Lucio cardoso

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UNIESP FACULDADE DIADEMA LETRAS Disciplina: Literatura Brasileira Profª Elizabeth Franke LÚCIO CARDOSO CRÔNICA DA CASA ASSASSINADA Rosana Ferraza Pires dos Santos RA 0050040817 V sem Letras – matutino DIADEMA 2014

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Transcript of Lucio cardoso

UNIESP FACULDADE DIADEMA

LETRAS

Disciplina: Literatura BrasileiraProf Elizabeth Franke

LCIO CARDOSO

CRNICA DA CASA ASSASSINADA

Rosana Ferraza Pires dos Santos

RA 0050040817

V sem Letras matutino

DIADEMA

2014

Cardoso, Lucio (1912 - 1968)

BIOGRAFIA

Joaquim Lcio Cardoso Filho (Curvelo MG 1912 - Rio de Janeiro RJ 1968). Romancista, poeta, dramaturgo, tradutor e artista plstico. Aos 2 anos levado para Belo Horizonte e depois para o Rio de Janeiro, para onde se transfere definitivamente em 1929. Adolescente, escreve peas teatrais somente para os amigos. Um desses textos,O Reduto dos Deuses, elogiado pelo escritorAnbal Machado (1894 - 1964), que o incentiva a seguir a carreira literria. Publica em 1934 seu primeiro romance,Maleita, sobre a fundao de uma cidade no interior de Minas Gerais; e, em 1935, lanaSalgueiro, sobre a vida nos morros cariocas. Mas somente comA Luz no Subsolo, de 1936, que encontra seu caminho, uma fico introspectiva. Em 1939 faz sua nica incurso pela literatura infantil,Histrias da Lagoa Grande, e dois anos depois publicaPoesias, compilao de trabalhos escritos na dcada anterior. Nos anos 1940 trabalha incessantemente, escreve peas de teatro, faz tradues e colabora com crnicas policiais nos jornais. Interessado em cinema, inicia em 1949 as filmagens do longa-metragemA Mulher de Longe, inacabado, e em 1961 escreve o roteiro de Porto das Caixas, de Paulo Csar Saraceni (1933). No ano seguinte, sofre um derrame cerebral, que paralisa o lado direito de seu corpo, passa ento a dedicar-se pintura. Expe seus trabalhos em So Paulo, Rio e Belo Horizonte.* * * * *Joaquim Lcio Cardoso Filho nasceu em Curvelo, Minas Gerais, a 14 de agosto de 1912 e faleceu em 28 de setembro de 1968, na Clnica Doutor Eiras, Rio de Janeiro, vtima de derrame cerebral. Era filho de Joaquim Lcio Cardoso e de Maria Venceslina Cardoso. Em 1913, transferiu-se com a famlia para Belo Horizonte, onde passou sua primeira infncia e fez os estudos elementares no Grupo Escolar Baro do Rio Branco. Em maro de 1923, a famlia muda-se para o Rio de Janeiro, e Lcio foi matriculado no Instituto Lafayette. No ano seguinte retorna capital mineira, a fim de complementar estudos no Colgio Arnaldo. Em 1929, retorna ao Rio de Janeiro. Apesar de ser considerado um pssimo aluno, lia tudo que lhe caa s mos: a obra de Ea de Queirs, os romances de Conan Doyle, os contos de Hoffmann. Desta poca data a sua primeira experincia de dramaturgo, a pea Reduto dos Deuses, que mereceu elogios de Anbal Machado, e, segundo o prprio autor, era "pretensiosa e anarquista". Alm dos romancistas russos, comeou a ler Oscar Wilde entre outros.

Inicia ento suas experincias como romancista e faz publicaes em jornais. Conhece Augusto Frederico Schmidt, que possua uma editora instalada no mesmo prdio em que Lcio trabalhava.

Em 1934, editou Maleita, muito bem recebido pela crtica, em especial a do temido Agripino Grieco .Por causa do assunto de seu primeiro romance foi agrupado entre os regionalistas; entretanto, sua produo tem muito mais afinidade com o grupo "espiritualista" de Cornlio Pena, Schmidt, Otvio de Faria, Vinicius de Morais.

