0 suave rumor das patas afastando-se.

Lucio Flavio recorda 0 encontro com 132, com Carcara. Esta tao mal que se lembra deles, das promessas feitas, mas nae consegue revoltar-se. Sabe que as coisas na prisao se resolvem com muito tempo. Parece que os pres os disp6em de toda a eternidade para conseguir pequenas vantagens. Pa­dre era urn sentenciado triste. Urn dia, apos a fuga malsuce­dida, foi jogado na mesma cela. Passaram urn tempao sem falar. Depois, comec;;am a entender-se. Padre afirmou que estava ali por capricho; Lucio fazia afirma<;6es de machismo.

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- Sou bandido, mesmo! Recorda·se de que Padre n;;o disse nada. Nem sim, nem

nao. Olhou apenas. Continuou olhando, como se estivesse distante. E falou, como nunca fizera:

- Ninguem e nada. Nenhum de nos e nada. Tern de aprender isso. Bandido e sinonimo de defunto. Tudo que fac;;o hoje e aperfeic;;oar-me para ser urn born defunto. Nao estarei de boca aberta no momento importante. Nao quero ter olheiras, nem estar com a barba por fazer. Vou botar 0

macac;;o mais limpo e ficar na frente do espelho. Quero mor­rer olhando como morro. Nao sei se vai ser possivel tanto detalhe. Mas e pra is so que me esforc;;o. Quanto a ser qual­quer coisa pot aqui, meSillO bandido, nao creio que seja possivel. Nao falo por voce. Falo por mim. Sei bern 0 que fiz, pra me envolver com a polfcia. Depois as coisas foram se avolumando. Erros dos Qutros, acumulados na minha cat­ga de erros. E urn velho imbecil, todo de toga, me pergun­tando pelo homicidio que nao pratiquei. Era tao dificilnegar, que terminei acenando que sim. E as anos se somando na pena que nao acabara nunca. Urn dia chegaram a me levar de volta ao tribunal. Sabe 0 que 0 velhinho da toga queria? Dizer que, pelc crime tal, na rua tal, nao dnha sido eu 0

culpado. Ai tirou urn monte de pena do meu saco de penas e jogou em cima de outro. 0 careta tinha dito que ele e quem liquidara com a mulherzinha, da qual era amante. Veja so! 0 careta ate me olhou com raiva. Queria ser castigado e nao admitia que a pena me fosse atribuida. Por ai pode ver como se briga ate pra ser castigado no lugar do outro. E por essa e por outras que agora ja n;;o sei de nada. Nao posso aHrmar nada. Voce diz que e "urn bandido mesma", fico em duvida. Nunca consegui isso.

Ludo Flavia intrigou-se com aquele tipo soturno, rosto magro e comprido, olhos redondos e fundos, emoldurados por sobrancelhas grossas, que se cruzavam na testa estreita. Como toda etapa do julgamento de Padre estivesse cumpri­da, dificilmente saia da cela. So para 0 banho de sol. Assim mesrna nao ia junto com as outros. Era levado na turma dos chamados homens de alta periculosidade. Passava uns trinta minutos pot la e novamente voltava a eela. Nessas andan~as aproveitava para recolher os palitos de fosforos que encon­trava. Num canto da cela ja havia alguns milhares deles.

- Se pudesse recomec;ar de novo, seda urn escultor. Gravaria na pedra tudo que nao fiz. Mas so se tern uma chance. A minha foi pro beleleu.

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Quando Lucio quis falar de novo, percebeu que Padre havia adormecido.

- Por onde estaria Padre? Teria ido para a ilha Gran­de? Teria ficado na Frei Caneca? Teria conseguido a morte no estilo que desejava?

o sol ja nao inundava de luz a passagem em frente ao retangulo, aberto na chapa de ferro da porta. Lucio Flavio ficou acompanhando as formigas que caminhavam apressa­das, vinham de algum ponto escuro da cela, subiam pelas barras grossas, sumiam no retangulo de luz. Umas formigas estavam sempre carregadas. Enconttavam outras no caminho de volta, paravam, falavam, gesticulavam. Jamais pensou que as formigas pudessem ter atividade tao interessante. E nesse dia, nao sabe quando, nem onde, ficou olhando-as, ate que a noite fol se insinuando, alguns pardais invisiveis come~aram a cantar e £inalmente a cela £icou completamente escura. Ouviu ruido de passos se aproximando. Era urn soldado. Os passos silenciaram na porta. A mao que nao conseguia enxef­gar soltou alguma coisa pelo retiingulo, no formato de urn tijolo. Os passos foram reiniciados, ate que tudo voltou a . ser silencio. Tateando, entendeu que era comida numa vasi­Iha de forma circunferente, como prato de cac;:arola. Achou a colher de cabo quebrado, dentro da comida. Encheu a pri­meira colherada, cheirou. Podia ser a pior porcaria, mas ti­nha cheiro de alimento e estava morno. Levou a colher a boca, engoliu, 0 organismo debilitado comec;:ou a reagir, a sensac;:ao de bem-estar 0 dominou. Em poucos minutos tinha esvaziado a cac;:arola, mastigando muito pouco 0 que punha na boca. Encostou-se na parede, ficou urn tempao sem movi­mentos. Como a cimento estivesse muito frio, acomodou-se de lado e assim adormeceu. Nao viu 0 policial focando a lanterna, nao viu 0 cachorro, altas madrugadas, querendo restos de comida. Ainda muito cedo, no entanto, despertou com 0 barulho dos presos e dos soldados se exercitando. Os olhos estavam menos inflamados, os galos na cabec;:a meno­res, e uma disposic;:ao geral percorria-Ihe 0 corpo. No chao, a cac;:arola e 0 pedac;:o de colher. Os poucos farelos que ti­nham caido cobriam-se de formigas. Tratou de limpar bern 0

cimento, para que a cela nao se transformasse em formiguei­roo 0 segundo problema a enfrentar era a vontade de dar uma cagada e a p1"eocupa~ao de, ao meSilla tempo, reter ao maximo essa vontade. A partir do momento em que as fezes se amontoassem num canto, 0 feclar contaminaria 0 cubfculo. Procurou distrair-se. Acompanhou de novo 0 trabalho das

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formigas. Ficou assistindo a paciencia das que desejavam erguer urn caro<;o de arroz e, nao conseguindo, iam em busca de ajuda. Nao demorava muito, la estavam mais cinco ou seis formigas, todas mordendo 0 pesado grao e 0 arrastando para fora do retangulo luminoso. Com essa distrac;:ao conse­guiu enganar os intestinos algumas horas. AI, ao contrario do que imaginava, ouviu novamente passos de urn soldado. o brac;:o grosso e negro, com a corrente de metal no pulso, intrometeu-se pelo retangulo, jogou 0 pedac;:o de colher no chao, substituiu 0 prato de cac;:arola vazio por outro que estava cheio. Desta segunda vez a cac;:arola era maior. Ravia feijao·mulatinho, arroz e pedac;:os de carne de porco. Lucio Flavio Hcou tentado pelo que via e preocupado com a barri­gao Nunca imaginara que 0 born funcionamento dos intes­tinos pudesse ser tao amea~ador a uma pessoa. Sem resistir as contra~5es do est6mago, p6s-se a comer. Ao terminar, a vontade de defecar tinha se tornado urn imperativo que estava acima de qualquer raciocfnio. Nao conseguia mais pensar nas formigas, no cachorro que poderia aparecer, no soldado que talvez retornasse para pegar a marmita. Acoco­rou-se no canto, bern no fundo da cela, e la £icou. A propor­<;ao em que os intestinos descarregavam, dominava-o a sen­sac;:ao de alivio. A cela se enchera do mau cheiro e por isso foi para diante do retangulo de luz. Quando 0 policial apare­cesse com a comida, ou fosse 1a quem fosse, iria pedir que lhe desse uma lata com creolina. Era importante ter uma la ta de creolina na cela. Pensando na necessidade dessa con­quista, Lucio Flavio despertou para uma conclusao que 0

encheu de medo. Era aquilo! Aumentavam a comida maquia­velicamente. E vinha sempre feijao com carne de porco, arroz e muito azeite. Era clara a intenc;:ao de!es. Lucio £icou pensando naquela forma nojenta de tortura e tomou uma decisao. Nao comeria mais. Assim, evitaria 0 trabalho dos intestinos, 0 volume de merda na cela. Ouvidos apurados para 0 que sucedia fora do cubiculo. Mas, tudo que conseguia escutar ainda era 0 riso sarcastico do delegado, barulho do tone! sendo arrastado no chao de mosaicos. Entre os risos e o rumor cavo do tone! sendo puxado, a a£irmac;:ao de Bechara que somente agora fazia sentido:

- 0 mal por si se destr6i. Ta na Biblia, filho. Vou fazer tu mesmo te destruir. E a serpente engolindo a cauda.

Era isso que Bechara queria. Era is so que ia acontecer. Entao, Lucio Flavio comec;:ou a pensar num plano de fuga e, tambem, na maneira mais barbara e s6rdida de dar uma lil.'aO

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aos seus algozes. Agora, em £rente a cac;:arola cheia de comi­da, £icava pensando na forma de escapar. Examinou minucio­samente a porta de ferro. Deu murros nas paredes, avaliando­lhes a espessura. Pelo som obtido, as paredes eram grossas, como solidas eram as barras de ferro da porta. E, por dentro, a porta nao tinha qualquer fechadura. 0 caminho era apelar para 0 antigo sistema de atrair a aten<;ao do carcereiro, fosse como fosse. Enquanto is so as dias se passavam, e, das duas Dutras vezes em que fora necessaria defecar, a cela se enchera completamente de fedor. Comec;:ou a ter nauseas e dores de cabec;:a. Por isso, na manha em que 0 brac;:o se estendeu para depositar nova cac;arola de comicla, passou a urrar, como se estivesse ficando louco. 0 truque nao sensibilizou 0 homem que foi emhora. E so ai, Lucio notou que as cac;:arolas antigas estavam com a comida azedando e isso aumentava 0 seu cheiro. Pegou uma por uma, jogou para fora. Depois, jogava apenas a comida. Enchia a cac;:arola de fezes e atirava fora. Foi a partir de entao que se operou terrfvel modificac;:ao na cela. 0 mesmo brac;:o apareceu para depositar uma nova cac;:a­rola de feijao, arroz e carne de porco, mas logo depois a chapa de ferro tapou a claridade. 0 fato encheu Lucio Flavio de pavor. Agora, nao tinha como livrar-se da merda, na~ tinha como impedir a entrada de mais comida, nao receberia ventilac;ao. Duas OU tres vezes esforc;ou-se para nao vornitar, a que aumentaria 0 mau cheiro reinante, e l:i pelas tantas, apavorado com as perspectivas do seu fim, teve de acei­tar Dutro perigo: a freqiiencia dos ratos, que entravam no cubfculo, atraidos pela imundfcie. Desesperanc;:ado, sentindo­se 0 mais infeliz de todos os seres da face da Terra, recordou as palavras de Padre, olhando longe pelas grades:

- Tudo que £a<;:o hoje e aperfeic;:oar-me para ser um bom defunto.

Num momento que Lucio nao sabia mais se de manha ou de tarde, eis que um papel e metido por baixo da porta da cela. Pega 0 papel, abre mas nao consegue ler. A luz nao e suficiente para que perceba 0 que est a escrito. Acha que is so e uma nova forma de tortura. Fica horas com aquele papel nas maos, encostando-se 0 mais que pode na chapa que fechara 0 retilngulo luminoso. Cansado, a dor de cabe<;:a aumentando, 0 suor escorrendo par todD 0 corpo, pensa na possibilidade de aquele papel ser finalmente a mel1sagem de 132 ou de Carcara, mas tudo que tinha a fazer era ler, saber do que se tratava.

o dia inteiro, enquanto percebia fragmel1tos de luz fora

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da cela, a tampa metalica esteve vedando 0 retitngulo. Quan­do as passos se aproximaram e finalmente a tampa foi sus­pensa, moveu-se rapido e pas a rosto em frente a ela. Estava tao asfixiado, tao sedento de ar puro, que esqueceu 0 bilhete. E, de mais a mais, ja nao adiantava tentar olha-Io, porque ficara bern escuro. Com 0 tosto no retangulo, aberto na passagem estreita, Lucio adormeceu.

Pelas maos penduradas para fora, soube da presen<;:a do cachorro. Abriu os olhos, deixou que 0 animal the lambesse o tosto. E enquanto aquela llngua aspera e morna 0 afagava, Lucio sentia vontade de chorar. Nao que estivesse arrepen­dido dos muitos desastres praticados, mas pela sina que 0

estigmatizava. Naquela noite, que nao era das mais escuras, Hcou conversando com 0 diD.

- Nunca se meta com maus amigos. Nao deseje ter coisas. Livre-se da ambic;:ao. Nao acredite nos homens. Sej a urn cao humilde, apenas urn dio, que vai par ai, virando latas, sem satisfac;:6es a dar.

No final da conversa, em que Lucio somente falava, como se tivesse perdido a consciencia, tirou do pesco~o 0

unico bern que the deixaram possuir - urn cordao preto com uma medalha - colocou-o no pescoc;:o do cao. Pouco a pouco ia perdendo a capacidade de dormir. 0 mal-estar produzido pela sujeira, 0 azedume das fezes, da urina, da comida dete­riorando, provocavam-Ihe crises nervosas e 0 suor escorria: da testa, do peito, das costas, dos testiculos. A virilha furada com 0 estilete de a<;:o inflamava e dofa. Mesmo assim era tomado freqiientemente de urn estado de sonolencia. Ador­mecia largos momentos, acordava, sempre imaginando que tudo aquilo de pior que the acontecia l1aO passava de pesa­delo. Abria os olhos, constatava a realidade. Num instante, percebeu novamente a nesga de luz atraves das frestas. Pro­curou 0 papel. Nao era mensagem de 132 ou de Carcara. Nao era nada. Apenas perguntas de Bechara. As perguntas que £izera na sala das torturas e que se recusara a responder. Olhou novamente 0 papel, teve vontade de morrer. Em algu­mas frases curtas, batidas a maquina, Bechara inquiria: "Quem deu a ordem para matar Armandinho e Marco Aure­lio? Espero que continue teimando em nao responder".

Pela movimentac;:ao do lugar, sabia nao estar em nenhu­rna prisao conhecida. Era possivel que Bechara 0 tivesse tirado da cidade, metido numa PrISaO distante, so para satis­fazer seu orgulho.

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- E um homem duro. Vai botar pra quebrar. Aguenta firme, ate que se possa dar urn jeito.

Recordava 0 que dissera 132, com a confirmao;:ao de Carcar,L Recordava 0 dinheiro que levaram e as informaO;:6es de que Moretti ja estava a par de sua prisao. Tudo terminou dando em nada. Mas ninguem se atrevia submeter Lucio Fla­vio a semelhante humilhao;:ao. Ele deve saber. Deve saber. Fechava as oIhos, via a passagem estreita, pOlica iluminada, por onde vinha andando Bechara. 0 salto, canivete ameri­cana aberto na mao, 0 corte rapido no pesco<;o, outro corte no mesma lugar, Bechara tentando estancar com as maes 0

sangue das veias decepadas, a rua fechada, Bechara saltando, sangue esguichando, a morte sortindo, Lucio sentado no meio-fio, olhando e rindo tambem: olho por olho, dente por dente. Abria os olhos, a vingano;:a era apenas um sonho, um pesadelo. Olhava de novo 0 papel, vontade de pegar uma cao;:arola, nao pegar, bater com ela nas grades de ferro, nao bater, dizer que estava disposto a falar. Mas a vontade de na~ deixar-se dobrar reacenciia, endurecia musculos cansados, ceder e nao ceder era um dilema, naquela caixa de cimento com tudo apodrecendo ao redor, com ele pr6prio ameao;:ando apodrecer, com as pes movendo-se a noite, espantando ratos que se aproximavam e nao tinha como evitar. Ceder ou nao ceder, diziam vozes surdas naquele minusculo antro, ende rostos conhecidos apareciam e se apagavam, bolhas de sabao que em menino fazia sent ado na fanela, urn copo na mao, soprando em talos verdes de mamoeiro.

- Me aperfei~60 para ser um bom defunto. - Pra mim ele tava agindo de acordo com voces. Nun-

ea me intrometi. . Por que teve de ser Marco Aurelio? Recordava a ma­

drugada na casa de Armandinho, na W-3, Marco Aurelio chegando, casaco de couro, falando no frio do planalto. Por que associava Marco Aurelio a figura soturna de Padre? Estaria perdendo a razao em meio a tanta fedentina? Se conseguisse urn pOlica de terra, abafaria as fezes, a cheira diminuiria. Terra nas fezes e na cornida deteriorando. E por que nao pensara nissa h3: mais tempo? Agora estava certo de que nao bateria com as cac;arolas nas grades, na~ dada 0

berro de miseric6rdia, nao deixaria que jogassem a toalha. E quando, mais cedo ou mais tarde, encontrasse Bechara na rua estreita e sombria, ele vindo sem perceber, entao seria 0

momento do grande ajuste. 0 canivete aberto na mao, pron­to para rasgar as veias do pe~coo;:o. Pronto para os golpes

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finos na altura do est6mago e por cima dos olhos. Olho por olho. Nao adianta pensar em outros termos. A certeza de que venceria era tanta que 0 organismo inteiro comec;au a reagir. Ali estava 0 taco de colher, ali estavam algumas ca~a­rolas e suas al~as duras de alumfnio. Tudo aquilo poderia ser de muita utilidade e Bechara nao sabia que, sem querer, tinha dado uma mancada. Ninguem brinca assim com Lucio Flavio, ele proprio deveria saber disso.

_ Vou mostrar a eles todos que sou mais duro do que pensam. Na volta do caminho nos encontraremos. Nao me arrependo de ti, Marco Aurelio. Nao me arrependo. Bandido que e bandido tem de ter moral. Se nao tem, vira puta do Mangue. Na primeira porrada se abre todo e come~a a falar pelos cotovelos. E se nao fala, tambem nao deve tramar. Tu tramaste, estou certo disso. Armandinho ja era antigo na jogada. Te arrastou com ele.

Com tantos pensamentos desencontrados, e tanta espe­ran~a brotando, os olhos adquiriram a antiga agilidade, es­quadrinhavam as paredes. Lucio se prostara de joelhos, exa­minava 0 cimento. Bastava uma mossa que fosse, uma falha no piso e estava ali a solu~ao. Se 0 piso fosse uma s6lida Iaje, entao procuraria uma fenda, greta mitida, na base das paredes. Bateu repetidas vezes com os pes no piso. Nao lhe parecia laje. Quando muito tinham posto uma cam ada de pedras, socado e, por cima delas, jogado cimento. Na peque­na falha, mais apalpada do que vista, p6s-se a arranhar com o cabo da colher. Nao podia fazer for~a, porque senao a haste se quebraria e toda a esperanc;:a estaria perdida. Preso deve ter paciencia. As vezes fica rneses, anos, elaborando coisas sem importancia. So para ocupar as maos e as pensamentos. Pa­dre colecionava palitos de f6sforos. Alem dos palitos, sonha­va urn dia conseguir uma pedra, urn estilete e trabalhar. Achava que podia ser um escultor. Lucio Flavio divagava, mas as maos trabalhavam, afiando 0 que restava do cabo da colher no cimento. De vez em quando chegava perto da porta, ande a claridade era melhor, examinava a colher. Analisava com os dedos. A ponta do metal afinara, mas ainda era forte bastante para agiientar. Arrastava-se ate a greta, sentia estar senda alargada. Mais urn dia, dois, uma semana, aguilo estaria um buraco. Os olhos de Lucio brilhavam como se estivesse com febre, 0 feclor que 0 atordoava desapareceu, nao 0 incomodava a farturo da comida, nao sentia 0 suor igualmente fedorento escorrendo pelo corpo. Nao sentia nada. Nao via nada. Nao se incomodava com as ratos que poderiam

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vir. Era a fe cega no instrumento que trabalhava com vagar. Como Padre juntava os palitos no patio de sol. Como 0

santuario de corti<;:a que vira 0 pre so politico fazer na Ilha Grande. Como a caravela de Cabral que Carlin do fez numa prisao do Recife e depois ficou exposta na sala de trabalhos manuais. A caravela parecia de verdade. Carlindo pas sou cinco aDOS aperfeic;oando as pe<;as. Nao tinha instrumentos. Trabalhava com uns caquinhos de vidro e urn peda<;o de lamina. As pe<;as nao eram pregadas nem coladas. Fundiam-se num sistema perfeito de encaixes. S6 que is so de ocupar as maes com trabalhos para ficar nas exposi<;6es nunea foi aln­bi<;ao de Lucio Flavio. Mais bonito do que 0 santuario do preso politico, que a caravela de Carlindo, era estar longe dali, numa distancia que ninguem 0 descobrisse. Talvez nas planicies ensolaradas da Argentina ou do Mexico. Janice perto, Janice contando coisas do dia-a-dia, chamando Lucio, vern ca. Noquinha corre aqui. A comida esta na mesa. Seu filho ta teimoso hoje. Se nao comer dou uma palmada nele. Lucio rindo porque sabia que ela nao faria isso. 0 filho sorrindo de inoc€'ncia. Os pensamentos enchendo 0 cubfculo fedorento, a colher limando 0 cimento, os gestos medidos e £irmes, trabalho em silencio, para evitar suspeitas, que por fora daquela caixa deveria haver polidamento forte, dis so nao tinha a menor duvida. As maos afundam de repente, Lucio reeua assustado com a perspectiva que se abre, surpre­sa e contentamento mesclando-se, a impossibilidade de con­ter 0 riso histerico, quando percebe que por baixo do dmen­to nao havia nada, que a terra nao era dura, depois de ultra­passada a camada £ina de pedras. Entao come<;ou a sentir que estava proximo 0 momento em que poderia se lnandar para longe, fosse COlno fosse, procuraria roupa em alguma casa, entraria sem ser vista, se embrulharia numa toalha que estivesse estendida num quintal, daria uma de banhista e se mandaria, desse no que desse. As maes trabalhavam COIn afinco, 0 peito pulsando de alegria, os olhos congestionados no que via e no que veria, a dor de cabe<;a so de longe em longe reaparecendo, as maos cobrindo as fezes de terra umi­da, terra macia, e 0 suor abundante, correndo pelo corpo inteiro. Expulsava de uma vez por todas aquela fedentina e, entao, pela primeira vez, sentiu que naa estava derrotado, que Bechara iria ter uma surpresa desagradavel, e que essa surpresa 0 deixaria sem dormir.

Quando a pequena cela fieou n1ais escura que de costu­me, ja havia bastante t<;rra avolumada, de urn lado da parede.

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Ai a tampa metalica foi aberta. 0 bra<;o do carcereiro se estendeu, como acontecia sempre, depositou a marmita de comida. Desta vez Lucio Flavio nao deixaria que a refeic;:ao estragasse. Limpou como pode a colher com que cavava a terra, meteu no feijao. Recostada na parede fria, todo sujo, melado de suor, nunca se sentira tao bern, desde que ali fora colocado; desde que fora arrastado para a sala de torturas, espancado e metido na solitaria. Apos comer COlTIO nao ousa­va fazer ha dias, adormeceu pensando na mae que chorava por ele, em Dondinho que se afligia com seu destino:

- J anafna ta do teu lado. Pra ela todos somos iguais. Nao ha santos nem demonios. Ela ilumina 0 futuro e a nossa transforma~ao .

o sana foi passageiro. Despertou com os ratos passean­do nas pernas. Sacudiu as cac;:arolas para espanta-los. Sumi­ram no buraco que escavava. 0 desaparecimento das ratos levou-o a admitir que estava perto de tambem poder escapar. Nessa noite nao teve sana. Cavou, cavou. Ouvia vozes, rumor de passos, parava. Ja havia tanta terra dentro da cela que mal conseguia rnover-se. Experimentou meter-se na cra­tera. Mais urn pouco e seria suficiente. Lamentou nao ter coma deixar uma respasta a Bechara, as maas feridas de tanto escavar, pensamento longe. Na escuricla:o em que DaO podia determinar as haras, iniciou lentamente a fuga. Mer­gulhou de cabec;:a pelo buraco, cheiro de terra invadindo-lhe as narinas, depois as folhas de capim e ervas miudas emara­nhando-se nos cabelos. 0 homem saido do fundo da terra, fedendo a fezes, urina e suor. 0 homem renascendo do ulti­mo in stante da promiscuidade, vindo das entranhas do solo, ele que poderia ter se confundido com os vermes, avoluma­dos na materia putrida. A cabe~a ergueu-se, as ervas afasta­das, 0 ar daquela noite propidando-lhe alento. Olhou a re­giao, procurou as sentinelas. Continuou arrastando-se sabre a grama, folhas umidas de sereno provocando-lhe arrepios no corpo. E, arrastando-se, foi ate uma parte ampla do terreno, onde havia urn muro. Vista de longe, a solitaria era exata­mente uma caixa compacta, mais escura do que a propria noite. Ficava num descampado e pareda ser naquele local a uniea constru~ao. Mas nao havia duvida que estava enganado Deveria ser complemento de uma prisao que se ergueria perto, talvez para 0 lade oposto de onde viera, rastejando como urn verme. La estariam as soldados, de coturnos altos, capacetes e metralhadoras apontando das torres. A solitaria seria algo fiui to camufIado e segura, reservada aos mais

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rebeldes, como ele, cujo destino eta a motte. Exatamente is so 0 que Bechara queria. E por julgar a solitaria tao s6lida, nem vigilancia precisava. J amais urn preso fugira dali. Ao escalar 0 muro, teve cuidado de evitar arames ligados a rede eletrica. Cuidado de nao saltar, sem antes apalpar 0 terreno. Cansara de olivir os policiais conversando e rindo dos prisio­neiros que fugiam. Falavam alto, bebendo cerveja e jogando cartas:

_. - Foi do caralho! 0 moleque saltou do muro e nao deu outra.

Risadas. 0 gordo, de bigodes, sacudia a barriga. - Esperneou como gato que ta sendo castrado. Pulou

em cima da chapa de zinco, coberta de grama. - E af? - Ai? Ele se fodeu todo. Acocorado no pe daquele muro de pedras, a atenc;ao

voItada para surpresas, muitas coisas se passavam pela cabe~a de Lucio Flavio. Os olhos, no entanto, acompanhando 0 con­torno das plantas, das estacas, dos postes e de urn as casas Ia: longe, com pequenas luzes acesas. Cada passo era medido, a respirac;:ao contida. 0 vento brando soprava na folhagem das ervas e ele passando por entre a ramagem de soturnos nao era menos suti!. Chegou a urn lugar onde havia quintais, bananeiras e eaes ladrando. Aptoximou-se da cerea, exami­nou-a detidamente. Esgueirou-se pela fresta, foi avanc;:ando na direc;:ao da cas a toda fechada. Segurou urn peda<;o de pau, continuou. For~ou a jane1a, a porta. Num cordao de roupas, s6 havia panos pequenos. Pegou dois deles, fez uma sunga, passou para a cas a seguinte. Numas pedras havia calc;:as e camisas quarando. Pegou a prirneira que conseguiu vet no vago clarao da lua, meteu-se dentro dela, foi se afastando, 0

frio do pano molhado inquietando-o. De qualquer forma, estava quase aparelhado para deixar aquela regiao. Bastava encontrar 0 caminho e se mandar. A outra ideia era ocul­tar-se em algum ponto seguro, esperar que 0 dia clareasse. Mas temia que durante a espera os poIiciais aparecessem com metralhadoras e caes amestrados. 0 melhor era continuar andando, fosse em que direc;:ao fosse. Para disfar<;ar, amarrou a camisa lTIolhada na cintura, como os trabaIhadores bra~ais costumam fazer, pegou tres ou quatro pedac;os de pau, botou no ombro. Num cortego, parou, lavou as bra~os e 0 rosto. Quando ja estava rnuita cansado, chegou a estrada de terra. Seguiu por ela ate a tendinha, onde havia canjir6es de leite no chao e homens de chapeus de palha. Naa precisava nem

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perguntar para saber que estava na Baixada Fluminense. Tambem, era impassivel chegar a birosca com todos aqueles caboclos pot ali, e dizer que queria cafe, mas nao tinha dinheiro. Par issa, pas sou por longe, as paus secas nos Offi­

bros, so para disfarc;ar, olhos e ouvidos atentos. E, andando, foi assim ate que viu 0 caminhao parado, pegando a carga de lenha. Perguntou se podia ajudar. 0 motorista, urn ho­rnem ja velho, disse que sim. Lucio contou que estava ape, o cavalo fora mordido de cobra. 0 velho respondeu que isso nao era problema. Ap6s pegar aquela lenha, ia ate a padaria de seu Evangelista, depois de Sao Gon<;alo. Bastaram essas palavras para saber que na~ errara. Bechara queria mesmo livrar-se dele. Se morresse, afirmaria que fugira mais uma vez. Depois de alguns dias de buscas 0 caso seria encerrado. Bandido e bandido, nunca tern razao. Pensando nessas coi­sas, muitas vezes Lucio Flavia ficava urn tempao sem dizer palavra, s6 ouvindo 0 que 0 velho motorista achava de con­tar. E como 0 velhinho gostava de falar, nao foi diHcil Lucio saber logo que estavam a mais de oitenta quilametros de Sao Gonc;:alo.

- S6 por aqui e que consigo lenha. Cada dia ta mais diffci!' A fiscalizac;:ao da em cima.

Lucio fazia at de riso, como que concordando com 0

motorista, a Chevrolet desenganc;:ado rangia e estalava, sem conseguir desenvolver mais de cinqiienta quilametros por hora.

o velho perguntou finalmente em que trabalhava, Lucio respandeu que primeiramente ten tara uma caieira, lidanda com casca de sarnambi, depois acabou metido com olaria, que da urn trabalho danado mas as vezes compensa.

- Passei a noite tocando lenha no forno para assar uma partida de telhas e tou assim (mostra as maos e os bra­c;:os). Espero no fim de semana poder faturar uma nota.

o caminhao ganhou 0 asfalto, e na estrada deserta aquela hora da madrugada pade correr urn pouco mais. Antes das seis horas estavam em frente a panificadora do tal Evan­gelista, que 0 motorista elogiava como born sujeito. Lucio tornou a ajudar 0 velho, que por isso ficou muito grato e 0

convidou a tomar um cafe refor~ado. Lucio Flavio nao per­deu a chance. Entrou pela padaria, a procura de um banhei­roo Lavou bern 0 rasta~ as maas. Ao sait, sentia-se mais aliviado, menos catinguento. Sentou-se com a velhote numa mesa pequena, onde ja havia bastantes moscas e uma maci-

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nha de Tosto vermelho trouxe 0 cafe e as paes l1a manteiga. Comeram. Lucio mais que 0 velhote.

A Ienha ficara arrumada na caI.:;ada. Quando Seu Evange­lista apareceu, ptontificou-se a coloca-Ia perto do forno, me­diante urn pequeno pagamento. Seu Evangelista concordou.

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o barraco de Dondinho, no morro do Adeus, fora cons­truido, como ele mesma dizia, nos bons tempos da erva-ci­dreira crescida. Quando ainda havia erva-cidreira por la, era o que dizia Dondinho, puxando uma baforada do cachimbo. o camoclo principal, que se poderia chamar sala, era amplo, COlTI 50a1ho de tabu as largas. No meio, umas cadeiras,- uma mesa redonda, de polimento escuro, com 0 pano rendado ja encardido, urn jarra plastico, imitando cristal, urn as flares de pape! crepom, salpicadas de bosta de mosca. Nas paredes caiadas de rosa e com diversas forma~6es de teias de aranha, urn quadro de Iemanja, tada de branco, sabre as aguas, urn quadro de Sao Jorge e 0 dragao. Na moldura do quadro do santo havia uma Iampadazinha verme!ha, que estava perma­nentemente acesa. 0 quarto, por tnls da sala, era escuro. Tinha janelas laterais, mas Dondinho dificilmente as abria. Por is so Lucio Flavio decidiu ficar deitado na cama turca, que 0 velho botara para ele na sala.

Na paz daque!a tarde no morro, Lucio pensando em Janice e no filho, olivia 0 caso que Dondinho narrava, com long as pausas, que 0 velha nao tinha pressa no dizer, nem no fazer.

Seu Tadeu ficou desconfiado com aquele homao logo de manha, de capa e tudo, andando no bar. Eu tinha passado a noite na casa de Tiazinha, que tava com 0 filho doente. 0 Maneco. Te lembra dele? Fui tomar urn Ievanta­corpo e nem bern cheguei apareceu aquele tipo. Falava, dava voltas, perguntava por ti. Chegou uma viatura, saltoll outro hornern. Esse era abusado. Nem alto, nem baixo, cara gorda, maos gordas, cheias de aneis. Nunca vi tantos aneis em tao poucos dedos. Urn tipo engra~ado e nojento. Gordo e nervo­S0, querendo botar banca.

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o menino passa correndo corn a pipa, olhando pra cima, Dondinho interrompe 0 que estava dizendo:

Cuidado, Carlinho. Olha pro chao. - 0 tipo cheio de aneis invocou aqui corn 0 preto

velho. Dondinho dizia isso e ria: - Tudo que dizia, olhava pra mim. Ern pens amen to

Jel tava rezando: valei-me, minha mae Janafna. Leva pra longe este capeta. 0 homem entendeu que eu sabia onde tu tava escondido. E sabe 0 que ele resolveu fazer? Queria me embriagar.

Desta vez foi Lucio Flavio quem riu, porque Dondinho tinha fama de bebedor.

- 0 homem botou uma garrafa de Praianinha na mesa e tome de encher 0 copo e eu tome de beber. Ai, ningw,m sabe de onde, apareceram dois filhos de Deus que tambem queriam molhar a lingua. 0 mais alto olhou pra mim e eu senti que era gente de for<;:a. Gente de minha madrinha J anafna. Ele chegou perto, eu fiquei todo arrepia­do. Botou as maos na pedra da mesa, disse pro capeta, dos dedos cheios de aneis, que aquela lengalenga ja estava pas­sando dos limites. E nisso se formou uma confusao, porque urn policial que tam bern viera na viatura saeou a arma e atirou no rapaz que ninguem conhecia.

Dondinho faz nova pausa, fica olhando a pipa de Carli­nho que ja esta alta, chupa 0 cachimbo que amea<;:a apagar, sarri e prossegue:

- Como eles sao desaforados, hem, Noca? Como vao atirando assim, ern qualquer urn. E como se dao mal por isso. Foi 0 que aconteceu. 0 policial - urn cabo se nao me falha a memoria - tava a menos de tres metros do mo~o desconhecido e nao e que a bala errou e foi pegar 0 investi­gador que vestia capa comprida?

Dondinho sorri. Lucio sorri. - A gente nao deve gozar corn a desgra<;:a alheia. Mas,

mae Janafna que perdoe. Aqueles filhos da puta mereciam. Com uma azeitona quente nas costelas, 0 tipo caiu por dma das mesas, 0 gordo abusado dobrou-se sobre ele e num ins­tante 0 bar do seu Tadeu estava Duma confusao tremenda.

- E os desconhecidos? - quer saber Lucio Flavio. - Desconhecidos? Ah, os mo<;:os? Nao sei nao. Nao

vi pra cnde foram. E como podia me preocupar com eles, se o hornem dos aneis tava apavorado, come~ou a gritar e a pedir socorro? Foi uma manha complicada, aquela. E quem

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terminou sendo incomodada foi tua mae. Depois eles volta­ram, foram diretan1ente la: pro apartamento. Levaram teu irmao. Dona Zulma - sabe como ela e enfezada - resolveu acompanhar. Seu Osvaldo ia chegando, levaram tambem. Queriam se vingar da vergonheira que tinham passado de manha. Gente muito pe<;:onhenta, essa da polfcia. Nao e a toa que do pe pra mao eles se acabam por af, metidos nos buracos, como bichos comidos de formiga.

- A mae ficou muito tempo na polfcia? - pergunta Lucio Flavio.

- Nao sei nao. 0 ambiente ficou carregado. Eu voltei na casa de Tiazinha, disse que vinha pra ca. E foi 0 que fiz. Cheguei aqui, acendi umas velas: por mim mesmo e por ti.

Dondinho faz nova pausa. Lucio esta olhando 0 ceu, com a pipa de papel colorido pendurada. Vozes vindo dos barracos distantes, ladrar de caes e aquela claridade que inunda a rua ladeirenta, com valetas abertas pelas chuvas.

_ Noca - prossegue Dondinho - por que tu nao passa uma esponja em tudo que ja acanteceu e. nao come~a de novo, filho? Tu ta abusando da prote<;:ao de Janafna. Vai chegar 0 dia em que a mae sagrada nao pode mais te ajudar. Entao tu vai ficar sozinho, te percler num abisrna de trevas.

- Nao da mais, Dondinho. Nao posso voltar. Andei nl1fito nessa estrada e ela nao tern volta. Jit pensei nisso. Pensei, irnaginando que era 0 que ia me dizer. Mais cedo ou mais tarde. Qualquer dia desses, VaG encontrar urn jeito de acabar comigo.

_ E 0 que adianta isso tudo, filho? Tu prova 0 que, com isso? Ja: viu como dona Zulrna anda triste, como seu Osvaldo Lirio ta sempre assustado?

_ Nao vejo a mae ha: meses. Quanta ao pai, e ate born que nao veja. Nao gostei da covardia dele. Chamar policia pra prender Fernando C. o. Nunca vi isso. Apontar 0 rapaz como extremista. E se for? 0 que e que 0 velho tern com isso?

- Noca, seu Osvaldo e teu pai. Lucio fixa-se num ponto da parede, onde as teias de

aranha estavam mais desenvolvidas, vai falando, falando, como num mon61ogo:

_ Seu Osvaldo, Dondinho, ta sempre do lado errado. Quando quis me lanc;ar na politica, como vereador, ele ficaD com medo. Era uma barbada. Ate 0 presidente Kubitschek podia ajudar. Isso, sem falar em Marcial do Lago e outros. Quando quis me meter em corrida de autom6vel, a1 mesma

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e que 0 homem ficou em pamco. Depois, quando me pega­ram pela primeira vez e me responsabilizaram pelo roubo de urn Volkswagen, passou a apontar minha mae como culpada de tudo. Cansei de dizer que 0 culpado era apenas eu. Nunca foi capaz de entender. Nao desgosto do velho. Foi bacana comigo, mas nunea me ajudou de fato nas horas em que mais precisei. Essa de nao deixar entrat na polftica foi 0

meu azar. E claro que podia abrir caminho com as proprias for"as. Mas ai ja uma por"ao de coisas come"ou a influir, negativamente. E deu no que deu. Sei que por sua vez ele tern magoa do Fernando e de mim. Acha que nos arrastamos o Nijini. E de certa forma ta com a razao. Mas 0 que e que podia fazer? Pra muito garoto por ai, sou uma especie de her6i de gibi. Por que nao seria pra meu irmao? Hoje ele e urn garotao, capaz e audacioso. Tern entrada numas boas e tambem acabara de repente. Ha pessoas, Dondinho, que vieram ao mundo pra vingar as sofrimentos das outras. Nin­guem sabe ao certo 0 que se faz por aqui. Acho cafreto, quando diz que a gente e apenas 0 cavalo, em que 0 espfrito monta pra cumprir sua sina. Cada vez acredito mais nissa.·

Dondinho sopra uma baforada do cacbimbo, outros ga­rotos passam correndo atras da pipa de Carlinho que esca­puliu da linha, foi embora. Calmamente, pergunta por Nijini, por Fernando C. O.

- Nao fa"o ideia. Logo mais, quando estiver descan­sada, vau por aI, ten tar descobrir noticias deles. Em boa nao estao. Com minha fuga a coisa vai piorar. Se nao fugisse, terminaria devorado por uma por<;ao de ratos que estavam entrando na solitaria. Nao sei, ate agora, como foi que con­segui escapar daquele buraco nojento.

Lucio Flavio olha Dondinho, 0 preto velho disfar"a, sopra 0 cachimbo novamente.

- Vou acender mais vela esta nohe pta mae Janaina. Ela e minha guia, sua madrinha. Quando tiver em dificulda­de, pens a nela. Enquanto for possivel, sua ajuda vira.

Dondinho se levanta, vai na direc;ao dos garotos maio­res, que estao querendo bater em Carlinho por causa da pipa. Os meninos afirmam que a pip a escapuliu da linba, perdeu o dono. Carlinbo insiste em dizer que a pipa the pertence. Dondinho ja esta no meio da crian"ada. E 0 arbitro da ques­tao. Admite que a lei da pipa e mesmo aquela: quebrou a linha, foi caindo, caindo, nao tern rnais dono. E de quem agarra, no avanc;a. Como Carlinho era menor e ja estava cho­rando, 0 pre to velho chega a uma soluc;ao que a todos satis-

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faz: compra a pipa dos meninos n1.aiores, torna a entrega-Ia

a Carlinho. Ao voltar para 0 barraco encontra Lucio Flavio

dormindo. Entra pro quarto, acende as velas na £rente do quadro de Iemanja que tirou da parede da sala. Ajoelha-se e canta baixinho as cantigas de sua cren~a. Encosta a cabe~a repeti­das vezes no chao, continua cantando. De noite, muito tarde, Lucio Flavio acorda e ainda encontra 0 preto velho na devo­c;;ao. Diz que vai descer, tentar falar com Janice, botar roupa limpa. Dondinho oferece comida, recomenda cuidado:

_ Ha urn homem alto, de correntao no pesco~o e bra­~os peludos, que quer acabar contigo. Vai te encontrar mui­tas vezes e muitas vezes vai dizer que e teu amigo. Desconfia dele, filbo. Tern a figura do cao escondida na propria som­bra. Onde ele pisa nao nasce capim. Quebra caminho quando encontrar com esse homem do correntao.

Lucio ouve aquila tudo que Dondinho diz, olha bern a rosto velho e sereno que sempre 0 acompanhara, promete ter cuidado. Abra~am-se na sala do barraco, a porta se abre,

Lucio vai embara. o apartamenta ficava numa cas a antiga, que tinha pas-sada por reforma. Havia uma entrada principal e uma autra, pela area de servi~o, onde .ainda estavam algumas escadas e uns cavaletes. Lucio Flavia esgueirou-se silencioso, bateu na porta: dois toques fortes e urn bern suave. Era a sigla que usavam. Liece apareceu. Lucio atirou-se Dum sofa e disse que estava andando ha horas pela cidade, sem conseguir encontrar ninguem. Liece entao explicou que a barra tinha pesado, havia tira par tudo que era lugar e 0 melhor era passar mais uma semana au duas desaparecido, ate as inves­tiga~6es esfriarem. E, pegando de um jornal, atirou em cima

de Lucio: _ Olha so 0 que tao dizendo de voce. Lucio abre 0 jornal. No alto de uma pagina estava a

fotografia e 0 titulo falando na sua oitava fuga. Leu a mate­ria, ficou revoltado. Bechara dizia ter fugido da delegacia. Informava tambem que havia dais policiais implicados: 132 e Carcani. Os suspeitas de favorecimento estavam detidos e 0 interragat6rio ia prosseguir, ate saber se havia au 11.aO

outros implicados. Lucio Flavio atira 0 jornal de lado: _ E um filho da puta esse Bechara. Tudo mentira.

Nao fugi de delegacia porra nenhuma. 0 sacana mandou me meter numa privada, na Baixada Fluminense. Queria acabar comigo luas a coisa saiu errada. Agora ta inventando essa

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hist6ria. Mas vai se foder, porque vou mandar uma carta pros jornais, contando a verdadeira versao dos fatos. Quanto a prisao de 132 e de Carcara ele ta certo. L6gico que nao vou me abrir. 0 que nao en tendo e como ele soube. Acho que nao se pode agir daqui pra frente sem transar com 0

Moretti, mas primeiro tenho de descobrir quem foi que en­tregou 132 e Carcara. Foram dedurados ou isso e outta trama. Que acha?

- Nao sei. Com Bechara tudo pode acontecer. Mente e trapaceia. Diz uma coisa, quando quer conseguir Dutra. Na verdade 0 que se devia fazer em primeiro lugar era con­versar com Moretti. Chamar ele aqui e abrir 0 jogo.

- Nao acho isso. Moretti e urn cara perigoso. Nao se deve abrir 0 jogo. Deve-se ir falando, na medida dos nossos interesses. Ele tern de ficar sempre com 0 rabo na nossa gaveta. Do contra rio nos estrepa e nao temos nenhuma saida. Quanto a 132 e Carcara, tenho uma ideia: vamos saber se de fa to eles estao em cana. E e voce que vai apurar isso.

- 'Como? - Muito simples. De manha cedo se arranja uma mu- .

Iher pra meter na cas a de urn deles como empregada domes­tica. Ela vai la, procurar servico. E fica falando urn tempao, ate ver se consegue alguma coisa. Enquanto is so vou telefo­nar pra Wilsao entrat tambem em cena. Quero saber isso em menos de vinte e quatro horas. Sem essa informa<;ao nao se pode transar com Moretti. Acho tam bern que nao se deve permitir que ele venha aqui. Se souber de todos os nossos pontos de fuga, vai chegar 0 momento que ficaremos intei­ramente a descoberto. - Liece concorda. Chama a amante, de nome Ligia.

- Ela pode ajudar nisso. - Pensei que ja tivesse com Dutra. Liece acha grac;:a. - Tamos nos dando bern. Nao sou mulherengo. Se a

gente tiver sotte, vou conseguir uma erva Hrrne e me mandar do pais. Bern longe daqui. E possivel que ela va comigo.

Lucio Flavia, dai pra frente, apenas OliVe 0 que 0 outro vai dizendo. Nao esta pra muita conversa. Liece tira do bar uma garrafa de uisque e dois copos. Comec;:am a beber. De uma porta que abre sobre pequeno corredor sai Ligia . Vern para junto de Liece, pergunta por Janice, Lucio responde como pode. Nao se sente bern em dizer que foi procura-Ia e nao encontrou. Depois, a propor~ao em que 0 uIsque desce, torna-se mais sociavel e conta coisas que enfrentou na prisab,

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fala do dinheiro ql!e 132 e Carcara levaram, recorda que eles disseram_ ser homens de Moretti. Ligia entra na convet­sa, afirma nao confiar em Moretti.

_ Ninguem confia em ninguem - diz Liece. - 0 neg6cio e que se tern de transar com ele, potque agora interessa.

Lucio Flavio bebe 0 que ainda tinha no copo, Liece convida-o para que fique no apartamento e durma.

_ Quando encontrar Bechara - afirma Lucio - de vai ter muito 0 que dizer. E se descobrir que 132 e Carcara estao fazendo 0 jogo dele, entao a cobran9a sera maior. Acei­to tudo. Of ens as e 0 cacete. Mas ninguem me humilha.

Liece coloca Inais uisque no copo de Lucio. Lfgia conta urn caso que nao interessa aos homens. Nao desconfia da indiferenc;:a deles, vai falando, falando. Ligia e simpatica, tern busto amplo e cabelos alourados. Era vedeta de uma boate, ate que se apaixonou por Liece. Desde algum tempo motavam juntos. Para onde Liece de Paula ia, resolvia aeom­panha-Io. Quando disse ter visto 0 cara de estatura media, rosto gordo e bei90s arroxeados, com muitos aneis nos de­das, a coisa pas sou a interessar Lucio Flavia.

- Onde e que tava? _ Primeiro topei com ele na feira de livros, no Largo

do Machado, uma noite que sai para comprar frango assado. Depois eneontrei no Lamas. Bern na porta. Conversava com outros homens e com uma velhota que tom a conta cia banca de jornais.

Desconfiou de voce? _ Nao creio - vai dizendo Ligia. - Parei mais

adiante, fiquei observando se me seguia. Atravessei a rua, parei novamente, continuava no mesmo lugar. Pelo sim, pelo nao, segui num rUffiO eompletamente diferente e 56 mais tarde, ap6s ter dado uma volta la pela Prac;:a Jose de Alencar, foi que entrei numa transversal e vim para ca.

_ Que horas sao agora? Liece olha, responde que eram quase duas da madru-

gada. _ Me arranja uma daquelas perucas e urn blusao. Vou

dar umas voltas por la. Se quiser ir tambem, trata de arranjar urn disfarce.

Ambos foram para 0 espelho, no banheiro. Ligia trouxe a peruca que Lucio Flavio pedira. Com ela bern arrumada, fieou parecendo uma lTIoc;a. Os eabelos eastanhos quase nos ombros, emoldurando aquela cara arredondada, com grandes

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olhos esverdeados. Botou 0 blusao marrom, meteu dois livros debaixo do bra~o, ficou parecendo estudante de cursinho pre-vestibular. 0 disfarce de Liece tambem era valido: bigo­des grossos e cavanhaque. Vma blusa de la e uma boIs a a tiracolo. Sairam devagar pela area de servi<;:o, Ligia ficou deitada no sofa, esperando. Era 0 que tinha feito de mais importante, nos liltilTIOS tempos, desde que se juntara a Liece: esperar. Ligou a televisao, nao havia mais nenhUlna emissora no ar. Ligou Uln pequeno radio de pilhas. E,. com o radio ligado, adormeceu.

No Largo do Machado, Lucio e Liece de Paula ficaram especu]ando. Foram a banea de jornais, entraram no Lamas para tomar cafe. Depois entraram no salao de bilhar, nos fundos do predio, voltaram, olhando cad a pessoa que estava aquela hora no restaurante. FicaralTI na porta, conversando com urn cara ja muita alto, que precisava de dinheiro elTI­

prestado para toolar urn taxi. 0 cara dizia que dnha urn carro estacionado ali perto, luas estava se sentindo tao beba­do que nao conseguiria dirigir. E sempre que terminava de dizer isso, come<;ava a proeurar a chave do carro. A conversa do bebado era das mais chatas, como sao de todos os beba­dos, lnas Lucio Flavio estava ate gostando, porque assim poderiam ficar mais tempo por ali, sem despertar suspeita. Liece ja havia dado uma nota de cinco cruzeiros. ao bebado e Lucio dizia a ele que aquila era dinheiro suficiente para tamar urn aviao, quando urn carto de chapa branca, sem a prefixo da policia, aproximou-se, vindo da Pra,a Jose de Alencar. Lucio ocultou-se para tras do bebado, alto e corpu­lento. Liece estava de costas. Nao sabe se chegou a perceber o carro se aproximando. Urn tipo de altura mediana saItoll. Ficou algum telnpo falando com as companheiros que con­tinuavam no veiculo. Lucio olhou bern para ele. Nao tinha do que duvidar. Era 132, mesmo. A cara gorda, 0 terno es­curo, dedos das InaOS con1 muitas aneis. Entrou, falau com a homem do caixa, foi para 0 restaurante. Lucio deixou 0

bebado conversando con1 Liece, foi atras. Encostou-se no baldio, viu 132 sentado numa das Inesas, voItou para junto de Liece. Livraram-se do bebado.

- 0 plano e a gente seguir esse filbo da puta. Nao quero fazer nada com ele, agora. Mas se vai ficar sabendo onde mora.

- E se daqui voltar pra policia? - argumenta Liece. Lucio nao havia pensado nissa. Se estivesse de servic;o

e retornasse a delegacia, era uma chance que se perdia.

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_ Entao vamos partir pra of ens iva. Vou me sentar 11.a ll1esa COIn ele. Tu, que tens uma arma, fica de olha no homem do caixa. Se pegar no teIefone, lne avisa. Af. se sai com 132 no peito. E se acontecer uma n1erda qualquer, se apaga ele.

Liece pensa na manabra audaciosa, a1i no meio de tanta gente. Considera a possibilidade de haver outros policiais no salao. Considera a possibilidade de 132 estar esperando al­gum colega.

_ E se de repente chega outro tira e eu nao posso identificar? Ele te pega la dentro, sem arma, sem nada.

_ Entao vamos fazer 0 seguinte: me da a arma pra d. Tu fica na paquera. Nao perde 0 homem do caixa de vista. Ele ta ligado a 132. Qualquer movimento em falso vai me avisar. Eu sen to com 132 e dou logo 0 recado. Meto a mao na maquina e convido ele pra passear. Nao se demora nada. Nao se espera ninguem. Se e!e se fizer de besta cai duro af. mesmo. o plano, segundo Liece, era desesperado. Embora nao tenha dito a Lucio, achava que aquela nao era a me!hor opor­tunidade de agarrar 0 policial. De outra parte era possive! que passando aquela chance, tao cedo nao aparecesse outra. Se 132 desconfiasse do menor movimento, era c5bvio que dali para diante iria se cobrir melbor.

Enquanto pensava nisso Lucio Flavio, ostental1.do cabe­leira farta, que chegava quase aos ombros, avanc;ou por entre as mesas, livros debaixo do bra<;o, COlTIa se fosse ao saHio de bilhar. Puxou a cadeira da mesa de 132 e sentou. Colocou os livros de Iado. 0 policial disse que a mesa estava ocupada. Olhando melbor para 0 mo~o que chegava, descansou os brac;os na mesa, a azeitona ficou espetada no palito. 0 ines­perado da situac;ao 0 deixara sem m.ovimentos. Lucio Flavio nao perdeu tempo:

_ Urn movimento em falso e te queimo! A amea,a nao precisava ser repetida. 0 detetive conhe­

cia a fama de Lucio, sabia lnuito bern com quem estava lidando.

_ Chama 0 garc;o:rb., diz que va servindo, enquanto a gente volta. Nao faz nenhum gesto que prejudique nosso encontro, porque 0 Liece de Paula esui la fora. Se 0 hOlnem do caixa pegar 0 telefone, ele morre tambem.

o gar~om apareceu, 132 repetiu 0 que the dissera Lucio Flavio, falou ate com ar de riso, que ele era alegre e nojento, como dizia Dondinho. 0 detetive levantou-se primeiro, Lu-

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cio carninhando atnis, Liece apareceu na porta. 0 homem do caixa achou aquilo estranho, 132 explicou que estaria logo de volta. Atravessaram 0 Largo do Machado, avanp­ram por entre as barraquinhas de livros, Liece ficou olhando o homem do caixa, que pegou 0 telefone e Ihe pareceu muito nervoso. Foi ao encontro de Lucio, avisou que 0 portugues tinha dado 0 servi<;o. Comec;armTI entao a andar no sentido inverso em que sairam do Lan1as, t0111aram urn taxi. Lucio mandou seguir para 0 Leblon. No carro, por divers as vezes, .132 tentou falar. Liece, para evitar suspeitas do motorista, ria sempre.

- Nao ha nada como urn dia depois do outro - afir­maya Liece e ria.

Por causa de papos que 132 queria iniciar, Lucio en­costava-Ihe a arma no peito, 0 policial calava. Numa rua antes da praia, saltaram.

- A gente vai dar urn passeio. Gosto muito de ouvir a cantilena do Inar. Do mar e de alguns tipos que pens am ser mais sabidos que as outros.

- Deu tudo errado. Tava esperando a oportunidade para explicar. J a contei tudo que houve ao Moretti. Ele vai

. dizer is so a voces. 0 Bechara enlouqueceu. Fez urn trato com Moretti e acabou roendo a corda. Ou roeu a corda ou t.1 querendo abarcar 0 mundo com as pernas. E born que entendam isso. As coisas estao se complicando. Passou aquele tempo em que ninguem interferia. Agora, nao. Todo mundo quer tirar uma casquinha e na hora de assumir a responsabi­lidade s6 uns dois aparecem. Bechara esta exatamente nessa jogada. Quer tudo 0 que os outros apanham, mas sem apa­recer, sem se complicar.

Chegaram perto de urn trecho da praia, em obras. Lucio examinou bern, concluiu que poderiam ocultar-se nas mon­toeiras de pedras, paus, ferros e areia. 0 detetive, imaginan­do que estivesse sendo arrastado para 0 que chamam exe­cu<;ao sumaria, pas-se a gaguejar, a implorar, a dizer que tinha feito tudo direito, que ainJa nao gastara 0 dinheiro, que nao faria nada sem que as coisas estivessem completa­mente definidas. Lucio 0 tranqiiilizou:

- Vamos s6 ter uma conversa, 132. Por enquanto nao e nada do que ta pens an do . Quero colo car os pingos nos ii. Do jeito em que me pegaram la em Sao Crist6vao, tudo ficou no ar. Posso mesmo dizer que a principia me senti roubado.

Liece r-1, quando Lucio Flavio afirmou e repetiu: Verdade. Juro como me senti roubado. Sabe 1.1 0

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duro que se deu naqueles confins, pra que depois apare~am dois tiras, fresquinhos e despreocupados, e batem a mao no tutu?

o detetive, aliviado com a garantia de que nao seria executado, fala. Diz que aquilo foi urn mal-entendido. Falha de Moretti. Ao sair da delegacia, imaginava que estivesse tudo na Inais perfeita.

- 0 que nao tava no program a era 0 dr. Bechara agir como agiu. Quando soube do espancamento, juro que fiquei com vontade de meter uma bala na cara dele. Nao se faz is so hoje em dia nem com pe-de-chinelo, quanta mais.

- Por falar nisso, 132, ate agora estou curioso para saber uma coisa: como e que fui parar na Baixada Fluminen­se, to do fodido, cabe<;a cheia de galos, virilha furada?

- Nae sel. Ao sair do servic;o, vi 0 movimento. 0 Ze da Hora e 0 Maria Gorda foram encarregados de te levar. o dr. Bechara insistiu que tinha de ser na delegacia de Sao Gon<;alo. Maria Gorda falou nessas coisas de jurisdi~ao, 0

cacete, ele mandou ir pra I". Disse que 0 delegado de Sao Gon~alo tava a par da situa~ao.

- Nessa jogada eles iam ou nao sUlnir COIn Lucio? indaga Liece de Paula.

- Talvez sim, talvez nao. E diffeil dizer que tipo de pres sao Bechara fizera contra Moretti que, pra governo de voces, ja ta transando finne. E precise que acrediten1 em Moretti. Nao estou autorizado a entrar nesses detalhes, mas tenho certeza que 0 plano dele e born. Todo mundo vai lucrar. E asseguro mais uma coisa: quando se e leal com Moretti, ele e leal tambem ate a morte. J" tive muitos exem­plos disso.

- Pois foi pra isso que se veio ate aqui. Quero que de urn ala a Moretti. Nos vamos marcar urn encontro. S6 que vai ser pela Barra. E nada de hoteis ou barzinho. E 1.1 pros lados do Recreio dos Bandeirantes. Manda que ele fique por la, fora do carro para poder ser identificado de longe. Isso deve ser amanha de tarde, por volta das quatro horas.

Que carro e 0 dele? - Urn Karmann-Ghia gelo. - Gtimo. 1sso facilita as coisas - considera Lucio. Ap6s tanto susto, 132 estava nervoso. Para nao de­

monstrar, ria e falava. No entanto, era incapaz de abrir-se totalmente. Embora acreditasse ter vencido a parte mais pe­rigosa da situa<;ao, estava certo, pela experiencia que tinha como policial, que Qutras complicac;6es poderiam vir. E vie-

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ram. Sentados, 0 mar quebrando petto, aquele friozinho in~ vadindo os ossos, Lucio Flavio parecia imperturbavel. Le­vantou-se, a mao no bolso, segurando a arma, 132 voltou a sen tit arrepio na espinha.

- Uma outra ajuda que gostaria de ter da tua parte, 132, e com relac;;ao aqueles caras que usavam capuz e que gostam tanto de bater. - NUlll momento de furia, Lucio segurou-o peic paleto, disse em tom irado: - Quero nome e endere~os. Ninguem me humilha. Nenhum filho da puta bate na minha eara selD pagar por isso.

- NaG sei quem sao eles. - Vou ajudar a datear tua nlem6ria: urn vestia terno

azul e calc;;ava sapatos de verniz, desse tipo que nas lajas cham am social. 0 outro tava de blusao estampado, parecido com 0 que usava Carcara. 0 terceiro de alpercata tipo fran­ciscana. 0 quarto tambem usava terno. Tinha sapato mat­rom, sem salto, solado de borracha macia. 0 mais alto de tadas era 0 que calc;ava as tais sapatos sociais. 0 Inais baixo era 0 de blusao estampado.

- Oh, Lucio, jamais a Carcara se meteria numa daque­lao Ele e um mo~o de bem. De mais a mais foi beneficiado. Levou sua parte. Nao ia fazer uma baixeza dessa. Isso tudo e coisa do dr. Bechara. Faz verdadeiras diabolices pra jogar uns contra as outros. Sou capaz de apostar que isso saiu da cabe~a dele: aranjar urn sujeito parecido com Carcara, meter nele um blusao igual, s6 para foder com 0 rapaz. Nao te esquece que se ta agindo com gente inteligente, que conhece todas as regras do jogo.

- E par isso que tamos aqui. Nos nao conhecemos todas as regras. Pelo que vejo, tern de se aprender muita coisa - comentou Liece de Paula.

__ Entao, quem eram os encapuzados? o detetive esta nervoso. Quando e encurralado motde

farelos de pele do polegar da mao diteita. - Assim, de estalo, nao posso saber. E diffei\. Um

hornem alto, de terno e sapatos sociais? E impossivel. Par mais que conhe~a os tipos de Pilares, nao da para distinguir ninguem pelos pes. E e ate possivel que 0 dt. Bechara tenha trazido gente de fora. Como e que vou saber?

Lucio tira 0 rev6lver, as coisas engross am para 0 lado de 132.

- Fica sabendo de U111a coisa, filho da puta, nao pensa que tau muito interessado em negociar com Moretti. Nao pensa que, pelo fato de servir de intermediario, de provavel

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intermediario, nao possa te queimar aqui e agora. Nao me vern pra ca CO)TI sacanagem. Quero os nomes e ja. VOll espe­rar cinco minutos pelo relogio de Liece. Se tua cabe~a ruim nao te ajudar, entao ja nao merece estar vivo. Quem tern cabe~a ruim deve ir logo pro inferno. .

Liece suspende a manga do casaco. Os numeros fluores­centes do rel6gio estao bem claros. 0 detetive bota os olhos neles. Ve 0 ponteiro dos segundos avan~ar com rapidez, en­quanta 0 das horas move-se com vagar. Ai, desembucha:

- 0 dr. Bechara trouxe gente especializada. Gente que sabe bater, sem fazer sangue.

- 0 que me deu a cutelada no pesco~o, quem e? - E um japones da Invernada. Veio de Sao Paulo.

Dizem que foi professor de carate. Se isso e verdade, nao sei. Que e capaz de muita coisa com a mao espalmada, la is so e. Vi um dia ele dar um golpe no assaltante e 0 homem nem acordou mais. Cutelada na altura do plexo. 0 car a per­deu 0 folego. Se jogou agua, um policial tentou respira~ao boca a boca, mas de nada adiantou. Foi um deus-nos-acuda, porque na seman a seguin te 0 criminoso tinha de ser levado ao 2.° Tribunal do Juri. Nao sei como a caso terminou.

pleto.

Nome desse japones? Hirofto. 56 isso. Nunca ouvi chamar seu nome com-

Como e que ele tava? Era 0 de blusao, que voce pensou set 0 Carcara. Liece, vai anotando. Onde 0 japones pode ser encontrado? Nao tenho certeza. Parece que mora pela Pra~a da

Bandeira. Posso saber depois. - E 0 encapuzado dos tais sapatos sociais? - E Constancio Grande. Nao pertence aos quadros da

polfcia. Foi detetive particular muito tempo, depois a coisa come~ou a piorar. Hoje, trabalha com Bechara. Pra onde Bechara vai, leva Constilncio Grande. Ta sempre na perife­ria. 0 que Bechara manda ele cumpre. E um automato.

Residencia? La pros lados da Gavea. A Gavea e grande, 132. E na Rua Marques de Sao Vicente, perto da puc. Quem era 0 tira que estava de alpercatas? Um ex-guarda civil, que atende como Rosendo As­

sun<;ao. Desde que saiu da guarda tern servido em varios postos. J a esteve como carcereiro na Dha Grande. Saiu de

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la, acusado de corrup<;ao. Depois 0 dr. Bechara quebrou 0

galho dele e conseguiu que trabalhasse na Lemos de Brito. Quando 0 delegado precisa de urn servi<;o extra ele aparece, seja de dia ou de noite. Esta sempre a disposi<;ao. Quem trabalha com Bechara e assim: full time.

- E 0 de terna escuro, da tua altura? A insinua<;ao de Lucio Flavio enche 132 de pavor. Ter­

no escuro era permanentemente sua roupa. Agora mesmo, ali estava, terna azuI-marinho, sapatos pretos, gravata azul.

Esse nao recordo direito 0 nome. - Trata entao de recordar, porque foi 0 que mais ba­

teu. Tenho simpatia toda especial por ele, assim como por Hiroito.

- Ou<;o chamar Tiao. E novo como ajudante de Be­chara. Anteriormente transava pel a delegacia de Sao Joao de Meriti. E uma especie de alcagiiete graduado.

- Quer dizer que 0 dr. Bechara pensa mesmo em tudo. Gosta de espancar e ainda tern 0 cui dado de nao com­prometer a turma da folha de pagamento. Sao os contratados que des cern a lenha!

- E 0 que tern acontecido - afirma 132. - Entao, 0 homem da roupa escura nao era voce! o detetive e colhido de surpresa, quer levantar-se, Lie­

ce segura-o pelos ombros. - Calma! Nao precisa ficar em pe para falar. Sentado

ja provou que raciocina melhor - diz Liece em tom de de­boche.

- Jamais faria uma coisa dessas, Lucio! Nunca fui de espancar ninguem. Sou homem de boa paz. Nao levo as coisas por esse lado da violencia. Cumpro minha fun<;ao me­canicamente. Nao exagero, nao imponho autoridade.

Lucio aproxima a cara enfezada perto do detetive que esta em panico, berra com fllria:

- Mentira, filho da puta! Mentira! Tu entrou no bo­teeo de seu Tadeu, no conjunto dos ex-combatentes, amea­<;ou todo mundo. Sacaneou ate com urn ·preto velho amigo meu, que nae faz mal a ninguem. Foi nessa sacanagem que se estrepou 0 puto do teu companheiro. Mentira ou verdade, seu veado escroto?

o policial nao responde. Embora 0 ar do mar esteja frio, ele sua. Passa a manga do paleto na testa, candui que aquele era urn momento dificil:

- Tava cumprindo ordens. Fiz 0 que podia. Nao que-

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riam que fosse de outro jeito. Fiquei s6 pelo bar. Nao fui incomodar sua mae.

- Mas depois, ou tu mesmo, Oll outros filhos da puta, voltaram la em casa e levaram minha mae, irmao e pai pra delegacia. Eles nao tern nada a ver com 0 que fa<;o ou deixo de fazer.

Encosta 0 cano da arma no queixo de 132, vai falando. Lucio esta tao enfezado que chega a ilnpressionar 0 proprio Liece de Paula. Nunca 0 vira antes naquele estado de exal­ta<;ao.

- Escuta bern 0 que you dizer, canalha. Daqui pra frente s6 eu dou as cartas. Nao quero 0 dinheiro que pegou, de volta. Vau querer coisa piar: vamos ter reuni6es sema­nais e todos os policiais que estao na jogada comigo vao estar presentes. E tu vai ficar encarregado disso. Se roer a corda, vou te estourar as miolos, mas antes mato a puta que tu come. Quer saber como tou a par de tudo? 0 nome dela e Magn6lia Chaves, Pra<;a do Lido, 102. Quer ver outra coisa interessante? Tua mae mora em Padre Miguel, perto de uma pracinha, com uma pon;ao de arvores. Ela vai sofrer urn acidente na porta de casa. E assim que you agir com voces, daqui pra frente. Da 0 meSilla recado a Moretti. Nao pense e1e que tou pedindo pelo amor de Deus que nos ajude. Quando marcar a primeira reuniao, tern de estar presente tambem. E agora, pra terminar, quero uma declarac;ao tua na folha branca de urn Iivro desses: eu, fulano de tal, recebi do ladrao de autom6veis Lucio F1avio a importancia de Cr$ 30 mil, para entregar a Mauro Moretti. Recebi 0 dinheiro e 0 entreguei a Carcara - nome por completo na frente -que se encarregou de fazer a importancia chegar a seu des­tino. Pelo servi<;o prestado Moretti me deu tanto, enquanto Carcara recebeu tanto. Data e assinatura. Nao me incomodo de pagar, mas quero recibo. Eo crime, preto no branco. Por hoje, tamos conversados. Amanha quera Moretti no Recreio dos Bandeirantes, nos esperando. Me avisa pela manha: se tudo esta acertado. Ligo pra polfcia as onze horas te pro­curando.

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VII

o dia clareava quando retornaram ao apartamento. Li­gia continuava deitada no sofa, camisola suspensa de urn lado, deixando ver 0 peda<;:o alvo da coxa. Liece acendeu a luz, ela acordou. Eram quase cinco hotas. Arrumou as cabe­los, meteu·se no banheiro. Ao sair disse que ia preparar cafe. Lucio Flavio concordou rindo que era boa ideia. Liece tra­tou de calocar toalha na mesa e distribuir as xfcaras, a manteigueira, biscoitos e torradas. Lucio abriu a boca de sana.

- Foi uma esticada mas se botou os pingos nos ii dizia Liece.

- Ainda vern muita coisa por aL Moretti e urn verda­deiro diabo. Se 132 acha que Bechara e que e 0 demonio, esta muito enganado. Nao conhece Moretti como eu.

- Qual seria 0 plano exato com Moretti? - Muito simples. Permitir uma pequena participa~ao

em tudo que se fa~a, mas s6 como cobertura. Nada de se meter no negocio ate as ralzes. Nada de saber com quem se transa, aqui ou ali. 0 que podeni nos dar e so protec;ao.

- E sera que aceita as coisas nesses termos? - Problema dele. A partir do mom en to em que conse-

guir compromett:!-lo numa determinada jogada, ou aceita ou se lasca. Acaba na cadeia. Termina tao criminoso quanto nos.

- Que e isso, gente! - comenta Lfgia que vern com o bule de care. - Acho que Liece e muito honesto. Ladr6es sao os grand6es que andam por ai, fazendo negociatas, fre­quentando lugares bacanas.

- Nao gosto de mistificac;ao. Somos a que somas e ponto final - diz Lucio, dando a conversa por encerrada.

Depois do cafe pede a Ligia que Ihe consiga papel e lapis. Liece pergunta se nao vai dormir.

- Vou. Agora tenho uma coisa a Ihe mostrar.

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Ligia traz 0 papel e 0 lapis. Poe-se a riscar um esque­ma. 0 local ea Urea. Vai riscando e apontando os ptincipais pon tos de referencia:

- Aqui e a Rua Ramon Franco. Deste lado de ca fica a Marechal Cantuaria e Avenida Portugal. - Faz uma pau­sa, pergunta a Liece: - Sabe 0 que temos af? Urn banco! Uma agencia do Uniao de Bancos Brasileiros, pra ser mais preciso. N as primeiras seman as de cada mes, esta recheada de dinheiro. Embora nao parec;a, por ali ha muita repartic;ao, hospitais e cHnicas que fazem dep6sito para os funcionarios. Entre cinco e dez se da a retirada. Depois disso 0 nivel de dep6sito baixa. Preciso de mais informac;6es quanto ao dia exato em que a bolada e mais gorda. Vamos raspar tudo que estiver no cofre. No bom estilo.

- Nao vai dar muito problema, gente? - a indaga­c;ao e de Ligia.

Lucio Flavio olha para Liece de Paula. Evidentemente que nao gostou da intromissao e a pr6pria Lfgia coneorda em que a pergunta foi imbed!. Liece se da ao trabalho de explicar:

- Queridinha. 0 que nao e arriscado e nao da proble­ma na vida da gente? N6s somos 0 pr6prio problema. Per­gun te a polfcia.

o born humor de Liece era sempre valido. Grac;as a essa explica<;ao, 0 ambiente £icou descontraido e Lucio che­gou a tir.

- Acho 0 plano muito born - comenta Lieee. - E 0

que e preciso para urn estudo em regra? - Em primeiro Iugar temas de conseguir urn carro.

Ai se vai ate 18., estuda 0 terreno) ve as possibilidades nos cruzamentos. Na fuga, teremos de cruzar aquela pontezinha bacana, onde fieam os barquinhos ancorados.

E se houver algum problema e eles fecharem a ponte?

Foi a que pensei. Por iS50 vamos estudar todas as ruas com cuidado. Se fecharem a ponte, se sai pela contra­mao. Da perfeitamente. Voltamos pela Ramon Franco, em que en tram as onibus. So que 0 carro tern de ser pequeno e rapido. Urn Puma, talvez.

- Quantos deverao participar? - Esse e 0 problema. Jorge Tarzan e Damasceno No·

vaes vao querer entrar. Mas isso nao da: pra eles. Sao muito lentos. Prefiro Victor Klauss, Patinho Feio e Paulinho, fora

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Fernando, Nijini e voce. Micu~u ta muito quebrado. Nao sei se ate 1£ vai agiientar.

Lfgia corta as unhas) pass a lixa nas que estao aparadas. Nao se sentiu menosprezada pelo fato de Lucio Fhivio criti­car sua intromissao. Alias, dificilmente se aborrecia. Liece costumava dizer que era assim por set burta. E, carinhosa­mente) quando dizia issa, aproveitava para abrac;a-Ia, acen­tuando:

- E pra que mulher bonita tern de ser inteligente? Ligia ria, Liece contava piadas ou simples mente os lan­

ces ridfculos que surgiam na sua atividade, ora envolvendo pessoas que nada tinham a vet com os assaltantes Oll com a polfcia, ora com as proprios policiais.

Ela se lembra de que uma noite inteira ele, Lucio, Ni­jini e Fernando ficaram bebendo e rindo da pe~a que prega­ram aos policiais de plantao no presidio. Ninguem sabe como Lucio conseguiu urn arame comprido. NUlna das pontas ell­valveu £ita isolante. Com a Dutra passou a interferir num interruptor na parede externa da cela. E cada vez que tocava no interruptor, as lilmpadas de toda galeria acendiam-se e apagavam-se. Os policiais que estavam a vista ficaram intri­gados. Cada vez que as lilmpadas piscavam, andavam de urn lado para 0 outro, suspeitando de algo errado. E assim Lucio ficeu horas, fazendo todos eles se movimentarem sem poder dormir. E como tambem naD dormiram, para ficar assustan­do os policiais, riam mais ainda daquela brincadeira. Ligia recordava esses momentos, que eram tambem aqueles em que formulavam os pIanos. Lucio, que jii se desquitara da mulher, dizia que seu sonho era viajar para 0 Mexico com Janice, a mo~a que conhecera na prisao. Nunca mais retor­naria ao Brasil. Liece queria ir para a Argentina. Fernando C. O. nao tinha muita defini~ao, mas iria tambem. Nijini talvez fosse para 0 Mexico, por ser muito ligado a Lucio. Lfgia aproveitava a anima~ao geral, comprava dais au tres frangos assados, Liece preparava a macarronada com muito molho, Lucio se incumbia da salada de alface com pepino e tornate. Passavam a tarde inteira comendo, tornando vinho, cerveja e discutindo acerca do futuro. Urn dia, em meio a conversa franca, ern bora Lucio fosse sempre 0 menos comu­nicativo, Ligia arriscau uma considera~ao que ninguem Qusa­ria fazer. E, para espanto dos demais, Lucio Flavia nao se mostrou zangado. Muito ao contnirio.

- 0 que nao en tendo em voce e essa preocupac;ao do

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desquite. Tudo· direitinho, como manda a lei e 0 juiz. Isso faz diferen~a?

Lucio ria. Tinha bebido bastante, continuava com a copo de ufsque na mao. Liece de Paula tentou interferir, dizendo que 11aO era assunto em que se metesse. Lucio pediu silencio:

_ Ela tern razao. Par que urn bandido (nao e is so mesmo, Ligia?) haveria de se preocupar com essas coisas que sao proprias dos merdas da classe media e da pequena bur­guesia? Muito simples, minha cara: sou urn bandido diferen­teo Nos todos aqui fazemos noventa e nove par cento das coisas erradas. Segundo a legisla~ao dos honestinos. Por que nao colaborar ao menos urn par cento com eles? Afinal, gra~as ao trabalho que desenvolvem, estamos aqui. Gra~as a imbecilidade policial, a corrup~ao e aos sonhos de grandeza de cada urn, estamos aqui.

A risada foi gera!. Houve ate palmas. Lucio estava num dia bem-humorado. Ligia levantou-se, abra~ou-o, beijou-o. Liece reagiu com palavras de brincadeiras, a festa continuou animada. Nunca tinham vista Lucio Flavia tao alegre, nem tao bebado. Dessas coisas, que ocorreram ha bastante tempo, Ligia ainda lernbrava, ali, naquele sofa, acertando as unhas, enquanto Lucio e Liece formulavam urn novo plano. Olhava para urn, para 0 outro. Gostava de Liece. Sempre gostara, mas havia ·em Lucio algo que a submetia a sua vontade. Quando interferia na con versa e ele a olhava sem dizer nada, o rosto avermelhado de raiva, achava-o de uma beleza ex­traordinaria. Nunca pensara em trair Liece com outro ho­memo Mas trairia com Lucio, ainda que as conseqih~ncias fossem desastrosas.

Pensando em todas essas maluquices, aproxima-se no­vamente da mesa onde estao os dois homens, distanciados nos planas, pergunta se querem mais cafe e mais biscoitos. Lucio aceita cafe. Olha para ela, agradece. Poe 0 lapis na mesa e continua:

_ Voce merece uma vida melhor do que esta, Ligia. Depois disto aqui (aponta 0 plano), Liece 11aO the proporcio­nara isso se for muito sacana.

- E 0 que penso fazer. Lucio dobra 0 papel com 0 plano, poe no bolso do

blusao, vai para 0 quarto dormir. Ligia bota urn vestido, diz a Liece que faria algumas compras. A cas a entra em silencio. o unico ruido, ah~m das buzinas dos carros passando na rua, vern do apartamento no outro pavimento, onde os tra-

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balhadores estao passando sinteco. Liece tern dificuldade de dormir de dia. Lfgia nao enfrenta 0 mesmo problema. 0 teo lefone toea. Liece escu ta an tes de falar.

- E Nijini. Sabe onde ta 0 Noca? Liece responde que sim, Nijini promete chegar nUln

instante. Passam-se alguns minutos, ele aparece. Esta com uma mancha taxa por baixo do olho direito. Liece manda que entre e aguarde, enquanto vai ate a rua, especular para ver se nao foi seguido. Retorna, calmo, diz que Lucio esta dormindo.

- Se paSSOD a noite inteira acordado, Dum acerto de contas com 132. Pegamos de no Lamas, fomos pro Leblon e hi se teve urn papa firme. 0 mole que tremia como vara verde. Lucio impos as condic;6es que nos interessam e logo de tarde se vai ter urn encontro da pesada corn Moretti. Lucio ia mesma te procurar, porque pensava que ainda esti­vesse preso. Por onde andou, afinal?

- Numa cana tremenda, com porrada de lTIanha: e de noite. Ontem de madrugada e que 0 carcereiro abriu a cela, me chamou e disse que tinha alguem querendo falar comigo na rua. Ai fiquei sem entender. Se fosse pra rua falar com o cara que me esperava, era logico que nao ia voltar. E foi a que aconteceu. S6 que cheguei na rua e nao vi ninguem. Me mandei. Ate agora tau sem en tender.

- Onde e que estava? - Na carceragem da 13.'. Primeiro fui para a 8.', de·

pais me transferiram para hi. Tambem nao sei par que. - Tern noticia de Micu<;u e do Fernando? - 0 Fernando nao conseguiram prender. Micw;u ta

na 8.'. Levou porrada demais. Os Caras botaram pra quebrar com ele. Disseram que entrou na sala de interrogatorio cha­mando 0 delegado de veado. Nao acredito nisso, que Micuc;:u nao e leao.

- Quando querem bater, encontram sempre uma des­culpa. Nao adianta. E como pegar viciado em drogas. 0 policial pega 0 cara que quer pegar, bota maconha no bolso dele e diz que e maconheiro. Ponto final. A palavra dele e que vale. Mas, com a gente, a panorama vai mudar. Hoje de tarde vamos ter esse papo com Moretti e estabelecer as coisas. Nada de pedra errada no jogo. Se Moretti se fizer de besta, vai levar azeitona quente nas costelas. Lucio foi muito claro com 132, que e 0 intermedi:hio nessa hist6ria.

Quem e esse 132? - E urn detetive de meia altura, car a gorda, dedos

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cheios de aneis. Urn tipo pegajoso. Botou a mao no dinheiro do Lucio, passou pra urn tal de Carcani entre gar e na hora da presta<;ao do servi<;o entrou em crise. Resultado, deranl porrada a valer no teu irmao, sumiram com ele pra Sao Gonc;;alo, onde amargou semanas numa solitaria imunda. Se nao usa a cuca, tinha se fodido. E depois disso 132 aparece dizendo que houve apenas uma confusao, que as coisas naa andaram como era de se esperar. Ora porra! Se nao andou direito de foi 0 culpado. E se diz que pegou 0 dinheiro pra Moretti, en tao Moretti e tao filho da puta quanto ele. Agora as coisas tao definidas. Lucio foi claro. Mais urn erro e vai comec;ar a aparecer tira morto por a1.

- E CalTIO tern de ser. Eles nao tern a menor cons ide­rac;;ao. Vao baixando a cacete. Na hora do tutu a conversa e autra.

Nessa altura do papo Lfgia volta da rua. Nijini cumpri· menta-a com urn beijo. Liece convida-o a tomar urn banho quente, mudar de roupa. Pergunta a Lfgia se notou algo de . anormal perto de casa. A mulher responde com muita alegria:

- Tuda na mais perfeita, rneu senhor! Nijini diz que esta mais elegante do que nunca, Lfgia

vai tratar de esquentar 0 cafe. Sempre foi muito amiga de Nijil1i, desde que 0 viu pela primeira vez. Achava naa passar de urn menino

l para ja estar metida em tantas camplicac;;oes.

A mavimentac;;aa acorda Lucio. Veste urn raupao azul, gala de veludo na mesma cor, que Ihe dera Liece. A primeira co.isa que repara e no alho roxo do irn'lao.

- Quem fez isso? _ Os caras da 8.". Lucio pede a Ligia que fac;:a uma aplica~ao com gelo,

pede a Liece que va it farmacia comprar pomada para desin­£lamar. Nijini reclama que nao precisava nada disso, 0 irmao insiste. Enquanto Lfgia tira a gela das cubas, Lucio entra no banheira. Senta-se no vasa, fica pensando na situac;ao em que metera Nijini.

_ Se sou uma especie de heroi de gibi pros outros, por que nao seria pra meu irmao?

Era is so . E ali estava com 0 olho estofado, todo azul. Fora as pancadas que nao deixavam marcas. Fora as humi­Ihac;:6es de toda ordem.Como aquela da bosta amontoada no canto da solitaria, 0 mau cheiro se encarregando de 0

enlouquecer. A esperan<;a era 0 proximo golpe, reuniao de muito dinheiro, mandar Nijini para bern longe do Rio. Seria

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o primeiro a ir embora. Depois trataria de si proprio e de Janice. Como era possive! aque!es filhos da puta socarem seu irmao na cara, sem do nero pena?

Sai do banheiro, encontra Ligia com a boneca de ge!o no olho afetado. Bern perto, 0 bra~o macio passando-Ihe por cima do queixo, Nijini sente 0 cheiro da mulher. Lucio senta ao redor cia mesa, onde estava Liece, come<;a a falar que as coisas poderiam melhetar e nao ia demorar muito.

- Estamos em novembro. Ate dezembro deverei ter as informac;6es que necessito. Ai se ataca. 0 pute que atra­vessar no caminho vai comer fogo. Como eles fazem com a gente. Nao vall mais ser tolerante. Comigo nao tern essa hist6ria de se dizer nos jornais que as ladr6es levaram cin­qiienta mil de urn cofre e no outro, com a chave pendurada na parede, tinha mais de oitocentos lnil. Vamos vasculhar a porra do banco. Virar de perna pro ar. E todo mundo bern armado pro que der e vier. E 0 que se vai decidir logo mais com Moretti.

- Ja tive explicando pra e!e - disse Liece de Paula. De tarde Liece aparece com urn TL. Diz a Lucio que 0

conseguiu par intermedio de Klauss. Perguntou 0 que se ia fazer? Claro. Mandei que falasse com voce. E 0 carro ta em ardem? Cern por cento. Motor envenenado e 0 tanque cheio

de gasolina azul. . - E as armas? - Nivaldo ou Wilsao vao conseguir. Nivaldo disse que

talvez nos consiga urn rifle, dentro de meia hora. Vai ligar pra ca.

Por volta das quinze horas 0 te!efone tocou. Era Nival­do, que Liece tam bern chamava Marta Rocha. Tinha conse­guido 0 rifle e tres revolveres 38. Era s6 pegar na loja de ferragens de Manoel Gordo, na Rua Senhor dos Passos.

- Nessa loja tern te!efone, nao? Entao liga pra la. Va­mos marcar urn local em que se possa pegar a encomencla. Nada de· ir de peito aberto, meter a mao numa armadilha.

- Nivaldo e de confian~a ou nao e, Lucio? - Daqui pta ftente nao sei mais de nada. Tanto eu

quanto qualquer urn de nos tern de agir com a maxima cau­tela. Nada de ingenuidades.

Liece liga pra loja de Manoel Gordo. Da uma desculpa, disse que a encomenda devia ser entregue rapidamente e ele mesmo ia buscar.

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- Vou rapidamente ate la - explica a Lucio. - Nao da tempo de ninguem pensar eln termos de surpresa. Muito menos os caras da poHcia.

Quando Liece vai saindo, Nijini recomenda: - Leve 0 revolver. Nao vou porque senao termino

piorando 0 teu lado. Liece sai, dizendo que volta logo. Nijini tranca~se no

banheiro, Lfgia fica arrurnando as enfeites nos moveis, tiran­do poeita com a flanela. Vern para 0 lado em que esra Lucio, que segura-a pelas pernas. Nao suporta aquele gesto de cari­nho, senta-se sabre eIe, beijam-se longamente. As maos de Lucio escorregam sobre as seios aIvos de Lfgia, pouco a pou­co eIa vai se estendendo no sofa. Nijini fecha 0 chuveiro, ambos se recomp6em. Ela torna a beija-Io.

- Vamos nos encontrar lange daqui - prop6e. Lucio concorda e mais Ulna vez se beijam. - E Liece? - pergunta Ugia. - Nao acho nada de mais. A vida que se leva e assim

mesmo. Todos por urn. Urn por todos. 0 que me pettence pode set de todo mundo. Nosso tempo passa mais depressa que 0 dos outros. Nao se po de ficar imaginando· detalhes, petdido em concei tos tolos. Quero ficar curtindo voce uma noite inteira, nao me importando que Liece fac;a a mesma coisa.

- As vezes ate penso que ele nao gosta mais de mim - reclama a mulher.

- Nao e isso. E que estarnos nervosos. Nunca se sabe o que pode acontecer. Se da uma de durao, mas no fundo a preocupac;ao nos abaIa. Com Liece acontece a mesrna coisa.

Enquanto Lucio vai falando, Ligia abre-Ihe a camisa, encosta 0 rosto no peito cabeludo, encolhe~se como uma gata. Logo depois afasta-se. Nijini esta saindo do banheiro. Lfgia diz baixinho:

- Eu te arn~. o telefone toca. Ela atende. Afasta 0 fone, diz alto: - E pra voce. E 0 Liece. Lucio atende. Ouve 0 companheiro dizer que esta tudo

OK. Marcam enc.ontro na esquina, Lucio demora mais urn pouco, falando com Ligia e Nijini. Antes de sair pede a Ligia que ponha mais gelo no olho do irmao. Promete que fara. Abre a porta, olha Lucio nos olhos, recomenda-Ihe cuidado.

o TL dirigido por Liece aparece. Era amarelo, com pneus tefor~ados. Continuam rolando pela Rua das Laran­jeiras, ate a entrada do Tune! Santa Barbara. Chegam ao

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Catumbi e a Santa Teresa. Pela Rua Almirante Alexandrino vilo na direc;ao do Silvestre e, de la, ate a Barra da Tijuca. Na Estrada estreita e lnuito cheia de curvas, Lucio se ocupa olhando as flores azuis, vermelhas, amarelas; as grandes bor­boletas que oscilam no ar, como petalas caindo e elevando-se para cair de novo. No meio daquelas flores 0 rosto de Ligia, o rosto de Janice.

- Ta preocupado? - Ate que nao - responde. E entram no assunto do encontro: - Sera que Moretti ja ta esperando? - Nos vamos parar uns cern metros do carro dele. Eu

saio e vou andando oa dire<;ao em que estiver. Voce fica dando cobertura com 0 rifle. Se for uma cilada e me quei­marern, nao entra nessa de salva<;ao. Engrena a primeira e te manda. Depois, se quiser) vinga minha morte.

- Nao acredi to que Moretti va fazer uma coisa dessa. Ta tao enrolado quanto a gente.

- Isso depende. Nunca se pode dizer ao certo 0 que vai acontecer.

Liece olha 0 rel6gio: - Estamos em cima da hora. o cafro avan<;a pela pista junto ao mar, as barraquinhas

que vendem milho cozido e cachorro-quente fechadas ou sem movimel1to. Mais adiante, onde a vegeta<;ao cobria zonas de areias brancas, estava 0 Karmann-Ghia gelo.

Liece reduz a marcha. Mais perto, abandona a estrada. Urn hornem alto e forte esta encostado no carro.

- E ele mesmo - diz Lucio e salta. Liece pega 0 rifle. Poe 0 cano da arma apoiado na porta

do TL. Lucio enfia a mao direita no bolso, segura a revolver. Moretti esta de brac;os cruzados. Parece inaltenivel, a pro~ porc;ao em que avanc;a pela areia.

Quem e 0 cara que ficou ]a? Nilo tenho que dar satisfac;oes. Pelo que vejo, tau na mira dele - comenta Moretti. E ta mesmo. Nao poderia ser diferente, depois do

que aconteceu. Moretti fica urn instante irritado. - Ja soube 0 que fez com 132. Ta completamente er­

rado. Ele e urn cara legal. Nunca traf meus compromissos. So que cOlnpromisso comigo tern de set preto no branco. Nada de bobaginhas.

- E voce acha que tou brincando?

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- Nao sei. Ate agora nao deu pra entender. - Pois quem nao tli entendendo sou eu. 0 132 levou

uma bolada pra Ihe entregar e nao recebi cobertura nenhu­ma. Que porra de policial 10 voce? Tern prestigio ou 10 s6 conversa fiada?

Lucio nao tirava a mao do bolso. Moretti avermelhou de raiva.

- Nao admito que ninguem fale comigo desse jeito. - Pois tou falando. E daqui em diante vai ser assim.

Chefio a merda da gang. Dou as ordens. Quem nao achar bom que se foda. E quem desistir, mando liquidar.

- Comigo 10 diferente, velho. Nao tenho culpa de dar bandeira e ser preso como um patinho.

- Na minha opiniao acho que tudo foi tramado par voce. Picou com 0 dinheiro, e eu passei urn tempao na soli­tliria. Sabia onde tava?

- Claro que sabia. Ou pensa que escapou de Ii por acaso? 0 papai aqui se virou. Distribuiu gorjeta pra uma porc;ao de gente. Pra nao pens at que esteu inventande, basta lembrar que, na hora em que foi pular 0 muro de pedra, tinha duas metralhadoras apontadas na tua direC;ao. Acha que elas enguic;aram?

Lucio fez ar de rise, porque de fato, ao sair da solitaria, arrastou-se pelo mato ralo e teve de saltar 0 muro de pedras. S6 que nao percebeu ninguem por perto. E se Moretti nao tava ali, como poderia saber de tal detalhe?

- Voce saiu nuzinho da silva, se esticando como uma· cobra. S6 que tinha dois caras da pesada te observando de longe. E por is so que digo que a gente pode se entender.

- Vamos ser amigos. Um por todos, todos por um. Lucio estende a mao. Entrou no Karmann-Ghia. Mo­

retti explica que tinha necessidade de muito dinheiro. - Tou complicado. Os caras que ajudam a gente nao

querem saber de mare baixa. Pra eles ta tudo OK. Mas nao tao Ou nem sempre ta, voce sabe disso.

- E quanto 10 que vai precisar? - Uns duzentos mil. S6 assim posso acomodar as coi-

sas par mais uns tres meses. Lucio ouve Moretti falando, falando, os gestos do ta­

manho dele pr6prio, 0 riso faci!, rosto franco. - Tenho urn plano que vai render bastante, mas pre­

cise de duas coisas: uma metralhadora, aito au dez rev61-veres 38 e um Dodge Dart. A prindpio pensei num carro rapido e leve. Agora acho que tem de ser um motor podero-

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so. Se aparecer um engrac;:adinho pela frente, se passa por cima.

Equal e 0 plano? Um banco, vazando dinheiro. Que banco? Por enquanto e segredo. Se dentro de dez dias cum­

prir sua parte, entao a gente marca uma reuniao e discute detalhes. E claro que nao vai aparecer. Mas tem de agir por tras. Na hora do assalto, deve estar na delegacia da juris­dic;:ao, a fim de dificultar as coisas pro lado dos tiras.

- E onde deixo as armas? - Eu telefono e se marca um lugar. Isso nao e proble-

ma. Quero saber tambem se topa participar das reunices que se Hzer!

- Claro. Tou nisso ate 0 pesco~o, como todos voces. - Entao fica sabendo: eo Liece que ta no TL. Tem um

rifle apontado para ca. Vou embora e nao quero surpresas. Moretti torna a rit, bate com as. maos pesadas no

volante. - Que cara desconHado, meu Deus! Vai acabar fican­

do com medo da pr6pria sombra. Lucio nao gostou da piada, volta-se para Moretti, olhan­

do-o fixamente: - Nao sou apavorado. Voce sabe disso. Trabalho com

cautela. Passou 0 tempo dos pegas, das doidices em cima de um carro. Agora quero dinheiro e muito dinheiro pra me mandar desta merda. E ve bem que neste jogo nao se pode errar. Nem falar demais. 0 que avisei pro 132 vou cumprir.

Moretti continua sorrindo. - Nao se prc;oocupe que no final da tudo certo. Lucio caminha na direc;:ao do TL. Quando ja se afastou

bastante, ouve 0 motor do carro de Moretti. Olha para tras, o carro alcan~ou a estrada, vai longe. Liece salta do TL, vern ao encontro dele. Ficam parados, mas tudo que ouvero e 0

rumor das ondas quebrando na areia.

saber.

Parece que desta vez nao fez nenhuma molecagem. Nao sei. S6 quando se tiver bem longe, poderei

Topou a jogada? Claro. Inclusive as reunIoes. Disse 0 que tinha de

dizer. Quis botar banca mas viu que nao adiantava. Vai tele­fonar avisando onde se pode pegar as armas. Pedi ate uma metralhadora.

- Fiiiuuuuu!!!

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- E 0 tipo de argumento que nenhum gerente de ban­co resiste.

o TL sai de re para 0 asfalto. As mesmas barracas de sanduiches, pamonha e milho, as mesmas ondas espumando, o mesrna sol clareando montanhas, a grama verde se esten­dendo para os lados da Baixada de Jacarepaguii.

- Agora vamos estudar bem 0 local. Decorar os minI­mas detalhes. Hoje mesma se convoca a turma toda: Klauss, Patinho Feio, Paulinho e talvez Wilsao. Isso, alem de voce, Nijini e Fernando. Temos de descobrir que rumo tomou. Ele tinha seu enderec;:o?

- Nao acredito. Senao ja havia entrado em contato com a gente. Deve tii perdido por ai.

- Aparece. Pode deixar que cara vivo ra ali. - Vamos entrar pelo tune!. Se aproveita pra dar uma

olhada na Rua Marques de Sao Vicente. Liece sorri. Lucio nao esquece nada. 0 carro para numa

rua transversal, as dais vern para urn ponto de onibus. De­pois vao ao barzinho, informam-se com os caras que tomam pinga, ouvem explicac;:ces do jornaleiro. Uns dizem que e na casa amarela, de janelas antigas, ja desapropriada; outros que e no edificio, com as plantas de folhas largas na hente. Lucio e Liece nao tem pressa. 0 portugues enche os copos. Os tipos que sao dali mesmo, ou estao biritando enquanto o onibus nao vem, comec;:am a falar. Uns acham que 0 ho­mem alto, ex-guarda-civil, j:i mudou. Outros garantem que mora na casa amarela, de janelas antigas, em forma de arco. Saem para conferir. Na cas a amarela aparece uma senhora de olheiras e um caozinho miudo comec;:a a ladrar. Lucio e quem fala. Um parente que procura 0 parente, 0 ex-guarda­civil, de nome Consrancio Grande. Explica detalhes ou, me­Ihor, 0 unico detalhe: esta sempre de terno e usa sapatos sociais pretos. A mulher olha-os como se nao entendesse as perguntas, sacode a cabec;a, a diozinho continua a ladrar, as vezes impedindo-os de ouvir 0 que diz.

A vontade de Lucio era entrar naquela casa, examinar tudo que la estivesse, ate encontrar algum indicio de Cons­rancio Grande, 0 espancador. Ao mesmo tempo Liece alerta para uma conversa com 0 porteiro do ediffcio, onde havia as plantas de folhas largas.

- Porteiro de predio e filho da puta, cara. Ta tudo levando dinheiro da policia como alcaguete. Nao se pode dar muita trela a eles. Se desconfiar de alguma coisa dii 0

servic;o, nos estrepa.

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Lucio entra na frente. 0 porteiro esta sentado por tras de uma mesinha, imitac;;ao de jacaranda. Ha umas Iampadas, um quebra-luz sofisticado.

- Qual e 0 apartamento de Const1lncio? A pergunta nao parece surpreender 0 homem.

Quem sao os senhores? Colegas dele. Se for 0 que penso, e no 613; Como 0 que voce pensa? Ha mais de um Const1ln-

cio neste predio? - pergunta Lucio, ironicamente. o elevador fecha a porta, sobe. - Acha que manjou alguma coisa? - indaga Liece. - Sinceramente, DaD deu pta entender. Em £rente a porta, no corredor mal iluminado, Lucio

toea a campainha. Uma vez, duas, nao atendem. - Se nao tiver ninguem em casa, simplifica a coisa -

diz baixinho. Retira algumas chaves do bolso, comec;;a a forc;:ar a fecha·

dura, esta DaD demota a abrir. - Mais Hcil que 0 segredo de uma algema - admite·

Liece. Lucio empunha 0 rev6lver. 0 apartamento de sala am­

pIa, todo na penumbra. Acendem a 11lmpada, VaG a gaveta onde havia papeis e envelopes. Antes que Lucio pegasse um desses papeis, Liece ja havia encontrado, na mesinha da tele· visao, uma revista enderec;:ada a Const1lncio Ramos Berkley. Lucio recolhe alguns envelopes para conferir, inclusive uma con ta de luz.

Fecharam a porta, desceram dois lances de escada, tomaram 0 elevador. Na portaria Lucio torna a falar com 0

homem sentado por tras da mesa. - Nao sei bem a hora que costuma chegar. 0 porteiro

que entra mais tarde e que deve saber. Sei que mora s6. As vezes aparecem uns parentes, que pass am alguns dias, mas vao logo embora.

Na rua, Lucio Flavia nao se conforma em deixar 0 caso para 0 dia seguinte.

- Telefona a Nijini. Diz que esta tudo OK, mas n6s vamos demorar. Avisa Ligia.

Lucio volta ao carro, a ideia de vitar 0 apartamento pelo aves so tom a corpo. Deveria haver um papel, um do· cumento, que falasse em Constancio Grande. Seria 0 sufi­ciente. E como passar pela portaria sem serem vistas? Era outra preocupac;ao.

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Liece volta e Lucio explica que 0 certa era retarnar ao apartamento, meter-se hI ate tirar a duvida. Ficariam por perto, esperando a saida do porteiro.

- Fica·se no carro, na £rente do predio. Ninguem vai desconfiar.

Lucio acha a ideia razoavel. Nao demora muito, saem uns garotos com 0 dio. Desaparecem do lado em que havia a canteiro com as plantas. 0 hornem vai reclamando com as crian<;as e desaparece. E 0 bastante. Fecham a carro, entram rapidamente na portaria, alcanc;:am 0 primeiro lance de esca· da. Lucio experimenta a mesma chave na fechadura, a porta se abre. Ap6s virar muitas gavetas, olhar fotografias, Lucio continuava na mesma, pais nao conhecia Constancio Grande. E ja estava bastante preocupado, quando Liece encontrou, num papel de caderno, 0 bilhete que tanto procuravam. Um lembrete de trabalho, pedindo que nao chegasse atrasado.

Liece abriu a geladeira, tirou latas de cerveja, senta· ram~se nas poltronas, ficaram aguardando. Lucio quase nao falava. Liece, no entanto, estava satisfeito com a descoberta. Merecia comemoraC;;ao. 0 telefone tocou, Liece ligou a tele­visao, ficou vendo um filme complicado, desses em que 0

espiao da superpotencia e sempre mais sabido que todo mundo e tern muita sorte diante da morte. Lucio aliava 0

conforta daquele apartamento a esperteza de Constilncio. Um ex·guarda.civil que sabia onde tinha 0 nariz. Outros guardas menos espertos, cern menores amizades, estavam enfiados em casit,has de quarto e sala, pelos confins do Realengo e Encantado. Quando 0 filme terminou, eram mais de onze horas. Apagaram as luzes. Liece ficou fumando. Lucio man­dou que olhasse 0 carro na calc;;ada. Liece puxou a janela devagar.

- Tudo certo. Tem mais tres estacionados atras dele. A sala mergulhara em absoluto silencio. S6 alguns sons

de televisao, vindos do ediflcio vizinho. - E se 0 sacana tiver ido pra longe? - Que tem isso? Se espera ate quando puder. Vai

embora e volta outro dia. Nao tenho pressa. Principalmente agora que sei ser ele mesma que tau procurando - respon­de Lucio Flavio.

Em meio a pensamentos disperses, ouvindo 0 ressonar de Liece, ouve tambem a porta do elevador que abre e fecha, os passes no corredor, a chave procurando a fechadura, Liece colada a parede, sentindo urn frio na espinha, como sempre acontecia. Lucio ficou do lado em que a porta abria. 0 ho·

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Page 46: Lucio Flavio - Passageiro da Agonia.pdf

mem alto entiou, acendeu a Iuz. Nao pareceu sUipreso ao ver Lucio Flavio apontando a arma, Liece escondido por tras da cortina.

- Estavamos aguardando sua chegada, sr. Constancio Ramos Berkley. Viemos a esta hora porque, como sabe, e 0

melhor momento para quem tern 0 que dizer. A gente ta sem pressa. Pode sentar.

Constancio trazia uns embrulhos. Coloca-os na mesa. - Nao £a<;a movimento errado, pra que se tenha tem­

po de falar - adverte Liece de Paula. - Vamos fechar portas, janelas e cOitinas, pra ver se se

consegue aquela mesma calma da sala de torturas, 1a em Pilares, nao e is so mesmo, sr. Constancio Berkley? - diz ironicamente Lucio Flavio.

Constancio Grande ja esta sentado. Niio pronuncia uma s6 palavra.

- E dizer que 0 senhor e um espancador profissional. Nem parece.

Lucio encosta 0 cano da arma no ouvido dele, diz raivoso:

- Vamos the dar uma li<;ao. A ultima que recebera. Mas nada de pressa.

Liece volta da cozinha, trazendo uns barbantes. Com eles amana os punhos de Constancio Grande. S6 entao 0

homem decide falar: - Nao tenho culpa de nada. Bechara e quem manda.

Sou empregado dele. Nao perten<;o nem a pollcia. Fa<;o 0

que ordena, senao quem entra pelo cano sou eu. - E e 0 que tii acontecendo - repete Lucio Flavio.

- Acaba de entrar num tremendo cano. 0 dr. Bechara en-trarii em outro. S6 que vou deixar a surpresa dele pro final. Primeiro vai vel' todos os seus espancadores empacotar. De­pois sera sua vez. Onde mora Bechara? Quero endere<;o e telefone.

Constancio Grande se recusa. Lucio bate-Ihe com 0 cana da arrna na testa, a sangue carre.

- Endere<;o e telefone - repete furioso. - Nao sei. Desta vez a pancada e maior, 0 sangue aumenta. Cons­

tancio se man tern firme. Lucio olha aqueles mesmos sapatos saciais que a atarmentaram uma noite inteira. Volteanda ao seu redor e a mao batendo, batendo.

- Nao preciso usar capuz para te massacrar. Tou fazen­do is so de cara limpa, filho da puta. E tu vai desembuchar.

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Pega 0 saca-rolhas que esta sobre 0 m6vel, aproxima a ponta do olbo de Constancio.

- Endere<;o e telefone. Nao pergunto a segunda vez. Constancio resolve falar. Liece de Paula anota. - Telefone pra la. Confere se e verdade. Liece telefona. A mulher diz que Bechara nao havia

chegado. - Bechara e casado, tern filhos? - volta a perguntar

Lucio. Constancio, tiras de sangue descendo pelo rosto forte,

vai falando como pode. Liece anota. - Chega de papo. Vamos ao que interessa. Quero que

fale dos seus coleguinhas. Comece pelo japon"s. Constilncio nao se faz de rogado. Hiroito Skato morava

na Rua do Matoso. - E 0 de terno escuro, da tua altura? - E 0 policial que chamam 132. Nao me dou muito

com ele. Dizem que e gente do Moretti. - E mentira, seu sacana. 0 132 e bern mais baixo. - Quando se esta de capuz, e diffcil dizer quem e

mais alto ou nao. E 0 132. Se acredita ou nao e proble­ma seu.

- Bern - diz Lucio - ate aqui ja temos triOs nomes: tu, 0 japon"s e 0 132. E 0 quarto espancador, quem era?

- Urn tal de Rosendo Assun<;ao. Antigo boxeador que tambem trabalha com Bechara ha muito tempo.

o que faz, quando nao esta espancando presos? - E leao-de-chacara da boate P"ndulo, em Ipanema. - Liga pra la. Confirma, Liece. Liece abre 0 catalogo, procura a boate. Manda chamar

Rosendo: ninguem sabe quem e; Constancio diz que tambem atendia por Ventania. Ai Liece diz que era 0 Ventania, ex­plicam que s6 chegaria mais tarde.

- Ta tudo certo, sr. Constancio Grande - diz Lucio Fliivio, soltando 0 saca-rolhas. - S6 falta que eu cumpra minha parte. Liece, acende 0 gas, deixa 0 chuveiro esquen­tar. Vamos verse 0 homem e valente, como nas haras en1 que usa capuz negro.

o ruido do chuveiro chega ate a sala. Constancio esta palido. Liece nao demonstra curiosidade. Sabe que Lucio vai mata-Io, mas quer fazer com que sofra bastante.

- Morte rapida pra certos tipos e b"n<;ao do ceu. Vai ao banheiro, 0 calor ja emba<;ou 0 espelbo. Com

uns cintur6es que Liece trouxe do quarto, arnarram as per-

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nas de Constancio, derrubam-no dentro da banheira. 0 ho­rnem bate-se nas torneiras, fica de peito pra cima.

- Assim nao ta born. Puxa as pernas dele. Tern de ficar com a cara debaixo da agua quente.

Liece puxando as pernas, Constancio estrebuchando, querendo livrar-se, Lucio arrebentando-lhe a cabe<;a e 0 rosto com 0 cano do revolver. A cara de Constancio Grande final­mente debaixo do chuveiro, a boca entupida com uma toalha de rosto, oIhos arregalados, a fumaceira aumentando. Passa­dos alguns minutos, Constancio sempre estrebuchando, que­tendo erguer-se, Lucio embrulha a arma numa toalha, acet­ta-o na testa. Os olhos ja nao se incomodam com a agua quente caindo, as brac;os naa forc;am movimentos.

Deixaram a torneira aberta, agua quente descendo, £e­CharalTI a porta. Lucio mandou Liece it a cozinha, trazer urn pano de prato. Com ele esfregou 0 trinco que havia pegado, saiu tirando as impress6es que porventura tivessem deixado. Liece recolheu as pont as de cigarro, desapareceram. Nao ha­via mais ninguern na portaria. Com as chaves de Constancio saftam do predio, entraram no carro. No caminho, Liece na dire<;ao, Lucio se lembrava do rosto alarmado, olhos tremen­damente abertos e brancos, diferentes dos olhos calmos, no rosto sereno de Marco Aurelio.

- Fiz 0 que ele mandou. Como ia imaginar que nao estava de acordo com voces?

- Sera que Marco Aurelio era de fato inocente? Lucio e interrompido pela indaga<;ao de Liece: - Quer dizer que 0 132 ta metido nisso? - Sempre desconfiei, Foi por is so que insisti com ele.

Cheguei a dizer que 0 cara de terno escuro era ele. Te lembra?

- Que cachorro velhaco! - A vez dele chegara. A vez de todos nos ta sempre

chegando. Vamos dormir e esquecer tudo que de ruim se fez. Amanha se estuda 0 terreno na Urea. Se houver tanto dinheiro quanto penso, breve vamos deixar esta vida, se e que assim se pode chamar.

96

VIII

Lucio acorda com Liece batendo na porta. Vern para a sala. Veste roupao de gola de veludo azuL Ligia mostra 0

jornal com as fotos dele, de Liece, de Fernando C, O. e Marta Rocha na primeira pagina. A manchete e sobre 0 as­salta a urn banco, na cidade paulista de Taubate. Lucio Ie. Nijini esta curioso.

- Nossa, como inventam! - Levaram quatrocentos mil e tao botando a culpa

. na gente - comenta Lucio. Folheia as paginas, il procut" da morte de Constancio

Grande. Nao encontra a menor referencia. "Sera que a corpo ainda continua na banheira, debaixo

do chuveiro quente? Sera que ninguem deu por falta dele?" Liece, liga pra policia. Manda chamar 132. E melhor fazer isso da rua, Tern muito tira ai atras de voces. Ela tern razao. Vamos ligar daqui mesmo.

Liece passa 0 telefone, Lucio come<;a a falar. 0 policial repete a sigla combinada. Lucio reporta-se a fatos que so 132 poderia saber. Apenas para confirmar que era ele mesmo. 0 policial parece alarmado. Diz coisas que apatentemente nao fazem sen tido.

Tu ficaste maluco? Ta numa tremenda enrascada! A saida dele foi botar mais urn assalto na tua conta.

E 0 caso do Constancio Grande? Ja tiraram tudo de la. Ravia urn principio de incen­

dio. Os outros caras tao prevenidos. - Ele contou muita coisa antes? Era 0 tipo mais cre­

tina que ja conheci. Aprendeu tudo que nao prestava com 0

chefao. Pra instigar os outros estava sozinho. Foi urn servi~o que prestou, mas se meteu numa embrulhada.

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Marca encontro com 132, na porta do Cafe Indfgena, na Lapa. La pelas duas da madrugada, quando a movimento e pequeno. 0 policial topa, Lucio desliga com ar de riso, Liece tambem sorri.

Acha que tamos embrulhados. Ora, ora, que no­vidade!

E ele nao t3:, por acaso? Pelo que diz, Constancio Grande sempre gostou de

inventar hist6rias. Acho que e a discfpulo perfeito de Be­chara. Como quero saber melhor 0 caso do banco, prefiro atacar as assuntos por parte. Assim, hoje de madrugada va­mos falar s6 da trans a la par Taubate. Ja que estamos acusa­dos, quero botar a mao ness a grana. Se det certo naG precis a nem levar 0 plano da Urca pra £rente.

Moretti estaria na jogada? Claro. Se a 132 ja sabe uma por<;ao de coisas a

respeito e porgue Moretti deixou transpirar. Nada acontece de errado neste pais que nao esteja metido no rneio. Tern de se reconhecer que sabe se virar. E naD deixa pistas. CODw

seguiu uma eficiente rede de colaboradores. E a que se pre­cisa fazer. Do contnirio vamos acabar mal.

Voces pintam 0 Moretti como urn verdadeiro Dr. Sata.

E e is so que ele e. Tenho minhas duvidas se nao ta diretamente ligado a Severino Lima em Pernambuco. Da ul­tima vez que estive em Caruaru, notei as coisas Inalparadas.

o comentario de Lucio faz com que Liece de apoio a conclusao de Nijini Renata:

- Sempre achei que se devia vigiar melhor aquele cabec;a-chata. Qualquer hora dessas po de nos fazer uma sur­presa. E ninguem tera controle de nada.

- Acha que e filcil estabelecer esse controle? Moretti consegue is so porque tern a faca e 0 queijo na mao. Ta den­tro de uma organizaC;ao. E s6 fazer aroda girar pro lado que bern entende.

Lucio pede a Lfgia que va a banca e traga todos os jor­nais. Nijini esquenta a cafe. Liece volta a let a noticiario.

- Nao da pra entender on de querem chegar. - Muito simples - diz Lucio Flavia. - Alguem se

aproveitou da ocasiao e n6s e que vamos enfrentar 0 processo. - E que difetenc;a faz? - Pra eles faz. E mais trabalho e quem sabe dos acer-

tos com 0 grupo? Par isso e que vou ouvir 0 papo de 132. S6 depois ajustaremos contas.

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- l"v1oretti nao tetia 0 que dizer a respeito? - Se sabe, nao vai se abrir. E macaco velho. Rodando

a roleta desse jeito, ele e a jogador que nao perde nunca. Se n6s fracassamos, ou tros acertam e ele puxa a bolada. E 0

que pretende manter: urn esquema amplo ·de gente traba­lhando pra ele.