Em 1935, publicou Salgueiro, romance de cunho social bem ao gosto da poca e, no ano seguinte, A Luz no Subsolo, que mereceu elogiosa carta de Mrio de Andrade. A este se seguiram diversos volumes de novelas e poesias, alm de romances, atingindo sua obra o clmax com Crnica da Casa Assassinada (1959).

Em 1961, publica Dirio I (1949 a 1951), ao qual iriam seguir-se os volumes II a V, que ficaram na inteno, pois em 1962 sofreu um derrame cerebral, o primeiro, que o incapacitou de escrever. Otvio de Faria organizou para a Jos Olympio o Dirio II (1952 a 1962) que juntamente com o I, foi publicado postumamente (1970) sob o ttulo Dirio Completo.

Lcio Cardoso costumava dedicar-se pintura e ao desenho como elemento subsidirio funo literria. Concebia plasticamente os cenrios de suas peas, a feio de suas personagens e os locais em que se desenrolava a ao dos romances. Depois que foi atingido pelo derrame, encontrou na pintura outro meio de expresso.

Lcio Cardoso realizou quatro exposies individuais em galerias de arte do Rio de Janeiro - Goeldi (1965) e Dcor (1968) -, e de So Paulo - Atrium (1965). Em Belo Horizonte, no Automvel Club de Minas Gerais (1966).

Em 1966 recebeu o prmio Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras, por conjunto de obra. Dedicou-se com empenho s artes cnicas, como autor, roteirista e produtor. Fundou um teatro de cmara, sediado na Tijuca, onde lanava suas peas com o auxlio de grandes nomes como, entre outros, os de Henriette Morineau, Srgio Brito, talo Rossi. Estendeu concomitantemente esta atividade televiso e ao cinema, tendo sido importante sua contribuio para o Cinema Novo.

Obras publicadas - primeiras ediesRomanceMaleita - 1934Salgueiro 1935A Luz no Subsolo 1936Mos Vazias 1938A Desconhecida 1940Dias Perdidos 1943Incio 1944A Professora Hilda 1946O Anfiteatro 1946O Enfeitiado 1954Crnica da Casa Assassinada 1959O Viajante - 1970*

PoesiaPoesias 1941Novas Poesias 1944Poemas Inditos - 1982*

MemriaDirios 1961Dirio Completo - 1970*

InfantilHistrias da Lagoa Grande - 1939

TeatroO Reduto dos Deuses 1929O Escravo 1945O Filho Prdigo - s.d.O Corao Delator - s.d.Anglica - s.d.

CinemaCom os Olhos no Cho 1959Porto das Caixas - 1959

* publicao pstuma

ESTILO

A cultura solar do Brasil, cheia de festas, alegria, otimismo, risos e fantasias tambm abriga uma vertente sombria, sinistra. neste espao que se encontra a literatura do mineiro Lcio Cardoso (1913-1968). Seu universo atormentado , em sua essncia, de desespero e solido.

Este mineiro, que viveu no Rio de Janeiro a maior parte de sua vida e que tambm foi pintor, quando um derrame o afastou da escrita, pode ser definido tambm como um gtico brasileiro. Num rpido olhar, isto poderia parecer um contra-senso, mas numa observao minuciosa no . Lcio buscava as sombras, tinha referncias muito prximas daquele estilo clebre e provou que, em pleno Brasil, era possvel encontrar uma legtima obra gtica adaptada e misturada ao nosso caldeiro cultural. O sol e a luz eram inimigos que levavam seus protagonistas a usar a sombra e as trevas como referncia e salvao.

Lcio Cardoso um caso raro em nossa literatura. Homossexual em conflito, pintor em gnese, escritor de fato, lutador agoniado, ele descobriu uma passagem secreta em nossa forma de ver o mundo, em nossa alma brasileira, muitas vezes inconformada e deslocada. Descobriu que existe, sim, um lado de trevas em todas as nossas luzes. E que mais comum do que se imagina.

OBRAS

MaleitaUma das principais, e talvez a mais equivocada ideia sobre uma suposta existncia de um goticismo no Brasil se d justamente pelo fator de importao de conceitos, uma drenagem de criatividade que no se resolve no processo da criao final, ou melhor, no resultado obtido e exposto. Tanto pior. O juzo de que em um pas tropical, abenoado por Deus, seria impossvel, seno ridculo, investir numa esttica de sombras, numa cultura melanclica, num desejo obscuro.