Lfgia volta trazendo as jornais. Urn deles publica a foto do banco assaltado. 0 outro diz que entre as as salt antes estava Uin hOmelTI alto, que as policiais paulistas ainda nao tinhaiTI identificado. As demais notkias versavam sabre tudo, menos a morte de Consrancio Grande. Nao havia qualquer referencia. Isso intrigava Lucio Flavio, pois mostrava a po­der que Bechara tinha tambem sabre os setoristas. Nenhum deles transmitiu a noticia da morte do policial para as reda~6es.

"Qual seria a plano de Bechara? Que desejaria com aquele silencio, ja que sabia perfeitamente que a matador seria Lucio Fh'ivio?"

Por mais que raciocinasse, nao conseguia alcanc;ar a suti­leza do policial. Ficou entao lembrando 0 que the dissera 132:

- Ele e urn verdadeiro diabo. E a capeta em pessoa. F az coisas que parecem desnecessarias, s6 para canfundir. Mistura as fatos para tirat proveito. Nunca se sabe exata­mente 0 que quer.

Lucio fica olhando as colunas de composi~ao, a pensa­menta longe, acompanhando a movimentac;ao de Bechara, bra~os apoiados no espelho da cadeira, querendo que con­fessasse a que nao sabia. 0 silencio sabre Constancio Grande era ainda mais absurdo.

- E urn homem duro. Vai botar pra quebrar. Aglienta firme.

"Desejaria encobrir a fato de Constancio nao ser urn policial regular? Nao, is so era 0 de menos. Havia urn alcance maior naquele silencio, para envolver ate jornalistas, sempre doidos par notfcias. E Constancio era figura conhecida, fa­moso pelo tamanho e brutalidade."

Nijini e Liece continuam a falar, Lucio Flavia volta a olhar as jornais. A fixaC;ao no caso de Consrancio Grande nao a deixa. Os olhos do homem muito abertos e brancos, no fUlnaceiro da agua do chuveiro caindo. As pernas amarra­das, movimentando-se, querendo erguer 0 corpo pesado, ba­tendo-se nas torneiras. E 0 rumor da agua escorrendo com forc;a, projetada em bortifos escaldantes, 0 banheiro todo se

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enchendo de ar quente, gatas se formando nos azulejos, es­pelho do armario embac;:ado. E os jornais nao registravam uma s6 nota, quando sabia que 0 corpo tinha sido localizado, o apart amen to quase pegando fogo. 0 homem sisudo que vita na portaria cleve tet sido chamado pot Bechara, cleve ter dado com a lingua nos dentes, falado nele e no Liece. Dais homens estiveram aqui, procurando seu Constancio. Urn era moreno e alto. 0 outro de estatura mediana, cabelos alourados, olhos esverdeados. 0 homem sisudo esticando a cabec;:a para dentro do banheiro on de estava Constiincio Grande lavando toda a sujeira que 0 cobria, desde quando entrou para a policia, desde que se tornou guarda-civil, foi expulso e pas sou a ser cachorrinho do Bechara.

Chegou ao ultimo jornal que Llgia trouxera. Este nao dava muita importancia aos fatos policiais. Olhou por olhar. Coluna por coluna. Nada havia que 0 ajudasse ou satisfizesse. Nenhum indicio. 0 menor.

Venda seu nervosismo, UlTI cigarro depois do Qutro, ele que nae era de fumar tanto, Ligia sugeriu urn drinque.

- Prefiro cafe quente. Se beber agora you entornar a garrafa '- respondeu Lucio.

A mulher vai it cozinha. Liece esta limpando as unhas com um pedac;:o de palito, Nijini permanececalado. Sabe que nao e hora de arriscar 0 menor palpite.

- Como pode ser isso? Como silenciam sobre uma coisa que existe, que se fez e procuram destacar cutta, da qual nao se tern a menor ideia?

Nenhum dos dois responde. Sabem que a pergunta nao tinha resposta. Lucio nao procurava resposta. Fazia no sen­tido de aliviar-se.

Llgia aparece com 0 cafe numa bandeja de prata. Liece aproveita para desanuviar 0 ambiente:

Ora, que luxo! Vamos ter calma, pessoaI, que tudo nesta vida se

resolve. So a morte e incognita. E quem e que quei- morrer? - diz Nijini Renato,

rindo. Lucio pega 0 cafe, sopra na xfcara. Os jornais estao es­

palhados no chao. As manchetes se confundindo. 0 telefone toea, Llgia atende. Tapa urn lado do fone, chama Liece.

E 0 Moretti. Como sabe que e ele? Ta dizendo que e Moretti. Moretti? - diz Lucio nerVQsamente.

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Liece atende. - Nao sei dele. Posso procurar e dar 0 ala. Moretti fala, fala. Liece limita-se a escutar. Lucio esta

cada vez mais nervoso. Sua vontade era cortar aquela liga~ao. Mas de que adiantaria, se tinha 0 numero. E como chegou a seu conhecimento? Entao oIhou Liece, olhou Llgia, que estava reti~ando as xkaras e, pel a primeira vez, as pas ern duvida. Casualn1ente ela se encontrara COlll urn homem pare­cido com 132. Foram ver, era 132 mesmo. Sempre via as coisas prilneiro. Os jornais que publicavam coisas confusas. Ela ia e vinha. Falava dos caminhos para evitar encrencas. Por que tanta explicac;:ao? E ate que ponto Liece sabia do envolvimento da mulher? Estava ali. Era isso mesmo. Uma espia dentro de casa, dando todo 0 servic;:o pros tiras. Nao havia outro jeito de Moretti descobrir 0 telefone. E se ja tinha 0 numera, chegar ao enderec;o seria faci!o Sentou-se, Hcou ouvinda os monossflabos que Liece pronunciava, en­quanto Moretti ia fa lando do outro lado. Liece desligou. Pa­recia igualmente assustado. Antes de transmitir 0 que Mo­retti queria, disse com espanta:

- Esse cara sabe tudo a nosso respeita. Onde tamas, 110S80 telefone. Deve ter bern controlados as nassos passos.

Lucio tern vontade de dizer que entre eles havia um contato de Moretti, urn espiao, mas se conteve.

- A essa altura sabe inclusive 0 que se pretende fazer disse Nijini.

Llgia estava na cozinha mas voltou logo. o que houve, pessoal?

- Nada de importante - diz Lucio Flavio. - Apenas Moretti sabe onde estamos, tem 0 telefone daqui, pode vir aqui a qualquer momento. E se ele sabe disso, e l6gico que muitas outras pessoas tambem poderao saber. Tamos escon­didos de otarios que somos. Vai ver que os tiras ainda nao nos agarraram porque nao interessa.

- Vamos mudar? - pergunta Liece. - Mudar porra nenhuma! N6s precisamos e morrer.

Bandido burro tem de ser cortado a bala. E 0 que precis a acontecer com a gente. Somos urn ban do de bostas, bancan­do 0 Jesse James.

- Acho que nao e hora de esquentar. Tem de se pro­curar uma saida - arrisca Nijini.

Lucio esta com 0 rosto vermelho, temporas latejando. Nao responde ao irrnao, mas sabe que tern razao.

"No primeiro momenta de dificuldade perde-se as estri-

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beiras. Nao se raciocina rnais. Nao se consegue encontrar as saidas que por certo existem. Sem elas, tudo se confunde. Urn labirinto, do qual os ratos nao acertam sait, e os gatos esticam as patas e brincam com eles."

- V amos deixar Moretti pensar que e 0 sabido enos os burros. Vamos deixar que se aproxime, mais e rnais. Quando estiver bern junto, eu decido a hora em que deve sumir. E essa hora ted de ser no melhor do nos so relacio­namento.

- Isso, bicho! E assim que se fala. Tamos no fogo pra nos queimar. Nada de esmorecimentos. Nada de cuca fer­vendo. Vamos botar uma pa de brasas no caminho desse tira.

Nijini se anima, Liece sorri. Diz que Nijini tern razao. - 0 negocio e nao esquentar. 0 que ta planejado tern

de ser fei to. Lfgia nao encontra jeito de entrar na conversa. Duas au

tres vezes seu olhar cruza com a de Lucio. Ele esta furioso. - eOInO a barra por aqui ta violenta, vou aproveitat

para ir ao supermercado. Tamas sem nada em casa. Entra para 0 quarto, volta de calc;:a justa, blusa deixando

aparecer os ombros nus, pontilhados de sardas. Diz tchau, bate a porta. A vontade de Lucio era disfarc;:ar, sair atras, mas nao queria que Liece desconfiasse, nao pretendia ma­goa-Io. Desejava surpreende-Ia na hora exata. Estava pen­sando nisso tudo, quando a campainha tocou. Liece foi aten­der. Era Moretti. 0 fato nao 0 surpreendeu. Aconteceu como havia previsto.

- Ja que voce me quer em familia, aqui estou. Sem misterios, espontaneamente. E 0 melhor ta la embaixo.

Coloca a mao na boca, como para evitar que outros pudessem ouvir 0 que ia dizer:

Tamos com a tecnologia no carro do 132. E so dizer onde se po de guardar.

Que tecnologia? - pergunta Liece. Duas metralhadoras, duas carabinas e seis revolve­

res. Mais do que pediu. Moretti e sempre assim. Algo mais, como diziarn nos bons tempos os anunciantes de gasolina. So que meu alga mais funciona.

Moretti esta com blusao de ramagens coloridas, relogio com pulseira de couro no bra~o cabeludo, 0 correntao com a medalha no pesco,o. Correntao de prata, como dissera Dondinho.

- Tern cuidado com ele, Noca. Dira muitas vezes que

102

e teu amigo. Desconfia dele, filho. Esse homem tern a figura do cao encoberta na propria sombra.

Moretti continua gesticulando, sorrindo, dizendo que a mais diffcil fora conseguido: as metralhadoras.

- Agora e so tocar 0 barco pra frente: Lucio ainda nao dis sera uma so palavra. Sua vontade

era abandonar completamente 0 assunto do assalto, ir direta­mente ao ponto que mais ° preocupava. Mas is so poderia mostrar fraqueza e urn chefe de gang nao pdde vacilar.

- Muito bern. Gostei de ver sua rapidez. 0 resto e comigo. No prazo que the disse, vamos colocar 0 plano em ac.;,:ao.

A campainha toea de novo. E 132. Traz uma caixa com­prida, embrulhada em papel de loja. Leva-a para 0 lugar que Liece indica. Volta a sala, contempla 0 apartamento, a sala com a mesa redonda de jacaranda, 0 jarro com as flores pIas­ticas japonesas.

- Isso e que e conforto e bom gosto! Senta, esfregando as maos gordas, dedos cheios de aneis.

Nao esta a vontade. Lucio percebe logo isso. - Tira 0 paleto, 132. - Nao, ta bern assim. Moretti continua explicando 0 que tern oeorrido com

alguns elementos da quadrilha: - Eles dao bandeira. Alguns tipos voce tem de apertar

seriamente. Por mais que se fac.;,:a, e impossivel agiientar a situa<;:ao. Anteontem a noite foi 0 Portuguesinho. Sabe 0 que achou de fazer? Deu urn escandalo na boate Pigalle. E por causa de uma putinha que tava embeic;:ada por urn militar. Com tanta mulher no Rio 0 cara val se estrepar por uma pelada do striptease? Ai 0 pessoal da delegacia caiu em cima. Cobriu ele de pau e meteu em cana. Tive de me virar como um doido pra resolver a parada.

- Vou falar com Portugueslnho. E um porra-Iouca -acentua Lucio Flavio. - E ja que tamos conversando sobre coisas absurdas, como foi aquela historia do assalto em Taubate?

- Assalto? Nao sei de nada. Pega displicentemente as jornais do chao, exibe a man­

chete, a titulo forte de urn, as fotos e as detalhes de outro. Moretti olha todo aquele estardalhac;:o, continua dizendo

nao saber de nada. - Ate que ponto Bechara est aria metido nissa, Mo­

retti? - insiste Lucio.

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- Ai ja e outra hist6ria. Tern algum motivo pra des­confiar do Bechara nesse caso?

- Claro que tenho. Ontem se fez 0 servi<;o que devia ter sido feito ha muito tempo com 0 Constil.ncio Grande, Bechara teve no apartamento, levou 0 corpo do sacana pro necroterio e hoje nao ha uma notfcia a respeito. 0 noticiario morreu na gaveta do Bechara. Nao e isso, 132?

- S6 pode. Soube do caso de manha, la pe!as dez. Bechara tava puto da vida. E desde que recebeu a noticia, sabia que eram voces. Nao precisou nem ouvir 0 porteiro do predio. .

- Por mim, achei que a execu~ao foi urn errc. DITI

desafio a Bechara, que de certa forma poderia ser nosso aliado.

- Nao quero trans a com aquele puto - responde Lu­cio irritado. - Os outros que participaram do meu espanca­menta tambem vaa entrar bern.

E, avans:anclo 0 rosto na direc;ao de Moretti, sentaclo a sua £rente, as maos peludas sobre os joelhos:

- Ninguem sacaneia comigo. Ninguem bate na minha cara. Tenho gente sobrando pra dar jeito em qualquer filha da puta. A vez de Bechara chegara. Mais cedo ou mais tarde vira. 1sso e que desejo fique bem claro entre n6s, ja que DaD temos segredos uns com as Qutros.

- Legal. Se trabalha descansado - respondeu 132. - Foi como sempre fiz. Nao sou homem de sub-

terfugios. - E por que entao Bechara escondeu a morte de Cons­

til.ncio Grande, 132? - Vaidade. Nao gosta de perder. Ninguem gosta. Se

dai pretende armar urn golpe, e -diHcil prever. - Quero que voce, Moretti, fique de olho em Becha­

ra. Vamos seguir os passos dele. - Parece que 0 Bechara te preocupa, mesmo. - Nao e exatamente isso. Gosto de jogar conhecendo

todas as cartas do baralho. Moretti e 132 agradecem 0 cafe de Nijini; levantam-se,

vao embara. Lucio mete-se num blusao, caloca rapidamente as sapa­

tas, manda que Nijini e Liece esperem. Atravessa a rua correndo, entra no carro. Moretti e 132 ja vaa longe, perta do Largo do Machado. Entram no Karmann-Ghia gelo, co­mel;am a rodar. Vao na dire<;ao da Rua Marques de Abran­tes. Em frente a urn predio de apartamentos, antes de che-

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gar a praia de Botafogo, estacionam. Lucio fica a dist&ncia. S6 Moretti e quem salta. Lucio imagina que ali more outro policial ou alguma vedeta. Moretti carregado de mulheres, amado pelas bichas.

- E urn homem perigoso, Noca. Traz 0 capeta escon­dido na sombra.

"E eu, quem sou, Dondinha? Porventura me diferencio dele? Apenas represento 0 outro lado da medalha. Do me­dalhao que traz no pescol;o."

A demora de Moretti no ediffcio e grande. Lucio nao se impacienta. Os convictos nao tern pressa. Padre amon­toando palitos de f6sforos queimados num canto da cela.

- Para que tanto palito? Padre nunca respondia diretamente. Urn habito que ad­

quiriu dos muitos interrogatorios de que participara; horas e haras respondendo sabre as mesmas coisas.

- Hoje, a preocupa<;ao e s6 uma: aperfei<;oar-me para ser urn defunto legal. Urn born defunto. Tamos aqui pra cultivar a morte.

Moretti reapareceu, foi embora. Continuar a persegui­C;ao nao fazia sentido. Tao inconveniente quanto acreditar em Moretti, em 132, Wilsao, Fernando C. 0., Carcara ou Liece de Paula. Em quem poderia entao acreditar? Conti­nuou rodando, ate que decidiu procurar Victor Klauss no morro de Sao Carlos. Se nao estivesse por la, mandaria al­guem chamar. Era um lugar seguro, de onde nao deveria ter descido. Lugar com muitas saidas. Nao era urn labirinto em que 0 rato est .. ao alcance do gato. Chamaria Klauss para a fiscaliza<;ao que nao podia fazer. Nisso era born. Paciente e atento.

o carro £icou perto de lins carrapateiros, onde a grama tinha sido recentemente queimada. Garotos seminus transan­do nas montoeiras de lixo.

Comec;ou a subida, enveredau pela rua estreita, barracos de paredes tortas, tetos amea<;ando desabar, pequenos barri­gudos sent ados nas portas, radios berrando musicas de Roberto Carlos, antenas cruzando-se no ceu estreito, roupas sacudindo nas cordas, mulheres invisiveis cantarolando. No final da rua torta, a birosca de seu Quintino. No fundo do salao, a mesa de sinuca. Ao redor da sinuca, taco na mao, Victor Klauss.

- Puxa, velho! Ta por cima! Vi 0 escarceu nos jornais. - Tudo mentira. Inven<;ao dos filhos da puta. Seu Quintino sabe do gosto de Lucio Flavio. Ja pos 0

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copo com a maclelra que diz ser legftima. Num pires, pides como tira-gosto. Lucio pega um taco, fica brincando.

- Pensei que tivesse numa boa. o careta que disputa a partida e do morro, mas novato.

Klauss se disp6e a pagar a conta. Estava derrotado mesmo, nao ia adiante. 0 cara se retira. Lucio e Klauss vao para uma das mesas.

- Nao tou naquele neg6cio que as jornais anunciaram. Mas vou partir pra uma legal. Quero contar contigo. S6 que tua parte e mare-mansa.

- Isso e que e sorte! Tava precisando. A grana mixou mesma. Tive de segurar uns tiras hi embaixo, foi-se a nota. Mas nao me queixo. Vamos Iii. Sou todo ouvidos.

Lucio explica 0 papel de Moretti, a insistencia em en­trat no neg6cio. 0 envolvimento de Qutros policiais como 132 e Carcara. A desconfianl;a de Bechara e de alguns ele­mentos da pr6pria quadrilha.

- Ha gente desse tipo na jogada? - Nao sei. E issa que VQll apurar. E voce t3: a servi<;o

a partir de agora. A grana que vai pingar por servi~o e forte. - E se descobrir 0 cara dando 0 ala do lado errado? - Primeiro me comunica. Naa quero parecer injusto.

Se pega 0 nome do careta, confirma e queima. Desde que se confirme, nao pode ser de outro modo.

Ja tem alguem na al~a de mira? A amante de Liece. Uma alourada? Essa mesmo. Chama-se Ligia. Como desconfiou? Na verdade, nao ha nada certo. Apenas me intriga

a sorte que ela tern de se encontrar com pessoas que casual­mente sao da polfcia. Tambem e ela quem sabe primeiro uma POrl;aO de nodcias. Quase todo dia chega e vai dizendo: vi isso, vi fulano, sicrano me olhou. Achei esquisito. Essas coisas.

- E Liece sabe disso? - Nao. Nem quero. Pra is so e que vim aqui. Ninguem

pode saber que, de agora em diante, tua jogada e outra. - Certo. - Pra ter certeza de que a coisa rende, amanha po de

pegar cinco mil por conta. Mas, ve bem: 0 trabalho tern de ser limpo. Nao me telefona, nem nada. S6 quero novidades, quando te procurar. Fora disso, fica na tua. Boca fechada nao entta mosca.

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Vendo que Lucio tinha terminado a tal;a de maClelra, seu Quintina $aiu de tnis do balcao, veio trazer outra. Klauss falava pouco. Assim, alguns momentos ambos ficaram olhan­do a rua estreita, com pedras aparecendo.

- Tem de ter cuidado com Moretti - disse de repente Klauss. - Ja botou na bunda de muita gente. Os melhores caras vao sendo apagados e ta sempre em evidencia.

Sei disso. Quero defesa pro grupo todo. E 0 correro. Quem s6 pensa em si pr6prio nao tem

futuro. Ontem Moretti fez uma que nao gostei. E foi dai

que comecei a desconfiar da Lfgia. Klauss toma a cachal;a, pede a seu Quintino que traga

outra dose. - Sem que Moretti soubesse onde Liece morava, sem

que soubesse seu telefone, acabou discando pra Ja e logo em seguida apareceu. Foi levar umas armas. Mas quem tinha de pegar essas armas era eu. Foi Iii pra demonstrar que sabia onde tava, que nao adiantava me esconder.

- Voce precis a ter urn lugar isolado, pra botar a cuca em funcionamento.

- E 0 que vamos ter. Ainda af estara na jogada. Pode crescer nesse tipo de coisa.

Lucio pas sou a Klauss 0 numero do predio, na Rua Marques de Abrantes, onde 0 Karmann"Ghia de Moretti esteve urn tempao estacionado.

- Quero saber 0 que faz nesse ediffcio. Com quem se encontra, em qual apartamento. Tudo que puder obter.

- Puxa, meu, eo pr6prio esquema! Gosto disso. Nao hi! como organiza~ao pra quem deseja prosperar.

- Tern de ser. Quando Lucio volrou ao apartamento, era tarde. Nao

havia ninguem. Apenas um bilhete de Nijini, dizendo que tinha localizado Janice e que fora falar com ela. Liece e Lfgia tinham ido a urn ensaio de escola de samba. A imprudencia de Liece preocupava Lucio.

Fechava os olhos, abria, nao conseguia esquecer a fi­gura de Lfgia, seios pulsando na blusa £ina, ali perro, naquela sala, ele segurando-Ihe as pernas, ela se curvando, 0 cheiro de mulher entrando-lhe pelo nariz, ela dizendo coisas em que nao acreditava, mas a vontade escondida de leva-la para a cama, passar urn dia todo curtindo seu corpo nu. Agora urn certo odio de Ligia, a desconfians;a que vetava caminhos, mas a vontade se insinuando, Lfgia de rosto sensual, seios gran-

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des, barriga lisa. Ligia se despindo na boate, as homens babando de ver. Liece metido com ela ate os cabelos, arras­tado para urn lado e para 0 outro. Essa a verdade. Num dia carregado, la estava no ensaio cia escola de samba, Oll sim­plesmente em algum lugar onde Moretti tambem pudesse estar. Seria entao 0 caso de desconfiar do companheiro de tanto tempo? Era impossivel. Nao queria chegar a esse ponto.

Cansado de deseonfian~as, adormeceu. Era muito tarde. o rel6gio batia horas sem sentido por dma do muro. Na janela entreaberta as estrelas desabrochavam.

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IX

Lucio acordou com 0 sol entrando pela janela, mas a casa estava em silencio. Nero Liece, nem Lfgia Oll Nijini ti­nham aparecido. Nao havia roupas jogadas nas cadeiras, a porta do quarto de Liece aberta. Enfiou-se nas cal~as, correu ao banheiro para escovar as dentes, fazer a barba.

"Era uma armadilha que estavam preparando? Par que nao pen sou nisso desde a hora em que viu 0 bilhete? Como caia ingenuamente num golpe daquele? Que merda de ban­dido era? Nijini estaria envolvido com Liece ou com Ligia? Difidl acreditar. Impossivel. Pura fantasia. J amais Nijini faria uma eoisa dessas. Tinha ido ao encontro de Janice."

Abriu a geladeira, encheu urn copo de lei te, eolocou algumas colheres de a~ucar. 0 telefone toca. Urna vez, duas, nao quer atender. Mas, se fosse Nijini, se fosse Janice ou 0

pr6prio Liece? 0 telefone tocando, numa afli~ao de sacudir os nervos, logo de manha. Lucio ouve. E Nijini. Desliga. Senta no soLi. Mais uma vez Bechara 0 venda. A casa cer­cada de tiras. Desde madrugada alta. Nao invadiram 0 predio para evitar esdindalo. Bechara nao gostava de onda. Na ver­dade ninguem sabia. A qualquer momento urn deles apare­ceria. Mais Dutro e tetia de descer. Resistir era loucura. Ao mesma tempo, isso serviria para testar a influencia que Mo­retti dizia ter.

- Tudo que aconteee e que Deus manda, filho. Deus e sua madrinha J anaina.

"Por is so Lfgia insistiu com Liece para leva-Ia ao ensaio da escola de samba. Sabia 0 que estava para acontecer, 0 que deveria acontecer e, mais uma vez, acertou. Entao suas liga­c;6es nao sedam com Moretti, e sim com outros tiras. Ou com outros, alem de Moretti. Mas havia Klauss trabalhando no caso. Em breve teria toda a hist6ria passada a limpo. Ser preso naquele momento era ate oportuno."

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Reconfortado com esses pensamentos, levantou-se, abriu a porta, estendeu os pun has aos homens que estavam no cor­redor. Prenderam-Ihe apenas ° bra"o, ficando ° outro lado fechado, no bra"o do proprio policial. E assim foram descen­do as escadas, como dais colegas. Atravessaram a rua. En­traralTI numa Veraneio com chapa particular. 0 carro nao parou em nenhuma delegacia. Foi dire to ao presidio. AIge­mado, agora em ambos as punhos, Heou nun1a saleta que ja Ihe era familiar. Bra"os para tras, algemas prendendo no banco de madeira comprido, on de ficou sentado. Os policiais desaparecerarn. A mocinha entrou na saleta com uns papeis. Olhou Lucio Flavio e se foi. Depois chegou urn capitao, pos-se a escrever. A lTIocinha magricela reapareceu, entregou umas pastas ao capitao. Abriu uma delas, leu, tirou a ficha de dentro.

- Tua novela aqui ta cad a dia maior. Vamos ver ate onde vai isso.

Lucio nao falou. 0 homem escrevia e de vez em quando oIhava para ele. Pegoli 0 telefone interno, mencionou a cela 1325.

- Preciso dela pra ja. Lucio nao sabia em que galeria ficava. Pelo numero nao

dava pra saber. Apareceram dois policiais fardados e 0 leva­ram. Subiu uma escada, mais outra, dobrou por urn corredor e foram andando. Os presos das outras celas metialTI os bra­"OS para fora das grades e Lucio via naquilo uma especie de boas-vindas. No fim do conedor urn dos homens abriu 0

cadeado, empurrou-o para dentro. Era uma cela menor que as outras. Ravia 0 lugar do colchao, a boca-de-boi e nada mais. POlieo depois surgiu 0 proprio eapitao. Trazia uma prancheta, onde anotou os pertences de Lucio. Ia retirando as coisas que estavam nos bolsos e 0 capitao anotando. Fez un1 embrulho COIn a propria roupa, desapareceu, deixando-o taO nu quanta a cela. Lucio nao entendeu que aquele traba­Iho fosse realizado por urn capitao e pas sou a admitir a ideia de que estava muita ·cotado au 0 militar n1uito por baixo. Ficou surpreso tambem com 0 tratamento. Ninguem 0 esbo-, feteou ou disse palavr6es. Mas sabia que aquilo era so 0

inicio. De noite a levariam para a sala de interrogatorios e la e que iria amargar. Cansou de estar de pe, acocorou-se, ficou ouvindo 0 silencio do casarao imenso, repleto de con­denados. Os piores do pais estavam ali. Os mais temidos, os que tinham propordonado as mais sensacionais materias para a imprensa, as que tinham passado semanas inteiras nas

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manchetes. Nao se senti a orgulhoso disso. Nem triste. Era o que era. 0 importante, agora, seria raciocinar com calma. Pesar bern os fa tos, iden tiHcar 0 au tor da den uncia que 0

trouxe nova mente a prisao. Ligia, Liece, Moretti ou 132? Se Klauss descobrisse 0 que Moretti fazia no edificio da Mar­ques de Abrantes, provavelmente teria desvendado 0 mis­terio. Estava certo de que la, naquele predio de aparencia modesta, cruzavarn-se os fios que talnbem 0 prendialTI par tras das grades. Klauss deveria ser paciente, cauteloso. Tran­quiliza-o a satisfa,ao de ter sabido escolher 0 homem para aquele servi"o. Na hora do almoc;:o foi servido como todos os delnais presos. A comida era a mesma que conhecia e que nao rejeitava. Na prisao nao se cleve rejeitar nada do que dao. Cada migalha serve como reserva para que 0 organismo agiiente os momentos dificeis, que sao muitos. Havia quem xingasse na hora de comer. Quem encontrasse bichos boiando no feijao. Ele nao se dava a esse luxo. Separava os bichos de um lado, tocava pra frente. Muitas vezes fechava os olhos para nao ver, parava a respirac;ao para nao sentir 0 cheiro. Mas nunca privou 0 est6mago da arte dos cozinheiros do presidio. Comida igual aquela, seria impossivel alguem fazer. Pensando nessas tolices, raspou 0 prato. Estendeu-se no ci­mento frio e assim ficou quase a tarde toda. La pel as quatro horas apareceu 0 homem que trabalhava na Iimpeza. Meteu umas revistas e jornais pelas grades. Lucio nao entendia aquele comportamento. Como 0 desconhecido pocieria fazer semelhante coisa? Pegou os jornais e as revistas. Comec;ou a folhear. Mais surpreso Hcau ao verificar que as jornais eram do dia e as revistas novas. Coisa do Moretti. Folheou cuidadosamente a primeira revista. Na segunda encontrou urn bilhete dele, escrito na propria pagina da publica"ao, do Iado do anuncio de uma cas a de credito. Dizia haver "urn canario entre nos, que canta, cant a" . Numa outra pagina, havia coisa mais concreta: "Nijini, Liece e Fernando C. O. estao livres. Em Iugar segura. Nao vais demorar Inuito a1. Na primeira oportunidade a gente te arranca pra fora. Co­migo e preto no branco». Leu aquelas palavras diversas vezes e ate sentiu simpatia par Moretti. Depois destacou as pagi­nas da revista, esfregou-as no chao. Deitou-se novamente e ficou olhando os jornais. No primeiro aparecia sua fotografia, a de Nijini e Fernando C. O. Falavam no assalto ao banco em Taubate, mas nem uma linha sabre 0 assassinato de COl1stancio Grande. Quase no final da materia, uma frase que assustou Lucio Flavio: "Com mais este crime, sua pen a

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podenl subir para oitenta anos". E logo depois: "Mes que vem Lucio Flavio devera ser levado ao 2.0 Tribunal do Juri para responder por assaltos anteriares, praticados a bancos do Rio de Janeiro, bem como a roubo de 33 automoveis", Ficou olhando aquela £rase urn tempao, imaginando que al­guem estava roubando no seu lugar, pondo-Ihe a culpa. Ha mais de seis meses que nao transava com Severino Lima. Ha mais de seis meses 11.aO tinha cantata com ninguem de Per­nambuco e, no entanto, ali estava a hist6ria dos carras. Trin­ta e tres.

"Quem os teria roubado? Seria Moretti e por is so esta­va tao cordial? Seria algum do Bechara? E por que nao seria o proprio Constancio Grande? Entao era isso. Constancio Grande comandaria a organiza<;ao para Bechara. Constancio Grande nao era apenas urn espancador de presos. Era tam­bern 0 homem-chave da organiza<;ao. Por que nao pensara nisso antes? Por isso Bechara desapareceu com 0 corpo e ate agora nenhuma notfcia a respeito havia circulado. 0 crime poderia implicar mais a Bechara do que a mim, Entao era isso. E, se se confirmasse que Constancio Grande estava no neg6cio dos carros, par que nao dominar Bechara? Man­daria Klauss a Pernambuco, Se apresentaria como liga~ao de Constancio Grande. Se a turma mordesse a isca, estava feito. "

o neg6cio de Lucio com Severino teve momentos altos. Quase cern carros roubados por mes eram encarninhados a Pernambuco. Mas, gradativamente, foi caindo, ninguem sabia por que. 0 proprio relacionamento Lucio-Severino Lima es­friou. Certa ecasHio esteve em Caruaru, disserarn que Seve­rino nao estava. Respondeu que ficaria alguns dias, espe­rando, explicararn ser inutil; ia demerar urn tempao fora. Ja era Bechara se insinuando. Para nao aparecer, colocou urn lugar-tenente como Constancio Grande. A perspectiva de estar na pista certa animava-o. A vontade agora era pegar a telefone, ligar para Bechara, dizer: olha aqui, seu veado es­croto, eu matei aquele filho da puta. E mais: vou botar a boca no mundo. Pra mim e mais urn crime. Pra voce e 0 fim da linha. Se nao entrat na minha, bagun<;o teu coreto. E, ai, nao sabe por que, come<;ou a rir. Ria de Constancio Grande estrebuchando na banheira de agua quente, ria da cara de Bechara bancando 0 honesto, quando nao passava de um ladrao. E 0 Moretti? Ate que ponto saberia das transas? Ou ignorava? Era dificil. Desde que entrou para a pollcia, sabia 0 que desejava alcan<;:ar. Foi sempre homem preocupa-

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do com informa~ao. Chegou a organizar um fichario dos corruptos. Como nao saberia de detalhes sobre Bechara? Na primeira oportunidade apertaria Moretti. Queria saber aquela historia toda. Nao acreditava quando dizia:

- Foi loucura acabar com Constii.ncio. Agora Bechara vai nos botar na mira. 0 certo era atrai-Io para n6s.

"Aquilo era papo-furado. Sabia que Bechara estava na pior, com a morte de Constancio. Par issa aparecia no noti­dario aquela dos trinta e tres carras roubados. Par tras, Bechara esticando as unhas, querendo morder sem poder."

Lucio ri de novo. Nao pensava que 0 castigo ao policial grandalhao fosse tao providencial. Acertou-se em cheio, sem querer,

"A sorte ta do nosso lado. Vamos em £rente, de no que der."

Muitas coisas passando-lhe pela cabe~a. Lfgia de busto volumoso, curvando-se para beija-lo, pernas brancas e gros­sas, relogio batende as horas por dma do muro, 0 porteiro que nunca vira, 132 entrando com 0 embrulho de armas.

"Sera que descobriram 0 pacote? Que diferen~a fazia? o plano do assalto ao banco teria de ser completamente reformulado. As coisas se complicavam e nao ia sair de uma para entrar logo em outra. Moretti era 0 prejudicado. Teria de conseguir outras metralhadoras, carabinas, rev61veres. Pra ele nao era dificil."

No dia seguinte detam-lhe urn macacao, um par de sapatos. Trouxeram-Ihe tambem um companheiro. Tipo alto e magro, rosto encovado. Estava com a cabelo rasp ado e muitas marcas de pancada pelo corpo. 0 tipo usava so a cal~a, 0 blusao tinham roubado. No presidio e assim: quem se deixa roubar vai ficando sem nada. Reabilita-se atraves dos presentes de parentes e amigos ou quando chega 0 dia em que a administra~ao determina nova distribui~ao de sa­patos, macacoes, blusoes, escovas de dentes e sabonetes.

Lucio recebeu 0 macadio e mais as roupas que trouxera do apartamento. Pegou 0 blusao, deu ao desconhecido. Acei­tou sem agradecer. Vestiu, acocorou-se no fundo da cela, pos-se a chorar em silencio. Lucio fazia nao estar perceben­do. E em silencio ficaram horas. Quando serviram a refei­c;ao, Lucio entendeu que 0 rapaz era marinheiro de primeira viagelTI. Nao aceitou 0 que Ihe ofereciam, atirou 0 prato com o caldo preto na parede. Os policiais que acompanhavam 0

homem da refei~ao abriram a cela, pegaram 0 magricela,

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enforcaram-no na parecle e ali mesmo 0 espancaram ate cair sem for<;as, todo ensangtientado.

Lucio continuou comendo, vendo 0 moc;o ofegante no chao, 0 blusao respingado de sangue. Ao acabar de comer, abriu a torneira, encheu a caneca d'agua, atirou em cima dele. 56 assim reanimou-se. Sentou-se meio tonto da pancadaria, falou, falou.

- Se 0 amigo permite, acho que na prisao se tem de Inaneirar. Nao levar as coisas no peito e a primeira regra. Deve·se botar a cuca pra funcionar. Eles tao de cima. Nos, de baixo. Certo? Qualquer ordem deles nos atinge .. E quem e cabec;:a-dura termina se machucando.

Se nao conseguir fugir, eu me mato. - Calma, rapaz. Calma. De onde e que ta vindo? - Da 23.'. Piquei por la um tempao. Fui julgado e

condenado. Me deram cinqtienta e seis anos de uma tacada. - Tudo isso? - Nao sei por que. Me acusaram como traficante de

entorpecentes, contrabandista de armas, corruptor de meno­res. Nao tive defesa. Ninguem acreditou no que disse.

Nunca acreditam. Mas no meu caso devia ser diferente. Por que diferente? Ora, eu tava na transa ar com uns caras que sao

tiras. Pensei que na hora H ficavam do meu lado. Sabe 0

que aconteceu? Eles mesmos e que me pegaram. Na verdade o crime nao foi meu. Mandaram fazer. Se nao fizesse tava fodido. Fiz, me estrepei todo. Nao entendo isso.

Lucio olha 0 rapaz que fala. Tudo que nao disse du­rante horas, agora queda botar pra fora. A conversa era inconseqiiente, 0 moc;o profundamente ingenuD, Lucio fkava ate chateado com a lengalenga de cara que se enterra e quer dar uma de inocente. Ja estava meio aporrinhado com aqui-10 tudo, quando 0 mo<;o come<;ou a dizer alguma coisa que fazia sentido e Ihe interessava.

- Um dos policiais, um tal de Moretti, chegou a me levar num iate, pra ver como ia enriquecer. Minha func;ao era dirigir uma lancha que saia de noite de uma enseada em Jacarepagua, perto da ilha dos Pescadores. Ele sabia que fui ajudante de pratico. Entrava na lancha, ficava esperando. Outros caras que Moretti mandava apareciam, com a carro cheio de garotas. Elas subiam pra bordo, seguia na dire<;ao do iate, ancorado pros lados do Recreio dos Bandeirantes. No iate estavam os ricac;os, cuca cheia de entorpecentes. La,

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faziam as farras. Esperava pra trazer 0 mulherio de volta. Urn careta do. iate ficou rnuito IOllco uma noite, sacou da maquina, fez disparos. Duas pequenas foram baleadas e CalralTI na agua. Na escuridao nao deu pra procurar. Peguei as outras, umas quatro Oll cinco, nao me len1bro direito, viemos embora. Uma semana nao se falou no acidente. De­pois soube que Moretti foi em cima do cara, exigiu uma grana violenta. 0 cara nao teve como escapar. Ai, sabe a que 0 ricac;o exigiu?

o magricela para a conversa. Olba Lucio Flavio, sur· preso com 0 curso dos acontecimentos:

- Sabe 0 que 0 puto do burgues exigiu de Moretti? Que me fizesse desaparecer, pois de qualquer forma era uma testemunha. E nao queria dormir com problemas. 0 proprio Moretti me contou essa historia. Outros caretas que trabalba­vam de gars;om no iate confirmaram. Comecei a me agiien. tar. Moretti sugeriu que fosse pra bem longe. Uma grana no bolso era 0 suficiente. 0 rica<;o nao achou is so legal. Queria minha cabep. E Moretti achava isso absurdo. Dai em diante 0 iate deixou de funcionar no Recreio dos Ban­deirantes, nao sei pra onde foi. Um dia ia saindo da pensao da Rua do Catete, dois sujeitos me peitaram. A bobagem deles foi perguntar se era Nelson Caveira. Disse que nao, mas dei as dicas de um tipo que conhecia com esse apelido. Ficaram desconcertados, tratei de tomar urn taxi.

- Tem certeza que era gente de Moretti? - Como tenho, chapa! Ouve so 0 resto da novela.

Me mandei pra Copacahana, onde havia uns acertos a fazer com duas doidivanas. Me instalei por la numa boa. Depois a gente foi tomar uns chopes, que nesse tempo ainda tinha uma erva. Os mesrnos caras apareceram e movimentaram as maquinas. Sorte minha que nao eram bons de gatilho. Houve corre-corre, pega daqui, pega dali, aproveitei a confusao pra desaparecer. Fui passar uns tempos na casa da mae, em Ni-10polis. Olha que aquilo e longe que nao e brincadeira. Um dia de manha hatem na porta. Vou ahrir. Sabe quem era? Moretti. Queria levar urn papo leal, como costuma dizer. Contou que eu estava na mira de uma porc;ao de caretas pagos pelo rica<;o do iate. A ordem era sumir comigo do mapa. 0 ricac;o estava tendo insonia, porque eu continuava vivo. E quanto mais tinha insonia, mais dinheiro passava aos profissionais para que me apagassem. Ai 0 Moretti me fez uma proposta do cacete. Me dava quinze mil pra deixar minha foto, com nome e enderec;o, aparecer nos jornais, como

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se tivesse morrido. Disse que isso era loucura, porque se 0

tal ricac,;;o descobrisse a trans a, entao e que tava mal, tanto de quanto eu. De qualquer forma terminei concordando, porque quinze mil DaD e soma que se despreze. Peguei na nota. So que de nao deu de uma vez. Recebi cinco mil, em seguida mais quatro e as seis restantes urn mes mais tarde. Sinceramente que nao dava pra entender aquilo tudo. A.s vezes ficava deitado, pensando naquela maluquice do Moretti. Mas aconteceu que na verdade nao se tratava de maluquice nenhuma. Os jornais safram com minha foto. Pra todos as efeitos tinha morrido numa troea de tiros com desconhecidos. 0 corpo, encontrado na Barra da Tijuca. Urn vizinho da velha, chato e bisbilhoteiro, apareceu com 0 jor­nal e deu ulna confusao tremenda. A mae queria it nas reda­c;5es, dizer que era tudo uma loucura, nao tinha morrido nem nada. Uma luta pra tirar a cis rna da velha. Expliquei que jornal era doidice. Jornalista diz coisas que nao faz sentido. Quem acredita, termina lele da cuca. E, assim na brincadeira, a velha acabou aceitando que era algum engano, porque de fato eu estava vivo. Acontece que esqueci da' minha morte e fui resolver uns casOs pra velha na cidade. Perto do Ministerio do Trabalho, na Avenida Antonio Car­los, urn cara alto e gordo me chamou.

Voce e Nelson Caveira? Sou, por que? Ta preso. Foi metendo as algemas e puxando pro lado da

avenida, onde tava a camioneta da pollcia. o que e que fiz?

- Nao interessa. Vai ter muito tempo pra saber. - Entrei na viatura 'e come<;amos a rod~r. Me levaram

por ruas que nunea tinha passado, subimos e descemos la­deiras. Entendi que ainda estavam procurando outro cara qualquet. Mas nao me atrevi a perguntar. Tava com uma vontade doida de urinar e entao pedi pra ir a urn banheiro. Mandaram que saltasse e urinasse perto do carro.

Nada de truques, senao acabo contigo aqui mes­lllO! - amea~ava a gordao.

- Entramos num patio cimentado. Saltamos e vi que era uma delegacia de suburbio. Urn predio com as paredes descascando. Pass amos par uma porta baixa, descemos uma escada e saimos finalmente numa pequena sala. Urn pouco maior do que isto aqui. Havia uma mesa, urn sujeito careca e urn velhote de pe. 0 velhote tava todo de branco e segu-

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rava 0 chapeu igualmente branco, com uma £ita preta. Em­purraram-me pra cadeira. 0 gordao prendeu a algema num gancho na parede.

_ Pronto, doutor. Tai 0 homem! _ Foi tudo que 0 policial disse e desapareceu. 0 ve­

Ihote de bran co voltou-se pra mim e foi dizendo: - E esse canalha, mesmo. _ Sinceramente como nao tava manjando coisa algu­

rna. Nunca vira aquele velhote. E ele apontava para mim e me acusava. 0 delegado leu a queixa, relatando 0 assalto que praticara contra 0 vdhote. Segundo ele, apareci no iate, tarde da noite, roubara cinquenta mil, mais objetos de valor. Ao ser descoberto, teria puxado do revolver e disparado. Os disparos foram atingir duas mo~as. Elas cairam na agua e nao mais apareceram. Nao apresentou queixa as autoridades, no dia imediato, porque fora acometido de uma crise ner­vosa, com i1nplica~6es cardiacas, e so mente tres dias depois p6de cOlTIunicar-se com a policia, 0 que fez, mostrava a delegado a data e os termos do documento. Posteriormente, ai ja era 0 delegado falando, os corpos de duas menores foram de fato encontrados perto da restinga de Marambaia. Uma foi identificada como sendo Paula Beatriz Sanchez e a outra Stela Berlley. As duas haviam recebido disparos de armas de fogo nas costas, provavelmente revolver calibre 32.

_ Puxa, que rolo! Eo que disse ao delegado? - per­guntou Lucio Flavio.

_ Foi ai que a coisa se complicou. Como havia rece­bido dinheiro de Moretti, fiquei em duvida. Nao sabia se contava tudo direitinho, como tinha ocorrido, ou se ficava calado. Terminei ficando calado, porque sinceramente nao podia fazer ideia de ate onde aquele velhote queria chegar. o delegado come~ou 0 interrogatorio, 0 vdhote se despe­diu, com muita educa<;:ao. Saiu dizendo ser contra humilhar quem quer que fosse, mas era preciso que se fizesse aquila, nao propriamente pelo dinheiro, mas pelas duas mo~as que se foram do mundo, culpa de urn criminoso que nao merecia piedade. 0 delegado tava tao impressionado com 0 velhote que foi ate a parta. Voltou, sentou-se, perguntau caisas que nao sabia responder. Compreendi estar profundamente enro­lado. Tao enrolado que nao ousava pronunciar 0 nome de lvloretti. 0 delegado mostrava notas de despesas que tinha feito em certos lug ares e algumas delas eram verdadeiras. S6 que as cantas haviam sido pagas nao com as tais cin-

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qiienta mil e, sim, com as quinze mil que Moretti me deu, de tr~s etapas.

- E 0 delegado acusava voc~ como responsavel pela morte das mulheres? - quis saber Lucio. - Acreditou que elas tavam so visitando 0 velhote no iate?

- Claro, cara. Nao tinha a menor duvida de que era a criminoso. Latrodnio, como escreveu. Matou pra roubar. Fiquei tao apavorado com aquilo tudo que nao conseguia arrumar as ide:ias. Ai 0 homem chamou a escrivao. Me ne­guei a confirmar ter sido 0 matador das pequenas. Disse que tava havendo um bacanal por la, que era encarregado de pegar as mulheres na lancha de prefixo PPR-18. Respondeu ter feito levantamento dos registros de lanchas e nao tinha nenhuma com 0 tal prefixo. Que eu tava mentindo. Segundo ele, eu deveria tel' chegado ao iate num barco de pesca qualquer, junto com tres au quatro comparsas. Entrei no momenta em que a vitima festejava 0 inicio de sua excursao pelo AtMntico e provoquei todo aquele escarceu. 0 escrivao preparou-se para iniciar 0 depoimento mas me recusei. Me puxaram para outra sala. Os tipos abrutalhados me arran-' caram as roupas. Ligaram um gravador profissional e foram dizendo:

- Aqui tu eonfessa 0 que se quiser. - 0 primeiro deles me deu uma pancada no est6mago,

o segundo torceu-me 0 brac;:o. Disse que so precisava do direito para colocar a assinatura no documento. Mesma assim ainda resisti. Me botaram no pau-de-arara. Fiquei pendura­do como urn porco. Acendiam as cigarros e me queimavam. Vi que era besteira nao fazer 0 que desejavam. Comecei a falar e a concordar. Depois disso e do julgamento, aqui estoll.

Nelson Caveira terminou a hist6ria, cruzou as bra~os, como se sentisse frio. Lucio olhava-o em sil~ncio. Acendeu urn cigarro, aproximou-se.

- Quer dizer que foi verdadeiro filme de horror! Nelson Caveira encarou-o, sempre serio, tosto chupado.

Lucio fazia ar de risa, repetia: - Drua tremenda aventura! Como nos romances! E, sem que Nelson Caveira esperasse, saltou sobre ele,

furiosamente, desferindo socos e pontapes. A principio 0

magricela nao se defendeu, depois passou a reagir, embora de pouco adiantasse. Lucio era mais forte e mais agiL Quando a briga terminou, Nelson Caveira estava com a boca quebra­da, 0 sangue escorrendo dos beic;:os.

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- Fica sabendo que comigo nao se brinea. Nelson Caveira olhava Lucio, ouvia 0 que estava di­

zenda, lnas parecia nao entender. - Nao tou inventando nada, cara. Qllal a interesse?

Contei 0 que se passou. Por que peguei tantos anos? Lucio berrou de novo que bastava de papo. Sentou-se

num canto da cela, voltou a folhear as revistas. Na verdade nao estava sequer venda as fotografias em cores. 0 pensa­mento rondava os passos de Moretti. Estava no predio da Rua Marques de Abrantes, onde 0 Karmann·Ghia parou. Acompanhava as idas e vindas de Ligia, sempre com muitas novidades. Seguia Liece e 0 proprio Klauss, que teria de desvendar tudo aquilo. Se Nelson Caveira tinha vindo com o objetivo de amendronta-lo, era tolice da parte de Moretti. Nao se assustava a toa, devia saber disso. E 0 que Moretti e Bechara nao sabiam e que Liece e Nijini iam continual' cobrando as dividas enquanto estivesse no presIdio. Pela ordem faltava ajustar as ponteiros com 0 japones Hiroito, Rosendo Assunc;:ao e, finalmente, com 0 homem de terno escuro que era 132.

"Mas esse vou deixar pOl' ultimo. Quando pensar que esqueci. Depois que fizer 0 que deve fazeI'. Al vira 0 ajuste. Vera que nao perdeu pOl' esperar."

Olha de novo Nelson Caveira, eneolhido no canto, beic;:os inchados. Ouve toques de apitos, a sineta e os guardas que apareeem. Abrem a cela. Um deles diz que 0 almoc;:o seria no proprio restaurante. Lucio passa as maos nos cabe­los. Nelson Caveira se prepara para ir mas urn dos guardas o empurra de lado. Lucio estranha 0 tratamento, preocupa­se em saber a que conduziria tudo aquilo. Caminharam pela galeria, Lucio entre as guardas. Entraram Dum restaurante que nao era dos prisioneiros comuns. Numa das mesas havia tr~s homens. Um deles era vermelho e forte. Sentou-se e 0

homem vermelho perguntou, sem qualquer rodeio: - Desde quando tem ligac;:6es com Moretti? Lucio £icou surpreso com aquela seguran~a, com aque­

les desconhecidos que ali estavam, fazendo perguntas fora de hora.

- Nao sei de quem ta falando. o moreno magro, de colarinho duro, explicou: - Nos somos da Polfcia Federal. Tamos interessados

em saber do envolvimento de uns tantos policiais. Vai haver uma limpeza geral na polfcia. Se puder ajudar, sera de gran­de valia ao nosso trabalho.

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- Talvez pessa, mas nao no momento - responde Lucio, - Nao nego que tenha liga<;6es com Moretti, mas eu proprio nao sei a que elas conduzem. Por enquanto 0

que posso dizer e que tenho sido uma especie de vltima dele.

Vitima? - diz 0 branco. Certo. Acha por exemplo - era 0 moreno, de colarinho

duro - que Moretti tenha liga<;6es com 0 delegado Bechara? - DiHcil dizer. Bechara ainda e mais esperto que

Moretti. Vi Bechara uma vez, quando fui espancado duran­te urn interrogat6rio. De hi pra ca tenho apenas ouvido falar dele.

o polidal moreno explica a Lucio Flavio que suas in­formac:;;6es poderiam ajudar a corrigir a sistema, havia muita gente viciada, precisando ser mudada.

- E preciso acabar com ° barbarislTIO nas pris6es diz 0 terceiro sujeito que pouco falava.

-. - Principalmente nas delegacias - acentua Lucio. - Dureza com crirninoso tern de haver - afirma 0

branco -, mas ern outros termos. Tortura nao resolve nada. o almoc:;;o e servido. Lucio aproveita tanto conforto,

esquece ate sua condi<;ao de sentenciado, 0 blusao listrado com 0 numero na altura do bolso, as grades de ferro fe­chando caminhos. Retorna a cela acompanhado pelos mes­mos policiais que 0 trouxermn. Nelson Caveira esta enCQ­lhido no canto. Lucio pega novamente as revistas, passa as paginas. Abri-las, olhar os jornais, e uma forma de divagar, raciocinar sobre as transas que 0 cercavarn, as desconheci­dos que vao aparecendo, cada urn com uma hist6ria. Uns falando lnuito, pelos cotovelos, como Nelson Caveira. Hist6-ria decorada, inventada, confusa e para confundir. Qutros fazendo perguntas, querendo saber coisas impossfveis. QuelTI seriam na realidade os tres homens que se diziam da Policia Federal? Como saber se estavam falando a verdade? Ii 0 que gostaria de descobrir. Mas nada se faz com press a na prisao. Mais cedo ou mais tarde saberia. No patio, na hora do banho de sol, no restaurante geral, poderia ficar sabendo. E nesse dia de tantas surpresas, Lucio terminou adorme­cendo, pensamento fixo em Nelson Caveira, que podia tentar uma reac:;;ao. Por is so dormiu segurando 0 garfo que conse­guira trazer do restaurante. E so fiuito tarde, quando as apitos trinaranl novamente, abriu as olhos e viu que 0

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companheiro continuava acocorado no canto, como se tivesse virado estatua. .

Sabia que dali pra £rente aquele homem era seu inimi, go. Ninguem bate impunemente em outro numa eela. A cobran<;a sera feita. No dia seguinte, uma semana depois, dais anos. Nao se esquece. Na primeira oportunidade, 0 re­vide. Era nisso que Nelson Caveira pensava. Era assim com todos. Com ele proprio.

A noite que caiu sabre a prisao era igual a toclas as outras. Sem estrelas, sen1. ventos. E, entao, teve receio de adormecer. A vontade era desculpar-se com Nelson Caveira, mas is so estava fora de cogitac;;ao.

- 0 que ta feito nao pode ser desmanchado - dizia Padre. - N6s somos os destruidores do amor. S6 a morte nos acompanha. Por is so Ine aperfei~oo para morrer.

Figura estranha a de Padre. Sem dizer uma s6 palavra Lucio dividiu com Nelson Caveira os jornais e as revistas. Nao recusou. Abriu as folhas e com elas pos-se a forrar urn peda<;o do chao. Bastava para que soubesse nao ser total­mente seu inimigo. Aceitar aIguma coisa de outro, no car­cere, e prava de identidade e comprornetimento.

Mais tarde, no patio de sol, Nelson Caveira aceitaria urn cigarro. Os bei<;os estavam desinflamando, falava da comida que considerava ruim, do carcereiro que res111ungava como urn bruxo, do cara da limpeza que jogava agua na cela de prop6sito, do cozinheiro que tinha jeito de bicha e da bicha que estava 11a eela con1 cinco detentos. Lucio olivia 0 papa sinuoso de Caveira e, pOlleD a pOlleD, ia notanda que companheiros antigos, de outros tenlpOS, 0 evitavan1. Pas­savam por ele sen} qualquer a10, COlna se nao 0 estivessem vendo. Foi por isso que segurou Piolho de Cobra, urn negrao alto e magro, que estivera 11a 11ha Grande. SentaralTI-Se junto do muro, Piolho explicou 0 motivo do gelo.

- Tu tei entrando numa errada, bicho. Transar conl as caras do Esquadrao da Morte aqui dentro nao cola.

Ai Lucio foi sabendo exatamente a que queria. - Disseram ser da Policia Federal. - Conversa, 6 meu. Vai par lnim. Tou nesta lllercia h.1

cinco allOS. Esses caras sao vivos. Aproveitaram que tu su­miu daqui Uln tempao. E 56 que rem botar a mao no Moretti por dissidencia. Morou? Nada alem disso. Ii briga entre eles. Moretti s6 apaga 0 cara por motivo de £or<;a maior. Eles nao: e ali, pao, pao, queijo, queijo.

- Diz pro pessoal que nao transo com eles. Me cha-

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maram, tive de ir. Ouvi 0 que tinham a dizer, fiquei na minha.

Certo. A gente sabe. Mas s6 a aproximaS;ao deles ja esquenta a cuca de todo mundo.

Os guardas chegaram, metralhadoras apontando, os sen­tenciados se levantaram, seguiram para as galerias. Era a rotina exasperante.

Na visita do fim de semana Lucio viu a mae. 0 rosto gordo e sofrido; viu 0 pai, viu Nadja, sempre bonita. E no dia seguinte, com 0 advogado, viu Janice. Beijou-a atraves das grades. Janice chorou, ele se afligiu de magoa-la. 0 advogado prometia coisas impossiveis, Janice queria coisas impossiveis. S6 a mae nao the pedia mais nada. 0 pai, esse quase nem falava.

- Quando tiver homem voce passa a trabalhar menos. Tudo mentira. Tudo errado. Os fios de muitos carre­

telS se enleanclo, eOino a linha dos papagaios que empinava, das pipas que soltava na cumeeira da easa. Para os compar­sas hatia ° pe e gritava alto: sou 0 que sou e quem for frouxo nao me acompanha. Na verdade nao era nenhum valente, como ninguem e. Aventuras e peripecias penduram­se nos galhos da loucura. A primeira foi disparar no Volks­wagen, ten tar sumir da policia, capotar na Pra<;a Mau~i. Dai pra frente, sellS erros confundirmu-se con1 os de outras. 0 menino do dedo queimado.