As premissas acima so vlidas, se aplicadas a ferro e fogo, ou alm, se atestadas na forma de utilizao bsica deste goticismo. Porm, paradoxalmente, as duas posies so fraqussimas se analisadas em seus prprios dogmas. A primeira coisa a se contextualizar so as posies que permitem um resultado positivo das ideias contrrias ao goticismo.

Num rpido mapeamento de qualquer tipo de produo artstica articulada dentro de uma proposta gtica, a impresso sobressalente resulta na absoluta concluso de prottipos e arqutipos prontos para o uso em consumo.

Apesar de uma enorme gama de crticos literrios do pas esquecer completamente da existncia deste estilo no Brasil e de tambm no classificarem nenhum autor como parte integrante dela, basta um rpido vasculhar em certas obras para descobrir que sim, existe algo que pode ser denominadoliteratura gtica brasileira.

Um dos casos mais representativos justamente Lcio Cardoso. Todo o conjunto de sua obra um resplandecer deste sombreamento da literatura brasileira. No seria demasiado apont-lo como o maior representante deste gtico nacional.Teoria das sombrasEm certo sentido, seria um contra-senso existir em um pas cheio de sol algo voltado para as sombras. Reside a o grande retrato incoerente. Em nossa literatura regional muito comum encontrar personagens que tenham um cunho enfeitiado pelas sombras, pela contra-luz, pela vida em constante fuga da luz solar, que aquece e acaba por drenar as foras. Por isso, em muitas situaes, encontramos uma centena de pessoas nascidas e criadas efetivamente direcionadas em busca desta sombra. Assim Maleita(uma outra forma de denominar a malria), publicado originalmente em 1934.

Um homem mandado a Pirapora (MG) para organizar a cidade, transform-la em um plo de desenvolvimento. Mas o que encontra, como em um bom romance gtico, um fantasma a atorment-lo. Um fantasma no no sentido literal, mas como representao da prpria cidade.

Algumas explicaes de cunho histrico se fazem necessrias: de uma maneira, os descendentes dos portugueses seriam eternamente estigmatizados com a ideia de um paraso.Este o personagem principal de Lcio Cardoso. Em busca de seu paraso, encontra a malemolncia dos moradores da cidade, a rude introduo dos imigrantes do norte, transformando o local em um verdadeiro caldo assustador, uma cidade que o persegue a cada passo, a cada momento. No toa, os festejos realizados nas cidades parecem rituais demonacos.

Promscua, a cidade vai acabando com seu suposto desbravador. Vem a maleita. Vem tambm a varola. A inimizade corre nas veias de todos. Naquele ambiente soberbo, s margens do rio So Francisco, a histria de horror ganha cada vez mais fora, destruindo, dizimando a vontade do homem, como num bom romance gtico, melanclico e aniquilador.

Maleita uma obra impressionante, ainda mais quando se leva em considerao que o primeiro trabalho de Lcio Cardoso. uma amostra prtica que este estilo existe na literatura brasileira.

Salgueiro

Salgueiro um romance denso e complexo, em que o Morro ganha contornos de protagonista. Neste segundo romance de Lcio Cardoso, publicado em 1935, o ento jovem escritor j revela um enorme talento na construo psicolgica dos personagens. Estes so movidos por uma fora selvagem que os conduzem a um destino atormentado, para usar as palavras do autor.

Dividido em trs partes O Av, O Pai e O Filho , o morro do Salgueiro, no Rio de Janeiro, construdo como um lugar parte, um problema incrustado na cidade.

A narrao em terceira pessoa d a impresso de um narrador quase ausente, como se a ao se desenrolasse sozinha. Mas, aos poucos, o narrador participa de um modo mais ativo, principalmente quando explora o modo de ser dos personagens. O recurso, usado com habilidade, deixa antever a preciso tcnica de Lcio Cardoso.

As trs partes do romance expem a histria de trs geraes de homens sem perspectivas. Ao longo da narrativa, o leitor percebe que o morro adquire vida prpria, enquanto os personagens vo se descaracterizando, transformando-se em coisas. A fome e o desemprego geram uma populao de miserveis, e aqui a misria narrada sem meias palavras. Em certos momentos, difcil perceber a diferena entre os trapos, a sujeira, a lama, os cachorros e as pessoas. Tudo e todos so nivelados pela misria.

significativo como o morro revela aspectos contraditrios: no so as personagens que delineiam o espao, ou atuam sobre ele. A impresso que o morro configura os personagens. Trata-se de um mundo parte, um lugar de exilados. Ou exilados de uma vida digna.

O romance marca uma diferena bem definida entre o morro, o alto, e os domnios da cidade. O trecho em que dois personagens vo para um hospital notvel: o branco das paredes, dos lenis e dos mveis faz as mulheres pensar que seria impossvel morrer num lugar to limpo e imaculado.

Entre os personagens h uma espcie de dio generalizado ou uma dificuldade para expressar outro sentimento que no seja o dio. Mas que outro sentimento possvel esperar de pessoas que vivem margem da sociedade?

Este romance precocemente maduro tenta responder a essa pergunta. Da a surpreendente atualidade da arte narrativa de Lcio Cardoso, que em sua obra soube explorar como poucos a loucura e o martrio de seres cindidos e atormentados. A luz no subsolo

"Nem sei bem. Tenho medo de mim e tenho medo dos outros. No sei como encarar os homens. s vezes penso que tenho direito a tudo, que sou o mais forte. Mas - compreende voc? - essa liberdade demasiado para mim. No sei o que fazer da minha solido"

Dividido em quatro partes, "A luz no subsolo" comea com um prlogo anunciando o abandono de Maria, uma empregada do casal Madalena e Pedro que resolve ir embora, aparentemente sem motivo. Ela alega que est indo embora por causa "dele", porque no aguenta mais a sombra dele pairando sobre a casa, isso a est angustiando demais. No demora muito para entendermos que "ele" Pedro. E Madalena no tenta fazer nada para impedir a sua ida, pelo contrrio, ela entende bem esse sentimento. Vai at a casa de sua me para tentar arrumar uma soluo, porque Madalena tambm no pode ficar sozinha na casa com ele.

No encontro com essa me alcolatra e com uma irm covarde, que tinha desejos de abandonar tudo e conhecer o mundo, mas sucumbiu a ficar encarcerada naquele interior, Madalena comea a rememorar o dia em que conheceu Pedro e como sua vida se transformou a partir de ento. Tudo foi miservel e solitrio desde o princpio, um amor cheio de culpa e misria, que ao invs de trazer alento, traz angstia e medo. Pedro professor e aos poucos fica claro o dio que Madalena sente por ele gostar mais dos livros do que dela, sempre envolvido em um e outro, e nunca conversando com ela. O prlogo tem fim com o abandono definitivo da casa por Maria, como algum que conseguiu se livrar das garras do mal rondante.

A presena da religiosidade algo marcante nos livros de Lcio, mas nesse ela se sobressai logo na nomeao dos personagens: Maria, Pedro e Madalena. A primeira, a nica que poderia ser uma espcie de salvao (a me do salvador) abandona o barco logo no comeo, deixando os pecadores sozinhos, espera de algum que os resgate. A atmosfera angustiante que ressalta a relao de dio que o escritor tinha com sua terra natal fica clara logo no princpio. Parece que estamos mergulhados em uma noite constante, no h sol pra os habitantes daquela cidadezinha no interior de Minas Gerais.

Depois do prlogo h a primeira parte intitulada "Os laos invisveis", que trata da chegada de Emanuela (em hebraico Emanuel significa "Deus mais perto de ns"), uma menina inocente e bonita, que acabou de sair de uma infncia feliz de brincadeiras com os seus irmos. A presena da inocncia de Emanuela, ao invs de dar leveza ao ambiente, torna-o ainda mais escuro e opressor, como aquela luz que nos cega quando jogada diretamente nos olhos. Pedro atrado para essa luz, mas com o intuito de apag-la e no de se deixar levar por ela. Madalena, por sua vez, fica mais atormentada com o cime e a falta de amor, algo que escancarado pela presena da menina. Tambm ela percebe que no consegue amar sem medo, culpa e julgamento. Nessa parte do livro tambm apresentado o personagem Bernardo, marido de Cira, a irm de Madalena, e que nutre uma paixo tambm doentia pela cunhada. Sim, nos livros de Lcio Cardoso todos os amores so patolgicos, no h nada bonito e com vida.