- Quem jogou a bola de papel? Julio, foi voce? JUlio quieto. - Quem foi afinal? A culpa terminava sendo jogada em Lucio.

Nao fui eu. - Claro que foL Pique no castigo - dizia a pro­

fessora. Sempre assim. Sempre no castigo. Nao tinha paciencia

de auvir interrogat6rios. Punha os erros cometidos na mesa. S6 que os policiais traziam pilhas de erros dos outros, der­ramavam em cima.

Quantos carros ja roubou? - Nao sei. Uns duzentos, talvez. - Que e issa? Nao vern pra cima da gente com essa.

Nas nossas contas ja vai a quase quinhentos. o cinismo 0 revoltava. A vontade era estrangular os

canalhas, terminar com as risadas, conversas cretinas.

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- Te giienta, bandidao. Tu e sabido ]a fora. "Quantas vezes ja passara por ali. Quantas vezes a

roda teria de girar? Se J anaina me ajuda, Dondinho, por que sofro tanto? Nao vau sair vivo da prisao. Jamais sairel. Vou cair apunhalado pelas costas, 0 rosto no asfalto, a manba se perdendo para sempre dos meus olbos, como um veleiro que passa. S6 que eu e que passel."

- Onde tu guarda todo esse dinheiro? o tipo de cara melosa, catinguento como bode, segu­

rava-o pelos cabelos e puxava com a cara na mesa. Ai 0 outro clava urn murro na cabe<;a, 0 queixa estalava de encon­tro a madeira.

- Que e isso? 0 rapaz merece respeito. E um ban-didao de elevado QI.

- Ta virando vedeta. Toda hora os jornais falam dele. - Mas se fosse tao sabido nao se deixava agarrar. E aroda girava, madrugada afora, gosto de sangue na

boca, olhos vermeIhos de 6dio e humiIhas;ao, cabes;a esta­lando de dor.

"Como fugir das pas do moinho? Como interromper a correnteza do rio? Era impossivel. Aqueles homens disseram ser de Brasilia. Outros apareeeriam. Sempre as inova~oes, mas que no final significavam a me sma coisa. Como escapat de Nelson Caveira? Que hist6ria eta aquela, sem principio e sem fim? Um dia na solitaria, no descampado de silencio, patas do dio sem 1101ne arranhando as pedras, teve urn de­sejo que foi invadindo-lhe 0 corpo, dominando-o ate atingir os oIbas rasos de Ligriluas. Gostaria de ser urn dia, como esse, sem dono e sem companhia. It par af. Pelas caminhos e gramados. Petder-se onde 0 sol tira faiscas da areia, der­ram a ouro na grama e as borboletas ganham 0 mel e as flores."

Do alto de um caminhao, ja fazia tanto tempo, faIando na campanha eleitoral ao lado do pai, uma pors;ao de gente ouvindo, sentia-se 0 garoto mais feliz do mundo. S6 ficar um pouco maior, poder ser como os candidatos a deputado e senador. It de lugar em lugar dizendo coisas que interes­savam a muita gente. Tudo terminou numa farsa. Que escor· regao 0 arrastou ao fundo do abismo? Que amigos eram aqueIes que tinham a cara de Nelson Caveira, a subsetvien­cia de 132, 0 rosto cinico de Moretti, 0 olhar sofrido de Liece de Paula, a face trais;oeira de Ligia?

Todas essas 'recordas;6es de Lucio Flavio apagaram-se de repente. Corte vertical e rapido diante dos olhos. 0 acon­tecin1ento corriqueiro mas que traumatizava. As folhas de jornal e 0 proprio chao ao redor de Nelson Caveira se

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enchendo de sangue. CurVQu-se sabre ele, viu que tinha estourado as veias, queria morrer. Muito fraco, com tanto sangue perdido, Nelson Caveira implorava:

- Por favor, DaD charne os guardas. Me deixe morrer em paz,

- NaG quer mesma? - Nao, Fa<;:a isso por mim. Amanha vao saber que

me matei. Nao botarao a culpa em voce. Lucio volta para seu canto, enquanto 0 sangue vai

tomando os papeis impressos, corre nos trechos onde 0 chao apresentava desnfvel. Vira muita gente esquisita nas prisoes. Ninguem como Nelson Caveira, Um homem que falava a verdade e ninguem acreditava; que contava hist6rias reais mas era mesma que nada. Sua figura deixava a desejar, a cara DaD inspirava confian<;a. Como diziam os detetives: uma figura reles. Pe-de-chinelo, Nem de palet6 e gravata conse­guiria ser gente.

Quando pen sou que Nelson Caveira tinha morrido, ouviu a voz fraca, sUD1.ida, ja para alero da cela, afirmando:

- S6 the disse 0 que aconteceu. Como disse a eles, , Como disse ao juiz, Como venho dizendo esses anos todos, Agora 0 rica,o pode dormir sossegado. S6 eles estao com a verdade.

Naquela noite, Lucio nao sentiu vontade de dorm it . Chegou perto de Nelson Caveira, estava gelado. Ficou acor­dado, como se velasse 0 corpo cansado, cheio de feridas e n1agoas.

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Depois da morte de Nelson Caveira, Lucio foi trans fe­rido para outra cela, Era grande, com beliches de um lado. Havia cinco beliches e seis detentos. Cada noite faziam 0

revezarnento, isto e, UlTI dos seis dorroia no chao, sobre fo­lhas de jornal. Ate a chegada de Lucio esse regulamento nao era seguido a rise a . 0 mais fraeo dos prisioneiros, urn rapaz alourado, de nome Darci, levava a pior. As vezes fiea­va dais, tres dias dormindo no chao porque 0 mais valente - Tatuagem -- nao admitia ser relegado por um novato. N a verdade estavam naquela cela ha mais de dois anos, en­quanto que Darci nao tinha seis meses.

Na prisao esses costulTIeS sao lTIuito arraigados. 0 ve­terano tem direi tos adquiridos, 0 que chega, para galgar pontos a mais, deve fazer por si. Se e destemido, ganha os lTIelhores l1a porrada, sobe depressa, embora fique com mui­tos inimigos, Num descuido e espetado pelas costas, Os que sao bons no carteado tambem tem chance de projetar-se. Os que nao apresentam aptid5es, nem sao arruaceiros, devem ter born relacionamento, sob pena de serem transformados em bichas. Ser lingua-de-fogo na prisao independe da von­tade do cristao. Aceite ou 11aO 0 posto, se a maioria decide, e eleito bicha da cela. Se se recusa, lTIOrre depressa. A trans­forma~ao de urn ingenuo em bicha come~a com brincadeiras, Ieves alusoes, galhofa. Depois de uns dias 0 eara esta des­lTIoralizado. 0 bandidao segura-o por tnis, inicia-se 0 exer­dcio do sexo.

Darci, lnais fraco da cela, estava na escala~ao para ser bicha, A sorte foi aproximar-se de Lucio, A partir desse momenta passou a ter idoneidade. Uma noite, 56 para aca­bar com a esca1TIotea~ao de Tatuagem, Lucio resolveu fazer urn jogo novo.

- Nada de carteado. Nada de porrinha. E neg6cio

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pra macho. Abre-se a mao esquerda em cima daquela mesa. Com 0 canivete desfolhado se faz cinco exercfcios. 0 neg6-cio e espetar a lamina com fors;a, entre as dedas. Depois, aIbas vendados, crava-se 0 canivete pra valero Se pegar nurn dedo 0 cara vai sangrar como porco e perde a gaita. Quem topa?

Neg6cio arriscado e comigo, 6 meu - diz Ta-tuagem.

E assim que se fala. Quem vai mais? Os outros prisioneiros nao re.spondem. Limitam-se a

sorrir. Estava claro que se tratava de uma disputa entre as dois que tinham fama de mach6es. E Lucio, nesses momen­tos, gostava de exibir-se. Tatuagem tirou a canivete ameri­cano do balsa. 0 canivete, como eIe proprio dizia, era COD1-pleto. Uma lamina para cad a coisa. Urn saca-rolha e urn limpador de unhas.

- Com ele ja abri muito cadeado. Os tiras quiseram ficar con1 ele, mas acaba sempre na minha Inao.

Se a conversa se alongava, Tatuagem falava das suas perversidades e imundfcies.

- A lamina maior corneu as tripas de quatro caras safados. Rasgou 0 rabo de uma puta assanhada, espetou urn carneiro no olho. 0 bicho saltou na minha dire<;:ao e nao sei por que terminei ctavando ele. Precisavam vet os pulos que urn carneiro sabe. dar.

Dizia essas coisas sempre com ar de riso, que Tatuagem era urn tipo asqueroso. As manchas de pele se alongavam pelos bra<;:os e pesco<;:o. U ns diziam que aquilo era pano, outros achavaln ser caceira braba. Tatuagem nao achava nada.

- Deve ser sifilis. Vida danada. Dormindo nas cal­<;adas, ern dma dos cuspos secas dos leprentos, comendo sobras, enrabando veados no Mangue pra ganhar uns troca­dos, piciricando com as donas na Lapa. Nao ha sangue que agiiente. Alem disso, muita cacha<;:a e fumo ordinario. Uma devassidao enorme. Duvido que deste mundo suba alguem pro ceu. Se subir, vai envenenar tudo que e de anjo la em cima. Ruindade no sangue e merda nas tripas.

Ria novamente, que Tatuagem era urn tipa viI. Dentes cobertos de nicotina, pele palida, olhos esverdeados, quase tanto quanto os de Lucio. Nunca fazia totalmente a barba. Era urn relaxado. 0 macacao que a penitenciaria clava estava sempre sujo e arrebentado. Sentava nUIn canto da cela, fkava urn tempao com 0 declo no nariz. Sujeito nojento,

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que os outros evitavam. Tatuagem DaD tomava banho, a DaD

ser quando era de mangueira, esguichando para dentro das celas. Mesmo assim nao se esfregava. Molhava-se apenas. Por is so tinha inhaca dos infernos. Nos dias quentes 0 fedor que exalava era inCOlTIocio. Ninguem se atrevia a reclamar. Matara inumeras pessoas, participara de alguns assaltos, fora autor, junto com mais tres, do sequestra de urn menina, estuprou uma garotinha de nove anos e nunca soube quem fcram as pais ou parentes.

- Sou urn perdido no planet a Terra. 0 doutor juiz, que e homem de leitura, acertou. Disse que sou uma n6doa. Alguma coisa que agarra e nao solta. Assim como esta tatuagem.

Abria 0 blusao listrado, mostrava a enorme pintura no peito. Vmas pedras, uma cruz e uma cobra. Se perguntavan1 o que significava, nao sabia explicar.

- Sei la. A mulher que fez is so era uma velha maluca. Cobrou uma nota pra me pintar todo.

Levantava 0 blusao, Inostrava as costas, onde havia ou­tras tatuagens.

- Sou uma especie de quadro sem moldura. Pra todo mundo olhar.

Ria cada vez mais, ate que Juliao Beto se aporrinhava e come<;:avam a discutir. J uliao era urn cabra forte, que Tatuagem respeitava. Quando Juliao se calava, ficava rindo. Olhava fixamente os companheiros e ria. Foi rindo que come<;ou a mostrar 0 canivete a Lucio. Ia abrinda as lami­nas, contando hist6rias que tad os as quatro sabiam de cor e salteado. Num gesto rapido Lucio tomou 0 canivete. Ta­tuagem ficou serio. A surpresa 0 deixou p,llido. Ninguem antes tivera semelhante coragem. Ai valtou a tir. Lucio pas a mao esquerda sobre a mesa, praticou cinco vezes, estendeu o canivete a Tatuagem.

- Agora vamos come<;:ar. Juliao Beto se encarrega de botar a venda nos olhos.

- Quem sai? - Vamos disputar cara au coroa. Juliao Beto joga a moeda. - Cara! E a tua vez. Tatuagem nao se mostra atemorizado. Lucio torna a

explicar. - TelTI de cravar com rapidez, senao nao vale. - Pode deixar, 6 lueu! E cravou rapidamente a lamina por entre os dedos. E

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fez mais: cravou nos dais sentidos - para frente e para tnis. Lucio nunea ten tara 0 jogo na ordem inversa e tinha UIU SenhOl" concorrente. JulHio Beta ajustou bern a venda, a lamina pontilhou por cima dos dedos, como agulha de maquina enfiando linha de cor num bordado. E retornou, fazendo 0 meSilla que Tatuagen1.

- Agora vamos mudar de mao - repetiu Lucio. - Ora se vamos! De novo Juliao Beto joga a moeda. Os olhos voltados

para 0 chao. - Cara, Dutra vez! Tatuagem pegou 0 canivete. Juliao ajustou a venda. A

Hhnina cravou com forc;a na madeira e golpeou fundo 0 declo media. Ele gemeu, 0 sangue escorria.

- E 0 que te disse. Nada de chamar gente de fora. Se resolve a coisa por aqui.

- E eu sou de mijar nas calc,:as? o sangue pingava. As vendas foram guardadas. Lucio

sentia certa satisfac;ao. Estava eleito 0 machao da cela. Arre~ pendia-se de nao tet apostado 0 canivete.

- Quem ganhar fica com ele. Mas tinha um plano melhor. Era s6 botar a cuca para

funcionar. Ulna hora depois 0 sangue continuava a escorrer do ferimento. Lucio disse:

- Hemorragia nlata, cara. Se nao det urn jeite, nao abrir 0 berreiro pros tiras, vai embora. Terno de madeira, nao demora lTIuitO.

- Que e isso, chapa! Vai azarar pra outro lado. - Se tu quiser dou um jeito nisso tambem. S6 que

vai custar alguma coisa. Servic;o medico ta caro. Os presos atentos ao desenrolar dos acontecimentos.

Sentaram-se no chao, recostados as paredes, nao conversa­vam. Olhavam Tatuagenl sangrando, olhavam Lucio conl suas propostas surpreendentes.

Topa meSlTIO a negocio? - E 0 jeito. - Entao vamos fechar. Juliao Beto e testemunha. Fac,:o

essa sangueira parar num minuto. Vai doer. Neg6cio pra macho.

Se nao parar? Tu carta meu dedo. Se parar, fico com a canivete.

Certo? Tatuagem 11aO gostou. Perdera no jogo e agora apostar

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o canivete era a maximo. Nao estava num dia de sorte. Mas nao havia como recusar, com tanto sangue escorrendo .

- Topo. Lucio pegou 0 canivete, abriu a lalTIina maior, acendeu

o isqueiro de Darci, esquentou-a. Em brasa, segurou 0 dedo ferido.

- Agiiente firme, chapa. E pra leao. Te avisei. Calcou a lamina no corte. Tatuagem nao chegou a gri­

tar mas soltou urn utro de bicho ferido. 0 policial chegou diante do gradeado, nada havia para desconfiar. Em minutos o dedo comec,:ou a inchar.

- Tao cedo 11aO vai mexer com a mao. Mas de hem or­ragia tu nao morre.

Fechou 0 canivete, colocou-o no balsa. Tatuagem havia parado de rir. Os olhos avermelharam de tanta dor e per­cebia-se urn certo 6dio congestionando-lhe 0 rosto magro, com grandes manchas de pano. Nao admitia ser derrotado e desta vez 0 fora totalmente. Lucio recostou-se a parede, como os outros, Hcou brincando com as laminas. Tatuagem olhava. Intimamente estava inconformado com aquilo. Nao ia percler assim, senl. mais nem menos. Lucio sabia disso e nao mais perderia 0 parceiro de vista. Nos jogos de carteado, no banho de sol, no restaurante. Qualquer descuido seria bastante para dar 0 bote.

No dia em que Lucio fez a cauterizac,:ao no dedo de Tatuagem, uma mulher apareceu no presldio, querendo vi­sid-Io. 0 policial que mantinha dialogo com os presos foi avisa-lo. Disse que nao poderia ve-Ia. No maximo receberia o que tinha trazido. Lucio ficou sabendo que a mulher era morena, alta, cabelos compridos. Nao sabia de quem se tra­tava. Mais tarde 0 policial apareceu com um livro. Eviden­temente que 0 volume passara pelo setor de fiscalizac,:ao. 0 embrulho estava desfeito, a carta aberta. Lucio tirou 0 papel do envelope. Leu e ficou sem entender nada. Nao havia du­vida que era coisa de Moretti ou de 132. Subiu para a cama, ficou olhando aquele livro encadernado. Olhava 0 livro e a carta. Alguma mensagem deveria haver ali. Faltava perspid­cia para descobri-Ia. E comec,:ou a desmontar a encaderna~ao. Desmanchou a primeira capa, ate chegar ao papelao. Na se­gunda encontrou 0 bilhete. Era de Nijini. A mulher morena chamava-se Brigida e a mensagem dizia respeito a sua fuga que estava sendo coordenada. Seria no dia do julgamento do 2.° Tribunal do Juri, na rua do presidio. S6 ai Lucio lembrou estar h3: mais de tres meses na prisao, os jornais

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anunciando 0 julgamento pela morte de Armandinho e Mar­co Aurelio, mais 0 assalto ao banco de Luziania. Ficava pen­sando no plano de Nijini. Sentia orgulho daquele irmao que tomara 0 mesmo caminho desesperado. A gente e de outro barro. Vinho de outra pipa, como ouvia a mae dizendo. Nao nos ll1isturamos. Somas 0 que somas com distint;ao. Fac;;a bern 0 que tiver de fazer. E isso, Tatuagem. Sou 0 melhor. E pena que talvez seja sacrificado, nunl m0111ento de des­cuido. Quem e que nao se descuida? Mas nao tente me agredir de mau jeito. Senao acabo contigo.

Os pensamentos se multiplicando, olhos fixos na lil.m­pada mortic;;a que a qualquer momento apagaria, nos compa­nheiros sumidos nas outras camas. S6 Tatuagem encostado na parede, pernas estendidas nas folhas de jornal. Aquela noite nao dormiria. Lucio tambem nao. A mensagem do irmao viera alerta·lo ainda mais para a necessidade da fuga. Quem sabe nao seria a oportunidade de desaparecer do Rio, atravessar a fronteira, sait do pals, na direc;;ao do Mexico?

130

XI

A manha de sol encontrou Lucio Flavio com muita disposi<;:ao. Os fragmentos da capa do livro escondeu dentro do colchao em que estava deitado. 0 bilhete, mastigou e engoliu. Mas, com tada a alegria que pudesse tet, a situ a­c;;ao na cela, com sete homens, era deprimente. Num canto, sem qualquer prote<;:ao, estava a boca-de-boi e, ao lado, a pequena pia. Ali, eles todos se serviam. Quando era a vez de Darci, Tatuagem ficava dizendo brincadeiras e os outros ajudando nas molecagens. 0 que menos participava era Ju­liao Beto. Antes da chegada de Lucio a vida para Darci esta­va se tornando insuportavel. Tatuagem insistia em transfor­ma-lo em bicba. E, como nao cedesse, era submetido a uma serie de pequenas torturas. A primeira delas come<;:ava exa­tamente de manha. Nao deixava Darci acocorar-se na boca­de-boi, impedia que urinasse no chao. Diante da afli<;:ao do prisioneiro, Tatuagem fazia mesuras. Ficava flUID canto, 0

pau de fora, os comparsas 0 empurrando. - Bota essa boquinha aqui. Que tem isso? Ate pa­

rece que vai set 0 primeiro. Uma vez, no auge do desespero, Darci tentou chamar

os guardas. Bateu nas grades, apareceram dois policiais. Nao se encorajou a falar.

- Foi tua sorte - disse Leitiio Bola, um crioulo re­dondo e de olhar amortecido, que fazia parelha com Tatua­gem. - Da outro ala que a gente te agarra e te come no peito. Quero ver quem vai impedir.

Nessas coisas e que pensava Darci, venda 0 sol cIarear o patio da prisao. Lucio tambem acompanhava a chegada do sol mas s6 pensava em Nijini, na transa da fuga que nao tardaria. Tatuagem estava no mesmo lugar. Darci olhava-o estirado no chao, tinha esperan<;:a de que 0 ferimento pio­rasse, desse tetano, ele morresse. Nunca pensara em querer

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a morte de alguem. No carcere esse e um desejo comum. Para as que sao desagrad::iveis, inoportunos, s6 a morte. Leitao Bola, igualmente inconveniente, tinha seus momen­tos de sobriedade. A primeira qualidade era a de falar pouco. Tatuagem nao ficava calado. Diversas vezes brigara com Juliao Beto por causa de tanta fala~ao.

Chico Capeta era 0 que chamavam Vov6. Tinha mais de cinqiienta anos e Lucio 0 considerava completamente louco. Costumava equilibrar a caixa de f6sforos numa greta da parede, falava e ria. Se percebia os olhares de goza~ao, encolhia-se. Nunca ninguem soube 0 que de fato dizia para a caixa. Castigo de Mae, urn moreno forte, car a redonda, era caladao. 0 problema que 0 indispunha com os demais era rancar alto. Depois do almo<;o, encostava-se na parede, roncava COlna ·um porco. Tatuagem tocava-o com 0 pe, ca­nivete aberto na mao.

- Chega de zuada, mo~o. Isso aqui nao e chiqueiro. Castigo de Mae acordava, olhava Tatuagem, olhava os

outros. Nada podia fazer. Um gesto errado, Tatuagem 0 cor­taria. De maos limpas, Lucio nao sabia 0 que poderia aeon:. teeer com ele. Fez inimizades, exagerou na demonstra<;ao de machismo. Castigo de Mae tinha 0 apelido que merecia. Dos inumeros desmandos praticados, 0 que mais 0 ·marCDU foi 0

assassinato da mae. Num momento de zanga maior a velha apareceu na confusao, nao se conteve: matoli-a tambem.

Darci contemplava aqueles homens, com anos e anos de cadeia a cumprir. Chico Capeta, por exemplo. Jamais sairia do carcere. Passava dos cinqiienta e a pena era de no­venta e cinco. Castigo de Mae ia pelos cento e cinco anos de reclusao. Juliao Beto falava em termos de Uinta e cinco, Tatuagem, cento e' noventa.

- Sou h6spede perpetuo do governo. Me vingo dele comendo de gra~a e ocupando urn apartamento destes no centro da cidade. De vez em quando me levam para veranear na IIha, luas e coisa rapida. Sempre se encontra urn jeito de voltar. E ainda tenho guarda-costas. Uns tempos, tenta. ram me dar porrada. Mas um dia peguei 0 tira de jeito:

- Manera, cara, senao fodo tua alma aqui dentro mesmo. E pra mim vai tudo ficar na mais perfeita. Alguns ainda me sacaneiam mas a barra aliviou.

Darci cumpriria vinte anos. Estelionato e falencia frau­dulenta. Dois estrupfcios numa s6 jogada. Pes sima cartada. Quis ir lange demais? Talvez siro, talvez nao. As coisas se complicam para quem abre urn neg6cio. Os dias ruins tor-

132

nam-se mais longos do que os dias bons. As contas se avo· lumando, as cobran<;as, os dtulos no cartario, as notas nos jornais. Num aperreio maior, a doidice como tentativa de escapar ao cerco. Mercadorias vendidas pela metade do pre­~o, papeis assinados as pressas, 0 cheque falsificado. GraM­logos curvados sabre a caligrafia, lentes ajustantes, bocas abrindo-se e fechando-se na acusa~ao. 0 sogro esbravejando na sala. A mulher chorando, nao pelo que 0 pai dizia de Darci, mas par concordar COlU ele. De repente, como nas ma­gicas dos homens de fraque e cartola, 0 tapete verde e reti­rado aos seus pes. Os graf6logos, 0 sogro, a mulher, 0

gerente do banco e todos os policiais apontando 0 lugar onde deveria ficar. Entao via urn tipo semelhante a Tatua­gem erguendo os bra~os, arregalando os olhos, berrando, berrando. S6 que para felicidade sua nao podia ouvir os ber­ros do tipo e assim tolerava sua esquizofrenia. Quem era afinal aquele desconhecido que se mostrava tao exasperado com a situa~ao e apontava par baixo do tapete verde todo 0

lixo do mundo onde deveria afundar? E do chao agora sem o tapete saialn furna<;as brancas e vermelhas, e 0 tipo mais excitado erguia as bra<,;os, como se regesse a orquestra do inferno. Tudo como num pesadelo. Quando terminava de comer, se deitava en'} chna da mesa, a mae lendo urn livro enquanto esperava 0 pai. Um pretao 0 empurrava para den­tro do po~o das cobras. Agarrava-se e gritava. 0 pai chegava mas nao podia ve-Io. No dia seguinte, pelas zangas da mae, pelas reclama~6es, sabia que 0 pai voltara bebado. E talvez por isso foi ficando impressionado com tanta miseria e ten­tou fugir depressa demais dela. Afinal a miseria lhe acompa­nhava desde pequeno, muito antes de entender qualquer outra coisa.

- Por que deixa-Ia, de forma tao ingrata? - isso e outras verdades selD sentido era 0 que dizia 0 tipo pare­cido com Tatuagem, arregalando os olhos, saltando no meio daquela fumaceira colorida.

Se fosse lugar onde alguem pudesse ficar a s6s, muito teria Darci chorado de amargura, principalmente quando sabia estar com trinta e dais anos e ter vinte de pena a cumprir. Aos cinqiienta e dais anos naa ha nada mais a fazer. Olhava Chico Capeta, maos rudes e tremulas queren­do equilibrar a caixa de f6sforos numa greta. Tatuagem saca­neava com 0 velho. Tapava as gretas com sabao e papel rnolhado.

A manha ali estava, clara, ampla, Uln hiato em todo mal

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praticado. Darci ouve Lucio chamando Tatuagem. Dissipam­se as sonhos de urn passado nao Inuita distante.

- Ainda til vivo? - Ora se estou! Pronto pra autTa. Tatuagem Heou de pe, come~ou a cantarolar, a dan\=ar,

o dedo azulado para cima. Os presos que ainda dormiam nao gostaram daquilo, especialmente Leitao Bola. Lucio os rranqliilizava, dizendo que Tatuagem estava comemorando o novo dedo e a propria vida.

- 0 que se cleve fazer, minha gente, e comernorar. Tou sempre em festa. Quando nao puder mais me mexer, nem abrir os olhos, ainda assim tarei em festa. Sou a vida que se move e nao cleve haver tristeza. S6 as mottos sao tristes. Vamos viver bern a alegria pra se evitar uma pa de culpas.

- Estou gostando de ouvir a filosofia! - e Juliao Beto mexendo com Tatuagem.

o prisioneiro magro, de fiuitos panos se estendendo pelos bra~os e rosto, continuava imperturbavel, dan<;ancio, o dedo no ar, arroxeado e gordo.

- Minha 111ae que nao tive me clava conselhos; meu pai, que nUDea vi, corria atras de Inirn. Depois, todos na minha rua corriam a tras de mim. E de tan to correr parei aqui para descansar.

o patio era grande e ja estava apinhado de prisionei­ros. Formavam-se pequenas rodas, uns sentados no cimento, outros de pe. Os mais solitarios distanciavam-se. Era 0 unico Dl01nento em que urn preso podia de fato ficar so, sem ouvir conversas enfadonhas, sem ser solicitado a opinar, a parti­cipar de casos que nao the diziam respeito. Lucio abriu 0

livr~. A historia falava do aviador que tivera dificuldades com 0 aparelho a quinze mil metros de altura. Enquanto 0

aviao cafa, 0 hom.em pensava numa formula de evitar 0 de­sastre. Junto com 0 aviador estavam mais seis tripulantes. Ele pensava na sua situa~ao e no drama dos colegas. Mas na queda do aviao os colegas se dividem. Uns acham que 0

piloto fora precipitado, levantando vao sem urn exame mais denlorado da aeronave. Outros divergem par motivos ftJ:teis. Lucio se interessara pelo livro, desde que lera as prilneiras paginas, exatamente porque 0 autor retratava a drama de pessoas que se dizem amigas mas que, na hora da dificul­dade, nl0stram a verdadeira face. E pen sou em escrever urn livr~. Retrataria 0 comportamento de Ligia, de 132, de Mo­retti e Bechara, tao diferentes de Liece de Paula e Fernando

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c. 0., dispostos a morrer, se necessario fosse. Quando co­nheceu Fernando, namorando a irma Katia, nao imaginava que aquele rapaz magro fosse tao corajoso. E se lembrava . tambem de Fernando fantasiado de indio, penas verdes, amarelas e vermelhas enfeitando sua alegria, sapateando fe­bril diante da bateria do Cacique de Ramos.

- E carnaval. Vamos em frente. Nada de moleza. Lucio nao gostava da anima~ao. Quando ia ao baile

do Bonsucesso, era mais para conversar com as garotas. Vma delas - Monica - olhos tristes, cansava de dizer:

- Largue essa vida enos casaremos. Nao acredito em aventuras.

Lucio ouvia a conversa cla menina ajuizada, ficava sem ter 0 que dizer, pais era a propria aventura. Monica 0 bei­java e ele pedia mais cerveja. Ela falava de coisas vagas, que js nao tocavam mais a Lucio, fingia entender, 0 papo se alongava, tanto quanta 0 baile, com gente entrando e sain­do, mesas repletas, alegria e perfumes pairando no ar.

- Par que voce e assim malueo? Sorria. Cortava caminho. Prometia passeios por luga­

res que nunea vira. Monica nao se entusiasmava. o apito trina forte, ha urn rumor de passos e gestos.

Os presidiarios tornam a formar pequenos grupos. Os poli­ciais com as metralhadoras tom am posi<;:ao. E todos retor­nam as celas. Era a rotina desgastando os nervos. Lucio olha por cima do muro, nao clava para enxergar nada, a nao set, la longe, alguns casebres e a grama verde se estendendo. Quando 0 grupo chega ii. galeria, urn funcionario da adminis­tra~ao manda que 0 levem ii. diretoria. Os outros entram para a cela, Lucio Flavio continua. Sent a num banco com­prido, fica esperando. Metade da vida de urn prisioneiro ele perde esperando. E Lucio sabe 0 quanto e irritante esperar uma coisa que nem se sabe 0 que e. Deveriam ser dez horas, quando sentou no banco. Policiais entravam e salam e nin­guem 0 chamava. Pas sou da hora do almo~o e ninguem 0

chamava. Quando ja estava condicionado a ficar ali a tarde inteira, a noire inteira, mais a manha do dia seguinte, apa­receu um velhote, mandou entrar. 0 soldado baixo e forte dava guarda dentro da sala. 0 velhote sentou-se numa ca­deira girat6ria, perguntou se sabia pintar. A pergunta foi de tal forma surpreendente que sentiu as pernas fraquejar. Nun­ca tivera tal sensaC;ao. Nunca ninguem se ineomodara com isso. Nunca alguem 0 chamara para indagar do que sabia fazer. Era sempre para punir pelo que tinha feito.

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- Saber, nao sei! Tenho vontade de tentar. - E is so que queremos. o velhote fala do plano de conseguir ocupac;:ao artistica

para alguns prisioneiros. Os mais comportados e bem-dota­dos. A grande maioria e incapaz de qualquer coisa. Tern de comec;:ar de baixo. E Lucio ficou sabendo que nos proximos rneses a penitenciaria faria inaugurar urn salao de pintura, com trabalhos de diversos detentos. 0 que mais se desta­casse tetia premia em dinheiro, divulgat;ao em jornais, re­vistas e televisao.

Volta a cela, apaixonado com a ideia de tornar-se pin­tor. Encontra Tatuagem exibindo-se, como sempre. Os outros detentos sentados, ele se rebolando. Imitava a mulher que conhecera num cab are em Fortaleza. Lucio senta ao Iado de Darci, fica olhando a pantomima. Juliao Beto batia paI­mas, TatuagelTI fazia gestos efeminados, que provocavarn riso. Quando terminou, elogiaram-lhe os dotes artisticos. Tatuagem falava, falava e, 'pela disposic;:ao demonstrada, nao estava mais sentindo 0 dedo ferido.

Voce e do Ceara? Mais ou menos. Como mais ou menos? Dizem que foi I" que nasci. Mas me entendi mesmo

em Pernambuco. Ai vim tentar a vida no Rio. Todo mundo do nordeste vern pro Rio. Por que Tatuagem na~ viria?

Leitao Bola pergunta 0 que procurou fazer no Rio, quando chegou.

- Absolutamente nada. 0 mesmo que sempre fiz por Ia.

Lucio se enche da falac;:ao sem sentido, sobe para 0

beliche, fica idealizando 0 primeiro quadro que poderia pin­tar. Imagina 0 rosto de Dondinho, a porta do barraco no morro do Adeus. Dondinho de olhos amortecidos pela idade, a carapinha quase toda branca. Por tras do barraco, arvore que nao existia. Pega a caneta, risca 0 que- poderia ser 0 tra­balho inicial. So que em vez de oleo, iria exercitar-se com crayon. Tatuagem esbravejava, as colegas riam. Lucio memo­rizando os trac;:os de Dondinho.

Ocupado com a ideia do quadro, passou a tarde sem prestar rnuita atenc;ao nos companheiros. E estava tao longe que as conversas, assavios e palavroes nao 0 atingiam. Pela primeira vez experimentava urn novo sentido de liberdade. Poder evadir-se e hI ficar, misturando-se nas cores das tintas e da paisagem. 0 segundo quadro seria retratando Janice.

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A mulher que se dispusera a acompanha-lo em qualquer si­tuac;:ao. Nada de gestos medidos e calculados como Monica, nada de armadilhas iguais as que preparava Ligia.

- Essa sua angustia, esse espirito inquieto, pode set" falta de urn caminho adequado. Quem sabe nao estamos diante de urn futuro grande pintor?

Gostou daquele velhote da prisao. Como poderia en­contrar pes so a tao desprendida, num lugar COITIO a peniten­daria? Nao conseguia entender. 0 convite era a coisa mais importante que ja the acontecera.

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XII

o carcereiro veio avisar. Lucio deveria voltar a admi­nistrac;ao. Ali estava a mulher morena e alta, olhos besun· tados de cores. Nunca vira antes. Ela caminhou na sua di­re~ao, beijou-o. Aparentava Ulna intimidade que nao existia. Sentaram-se. A mulher retirou um pacote de cigarros, entre­gou a um dos policiais para ser examinado. 0 pacote foi desfeito e devolvido a ela. Falou de dona Zulma, de Katia, de seu Osvaldo. Os policiais distrairam-se com 0 caminhao· no patio. Ela diz que, numa das carteiras de cigarros, estava o plano que Moretti fizera. Levantou-se, beijou·o novamen­te, foi embora. Lucio ficou olhando. Indecisao de aceitar a continua~ao do jogo. Vontade de meter-se na sala que Ihe of ere cera a velhote, diante dos cavaletes e das telas. Retor­nou a cela preocupado com a fuga que estava organizada. Subiu para 0 beliche, deitou-se, olhos perdidos num ponto do teto, pensamento vago.

"Como parar aquela maldita roda? Se nao fugisse, com mais de oitenta anos de pena, apodreceria na prisao?"

Recordava a expressao do velhote, 0 riso franco, alegria de querer ajudar. Como desperdic;ar semelhante oportuni­dade? E como deixar as companheiros na mao? Que pen­saria Nijini? Que diriam Liece de Paula e Fernando C. O.? Lucio Flavio roendo a corda? A confusao aumentava, os olhos no ponto longinquo, duvida: prosseguir e permanecer. Agiientar aqueles pobres-diabos que grunhiam aos seus pes. Passar por cima das mesquinhezas como sempre fizera. Gal­gar a ponto mais alto. Fazer-se homem pelo esforc;o proprio. Gallhar a vida com 0 talento que sabia ter.

- Saber pintar nao sei. Tenho vontade de tentar. Bastava esse desejo para que tivesse a sua disposi<;ao

todo 0 material necessario. Muitos pintores nao contaram com a menor oportunidade e se fizeram. Alguns nao conse-

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guiam 0 dinheiro das tjntas, nem tinham compradores para os quadros. Mesmo assim sobreviveram. Van Gogh, Gauguin, entre outros. Tentava recordar os girassois de Van Gogh, que via nos livros. Os girass6is cresciam, ficavam do tarna­nho da cela, 0 amarelo das flores humanizando aquelas pa­redes encardidas. Lucio olbou 0 calendario por baixo da figu­ra de mulher nua. Dia 28. A data em que os policiais viriam, mandariam botar a melhar roupa. Entraria no camburao, seguiriam para 0 2.° Tribunal do Juri. Se adoecesse, poderia sustar a ida ao tribunal. Outros presos iriam. 0 camburiio seguiria na rota do assalto. Os companheiros atacando 0

carro inutilmente. E se nesse assalto algum deles morresse? Como se arranjaria depois? Como dormir com semelhante pesadelo? E se fosse 0 proprio Nijini, dando a vida para salva-Io? Que molecagem seria?

"Nao posso, bom velhote. Aroda nao pode parar. Vem atravessando ruas e pra~as, passani por cima de mim e COll­

tinuani, marcando nossa destrui~ao." Os olhos avermelharam. Em silencio, pos-se a chorar. - A gente mata tudo que ta ao nosso redor e depois

morre. Na verdade, so a morte existe. Me aperfeic;oo pra ela. Quero ta de bom aspecto quando chegar.

A ironica filosofia de Padre. 0 rosto magro, malares salientes, olhos crescendo por entre as grades de ferro. Essa a verdade que 0 esperava?Na sua caminhada, ladeira abaixo, o apelo do velhote com seus quadros, os apelos de Dondi­nho, com sua devQ(;;iio, seriam apenas acenas vagos, lenc;os sacudidos na prolongada despedida?

"Que manha: e esta, Deus, que oao me traz nenhuma esperan~a? Que confusao, no exato momenta da nova pos­sibilidade? "

Leu novamente 0 plano, acompanhou com atenc;ao 0

tra<;ado das ruas. Tatuagem chamava-o mas 11aO respondeu. Por que nao ser logo como ele, cujo unico problema era com a lei e com as adversarios na prisao? Tatuagem cantava e batia na caixa de fosforos, Juliao Beta ajudava no acompa­nhamento, voz de baixo profundo. E a cantoria ate que tinha momentos de bele~a, principalmente para Lucio, que estava dividido, partido ao meio. Nao havia como Sus tar a ac;ao de Moretti, Nijini, Liece e Fernando C. o. Nao tinha como explicar ao velhote que a conversa que tiveram fora perdi­da. Que estava perdido. Nao haveria 0 novo pintor. Tudo nao pas sara de um sonho. De oportunidade que chegara

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tarde delnais, quando a racla se agigantara e girava sozinha, sobre tudo e todos.

Na parte da tarde 0 velhote mandou chama-Io. Lucio estava triste com aquele relacionamento que duraria apenas alguns dias. 0 homem que poderia ser seu pai passou-Ihe o bra<;:o no ombro, foi andando com ele. Chegaram a uma sala onde havia carteiras, mesas, quadro-negro nas paredes, um aparelho de televisao, bandeiras e dois cavaletes. Num deles, a tela branca.

- E a partir daqui, meu jovem, que sua vida podera set totalmente modificada. Pense na ilnportancia disso.

o policial baixo e forte, que ja conhecera na vespera, estava de urn lado. 0 velhote de avental branco retirou-se. o policial ficou sentado dentro da sala, depois saiu. Lucio botou 0 avental, pegou a paleta, 0 pince!. Queria apenas falniliarizar-se con1 0 usc daqueles instrumentos. Os papeis de urn lado, tao grossos quanta cartolinas, tambem eralU para uso do pintor. Desdobrou 0 menor de!es, abriu sobre a mesa, pos-se a riscar. Pensou em muita coisa: na mae, no conjunto dos ex-combatentes onde pas sou boa parte da ju­ventude, na estupidez diante do pai de Marco Aurelio, no olhar triste do homem, na humildade que demonstrou ter:

- Matei seu filho. Nao vai voltar mais. E 0 que merecia.

o homem parado. Tudo que disse e que tinha pena. Muita pena.

- De ti, Lucio, que conheci urn garotinho. Do meli born Marco Aurelio que nao tornarei a vet. Mais cedo ou Inais tarde tetia de acontecer. Nao vou a policia. Eu e seu Osvaldo Lirio nao telnos lnuito a quem nos queixar. De­certa forma somos culpados.

Nao entendia como aquele hornern, aparentemente co~ mUlTI, fora capaz de dizer coisas que nao p6de mais esquecer. E agora, pensando no que poderia ser 0 primeiro quadro, ]a estava aquele rosto triste, olhos humildes. Fazia lembrar a ve!hinha de cara vermelha, que saltara do onibus recla-. lTIando, sacola cheia de compras:

- Desce todo muncio que vou queimar esta merda. Fora uma atitude verdadeiramente infantil e ridicula.

Como' pode fazer aquilo? Paulo de Paris animado s6 no co­n1e~0. Quando acendeu 0 isqueiro e retirou 0 tampao do 6leo, notou que estava em panico. Afinal Paulo de Paris era ou nao era macho? 0 motorista amea<;ou mata-Io. con1 uma

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barra de ferro. 0 cobrador desceu bufando atras. Mante­ve-os calmos na mira do 38.

- Levanta 0 capo, filho da puta. Vou te mostrar que no meu carro nao se bate.

o rnotorista obrigado a obedecer. 0 povo se avo luman­do na pra<;a, 0 trans ito interrompido. Surgiram as primeiras labaredas. Paulo de Paris sumiu. Outros companheiros que estaValTI na porta do Cine' Melo trataralU de desaparecer. Nao esperavam aque!a rea<;:ao de Lucio. 0 fogo aumentando por fora e dentro do 6nibus, carros que pararam perto, tra­tando de afastar-se, gente gritando, Lucio naque!e calor todo com 0 motorista e 0 cobrador na mira da arma:

- Urn movirnento e queimo os dois tambem. ElTI poucos momentos nao havia mais nada. Entrou

nUln bar, pediu urn conhaque. De 1a via 0 esqueleto enegre­cido do que fora 0 onibus. -Can1inhou para 0 carro COlTI 0

para-lama alnassacio, encontrou a velhota -com a sacola. Olhou-o apenas, sem nada·dizer. Mas era urn olhar de re­preensao. Como 0 da mae, que nao 0 queria ver na compa­nhia de desocupados, elementos de ma fama.

Tantas as figuras que Ihe vinharn it mente. Tantas e tao amargas, que nao sabia por onde comec;ar 0 esbo<;o. Entao pen sou numa gigantesca pa de moinho movendo-se e nos movimentos lentos, arrastando casas, arvores, pessoas, veicu10s e animais. Aroda demoniaca que nem 0 fogo, nern as· vendavais lograriam destruir. As pas enormes do imenso rnoinho se estenderiam para alem do horizonte, girariam envolvendo-se em nuvens, ha sarabanda de galharia maida como se toda a Terra estivesse sen do revolvida par aquele arada apocalfptico. Se conseguisse concretizar essa ideia, era alga de lnuito forte e que ° satisfazia. Come<;ou a riscar uma enorme roda de moinho. Quando 0 chamaram para 0 almo­c;o, foi corn arrependimento que parou. Temia que, ao voltar, ja estivesse sob outras influencias que nao aquela do primei­ro lTIOmento, que foi tambelTI a de uma revisao de erros e perversidades. Mais do que nunc a recordava-se do olhar tris­te do pai de Marco Aurelio:

- Tenho pena de ti, Lucio Flavio. Impossive! explicar itquele homem que 0 seu mundo

e 0 mundo de Marco Aurelio nao eram 0 mesmo em que se movia. Na planicie povoada de demonios, a morte nao exis­teo Sopra apenas urn vento forte, alastrando a incendio sabre a mata. Muitos desaparecem, sem do nem pena> para que outros tantos surjam, fustigando e fustigados. Tatuagem

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nao era mais gente. Bechara se transformara num diabo que criava situa~6es surpreendentes. Padre cultuava a morte com o carinho de quem rega plant a que necessita cuidados espe­ciais. E era aquele mundo que 0 pai de Marco Aurelio nao podia entender, que desejava transpor para a tela. Primeiro o esboc;o. Pas do moinho do inferno movendo-se. Cad a uma que se erguia no espa~o, derramando peixes do mar, bichos da f]oresta, homens e veiculos das cidades. E quando todos esses fragmentos cafam de uma pa, outra ja ia se erguendo do fundo da Terra, com pedac;os de rocha se esboroando, agua de rios encachoeiradas e 0 torveIinho de nuvens se enrolando no eixo central da maquina maldita. Esse 0 plano. Uma coisa que representasse a que realmente vivia. Urn quadro sem d6 nem pena. Com a furia que sentia nos olhos e nas maos.

Almoc;ou rapidamente. Nao aceitou sobremesa. Estava com pressa. Terrninou pedindo ao guarda para retornar a sala de estudos, no que foi atendido. E ]a ficou a tarde toda, rabiscando daqui e dali, apagando tudo e rasgando papeis. o velhote nao apareceu mais. De noite foi para a cela levan­do a folha rascunhada. Nao agradava. A roda do moinho era mais ou menos 0 que pens ava, porem faltava-Ihe grandeza. A grandeza apocaliptica, de coisa que sai do fundo da Terra, da raiz dos tempos.

- Somos a prirneira encarna~ao dos maus espfritos? E de onde esses demonios poderao ter vindo, senao das pas do moinho? Do fundo da Terra? Do corac;ao do fogo eterno ou das entranhas dos gelos milenares? Nao podia dormir. A duvida era a pr6pria roda do moinho, revolvendo-o. Fi­gado, cora«;ao e vfsceras lan<;ados para 0 ar, escorrendo das pas em movimento, perdendo-se na poeira do chao. E por que nao pintar exatamente isso? 0 moinho revolvendo as entranhas do homem gigantesco, do tamanho do mundo. 0 sono nao conseguia aproximar-se. Os menores rumores da prisao aos seus ouvidos. 0 born velho contente com 0 inte­resse de Lucio pela pintura. Lucio imaginando a alegria que a mae ia ter, 0 pai que era desenhista, a irma K:hia e Janice. Urn dia, quando estivesse bern apurado, nos trac;os e nas cores, tentaria retratar aquela expressao melanc6lica-dolarosa de Janice. Os cabelos lisos, olhos grandes, rosto macio como as peras. E dona Zulma? Que born quadro poderia dar. Olhos sofridos, perdidos na alegria que os filhos nao conse­guiram alcanc;:ar, no futuro que nao tiveram. Olhos resigna­dos com a realidade que os jornais anunciavam e mais ainda

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porque constatavam coisas que jamais jornal algum paderia denunciar.

- Meu pobre filho! 0 que e que tao fazendo contigo! o juiz levantando-se indignado, martelo de madeira

soando na mesa, 0 silencio se estendendo na sala do juri e a senten«;a 110 ar, COlTIa cap a lTIOrtuaria. COlTIa dona Zuln1a resistiu a tanta degradao;ao? Como teve animo de enfrentar a sarabanda das almas penadas?

- Minha n1ae ja teve no inferno. Me suportou e a Nijini Renata. Sen1 querer, sou a encarna<;ao de Satanas.

Os pensalnentos, aquela hara da madrugada, causavam­Jhe an·epios. Mas tudo isso aliava ao possante moinho, COlTI Ull1 eixo descomunal, firmado en1 traves descomunais, giran­do as pas do infinito. Ficava per to do lTIoinho, naa conseguia ver a parte superior da roda que voltava) confundindo-se na galharia das nuvens, no p6 dos ocasos. Era necessario saber a te que ponto a habilidade the permi dria concretizar em formas e cores aquela abstrac;ao deSCOlTIUnal. Pensava no amarelo e no azul, mas 0 roxo-ensangiientado 0 atrafa.

- Existiria roxo-ensangiientado? - Os tons represen tam a in1aginac;ao do pin tor, -sua

sensibilidade. Quanto mais sutilezas de tons pudesse desco­brir, tanto maior seriam suas possibilidades. 0 pai the disse-1'a isso U111a vez, fa lando a respeito de Ticiano.

Vagos ruidos dentro da cela interrompem-Ihe 0 sonho COlD as cores de urn mundo surrealista. Por ll1ais que tentas­se ver quen1 se n10via, era impossfvel. Teria de erguer-se e asshn seria visto talnben'1. A vida na prisao esta minada de segredos. Desvenda-Ios in1plica muitas amarguras. Seria Ta­tuagem tentando sub meter Darci? Seria Juliao Beto? Ou sin1ples111ente Leitao Bola procurando roubar cigarros?

Run10r lev~, imperceptfvel a ouvidos que nao estives­sem habituados a tanto silencio. Patas de gato estendendo museu los na cac;a dos ratos. E1TI dado lTIOlnento, toda a cau­tela de gestos abandonada. Urn ranger de pontas agudas na superfkie lisa do silencio, estalar de juntas, resfolegar de na­rinas e bacas, urros abafados nas goelas.

Nada mais impedia que se erguesse e visse 0 que as outros ja estavam contemplando. Corpos se embaralhando nos golpes, un1 gemido na raiz de todas as dores e nova­mente os gestos recolhidos, silencio se desdobrando. Juliao Beta aeendeu 0 isqueiro) a tftnida charna exibindo urn quadro que nao diferia do imaginado por Lucio, das pas dos moi­nhos, das vfsceras e dos gravetos de nuvens. Chico Capeta

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arquejava. A cada arfar do peito, 0 sangue brotando ern rosas Hquidas. Examinou as bolsos, naD encontrou 0 cani­vete americana. Examinou a colchao onde tambem co stu­mava guardi-Io, nao encontrou. Muitas vezes Juliao Beta acendera e apagara 0 isqueiro. Muitas vezes 0 I9sto risonho de Tatuagem aparecera em angulos entrecortados: 0 riso e o esverdeado dos olhos, os dentes e os buracos do nariz. Os olhos soltos daquele homern sa tanico. 0 riso agora era alto e ninguem teria coragem de dizer que parasse. Estava com a anna que 0 tornava mais temido.

- E isso, velhote. Quando naG gosto de urn cara, tern de se despedir do planet a . E urn favor que te fac;:o. .

Os guardas chegaram. A porta de ferro correndo com barulho. A lamp ada acesa e Chico Capeta tentando erguer­se, rosas da agonia no peito e no chao.

- Nao quero mais viver. Tou de passagem cornprada. Estranharnente ia dizendo essas coisas e outras, enquan­

to se agarrava nas paredes e as policiais alarn1avam-se com aquela postura tao estranha, do velhote que sorria na hora da morte, que afirmava ter pena de deixar alguns colegas, mas que 0 tempo era chegado, ia ter finalmente a liberdade que nunea conhecera, meSlllO quando ia pelas ruas como em­pregado de escritorio, rnoleque de recado. Os cabelos fican­do brancos e nao era mais que urn moleque.

-. Que e que tu sabe fazer, Chico, senao jogar no bicho?

E por Chico Moleque ficara. Chico Moleque nas ruas, o cesto de peixe na cabe~a, a crian.;ada gritando atnis.

- Chico ta ficando doido. Quando foi arrastado para a prisao, depois do assassi­

nato da cOlllpanheira de taDtos anos 1 da morte do cao, do enforcamento do gato, Chico Moleque virou Chico Capeta.

Dona Julia, 0 homem tava corn 0 diabo no corpo -dizia dona Ernestina Bustamante, vizinha da finada Eufra­sina, amante de Chico.

Quando foi outra vez arrastado Ii presenc;:a do juiz, numa sala de lnoveis luxuosos, que Chico nunca vira, Hcou extasiado com presen.;as tao ilustres e peia primeira vez sentiu-se importante. Em vez de maldizer-se do desastte cometido, Chico Moleque afirmava, sem que ninguem per­guntasse, que so se arrependia do enfotcamento do gato.

- 0 proprio cachorro nao merecia perdao. Urn bicho tuim. Mau e trai.;oeiro. E dizem por ai que cachorto e amigo do hornem. Pois simi

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Sentou-se numa cadeira, ouviu durante hotas a historia das perversidades cometidas. 0 juiz perguntava se tinha al­guma coisa a contestar, fazia ar de risC':

- Tudo certo como dois e dois sao quatro. Para 0 promotor, Chico estava tentando mostrat-se lou­

co, a fim de tumultuar 0 processo. . - Certo, como dais e dois sao quatro. o juri teve momentos de riso, lnas na vetdade 0 pro­

n1otor esteve COiTI a razao, porque Chico nao tinha nada de louco ou 0 era na medida ern que cada urn de nos pode ser considerado como tal. E depois de mui tas horas naquele convlvio, que ele julgava importante, eis que 0 juiz retoma a palavta, da 0 veredicto.

- Francisco Gomes de Azevedo e considerado culpa­do. Pdos crimes praticados devera cumprir 30 anos de re­clusao. Inicialmente pern1aneCera cinco anos no Manicomio Judiciario do Estado.

Os guardas 0 pegaram pelo brac;:o e so ai entendeu que a sessao estava terminada. Voltou a prisao, ao canto imundo que habitava, houve risos e palmas quando chegou. Tao cla­tarnente como agora, naquele dia vira Alma Danada, Zeca Espoleta e Esfolado. So que entao nao estava com as flores do corpo desfolhando. Imaginava as pessoas como os bone­cos de pelucia. Bastava puxar urn fio, abrir uma costura e de dentro sairiam plumas coloridas.

- Das pessoas saem petalas. Era 0 que dizia a mae, quando contava historias e nao queria que dormisse assusta­do. E assim: nos somas cheios de tosas vermelhas.

Chico Capeta recordava tanta coisa. Se isso era morrer, achava ate bOln. S6 ter vis to 0 TOSto da mae valia 0 sacri­fkio. E, perdido entre tantas vis6es, ideia confusa de sur­presas, nao se clava conta das providencias que iatn sendo tomadas. Tatuagem continuava perto, Lucio Flavio estava na cama mais alta do beliche, J uliao Beto se calara, Leitao Bola parecia triste.

- E ininha vez, gente. Nao queto choro. Valnos la, Juliao Beto. Assovia a cantiga das pecadoras.

Quando a padiola chegou, nao adiantava mais nada. Mesmo assim Chico Capeta foi empurrado para cima dela e as dais hom ens 0 levaram conttafeitos. Urn servi.;o extra que nao estavarn esperando aquela h~ra. E servic;:o fora de hara nao agrada a ninguem. Chico Capeta e que parecia con­tente. Cara voltada para cima, barba crescida.

- Vern ca, Chico Moleque!

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o silencio voltou a tamar conta da cela, Lucio sabia que nao cOllseguiria Inais dorlnir. Dificilmente algum deles o faria. Mas nenhum se aventurou a dizer qualquer coisa. Nada havia a comentar. E assim, na prisao: 0 comentario tern de ter resposta e naquele caso s6 haveria uma: liqui­dar T a tuagem, an tes que Inandasse au tro para ° inferno.

o tosto apalermado de Chico Capeta crescendo na cela, suas palavras de resigna<;ao, felicidade em ter sido despa­chado do planeta.

Acabarei assim tambem? Ulna noite, Ulna manha, durante a banho de sol ou no restaurante? Seria assim.

- Cada unl, quando vern ao mundo, recebe sua garra­finha de licor de uvas. Uns vaa tomando ° licar vagarosa­mente. Bebenda e se extasiando com 0 sabor. Misturando esse sabor ao das tardes ensola,radas. Outros sao Inais apres­sados: tOlllaln tudo de uma vez.

o velhote da prisao dizia isso, piscava urn olho. Coisa semelhante cansara de Ihe dizer Dondinho, quando lernbrava que nao existial11 mallS espfritos. Existem as bons, que ja estao nUlna etapa avanc;ada de aperfeic;oamento, e os que se . Inostranl rudes e ll1alfazejos, porque estao no comec;a. Sao pedtas do rio que muitas aguas terao de burilar. E os espi­ritos burilanl-se pela ac;ao das aguas, dos tempos, com toclas as suas tormentas.

"Sou urn espirito ern fase de burilamento. Atraves da pintura, poderei fazer ll1uita coisa que ficara como contri­buic;ao a esse aperfeic;oamento."

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XIII

A vida no presidio prosseguiu sua rotina. Os que iam para a faxina, grupos a caminho do patio, soldados que pas­savam. Eles teriam muitos aborrecimentos pela frente. Irianl para a sala estreita, seriam tornados depoimentos, as per­guntas se repetindo.