O livro segue com mais duas partes chamadas "Noturno" e "Os evadidos" que falam principalmente sobre a chegada da me de Pedro, Adlia e os desdobramentos que a presena de Emanuela vai ter sobre os habitantes da casa. Tambm essa relao entre me e filho adoecida, assim como a de Madalena com a sua me alcolatra. Existe tambm um elo de ligao entre Madalena e Pedro na infncia que mostra um pouco porque eles so assim, algo aconteceu de muito grave que os fizeram mergulhar nesse poo sem luz. E tudo isso brilhantemente explorado por Lcio em um momento onde a loucura se apossa totalmente dos personagens. Parece que existem dois caminhos para a salvao: fugir e abandonar tudo ou morrer. Mas como fugir sem levar consigo a podrido do que viveram por tanto tempo. possvel?

"Madalena percebia que nesses instantes penetrava novamente no paraso perdido da sua infncia. Sorria: com a vida que ns adquirimos a impureza. E curvando-se sobre as flores rasteiras, onde os insetos passeavam, conclua: fora procurar o antigo bero para nos sentirmos limpos do lodo que a vida acumula em nossos ombros..." (pg. 262)Dirios

Catlicoconfesso, deixou em seuDirio(1961), escrito entre os anos de 1949 a 1962, um relato bastante contundente sobre sua homossexualidade, e as dvidas e culpas geradas pela sua orientao sexual. Lcio Cardoso integrava numa vertente mais geral da literatura brasileira, caracterizada pelo subjetivismo, que daria a literatura de, entre outros,Clarice Lispector a qual manteria uma ligao amorosa platnicacom Lcio Cardoso nosanos 60. Trechos No sei se h em mim um vcio central da natureza, sei apenas que nela, nessa paixo voraz e sem remdio, que encontro afinidade para as minhas cordas mais ntimas.

No perder que me aflige porque perdemos tudo, e seria intil lutar. perder dessa maneira, sem uma palavra, como uma flor viva que atirssemos ao fundo de uma sepultura. Ai, como eu me enganava, como eu me engano a meu prprio respeito! Julgo-me muito mais frio do que sou, e na verdade a ausncia das pessoas me causa uma profunda perturbao. (Sei que despisto, que no me refiro exatamente ao que devo porque ao certo, era de X, era da sua ausncia que devia falar)

O demnio pequeno, magro e fala quase sem cansar. Est, como eu, estirado nu numa das tbuas da prateleira da sauna, e no parece estonteado com os vapores, tal como me acontece. De vez em quando comunica-me que o meu banho est errado e que no sigo exatamente as regras finlandesas: tenho de descer do canto sufocante onde me abrigo e deixar-me vergastar furiosamente com um chicote de folhas de eucaliptos. Em seguida sentar-me numa tina cheia dgua fria e logo aps subir de novo para a minha prateleira, onde quase sufoco, mal divisando o meu interlocutor atravs de espessas ondas de vapor. No h dvida de que era precisamente aqui que eu devia encontr-lo. Revela-se logo um velho amigo da minha famlia, enquanto eu tremo interiormente, pensando em tudo o que poder suceder. Possui um stio no sei onde, uma mquina fotogrfica com que apanhar instantneos nossos, mil e uma pequenas utilidades. Recuso-me ao ridculo de sair da sauna correndo nu para me atirar ao rio; prefiro vestir-me calmamente, e s assim consigo livrar-me do importuno mestre de banhos a vapor.

Um problema existe, sim, e grave, mas h vinte anos que eu me debato dentro dele, e possvel que, ultrapassando-o, nada mais me afaste desses sacramentos que so a base de toda a vida eterna.

Ontem, num bar com Vito Pentagna, conversamos longamente sobre X. talvez eu tenha exagerado os meus sentimentos, mas hoje, procurando examinar com ateno o que se passa comigo, sinto que no tenho muito o que discordar do que disse: mais ou menos os meus sentimentos permanecem os mesmos. No sei o que mais lamentar mas nesta fidelidade, apesar de tudo, encontro uma garantia contra as minhas tendncias desordem e disperso. pelo menos o que recolho de melhor nesta pesada prova que j tem a durao de dois anos.

Rompendo ontem com X, atingi o final de um movimento que vem caminhando h muito tempo. Pensando hoje nos detalhes, imagino que talvez tenha sido injusto mas, ainda assim, no mais tempo para recuar, j que no futuro a nica coisa que me espera o longo trabalho que tenho a fazer. Pensando em certos detalhes da vida de X, sua pobreza, suas dificuldades, o escuro poro em que mora, sua timidez feita de orgulho e em geral suas dificuldades na vida prtica, sinto uma enorme pena. uma coisa triste no poder auxiliar as pessoas como seria necessrio; mas tambm no posso me sacrificar mais e, tudo o que foi vivido, vai para este poo fundo onde guardamos as lembranas, algumas delas, como esta, das melhores de nossa vida.

Num carro, a caminho do Alto da Boa Vista, sigo com alguns jovens alguns extremamente jovens que se embriagam e rompem ampolas de Kelene, em cujo rtulo leio anestesiante. Sim, frtil em recursos essa mocidade, mas do que precisamente procura ela se anestesiar? Nenhum deles sofre de algum mal profundo e no entanto, esse mal pior de no sofrer de mal nenhum e so hbeis e versados nessas coisas de ter e entorpecentes, pronunciando esse nome Kelene com familiaridade, nome sem dvida mais que usual nos hospitais, mas que ouo pela primeira vez e onde julgo distinguir inquietas ressonncias, sombrias previses e no sei que tom amputado e doloroso, que reflete salas de hospitais, asilos de alienados e antros escuros de vcios todos os lugares enfim onde a alma impaciente pode passear sem arroubos finais seus gritos destruidores. Kelene, mesmo inocente, tem no frio do seu jato efmero e cristalino, toda uma melodia secreta de delrios fnebres, alvorecer em xtase e desabrochamento de deliquescncias reprimidas. E o que me espanta que esses jovens moderados, de atitudes e costumes mais que burgueses, a isto se atirem com gritos de prazer e estremecimentos animais: como que da sombra alguma coisa mais primitiva e mais antiga do que o prprio homem, acorda em suas faces necrosadas o gosto do imundo.

que o prazer no me interessa. Sempre o que me interessou foi o amor, e agora que vejo perder-se a possibilidade dele (ai de mim) sinto que no me interesso por outra coisa, e que o prazer sozinho no vale nada e no tem atrativos para mim.

Aproveito todas as aquisies da idade: afasto-me da carne pura e simples, sentindo que nela no h prazer e nem enriquecimento, mas somente melancolia e pobreza. Ah, existe um momento em que ser casto no difcil e a ele eu me atiro com todas as foras do ser. No, no se pode imaginar a necessidade que eu tenho de pureza e de tranquilidade minha impresso a de que recomeo a viver.

Montherlant diz e no pode haver testemunho mais insuspeito que o homossexualismo a prpria natureza. No que tem razo, pois no ato de duas pessoas do mesmo sexo se unirem, h um esforo da natureza para se realizar at mesmo sem os meios adequados.

No, a carne no importante pelo menos no o seno em determinada idade. Eu me pergunto se tantas pessoas que eu vejo, exclusivamente dominadas pela carne, pela nsia do prazer, se no sero assim. exclusivamente por uma questo de vcio, de hbito, de covardia ante a necessidade de mudar a forma de vida, de procurar o divertimento em formas mais elevadas e menos deprimentes.

Estranho dom: Deus deu-me todos os sexos.