- De quem era 0 canivete? Como foi parar na cela? Coisas assim, que terminariam enchendo 0 saco, fa­

riam qualquer urn indignar-se. E a sessao seria demorada. Mesmo 0 velho dizendo que fora suicidio, nao adiantava. Folhas de papel se encheriam de letrinhas miudas, muita lengalenga, tempo perdido. 0 desejo de Lucio e tomar urn pouco de sol, retornar Ii sala de estudos, ficar garatujando papeis. Quanta mais riscasse, tanto Inais aprenderia. 0 born velho Ihe conseguira livros de reprodu<;ao, havia urn que era s6 dos desenhos de Picasso. Sempre ouvira falar naquele pintor mas nao conheda seus trabalhos. Folheando 0 livro, encantava-se com 0 trat;o, as invenc;6es em cada linha. Van­tade de repetir que aquele homem era extraordinario e ao mesmo tempo via, senda intilnamente, como estava atrasa­do, como deveria correr para alcant;ar semelhante firmeza. Esses pensamentos contribuiam bastante para diminuir as aborrecirnentos do interrogat6rio. Urn polidal chegou com a bandeja. Ofereceu-lhe cafe e aos companheiros. Percebia que, a paitir do momento em que se trancara na sala de estudos, a situa<;ao na prisao melhorava. Sed a influencia do velho? E quem era afinal aquele senhor de ar bondoso e fala mans a ? Um antigo fundonario apenas ou algm"m com influenda maior? Irnportante saber a respeito daquele homern. Mas as perguntas na penitenciaria nem sempre sao respondidas. Teria de descobrir. Urn pouco hoje, outro amanha. Se informaria com 0 proprio velha e quem sabe contaria coisas sabre si mesrno? Aquela figura era tao desconcertante, que em cet-

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tos momentos a prisao nao lhe parecia urn castigo. Se esti­vesse numa eela individual, como alguns presos especiais ficavam, ate que a vida nao seria das piores. Nao tendo grandes problemas ou ambi~6es, poderia dedicar-se 'inteira­mente ao seu aprendizado. La pelas tan tas foi preciso que Juliao Beto 0 chamasse, para assinar 0 tal depoimento. Rela­tava 0 ocorrido, 0 golpe aberto por baixo do queixo de Chico Capeta. Por porte de arma na prisao, Tatuagem estava in­cursa Dumas tanta5 irregularidades que seriam cobradas no correr do tempo. E assim, retornaram a eela, algu111as horas depois do almo~o. Urn policial acompanhou Lucio Ii sala que chamava" "dos estudos". Estava vazia, a luz do dia fil. trando-se pelas janelas. Apontou as lapis, pos-se a garatujar. Sobre uma das mesas 0 bilhete_ Era do velhote. Dizia estar entrando de ferias. Voltaria em pouco tempo. Os livros po­deriam ficar aos seus cuidados. Falava nos desenhos que vira. Achava estar progredindo rapidamente.

(CCom boa vontade e persistencia acaba se impondo. As obras de arte sao produzidas com dez gramas de talento e novecentos e noventa de trabalho bra~al." Assinado, coronel Helio Mendon~a.

Lucio leu e releu 0 bilhete e a assinatura. "Dez gramas de talento e novecentos e noventa de trabalho duro." Entao havia policiais que eralTl humanos. Pensamentos desencol1-trados deixavam-no confuso naquele dia que se iniciara mal, com 0 interrogat6rio a respeito de Chico Capeta, as indaga­~6es repetidas. Tatuagem incapaz de erguer-se e dizer: ponto final, matei 0 velho e ele disse que foi suicidio porque sem­pre deu uma de imbecil, nao era agora que ia mudar. Nao disse. Encolheu-se na ponta do banco e ate 0 riso que tanto perturbava os companheiros desapareceu. Parecia a sombra de Tatuagem, nao 0 arruaceiro e machae, que abria 0 cani­vete americane e comeCava a sacanear com Deus e a mundo. Colocou 0 dinheiro n'; bolso, iniciou novo esbo~o do moi­nho do inferno. 0 policial junto da porta fez urn movimento, falou alguma coisa, Lucio voltou-se para olhar. Estava com alguns livros na mao.

- Acabou de chegar pra vOCe. Renovou 0 estoque de alegria. Folheou 0 primeiro li­

vre, 0 segundo, Hceu apavorado. Urn dos volumes come~ava assim: "Quinta-feira e dia do julgamento do pre so no 2.° Tribunal do Juri. E a oportunidade. Nao vai haver julga­mento". 0 bilhete fora composto numa tipografia, as pou­cas linhas impressas e coladas como infcio de texto do

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romance_ S6 poderia ser coisa do Nijini Renato. Garoto inte­ligente. Era pena estivesse mergulhado naquilo ate 0 pes co­\,'0. Releu 0 aviso uma por<;;ao de vezes, ficou triste. A decep­~ae que provocaria no coronel ia ser grande ..

"Nae h.1 Inais tempo de prosseguir, amigo. A moral que nao sei se e correta au nao, prende-me aos fatos. Nao posso deixar Nijini cair numa emboscada. Nem que estivesse certo de ser 0 maior pintor do mundo."

Naquela sala ampla e silenciosa, a luz da tarde filtran­do-se pelos vidros das janelas, Lucio Flavio nao pode conter as Llgrirnas, que safram faceis, correram pelo rosto, chega­ram ao papel, onde eram capt ados os lerdos movimentos do moinho do inferno. Ai, olhos emba~ados de tristeza, foi tendo profunda certeza de que na verdade nao deveria pintar aquele moinho, po is revolvia suas pr6prias entranhas, de Moretti, de Severino Lima, Bechara, 132 e de Ugia. Os trai­dores estendidos ao sol, pendurados nas pas que giravan1., giravam, naquele vendaval de interesses desencontrados, de corridas sem fim, de 6dios e ocupac;6es inuteis.

- Chegou 0 intelectual - disse Tatuagem ao ve-lo com as livros. Lucio nao respondeu, nem achou gra<;a. Na verdade nem ouviu direito a brincadeira do tipo novamente animado e falante, como era costume. Completamente dife­rente do Tatuagem sentado na ponta do banco, na sala de interrogat6rio, escondendo-se das perguntas que poderiam complica-lo ainda rna is .

- Quase disse que 0 canivete nao era Inais meu -afirmou, dirigindo-se a Leitao Bola. - Mas como sou urn cara legal, nao fiz. Agora, acho que posso me arrepender.

A conversa nao agradava a Lucio. Nao havia duvida de que Tatuagem queria provod-Io. E a lengalenga esticou-se urn pouco mais. Juliao Beto foi quem se intrometeu:

- Nao yOU permitir outra sacanagem tua aqui dentro. Ve bem 0 que til arranjando.

So assim Tatuagem sentou-se num canto, come<;ou a rir, ora baixo, ora alto, como se tivesse perdido a cabec;a. Darci raramente falava e quando 0 fazia Tatuagem ia logo dizendo:

- Teu caso e simples, boneca. Se abaixar as calc;as termina dominando a prisao.

Darci se erguia furioso, Leitao Bola e Juliao Beto evi­tando a briga, Tatuagem mandando que 0 soltasse.

- Mando ele tambem pra fora do planeta. Vira anjo faci!. Ainda til na idade.

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Lucio Flavio ia enchendo com aquela fala<;:ao. 0 pensa· menta repartido entre a pintura e 0 crime deixava-o arno­lecido, sem apetite de encarar as provocac;:6es. POllea a pou­co, foi se desgarrando das pas do moinho, foi voltando a ser o Lucio Flavio que nao tolerava indiretas, que tinha peito pra agiientar as paradas. Que Tatuagem nae fizesse a cena repetir-se. Estava Duma prisao no Recife. Severino Lima mandando que agiientasse.

- Se da urn jeito nissa, amigo. Se dobra as caretas, tu te manda, nae demora muito.

Lucio tinha tratamento diferente dos outros. - Privilegios aqui nao se tolera. Tenha cabelinhos lou­

ros ou nao, quero que va se foder. Isso dizia 0 Domingao, um tipo que tambem fazia 0

papel de xerife da cela. Eram seis hom ens malocados num cubkulo que nao dava para tres. E Domingao sempre repe­tindo as amea<;:as. Depois Lucio foi percebendo a transa com alguns policiais. Recebia cigarros, vendia; recebia fluido de isqueiro. E 0 comercio tinha particularidades ineditas: nao era 0 fregues quem pedia este ou aquele tipo de cigarro ou isqueiro. Domingao e quem afirmava: duas carteiras pra Tadeu Mesquita, uma pro Barata, que ta sempre fodido; outra pra Lambreta, tres pra Cao de Fila, que tem mulher riea se virando Ia fora. E todo mundo ria, menos Cao de Fila. Um dia chegou 0 que Lucio Flavio estava esperando.

- Dois isqueiros com estoque de fluido pro garoto aqui. Vai precisar disso. Cinqiientao paga tudo.

Pas os fluidos e os isqueiros do lado. A briga estava iniciada:

- Nao compro nada de ladrao. o susto de Domingao foi grande. Nunca ninguem na

cela tinha se atrevido a levan tar a voz contra ele. E Lucio fez mais: chutou os isqueiros e as ampolas de fluido. Domin­gao ficou transtornado. Fez uma careta e, rilhando os den­tes, avanc;:ou: num golpe rapido Lucio bateu-Ihe de testa no nariz, Domingao caiu de costas e deitado mesrno puxou a faca. Agora rodavam, como dois galos. Lucio tramando uma forma de desviar a aten"ao do inimigo. Cuspiu-Ihe nos olhos, o pont ape no estomago veio em seguida. Outro tombo de Domingao. Mas a faca continuava presa na mao de ferro. Lucio pegou a pau da vassoura. Quebrou no meio, trans­formou-o numa especie de lan"a. Amea"ava furar e batia na mao que segurava a faca. Se Domingao se aproximava mais um pouco, dava-Ihe pontapes. Os guardas passaram, a luta

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terminou. Tadeu Mesquita e Cao de Fila interferiram. Este ultimo fiearia com a mercadoria. Domingao guardou a faca, pegou a ampola do chao. Lucio Fhivio ja estava sentado no seu canto e a briga havia sido esquecida. Mas Domingao era vingativo. Com ele uma desaven~a nao terminava nunea. Chegou perto, quebrou a ampola e jogou 0 fluido no rosto de Lucio. Atingiu-o nos olhos e deu-Ihe um pontape 11a ca­bec;:a, deixando-o sem sentidos. Novamente Lambreta, Barata e Tadeu Mesquita seguraram Domingao. Cao de Fila encheu uma lata com agua, atirou em Lucio. Sentou-se atorcloado, sem saber 0 que tinha acontecido, olhos queimando, frag­mentos da realidade chegando. Olhou para 0 canto, 0 cabo de vassoura partido havia sumido. Domingao passeava pelo meio da cela, a faca mal disfarc;:ada por baixo da blusa. Nos banhos de sol e no restaurante, Lucio foi comprando am­polas de fluido para isqueiro. Quase um mes passou fazendo isso. Lambreta, que se tornou amigo, perguntou se estava fazendo colec;:ao:

- Resolvi fazer. Punha os pequenos frascos um atras do outro. Domin­

gao olhava, Tadeu Mesquita nao tinha a menor ideia a res­peito daquele interesse, Cao de Fila achava curioso. E Lucio Flavio limitava-se a sorrir da ignoriincia dos companheiros. Do proprio Domingao que era 0 visado.

- Vamos ver se ele e bom, como diz. Lucio dormia pensando na vingan<;:a, acordava com um

gosto novo na boca, mastigava 0 pao da manha antevendo as earetas que faria Domingao.

"Ninguem me bate na eara sem levar 0 troeo. E e 0

que vai aeonteeer. Nao percle por esperar." Na pia imunda e desbeic;:ada havia uma lata. Tinham

voltado do patio onde houve uma partida de futebol. 0 time de Domingao perdeu. De tao cansados, deitaram-se. So Lambreta e Cao de Fila encostados na parede, pernas esti­radas. Cao de Fila olhava um peda"o de jornal, Lambreta ouvia 0 radinho de pilha que misturava estac;:6es. Lucio co­locou a latinha de azeite entre as pernas, quebrou as ampolas dentro dela.

- Resolvi guardar so os vidros. Pra que quero todo esse liquido?

Lambreta se esfor~ava pra sintonizar 0 radinho, nao reparava muito no que Lucio fazia. A ultima ampola fora quebrada. No fundo da lata formou-se 0 liquido azulado. Levantou-se, chegou perto de Domingao, lanc;:ou-Ihe 0 fluido

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- Mando ele tambem pra fora do planeta. Vira anjo facil.

"0 odic nao termina nunea. E aqui e a vasilha onde todo 0 odio do mundo se junta. Adeus tral:'os suaves e inte· ligentes de Picasso, adeus formas angulosas e dramaticas de Portinari. Nao serei 0 pintor. Sou a propria pintura. 0 ser descomunal de Goya."

Apos muito tempo de aporrinhal:'ao, Lucio desceu do beliche, e tanto Juliao Beto quanta Leitao Bola sabiam que aquila nao terminaria bern.

- Ji enchi de tuas sacanagens, seu corno de merda. Vai calar essa boca nojenta ou te enforco com is to aqui.

E mostrava 0 cinturao largo, com a fivela de metal. Tatuagem foi se afastando. Lucio nao esperou um segundo. Vibrou a pesada fivela do cinto, atingindo-o na cabec;:a. 0 sangue apareceu. Tatuagem pegou 0 cinto, Lucio atracou-se com ele. Rolaram no chao, em sileneio. Ora Tatuagem levava vantagelTI, ora Lucio dominava. Mas, finalmente, conseguiu seu intento: calocar a correia do cinturao no pescoc;o de Ta­tuagem. E quando pode fazer isso, a luta estava terminada. MaDS fortes, de veias estufando, apertando, 0 tosto COll­

gestionado, olhos endurecidos, Juliao Beto, Leitao Bola e Darci tentando evitar que matasse a outro. JulHio fez Lucio desmaiar com urn SDCO, as outtQS segura ram .Tatuagem e 0

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mandveram preso com 0 cinto no pescol:'O. Juliao Beto foi mais incisivo.

- E assim que tu vai ficar aqui dentro uma serna­na, Who da puta.

J uliao Beto amarrou·lhe as maos para tras e eIe ficou agachado num pe do beliche. Lucio recobrou os sentidos mas nao tentou revide. Encostou-se na parecle, Darci trouxe agua para lavar 0 rosto. Juliao chegou perto, Lucio apertou­lhe 0 bral:'o em sinal de agradecimento:

- Nao quero mais matar ninguem.

153

Page 76: Lucio Flavio - Passageiro da Agonia.pdf

XIV

Desde a vespera ja sabia. Iria com outros sentenciados fazer uma "visita" ao 2.° Tribunal do Juri. Era como diziam as presos que iam a julgamento. Uma "visita" e achavam grac;:a. Pelos dlculos, a considerar julgarnentos anteriores, deveria pegar mais uns quarenta e cinco anos. Trinta pela morte de Arrnandinho e Marco Aurelio, doze ou quinze pelo assalto ao banco em Luziania, uns dois a tres pelo rouba do Opala, rnais uns poucos pelo ferimento da velhota a bala, em £rente ao banco. Arredondando, uns cinqiienta anos. Somava essa cifra aos da pena que curnpria. Pelo barato, uns cento e trinta anos. Nao entendia como a justi~a podia ser tao pr6-diga com sujeitos que nao viveriam mais de cinco au seis a110S na carceragem.

"Que pens am os jufzes? Ou aquilo era apenas uma de­rnonstra~ao ret6rica da lei? Claro que era. S6 para nao usar o termo 'prisao perpetua'. E tambem, que diferenc;a faria?"

o sol estava quente. Desde cedo 0 calorao. Ficara num canto do patio, isolado. Nao queria papo. Nada havia a dizer. o que gostaria de discutir, ninguern ali entendia. Nem Darci, que era 0 mais esperto. Todo estelionatario e tido como homern letrado nas prisoes. E Darci nao tinha farna a toa. Mesmo assirn, de pintura estava por fora. Olhava os grupos animados, caras sentados no chao. Uma comunidade de deso­cupados. Tremenda falha do sistema. Ficar ali, pegando sol, gastando dinheiro do governo, sem nada produzir. Que opi­niao teria 0 coronel Helio Mendonc;:a de sernelhante es­culhamba~ao? Par que um hornem como ele nao era 0 dire­tor da penitenciaria? Imaginava 0 rosto tranqiiilo, olhar bon­doso e firme, transfixante. Olhava as pessoas por fora e por dentro. Na sua frente nao conseguia rnentir. As vezes ficava embara<;;ado.

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- Arte se faz com dez gralnas de talento, novecentos e noventa de trabalho duro. "

"Pura verdade. Uns "ada fazem par falta de tempo au condi~6es. Eu nao fa<;;o pOl"que sou legalidade e crime, vida e morte, agua cristalina cobrindo 0 loda~al. A mao que pro­cura as trac;os para fazer girar 0 moinho e a mesma que matou Marco Aurelio, Armandinho e Domingao. n

Os elhos que se perdem nas auroras sao os mesmos que ja presenciaram tanto sangue den·amado. E em tude is so urn s6 corac;ao: pendulo apaixonado, nl0vimentando-se do amor de Janice para 0 6dio a Bechara. Os crimes do policial nao apareciam. Seus comandados eram centopeias alongan­do-se nojentamente pelos veios da Terra. E 0 que ja saberia disso Victor Klauss? Onde estaria, com 0 dossie passado a lirnpo?

Olhava a cela irnunda, a lampada pendurada, fedor saindo do buraco onde tadas cagavam. Teve ate pena de J ulHia Beta, de Darci que morreria hidl se insistisse no seu plano, de Tatuagern que tinha 0 destino dos caes, de Chico Capeta que morrera mas continuava entre eles. Agora mesma o via, rnagro e de olhos fundos, procurando equilibrar a cai­xinha de f6sforos nas gretas das paredes. Que falaria Chico Capeta? Que dizia de tao engra~ado, que ele pr6prio se ani­nlava tanto, a ponto de querer esconder sua alegria?

Policiais que nunca vira antes vieram busca-lo. Entre­garam-Ihe roupa limpa. Vestiu-se, Hcou sent ado numa sala. Outros presos juntaram-se a ele. Dali, sairiam para a aven­tura do julgarnento. E quando eram cinco os que estavam no banco comprido, na £rente do oficial que tomava notas, os policiais diziam ainda estar faltando dais.

Lucio Flavio olhou 0 calendario na parede. Era 0 dia 9 de novembro de 1971, assinalado em gordo numero preto. Ponteiros do rel6gio carninhando para 0 meio-dia. 0 oficial ja dis sera aos soldados que terrninariam chegando atrasados ao tribunal e eles se apressaram. Vieram finalmente os dais presos. 0 camburao estacionou perto, subiram. As portas se fecharam, a viagem come~ou. 0 carro avanc;ava devagar, porque aquela hora a Rua Frei Caneca estava engarrafada. Dois Volks, urn gelo e outro verrnelho, fecharam 0 carnbu­rao. 0 gelD era dirigido por Nijini Renato. 0 vermelho tinha Fernando C. O. ao volante. Mas foi Nijini Renato quem apareceu prirneiro. Estava de botas de camur<;;a, cal~a preta e blusao lilas, de mangas compridas. Os 6culos escuros arredondavam-lhe 0 rosto, com a barba ja bastante crescida,

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principalmente no queixo. Logo atras dele, igualmente arma­dos, vinham Fernando C. 0., Liece de Paula eVictor Klauss, todos de blusao de couro e largos cintos com fivelas nique­ladas. A viatura estava sendo conduzida pelo guarda Pedro Teixeira Xavier, acompanhado dos policiais Guilherme Nas­cimento e Jairo Farias. Fernando agarrou-se de um lado da cabina, antes que Pedro Xavier pudesse desviar do Volks, tirou-o do volante a coronhadas. Nijini Renato chegou pelo outro lada, ameas;:ou atirar. Jairo Farias quis reagir, uma saraivada de balas 0 arrancou de dentro da cabina. Seu com­panheiro Guilherme Nascimento correu para esconder-se por tras dos automoveis. Terminou atingido num dos bra\:os. Os motoristas dos carras que ladeavam 0 cambudio ttataran1 de subir as cal\:adas, desaparecer. Militos entraram pela Rua Heitor Carrilho, embora aquele nao fosse evidentemente seu destino. Nijini Renato tomou a dire\:ao da viatura, Liece de Paula do lado. Victor Klauss e Fernando C. O. retornaram aos Volks. 0 policial que escapara sem ferimentos pedia ao motorista que levasse as companheiros ao pronto-socorro. o sangue descia da cabe\:a de Pedro Teixeira, atingido pelas coronhadas, e do bra\:o de Guilherme Nascimento.

Acelerando futiosamente, avans;:ando aos solavancos, a viatura foi abrindo caminho no engarrafamento. Na esquina, onde seria mais pratico atingir 0 Tune! Santa Barbara, 0

choque com 0 automove! que vinha em sentido contrario. Ruido de latas esmagando e 0 camburao sempre avan\:ando. Nijini Renato indiferente aos gritos e palavroes de protesto. Subiu numa cal\:ada, tornou a descer para a pista e agora au­men tara considerave!mente a velocidade. Urn minuto perdido podia significar 0 fracasso da escapada. Fez curvas de pneus cantando no asfalto, entrou pelo tunel, cortou 0 pesado ca­minhao, passou na frente da Kombi cheia de freiras, conti­nuou em ve!ocidade quando subiu 0 arrampado, ao sair do tune! nao parou no sinal em fren te ao Palacio Guanabara. Pe!o retrovisor, ja na praia de Botafogo, podia ver que os Volks gelo e vermelho 0 acompanhavam. Nijini tinha von­tade de saber logo se Lucio estava de fato entre os prisio­neitas, mas era impassivel. Na Rua Assunc;;:ao, de pOlleD mo­vimento, 0 camburaa parou. Abriram-se as portas traseiras. Ali estava Lucio Flavio. Sorridente, olhar confiante. Os sen­tenciados fizeram acenos rapidos de adeus e trataram de desa­parecer. Quando os carros de Fernando eVictor Klauss che­garam, muitos deles ja estavam lange. Nijini e Lucio entra­ram no carro de Fernando C. 0., Liece de Paula ficou com

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Victor Klauss. Os Volks arrancaram, pneus cantando, segui­ram pela Rua Sao Clemente, a caminho da Barra. Os curiosos juntaram-se ao redor do camburao de portas abertas, motor Iigado. A essa altura, apenas urn preso ainda poderia ser visto na praia de Botafogo: Nilson Florencio. Sua pena nao era tao grande assim. A prindpia carrera junto com as outros. Depois dispersou-se e decidiu chegar de qualquer jeito ao 2.0 Tribunal do Juri. Imaginava que esse compor­tamento ajudasse a reduzir-lhe 0 castigo. Florencio era urn homem de rosta grave, olhos duros. Pegou 0 primeiro 6nibus para a Pra\:a Maua, saltou num ponto da Rua 1.0 de Mar\:o, chegou a pe ao tribunal. Apresentou-se aos policiais, falou do assalto ao camburao. Com ele, eram sete os presos que deveriam ser julgadas. Nao citou a nome de Lucio, nao men­cionou a dire\:ao tam ada pelos fugitivos. Disse somente que tinham sido postos em Iiberdade na Rua Assun\:ao, em Bo­tafogo. Nada alem disso.

Enquanto F1orencio cuidava de abreviar a senten\:a, pelo ineditismo do comportamento, os Volks gelo e vermelho chegavam a uma regiao de mato baixo, na Estrada de Jaca­repagua.

_ Moretti mandou a gente esperar aqui - disse Fer-nando C. O.

Lucio olha ao redor. Nao estava gostando daquela ideia. _ Nao confio em Moretti, para entrar nessa, de peito

aberto. Armou urn esquema de seguranc;:a, distribuindo cada

urn dos companheiros em pontos estrategicos: _ Klauss, fica escondido na curva. Nijini, do outro

lado da estrada. Um tiro para 0 alto e 0 sinal de alerta. Liece e Fernando vao para os fundos desse matagal. Eu fico perto dos carras. Nada de arriscar com esse cara.

Divididos e cautelosos, ficaram esperando horas. 0 Karmann-Ghia gelD se aproximou. Entrou no terreno baldio. Moretti saltou. Estava de blusao estampado, calc;:a azul-clara, sapato esporte branco, correntao de prata no pescoc;o.

_ Ele vai dizer que e teu amigo, filho, mas nao confia. Nada nele e sincero.

Lembrava de repente do rosto tranqiiilo de Dondinho, de suas advertencias, aquele correntao agora assumia aspecto amea<;ador.

_ Cade 0 pessoal? - quis saber Moretti. - Ta por ai mas ja vern. Moretti rio

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Page 78: Lucio Flavio - Passageiro da Agonia.pdf

- Vai ser desconHado assim no inferno. E impossIvel trabalhar.

Acho que isso e prova de seguran<;a. Entende, cara, nos somos amigos. Tamas no mesma

barco. Nao se veio aqui discutir i850. Vamos ao que inte­

ressa. Quero os carros. Amanha e 10. Tamos no dia certo. E so atacar. .

- Os carros tao aqui perto. Dois Dodge Dart tinindo. Moretti dizia is 50 e sorria, mostrando dentes muito

brancos. - Liece e Fernando, tragam as carTOS pra ca. Moretti explica a entrada do barzinho, urn quil6metro

adiante. Procurariam 0 cara gordo, de rosto furado de espi­nhas. Era s6 dizer "achamos a passaro azul" e ele entregaria as chaves. Passaro azul era a senha de Moretti.

- Escolheste urn nome poetico. Gostei do nome. Nijini eVictor Klauss apareceram. Moretti tinha

cumprido a promessa. Viera sem cobertura e nada havia de suspeito nas proximidades. Sentaram-se sobre uns peda<;os· de madeira.

- Foi duro 0 tratamento por la? - perguntou Moretti.

- Ate que nao. Dia melhor, dia pi~r. - Ja soube de Micu<;u? - diz Moretti. - Acho que

estouraram com ele. Ta guardado na cas a de urn pessoal do peito Ia na Baixada. Se nao tomar muita gemada, empacota. Bechara esfolou ele de verdade. Nao devia ter feito isso.

- E 0 que foi feito de 132? - Virando mundo. Teve no presIdio diversas vezes,

procurando sondar se as coisas estavam ern ordem. - E Carcara? - Sumiu. Foi com urn pessoal que nao conhe<;o buscar

urn traficante em Salvador. La pelo Hm do mes deve voltar. E assim. Quem ta na poHcia termina andando muito.

Lucio sabia que aquela conversa, alongando-se e ao mes­mo tempo apresentando prolongadas interrup<;oes, nada d­nha de sincera. Era urn jogo. Moretti mexia uma pedra, ele mexia autra. 0 policial levantou-se, passou as maDS nos cabelos.

- Mas 0 mundo t.1 cheia de surpresas, meu caro. Apa­rece cada uma que a gente fica sem entender porra nenhuma.

Era do tipo surpreendente. Falava de uma coisa, apre­sentava detalhes e, quando se estava pronto para 0 desfecho,

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metia outro assunto no meio, a palestra tomava rumo corn­pletarnente diferente, como se a interrup~ao nao tivesse qualquer importancia.

_ E 0 que digo. As surpresas estao no ar. Lucio olhava-o, curioso. Klauss e Nijini tambem. _ Ora, ora. Sabem quem ta pra casar? Sabem quem

ta gamado por uma bela pequena, com anel de grau no dedo e tudo?

Faz urn momento de suspense. Na cara inteira aquele riso sarcastico. Sacode os bra~os em gestos largos, aponta na dire<;ao de Nijini.

_ Voce ai, que tern raciodnio rapido. Quem, entre n6s, t6. pra casar com uma advogada laura?

Nijini nao sabe. Lucio rio 0 assunto nao tinha nada a ver com nada, mas em falta de outro, servia para passar 0

tempo. _ Wilsao! Ta gam ado na advogada que tern feito sua

defesa. A pequena ta caIda por ele. Vai dar casamento, po­dem estar certos.

- Nao acredito! - responde Lucio. _ Pois e a verdade. Moretd sabe sempre 0 que diz.

E 0 assunto n.o forum. Dizem ate que, da proxima vez em que for grampeado, sera preso duplamente, na cela e no con­trato de casamento.

_ Se ele gosta assim, nada tenho a comentar - diz Nijini, Gomo querendo mudar de assunto. .

Liece e Fernando C. o. aparecem com os carros. Sao novos, urn deles tern vidro fume.

_ Coisa de primeira ordem. Motor envenenado, pneus novos e muita gasolina azul correndo nas veias da maquina. Se acelerar demais, voam.

Liece e Fernando confirmam. _ Estao tinindo. Da ate vontade de sair por aI, com

uma pequena do lado. _ Ou entrar num pega. Daqueles de antigamente? Lucio Flavio acha grac;:a. Foi campeao dos pegas em

estradas e avenidas durante as madrugadas. Principalmente no Alto da Boa Vista. Os grupos que faziam essas demons­tra<;oes de coragem partiam do Largo da Cancela, em Sao Cristovao, do Cinema Imperator, no Meier, Cine Rio Pa­lace, em Ramos, e da Pra~a Saenz Pena. Pneus rangendo nas curvas, derrapagens, a habilidade nos pedais e na alavanca do cambio para evitar 0 acidente, olhos fixos na estrada co­berta de perigos.

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Moretti convida para um drinque na Taberna do Sol, que era ponto neutro, como dizia; tadas aceitam. Os Volks­wagens Hcam no terreno baldio. Liece dirige 0 Karmann­Ghia, Moretti vai ao lado de Lucio.

- Se 0 plano ta perfeito, e hora de comemorar. Se houver aIguma surpresa desagradavel) com a qual nao canto, nero posse, ja se COffiemorou. Tou mais enrolado do que carretel. 1sso tem de dar certo. E mais: a grana tem de fluir do fundo do cofre. Muita grana.

-- E exatamente 0 meu casa, Se a bolada estiver ar­rumada como calculo, vai dar pra se pegar uns trezentos mil na moleza.

- Quem vai estar presente? - quer saber Moretti. - Nao preciso de muita gente. Acontece que a turma

ta batendo pino. Nao fosse is so fecharia a coisa em torno de tres apenas. Mas, como ja. disse, Vall tet de convocar mais gente. Talvez uns cinco, seis comigo, sete com voce.

- Fiiiuuu! - assovia Moretti. - Nao vai dar pra mim. A partilha termina me deixando na mesma. Preciso de duzentos mil e depressa.

- Acho que ta sendo precipitado. S6 gosto de falar em dinheiro quando tou com ele na mao. Imaginar coisas termina clando azar.

- Nao me diga que acredita nessas maluquices de supersti<;6es!

Lucio olha para ele, nao diz nada. Moretti prossegue: - De qualquer forma, se a erva nao det pro meu ga­

do, parte-se pra outro plano. - Acho que nao - responde Lucio. - Tou em fim

de carreira. Com esse Casa vall coloeat uroas coisas em ordem e me manda.

Se manda? - Claro. Tenho outros pIanos. - Ta maluco. Urn tempao estrepado. Ai Moretti che-

ga, oferece condi<;6es reais de tl'abalbo e fala em se mandar? Nao da pra entender. Ficou lele da cuca?

Talvez tenha ficado. E por isso que vou sair do jogo.

0, meu, se ta falando senD, e preciso que saiba de uma coisa: ninguem consegue segurar 0 carro quando dispa­ra na ladeira. E nosso caso. Tambem pensei em me rege­nerar. Levar uma vida honesta e simples. Mas quem e que pode? Se insistir nisso eles me queimam pelas costas e tu

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vai no meSlTIa caminho. Tira essas maluquices da cabec;a e vamos elTI frente. Vamos vet 0 que da:.

Lucio continua olhando a estrada. Na verdade Moretti tinha razao. Ha muito tempo vinha tentando pular fora da­quele trem, mas as peias que 0 prendiam eran1 fortes.

- E vou te dizer mais - e novarnente Moretti -, 11aO pens a que tu lidera esse pessoal so mente pot causa do grito e da astucia. E que a grana ta sempre sonante. E 0 vii metal brilhando nas maDS, eara. Tira essa esperanc;a deles e a1 tu vai vet Ulna coisa. A gente naG tein onde se agarrar senao no dinheiro, nas notas graudas. Por que Moretti e respeitado? Por causa da nota. Mesmo quando dou duro, como agora, a tufma de fora nao aeredita nisso. Sabe que tou por cima. E isso que vale. E isso que faz com que nos respeitem.

Lucio nao insiste na discussao. _ Ganhou mais uma vez. Aroda nao pode parar. As

pas do moinho tao girando. . _ E isso, amigao. E pra frente que se anda. E de que

vale afinal a vida, se nao se pode viver bern? Viver na mer­da, fodido e fedido e melhor morrer logo. E como dizia meu pai: quem nao arrisea nao petisea. Tamas na nossa, 0 resta que se dane.

Chegaran1. a uma alameda chnentada, os carras avan­~am silenciosamente. La nos fundos, bern longe da pista, 0

casarao entre arvores, cadeiras pintadas de braneo debaixo dos quiosques de carnauba. Nijini Renato senta ao lado do irmao, perta de Moretti. Apareceu a 111ulher de meia-idade, muito pintada. Palou com Moretti, beijou-o no rosto. Ria, animada com 0 que considerava "a volta do bonitaa". Lucio Flavio achava aquilo engra<;;ado. Mulheres mais novas vie­rani do casarao. Umas de minissaia, outras de shott, blusas sumarias, deixando entrever os seios.

_ Aqui, todo mundo descansa, tama banho, troca de roupa. Nos carros tem tudo que vao precisar. 0 que faltar Maezinha providencia. .

A lTIOrena, pernas bern torneadas, que nao devia ter mais de vinte anos, sentou-se do lado de Lucio, enquanto Nijini era chamado pela loura, de olhar romantico. Em pou­co tempo os pares estavam farmadas. 56 Moretti nao esco­lhera companhia .

_ Tenha de estar no centro daqui a pOllea. Vall sait 1.1 pelas seis. Depois volto e se faz uma farra. Nada de exa­geros, por causa dos cOlnpromissos.

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-. Isso e verdade - responde Nijini. Enquanto Moretti conversava com Maezinha, e a mo­

rena fora ate 0 bar, Lucio aproveitou para sentat-se a mesa de Victor Klaus. Estava com a mulata, ex-passista da Man­gueira. Contava as meIhores fases do carnaval, ele ficava ou­vindo, como se escutasse a hist6ria mais bela do mundo. Lucio pediu que ela providenciasse ulsque, e entao· p6de falar com Klauss.

- Nao foi faci!' Llgia se encontra mesmo com Mo­retti naqueie predio da Marques de Abrantes. Ta comendo eIa direitinho. E nao e de agora. 0 homem de blusao que ajudou a te espancar na £rente do Bechara e mesmo Carcara. Corta esse de Hirofto nao sei 0 que. Moretti por sua vez e homem de Bechara. Tou na pegada do 132.

- Possa confiar nisso? - Nao ha de que duvidar. Vi, diversas vezes, Lfgia

chegando ao predio. Depois vinha Moretti. Como nao me conhece, certa vez saltei no mesrna andar. Entrou no apar­tamento 1010. Logo em seguida apareceu Moretti. Quanto a Carcara, quem me deu a ficha toda foi 0 Turcao. Aquele carcereiro que Bechara enrabou. Batou na rua porque nao fez 0 jogo dele. 0 Turcao sabe de tudo.

- 0 que acha desta festanc;a? - E urn passatempo ardscado. Se tudo correr bern,

Bechara nao vai se intrometer. Se surgir urn grilo, baixam aqui de rnetralhadora e caes amestrados.

Sabe que ate gostaria que isso acontecesse? - Corta essa, cara! - S6 pra ver 0 jeito do Moretti. Maezinha continua falando, dndo alto, Liece de Paula

esta animado, Nijini conta uma hist6ria a mulher loura. Lu­cio Flavia admira aquela anima~ao, as arvores, gaiolas de canarios penduradas nos galhos, uma atata silenciosa nas suas cores berrantes.

- Amanha te pas so a grana. Born trabalho. Logo rnais tenho urn servic;o extra. Quando Moretti levan tar ferro, vou te botar no carro dele. Pra todos os efeitos vai levar urn bilhete a Janice. Na verdade te quero nos passos dele.

A mulata retorna com a garrafa, mostra dentes brancos num sorriso de menina travessa, senta reclamando da arru­mac;ao no bar. Lucio nao participa da falac;ao. Limita-se a olhar a arara de plumagem vermelho-amarelo-azul, os caml­riDs saltitando, a cara de Moretti sempre tranqiiila, Maezi­nha por perto, chamando-o "bonitao". Nao lembrava ter

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vivido tarde iguaI: tao colorida e ameac;:adora. A morena de pernas grossas 0 procurava m~s na verdade gostaria que desaparecesse. Queria ficar s6, diante do espanto das arvo­res, com as tronCDS caiados de braneo.

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Pela madrugada Lucio e Moretti disseram a Maezinha que iam dar uma volta. Respondeu que a cas a ficaria triste. E p6s-se a rir. Entraram nos carras. Moretti na frente, no Karmann-Ghia gelo. Rodaram pel a Rio-Santos ate urn tre­cho onde 0 acostamento era largo. Moretti rnostrou a jornal, anunciando a prisao de Wilsao.

- Talvez is so seja ate born para ele. Vai ver que se deixou prender pra casar logo - disse Lucio.

E, tirando urn papel do bolso, expos 0 plano_ - Moretti nao precisa aparecer. Mas deve ta por perto. - E quem se bota no lugar de Wilsao? - pergun-

tou Nijini. - Esse e 0 problema. Lucio pensa urn pouca: - Vamos convocar Paulinho. HJ muito tempo que

nao entra numa jagada alta. Moretti nao sabia quem era Paulinho. - E um cara do barulho. Nao brinca em servic;o. Liece de Paula lamenta 0 caso de Wilsao, apela pra

Moretti. - Em cima do lance nao da pra fazer nada, bicho. 0

jeito e con10 Lucio diz: arrumar outro. Decidid.os as names, Victor Klauss e Liece Hcam encat­

regados de se mandar para as bocas, dar 0 recado. A essa altura Lucio rabisca e vai dizendo: nesse trecho da Mare­chal Cantuaria com Avenida Portugal dois homens, carro parada perto, como se estivesse enguic;ado.

- Se for 0 caso, 0 Dodge que realizar a fuga passa e o carro enguic;ado cleve set manobrado para fechar a avenida.

A preocupac;ao era a travessia da ponte. Urn erro, un1 rninuto de atraso, e tudo estaria perdido.

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- Por que nao retornar pela contramao, na Ramon Franco mesma?

- Nao faz sentido, Uma colisao de nada e viria logo a guarda, seria urn deus-nos-acuda. Nada de maluquices.

Finalmente ficou decidido a roteiro. Urn dos carras pa­rada na esquina de Marechal Cantuaria com Avenida Por­tugal, Ia pros lados da TV Tupi. 0 outro na confluencia das ruas Ramon Franco, Mal'echal Cantuaria e Avenida Portu­gal, ja para a lado da ponte que causava tantos temores. Era ali que estariam as dais homens, prontos a atravessar o'carro na pista. Ajustado 0 roteiro, Lucio pas sou a discutir a distri­buiC;ao das armas. Ficaria com uma 45 e urn revolver 38. Nijini so com a 45 e uma bomba de gas lacrimogeneo. Liece de Paula com dois revolve res 38. Fernando C. O. eVictor Klauss estariam no entroncamento. Na mala do carro a me­tralhadora. Paulinho, que entraria primeiro no banco, levaria apenas urn 32.

- Nao acha que e muita gente? - perguntou Moretti. Lucio ficou indignado, nao respondeu logo. Ai Nijini

disse que 0 importante era pensar no exito do plano. - Nao interessa guantes vamos set. - So entro num banco em seguranc;a. Nada de man-

cadas, pOl' falta de cobertura. De mais a mais, quem faz os pIanos sou eu.

Moretti ri, pede que nao se aborrec;a. - Pode sel' ate que 0 banquinho tenha mais dinheiro

do que se pensa - diz ele. E. As aparencias enganam - acrescenta Liece de

Paula. Os motores sao acionados. 0 carro de Lucio e 0 de

Moretti retomam 0 caminho da casa de Maezinha. Liece e Victor Klauss vao na £rente.

Aquela hora a chacara era so silencio. As mulheres de­sapareceram. Maezinha tan1benl nao esta tao disposta quanta de tarde. Mesma assim e tada atenc;ao. Traz urn drinque, oferece tira-gosto. Depois que Moretti vai embora, Nijini continua a fazer considerac;5es a respeito do assalto. Fer­nado C. O. ouve. Lucio olha 0 relogio. Confere 0 tempo que faz da partida de Moretti.

- Nao sei por que - diz ele - nao confio urn pingo nesse cara!

- Eu confio desconfiando - esclarece Fernando. - E por essas e por outras e que tenho uma ideia. Va-

mos nos encontrar com Liece e Klauss, na toca de Paulinho.

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Se aglienta por la, ate a hora de agir. Se Moretti imaginar uma sacanagem, nao vai saber nem por cnde estarnos. E sempre born que s6 a gente saiba onde encontra-Io.

- Isso e quente - diz Fernando. Lucio chama Maezinha, vaodar outra saida. - Se Moretti voltar ante~.:da gente, diga que nao de­

moramos. o carro estaciona em fren:~e ao ediffcio, cuja carredar

mais parece 0 de urn quartel. .Lucio empurra a porta. Fer­nando e Nijini vern atras. No quinto pavirnento daquele gi­gantesco conjunto, com rniIhares de apartamentos minus­culos como celas, esta a de Paulinho. A porta abre.

- Que e isso, chefe? Vrna incerta? - diz Paulinho, em tom de brincadeira.

Liece e Klauss surpresos: - Nao acredita na gente? - Nada disso. Resolvi nao dormir nurn lugar arran-

jado por Moretti. - Por isso, nao. Toda 1l?.undo se ajeita aqui mesma. - Na verdade, pela hora, ja nao se pode pensar em

dormir tan to. - Mas ainda da pra tirar urn cochilo. Lucio senta numa ponta de sofa, Paulinho traz uma

dose de uisque com gelo. Paulinho e urn garoto alegre. Gosta de falar e sorrir. Nao perde a calma diante do perigo. Nao treme se tern de executar uma t$refa, nao se afoba na hora da retirada. .

On de deixaram 0 carro? - pergunta Lucio. - La na outra esquina. Nada de pistas. - Certo. Liece conta 0 que the dis sera Paulinho a respeito de

Micu~u. - Deu bandeira la em Niter6i, as titas seguraram.

Agora ninguem sabe por onde anda. Nijini faz outra pergunta a Paulinho, Lucio fica ima­

ginando que Moretti Ihe falara. em Micw;:u, dissera estar guardado na casa de uns amigos do peito, na Baixada. Que liga~ao teria Moretti com aquilotudo? Qual seria a jogada?

- Voce conseguiu saber onde Moretti tern aparta­menta?

Klauss explica, entremeando a conversa de gestos e risas.

- E meio diHcil dizer onde mora: Tern urn aparta­men to em Vila Isabel mas quase nao aparece la. Tern uma

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casa em Campo Grande, mas 56 nos fins de semana vai 1.1. As vezes fica naquele apartamento da Marques de Abrantes ou entao numa kitchenette da Hilario Gouveia.

- E mais sabido do que parece. Num caso de aperto nao ta em lugar nenhum. Tern tempo de tomar pe da situa­~ao, pensar como proceder. Essa a razao de tarrtos endere<;os. Nao e dinheiro jogado fora com aluguel. Muito ao contrario. E boa cobertura.

Paulinho traz outro uisque para Lucio, Nijini e Fernan­do ainda falam de Micw;:u. Paulinho nao tern duvida:

_ Dessa vez ele empacota. 0 Esquadrao vai dar fim nele. Ja tava na mira.

Lucio continua calado, beberieando uisque e, en tao, faz urn sorriso e come<;:a a falar. A alegria e de quem encontrou algo muito importante.

_ Por que nao pensei nisso? Vejam s6 como se po-deria entrar numa violenta!

- 0 que ha de errado? - Em principio, tudo! Explica e pede urn papel. _. _ Vamos alterar as pe<;:as do jogo. Virar 0 tabuleiro de

cabe~a pra baixo. Moretti pensa que e sabido mas comigo se fode.

Os companheiros estao alarmados com a disposi~ao de Lucio em alterar tudo que fora combinado e nao entendem ate onde pretende chegar.

_ E simples. Pelo que me disse Moretti, ta precisando de muita grana. Ficou chateado com 0 pessoaI que reuni. Queria que a tarefa fosse executada por apenas dois ou tres de n6s. Na partilha a coisa subiria pra seu lado. Se sabe que vai ganhar pouco, esse pouco nao resolve seu problema. Por que nao imaginar que na hora do golpe ele mande outros caras, fantasiados de policiais, bagun<;:ar 0 coreto? Ai 0 di­nheiro some, a gente leva a culpa, eIe resolve 0 problema que ta Ihe apavorando.

- E qual a solu<;:ao? - pergunta Paulinho. _ Em vez de participar do golpe, Victor Klauss vai

ficar de olho em Moretti. Daqui pra frente todo cuidado com .e;le e pOllea. E mais: nao se ataca na hora combinada. Vamos agir logo cedo. Quando souber do caso, ta resolvido.

_ E is so aL Nao confiar nem na pr6pria sombra -acentua Nijini.

_ Esse e nosso Ultimo ataque. Depois, cada urn que se vireo Vou me mandar pelo mundo.

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- Ja e tempo. Tambem quero me mandar. Se escapou o que tinha de escapar - concord a Fernando C. O. - Ta­mos abusando da sorte.

Lucio roda 0 copo sobre a mesa, brinca com as pedras de gelo.

- Coisa importante: ferido nao tem ajuda. Se cair, azar seu. 0 que desobedecer, leva bala. Seestiver no chao e Nijini vier me carregar, atiro nele. Pra matar. A gente ta numa guerra. S6 que 0 inimigo nem sempre aparece. Sao muitos os que desejam nos agarrar. E melhor que peguem um, do que dois ou tres.

- Quando terminal' 0 golpe, onde a gente vai ficar? - quer saber Klauss.

- No morro de Sao Carlos. Se larga os carros numa dire<;:ao e vai na outra. Como sempre se fez. Da certo. No minima desorienta as investiga<;6es e se tern tempo de pensar.

- E quando os jornais silenciarem e a policia desistir das buscas?

- Entao, cada um deve tomar 0 rumo que quiser. Eu vou demorar mais pela cidade. Preciso ajustar umas contas. Quero conferir se Carcara e mesmo 0 policial que me bateu, se 132 e da turma de Bechara.

E se pOl' causa dis so terminal' se esttepando? -e Nijini preocupado com 0 irmao.

- Se acontecer 0 piar e que nao merecia Dutra. coisa. Naquele final de madtugada ninguem conseguiu dot­

mit direito. Liece de Paula adormeceu alguns momentos, Paulinho continuou servindo doses de uisque a Lucio. Quan­do Nijini chamou a aten<;:ao pelo fato de estar bebendo demais, respondeu que um banho frio, pela manha, resolveria o problema.

- E ate bom que nao se durma. Ja se fica preparado. Quem tiver duvida que va perguntando. As oito se sai da­qui. As nove se arranca as tripas do cofre. As dez ja se til longe. E se descobrir nesse meio tempo qualquer impIica<;:ao maior de Moretti com Bechara, vai ser chutado pro alto. Quero que se dane.

Victor Klauss, que estava sempre disposto a falar, fa­zendo mais gestos do que outra coisa, diz a Lucio tel' seguido Moretti ate a cidade e ele foi direto ao apartamento da Mar­ques de Abrantes.

- Esperei duas horas embaixo e nao reapareceu. Acho que descontiou de tel' ido junto. 0 bicho e mais assustado do que um coelho.

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Quando Klauss termina de narrar a sindicancia em tor­no de Moretti, Lucio fica pensando em Ligia. Os seios fartos, o corpo nu, mostrando-se para urn filho da puta. 0 rosto macio, as coxas macias, agarrando-se nUID Sacana trai<;oeiro. E so entao percebe que tinha ciume da mulher que gostaria de comer. Seria capaz de trail' Liece?

- Seria. Nijini permanecia de olhos fechados mas tambem esta­

va acordado. Sabia que 0 irmao nunca dormia na vespera de um assalto e terminara adquirindo a me sma mania. 0 radio transmitia 0 programa de musicas nostalgicas e era todo de­dicado aos motoristas de pra<;:a. 0 locutor Iia uma lista enor­me de anuncios e ai tocava uma musiquinha antiga, daquelas que lembravam carnavais de dez anos atds. Lucio da descar­ga na privada, volt!! ao sofa. PauIinho oferece cafe a todo mundo, mas Fernando C. O. recusa. So toma alguma coisa de manha cedo, apos escovai: os dentes. Lucio volta a falar na necessidade de cada um recapitular 0 plano.

- Qualquer duvida se esclarece. So Klauss tinha alguma coisa a indagar. Queria saber

onde poderia encontrar Moretti pra poder ficar de olho nele, sem ser vista.

- pelo que imagino, vai estar ali pOl' perto do Insti­tuto Benjamim Constant. Nao creio que venha no Karmann­Ghia. POl' isso, fica com 0 Dodge de vidro fume. Da umas passadas pOl' la. E so pra descobrir 0 caminho que tomara, aD saber que chegou atrasado. Vamos vet se nos procura primeiro Oll se vai a Dutro lugar. E isso aL

Klauss sugere que poderia trocar de carro, para nao ser conhecido. Talvez usasse 0 proprio Volks de Liece de Paula.

- E uma ideia - diz Liece. Embora nao diga, imagina Lucio que aquela seria a me­

Ihor chance de descobrir 0 ponto de encontro de Moretti com Bechara Oil outros figur5es que nunca apareciam a luz do sol.

- Se acontecer 0 que espero - diz ele - entao va· mos tel' uma verdadeira festa de fim de ano. Fica-se com 0

dinheiro e na mao 0 cabresto de toda essa canalha que nao vale nada mas pode falar grosso, dar uma de autoridade. Liberta-se 0 Micu<;:u e ate 0 Ze Branco, se me del' na telha. E 0 ponto senslvel da historia. Tua fun<;:ao, Klauss, e tao importante quanto 0 proprio golpe. E 0 rendimento e 0

mesmo. Nao altera em nada.

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Urn POllCO antes das oito tomaram cafe com torradas e queijo. Lucio estava calma. Liece apresentava certo nervo­sismo. Era sempre assim. No momenta do ataque enchia-se de audacia e imagina<;ao. Nijini era frio. Nao se alterava. Nem antes, nero depois. Nissa parecia bastante com 0 irmao. Fernando C. O. enfrentava 0 problema como se estivesse numa festa. Sorria diante das balas e dos rostos assustados dos bancarios. Marta Rocha tornava-se implacavel, Paulinho era agil. Urn gato saltando de pontos diHceis. Capaz de abrir fechaduras, por mais seguras que fossem. Abria com palitos as algemas que the colocavam nos bra<;os. Era mais versatil nisso do que 0 proprio Lucio. Alem dessas pequenas destre­zas, sabia dirigir urn carro como poucos. Fora bamba dos pegas no Alto da Boa Vista. Vencera Lucio em muitas dispa­radas, ladeiras abaixo. Diziam que Paulinho so tinha nervos quando sorria. Klauss nao era corajoso, mas sentia certo sa­dismo de meter-se em encrencas. A fun<;ao de bisbilhotar, seguir, perseguir, cabia-Ihe como uma luva. Passava dias se desincumbindo de urn caso. Mais cedo ou mais tarde viria com a resposta. Urn relatorio completo. Como £izera de Ligia e de Moretti. Estava tudo devidamente anotado. Os dias em que 132 se encontrou com Moretti, as idas e vindas ao predio da Marqu~s de Abrantes, a perman~ncia no aparta­mento de Vila Isabel, os habitos de Carcara. Costumava parar no barzinho Ceu Estrelado, em Bras de Pina. Depois de quatro pingas estava falador e valente. Contava historias que nao existiam, prontificava-se a pagar despesa de todo mundo. Embora sempre contente, enfurecia-se com facili­dade. Klauss esteve no barzinho, bebendo lado a lado com Carcara. Nisso era born. Nos assaltos, geralmente fkava por ultimo au fazia coisas extravagantes, como aquele tiro no peito do guarda que se escondera debaixo da mesa. Urn erro tremendo de Klauss, que deixou Lucio cheio de indignac;:ao.

- Pra que matar 0 hornem, cara? Nessa epoca dissera ter ficado com medo de tudo. Pen­

sou que, ao correr, a guarda salsse do esconderijo e a acer­tasse pelas costas. Nao tinha coragem de arriscar. E quem nao arrisca esta fora do jogo. Todavia, na perseguic;:ao a Mo­retti, ninguem melhor do que de. Descobriu a manobra de Armandinho e Marco Aurelio; provou que estavam desvian­do os carros roubados, queriam entabular negocia<;6es diretas com Severino Lins, em Pernambuco.

Lucio estava certo de que aquele era 0 caminho: Klauss nos passos de Moretti, atento aos menores movimentos dele.

170

Ele, Fernando C. 0., Nijini Renato, Liece, Paulinho e Mar­ta Rocha no ataque. Nao tinha mais 0 que detalhar. Era so chegar a Urea, dar 0 recado.

Paulinho serviu nova rodada de cafe. Apenas Liece conseguiu dormir urn pouco. Marta Rocha havia saido mas retornou logo. Lucio tomava tranqiiilamente cafe, ouvindo as pilherias de Nijini com Liece. Olhava as laranjas que ama­releciam dentro de urn prato. As cores vivas e aquelas for­mas que tanto 0 atrafam, levaram-no a recordar 0 velho co­ronel. 0 esfor<;o que fizera para tira-lo daquela vida. A esperanc:;a que tivera de tornar-se urn pintar, capaz de trans­por para a tela form as como das laranjas, simplesmente ama­durecendo, enquanto ali, com os companheiros, cOIDplicavam­se em absurdos.

HE 0 moinho, coronel: nao pode mais parar. Sao as pas que tocam horizontes, movendo-se sempre, enleando-se aos gravetos de nuvens e a Hi da terra, revolvendo-nos junto a tudo que e bom e tudo que nao presta. Mas, prometo, urn dia the mostrarei, no vermelho, no amarelo e no roxo-ensan­giientado, a explosao de uma aurora permanente_"

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XVI

o sol derramando na copa das arvores, nas paredes la­minadas dos ediffcios, na rua de faixas brancas para pedes­tres, no balan~o das crian~as do jardim de infancia. Os carros ainda tinham riscos de orvalho na lataria e as far6is estavam emba~ados de sonolencia. No primeiro entruram Lucio, Fer­nando e Liece. La para 0 Hm do quarteirao caminharam Nijini Renato, Marta Rocha e Paulinho. Victor Klauss tomou urn taxi. Fai ate a cas a de Liece, nas Laranjeiras, apanhar o. Volkswagen azul. Com ele ficaria rodando pela Avenida Pasteur, a partir das dez horas, quando entiio deveria apare­cer Moretti. Lucio DaD dissera aas companheiros, mas no intimo senti a satisfa~ao de poder surpreender Moretti. E, como praticamente ja decidira, nao levaria nada daquele assalto. Poderia ate dizer que a coisa terminou nao dando certo. Entre nove e nove e vinte faria 0 trabalho. Quando Moretti chegasse, as dez, s6 tamaria conhecimento do movi­menta que por certo haveria na area.

Os carras avant;avam vagarosamente, dobrando esqui­nas, parando em sinais. E so agora Lucio recordava 0 interior da agenda bancaria. Urn predio modesto, sem tantas COffi­

plica~6es. 0 diffcil era entrar. 0 resto se resolveria por si pr6prio.

Chegaram a Ramon Franco. Na esquina desta rua com Avenida Portugal, pararam. 0 outro Dodge, dirigido por Nijini, tambem parou. Lucio olhou bern aquele bairro de ruas tranqiiilas, ~asas rodeando morros de pedra, amendoei­ras nas calpdas avermelhando as folhas no sol da manha, brisa suave que vinha do mar ali perto, pontilhado de mas­tros. 0 carro continuou pela Rua Marechal Cantuaria. 0 de Nijini ficou no cruzamento com Avenida Portugal. 0 ponto decisivo da fuga. Nijini e Marta Rocha trataram de afastar-se para evitar suspeitas. Sentaram-se na amurada, debaixo das

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amendoeiras. Marta Rocha olhava urn jornal, Paulinho man­tinha-se ao volante.

o Dodge em que ia Lucio pas sou pela ag2ncia bancaria, estacionou na curva, onde novamente a Marechal Cantuaria desemboca na Avenida Portugal, ja la para os lados da TV Tupi. Saltaram Lucio e Liece de Paula, Fernando aguardan­do. Lucio conduzia uma pasta e sua aparencia era de urn pequeno negociante. Dono de bar ou salao de jogos eletr6-nicos. Na porta da agenda, 0 guarda de revolver na cintura, rosto encovado. Encontraralu-se no baldio. Os que estavam na frente, sendo atendidos pela mocinha de cabelos aloura­dos. 0 rel6gio na parede assinalava nove e vinte. A mocinha morena veio atende-Ios. Lucio queria abrir uma conta, fazer urn deposito, falar COIn 0 gerente.

A lnocinha morena pegou Uln taHio, eomec;ou a escre­ver. Lucio ia falando e ela perguntando coisas. Liece olhava a porta, aguardando que entrasse 0 tereeiro homeln: Nijini Renato. E alguns minutos depois, apareceu. 0 guarda foi violentamente empurrado para dentro.

- Todo mundo de mao pta cima. Nao trouxeta a 45, como mandara Lucio. Estava por­

tando a metralhadora e os que 0 olhavam nao tinham duvida do que dizia:

- Quenl reagir sera cortado no meio. A mocinha morena apavorou-se, a de cabelos alourados

solu~ava, 0 homem gordo e calvo fazia gestos descontrolados, urn dos caixas tentou oeul tar-se, Lucio evitou que isso acon­tecesse, mantendo-a na mira do revolver. 0 guarda fora de­sarmado e se juntava aos que erguialn as brac;os. Lucio e Liece entraram na dire~ao do gerente. Nao sabia responder o que the perguntavam. Liece tmnbelTI estava nervoso. Lucio impressionava pel a calma.

- Pela ultima vez, a chave do cofre. E, dizendo isso, fez urn disparo na mesa. Acertou a cin­

zeiro de cobre, que bateu na parede, com muito barulho. 0 hom em gordo e -calvo, do lado de fora do baldo, p6s-se a gerner, a mocinha de cabelos alourados chorava alto. 0 caixa que ten tara fugir estava deitado no chao e tambem chorava.

o gerente ergueu-se, abriu 0 cafre, Lucio guardou na pasta que trouxera os ma<;os de notas. Quando esvaziou 0

primeiro cofre, voltou-se para 0 hornem sempre muito assustado:

Agora, tipo ordinario, quero 0 dinheiro do segundo cofre.

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Nao tinha um segundo cofre. Lucio indignou-se, deu-Ihe uma bolacha.

- Nao tolero mentirosos. Quero 0 segundo cofre e ja. Meteu-Ihe 0 cano da arma no pesco~o, puxou 0 gatilho.

o gerente, assim ameac;ado, desceu por uma escadinha e hi estava 0 cafre. Quando a espessa porta se abriu, ficaram impressionados com as notas empilhadas. Bem mais do que poderiam ter imaginado. Provavelmente uns quatrocentos mil. Pegou uma sacola de supermercado, encheu-a, mandou o gerente conseguir uma pasta. No final Liece abriu 0 ba­nheiro, mandau que funcionarios e clientes entrasselD. A mocinha alourada foi a Ultima. Liece garantiu:

- Nao fique com medo. Nao vai acontecer nada. Que­riamos s6 0 dinheiro.

Lucio no entanto tinha outras ideias a respeito de como deixar 0 banco. Nada de afoba~ao, nada de correrias. Abriu a porta do banheiro, chamou 0 guarda para fora, pediu a chave da porta principal. Nijini estava petto, a metralhadora apontando. 0 telefone tocou, 0 proprio Liece atendeu. Era uma mulher procurando 0 gerente. Disse que dentro de ins- . tantes estaria de volta. 0 guarda que se chamava Elias Ba­tista de Oliveira tratou de localizar a chave.

Nijini meteu a arma numa sacola de oleado, aguardou que Lucio e Liece chegassem ao carro. Passou rapidamente a chave na porta, seguiu na dire~ao onde estavam Marta Ro­cha e Paulinho. Jogou a sacola com a arma na mala do Dodge, esperou que Lucio passasse. 0 carro apontou na Avenida Portugal, sem desenvolver grande velocidade. Pas­sou pelo cruzamento da Marechal Cantmlria e Ramon Franco, e rapidamente atingiu 0 ponto temido: a ponte estreita. Mesmo ali nao houve novidade. Nenhum carro da polfcia, nada que denotasse anormalidade. Passaram a achar 0 golpe facil demais. E ja estavam quase na praia de Botafogo quan­do dois motociclistas cruzaram por eles. Fecharam 0 carro de Lucio. Fernando manobrou para cima do meio-fio, con­seguiu livrar-se. Paulinho e Nijini perceberam a manobra, prepararam-se para a confusao que se seguiria. 0 Dodge de Lucio avan~ava a toda velocidade na dire~ao do Aterro do Flamengo, as motociclistas atnis. 0 segundo carro procurava alcan~a-Ios e Nijini nao entendia 0 que aquilo significava. Nao parecia gente da polfcia. Urn dos motociclistas acertou nos pneus do carro de Lucio, este teve de parar. Quando Lucio parecia dominado, surgiu Nijini e as motociclistas de­sapareceram. As sacolas foram transportadas para 0 Dodge

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dirigido por Paulinho. Temiam prosseguir pelo Aterro, pois as safdas eram poucas. MeSilla assim resolveram arriscar e em alguns minutos 0 carro estava chegando em frente ao Museu de Arte Moderna, fazendo 0 balao para atingir a Avenida Antonio Carlos e de ]a 0 Castelo. Na pressa Lucio recordava ter deixado uma das armas no carro.

- E 0 que tern isso? - argumentava Fernando. -Acha que ja nao sabem que fomos nos?

Lucio nao estava para canversas. Ouvia os companhei­ros mas nada comentava. Nao entendia 0 aparecimento dos motociclistas.

- Vamos ate Campo Grande. Na Estrada do Cabu<;:u, onde Moretti tem uma casa. Quero ver se 0 palpite da certo. Se esses motociclistas vieram mandados por de, so pode ser 1,1 que se escondem. De outro lugar nao poderiam ter vindo.

o Dodge cortava caminho na dire~ao da Avenida Brasil. Nos trechos menos tumultuados a velocidade chegava a cento e vinte quilometros. Avan<;aram muitos sinais vermelhos, subiram calc.;adas, assustaram uns carregadores que ajudavam no conserto de uma carreta e finalmente chegaram it Estrada do Cabu~u. Uma faixa estreita de asfalto, cortando regi5es de muita vegeta~ao. A pista dava mao e contramao e 0 jeito era seguir atdis de uma por<;ao de carras. Assim, lentamente, terminaram diante de urn portao pintado de verde, com 0

numero que Ihe dera Victor Klauss. Marta Rocha salton, informou-se com 0 vdhote que cuidava do jardim.

- E aqui mesmo. Ta dizendo que Moretti saiu mas nao demora.

Marta Rocha abriu 0 portao, 0 velho nao gostou, veio reclamar.

- A gente e amiga dele. o carro entrou pela alameda acimentada, com roseiras

de urn lado e do outro. - 0 safado tern bom gosto. Fernando dizia essas coisas, enquanto esquadrinhava a

regiao. - Acho born se fazer uma investigal,'ao por a1. Lucio sentou-se numa cadeira de balan~o, 0 cao peludo

e man so chegou perto, ladrou por ladrar. Mais para cumprir sua fun~ao de cao do que propriamente para assustar. 0 velho, chapeu de carnauba enterrado na cabe~a, resmungava, Lucio ouvia ele dizendo que aquilo ia Ihe dar problemas.

- Nao se preocupe. Quando Moretti chegar digo que

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o senhor nao deixou a gente entrat. Nos que entramos no peito.

o velho movimentava a tesoura com habilidade, cor­tava folhas amareladas, tirava galhos secos, a manha toda de sol ali derramada, fazendo as petalas brilhar, inundando o capinzal em frente. Sabia que, a considerar 0 plano origi­nal, Moretti nao voltaria tao cedo. As dez deveria estar perto do posto de gasolina que ha na Avenida Pasteur, es­quina de Avenida Portugal. As dez e vinte terminaria 0 assal­to. Na realidade 0 golpe fora antecipado de uma hora e ele nao adivinhava. No entanto, aqueles dois motociclistas de capacete, blus6es de couto e luvas 0 intrigavan1. Na troea de tiros demonstl"aram grande habilidade. Nao so em dispa­rar como em defender-se. Nao podia ser gente comum. E como souberam do assalto fora da hora marcada?

- Nijini. Te manda de taxi Iii pra Urea. Entra em contato com Victor Klauss que ta rondando por la. Traz ele aqui.

- E 0 velho al fora? Vai deixar ele ir embora? Claro que nao. Enquanto a gente .estiver pOl' aqui

fica sendo nosso convidado. Nijini sorri. Fernando e Liece aparecem. - Ta tudo normal. 0 terreno do homem vai ate a

outra rua. Deve tel' mais de duzentos metros de fundo. Uma bela propriedade. Gostaria de viver numa cas a assim. Som­bra e agua fresca. Disso e que a gente precisa.

Marta Rocha e Liece de Paula acham engra\'ado. Fer­nando continua:

- Bern que a gente merecia. Ja se lutou demais. Lucio nao participa daquele papo-furado. Os motoci­

clistas, sua habilidade, 0 manejo correta das armas ocupam­lhe 0 raciocinio.

- Acredita que Moretti tenha conseguido os caras pra nos tomar 0 dinheiro e dar no pe? - pergunta a Fernando.

- Talvez sim, talvez nao. - Como ele sabia que 0 plano tinha sido antecipado?

- indaga Marta Rocha. - Esse e que e 0 problema. - Sera que alguem entre nos deu com a lingua nos

dentes? - diz Liece. - Imposslvel. Salmos todos juntos da chacara de Mae­

zinha. Depois voltamos pra lao Liece saiu com Klauss e final­mente nos tres. Marta nos encontrou no apartamento de Paulinho.

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- Ainda bern que foi assim. E chato a gente ficar sus­peitando urn do outro - comenta Marta Rocha.

Lucio se levanta, caminha na dire\,ao do velho que con­tinua a trabalhar no jardim, indiferente ao sol quente nas costas. Chega perto, acocora-se. 0 velho se empolga de vel' urn jovem que tambem se preocupa com as flores. E a con­versa vai assiln, entre as flores e os habitos de Moretti, ate que Lucio fica sabendo 0 que desejava. Naquele sitio, fre­qiientemente vinham muitos desconhecidos. Uns deles, pelo menos, costumavam chegar em rnotocicletas.

-" Doutor Moretti tambem tern uma maquina possan­te, Inas so sai aos domingos - vai dizendo 0 jardineiro. -E urn hom em born, 0 dr. Moretti. Sempre alegre e am ante de rosas.

Lucio pergunta de que marca era a motocicleta de Mo­retti, 0 velho nao sabe dizer.

- E dessas grandes, que a rapaziada ta usando por aL Dizern que custa rnais caro que urn automovel.

Isso bastava para que Lucio tivesse alguns elementos em que basear seus dlculos.

- As maquinas sao de Moretti. Dele ou de alguem que deixa aes seus cuidados. Sou capaz de apostar que nisso tudo tern dedo de Bechara.

- Mas se nos conseguimos escapar deles, pOl' que ficar se preocupando a toa?

- Muito simples - respondeu Lucio. - Se provar que Moretti tenteu nos atacar e mais uma razao pra que nao participe do resultado do nosso esfor\'o.

- J a entendi. E is so mesmo - diz Liece. - Vale a pen a pesquisar.

Pelo tempo que tinham chegado, pelas incurs5es que Fernando e Marta Rocha haviam feito no sitio, era provavel que Nijini ja estivesse na Urea. Lucio manda Fernando puxar o carro para a garagem.

- Ja vi que vamos demorar par aqui. POl' volta das duas horas chegou 0 Volks azul. Nijini

eVictor Klauss entraram na alameda das rosas. 0 jardineiro sentara debaixo do flamboyant. Nijini estava suado.

- A poHcia inteira ta na Urea. Falam que levaram trezentos e cinquenta mil do banco.

- Ja mandei conferir 0 dinheiro. Vamos ver se dizem a verdade.

Tomara que sim - diz Klauss. - E Moretti?

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- Nem sinal dele. Passei a primeira vez pela Avenida Pasteur as dez em ponto. Vi viaturas da PM. Nenhum Karmann-Ghia gelo. Fui ate a praia Vermelha e retornei. Nao arrisquei mais para evitar problemas.

Fernando aparece, diz que a importancia "arrecadada" ia a trezentos e trinta e seis mil.

- Estao querendo nos enganar em catorze mil - diz Nijini sorrindo.

Lucio nada comenta. Pede novamente a Fernando que fal.'a os dlculos para a divisao. 0 velho se aproxima da tor­neira, diz que as vezes Moretti costumava passar boa parte do tempo jogando dama na casa de urn amigo, urn pouco rna is adiante.

- E a casa que tern muro cor-de-rosa. Fica debaixo de umas mangueiras. Da curva, sem ser essa aqui, a gente avista logo 0 muro. Vma beleza de casa.

- Fernando, vamos ate lao Entram no Volks azul, manobram. Realmente, logo de­

pais da curva, hi estavam 0 muro, as flores, as mangueiras. Fernando salta, toea a campainha. Vern urn menino atender. No alpendre, urn homem moreno, oculos de aros de tarta­ruga. Ele e Moretti, atentos ao tabuleiro de dama.

Moretti vern ate 0 portao. Camisa aberta, correntao de prata no pescol.'O, confundindo-se com os cabelos emara­nhados do peito, relogio no bral.'o cabeludo. Aproxima-se sorridente, fala com Fernando, com Lucio:

Tudo certo, chefe? - pergunta. Quase tudo. So umas coisas precisam ser esclare-

cidas. Esperem por mim la em casa que nao demoro.

Lucio volta a cadeira de balanl.'o, 0 jardineiro desa-pareceu.

- Para onde foi 0 velho? - quer saber. Nijini nao reparou. Marta Rocha tambem nao. - Como deixaram 0 hornem sait? Klauss se encarregou de localiza-lo. Depois aparece: - Foi mesmo embora. Nao vi a marmita dele na ga­

ragem. Moretti chega.

Foi dificil encontrar isso aqui? - Ate que nao. Diffcil e saber com quem tamos tran­

sando. Lucio esta enfezado. Nas primeiras palavras mudou logo

de cor, os olhos ficaram congestionados de odio.

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- Quero saber quem eram aqueles motociclistas que iam acabando com a gente no Aterro do Flamengo.

- E que sei disso? - Deve saber. A partir do momento em que nao foi

ao local, como se combinou, tudo pode tet acontecido. - Nao fui por achar que terminaria criando proble­

mas. Ai voItei it casa de Maezinha pra avisar e voce e todos os outros tinham sumido. Quem e 0 culpado? Ou pens a que tambtom nao tou de saco cheio de suas desconfianl.'as?

Lucio ficou olhando aquele tipo que era capaz de in­ventar coisas que 0 deixavam sem a<;;ao. Aquela desculpa era uma delas. Sera que retornou a chacara de Maezinha, altas horas da madrugada, so para dar aquele ala? Como desmenti-lo, se de fato nao ficaram la?

- Muito bern, Moretti. Mais uma vez empatamos. Pe<;;o que ajude a descobrir 0 paradeiro dos motociclistas. Nao e gente da policia. E pessoal da paralela. Gente que quer ficar com a parte do leao, sem aparecer no noticiario. Ou se apura direito is so ou este e nosso ultimo acordo.

Lucio continua sentado na cadeira de balan~o, Moretti do lado, Fernando e Liece na murada recoberta de cerami­cas. Marta Rocha e Paulinho conversando com Nijini Renato.

Quem, alem de voc~s, tomou parte no golpe? - So a gente. Acha pouco? - Falta 0 Klauss. Deve ter ido ao banheiro - diz

Fernando. - Esse Klauss ta transando firme? - quer saber

Moretti. - E da turma. Acreditamos nele - responde Lucio. Moretti rio Fernando nao concorda com aquilo. - Ta insinuando que 0 rapaz e mau-carater? Por que

nao espera ele pra dizer is so ? - Nossa, como todo mundo ta nervoso. Nao disse

nada. Tou apenas perguntando. As mesmas suspeitas que levantam contra mim a cada momento. Nao e verdade?

Lucio nao responde. Aparentemente nem estava aCOffi­panhando a discussao.

- Vamos ao que interessa. Ternos trezentos e trinta e seis mil ai no carro. Vamos repartir edebandar. Daqui pra frente, cada urn por si, Deus por todos.

- As radios tao falando em trezentos e cinqiienta mil acrescen ta Moretti.

A verdade ta do nosso lado. - ]a que e assim, que posso fazer?

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- Liece, voce que e born na conta, divide trezentos e trinta e seis por aito - diz Lucio.

- Mas par que em partes iguais, se nem todas tive­ram a mesma responsabilidade? - pondera Moretti.

- E 0 que pensa. Cada um arriscou a vida a seu modo. Cada urn tava la pro que desse e viesse, S6 voce faltou, por motivo ja justificado.

Moretti compreende que Sua argumentac;ao fora tola, sem sentido. .

- Esse e meu estilo de agir, Foi como fiz sempre. Nao tou arrependido. Quero e encerrar isso 0 mais depressa pos­sivel e sumir - repete Lucio.

- Da quarenta e dois mil pra cada urn - diz Liece. - E isso ai. Belo salario para urn dia de trabalbo. Nin-

guem ganha isso no pals. Nem 0 rei dos bicheiros, que pode ficar em cas a numa quarta-feira, jogando dama com 0 poli­cial em disponibilidade.

Moretti sorri. Liece traz 0 dinheiro. Uma porta e aberta e todos eles entram no salao luxuoso, onde h:i tapetes caras. sobre tacos sintecados, poltronas confort:iveis, armas e qua­dros antigos nas paredes, alem de urn lustre com penduri­calhos de cristal de rocha. Num canto, televisao e uma es­tante com cole<;:6es encadernadas.

Moretti puxa a cadeira perto da mesa, Lucio, Nijini e Fernando C. O. fazem a mesma coisa. Liece empilha 0 di­nheiro de urn lado, come."a a partilha. Moretti abre urn pe­queno armario, coloca sua parte1:i dentro, fecha, poe a chave no bolso. Lucio entende que nao esta satisfeito com 0 resul­tado. Aquele e, ainda, 0 momento da separa<;:ao. Cada urn para 0 seu lado, boca fechada, olhos abertos.

- 0 primeiro que der bandeira vai ser esfolado vivo - diz Moretti, serio.

Paulinho e Marta Rocha saem. Ficam Lucio Flacio, Lie­ce, Klauss, Fernando e Nijini. Moretti empresta a Karmann­Ghia a Lucio e 0 grupo se dissolve. Klauss e Liece vao no carro de Moretti, 0 resto no Dodge dirigido por Nijini. Na zona central de Campo Grande 0 Dodge e abandonado. Lucio prossegue viagem no Karmann-Ghia gelo. Liece junta-se a Nijini e Fernando C. O.

Klauss vai com Lucio. Ainda tern servi<;:o a fazer. La pela semana que vern a gente se encontra em Bela Ho­rizonte.

Tou achando is so tudo muito estranho. Nao gostei

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da recep<;:ao que Moretti nos deu. Ta puto com 0 dinheiro que recebeu -. comenta Fernando.

- Acho que ganhou muito. Nao fez merda nenhuma e ficou de igual com a gente - responde Nijini.

- Isso vai dar confusao -. considera ainda Fernando. - E por isso que todo cuidado sera pouco - acentua

Liece de Paula. Enquanto 0 grupo seguia, procurando transporte para

a cidade, Lucio Flavio dirigia 0 Karmann-Ghia gelo, rumo a Vila Isabel.

.- Tenho certeza de que vamos descobrir aqueles mo­tociclistas. De alguma forma estao ligados a Moretti. Sou capaz de apostar.

Ja bern perto do ediffcio, Klauss manda Lucio parar. Entram num bar, depois Victor Klauss vai para 0 predio. Naa demora muito, retorna. Lucio manda botar outro cafe­zinho. Klauss pede 0 a<;:ucareiro.

- Nao deu outra. Os caras tao ai. Na garagem do edi­fkio ha: duas motocicletas. 0 porteiro disse que ha: uns caras no apartamento. Nao sabe se Moretti ta tambem.

- E is so ai. Vamos 1::{ em cima acertar as contas. Nao posso deixar no ar.

Entram no elevador, Klauss aperta 0 botao do decimo primeiro pavimento. Vao subindo silenciosamente. A porta se abre, saem null corredor estreito e escuro. Avan~am al­guns passos. Klauss vai tocar a campainha, Lucio segura-lhe a mao. E, encostando-se na parede, ergue a corpo num im­pulsa extraordinario, bate vio1entamente com ambos os pes na porta que seabre com forte ruido, peda<;:os de madeira fragmentados, farelos de reboco caindo nos tacos escuros. Urn homem s6 de short salta da cama, outro corre para 0

armario, a fim de pegar a arma, Klauss encosta a porta, te­mendo que algum vizinho venha ver 0 que se passa. Lucio, 45 em punho, mantem os desconhecidos sob dominio. Or­dena que sentem no chao, Klauss faz a inspe<;:ao do comodo.

- Tao s6 os dois. Klauss diz isso, abre 0 armario e la estao os blus6es de

couro, os capacetes de ciclista, os 6euIos e as luvas. - Que significa isso? - quer saber 0 tipo branco,

forte, de olhos azulados. - Significa que quero ouvir uma hist6ria a respeito

do tiroteio no Aterro do Flamengo. E s6 gosto de hist6rias empolgantes.

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- Nao se sabe do que esta falando - diz 0 moreno, magro.

Lucio acerta-o no tosto com urn pontape. - Acabei de dizer que quero uma longa historia. o tipo branco amea~a levantar-se, Lucio acerta-o na

cabe~a com uma coronhada, obriga-o a sentat-se. - Nao se tem nada a con tar - diz 0 tipo branco

novamente. - Klauss, enche a banheira d'agua. Vamos vet se sao

valentes de fato. o moreno nao agiienta 0 trance. - Nos contrataram pra bagunl,'ar 0 coreto. So que a

gente atrasou. Quem contratou?

chara. Moretti. Disse que 0 pagamento era com 0 dr. Be-

Quem e esse Moretti?

Morte. Um cara que ta em todas. Ate no Esquadrao da

Como e que ele e? Sabe muito bem - responde 0 homem branco, de

olhos azulados. - Tao bern que nao tou entendendo 0 que faz aqui. Moretti disse que planejou 0 golpe com voces na chacara de Maezinha.

A afirmal,'ao surpreende Lucio. - Qual 0 objetivo de Moretti mandando vOces contra

a gente? Se ia pegar 0 dinheiro e entregar a ele. Deu tudo errado - comenta 0 tipo magro. Sao dois imbecis - grita Klauss. Tamos no mesmo barco - responde 0 tipo forte,

recebe um tapa, 0 sangue sai de um canto da boca. - So que, com Lucio Flavio, nao se faz semelhante

coisa. Os que ousam atrever-se pagam caro. Tamas criando um estilo novo pra punir filhos da puta como vOces. Vao acabar como Constancio Grande. Ouviram falar dele?

Klauss volta do banheiro. 0 rUldo da agua chega ao comado cnde estao. Klauss rasga uns lenc;6is, amarra as bral,'os do branco e do moreno para tras. Empurra 0 mais forte, obriga-o a entrar na banheira. Amordal,'a-o, amarra-Ihe as pes. En1. seguida faz a mesma coisa com 0 magricela. Este procura Hvrar-se das amarras, relata epis6dios sem sentido. Duas tiras de pano 0 silenciam e e atirado por cima do tipo branco, a cara voltada para baixo.

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Antes de sair do apartamento Lucio escreve algumas linhas num recorte de papeI, deixa-o sobre a mesa, perto da travessa com as frutas de cera. Descem pelas escadas~ che­gam ao saguao, aquela hora deserto. Atingem facilmente a rua, mas ai Lucio tern uma surpresa: 0 Karmann-Ghia gelD que deixara perto do bar desapareceu. A surpresa e mais dolorosa porque nele estava toda a sua parte do dinheiro roubado ao banco, mais a de Victor Klauss. Por uns momen· tos Klauss nao diz nada. Vao ate a esquina e nem sombra do carro. Dao a volta no quarteidio, nao veem nenhum Karmann·Ghia gelo. Klauss percebe 0 desespero de Lucio. Para tranqiiiliza-lo repete, meeanieamente:

- Deixa isso pra Ia. Se parte pra outra. Nada de amofinamentos.

Lucio nao responde. A cabel,'a gira. Nao pode acreditar que Moretti tenha sido tao sutil, capaz de segui-los, mas e a uniea maneira de explicar 0 sumic;o do carro. Vao eami­nhando por qualquer rua, atravessando qualquer avenida, parando aqui e ali, onde v~em um Karmann-Ghia gelo. Klauss sente 0 quanta se arriscam naquela perseguic;ao lOllea, jornais pendurados nas bancas anunciando a ca<;ada monstro que a policia promovia, os chef6es da seguranc;a prometendo setenta e duas horas para a captura dos assaltantes. So entao Lucio aceitou a derrota. Haviam chegado a uma pral,'a onde as erianc;as brincavam, mendigos estendiam-se ao sol, urna ve­lha fazia trieo. Lucio estava nervoso. Sentaram-se num ban­co. Klauss evitava falar.

- Precisamos retarnar ao apartamento de Moretti. Tern de entender que nao se tii brincando - diz Lucio.

- A gente ta se arriscando demais - lembra Klauss. - Agora se vai ate 0 fim. Do contrario nao se pode

nem chegar em casa. Nao tenho um tostao. - Eu retirei uma parte do que recebi. Ta comigo.

Tenho mais de dez mil. Pode dispor. Lucio olhou 0 companheiro. Klauss sorri. Lucio fica

com aquela expressao de contentamento nos olhos. Sempre o admirara e agora 0 admirava mais ainda. Nao se enervava. Frio e alegre. As piores coisas podiam acontecer, nao Ihe ti­ravam 0 bom humor. Victor Klauss jogando sinuca na tendi­nha de seu Quintino, a cIasse de urn cara elegante, punhos da camisa sempre muito limpa, dobrados, taco firme entre os dedos, toque suave na primeira bola, ela girando com efeito no pano verde, ate atingir as demais. E aquilo ali era um

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Novamente 0 predio de saguao amplo e deserto. Subi­ram pela escada, tomaram 0 elevador no terceiro andar. Lucio estava impaciente. 0 corredor escuro, a porta aberta com vagar, bastou empurrar, as peda~os de madeira frag­mentados no chao. Klaus foi ao banheiro. Agua vazando pelas bordas da banheira. 0 tipo moreno conseguira escapar da morte por afogamento. Tombara sem sentidos no chao de rnosaicos que, pouco a pouco, ia ficando inundado. 0 branco, forte, nao tivera a mesrna sotte. Arregalava as olhos, como querendo enxergar a origem de seus erros.

- Vamos esperar por aqui? - queria saber Klauss. - Sinceramente como ainda nao sei - responde Lu-

cio. - Nao ta me parecendo coisa s6 do Moretti. - Acho que se devia ir em £rente, deixar 0 ceu desa­

nuviar, tratar de pegar 0 culpado. Ou culpados. De cabe<;a quente nao se resolve nada.

Lucio concorda. Chegam a rua, tomam urn taxi. Antes de passar pelo Catete, Lucio anima-se de novo:

- Avisa 0 pessoal hoje mesmo. Cada urn vai se diri­gindo para Belo Horizonte. La nos encontramos, na pensao da Rua Acre. Janice tambern. Tem razao: e preciso esfriar a cuca. Quelll nao quiser it, trate de se guardar.

- E Moretti? - Deixa ele e Bechara pensar que nos derrotaram. Se

volta de surpresa e se cobra 0 que nos devem, com juras. Nao perdem por esperar!

184

XVII

Lucio tocou divers as vezes a campainha e 56 entao a porta abriu. A sua £rente estava Janice. Olhar triste, cabelos compridos e lisos, rosto bonito. Sem dizer uma s6 palavra, beijaram-se.

- COlllO vai 0 menina? _ Bern crescido. E capaz de nem conhecer. Janice disse isso e sorriu. Lucio entrou no quarto, viu '0

filho que dormia. Voltou-se para ela, beijou-a de novo e foi cOl1tando a respeito da viagern que fariam. Da viagem ao Mexico. Os olhos brilhavam ao falar na mudan<;a de sua vida. Ele, ela, 0 pequeno Leo, numa estrada interminavel.

_ Por enquanto as eoisas nao estao boas. _ Nao estao, mesmo - responde Janice. - Tou

acompanhando 0 notici"rio. A poJfcia a tua procura em tudo que e lugar.

_ E 0 pi~r e que depois de tanta luta, tou sem urn vintem meu.

Janice nada comenta. Aprendera a amar Lucio em silen­cio e a distancia. Desde que se conheceram, nuID dia em que fora ao presidio, nunca mais p6de esquecer aqueles olhos, aquelas maos, as palavras que se traduziam em carinho.

_ Se tivesse te conhecido antes, e provavel que tivesse seguido em Qutro sentido.

Nesses momentos Janice 0 beijava com ardor. Aquele encontro, apos tanto tempo, era significativQ para ela. Sabia o quanta Lucio correspondia aD seu arnor. Estava disposta a tudo por ele.

E Nijini ta bem? - quer saber Janice. _ Ate ha pouco estava. Que tern feito Leo? _ Muita arte. Fico com ele na prac;;a ate quase anze

horas, corre de urn lado pra outro, volta todo sujo de terra.

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Dou banho nele, dou comida, dorme ate tres horas. As vezes saio a tarde, as vezes volta com ele a pra~a. Sem voce com a gente os dias parecem nao terminar nunca. E por mais que me alegre com Leo, muitas vezes me serve de tristeza. E diffcil imagina-Io tao pequeno, sem 0 carinho do pai. Que sera do nosso Hlho, Lucio?

- Nao sei, Janice. Nao sei. As vezes sinto que tou afundando. Ja nao sou 0 mesmo. Nem sempre consigo me impor perante as autrcs. Os acontedmentos me escapam. As redeas do neg6cio vao fugindo de minhas maos. Nao sei, sinceramente, 0 que tern aconteddo 13. em Pernambuco. Preciso estar presente em todos as lugares ao meSillO tempo. E necessaria vigiar Moretti, e necessario vigiar Bechara e Severino Lima. E necessaria estar vigilante para nao set agarrado novamente. Isso tudo e tarefa exaustiva. Se nao conseguir parar esta roda maldita, sei que me acabarei breve.

Janice 0 interrompe, chorando. Beija-Ihe as maos, abra­"a-o, envolvendo-o nos longos cabelos.

- Nao fale assim, meu amor. Tenha fe que tudo isso. passara. Tamos vivendo urn pesadelo que urn dia acaba. Entao poderemos ter paz. Ainda que nao se va para lugar algum. Veremos Leo crescer, nos esfor"aremos pra que tenha uma existencia feliz.

As Iagrimas correm do rosto dela, Lucio tambem tern os olhos vermelhos.

- Nao sei se e maluquice, mas tava com vontade de retornar ao presidio. Me apresentar. Conheci urn velho co­ronel que se tornau muito amigo. Conseguiu pta que apren­desse a pintar. Me deu material e uma sala de estudos. Foi exatamente na epoca que tive de fugir. Uma oportunidade extraviada.

Janice prende-Ihe 0 rosto com as maos suaves. - Acho que ainda nao te prenderam de novo porque

nao querem. Hoje de manha urn homem de terno escuro e aneis nos dedos falou comigo na pra"a. Tava sentada no banco, olhando Leo brincar, quando ele apareceu. E urn tipo baixo e forte. Disse meu nome e comec;:ou a falar de Nijini, Fernando C. O. e de ti. Contou uma historia meio sem sentido e terminou dizendo que era teu amigo. Falou em Moretti e disse que tinham ficado decepcionados com tua atua~ao.

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Tern ideia de como descobriu 0 endere"o daqui? Nao. E 0 pi or e que nem perguntou se eu era

Janice. Foi logo me chamando pelo nome, como se nao tivesse a menor duvida quanta a issa.

- Eo que 'chamam 132. Trabalha pra Moretti. Temos uns acertos a fazer e naturalmente t3. querendo me assustar. Amanha se vai pra Belo Horizonte. Por la ficaremos algumas semanas, ate as eoisas aealmarem.

Janice liga a televisao. As imagens sao de pessoas ele­gantes, num salao de palacio. Urn filme antigo, retratando a alta sociedade norte-americana. Lucio olha os personagens movendo-se. Nem ele nem Janice diziam qualquer coisa. Imaginava a audacia de 132 e de Moretti, buscava uma explica"iio para 0 caso dos motociclistas e 0 desaparecimento do carro com 0 dinheiro. Foi entao que a pergunta de Janice o deixou preocupado.

Tu mataste urn hornem, Lucio? Quem disse is so ? o tal cara de terno escuro deixou transparecer. E mentira. Pura mentira.

Janice beija-o, acaricia-o, e assim Hearn urn tempao no sofa, 0 filn1e se alongando, entremeado de anuncios.

Como e 0 nome do coronel que queria te ajudar? Helio Mendon"a. E chegou a fazer algum trabalho? Bonaes. Se pensa que e faci!' Com os pince!s nas

maos e diante da op"ao das cores e que se ve a dificuldade. Tou com vontade de vol tar aos estudos.

Novamente Hcam em silencio. Janice desliga a televi­sao, vai a cozinha preparar urn lanche. Bota a toalha em metade da mesa, poe os pratos, as talheres, urn copo com leite, urn pedac;:o de melancia. Quer saber dos lugares por onde esteve, das prisaes, 0 tratamento. Lucio nao pode ficar indiferente a curiosidade de Janice.

- E 0 de sempre. Umas melhores que outras. Mas ninguem deseja estar em nenhuma delas. E como escolher entre 0 primeiro ou 0 ultimo cicIo do inferno.

Estirou-se no sofa, ouvindo a voz de Janice, 0 tilintar da louc;:a, a torneira da pia abrindo e fechando, 0 radio do vizinho tocando a musica antiga de Nelson Gon"alves, a crianc;:a chorando aquela hora da noite. E estirado it margem daqueles ruidos domesticos, familiares, foi sentindo profundo arrependimento de existir. De estar ali, perto de Janice, de Leo que dormia e ninguem poderia prever-Ihe 0 futuro. Urn ser de Hcc;:ao cientifica, originario de mundos verdes, mundos amarelos, campanula de vidro na cabec;:a, olhando

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sem entender OS ruidos que floriam. Profundo cansa~o do­minava-Ihe 0 corpo e pela primeira vez achou que aquilo nao era normal. Naturalmente comec;ava a ficar doente; algu­ma enfermidade contraida em celas imundas, em bebedouros anti-higienicos, nas bocas-de-boi, onde preferia sentar-se, para evitar pilheria dos companheiros, admirando cada um que se acocorava para defecar. E foi crescendo dentro dele, com a mesma suavidade daqueles sons familiares, mesclados na voz de Janice, a amargura que brotava e ramificava, atin­gindo-Ihe as pont as dos dedos, 0 cora~ao e os cabelos. Foi vendo, ali, naquela noite de apartamento perdido entre tantos Qutros, a jane1a aberta para un1 saguao imundo, 0 quanta era insignificante e 0 quanta estava emaranhado nos seliS erros enos erros alheios.

- Fiz um bolo que vai gostar. Chegou perto, mostrou 0 prato. S6 entao Lucio prestou

aten~ao no que dizia. Os cabelos de J anice ro~avam-Ihe 0

rosto. Cheirou aquele bolo que ha tanto tempo nao comia, sentiu desesperado desejo de aganar-se a mulher aparente­mente tao fragH e, ao meSilla tempo, tao serena e segura do que dizia e fazia.

- Eu te arno, Lucio, acontec;a 0 que acontecer. Abra~ado a ela os olhos encheram-se de Iagrimas. 0

bolo caiu sobre 0 sofa e na~ se preocuparam mais com ele. o abrac;o silencioso era a ponte de acesso entre 0 desespero do que vivia Lucio e a vida que sempre imaginara, distan­dada na provincia de casas madestas, urn pOlleD acima do chao, porque nenhum homem pode imaginar-se muito dis­tante dele, sob pena de incorrer em faltas graves, as mesmas que agora 0 seguravam - tentaculos de um polvo asqueroso e invisfvel.

Janice evitava dizer qualquer palavra. Sentia 0 pulsar forte do corac;ao de Lucio, sentia suas Iagrimas quentes nos om bros e no pescoc;o. MesillO assim Dao chorou. Esforc;ou-se o que pode para na~ decepciona-Io. Afinal, se desse parte de fraca, quem poderia socorrer aquele homem que na~ sabia 0 melhor rumo a tomar? E ainda naquele momento tao breve, e de tamanha signiHcac;ao, Lucio Hcou pensan­do 0 quanto as coisas aconteciam com ele exatamente ao contrario.

"Tenho medo de escuro e vivo nas trevas; tenho medo de sangue e SOli urn criminoso."

- Nunca mais me deixem so! Gritava para a mae e 0 pai que aproveitaram enquanto

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dormia e foram ao cinema. Quando acordou e viu a aparta­menta escuro, sem ninguem alem dele, pas-se a chorar. E a primeira ideia que Ihe ocorreu foi amanar urn len~ol na janela e por ele descer ate a rua. J untou-se aos vizinhos, aguardou a volta dos pais. Isso fora ha tantos anos. E tantas outras vezes ja fugira pelo lenc;ol, para nao ficar so, nas tre­vas e na solidao. E no entanto sempre que vinha para 0 halo de luz, 0 halo das man has floridas de sons e margaridas, os tentaculos do polvo 0 puxavam de novo para a sombra que era seu destino e sua perdic;ao.

- Que e que tens, arnor? - Nao sei. Me assusto quando fecho os olhos. Parece

que nao vao rnais abrir. - E 0 cansac;:o. Esta noite ficarei bem per to de ti para

que durma em paz. Ficarei tonlando cODta, pra que nenhurn mau pensamento se aproxime.

Beijam-se, as maos suaves de Janice acariciando-lhe as cabelos, ela propria sem conseguir esconder as Iagrimas. E so puderam fugir de tantas e tao amargas lembran~as quando Janice riu de repente e pos-se a falar do bolo, que estava cheirando ali perto, e ja nenhum dos dois se lembrava.

Lucio colocou-o no prato, disse estar saboraso, pondo alguns farelos na boca. Janice puxou a cadeira, sentaram-se a mesa. Como se tivesse esquecido algo rnuito especial, foi novarnente a cozinha, voltou trazendo urn jarro com as flares que comprara para a imagem de Nossa Senhora Aparecida. Duas tosas vermelhas e uma branca, ja bastante murchas. Pos 0 jarro no centro da mesa. Lucio ficou agradecido da­quela lembran~a.

- J amais poderia esquecer que gostas de flores. -Edeti. A pequena refei~ao prolongou-se pela madrugada. Nao

tinhan1 pressa. Lucio aproveitava para explicar como proce­der em Belo Horizonte. Chegariam cedo a rodoviaria, ou apenas ela e 0 menino iriam primeiro? Janice nao estava muito segura dos planas. Entendia petfeitamente a situac;ao, sabia que 0 policiarnento nos pontos de entrada e saida da cidade estavam re£or~ados, a vigiHincia era total. E por isso deixara Lucio encontrar uma soluc;ao. A essa altura ele ja preferia sait num caminhao de carga, como ajudante do motorista, enquanto ela iria normalmente de anibus. Logo em seguida pensou em algo diferente: Janice tom aria um onibus para Juiz de Fora, e somente de Ia pegaria outro com destino a Belo Horizonte.

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Page 94: Lucio Flavio - Passageiro da Agonia.pdf

- Nossa chance e disfar<;:ar ao maXImo. Se algum tira descobrir que es Janice, vai ate deixar que viaje. S6 pra ver onde salta e que destino toma. 0 132, com Moretti e Bechara por tras, estara encarregado russo.

Janice acha a solw;ao mais adequada. Terminam 0 lan­che, ela vai retirando as pratos, Lucio volta ao sofa, fica olhando a lampada no teto. Na luminosidade que 0 of usc a, a cara ironica de Padre, 0 olhar enlouquecido de Tatuagem, o riso abestado, a face triste e humilde de Chico Capeta.

- Creio que ainda nao te prenderatn porque nao que­rem - diz Janice.

"J a que aroda nao pode parar, que as pas do moinho movimentam-se raspando horizontes, 0 melhar caminho e silenda-Ios. E fazer com que 132 deixe de ser sombra e risa, dedos e aneis. E arrancar 0 correntao prateado do peito cabeludo de Moretti, tirar 0 capuz negro da cabe<;:a daqueles homens que 0 espancaram, que rnassacraram Micuc;u, furar os olhos de Bechara, abrir-Ihe a cabe<;:a e atirar no chao as engrenagens que produziam crimes, era puxar Severino Lima para 0 ponto mais luminoso da ddade e gritar bern alto, na frente da multidao: eis ai 0 verdadeiro fadnora. 0 tipo que gera a corrupc;ao e 0 crime."

Mas aquilo tudo s6 ocorria no halo de luz produzido pela liimpada modesta. Mexer naquele tabuleiro, deslocar as pedras, mudar a regra do jogo era coisa diHcil. Livrar-se dos tentaculos do polvo, quase impossive!. Era como lutar com a hidra. Cada cabe<;a esmagada a golpes de machado era Qutra cabec;a que cresceria e sempre mais odienta, arrega­nhando boca feroz. Urn cipoal se entrela<;ando nas muitas arvores do bosque, sem come<;o e sem fim. Urn rio de tormentos, cavan do 0 leito nas bordas do precipicio; urn j arrum de flores venenosas, sugadas por centopeias aladas; urn ceu derramando chuva fervente nas feras endemoninha­das. E da! a razao daquele moinho de pas infinitas, revol­vendo destinos e visceras, ate a idade em que Leo fosse adulto, e talvez num tempo em que tudo aquilo nao passasse de triste recorda<;ao. Num tempo em que ele pudesse dizer, coitado do meu pai. Quis libertar-se e nao conseguiu. Quis set forte. e nao passou de urn fraco.

Lucio ri, Janice acha estranho aquilo e 0 interrompe, ele se assusta, disfar<;a, chama-a para sentar-se ao seu lado.

- Tava pensando uma coisa com Leo. Quando tiver grande e eu ja nao existir. 0 que pensara de mim? Talvez tenha alguma coisa boa a dizer a meu respeito. E tudo que

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espero dele. Mais do que is so seria vaidade inconceb!vel. Pode ajudar que ele venha a go star um pouco de mim.

_ Ajudarei. Sempre pronuncia teu nome. Lucio sorri daquelas intimidades com 0 filho, tern von­

tade de ir ao ber<;o acorda-Io, mas nao 0 faz. Vao viajar cedo, seria injusto perturba-Io. Abra<;ados no sofa, com a luz acesa, terminaram adormecendo. ·Lucio cochilou apenas. Janice dormiu profunda mente , os bra<;os enla<;ados ao seu pesco<;o. Em silencio afagava-Ihe os cabelos macios, ate que remotes galos puseran1.-se a can tar e urn relogio parecido ao da igreja bateu seis horas. Despertou Janice, dizendo-Ihe estar na hora de arrurnar-se.

_ Cedo, assirn, a £isealiza~aa sempre e menor. Ligou 0 radio, Heau auvindo a estac;aa que toeava mu­

sicas e ia registrando as horas. Janice pos tudo que podia levar numa sacola de lona. Deixou para acordar 0 garoto par ultimo. Lucio pegou as roupinhas de Leo, estendeu-as no sofa:. Admirava as pequenos sapatos de couro lustroso, 0

bonezinho de la, as cal<;as. Quando Janice tirou 0 menino do ber<;o, nao se conteve e 0 abra<;ou. Dolorosa e profunda­mente. Apertou-o tanto, que ela nao se cansava de dizer:

_ Cuidado, seu maluco. Vai machucar a crian<;a. Ergueu-o nos bra<;os, bem alto, perto da liimpada, e

viu, pela primeira vez, 0 riso do menino que the trazia nova alegria; os dentes miudos e brancos apareeendo nas gengivas, as covinhas no rosto.

_ Vamos viajar, garotao. Vai go star da estrada. E Leo, na sua alegria infantil, tudo que sabia dizer era: _ Carro, paL Carro, paL Janice sorria com semelhante festa e por uns momentos

chegou a esquecer que aquela nao era exatamente uma via­gem de fe.rias e, sim, un1.a fuga. Mas Leo nao precisava saber disso e, ainda que Ihe dissessem, que diferen\,'a faria? Por uns momentos Lucio esqueceu cOlTIpletalTIente Janice e so voltou a contempla-Ia quando contou urn detalhe que ignorava.

_ Repara como ri igualzinho a voce, bern. Bastou is so para que erguesse novamente 0 garata, ern­

balasse-o de urn lado para a outro, ate con1.ec;ar a rir. Urn riso franco, que parecia nao ter Hm. Vestido e com 0 bone­zinho na cabec;a, Leo parecia uma figura de revista. Lucio acocorava-se, nao se cansava de adlnira-Io.

- Ta lindo!

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- Precisa ver como ta sabido. E teimoso. Quando se zanga, tambem parece 0 pai.

Segurando a mao de Leo, Lucio deixa 0 apartamento. Janice leva a sacola de lona, com rebordos de couro. Na porta do predio tomarn urn taxi, mandam seguir para a rodoviaria. Lucio tira 0 bone do bolso, fala com Leo:

- Qual dos dois e mais bonito? Aproveitando 0 frio que fazia, Janice manda que colo­

que 0 cachecol. Sabe que isso ajudaria no disfarce. E de fato ajudou. 0 taxi parou, havia muita gente em movimento aquela hora, cinco ou seis policiais na entrada, olhando as que passavam. Ao cruzar por eles Lucio abaixou-se como se consertasse as meias de Leo e assim foi passando, sempre andando e puxando as meias do filho. Subiram para pegar as passagens. Janice providenciava as bilhetes, ele carregava Leo. Se via urn guarda se aproximando, ocultava 0 rosto por tras da crian~a. Atraves de sucessivos momentos de cautela, pode facilmente chegar a plataforma de onde 0 onibus partia para Juiz de Fora.

- Vamos ser os ultimos. Se houver qualquer fiscali­zac;iio antes do carro partir, nao se COfre risco.

Janice nao havia pensado nisso. Ou, pior: achava exata­mente 0 contrario. Deveriam entrar logo e acomodar-se no banco mais distanciado. Por is so escolhera os numeros que designavam poltronas bem para tras. Lucio acha grap.

- Claro, voce nao entende nada de fugas. Ela tambem ri. Ate ali a aventura fora divertida. Mas,

cada policial que se aproximava, sua vontade era correr para nao ser alcanc;:ada. Admirava 0 sangue-frio de Lucio, que falava com 0 menino, contava-Ihe coisas e sorria, quando 0

perigo era maior. Pediu para carregar 0 garoto urn pOlleD, Lucio nao deixou.

- Nao se incomode. Posso carrega-lo 0 dia inteiro. Nesta idade ja sabe defender 0 pai.

E s6 af Janice entendeu 0 que Lucio queria dizer com aquilo. Finalmente foram chegando mais e mais viajantes, aglomeraram-se per to do onibus. 0 motorista fardado apa­receu, ficou de pe na entrada, recebendo os bilhetes e devol­venda 0 canhoto. Leo apontava com a bracinho curto na dire­c;:ao do homem, indicando 0 bone de palaque tambem usava. Lucio sotria da argucia do menino e fazia-Ihe festa. Estava praticamente na hora do carro sair e as policiais nao apare­ciam para a revista. Poi entao que ele e Janice entraram.

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Procuraram os lugares e se acomodaram. A porta fechou-se com urn baque surdo, a viagem come~ou. .

_ Ate aqui, nota dez. Tomara que seja assim. Janice abrac;:ou-se a ele. _ Vai ser. Nossa Senhora Aparecida ha de nos ajudar. _ Minha madrinha Janaina tambem. A_ manha nao era tao bonita quanto as que Lucio cans a­

ra de ver da cela, dissolvendo-se em luz. Era cinzenta, urn vento frio batendo, tornando-se mais forte a medida em que o onibus aumentava a velocidade. Diversas vezes encostara Leo na janela, diversas vezes Janice Ihe dis sera que aquila faria mal a crianc;:a.

_ Termina ficando com dor de ouvido. Termina tendo uma gripe.

Lucio gostava daquelas recriminac;:6es. Tinha vontade de dizer que na verdade as mulheres tem mais pontos em comum do que os homens. Sempre repetem coisas que todas dizem, os cuidados sao sempre iguais. A mae tambem dizia ao pai:

_ Cuidado, Osvaldo. Olha esse menino no vento frio. Achava engrac;:ado que os fatos se repetissem, que fos­

sem os mesmos, com pessoas diferentes. E se empolgava de ali estar, 0 onibus correndo por pistas de asfalto, ultrapas­sando automoveis, avanc;:ando por alamedas de vegetac;:ao florida, cortando caminhos de casinhas modestas, com crian­c;:as de pernas tortas e barrigas nuas olhando as que pass a­varn, admiradas e tristes. Numa parada repentina, urn pouco alem de Petropolis, Lucio tomou as precauc;:6es. Olhou para fora, viu que eram duas mulheres e uma garota que subiam. E dai em diante a outra parada foi so na estac;:ao de Juiz de Fora, apertada e muito cheia de vendedores.

Desceram sem problemas, procuraram urn restaurante, Leo contava na sua linguagem enrolada coisas que via ao pai, acenava para a mae. Lucio olhou na direc;:ao da banca de jornais, por tras de uma coluna, viu a figura que 0 perse­guia: 132. A roupa escura, os aneis nos dedos. Pediu que Janice segurasse 0 menino, foi ate a banca, a policial havia desaparecido. Tentou informar-se com 0 jornaleiro, verificou que seria ridiculo e ao mesmo tempo perigoso.

"Como perguntar pelo homem de roupa escura e aneis nos dedas, se ninguem ali deveria conhece-lo?"

Voltou para junto de Janice, ela querendo saber 0 que tinha acontecido, Lucio taciturno e ao mesma tempo sem querer demonstrar tristeza.

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- Nao foi nada. Apenas imaginei ter visto um conhe­cido. Era engano.

Entraram no restaurante, completamente vazio. Lucio tinha medo de ser surpreendido. Mesmo assim puxou a ca­deira, sugeriu a Janice que pedisse 0 prato mais Hcil de servir. 0 gar<;om, muito magro e alto, aprumando uma gra­vata-borboleta no colarinho da camisa branca ja desgastada, queria demonstrar a nohreza que a casa de mosaicos sujos e paredes encardidas nao tinha. Mesmo assim 0 ambiente adquiria sobriedade e, fora 0 rumor que vinha da rua, era de urn silencio imperturbavel. Numerosas mesas estavam dispostas pelo salao que se aprefundava e, em todas elas, frascos con tendo tempero, cubas plasticas de farinha, pe­quenos vidros de molho ingles. Enquanto 0 gars;om organi­zava 0 servis;o, fazendo gracejos a Leo, Lucio pediu licens;a. Olhou demoradamente na dire<;ao da rodoviaria, nao perce­beu nada de anormal. Tinha certeza de que a presens;a de 132 na~ significava exatamente que estivesse prestes a ser capturado. Uma especie de ameas;a constante. Apenas ordem de Moretti ou Bechara, para que fosse mantido it vista e que. soubesse estar sendo seguido. 0 estilo de Bechara. Nao pegar a cdminoso, mas te-Io ao alcance da mao. A qualquer mo­menta poderia ser arrastado pelas ruas, espancado ou ate morto. De conformidade com as determinac;5es. Se morresse, a resposta aos jor~ais seria simples.

- Bandido de alta periculosidade, reagiu, deu uma de valentao. Nao houve outre jeito.

Lucio retotna a mesa, 0 gar<,;om conseguira uma cadeira alta para Leo, 0 garoto sotria e sacudia os bracinhos. Por momentos esqueceu 132, curvou-se e beijou 0 filho, Janice voltava a ficar alegre com a alegria de Lucio. Safram calma­mente como tinham chegado, Lucio mandou Janice comprar as passagens, enquanto ficaria pelas proximidades com 0 ga­rota, olhando vittinas. Janice attavessou a rua, voltou com os .bilhetes. A viagem seria reiniciada. Nas bancas, onde havia jornais do Rio e de Sao Paulo, seu nome anunciado em le­tras enormes. E, olhando com mais cuidado, viu 0 exemplar que publicava sua fotografia. Bastou para que recolocasse o bone, embora 0 calor fosse consideravel.

- Urn dia, quando is so tudo terminar, prometo que se vai pra lugar bern amplo, onde Leo possa correr, andar de velodpede.

Janice beija-o demoradamente, Lucio brinca com seus cabelos lisos, esvoas;antes. Pouco depois estao chegando a

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Belo Horizonte. A cidade que Lucio Flavio conhecia muito bern, pois ali crescera. Por aquelas ruas andara com a mae e 0 pai. Por ali fizera as primeiras amizades. Aquelas ruas acompanharam seus primeiros passos, e, atravessando-as, ti­vera os primeiros pensamentos de tornar-se urn hornern im­portante.

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XVIII

Tarde, muito tarde, quando nao vinha mais nenhum rufdo da rua, quando ja se podia ouvir as palpitac;:6es daquele· casarao antigo, mastigado pelos ratos e baratas, Lucio sentiu o calor do corpo de Janice colando-se ao seu. Abriu os olhos, abrac;ou-a. Nao era urn sonho. Nas suas maos, aqueles ca­belos finos e macias, 0 rosto quente, as seios pequenos e duros, como as frutas que vira amadurecendo no apartamen­to de Paulino. Estendeu-se sobre Janice, seus desejos nao conseguiam alean"ar os confins da sensualidade daquela mu­lher que era sua, que amara na primeira vez em que a vira. Penetra-Ia, perder-se dentro dela, beija-Ia com furia de bicho selvagem, era a compensac;:ao por tudo de ruim que tinha acontecido ate ali. E, assim, perdiclos urn no outro, distan­dados e ansiosos, palpitantes e sedentos, fizeram 0 velho colchao ranger por tempo indefinido, na madrugada que era fria e quieta como urn lago extasiado com a beleza que 0 cerca.

Enlac;:ados e nus, dormiram ouvindo 0 fragil ressonar de Leo. Poucas vezes tinham tido momentos como aquele da pensao de dona Lilita. 0 sentido de satisfac;:ao plena le­vou-a a esquecer a nuvem carregada de perigos que se apro­ximava. Ao despertar, 0 sol estava alto, as ruas se cobrialTI novamente de vozes e sons, Leo convidava para sair. Entre as brincadeiras de Janice e os risos do filho, Lucio sentou-se na cama. Era, naquele instante, urn homem feliz. Urn mo­mento que dificilmente poderia ser igualado. Botou a toalha de banho no ombro e, com essa satisfac;ao imensa no peito, meteu-se debaixo do chuveiro.

o garc;:om moreno e de cabelos lisos, toalha branca pas­sada no brac;:o esquerdo, era quem servia 0 cafe. Urn papel emoldurado na parede estabelecia 0 regulamento na pensao e, em letras destacadas, desenhadas a mao, 0 horario das re-

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fei~6es. Lucio ia pondo manteiga no pao e lendo 0 regula­mento, olhando as reprodu<;:6es que se penduravam mais dis­tantes, as figuras dos santos. Dona LiIita apareceu, sempre sorridente, fez gracinhas a Leo, ao mesmo tempo em que dizia ter uma carta a entregar. Afastou-se na direc;:ao da es­crivaninha, ali mesmo num lado do salao de refeic;6es, voltou com 0 envelope.

- Deixaram ha pouco. Lucio Ie 0 sobrescrito, procura 0 remetente. Poe 0 en­

velope no bolso. Janice olha-o em sHencio. Nao pode mais. participar das brincadeiras de dona Lilita com seu filho. A nuvem negra que os ameac;ava estava cada vez mais perto. Lucio abriu 0 envelope e, para tranqiiiliza-Ia, explicou ser de Moretti.

- Desde Juiz de Fora 132 vern nos seguindo. Agora deve ta por af. Deixou a carta pra saber que tern conheci­mento do nosso enderec;:o. E tambem porque Moretti prop6e novo neg6cio.

- Vai te meter eln mais encrenca com esse cara? - Quem me dera pudesse dizer nao. Janice fica sem entender. Lucio pede que va passear

com a menino. - Preciso raciocinar sobre 0 que ta dito aqui. Tranca-se no quarto, volta a ler a carta. "Prezado cara. Tenho uma powao de novidades a con­

tar. Mas a primeira, a mais sensacional, refere-se aos moto­cielistas que viu no Aterro do Flamengo. Jamais neguei que existissem. Esteja certo de que nunca ponho em duvida 0

que diz. Do contrario nao seriamos amigos. E, agora, mais do que nunca, sei que as ciclistas existem. Estiveram no meu apartamento em Vila Isabel, como disse, e terminaram vindo aqui em casa. Bateram no jardineiro, levaram a grana daquele trabalho que, na verdade, nao era grande coisa. 0 engrac;ado e que nao mexeram em quase nada. Vieram certo ao armario. Quando cheguei, 0 velho Emilio, 0 jardineiro, me disse que eram dois caras: urn mais alto e outro mais baixo, porem massa-bruta. 0 velho disse que alem dos mo­toddistas havia 0 careta num Volkswagen azul. Era alou­rado e, entao, nao sei par que, voltei a pensar em Klauss. Deixo as investigac;5es do caso por sua conta. E, como t-ris­tezas nao pagam dividas, sugiro urn neg6cio born at em Bela Horizonte. Que tal um golpe de surpresa? S6 para com­pensar a que se perdeu para os ciclistas? Caso nao possa aceitar a sugestao, vamos tet de apelar pra outro pessoal. 0

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que temo e que, no final de tudo, possa ser responsabilizado. Sabe como e? Quem tern dedo queimado termina levanc\o as sobras. Por isso pense bern. Ja soube que urn golpe em cima da Agi:ncia Carlos Prates, do Banco Comercio e Indus­tria, e facil, Hci!. Fica na Avenida Pedro II. Manda bras a ou avisa pra que convoque Gutra turma. Moretti."

Embora confiasse em Victor Klauss, a trama que !he armava Moretti era dificil de entender. Se Klauss tinha liga­s;:5es com as motociclistas, como ajudou na execus;:ao de dais deles? E, se estava complicado com as diabolices de Be­chara, por que Moretti assumiria 0 papel de seu acusador? Ficou olhando a rua. Nao dava para entender. Necessario ser urn gi:nio, para alcan<;:ar todas aquelas suspeitas que leva­yam a caminhos absolutamente diferentes. Nao confiava em Moretti e agora, pelas artimanhas apresentadas na carta, de uma forma ou de Dutra, passaria a medir 0 comportamento do companheiro.

- Foi urn erro ter ido pra cidade com Moretti. 0 bicho e desconfiado como urn coelho - isso dizia Klauss.

Vma acusa<;:ao ou desculpa, para a tram a que vitia? Deitou-se na cama, aIbas no teta de forro antigo, teias

de aranha formando-se nos cantos. Bateram de leve na por­ta, foi ver.

Oil Chegamos ha pouco. Algum problema? - pergunta Lucio. Por enquanto nenhum - responde Liece e acres­

centa: - Paulinho ja vern af. 0 resto do pessoal ficou pelo Estado do Rio. A coisa na estrada nao ta mole.

Paulinho entra. Lucio puxa uma cadeira. Liece fica sen-tado na cama. Lucio mostra a carta de Moretti. ,

- Ta nos intimando a urn assalto aqui. Se nao topa­mos, diz que outro pessoal vita. A gente fica sem 0 dinheiro, mas leva a culpa.

- Que filho da puta! Sabe 0 que aconteceu a Paulinho? - pergunta Lie­

ce e, antes que possa explicar, 0 pr6prio Paulinho e quem diz:

- Dais caras chegaram no apartamento, arrombaram a porta, viraram tuda pelo avesso, ate encontrar a grana. Foram embora e deixaram urn bilhete dizendo que a morte dos dois companheiros no apartamento de Moretti, em Vila Isabel, iam cobrar em dinheiro e com juros. Fiquei sem en­tender porra nenhuma. S6 depois vi nos jornais os dois pintas.

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Quanto levaram? - quer saber Lucio. Quase tudo - responde Paulinho. Teve mais sorte do que eu. Enquanto parei pra

tomar urn cafe com Klauss - diz Lucio - alguem levou 0

Karm·ann-Ghia que Moretti emprestou. Nele tava todo 0

meu dinheiro e boa parte do de Klauss. Ate hoje nao sei como foi. Moretti tambem diz nesta carta que levaram a parte dele.

_ Isso ta ficando gozado - responde Liece. - Hi urn ladrao nos roubando. Vamos dar parte.

Todos riem alto. o jeito e a gente tapar a parada que Moretti sugere

e ir em frente - diz Liece. Acha isso? - pergunta Lucio. Se nao se ataca, da no mesmo, cara. Ele manda es­

tourar a porra da agi:ncia e a gente e que se fode. E cadeia sem dinheiro sabe como e!

_ Mas se precis aria de mais urn homem. _ Nao e problema. Te lembra do Gerson Moreira

Rosa? E urn cara da pesada e pelo que sei ta dando sopa. _ Entao vamos chamar. Paz isso, Liece, enquanto

Paulinho fica encarregado de localizar 132. Quero este filho da puta hoje num papo lega!. Nao vai precisar muito esfor<;:o pra localiza-lo. Deve ta rondando af por baixo. Se estrutura 0

golpe e ataca no fim da semana. _ E quanto aos caras que tao roubando a gente? -

indaga Paulinho. _ Dessa vez se aproveita 0 dinheiro pra fazer urn tes­

te. Deixa por minha conta. Agarrando-se 132 se sabe metade da hist6ria. Isso tudo pode ser trama de Moretti com Be­chara. Nos obrigam a agir sempre e a desconfiar uns dos Qutros.

- Talvez seja - diz Liece. Paulinho promete retarnar depois; Liece acha melhor

urn encontro no bar. Lucio concorda. Fecha a porta, senta-se de novo na cama, rele a carta. Pensa no que diz Moretti) pensa nas palavras de Klauss:

_ E desconfiado como urn coelho. Os olbos francos de Klauss, as maos mostrando anota­

<;:6es em torno de Ugia, das idas e vindas ao apartamento de Moretti, na Marqui:s de Abrantes, das andan<;:as de Moretti, das noites em boates, das mulheres que levava aos hoteis da Barra e ate da bicha Zelina, que tambem cornia.

"Como poderia Klauss estar falseando em tudo aquilo?

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Com quem estaria a verdade? Que saheria 132? Ese fizesse uma visita de surpresa a Klauss, ainda que se arriscando set preso?"

A cabec;a repleta de pensamentos contraditorios, olhos nas aranhas produzindo os fios de suas proprias aventuras; fios invislveis, de silencios, esbo<;ando redes, malhas tenues, Dnde cessavam as voos precipitados dos insetos. Precipitados como ele, ou como Moretti e talvez Klauss? Bechara era uma aranha cautelosa. Nao saia do lugar, ninguem via a trama que urdia. E parece que tudo contribuia para que esse estra­nho hornem continuasse protegido e inc6gnito, sumida num casulo de baixezas.

o que dr. Bechara faz com as prostitutas nao ta no gibi.

E 0 que e que faz? Certa vez pegou uma de uns dezessete pra dezoito

anos, fez 0 pinta atarracado arrancar-Ihe a roupa. Ai deita­ram ela numa ponta de banco. Abriram as pernas e amarra­ram bem. Ninguem sabia 0 que ia acontecer. Dr. Bechara e assim: gosta de surpresas. 0 pinta trouxe 0 cao policial. Doutor Bechara fez 0 cao subir na pobre. Comec;ou a se esfregar, a ponta do pau ja aparecendo, unhas das patas dianteiras arranhando as costas dela. A coitada gritava e 0

die nervoso, querendo introlneter-se, ate que finalmente C011.­seguiu. Na hora de gozar 0 pau fez aquele no de engatar nas cadelas e a infeliz gemia e tentava erguer-se. Bechara ria, as filetes de sangue desciam pelas pernas brancas da prostituta. Levaram 0 cachorro, ela foi desamarrada do banco. Jogaram­lhe a roupa e Bechara disse:

- Se te pegat outra vez, vou trazer pra ca urn ju­menta. Vai te rasgar no meio.

A mulher saiu sem poder mexer direito as pernas, se­gurando as roupas e soluc;ando. Foi uma cena tao perversa, que nenhum de nos gostou. Acho que nao se deve fazer isso. E uma degradaC;ao dos infernos.

Quando 132 terminou a historia, Lucio ficou olhando para ele. A unica coisa que the ocorreu foi perguntar quem era 0 pinta atarracado. Desculpou-se dizendo nao saber.

- Nunca vi aquele homem. E gente de Bechara. E par que os motociclistas nao seriam tambem? Era

exatamente isso que iria ouvir de 132. Caso necessario, re~ tornaria de surpresa ao Rio. Uma visita repentina a Klauss e a Ligia. Por que Klauss saberia tanto a respeito da mulher

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que enganava Liece? Estaria sendo arrastado pela sensuali­dade dela? Por que nao pensara nisso antes?

- Com as motociclistas veio tambem urn car a alou­rado, num Volkswagen azul.

"Estaria Moretti, ao menos uma vez, falando a ver~ dade?"

E a que iria ver. Primeiro a encontro com a turma no bar, depois a conversa isolada com 132. Urn jogo em que nao deveria acreditar em ninguem.

"A propria sombra nos trai. Nao ha firmeza no chao que se pis a ."

Chegou a janela, Janice na calc;ada em frente, andando entre pes so as desconhecidas com Leo. Uma cena tao bonita e tao natural, que parecia nao ter 0 menor relacionamento consigo.

No bar encontrou Liece, Paulinho e Gerson Moreira. Sentaram-se a mesa, protegida par uma coluna; Gerson que­ria un1a caipirinha, Lucio preferia cerveja, no que foi seguido por Liece e Paulinho. 0 gar<;:om distribuiu os copos, abriu as garrafas, Gerson esmagava a limao com a colherinha, Lie­·ce comec;ou a dizer que estava tudo OK. Gerson topara e queria discutir os detalhes.

- 0 que se apurar deve ser dividido em partes iguais. So que uma das pe<;:as do xadrez ta no Rio. E tem de levar o seu. E quem deu a dica.

- Por isso nao se briga. Comigo e 0 que e. Sou de boa paz.

- Acha que um toque na Agenda Carlos Prates faz sentido?

- Pelo que sei, Ia se movimenta uma grana boa. Mas nao e das mais fortes da cidade. Pode ser que no dia se de sorte.

- 1sso nao e trama de Moretti pra nos fundir a cuca, malandro? - pergunta Paulinho.

- Nao creio. Se quisessem nos agarrar ja teriam feito isso. Esquece que 132 ta na nossa sola? Vem me acompa­nhando desde Juiz de Fora.

E sera que Moretti e conceituado par aqui, como diz?

. Isso e autra hist6ria. Quem nao arrisca, naa petis~ ca. Vamos em frente. Na hora oportuna todas serao avisa~ dos. Por enquanto quera 0 maximo de informac;6es a res­peito da agencia. Horario de funcionamento, posic;ao do

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cofre, disposic;ao dos funciomirios, guardas e saidas - diz Lucio.

Gerson fica encarregado dos detalhes. Lucio se levanta, chama Paulinho.

o pinta ta te esperando logo mais. - Falou com ele? - Nao, mas sei onde fica, todo fim de tarde. Se pega

ele de surpresa. Lucio esta certo de que aquela era a melhor soluc;ao.

Dificilmente· 132 viria a seu encontro. Se assim fosse, teria procurado falar-Ihe na rodoviaria de J uiz de Fora. Nao en­tendia por que a desconfian<;:a do policial, ja que estava na mesrna transa. Voltam a mesa, onde ficaram Gerson e Liece, Paulinho afirma:

- Se quiser um papo mais legal a gente bota ele no carro e vai pros lados de Tres Marias. Ali e bom as pampas de se conversar.

Lucio sorri, sentarn-se, no momento em que 0 garc;om esta abrindo Dutra cerveja.

Isso por aqui e bem movimentado - comenta Liece.

Aos sabados, entao, nao se encontra lugar - escla­rece Gerson.

Quando comec;a a escurecer Lucio se despede e Pauli­nho vai com ele. Sobem pela avenida, chegam a um bar'com salao de bilhar nos fundos. Paulinho atravessa por entre as mesas, Lucio segue-o. Chegam por tras de 132, que esta bolando uma jogada, taco entre os dedos.

- Opal E ainda dizem que Belo Horizonte ta ficando grande - diz 132, forc;ando alegria que nao sentia.

Lucio mete a mao no bolsa, segura a arma, convida 132 a sair.

- Paulinho termina a partida no teu lugar. Pega 0 taco, os parceiros nao se incomodam. Lucio

continua com a mao no bolso. - Precis amos ter um papo longo. Vamos dar uma

volta. Caminham para 0 fuscao que Liece e Paulinho trouxe­

ram do Rio. Lucio rodou por muitas ruas, subiu e desceu ladeiras.

Chegaram a uma pra<;:a, com bancos quebrados. Um recanto pouco freqiientado. La sentaram.

- Uma vez te avisei que nao tolero sacanagem. E pa-

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rece que foi tudo em vao. Que porra e que tu deseja me seguindo?

o policial nao demonstra surpresa. Nao esta amedron-tado como da veZ em que fora arrastado ate 0 Leblon.

Que e que ta acontecendo, 132? Muita coisa. Uma delas, por exemplo. Klauss to: cavando tua sepultura. Disso ja sei. TO: na carta de Moretti que tu levou

na pensao. E que mais? - Que mais? Que tenho procurado te ajudar e tu nao

entende. Pensa que todo mundo e filho da puta. Isso e 0

teu pi~r maL Nao sabe distinguir os cordeiros das feras. Quando quiser tomar pe da situac;ao nao da mais.

- Vieste esse tempo todo atras de mim so pra con­tar isso?

- Vim prop~r urn negocio. A cautela com que 132 falava e, ao mesmo tempo, a

seguranc;a, desnorteavam Lucio Flavia. Aquele nao era 0

homem que subjugara nas pedras do Leblon. - Que tipo de negocio? - Por dez mil cruzeiros consigo urn passaporte esta

sernana e te manda do pais. Se nao aceitar, nao teni outra chance iguaL Tao te preparando um lac;o de arame. Dele tu nao vai escapar com vida.

- E quem ta na jogada? - Muita gente boa, inclusive Moretti. Ha urn esque-

ma ai que Moretti nao vai mais precisar das partilhas de assalto. 0 negocio eo Esquadrao da Morte. Vai ganhar por cabec;a caida. Entre os mortos, tu poderas ser urn deles. Teu nome ta na lista.

- Como posso saber se e verdade? - E 0 que tou dizendo. E Klauss ja ta na transa. Acha

que esse ass alto ao Banco Comercial vai dar certo? - Nunca se sabe. - Se fosse tu nao entraria nessa. Lucio decide dar credito a 132, pergunta a respeito de

Klauss. - Que sabe de concreto sobre ele? - Mais do que pensas. Viciado em jogos, explorador

de lTIulheres, ladrao de carteiras na Central, falsario, ladrao de automoveis, assaltante de bancos, cumplice de Bechara, fazendo 0 jogo de Moretti. Fora isso, transa com uma por-

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c;:ao de traficantes de drogas e ta metido ate os cabeIos na protec;:ao aos pontos de bicho.

Lucio fica alarmado com 0 quadro que 132 pinta, mas nao da demonstrac;:ao. 0 policial continua:

- Ha tres dias, sabe onde eIe tava? Num hotel da Barra com a Lfgia, mulher de Liece.

E, olhando para Lucio: - Sabia disso? E verdade ou mentira? Lucio sacode com os ombros, 132 continua: - E 0 tipo do artista que enrola todo mundo. E tern

uma cara que ajuda. E dificil nao acreditar nele. Acontece que comigo e tudo preto no branco. Nao falo antes de ver. E 0 que tou dizendo dele e fato provado. Em cada quadrilha que se forma no Rio, Bechara tern homens como Klauss no meio.

E que mais? Que providenciou 0 desaparecimento do Karmann­

Ghia. Sabia que, com dinheiro, tu terminaria te mandando. E Bechara nao quer isso. Deseja vinganc;:a. Quer te ver do­brado, de uma forma ou de outra. Como daquela vez, diante dos homens de capuz negro na cabe<;;a.

o policial continua falando, Lucio Flavio tern dificulda­de em acreditar no que ouve. Ao mesmo tempo, 0 que 132 conta e dio real, que nao tern outra alternativa. Sabe que foram it cas a de Moretti, em Campo Grande; sabe quanta cada urn pegou; sabe que depois se dirigiu com Klauss ao apartamento em Vila Isabel.

- Lfgia e que menos culpa tern nisso tudo. Foi sempre induzida pelo Klauss. Ela me disse que se nao fizer 0 que manda, ele a matara. Ja ameac;:ou diversas vezes. Ela sabe que nao ta brincando. Klauss the disse como Bechara trata as mulheres que caem nas suas garras. E Klauss e 0 disdpulo perfeito. Prometeu que na primeira falha Ligia sera castigada, fora da delegacia; num lugar onde 0 castigo possa se pro­longar muito tempo. Vma semana inteira se for necessaria.

o menino vem oferecendo pirulitos. E 132 quem volta a falar:

- Outra tarefa minha em Belo Horizonte e te prender. Lucio olha-o surpreso, como se 132 estivesse brin­

cando. - Prender e levar de volta ao Rio. Pode ficar em cana

enquanto 0 passaporte fica pronto. Depois te manda. Acho que e a melhar coisa a fazer.

- E que vai ganhar com isso? - pergunta Lucio entre

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assustado e profundamente irritado com aquele homem des­concert ante .

_ Promo<;ao na imprensa enos quadros do funciona-lismo. Notoriedade, eu que nunca passei de urn reles inves­tigador, nem sei !idar com dinheiro.

Lucio sorri. E urn risa nervoso. E se isso tudo que diz nao for verdade?

_ Manda me matar. Na minha casa - responde 132, olhando os sapatos lustrosos.

A franqueza daquele tipo intrigava Lucio. Nao podia entender, embora suas palavras fassem claras, se referisselTI a coisas e pessoas que eraID cla sua intimidade.

_ Ligia nao passa de uma vitima de Bechara? pergunta vagamente.

_ Como quase todos nos. 0 proprio Moretti, que se considera muito vivo. Bechara meteu-o no esquema do Es­quadrao e disso nunca Inais sair.l. Se conseguir viver, tet­minara as dias na eadeia.

_ Vieste me propar urn negocio, 132. Acho razoavel. Tenho dinheiro pra pagar 0 passaporte. Ate mais, se far preciso. Quero tambem te prapor outro negocia.

Faz uma pausa, olha fixamente a cara garda, de beic;:os

arroxeados. _ Quero urn levantamento completo da vida de Be-

chara, seus habitos. Esse tipo ja fai longe demais. Ta na hora de parar, de ter a cabec;:a arrancada do corpo, a cara nojenta amassada com uma pedra.

_ Naa vai adiantar nada. Outros Becharas surgirao, dio maus au piores do que ele. Posso eonseguir a que quer, mas de pouco adiantara.

Novo silencio. A palma que ameac;:a cair faz ruido de falhas no tronco da palmeira. A prac;:a ficara bast ante som­bria. Raras eram as pessoas que por ali passavam. Lucio estava perplexo com a sucessao de acontecimentos. Sincera­mente que se sentia perdido, nao sabia como praceder. 0 policia! ja ameac;:ara ir embora, ele nao encontrava 0 caminho adequada.

_ Acha que urn flagrante de prisao, lavrado daqui a pouea, resal veda tudo . Janice e 0 menina voltariam depois. Nada de complicar a moc;:a nisso.

_ Voltar ao presidio, como cacharro, raba entre as pernas. E 0 tipo da proposta que nao se faz a urn amigo.

_ Pode nao ser boa, mas e inteligente. E tu tern fama de homem inteligente. Ate amanha estarei na cidade. Se

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achar que nao deve seguir 0 palpite de Moretti, e so voltar. Tou no Hotel Plaza. Vai ate lao Se parte pra delegacia. Coisa de rotina, como ta cansado de saber.

- Lucio Flavio preso. Sem qualquer rea~ao. 0 policial 132 agiu como verdadeiro detetive de historias em qua­drinhos!

Lucio repete is so e rio 0 investigador esta serio. Algu­rna coisa alem de todas as que ja contou ainda 0 perturba. Lucio tern vontade de saber.

- Qual a outra novidade, 132? Ele disfarc;a, esfrega as maos cheias de anelS, faz urn

risa nervoso, fala de eoisas vagas, que nao tern nada aver com aquele encontro. Lucio insiste.

Somando-se os pros e contras, na verdade tu e 0 tipo do cara de sorte. Primeiro, venho aqui te da urn a16 todo pessoal, quando devia ter trazido a turma do delegado Za­nela, obedecendo ordens superiores. Nao entendo como poe tudo a perder. Soube atraves do pessoal da penitenciaria que 0 coronel Mendonc;a tentou te dar uma colher de cha e quase no Inesmo dia em que 0 hornem entrava de ferias . tu te mandaste. Passava 0 dia todo na sala de estudos, nao e isso?

Lucio nao responde, mas sabe que 132 esta bern infor­mado. Apenas nao podia perceber aonde queria chegar.

- Agora - prossegue 132 - ainda pode surgir uma outra oportunidade, fora a do passaporte. Se estragar, adeus!

Insiste em saber 0 que significava aquilo, 132 responde que na epoca oportuna clitia. Levanta-se, Lucio continua im­pressionado com a mudanc;a de comportamento daquela fi­gura sempre subserviente e nervosa.

Perto do hotel onde se hospedara, 132 salta. Afastou­se lentamente, sem olhar para tras. Lucio demorou urn pou­co, admirando aquele homem que imaginava conhecer.

"Que oportunidade seria aquela de que falava? Que novo misterio estaria senda gerado?"

No quarto da pensao encontrou Janice aflita. Beijaram­se, Lucio abrac;ou Leo, deitou de peito para dma, olhando a lampada. Janice pos-se a dizer 0 que tinha feito, as lojas que visitara, as ruas por onde passara com 0 garoto. Lucio olivia, mas a atenc;ao maior voltava-se para a proposta de 132.

- IS50 nao e trama de Moretti pra nos fundir a cuca, malandro? - era Paulinho, preocupado com 0 plano. Tanto quanta Liece, temia uma mancada, pois s6 Gerson conhecia

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de fato a cidade. Ele proprio ja esquecera detalhes. Muitas ruas mudararn de mao, outras foram fechadas, as saidas eram diferentes de dez anos antes. Mesmo assim estavam dispos­tos a enfrentar a parada.

Olhava Janice, olbava 0 menino, ainda se perguntava se 132 tinha ou nao razao. Se deveria entregar placidamente os punhos as algemas ou se permaneceria fiel ao novo plano que poderia render bastante dinheira e com isso facilitar a fuga.

_ Uma nova oportunidade vai se apresentar pra ti. Se estragar, sera a ultima.

"0 que significava aquila, que nao tiveram coragem sufidente para definir, ele que pareda tao segura, indiferen­te ao que pudesse ou nao the acontecer?))

_ 0 que ha, Lucio? - quer saber Janice. _ Tanta coisa que nao saberia por onde comec;ar

responde. _ Estive com 0 polidal que chamam 132. Veio me fazer uma proposta. Que me apresente a delegada.

- E voce? _ Nao sei. Tou confuso e chateado. Nao sei qual e 0

caminho certo. Tudo pode ser armadilha. 0 terreno ta mi­nado.

Quando Leo adormeceu ela 0 convidou para dar uma volta. Andaram por diversas ruas, teve vontade de entrar num cinema, £icou com receio.

_ Nao tern importilncia. Nao me incomodo. Vamos tomar sorvete e voltar pra pensao.

Lucio concordou. Sentou-se num banco enquanto Janice foi buscar os sorvetes. Riram das coisas que ela pr6pria con­tava, dos acontecimentos da rua e da prac;a. Dois velhos na­morando, um garoto que ficava de pe no selim da bicideta, a cachorro querendo atravessar a rua e com medo dos auto­m6veis.

Tinha vontade de narrar-lhe 0 novo plano, mas nao se atrevia. Nao sabia como Janice ia encarar aquila, no momen­to em que era procurado por tada parte.

"Seria loucura contar-lhe, como seria loucura fazer 0

que 132 queria. E se na verdade tudo aquilo fosse mentira? Se ele, 132, e que estivesse mancamunado com Bechara? Quem poderia dizer que nao? Quem poderia dizer alguma coisa certa, naquele intrincado de contradic;6es?"

_ Cadeia sem dinheiro, sabe como e! - dizia Liece. "A unica verdade que conhecia. Dinheiro no bolso e

muito. Suficiente para dobrar autoridades, transformar maus

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carcereiros em alegres companheiros, anular de estalo a fama dos xerifes de cela. Nao iria na conversa de 132, nao iria procura·lo no hotel. Que fosse embora, contasse a Moretti au a quem quer que desejasse."

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XIX

A.s nove horas Lucio encontrou-se com Gerson Moreira, Liece e Paulinho. Entraram no Volks, rodararn ate a Ave­nida Pedro II. No cruzamento com a Alameda Geraldo Silveira de Oliveira, procuraram um lugar para estacionar. Como nao encontrassem nenhum de onde pudessem sair facilmente, Paulino resolveu parar sobre a calc;ada, quase debaixo de uma placa de proibiC;ao. Lucio saiu do carro, disse brincando que ia ser multado. Paulinho tirou a sacola plas­tica da Inala, entregou-a a Liece. Nela estavam as rev6lveres e a metralhadora. Lucio seguia na frente com Gerson, Liece mais atras. Paulinho ficou por perto do carro, pronto para partir, quando as tres retornassem. Sabia exatamente os caminhos a seguir. Avanc;aria pelo cruzamento da Pedro II com Alameda Geraldo Silveira, de qualquer jeito, com qual­quer sinal, alean.;aria a Avenida Amazonas e, de la, a safda da cidade.

As nove e trinta Paulinho entra no Volks, liga 0 motor. Pelo retrovisor esta atento aos acontecimentos na porta da agencia bancaria. As nove e quarenta, aparece Liece e logo depois Lucio Flavio e Gerson Moreira. Vern apressados, mas nao correndo. Gerson e Liece se distanciam um POllCO,

Lucio mantem-se tranquilo. Os dois primeiros tornam lugal' no carro, deixam 0 banco dianteiro para Lucio que entra em seguida. Paulinho desce a meio-fio, vai para a cruzamento, onde estava um inspetor de transito. 0 sinal fecha mas ele entra. Em POllCOS minutos estao longe, na Avenida Amazo­nas. A policia ja fora inform ada do assalto. No cruzamento das ruas Sao Paulo e Tamoios com Avenida Amazonas nao ha como seguir adiante, por causa de um caminhao. 0 PM Valdete Pereira chega perto, pede os documentos. Em res­posta recebe uma coronhada que Ihe da Paulinho. A viagem prossegue acidentada e Lucio nao esta gostando muito da-

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quUo. 0 plano e fazer com que os poIiciais concentrem as buscas fora da cidade, enquanto retornariam de 6nibus ou carona ao centro. E foi 0 que aconteceu. 0 Volks conseguiu chegar a barreira da Policia Rodoviaria, em Betim. Os pa­truIheiros abriram fogo, Lucio e Liece responderam. Ultra­passaram a faixa de seguran~a., entrararn por urn caminho de mato, abandonaram 0 vefculo. Todo 0 dinheiro ficou com Liece e Paulinho. Lucio saiu num ponto da estrada onde havia uma parada de onibus, Gerson Moreira seguiu 0 mesmo rumo. Conseguiram carona no caminhao que vinha abarro­tado de bananas. Por volta das onze horas Lucio ja estava na pensao. Quando entrou, dona Lilita parecia assustada. Dizia que uns homens da policia tinham estado por la, pro­curando uns criminosos. Lucio ollviu, sem nada comentar, perguntou por Janice. A mulher respondeu que ainda estava passeando com 0 garoto, aproveitando a manha de sol. Fe­chou-se no quarto, impaciente, porque sabia que a qualquer momento retornariam. Janice apareceu, Lucio cantou que haviam descoberto seu endere<;:o, 0 melhor era mudar. lriam para a Pensao Auxiliadora, no bairro de Santa Ifig.,nia. Ja­nice nao discutiu. Tratou de arrumar as coisas. Dona Lilita nao gastou da pressa, Lucio teve certeza de que 0 via como urn dos criminosos procurados. Por isso, quando perguntou para onde iam, escreveu na ficha que retornaria a Sao Paulo e deu um endere<;:o qualquer, que a mulher sabia nao ser verdadeiro.

A Pensao Auxiliadora nao era diferente da outra. Fi­cava em frente a Santa Casa e tinha umas arvores por perto. Mas 0 quarto era pequeno, as paredes bastante encardidas. Lucio desceu para telefonar, satisfeito com 0 plano. A poli­cia se deslocara para Betim. Liece e PauIinho safaram-se. De novo no quarto, imaginava mandar Janice a rodovhlria, comprar passagens para Salvador. Tudo parecia em ordem, quando urn pontape arrancou a porta do quarto com estroll­do e seis agentes apareceram portando armas, alguns com metralhadoras. Janice abra<;:ou-se ao filho. 0 que comandava a operac;ao mandou Lucio evitar qualquer movimento, sob pena de morrer ali mesmo. Lucio olhou 0 rnenino assustado, olhou Janice, palida, querendo chorar. Ergueu-se, entregou as bra<;:os as algemas. 0 homem da pensao, que tinha aca­bado de receber 0 casal e prometera conseguir urn ber<;:o para 0 menino, ficou sem entender aqueles desconhecidos de terno e soldados subindo e descendo as escadas, zoada de botas no soalho. Em pouco tempo tambem a multidao for-

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mou-se diante da Pensao Auxiliadora, vieram carros da po­!ida e de reportagem, 0 transito parou. Lucio desceu acorn­panhado por quatro investigadores, entrou na viatura que partiu de sirena aberta. Janice e 0 menino foram conduzidos numa camioneta. Na Delegacia de Roubos· e Furtos, outra concentrac,;;ao de curiosos. E, alem dos curiosos, muitos fun­cionarios da agencia bancaria, prontos a identificar os la­dr6es. So ai Janice ficou sabendo do novo golpe de Lucio Flavio. Quando 0 delegado Zanela pas sou a ouvi-Ia, tudo 0

que disse e que nao participara de nada. Quanto ao seu en­volvimento com 0 chefe da quadrilha, fez uma decIara<;:ao que 0 proprio Lucio tambem nunca ouvira:

_ Segui Lucio porque 0 amo e nada neste mundo vale urn momenta de arnor. Se fosse preciso, mataria ou mot­reria por ele. Estou decidida a acompanha-Io a vida inteira, mesmo que isso signifique perigo continuo de motte. Apesar de tudo, ao lade dele sinto-me completamente feliz. Quan­tos podem dizer 0 mesmo? Nao colaborei na fuga de Lucio, nem no assalto de agora. Apenas fugi com ele. Este e 0 meu primeiro contato com a polfcia. Minha angustia e em reIa­<;:ao a meu filho. Queria poupa-10 do susto e de todos os sofrimentos que passamos. :Eo tao pequenino ainda. Ele e Lu­cio sao minha razao de set, cada urn e importante para mirn, a seu modo. Jamais poderia escolher entre urn e 0 outro.

Quando Janice termina de falar, Lucio envolve-a com os bra<;:os algemados, beijam-se. As lagrimas de Lucio con­fundem-se cofll. as dela. Ao abrir os olhos, tern uma nova surpresa: do lado da mesa do delegado esta 132, um policial que viera do Rio acompanhar as diligencias da policia mi­neira. E, a mente de Lucio, repete-se a afirmac,;;ao que fizera na pra<;:a deserta, onde havia uma folha se desprendendo da palmeira:

_ Vai se apresentar nova chance. Se deixar escapar, adeus.

Janice foi levada para outra sala, Lucio come<;:ou a res­ponder perguntas enfadonhas, sem sentido, que ja respon­dera mil vezes em outras ocasi6es semelhantes. Tarde da noite, quando 0 delegado ja esvaziara diversas garrafas de cafe, 0 depoimento prosseguia, a sala cheia de jornalistas, a todo momento flashes estourando, Lucio sentindo a frustra­<;:ao de 132 que ali continuava num canto da parede, isolado e silencioso, quando poderia ter sido 0 ponto central das atenc;6es. Reconhecia que, de certa forma, agira com egois­mo, mas nao havia Dutro jeito. Agora, acontecesse 0 que

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Pela madrugada foi metido numa viatura e levado ao aeroporto. Colocaram~no num aviao, junto com 132 e mais dois policiais e, assim, retornou ao Rio, num dia que prin~ cipiava a clarear, la do alto avistando as praias de ondas suaves, a vegetac;ao rica, os morros conhecidos. E tudo pa~ recia dio simples, que comec;ou a maldizer-se par ser a unico personagelTI tremendamente enrolado do universo.

- Dessa vez tu te meteu elTI enrascada grossa. Com a fuga, a morte de dois caras que tao sendo identificados, 0

assalto a agenda bancaria, mais 0 que ja tinha nas costas, a pena vai passar dos duzentos allos.

o policial sentado na poltrana da frente ia dizendo essas coisas. 0 que estava ligado a Lucio por urn lado da aIgema mostrava-se mais humano. Falava com ele, como se estivesse aconselhando a um filho:

- Para com isso, rapaz. Ainda e tempo de come<;:ar vida nova.

o tira que estava em frente, junto com 132, contes­tava:

- Esse af? E pau que nasceu torto. Temos e de nos livrar dele, antes que seja tarde. Vai terminar fugindo, pra­ticando rnais assaltos.

Lucio tinha vontade de cuspir na cara do tipo imundo, controlava-se. Se 0 fizesse, seria massacrado. Depois, era s6 dizer que tentou reagir, quis matar urn dos agentes. Quem clitia 0 contrario? 0 jeito era agiientar as provocac;5es. E elas se prolongaram. Agora 0 tira fazia considera<;:6es que envolviam as irmas de Lucio.

- E tudo de cabe<;:a virada. E cada peda<;:ao de mulher, que benza Deus!

-- Lucio ia explodir. 0 policial estava na verdade queren­do irritii-Io, 132 intrameteu-se, pediu que 0 companheiro respeitasse 0 preso, porque afinal as considerac;5es de ar­dem pessoal nao the diziam respeito. Isso bastou para que as dais iniciassem praticamente uma discussao. 0 investi­gador mineiro terminou pegando 0 jornal e -mudando de lugar. Lucio olhou 132, agradecido. Este fez que nao repa­rou, tambem abriu urn jarnaI, pas-se a ler, exatamente na pagina em que eram enumeradas as peripecias de Lucio Fla­vio, considerado 0 mais petigoso assaltante do pals e que havia fugido ·pelo menos vinte vezes dos presidios mais se­guras. As descri<;:6es das fugas prestavam-se a inclusao de

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lendas e fatos que na verdade nunca ocorreram. A imagina­c;ao dos rep6rt~res leva va-Os a transforma-Io numa especie de heroi de gibi, como 0 proprio Lucio dizia.

A descida no Santos Dumont foi sem novidades. Atra­vessou a pista ate a calnburao, e da! para a delegacia, onde novamente havia muita gente, especialmente jornalistas. Em­purr6es, flashes espocando, Lucio sendo conduzido a sala do delegado. Sentou-se na cadeira de madeira, respondeu 0 que dissera em Belo Horizonte, 132 tirou do bolso uma copia do depoimento, colocou na mesa. De qualquer forma as per­guntas relativas a morte dos dais desconhecidos eram com­plexas e foram sendo feitas, sempre procurando leva·lo a becos sem saida. Lucio respondia com facilidade, dizia uma coisa e horas_ depois tornava a repetir, com a mesma preci­sao. Embora cansado, nao se deixava enredar nas sutilezas das indaga<;:6es. Muito tarde a sala ficou vazia, 132 desapa­receu, 0 delegado deu os trabalhos por concluidos, Lucio levado ao xadrez, onde aguardaria a transferencia para 0

presidio. Desceu na £rente de dois guardas, chegou a um grande salao, com salas de urn lado e do outro, separadas por um corredor de aproximadamente dois metros de lar­gura. Vma porta de ferro se abriu, empurraram-no para den­tro. No xadrez havia uns dez homens, alguns jii bern velhos, outros corn cara de garoto. Procurou urn canto de parede, ]a se encostou_ Nao foi diffcil verificar que, ali, naquela co­munidade, mandava urn tipo mulato, de ombros largos e barbicha rala. Enearou Lucio, fez ar de risa dnico, anunciou em altos brados:

- Sabe quem ta aqui, pessoal? Lucio Flavio! 0 tre­mendo marginal.

E todos aqueles homens maltrapilhos e famintos puse­ram-se a grunhir, escancarando rnuito as boeas e as olhos. Dos cubfculas distanciados tambem ouvianl-se gritos, risa­das e pilh"rias. Ai 0 tipo de barbicha e riso cinico voltou a falar:

- Eo rei dos malandros. 0 principe dos ladr6es e de toda a corja de vagabundos. Tern cara de mulher mas dizem que e valentao.

A essa altura do discurso os presos nao gritavam, nem escancaravam as bocas. Sabiam que 0 tipo dnico, chamado Similo, 0 Barbicha, estava era procurando mastrar-se. Queria briga, para manter sua autaridade intocavel. E aquele era 0

momenta mais oportuno para isso. Lucio estava cansado, cabe<;a cheia de perguntas, atordoado de contestac;:6es, aflito

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com 0 que poderia suceder a Janice e ao tilho. 0 que Simao, o Barbicha nao sabia e que um homem ferido e acuado vira bicho selvagem. E Lucio tinha virado um bicho, s6 que os comparsas nao podiam ver. Foi por issa que, ao menor sinal de Simao, urn pontape no estomago 0 estatelou no cimento. Lucio saltou em cima, aplicou·lhe uma chave de bra<;o, tor· ceu pra valer. Estalar de ossos se quebrando na altura do ambra, 0 urro do preso, 0 Tosto congestionado de Lucio, pernas for<;ando caminho, Simao chorando mas nao que· rendo dar parte de fraco, ainda tentando golpes ineficientes, Lucio 0 arrastando na dire<;ao da boca.de-boi, que e 0 bura­co sempre repleto de fezes. E la enfiou a cabe<;a de Simao. Quanta mais 0 hornem estrebuchava e grunhia, mais torcia­lhe 0 bra<;o, mais ossos estalavam. Poi entao que os compar. sas se reuniram e separaram os contendores. Lucio ergueu­se arquejando, Simao,· 0 Barbicha, cara atolada de merda, encornado no chao, animal ferido. Ai os inquilinos do xadrez come<;aram a dizer que Simao nao era de porra nenhuma, s6 tinha garganta. Antes que 0 policial viesse saber 0 que esta. va acontecendo, 0 mais jovem, urn ladrao de supermercado; propos a solu<;ao para limpar a cara do Barbicha. 0 tipo ja de idade e completamente desdentado gargalhava mostrando as gengivas e perguntava ironicamente:

- Qual e a melhor maneira de limpar essa cara ca­gada?

E 0 ladrao de supermercado respondia: - Todo mundo mija em cima. Num instante fica

limpinha. As risadas se alteavam. E vendo 0 xerife impossibili­

tado de erguer-se, 0 ladrao de supermercado botou 0 pau pra fora e mijou em cima dele, sendo seguido por diversos outros. Nenhum policial apareceu para saber 0 que estava acontecendo. A farra terminou com Simao, 0 Barbicha, sendo arrastado para um canto. Gemendo e exalando mau cheiro ficou ate 0 dia seguinte, quando entao Lucio Flavio subiu para continuar as interrogatorios.

A sala estava repleta, 0 escrivao colocara uma folha de papel na maquina. Quase tudo que perguntavam Lucio 'PIa­vio ia confirmando. Nao queria perder tempo. Nao adianta­va regatear, repetir coisas sem importancia. Mais vinte aDos de cadeia, menos vinte, nao faria diferen<;a. 0 que desejava era saber de Janice, da sua saude, do estado do menino.

"Segui Lucio porque 0 arna e nada oeste mundo vale urn momento de arnor."

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- Nero urn momenta de arte, Janice. o delegado percebeu as palavras de divaga~ao do assal­

tante, ficou sem entender 0 que dizia. Lucio estava distante, girando em outras esferas, ausente daquelas indaga<;6es que lhe arrebentavam os nervos, da rotina fastidiosa, das insi­nuac;6es malevolas, daquelas caras e olhares indecentes, da­queles rostos sedentos de acontecimentos espetaculares. Todos, em suma, querendo ve-lo em pedac;os, vlsceras arran­cadas para fora, puxadas nos bicos dos urubus. Lembrou-se ainda da proposta de 132, teve pena do investigador que lhe parecera canalha e repelente.

- E verdade que matou os dois desconhecidos? Lucio passeando em campos de trigo, ro~as de milho,

venda 0 gada pastar na grama verde; distanciado na beira do lago, olhando os cisnes que metiam a cabe<;a na agua; perdido no olhar de Janice, na luz coada por entre os cabe­los finas. E ao retornar de todos esses instantes difusos, foi quase sem sentir que admitiu, para surpresa de quantos ali estavam e argiiiam:

- Poi. Matei! Matei! Porra! Ja disse que matei! A afirma~ao bastou para exaltar 0 animo dos inquiri­

dores, que queriam saber de fiUitos outros crimes que nao cometera, mas ja alinhados na sua ficha. Lucio olhou toda aquela gente ao sell redor, fez a pergunta que deixou 0

delegado ainda mais perplexo: - Como posso falar com 0 coronel Helio Mendon~a?

Que saiba que nao desisti de ser um pintor. Nao perdi a von tade de pin tar.

o delegado admitiu que 0 criminoso nao tinha mais condi~ao de continuar sendo interrogado. Levaram-no para outra sala, onde ficou sentado, encostado a parede. Na porta os soldados com as metralhadoras, os investigadores, 132 es­fregando as maos.

- 0 que e certo e 0 que e errado na gente? - per­guntou-lhe Lucio.

- E diHcil saber. Dizem que s6 os juizes podem falar dessas coisas.

- Sera que podem? o policial chega perto, da 0 recado: - Moretti ta ai com 0 delegado. Pode ser que a coisa

melhore. - Diz a ele que topo qualquer coisa que deseje fazer.

Mas consiga a liberta~ao de Janice. Picarei loueo se ela con­tinuar na prisao.

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Nao sabe quanto tempo permaneceu naquela cadeira. Apareceu um homem de avental azulado, aplicou-Ihe uma inje<;ao. Minutos depois come<,;ou a sentir sanD, mas nao adormeceu. Ficou atordoado, pessoas e coisas parecendo des­mesuradalnente grandes e, por entre elas, 0 que de mais nftido conseguia vet era 0 rosto vermelho e calma de Marco Aurelio. Como das vezes antedares, carda no chao do deserto de silencios, confundindo-se com as torr6es que brotavam, acentuando . a solidao daquele lugar,

Que queres de mim? Por que nao fala, em vez de ficar me olhando desse jeito, como se tambem tivesse me acusan­do? Por que aqui todos acusam todos? Tu erraste, Marco Aurelio, como ja errei muitas vezes. S6 que a minha vez nao chegou. A morte passeia numa nuvem de chuva. Se a chuva me molhar eu morro.

Os policiais olhavam Lucio, 132 apressava-se em dizer que era 0 efeito da injeC;ao, Resolveram tira-lo da cadeira, estende-Io sobre a mesa. Batia-se, querendo levantar, 0 en­fermeiro explicava que em trinta minu tos estaria ou tro ho­memo Moretti insistia para que fosse levado a enfermaria, 0

delegado relutava quanto a essa ideia, temendo um novo truque do prisioneiro. Como estivesse ficando pior, a pro­prio enfermeiro terminou concordando com Moretti. Assim, no dia seguinte, Lucio estava metido numa cam a de enfer­maria, algema prendendo-o por um brac;o nos ferros do leito pintado de branco. Ao conscientizar-se do seu estado, sen­tia-se aereo e vazio. Como se tivesse saido de terrfvel bebe­deira e enfrentasse as horas de ressaca. Pouco a pouco foi relembrando os fatos. Moretti conversando com 0 delegado, 132 ajudando nas explicac;6es, 0 homem de avental azul que Ihe aplicara a injec;ao, Nao entendia como todas aquelas pro­videncias terminaram sendo tomadas. Nao recordava as pa­lavras que 0 delegado considerava sem sentido e que atesta­ram seu estado de anormalidade, Lembrava-se de como fora levada a sala, como estavam os policiais na porta, com as metralhadoras.

- E Janice? Ergueu-se, chamou 0 enfermeiro. Perguntou se sabia

de uma moc;a chamada Janice. 0 homem sacudiu negativa­mente a cabe<;a. Veio 0 investigador de plantao. Esse sabia de quem falava. Mas nao podia dizer para onde fora levada.

- Daqui a pOllca tu saberas. Lucio estende-se novamente no colchao. Inquietava-o

apenas 0 estado de Janice e Leo. 0 resto nao teria proble-

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rna. Conseguiria urn jeito de retornar aos estudos e af, sim, se transformaria nUID outro hornem, ainda que para is so ti­vesse de renunciar aquilo que mais amaya, tanto quanto a Janice: a liberdade.

Ficou dais dias na enfermaria. 0 escrivao foi ate la, com 0 depoimento datilografado, mandou que lesse e assi· nasse. Lucio olhou por cima. Um interminavel roteiro de crimes e arbitrariedades. Muita coisa inventada. Muita coisa estava ali so para dar baixa na lista dos chamados casas insoluveis. Era natural. De que valeria contestar?

o homem gordo botou a prancheta por baixo das lau­das, assinou de forma vaga. Aquilo implicava novo julga· mento, novas acusa<;6es, 0 promotor exaltando-se em coisas que nao tinhmn significa<;ao, a juiz aproveitando para, das culminancias de sua autoridade, distribuir justi<;a aquele po­bre pecador, cego e doido, que nao tinha jeito de atinar com o caminho que a sociedade Ihe apontava.

«Que venha mais esse juIgamento. Sou 0 cristao mais julgado da face da Terra. S6 Lucio Flavio tem pecados, s6 ele pratica desmandos, s6 ele merece a punic;ao em grau maximo."

Lembrava-se da cara indignada do promotor que invo­cara a pena de morte para acabar sua carreira de crimes. 0 castigo que as norte-americanos aplicavam com tanta pro­priedade. Lucio tinha vontade de perguntar por que entao, naquele pais, de tantas coisas certas, e que havia os piores criminosos, muito mais habilidosos do que ele? Mas Dunca fez essa indagaC;ao ao promotor. Nao adiantava. 0 psiquiatra diria que era mais uma forma de exibicionismo. Qualquer coisa que dissesse estava catalogada. Se pulava do muro da prisao, era exibicionismo. Se induzia os companheiros a mo­tins, era recalque.

E se fizesse urn quadro, urn livro ou urn poelna, que seria que os psiquiatras iriam achar? Era 0 que faltava saber. Talvez a1 chegassem a conclusao de que estava irremediavel­mente maluco e ° metessem para sempre na soIitaria. Fosse como fosse, era 0 que faltava tentar.

Num dia de chuva, Himpadas acesas na enfermaria e em toda a extensao do corredoJ;', funcionarios da prisao vier am busca-Io. Poi aIgemado, vestindo a mesma roupa que trouxe­ra de Belo Horizonte. 0 blusao manchado de sorvete que tomara com Janice, sentados naquela pra<;a de cores e sons, olhando 0 casal de velhos que namorava, as peripecias do menino de pe no selim da bicicleta. E isso ja parecia tao

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distante. Como passava depressa sua vida, e como de repen­te atolava na estrada.

Subiu no camburao, acomodou-se no banco metalico, as portas se fecharam. Nao demorou 0 carro tornou a parar. Desceu, vieram mais policiais, levaram-no para a cela. Fi­cava no final de uma galeria, mas tinha a vantagem de ser exclusivamente para ele. Isso significava estar no pavilhao dos elementos irrecuperaveis. E a regalia que a perverso merece.

Sentou-se nuns restos de capim de colchao, apoiou a cabec;:a nos joelhos. As luzes apagaram em toda a galeria, 0

apito indicando silencio foi ouvido a distilncia. Durante urn tempao nao pensou em nada. Esvaziara como se esvazia urn saco.

A manha como tantas outras que ja vira: soldado an­dando, subindo e descendo escadas, pisando 0 cimento umido das galerias com as botas de tacao grosso, falando e rindo de coisas que nao podia ouvir. Urn rumor de passos rna is perto: eram as policiais armados, seguindo a preso que car­regava latas d'agua, os sentenciados ao patio de sol. Olhava a movirnentac;ao, cabec;a ainda oca, olhos vazios. Distante, a chamine da cozinha golfejando fumo. 0 carcereiro chegou em frente a cela, meteu a chave na fechadura. Urn velho for­te, que Ihe parecia familiar. Entrou sem medo. Tirou da sacola a pequena garrafa termica, um pacote de biscoitos.

- Vai distraindo 0 estomago. Lucio admirava-se com aquele homem. indiferente ao

seu poder de periculosidade. Colocou a garrafa num canto, o pacote de biscoitos perto, mostrou que a propria tampa servia de capo. Lucio agradeceu, passou novamente a chave na fechadura. Desse momento em diante e que comec;:ou a despertar para as acontecirnentos que 0 rodeavam: a dol' tina no brac;o esquerdo, as pingos de sorvete na camisa, re­cordando a prac;a com 0 menino na bicicleta, sorriso de J a­nice. Ouvia as palavras desconcertantes de 132, a proposta de prende-Io para ganhar autoridade.

- Afasta todo mundo - diriam os soldados formando cord6es de isolamento. - Deixa 132 passaro Sozinho ele aca­ba de prender Lucio Flavio.

E la vinha ° investigador, terna escuro, rosto moreno e gordo, labios arroxeados, esfregando as maos de muitos aneis.

- Como foi que fez pra surpreender 0 bandidao? -perguntariam os rep6rteres.

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- Ora, com urn pOlleo de malfcia e muita paciencia - responderia 132. Era 0 que sempre dizia.

Saiu tudo errado. No interrogatorio 132 parecia lamen­tar 0 desastre que de certa forma 0 atingira. Nao obteve destaque algum, 0 delegado Zanela e que terminou em evi­dencia.

- Desculpa, 132, pensei que ainda fosse capaz de pla­nejar bern as coisas. Pelo que vejo, tOll ficando cansado. As ideias nao chegam como antigamente. Os musculos comec;am a ter preguic;a de reagir. Viu 0 que foi que aconteceu? Ter­minei confessando coisas que DaO tavam perguntando, acha­ram que tinha ficado maluco e eu pr6prio nao poderia dizer o contrario. Onde ja se viu urn acusado acusar-se?

- Vai se apresentar nova oportunidade. Se estragar, sera 0 fim. Jamais havera outra.

• Procurava entender 0 que 132 queria dizer com aquilo. Que oportunidade seria? Nova fuga? Desaparecer definiti­vamente? Seria inicia tiva de Moretti ou alguma trama de Bechara? Diffcil saber. Tao dificil quanta reencontrar 0 co­ronel Helio Mendonc;a. Encheu a tampa da garrafa termica de cafe, mastigou urn biscoito. Quando a mae viesse visita-Io ia pedir urn bloco de papel e um lapis. Enquanto nao pudes­se pintar, escreveria. Primeiro uns poemas, depois prova­velmente uma novela. A historia das coisas que tinha feito e desfeito, dos dramas e das decepc;6es causadas aos pais, do amor impossivel com Janice, da aventura a que arrastara aquela jovem, do irmao tao emaranhado no cipoal de des­mandos quanta eIe; da afli<;:ao de Fernando C. 0., urn mo<;:o inteligente que se deixou dominar pelas emoc;6es de Victor Klauss, que agora era uma personagem em duvida. E falaria de Dondinho, da sua paciencia e compreensao, da pobreza e humildade. Falaria de Padre e Nelson Caveira, de Beni e do seu pai Benicio: Por onde andaria aquele moc;o moreno, quase um indio? A noite da carroc;a se movendo naquele de­serto, Beni tocando os animais no rumo s6 de negrumes e, finalmente, a faixa de asfalto da rodovia. A seguran<;:a da­quele homem, sua calma e confianc;:a nos outros nao podiam ser esquecidas. Quando Micuc;u tentou acerta-Io pelas costas, a fim de reaver 0 dinheiro que Ihe tinham dado, Lucio foi contra. Impassivel matar quem agia de forma tao sensata. Mesmo sem sua interferencia, Micu<,;u nao teria tido coragem de sacar da arma.

o carcereiro voltou. Deveria arrumar-se para ir a admi­nistra<,;ao. Tratou de vestir 0 blusao, pas sou as maos nos

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cabelos, meteu as sapatos. Vieram dais policiais e 0 Ievaram. Estava leve, meio aereo, como se tivesse urn dos seus piores momentos de ressaca. Entrou no saHio onde havia funciona­rios ocupados em manusear pastas, saiu numa sala menor. Dava para 0 saguao, era protegida por tela. 0 lugar onde as visitas falavam com os presos. E ali estava Dondinho. Cabe<;:a ainda mais branca, olhas ausentes.

- Como vai, Noquinha? Lucio ria. Nao tinha disposic;ao de dizer coisa alguma.

Como se as palavras tivessem terminado. Ta abatido, filho! Que e que tern feito contigo?

- Nada, Dondinho. Ta tudo bern. - Tua mae teve adoentada mas ja ta melhor. Selva te

manda lembranc;a. Dondinho tira urn cordao ensebado do bolso, com urn

amuleto. - rsso e de muito valor, Noquinha. De muito valor.

Durante a vida tocla, desde menina, andou comigo. Quero que fique com ele.

Meteu 0 amuleto pelos vaos da tela. - Reza pra madrinha Janaina, filho. Que ela te man·

tenha na sua prote<;:ao. Lucio olhava aquele velho de rosto bondoso, que co·

nhecia ha tantos anos, desde quando empinava papagaio nas ruas e Dondinho ajudava-o a desembrulhar a linha que fatalmente terminava Duma intrincada confusao de pontas e n6s cegos. E por conhece-lo tao bern, sabia que ainda queria the con tar mais alguma coisa. Algo tao importante que as palavras pareciam nao ajuda-Io, e por isso enveredava por atalhos sem importancia. Dos olhos do preto velho co­mec;aram a correr Jagrimas que se perdiam na barba crescida. Lucio en tao pen sou em fatas graves. Dondinho terminou nao dizendo nada: tirou do bolso urn recorte de jornal, co­locou-o aberto na tela. Inacreditavel 0 que lia. As pernas fraquejaram, a vista escureceu.

- Nijini e Liece metralhados? Nao, nao pode ser. Dondinho passou 0 recorte por baixo da tela. Lucio

via de bern per to e com absoluta nitidez. A persegui<;:ao co­me<;:ou em Botafogo. 0 carro em que estavam Nijini e Liece foi atingido pelos disparos de metralhadora depois do Tune! Novo. Lucio olhou Dondinho que se afastava e tambem foi andando na dire<;:ao da cela. Dobrou 0 pedac;o de jornal, maS nao olivia as pr6prios passos. Urn estado de demenda 0 in­vadiu. Acomodou-se junto a parede, batau a recorte no

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chao, continuou lendo aqueles titulos grandes, a foto do irmao e do amigo. E, tornado de desalento, pos-se a chorar.

Nijini correndo com ele na rua, disputando a partida de futebol, voltando da escola, sentados na mesa ouvindo os pIanos do pai, os conselhos da mae. Nijini quieto e edu­cado.

- E 0 diplomata da familia. Nijini alto e atlc:~tico, provocando palxao nas mocinhas

de Bonsucesso, os 6culos escuros que the davam pinta de gala. Nijini, £iIho querido de dona Zulma, garoto que tantas preocupa<;:6es the dera.

- Cuidado con1 essa gripe, menina. Ve se fUlna me­nos.' Termina ficando doente.

- Nijini morto. Metralhado. Nao pode. Nao pode ter acontecido.

As palavras saiam-lhe baixas e ainda nao acreditava no que estava lendo, no que the mostrara Dondinho. Horas de­pais, mais caln1o, p6cle let todo 0 notici::lrio. Ali estavam as nomes dos policiais que tinham executado Nijini e esses teriam de morrer. Nao in teressava em que circunstancias 0

caso ocorrera. Matatam Nijini, por issa VaG morrer, a na~ ser que

morra primeiro. No fim da tarde 0 velho carcereiro veio the trazer mais

cafe. Perguntou-lhe a respeito da morte do irmao: - E 0 que tao comentando por ai. Dizem que ele

reagiu. Ai ja viu. Sera que podia man dar umas flores pra meu irmao?

- S6 sabendo na administra~ao. Posso perguntar. - Entao fac;a is so e me diga. o carcereiro retarnou com a resposta e 0 aviso de que

havia urn policial na administrac;ao, esperando para falar­Ihe. Junto a mesa, 132 conversando com as funcionarios. 0 meSilla terno escuro, sapatos limpos e lustrosos, bei<;6S arro­xeados. Foram para urn canto, Lucio sentou-se, 132 pas sou a perna na pont a da mesa.

- Nijini se acabou. Tua mae foi na delegacia me pro­curar: Nao deixararn ela vir aqui. Tentei conseguir urn meio de tu tambem poder. ir ao enterro, que e logo mais. Nao arranjei nada. Nem 0 Moretti.

Lucio esta de cabe<;:a baixa. Nao sabe como falar. Por onde come~ar.

E quem marreu mais? - Alem de Nijini, que saiba, 0 Liece de Paula.

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E os outros? Nada seL Vao liquidar de urn a urn, isoladamente. Em que posso te ajudar? - perguntou 132. Compra uma coroa de flo res pra Nijini.

o detetive prepara·se para sair. Lucio retorna it cela. De tarde consegue urn favor muito especial do catcereiro: um bloco de pape! e urn lapis. Deita-se no chao, pens a em alguns poemas. Faz 0 primeiro, nao gosta, faz urn que fala em liberdade e vingan<;a. Tambem nao gosta. Rabisca r.ostos conhecidos, para futuros quadros, novamente rise a as pas do moinho. E fica urn tempao pensando naquela imagem que se tornara ideia fixa. Era 0 unieo desenho que fazia com relativa facilidade. As enormes pas e os seres dilacerados e aflitos nelas procurando agarrar·se e por elas sendo arrasta-

. dos, erguidos no espa<;o, confundidos por entre os gravetos de nuvens, afundados nas aguas escaldantes dos Dceanos. Depois do moinho, comec;ou a desenhar 0 tosto do irmao, da mae chorando, do pai afIito, sem saber a quem apelar.

"Bandidos nao tern pai, nem mae. Estao soltas no mun­do. Quando morrem, deve ser motivo de satisfa<;ao. N6s somos ban didos . Nao merecemos considera<;ao. Esque<;a a gente, mae. Me esque<;a, pai. Aproveitem a morte de Nijini, fac;am tambelTI 0 meu enterro."

Nos dias que se seguiram, a rotina na prisao manteve­se inalterada. Ia normalmente ao banho de sol, ao restauran­te, mas sempre ficava isolado. Nao queria mais conversa com ninguem. Exausto de fugas, terminava entendendo que todos as esforc;os para livrar-se daquela rada satanica eram inuteis. o melhor era fazer como Moretti. Sua filosofia .0 que esta­va certa.

- 0 mundo gira comigo e eu com ele. Que se dane o resto.

Moretti trapaceando, tramando com Bechara, falseando e instigando, querendo comprometer Vietor Klauss, 132 de­sempenhando urn pape! que era incompreensivel, Carcara desaparecido do baralho, Rozendo que so conhecia de nome, Severino Lima Ia longe, em Pernambuco, puxando cord5es que acionavam Moretti e muitos outros, Lucio perdido ness a teia que. era cada vez mais intrincada, pior que a linha em­brulhada dos papagaios que Dondinho com tanta paciencia sabia endireitar.

- Antonio Branco ta querendo te da urn alo.

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Lucio ouve 0 companheiro, enquanto as guardas estao longe. Nao sente disposi<;ao de envolver-se.

- Todo mundo da nossa galeria lamenta a morte de Nijini. Antonio Branco manda dizer isso. Nao foi legal 0

que fizeram com ele. Mesmo assim nao queria envolver-se. Quando a opor­

tunidade se apresentasse, iria embora. Nao para desaparecer da cidade e, sim, para ajustar eontas com as matadores de Nijini. Andaria atras deles 0 tempo que fosse necessario. Uma semana, urn mes, urn ana inteiro, no sol e na ehuva, de noite e de madrugada, pelas esquinas e nas bocas. Mais eedo au mais tarde as eneontraria. Todos estao sempre se encontrando. Com eles nao seria diferente. Acionaria tam­bem Moretti.

- Vamos ver se ele liquida os colegas com a mesma facilidade com que mat a os bandidos que nao fazem 0 seu jogo.

"Dou estouro de quinhentos mil num banco qualquer e te entrego a nota, Moretti, mas quero as caretas que fuzi. laram Nijini com 0 terno de madeira, desfilando numa ala­meda de cemiterio. Quero eles antes de mim."

Nao reparou na chegada do carcereiro. Tentou conduir urn poema, durante horas; nao conseguiu. Tentou iniciar uma historia, nao pode. Imaginou fazer 0 esbo<;o de urn qua­dro, nao acertava. A certeza absurda de que havia morrido avolumava-se, enchendo-Ihe os olhos, alastrando·se pelo san­gue. E nao tinha mais duvida de que uma pessoa morre diversas veZes. "Todos os dias. Dns morrem mais do que os outros. eada ontem e uma sepultura que se fechou. Olha­se 0 pardal mariscando no cimento e quando se volta a olha-Io ja nao .0 igual, nem a gente. Se Nijini sentia a mesma eoisa, nao sofreu tanto. Mas era apenas urn garoto, nao podia estar min ado dessas realidades que enlouquecem."

Apos a saida do carcereiro foi que se deu conta do tem­po que estava sentado ali, olhando sem ver, refletindo acon­tecimentos distantes, como urn lago teflete coisas que nunea existiram. A vontade era sair andando par urn caminho que nao tivesse fim, que se perdesse no deserto de areias ou na solidao dos oceanos. Urn andarilho de pes rachados, olhos turvos des absurdes que vira as proprias maes preduzir.

- Todos Iamentamos teu destino, Lucio. Por isso es­tamos aqui para tentar ajuda-Io. Mas pra que a tarefa seja completa, pe<;o urn favor: tente ajudar-se, tambem.

"Onde estaria aquele coronel que tinha tanta habili-

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lnutil procurar 0 coronel, pedir-Ihe nova chance. Ter­minaria fracassando. Antonio Branco planejava urn motim. Horroroso estava na jogada. Pelo que diziam, ninguem tinha pressa. lam esperar a melhor opottunidade, como 0 pesca­dor aguatda a melhor mare. A ordem era que todo senten­ciado se comportasse 0 melhor possiveL Nada de provoca­~6es, de queixas gratuitas.

- 0 negocio e adquirir a confian<;:a dos titas. Quando tiverelTI achando que is to ta cheio de sacanas frouxos, se da a traco e esmaga essa cambada.

Antonio Branco, 0 preSQ com cara de leao, olhos envie­sados de chin"s. Mesmo nao sendo xerife da cela, era res­peitado em toda a galeria:No patio de sol ninguem se atrevia a fazer-Ihe gracinhas. Sua amizade por Lucio era antiga, des­de quando fugiu pela decima vez e denunciou aos jornais 0

regime de corrupc;ao nas pris6es. Naquele dia Maneta foi se chegando, fez escapulir 0

bilhete. Lucio pegou, disfar<;:ando. As palavras grosseiramen­te escritas falavam em algumas armas que 0 grupo obtivera. E esperavam por sua ajuda, ele que nao conseguia ajudar-se a si proprio. Amassava aquele fragmento de papel nos dedos, olhava Maneta que se distanciara. Falava entortando 0 pes­co<;:o, cabelos caidos na testa, um olho muito fechado por causa da luz, 0 canto da boca torto quando sorria. Urn cara cheio de tiques nervosos, que nao agiientava muito tempo de petturba<;:ao. Um homem que nao tinha futuro. Uma escor­regadela na pra<;:a dos bem-nascidos, dos comportados, ali estava. Peito magro, a mae sepultada antes dele, gestos invi­siveis puxando-o para 0 fundo do po<;:o. A convetsa de Ma­neta nao era desagradavel. Contava piadas indecentes, in­ventava historias. So ele nao ria. Fechava um olho, abria 0

outro, a canto da boca torto, mostrande as gengivas sem dentes.

- 0 que foi que aconteceu com tua cara, Maneta?

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- Uma pequena me beijou com for<;:a demais, quase me mata.

Respondia as provoca<;:6es no patio do sol e achava gra­c;a. Nae se importava de ser ridicularizado e is 50 era sua maior arma. Uma forma de escapar naquele cipoaI, onde somente as que nao tern personalidade sobrevivem. Com Lucio Flavia, Antonio Branco e Horroroso a coisa era dife­rente. Isolavam-se. Nao tinham risos nem historias a narrar.

Nao sou homem de aceitar qualquer coisa. 0 dia que nao puder mais comandar meu proprio barco, arrebento as cordas, deixo 0 sangue ruim ir embora.

Branco tinha essas conversas e falava sem risas, oIhos rasgados na cara de leao, bra<;:os musculosos. Os proprios po­liciais 0 respeitavarn e temiam. Vma vez, no patio, Joaa Grilo resolveu mosttar-se. Pegou a guimba de cigarro, deu um piparote para longe. Caiu em cima de Antonio Branco, bem na cal<;:a, ficou queimando. Os caras da conioia de Grilo acharam gra<;:a. 0 prisioneiro forte nao redamava e a caI<;:a estava queimando. Ai um dos amigos de Grilo pediu que fosse tirar a guimba. Nao se mexeu. Disse que "lixo pega fogo a toa". Antonio Branco se levantau, a guimba na mao, J oao Grilo ergueu-se de um saito. Tinha fama de ser ades­trado em carate, judo e capoeira. Tambem diziam que era bom no lan<;:amento da faca, e melhor com um revolver. Branco cansara de alivir tudo aquila mas estava pOllca li­gando. Avan<;:ava com a guimba na mao e Joao Grilo ia se afastando, metendo-se pelas rodas dos que conversavam. No muro nao po de fugir. Deu uma demonstra<;:ao de sua rapi­dez: acertou com os pes no peito de Antonio Branco. 0 sentenciado bambeou mas nao caiu. No segundo pulo Grilo se atrapalhou, Branco 0 segurou no pesco<;:o. Lucio Flavio e outros que tinham intimidade com ele correram para evitar a confusao. Impossive!. Ficara surdo. Grilo fazia cata de pavor, os olhas saltados, narinas se alargando. Antonio Bran­co apertava-o, dobrava-o no chao, como se estivesse subju­gando um cachorro.

- Vou te enfiar a guimba na goela, filho da puta! E as pancadas se repetiam, Grilo ja todo ensangiien­

tado. Como a guimba acabou sumindo na violencia, Branco segurou-o com as duas maos, as brac;as morenos tornaram-se volumosos, os musculos do peito saltando pela camisa ras­gada, a cabe<;:a de Grilo estalando de encontro ao paredao caiado de branco, os policiais vieram correndo e gritando:

- Circular! Circular!

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Correrias, borrachadas, ferimentos com as baionetas. Junto ao muro fiearam apenas Antonio Branco, Joao Grilo, que nao conseguia soltar-se de suas garras, e Lucio. Flavio que assistia. 0 sargento chegou, tornou a berrar:

- Mandei circular, canalhas! Antonio Branco atirou Joao Grilo contra 0 policial e os

golpes de baioneta multiplicaram-se sobre aquele gigante moreno, de olhos enviesados. Mais soldados aparecerarn, e quando 0 presidhirio pode ser dominado estava com pro­fundos cortes no peito e nas costas, Lucio Flavia corn urn galo enorme na testa, Joao Grilo completamente amassado.

Sentado no chao naquela manha, Lucio recordava a va­lentia daquele tipo que muita gente temia e por isso mesmo gostaria de ver num terna de madeira, a caminho da sepul­tura anonima.

- Qual foi teu problema, Branco? - perguntavam. Nunca respondeu. Dizia apenas, mudando de assunto: - 0 dia que conseguir sair daqui, vau mostrar a que

fazer com os verdadeiros bandidos. E a conversa tomava logo outro rumo. Portanto, aquele

bilhete que lera nao era de urn sentimental, nem de urn poeta ou provaveI pintar. Era de urn sujeito pratico, como deveria ter sido sempre.

- Nao tenho sonhos - dizia Antonio Branco, nos dias que estava para falar. - Apenas urn me preocupa: sair daqui e dizimar a canalha af fora que engross a 0 rabo, en­quanta as famintos sao mais famintos e criminoso e todo aquele que nao se conforma com 0 espetacuio.

Par causa dessas conversas, muitas foram as idas e vindas de Branco a I1ha Grande. Mas, 0 estranho para Lu­cio era ver como se entendia com Maneta.

- Deixa de cara feia comigo, senao te meta a InaO! - dizia Maneta, brincando.

Branco achava gra~a. Maneta sala dan~ando pelo patio, urn olho fechado, 0 outro aberto, a boca torta. Os guardas nao gostavam daquelas demonstrac;6es, mas nem sempre se incomodavam. E a magricela se exibia, como se estivesse numa pista de dancing com a bailarina mais famosa da par6-quia. Na selnana em que Maneta perdeu a mao, e 0 deixaram 56 dais dias na enfermaria, foi Branco quem terminou tra­tando da ferida. Maneta nao tinha esperan<;:a de escapar vivo, porque 0 amarrado de gaze e esparadrapo fedia:

- Vou morrer, chapa. S6 pe~o que nao me deixe so­frer muito. Jura que nao deixa?

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Branco, estirado na cama, ouvia. Considerava aquilo como lenga-Ienga, mas sabia que Maneta tinha coragem e respondia:

- Quando tiver fedorento que ninguem mais agiiente, quebro teu pesco~o.

- Certo. Me faz esse favorzinho. Juro que depois disso nao volto a te aporrinhar.

Do seu canto Lucio Fhivio fkava pensando na aventura que genninava. Nas celas, nos desvaos das galerias, nas me­sas do restaurante, nos banheiros. Mais cedo ou mais tarde, a rebeliao, os tiros, as correrias, presos massacrados no coice dos fuzis, soldados de barriga rasgada com ferros de ponta, atravessados de balas nos olhos. Urn momento que teria re­flexos profundos; pedra que cai no lago e arredonda em drculos concentricos. Dias e dias nas solitarias, 0 calor amea­c;ando parar a respirac;;ao, ausencia de agua e alirnentos. Vrna sequencia interrninavel de sofrimentos pela liberdade que estava sempre mais distante.

Dois meses depois da morte de Nijini, quando sua fi­gura ja lhe parecia suave recorda~ao, Lucio ainda se preo­cupava com 0 plano de Antonio Branco que ganhava adeptos. Nao era diffcil observar os grupos tramando. Os cochichos, sacudir de cabe~a, piscar de olhos, troca de palavras-senha. Toda a mimica que antecede a revolta.

Nao vira mais 0 coronel Helio Mendon~a. Perguntara por ele ao carcereiro, nao soube responder. Perguntara ao funcionario da administra~ao, disse que tinha dado baixa, se livrando daquele inferno. As cores das tintas perdiam-se assim Duma distancia incalculavel. 0 vermelho, 0 amarelo e 0 roxo, que poderiam ter sido sua saIvac;ao, eram agora longfnquo e esmaecido arco-iris. "Mas, quantos surgiram sem ajuda? Van Gogh venceu a indifereno;;a e a loucura." Nada the faltava para tentar. Apenas 0 germinar daquela fuga, que nao estava nos seus planas.

- A liberdade e a ocupao;;ao do prisioneiro. Lan~ar cordas aos muros e atingi-1a a qualquer prec;o e 0 nosso oHcio. Se nessa luta a gente morre, e ate born. Some-se no unieo momento de sonho que tern validade neste mundo.

Uma vez ouviu Branco dizendo isso. Uma especie de comkio. Faltou energia no restaurante e urn grupo inteiro ficou conversando, enquanto as guardas providenciavam 1uz. Foi la que ficou sabendo do poder de lideran~a daquele homem.

Na tarde de calor o. carcereiro veio avisar Lucio Flavio.

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A mulher morena; de cabelos lisos, estava no salao de VISI­

tas, Foi ate I,L Era a mesma que ja vira uma vez: olhos be­suntados de tintas. Vinha a mando de Moretti, como da vez anterior. Trouxe urn envelope que meteu cuidadosamente por baixo da tela, Olhou-o por urn momento, foi embora, Os guardas nao se incomodaram, nell com a visita, nem com a carta. Estirado na carna turca, que tambem era conquista recente, examinava a caligrafia familiar. Moretti metido em problemas, Comec;ava dizendo que Klauss tinha se atolado ate 0 pescoc;o nas enrascadas de Bechara. Que ele, Moretti, havia justic;ado 0 espancador Rozendo AssunC;ao. Relacio­nava Klauss com 0 metralhamento de Nijini e Liece. Falava das dificuldades que estava enfrentando e das acusac;6es que surgiam, cad a vez mais fortes, apresentando-o como elemen­to·chave do Esquadrao da Morte. Era uma carta que deixava Lucio Flavio confuso, ainda que conhecesse Moretti de sobra. Naquilo tudo que ali estava dito, 0 diffcil era saber onde terminav'a a verdade e come~ava a intriga. E, finalmen­te, a carta 0 incentivava a embarcar no plano de Antonio Branco. Isso deixou-o de sangue gelado.

"Como esse cara sabe das eoisas que se pass am "no se­gredo dos carceres? Que informantes tao astutos possui, ca­pazes de estar a par das eoisas mais intimas?"

A carta continuava no verso do papel e apresentava ainda urn trecho que 0 alarmou.

"Daqui em diante tua vida na"prisao vai ser mole. Nao vao te aporrinhar como antes. Receberas presentes, visitas particulares e correspond en cia . Nao farao aquelas exigen­cias que sao ptaxe nos outtos sentenciados. As co is as pta teu lado estao mudando. E pra quem ja fugiu tantas vezes, mais uma nao tern importancia. Se precisa partir pra mais urn golpe. Tive em Pernambuco, Severino Lima ta pred­sando dos teus servic;os. Ta com a grana mofando num bati. No embalo se aproveita pra justic;ar os caras que mandaram Nijini pro ceu. Se topa 0 que aqui fica dito, manda dizer. Semana que vern Cinara te fara outra visita. Vai levar uns livros. Se ainda tiver com a mania de pintura, dii 0 ala. Compro tinta e tela. Assinado, M."

- Vai se apresentar uma nova oportunidade pra ti. Se estragar sera 0 fim. Jamais havera outra.

Picou urn tempao com a carta na mao, olhando a cara gorda de 132, os beic;os arroxeados, pronunciando aquelas palavras. Olhava tambem 0 rosto sempre sorridente de Mo­retti, os dentes brancos, 0 correntao prateado no pescoc;o.

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Achava ridkulo 0 sigilo de Antonio Branco, de Maneta, de todos os demais, empenhados naquele plano de fuga, que 1.1 fora ja sabiam.

"Como chamar Antonio Branco e dizer-Ihe aquilo? Como mandar que se acautelasse, sem provocar uma tremen­da desordem ou ficar suspeito de dedo-duro? Muito difkil a situac;ao. o melhor era aceitar 0 jogo ever 0 que ia dar. Outro ponto que 0 intrigava era quando Moretti falava da boa vida que pass aria a ter. Lucio Flavio recorda as regalias e nao deixa de Ihe dar certa razao. Faltava en tender 0 motivo de tudo aquilo. Primeiro a garrafa termica, 0 pacote de bis­coitos, depois 0 bloco e 0 lapis, alguns livros e revistas, mais tarde a cama turca e urn pente.

"Por que aqueles privilegios, se a maioria dos senten­ciados dormia mesmo era no chao, quando muito em cima de folhas de jornal? E as visitas fora dos dias marcados? E o envelope recebido na presenc;a de dois policiais, sem qual­quer vistoria?"

_ Que nova trama sera, meu Deus? Que estarao arrao-jando desta vez?

Por mais que se esforc;asse, procurando acompanhar as artimanhas de Moretti, era difkil entender 0 que dizia. Pri­meiro, tornava-se impassivel saber como transpirou a pre­para"ao do motim. Segundo:' nao fazia sentido 0 regime de reg alias a urn presidiario comum.

Na parte da tarde, quase no mesmo horario, 0 carce­reiro trazia-Ihe alguns jornais. Lucio ficava lendo 0 noticia­rio. Num deles, a reportagem sobre a prisao de Fernando C. 0., Victor Klauss, Portuguesinho e Marta Rocha. Leu a no­ticia divers as vezes. Nao se surpreendeu. Mais cedo au rnais tarde teria de acontecer. Durante 0 banho de sol, no dia se­guinte, a mesma movimentac;ao de Maneta, transando nas rodas dos que conversavam, dando seus saltos de bailarino capenga, urn olho fechado, 0 outro aberto, 0 canto da boca entortando. Antonio Branco chegou-se petto. Lucio teve von­,ade de dizer que tomasse cuidado, mas percebeu 0 quanto isso seria doloroso. Vma decepc;ao que provocaria odio. Man­teve-se calado. Branco tambem nao falava muito.

_ Vai haver uma fuzilaria tremenda. Sei que eles aproveitarao pra dar baixa numa porC;ao de n6s. Mas e 0

que se fara tambem. Nunca mais vao esquecer da gente. E depois? - quer saber Lucio.

_ Sera a liberdade. Quem souber aproveitar, otimo.

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Quem se embriagar com ela, termina morto. E morre ern estado de gra~a.

Lucio olha aquele tipo de cara larga, olhos enviesados, palpebras inchadas, como se terminasse de dormir. Tantos meses de segredos, de sinais transmitidos sigilosamente, de gestos e pequenos furtos e 0 resultado seria apenas aquele: um instante de liberdade. Por saber mais do que Antonio Branco provavelmente sQubesse, Lucio comec;ou a pertur­bar-se com 0 sentimento de culpa e na~ fez mais nenhuma indagaC;ao. Era como se estivesse sujo, a roupa pegajosa no corpo. Impossivel manter conversa com 0 gigante moreno que sonhava com a liberdade, que tra~ava misteriosamente os caminhos para atingi-Ia, quando na verdade ja sabiam em detalhes 0 que estava tramando. Se Moretti sabia, quanto mais Bechara e a propria dire~ao do presidio.

- E sabe 0 que faremos? Atravesso a fronteira, trabalho uns tempos no Uruguai ate me familiarizar com 0 ambiente. Junto uma grana Hrme e parto para a organiza~ao de um outro matim. So que vai ser de grandes proporc;6es, como nunCa ninguem viu.

Lucio olha 0 policial que se aproxima de Maneta e co­me<;a a empurra-Io, a acerta-Io com 0 coice do fuzi!' Branco ergue-se, Maneta esta no chao, outro soldado ajudando a espanca-Io. Pegam ele pelos cabelos, saem puxando para um canto, como quem puxa urn saco.

- Filhos da puta! Se aproveitam de um aleijado! _ diz Antonio Branco.

o incidente termina, Maneta e solto. Em pouco tempo esra junto de Branco. Queixa-se do bra<;o capenga, esfolado no cotovelo, de tanto arrastar no cimento.

- Que foi que houve? - Sei la. Tao de marca<;ao comigo. Na cela Lucio Flavio encontra 0 papel metido por entre

as grades. E urn recorte de folha de caderno. Em letras de imprensa, feitas a mao, esta a frase que equivale a uma pu~ nhalada.

"Sabe por que tao te dando boa vida? Tua irmazinha Nadja caiu de amores por um dos diretores da prisao. Quem dera que tambem a gente tivesse uma irmazinha caridosa como a tua."

A denuncia deixava-o sem fala, 0 sangue gelado nas veias, ollio's turvos, 0 corac;ao em batidas descompassadas.

- Impossivel! E coisa de Moretti. Ta tentando me enlouquecer.

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Deitou-se de costas, ficou olhando 0 teto baixo da cela. - Vai se apresentar uma nova oportunidade pra ti.

Se estragar sera 0 fim. "Entao era aquilo? Desde a prisao em Belo Horizonte

132 ja sabia do que estava se passando? Desde 0 momento em que conversavam na pra<;a deserta, onde havia a pal­meira com a folha amea<;ando soltar-se?"

Na solidao daquele cubiculo, rodeado de sons e aconte­cimentos distantes, Lucio £icou imaginando a quanta era culpado. N as paredes encardidas, via frases que se apagavam e acendiam, como anuncios luminosos: Lucio respons:lvel pela desgra<;a geral da familia. Pela morte do irmao. Pela morte da irma Nadia. Lucio matara a irma, quando fugir da prisao. Na primeira oportunidade em que a encontrar. Lucio aumentara 0 desespero da mae e do pai que ja estao no limite maximo do sofrimento. Lucio se matara, porque ja nao tern sentido que prossiga vivo. Lucio e urn monstro que a tudo e todos perverte. Sua sombra e a propria maldi<;ao.

As lagrimas correram-Ihe abundantes dos olhos, rola­vam quentes para 0 colchao de capim, urn travo na garganta. Os olhos tristes da mae e do pai, 0 rosto vermelho e sorri­dente de Nadia. A vontade era subir no ponto mais alto da prisao e gritar pela morte.

- Como pode, Nadia, sangue do meu sangue, irma de Nijini, juntar~se a corja que nos massacra?

- 0 obietivo e atingir a liberdade. Se nesse trabalho a gente morre, e ate born.

Antonio Branco repetia aquelas palavras e nunca urn plano de fuga the parecera tao oportuno. So que nao iria para 0 Uruguai. Consumaria seu maior crime, aquele que deixaria a cidade horrorizada, que traumatizaria a popula<;ao, elevaria sua pena a quatrocentos anos de reclusao.

Com os olhos vermelhos de desespero, levantou-se da cama, rasgou 0 colchao, quebrou as tabuas do estrado a pontapes, os guardas invadiram a cela, atracaram-se e quan­do foram embora Lucio Flavio estava ferido, as roupas em frangalhos. 0 carcereiro apareceu, como se nada tivesse ocor­rido e, vagarosamente, foi retirando toda aquela palha, tiras de lona e fragmentos de madeira. Limpava e movia-se em silencio. Lucio acompanhava sua atividade. Nao tinha animo de falar, de pedir qualquer coisa. Nunca antes se sentira tao vazio e imprestavel.

- Nos nao servimos pra nada. Dentro ou fora da cadeia, tamos sempre condenados a pagar. E uma divida que

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11aO se contraiu, que nasceu com a gente e que nao se pode pagar nunca.

"Tem razao, Padre! Nada de desejos, de pretens5es. Tudo nos leva a um completo vazio. So 0 mal e permanente. S6 a morte pode set nossa libertac;ao. Urn prisioneiro morre todos os dias e eu acho que jil morri mais do que qualquer Dutro."

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xx

o matim estava previsto para uma sexta-feira. Comec;a­ria na propria galeria, durante a safda para 0 bonho de sol. Antonio Branco e Horroroso na lideranc;a. As armas seriam distribufdas desde a quarta. Os que viessem juntar-se ao movimento tomariam as arm as dos policiais. Antonio Bran­co esperava que Lucio Flavio tambem formasse na lideran~a, embora nunca 0 tivesse convidado. Na segunda-feira, de tan­to dormir no chao, Lucio acordou tremendo de frio e febre. Poi levado a enfermaria, lnas no dia seguinte estava recupe­rado. Os que 0 acusavam de receber regalias tinham mudado de ideia, a partir do-quebra-quebra na cela. Nunca mais, tam­bern, 0 carcereiro passara com a garrafa de cafe, as !ivros ou as jornais. Embora continuasse so na cela, isso 11aO era re­galia e, sim, castigo. 0 isolamento total, que chega a enlou­quecer alguns presidiilrios. A solidao prolongada, dia apos dia, a necessidade de querer falar com alguem e nao poder. o mutismo degenerado como dlncer, estabelecendo no orga­nismo uma especie de panico. 0 medo de precisar falar e nao saber. Para manter 0 equilibria psfquico, alguns presidhirios,

. co.ma era 0 caso de Lucio Flavia, costumavam conversar 50-

zinhos. Chico Capeta falava com a caixa de fosforos, Padre fazia discursos filos6ficos, Nelson Caveira contava hist6rias absurdas, Tatuagem falava e ria, Juliao Beto assoviava.

Lucio segurava 0 isqueiro como se fosse microfone, dava entrevistas. Os pequeninos pontos sujos no chao, nas paredes encardidas e no teto, eram as pessoas. A multidao a que estava se dirigindo.

- Saibam rodos que ja nao tenho mais 0 que explicar a respeito de mim n'1esmo. Fiquem dentes de que jamais te­remos conhecimento total da verdade. 0 que ja disseram de mim, do que Hz e nao fiz, ta nos jornais. Verdade e lnel1-

tira, uma ao lado da outra. Nunca me preocupei com isso.

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Page 116: Lucio Flavio - Passageiro da Agonia.pdf

o que sou, 0 que poderia ter sido, jamais saberei. 0 crimi­nose atrai a aten~ao pela audacia demonstrada. Nao e 0 mon­tante de dinheiro que tira de urn banco que desperta curio­sidade. It a aventura que terminou para os bem-comportados. Muitos gostariam de tentar, mas tern medo. A aventura dei­xa feridas, marcas no rosto e no peito, que jamais se apaga­rao. Ela e a mulher apaixonante, a princesa de olhos azuis que mata cada amante que passa a noite ao seu lado. Vale a pena entregar-se de corpo e alma a princesa, gozar e depois moner? It a op~ao que 0 mundo nos prop6e.

Esses mono logos de Lucio seguiam-se interminavelmen­teo Quando ouvia passos na galeria, parava. Depois prosse­guia, ainda que as assuntos nao se relacionassem muito bern.

- Esta e a Radio Esperan~a, falando do carcere de urn presidio imundo. Vamos Ihes apresentar as novidades por aqui. Hoje teremos sapa de agua suja com rnacarrao es­tragado. Mas ja se tern noticia de que a coisa vai melhorar. Tudo tende a melhorar. It 0 que dizem constantemente.

Encostava-se na parede fria, ficava achando gra~a da­quela fala~ao sem sentido. E, num determinado momento, come~ou a olhar-se no pequeno espelho, puxar as palpebras, vet se estava norn1al Oll se estaria enlouquecendo como Chico Capeta, Padre ou Tatuagem. E, para agravar sua im­pressao) ve a mao magra e escura soltar 0 papel escrito por entre as grades. Era urn bilhete de Antonio Branco.

"Ta na hora da decisao. Nao se vai esperar 0 dia mar­cado. Eles ja sabem de tudo. Alteramos 0 plano e vamos em. frente, agora ou nunca. Nossa cela t:i com a fechadura que­brada. Mais tres do mesmo lado da galeria tao na me sma situa~ao. Se quiser nos seguir, seja bem-vindo. Branco."

Lucio ficou com aquele peda~o de papel urn tempao nas maos, sem saber ao certo como proceder. Fora colhido de surpresa. Recostou·se na grade, olhando a movimenta~ao que se iniciava. Primeiro, dais presos que nao conhecia pas­sararo para ocultar-se num ponto estrategico, de onde pode­riam atingir melhor os policiais que entrassem. Depois mais outros e, finalrnente, Antonio Branco. Nao chegou aver Horroroso, mas sabia que 0 grupo rebelde estaria dividido em duas partes, cobrindo ambas as entradas da galeria. Dali sairiam para 0 meio da prisao, ate poder empunhar armas pesadas, que garantissem a fuga. Branco cansara de repetir que a preocupa<;ao inicial seria dominar policiais que esti­vessem com metralhadoras. So depois disso poderiam partir para os ajustes de contas.

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Lucio queria sair da cela mas nao tinha como quebrar a fechadura. Urn preso chamado Promessinha meteu urn pe­da~o de ferro entre as grades. Antonio Branco ajudou a fazer for~a. A porta estava aberta. Apareceram os primeiros sol· dados, a fuzilaria come~ou. Lucio subiu numa parede c1ivi­soria, saltou sobre os policiais que vinham correndo, urn deles com a metralhadora que Antonio Branco tanto dese­java. Cairam embolados, Lucio segurando no can~ da arma, ppntapes e socos, um dos guardas empunhando 0 sabre, tiros e gritos, sirenas tocando, tiras isalados e rajadas de metra­Ihadora aumentando a confusao daquela tarde. Promessinha fora atingido nas costas, 0 soldado que estava na guarita tombou sem vida, outros cairam feridos. A ala que Branco nao pudera guarnecer deixava-se dominar. Se a a<;ao nao fosse rapida, estariam derrotados em pouco tempo, porque logo viriam refor~os. Alguns presos, portando armas leves, se apavoraram, correram na dire<;ao do patio, a fim de fugir de qualquer jeito, eram eliminados. Maneta recebeu urn tiro no pesco~a, arrastava-se no cimento. Lucio Flavio tentando socorre-lo, novos tiras 0 atingindo na cabec;;a e nas pernas. Mais presos que nao entenderam as ordens de Antonio Bran­co, procurando a fuga isolada e caindo sem vida. Lucio pla­nejando outr~ assalto, de surpresa, sobre os policiais que tomavam posi~ao junto a uma parede. Horroroso precipi­tando-se na dire~ao do deposito de muni~ao, a raj ada de metralhadora atingiu-o no peito. Antonio Branco entendeu estar cortada qualquer possibilidade de fuga. Avan~ou dispa­rando a metralhadora que Lucio Flavio conquistara. Contra os policiais, os muros, as lampadas, as grades de ferro. Re· cebeu logo diversos tiros no peito e nas costas mas conti­nuou sem querer parar, a metralhadora sacudindo-lhe os bra<;os possantes. Caiu de joelhos com a arma silenciosa, es­tendeu-se vagarosamente no cimento ensangiientado. Lucio mal tivera tempo de ve-lo. Os policiais corieram para cima

~ de Branco, desferindo-lhe pancadas no rosto, pontapes na barriga. Pouco a pouco, naquela confusao de tiros e manchas vermelhas, foi desmaiando, olhando todas as maos que 0

seguravam e sacudiam. Nao sabe em que dia acordou, nem onde. Sentia-se zonzo, alheio, aereo e terrivelmente dolorido. Estava num cubkulo com pouca luz, esparadrapos na testa enos ombros, uma atadura nas castelas, a unha de urn dedo do pe lascada. A prisao cobria-se de silencios. Os proprios policiais parecian1 mover-se com vagar, a fim de nao inter­romper aquela calma carregada de recorda~6es.

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- A liberdade e a ocupac;:ao do pnslOneiro. Maneta fazendo brincadeiras no patio do sol. Ele mes­

mo debochando dos defeitos fisicos que adquirira. 0 olho fechado, .0 outro aberto, a boca torta. Tudo apagado como se apagam riscos de giz num quadro-negr.o. Uma simples es­ponja fazia sumir aqueles homens, sem deixar vestigia.

Lucio ap.oiou a cabe<;:a pes ada nos joelhos, ficou assim urn tempao no silencio sombrio do cubiculo, 0 cheiro de motte impregnando as grades e as paredes. S6 se mexeu quando ouviu 0 vago rUD10r de urn ratinho que aparecera assustado, querendo fugir sem poder. Acompanhava 0 es­fors;o inutil daquele bicho, suas idas e vindas inuteis.

No comec;:o da noite vieram busca-Io para 0 interroga­torio, Sentaram-no na cadeira, fizeram-Ihe perguntas. Atra­vI's delas foi sabendo que Antonio Branco era muito mais valente do que Ihe parecera, E tinha implicac;:6es outras, que o distanciavam de urn mero assaltante de bancos. 0 interro­gatorio nao foi muito demorado, Em menos de duas horas estava de volta ao cubiculo. Acomodou-se num canto, pro­curou 0 ratinho, nao 0 encontrou.

o carcereiro magro e alto'trouxe 0 bilhete. Era de 132. Disse que podia ir falar com 0 policiaI, caso quisesse. Lucio nao respondeu. Rasgou 0 papei sem ler. Inutil continuar ouvindo 0 que 132 tinha a dizer, as tramas de Moretti acusando Klauss, 0 jogo ardiloso de Bechara, a cavilac;:ao de Severino Lima, Nao conseguiria jamais parar aquela roda, mas podia fechar as olhas e a boca, recusar-se a vet e ouvir.

NaqueIe silencio sem fronteiras, via 0 Tosto de Janice, seus olhos sorridentes, ouvia suas palavras fazendo pIanos, via Leo sacudindo os bracinhos curtos, engrolando coisas que s6 a mae entendia.

"Adeus, Janice. Adeus, Leo. Adeus, Antonio Branco, Maneta, Padre. Adeus, Beni. Que Deus te mantenha nas lonjuras do deserto. Adeus, Dondinbo. Nao chore mais por mim, mae. Nao se preocupe mais comigo, pai. ]a estou tao 1norto, que nem posso odiar Nadja. Me sinto tao distante e tao perto de Nijini. Nao pertencemos a este mundo. Somos passageiros da agonia, perdidos num vendaval. Todas as portas se fecham ante nossos oIhos. Marchamos em torno de uma rocha gigante, puxando as correntes das nossas con­tradi~5es, dos nossos erros e dos erros de todos as mortais. A nos nao cab em sentimentos, nem amarguras. Mataram Maneta porque era amargo. Antonio Branco e Horroroso morreralD pelo mesmo motivo. Somas 0 Iado mau da espe-

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cie. A mancha que deve ser apagada a ferro e fogo. Perdi a corrida para voce, Bechara, que e muito pior do que eu, Antonio Branco, Horroroso, Liece, Nijini e Fernando C. O. Urn bandido nao deve ter fraquezas. Por ser bandido, e1e cleve agir na sombra, no momento em que menos se espera. Uma tOllpeira, aguardando 0 instante certo de saltar e rnor­der. Nos confundimos tudo. Mistllramos erros com acertos, arnor com odio, lealdade com traic;:ao. Urn imperdoavel ro­Inantismo nos corron1peu. Bechara e a grande mestre. Mo­retti tera muito que aprender com ele. Severino Lima esta perto de ambos. Praticam urn jogo sem emoc;:6es, Cad a pedra significa cada vida."

Lucio Flavia e novamente interrornpido pelo carcereiro magro, que Ihe traz outro bilhete. E novamente 132.

"Moretti ta atento ao que pretendem fazer contigo. Manda que te cubra, Tao querendo te transferir amanha ou depois pra Ilba Grande."

Sem nada dizer, torna a rasgar 0 papel. "Que diferenc;:a fazia aquele cubiculo ou outro igual

na Ilha Grande? Nao entendia bern a preocupac;:ao de 132, nem a desnecessaria movimentar;ao de Moretti, se e que estava se movimentando de fato. Nada mais interessava. 0 barco descera 0 velame, as cordas estavam bambas, Ierne sem navegador. 0 destino assinalava as mares, as ventos mais fortes trar;avaln-Ihe 0 roteiro. Nesse mar alto, nao conseguia avistar os sanhos coloridos que tivera. S6 0 oceano e 0 ceu, que era oceano tambem. Uma viagem a lugar algum.

No dia das visitas, era a mae quem ali estava. Com que saudade via aquele rosto sofrido.

"Nao chore assim, mae. Quando for embora, nao quero me lembrar da senhora sempre chorando."

- Noquinha, como a gente e triste. Como me sinto infeliz.

Ficou olhando a mae e ja nao entendia 0 que dizia. Preocupava-se apenas em ve-la, como se fosse a ultima vez. Quando ahara ja havia soado e as visitantes se retiravam, ainda ficou olhando-a, atraves da tela.

Urn dia de manha bateu nas grades chamando 0 carce-reiro, Queria falar com alguem da administrac;:ao.

- Vou ver se e passive!. o hornem reapareceu e com e1e urn policial. - Quero encaminhar urn requerimento a quem de

direito, solicitando permissao pra que me exercite na pin­tura.

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Page 118: Lucio Flavio - Passageiro da Agonia.pdf

o policial ouviu a pretensao do prisioneiro e tambem foi embora. De tarde veio urn cidadao que nunca vira. Era de estatura mediana e bastante calvo.

- A sugestao foi aprovada. Vai receber 0 material necessario, depois de amanha. Em vez de tela podera fazer exerdcio em peda<;os de compensado.

Lucio agradeceu. Nao tinha grandeza para mostrar-se imponente. Agradeceu e ate sorriu. E mesmo depois que 0

hornem desapareceu, continuou a sorrir, embora fizesse es­for~o de parar. Sarria, segurava a cabe~a, passava as maos pelo rosto. Olhava-se no pequeno espelho e ainda sorria, os dentes sujos de nicotina aparecendo, os fios de barba ja gran­des, dando-lhe urn aspecto nauseabundo. E quando reparou mais atentarnente na sua figura, alarmou-se de estar pare­cendo Tatuagem: a mesma cara m'lgra, os olhos fundos e esverdeados, os bei<;os finos se arreganhando no riso idiota.

Uma seman a inteira exercitou-se com as pinceis e as bisnagas de tinta. Trabalhava durante horas, sentava-se e ficava olhando 0 que fizera. Nao gostava. Faltava-lhe tecnica. As pas do moinho nao eram tao grandes quanto deveriam. o eixo central nao tinha aquela figura de coisa extremamen­te forte, tao forte e monumental quanto 0 proprio eixo da Terra. E repetia, repetia a mesma coisa.

- Urn dia acabo acertando. Mais cedo ou mais tarde acerto.

Na manha em que voltou do patio de sol, a ce1a estava modificada. Para a gale ria D tinham vindo dois desconhe­cidos: Orlando Santos e Mario Pedro da Silva, que atendia por Marujo.

- E como todo mundo me chamava na Ilha. Lucio sentou-se, Heau ouvindo os desconhecidos. Para

quebrar 0 gelo do ambiente Marujo tirou urn baralho do bolso e ofereceu cartas. Lucio aceitou, Orlando tambem. Jo­garam ate tarde. Orlando falava pouco, mas 0 companheiro tinha sempre muito 0 que dizer.

Nao te lembra de mim na Ilha? - perguntava ele a Lucio Flavio.

Nao fa<;o ideia. E que a gente tava em celas afastadas. Mas no

banho de sol sempre te via. A turma por Ia te respeitava urn bocado. Gente boa causa respeito.

Sempre que acabava de falar, punha-se a rir. Orlando ocupava-se com as cartas e Lucio Flavia nao dava impor­tancia aquele tipo com ar subserviente e falando do que "ao

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devia. Ao fi"al de seis partidas, Lucio havia ganho quatro e as outras duas tinham ficado empate. Marujo entao come­c;ou novas brincadeiras.

- Puxa, meu, 0 horn em e fera, meSilla. E born em tudo. Assim que gostaria de ser.

- E que voce fala mais do que joga - respo"dia Or­la"do Santos.

- E tu nao ganha por que, engra<;adinho? - pergun­tava Marujo.

- Ora, perea sempre porque a sarte nunea me aCOffi­

panhou. Ela mandou dizer que me detesta. Ai mesmo e que Marujo ria. E "ova rodada de cartas

era distribuida. La pelas tantas Lucio Flavio disse que "ao ia continuar. Marujo recolheu as cartas.

- Entao 0 jogo ta encerrado. Amanha se continua. Lucio encolheu-se ju"to a parede, ficou imaginando as

mudan<;as que faria no quadro, nas pinceladas mais fortes com 0 vermelho e 0 roxo. E tada tarde, quando nao estava mais pintando, jogava cartas. Sem que fizesse perguntas, Marujo p6s-se a contar fatos passados.

- Vim de la onde 0 diabo perdeu as botas e nao tou arrependido. Dirigi caminhao de Belem a Sao Paulo e aquilo e pior do que estar na cadeia. Ga"ha-se uma miseria e ainda tern satisfa<;ao a dar a uma por<;ao de filhos da puta, sem contar os policiais morrinhentos que se topa pelas estradas. Urn dia resolvi suspender essa de trabalho pesado e dei uns golpes por ·af. Coisa sem importancia. Mesmo assim as auto­ridades se e"cheram de indigna<;ao e fui bater com os cos­tados na Ilha Grande. Uma injusti<;a 0 que fizeram comigo. Ge"te muito mais grauda faz 0 que quer e continua por aqui.

Lucio falava alguma coisa, quando era oportuno, mas logo Marujo tomava a palavra e dizia ter vinte 'e cinco anos, mulher e dois filhos menores.

- E uma vida engra<;ada essa que a ge"te leva. A pa­rentada la fora, vez por outra se escapa, da uma trepada rapida na mulher, ela fica esperando urn filho. Tudo como quem rouba.

- Brevemente tu vai ta longe daqui, pois "ao? indaga Orlando.

- Caisa nenhuma, meu. Tou com 0 saeo cheio de pena. Pare<;o ate uma galinha. 0 doutor juiz viu tanto mal no que fiz que me deu quase trezentos anos. Ja viu urn destempero desse?

Houve urn momento em que Lucio chegou a achar en-

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grac;:ado aquele papo com Marujo. Ele tinha humor no que dizia, nae era chato como Tatuagem.

Voce e pintor? - perguntou Marujo. - Pretendo. Mas e duro. Tou quebrando a cabec;:a. - Voce acha que alguem pode ser um artista na pri-

sao? - terna a perguntar Marujo. - Depende. Nao ha um lugar certo onde se possa ser

urn artista. Nos dias que se seguiram, Lucio resolveu intensificar

o trabalho do quadro. Por isso, diversas vezes recusara par­ticipar do jogo de cartas com Marujo. Apenas Orlando jo­gava. Mexia com as pinceis e as tintas, perdia-se em deta­lhes, passava para outra tela que apenas tinha comec;:ado, imaginava pedir mais pedac;:os de compensado na adminis­trac;:ao.

- Ele nao quer se misturar com a gente, meu velho - dizia Marujo, para Orlando. - Nao quer, 0 que e que se pode fazer!

Lucio ouvia aquelas piadas e sabia que aquilo era pura provocar;ao. Por isso, conseguiu permissao para exercitar-se fora da cela. 0 fa to revoltou Marujo ainda mais. Quando retornava, 11aO se falavam. Dma noite foi Lucio quem propos o jogo de cartas, mais para evitar aborrecimentos.

- Nao sou nenhum genia, mas tambem tenho meu arnor-proprio. Nunca mais jogo com voce. Meu parceiro e Orlando.

- Que e isso, cara, ta dando uma de fresco? - per­guntou Lucio.

- Fresco ou nao, e isso ai. Fim de papa. - disse Marujo.

Lucio nao saiu para jantar. Ficou rabiscando 0 bloco, buscando novas formas, mais agressivas, ate tentar outra vez ° moinho com suas pas que tocavam infinitos. Marujo e Orlando voltaram, falando alto. Marujo retirou uma colher de metal do bolso, exibiu ao amigo.

- Olha s6 0 que ganhei. Como nao sei pintar, vou transformar isto aqui em algo util.

Dizendo isso quebrou a col her, £icou apenas com 0 cabo. Pos-se a afinar as extremidades no cimento. Em outra oca­sHio quebrou urn pedac;o de madeira e encaixou nele 0 estHe­te. Dias e dias ficou afiando aquele pedac;:o de metal. As vezes Lucio sentia-se incomodado com 0 ruldo de ferro esfregado no chao, mas nao reclamava. Quando se enchia de irritar 0

companheiro, Marujo tirava 0 baralho do bolso, distribula

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as cartas com Orlando. Lucio cansara de trabalhar no qua­dro, olhava 0 jogo. Pediu uma das cart as emprestada, para motivo de um dos trabalhos, Marujo nao respondeu.

- Arnanha vou pegar uma carta dessas, talvez a dama de copas. Depois dev.olvo.

- Vai pegar, 0 cacete. Aqui, ninguem pega poria ne­nhuma sem minha ordem.

Lucio Flavio ergueu-se de um salto. - Tou pedindo a merda da carta emprestada. S6 pra

tirar 0 desenho. - Vai tirar desenho do caralho. Lucio estava cheio daquele tipo the aporrinhando, fa­

zendo pirra~as, debochando. Nao iria tolerar por mais tempo. Avanc;:ou para cima de Marujo, pisando as cartas que esta­vam no chao.

- Vai te foder, filho da puta. Aqui ninguem joga mais porra nenhuma. Eu mando nesta gaiola.

Marujo ten tOll reagir, levou urn soco por dma da testa, caiu, Lucio atirou-se par cima, Orlando procurando apartar, .lVlarujo tentando localizar 0 estoque, 0 pontape acertando-o na cabec;:a, derrubando-o novamente. S6 entao Orlando pade acalma-Ios. Lucio encolheu-se, Marujo ficou do lado oposto, assoando-se, limpando-se, soprando as feridas. As cartas est a­vam no chao. Algumas intatas, outras completamente sujas e amassadas .

Passado 0 momento de furia, Lucio sentia uma ausen­cia inexplicavel. Uma saudade de tudo. Dos melhores ami­gos que ja nao dnha, dos caras que 0 respeitavam, dos que o compreendiam.

- Quanto tempo poderei agiientar isso? Ate quando serei 0 vencedor?

o ratinho apareceu de novo, ia entrar n.a cela, assus­tou-se. Na briga Lucio perdera 0 amuleto que Dondinho· viera Ihe trazer na prisao. Olhava 0 chao, tentando encon­trar a pequena pec;a. Mas nao encontrava. Levantou-se, exa­minou os cantos, menos 0 que estava ocupado por Marujo. Orlando perguntou 0 que havia perdido, Lucio respondeu que nao era nada, depois acharia. E ficou mais algum tempo olhando, impaciente com a perda do unico bem que possula.

A luz apagou na hora em que apagava sempre. Mesmo assim nao dormiu. Picou alerta a uma passive! rea<;ao de Marujo. Cada ruldo 0 encontrava de olhos abertos, para 0

que desse e viesse. Muito cedo, quando comec;ou a clarear, ja estava perto da grade, esperando pelo carcereiro. A grade

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se abriu, foi para 0 terra~o onde estudava pintura. Teve vontade de pedir na administrac;;ao que 0 mudassein de cela, mas isso poderia ser encarado como privih~gio e nao queria recomec;;ar todo 0 drama ja passado. Tentou dormir na parte da tarde, para compensar a noite em claro, Marujo nao dei­xou. Ora cantarolava, ora falava alto, contando uma hist6ria sem pe nem cabec;;a a Orlando. A. noite, esforc;;ou-se ao ma­ximo para nao dormir. Cochilava e logo ·acordava. Tinha certeza de que Marujo 0 queria surpreender. Era homem acostumado a agir na sambra, a traic;ao. E mais essa noite Lucio p6de ficar de olhos abertos, na porfia invislvel com o mensageiro da morte. A. tarde de uma ter<;:a-feira quando retornava do treino de pintura, encontrou Marujo sorriden­te e Orlando bastante alegre.

- Sabia que tou aniversariando hoje, chapa? - per­guntou-lhe Marujo. - Pois estou. E que tudo por aqui seja na santa paz. Vamos ao jogo que da sorte. Quem sabe daqui a pouco nao se pode apostar alguns mil-reis?

Dizia essas coisas e sorda. Lucio teve ate vontade de pedir-lhe desculpa pela violencia, mas achou prudente nao toear no assunto. Marujo tinha conseguido urn baralho novo, e dizia que se precisasse de alguma carta para desenhar era s6 falar. Ouvia aquela falaC;;ao toda, a mudanc;;a repentina e se calava. Recebeu as cartas, comec;;ou a jogar. Perdeu na pri­meira rodada e tambem na segunda.

- Hoje nao e meu dia - dizia. - Quando na~ e pra uns pode ser pra outros - aeen-

tuava Marujo. E nova partida terminou sendo disputada. Desta vez

aeabou empatada, assim mesmo por influencia de Orlando, pais as cartas nao estavam de forma alguma favoraveis a Lucio. ,

Depois do jogo, a eonversa de Orlando, os easos que vira, as pessoas boas e mas que conhecera. Nessas horas Marujo falava poueo. Quase nunea se referia ao que fizera au vira. Vma vez falcu vagamente dos crimes, mas sempre C01n ar de deboche, sempre procurando aparentar inocencia. Lucio ouvia-os. Era melhar nao fazer mais inimizades. E, a proporc;ao em que as horas passavarn, sentia os olhos pesa­dos. Na terceira noite de vigilia estava caindo pelas tabelas. Nao agiientaria mais outra noite em claro, esperando a sur­presa de Marujo. Felizmente, aquele jogo que the fora de pouca sotte, podetia contribuir para que tivesse urna noite mais repousante. Imaginando as tintas que usaria na pintura

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dos girass6is, no ceu sem Hm que cobriria 0 moinho de pas infinitas, estirou-se nas folhas de jorna! e dessa vez nenhum rufdo 0 surpreendeu. Teve, porem, urn grande pesadelo. Ma­rujo chegava bern perto com 0 estoque e, sorrindo, como na hara do jogo, espetava-o no pescoc;o. Depois, com 0 mesmo sorriso, cravava-o mais seis vezes no peito. Lucio nao acordou daquele sonho horrfvel. Distanciou-se, imaginando as cores do quadro que seria 0 retrato da sua danac;;ao.

Orlando apavorou-se com a astucia de Marujo. Tentou impedir 0 crime mas 11.aO conseguiu. Na primeira estocada ele ficou com 0 bra~o todo sujo de sangue e terminou de lambuzar-se nas estocadas seguintes. Lucio Flavio nao fez quase nenhum movimento que evitasse a agressao. Apenas vagos erguer de brac;;os e contorc;;6es no rosto. Quanto ter­minou, Marujo olhou aquele eorpo estendido a sua £rente, o sangue escorrendo no chao imundo.

- Tu mataste 0 homem! - gritou Orlando. - E pensava que fosse fazer 0 que? Marujo sentou-se perto dos olhos esverdeados de morte,

aguardou que os policiais apareeessem para as per gun tas de praxe. Tirou do bolso 0 amuleto que Lucio perdera durante a briga, colocou-o entre as cabelos do peito, quase em dma de uma das feridas. A que mais sangrava.

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o AUTOR E SUA OBRA

Em "Lucio FlIlVio, 0 passageiro da agonia" (1975), Jose Louzeiro dava intcio 40 ({romance-reportageln}J, recrian­do situar;i5es de impacto policial ou politico. Ele explica seu projeto: ({Canto autor) meu prop6sito era aplicar no texto literario tudo 0 que 0 jornaliSI1'lO me havia ensinado. Procura­va revalorizar a /abula{Jo, recorria it fOr/1ta si1nples de dizer. Estava farto de fivros escritos para intelectuais. Queria aeonz.· panhar a aventura hUlnana, seln que para isso tivesse de sentir-flze JZa ca112isa-de-fol~r;a das ,influe,zciasJ quer /osseln europeias ou aJ1zericanas)). Dent yo dessa linha, publicou {{In­Jdncia dos mortos" (1977, publicado pelo Circulo), "0 estra­"ho hllbito de viver" (1978, outra publicar;ao do Circulo), aEm carne viva)), u20.o axioma}), UM_20JJ (todos de 1980) e "Aracelli, meu amor" (1981). Este ultimo livro, baseado no estupro e no assassinato de uma garota de nove anosJ foi escrito em 1976 e permaneceu proibido pela censura durante cinco anos.

Filho de um pedreiro pobre, Jose de Jesus Louzeiro nasceu em Sao Luis do Maranhao a 19 de setembro de 1932. Quando estava no quarto ano pri1nario, Uln acidente inter­rOlnpeu seus estudos por dois anos) mas) em compensaqao) ligou-o para selnpre aos tipos 11'zais lnarginalizados da socie­dade. 0 acidente provocou Ulna ferida cronica eln seu ouvi­do, e os 7nedicos 0 desenganaram. j\1as U7nbelina, uma prostituta, inquilina de seus pais, sugeriu que 0 levassem a sua casa nU17za noite e17Z que ela ia estar cOIn uln 7nedico hOlneopata. Jose Louzeiro sarou e ficou eternamente grato as prostiiutas e seus alnantes.

Mais tarde, teria uma outra experiencia decisiva. Seu pai havia conseguido um emprego publico de mestre-de­obras, e Ul1za de suas junqoes era supervisionar 0 calqamento de ruas de Sao Luis, executado por presidillrios. Jose ia levar

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a almo,o do pai e, en quanta ele comia, /icava ouvindo as hist6rias dos crimes contadas pelos pr6prios auto res. Aos vinte e um anos, depois de uma passagem pelo diario "0 Im­parcial}), de Sao Luis, como reporter, mudou-se para 0 Rio de Janeiro. Conseguiu logo um emprego, mas, no fim do mes, verificou que nao havia salario. Sem dinheiro, sobre­viveu dormindo nos bancos de rodoviarias, de aeroportos, nos albergues, e chegou a pedir dinheiro na rua. Tudo isso a ligou ainda mais a realidade enfrentada pelos marginais.

Na Casa do Estudante do Brasil, onde dormia escondi­do, tornou-se amigo de um grupo de intelectuais. Com esses 11OVOS conhecimentos, conseguiu emprego e chegou, em 1958, a copidesque do "Correio da Manha". Nesse ana, publicou seu primeiro livro, "Depois da luta". Em 1965, iunto com outros iornalistas, editou "Assim marcha a familia", publi­cando materias censuradas e sendo obrigado a responder a inquerito policial-militar. "Lucio Flavia, a passageiro da agonia" e "Infiincia dos mortos" ("Pixote") foram adapta­dos para 0 cinema pelo diretor Hector Babenco. Alem de escrever as roteiros desses filmes, Jose Louzeiro foi rotei­rista de filmes como "Os am ores da pantera", "Jl.mor ban­dido" e (fO caSD ClaudiaN

Pro;etando suas experiencias no que escreve, Louzeiro declara: "Minhas razzes estao fincadas na miseria, sinonimo de violencia. De onde venho, nao se chega a superficie sem estar com a corpo repleto de feridas e, par isso mesmo, a intima lavado de magoas au ressentimentos. Meus persona­gens sao violentos, mas hd solidariedade entre eles". E acres­centa: cream meU5 personagens, de modo geral celerados, nao proponho a 'nova e ve'rdadeira face do sofrimento'; nada disso. Tento, humildemente, mostrar um novo lado da dar, da tragedia cotidiana de pessoas que se gastam na luta pela sobrevivencia, que sao pequenas em tudo, ate nos crimes e nos desmandos que praticam Jl

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