Aqui est algum que eu conheo e cujo retrato encontro estampado em todos os jornais. T. possui dezoito anos, tez plida, cabelos muito pretos e olhos intensamente azuis. Olhos que vivem nesta face com a melodia agreste dos felinos. Quando o conheci, surpreendeu-me a fora que manifestava, calada e secreta. Fugiu de casa, agrediu algumas pessoas, roubou perto de trezentos mil cruzeiros, foi condenado e eu o revi, mais tarde, na penitenciria, numa visita que fiz quela casa. No trocamos palavra, ele trabalhava na seo de consertos de rdio e eu o reconheci imediatamente, pela extraordinria particularidade de seus olhos agudos, vigilantes, se bem que tivesse crescido muito e guardasse em todos os gestos um jeito novo de defesa. (Lembrei-me particularmente de um dia de carnaval, quando me levou casa onde ento morava um srdido barraco, em companhia de um preto que ele espancava continuamente. Embriagou-se nesta noite e quebrou todos os mveis que existiam l dentro. Eu o contemplava, cheio de admirao.) Agora acaba de fugir pelos esgotos da priso, onde esteve durante dezoito horas, emergindo rasgado, mordido pelos insetos e coberto de lama, num dos bueiros da cidade. Preso de novo, declarou aos jornais que no suporta a monotonia da vida. E eu me lembro mais uma vez daqueles olhos sem repouso, autoritrios, capazes de todos os extremos, que tentei evocar numa pea que nunca saiu da gaveta, intituladaOlhos de Gato.O que ousei pensar, decerto fica muito aqum da realidade. grande Deus, equvoco da paixo e do crime!

Clarice Lispector e o amor por Lcio Cardoso

Quando se conheceram, em 1940, Clarice tinha 20 anos, e Lcio - brilhante e sedutor -, 28. Mas era um amor impossvel: Lcio era um homossexual assumido. Havia, porm, um segundo impedimento: os dois eram "parecidos demais". Mesmo assim, foi esse amor no correspondido que levou Clarice a cultivar a solido - condio essencial para a escrita. Mais que isso: foi o fracasso no amor que a empurrou para a literatura. Por meio de Lcio, ela passou a frequentar as rodas literrias do "grupo introspectivo", que se reunia no Bar Recreio, no Rio de Janeiro. Chegou, assim, poesia metafsica de Augusto Frederico Schmidt e encontrou sua ascendncia "mstica" em Cornlio Penna e Octavio de Faria, essenciais para a sua obra. Foi Lcio Cardoso quem sugeriu o ttulo de seu primeiro romance, Perto do Corao Selvagem (1943). Foi ele, ainda, quem lhe mostrou que as anotaes dispersas, que ela tomava s tontas e pareciam incoerentes, eram, na verdade, o seu mtodo.O Corao Selvagem de Lcio Cardoso

"O mal, para mim, no foi uma entidade literria, ou uma sombra apenas entrevista no horizonte humano. Soube com pungente intensidade o que ele significa em nossas vidas, e muitas vezes toquei seu corpo com meus dedos queimados... j que a dura contingncia humana me fez to propcio ao seu fascnio"

[Lcio Cardoso, Dirio Completo]

(...) estou procurando, estou procurando. Estou tentando entender.[Clarice, A Paixo Segundo G. H.]

Escreve-se uma carta no pelo prazer do grande texto, mas para mobilizar algum. Essa mobilizao do outro bem que Clarice Lispector tentou nas cartas enviadas a Lcio Cardoso ela que quando escrevia carta utilizava, graas a seu olhar multiplicador de imagens, um anzol compridssimo, cuja isca bate no Rio de Janeiro para pescar resposta. Resposta sempre avara. Lcio assumira uma legenda de mistrios e incgnitas para manter-se distante ou talvez perto, muito perto com seu corao selvagem. Uma estranha proximidade contra a qual Clarice frequentemente protestava: Lcio, como vai voc? Responda....

So vinte as cartas conhecidas de Clarice endereadas a Lcio, num perodo que vai de 1941 a 1947, de diferentes cidades: Belo Horizonte, Belm, Npoles, Rio de Janeiro. Quase todas cartas de amor, de um amor que ficou suspenso, mudo, em face s intermitentes palavras de Clarice, desafiadoras, latentes ou, efeito contrrio, a bloquear qualquer possibilidade de relacionamento amoroso, quando todas as tentativas resultaram vs.

Clarice e Lcio se conheceram em 1940, no Rio de Janeiro, na sede da Agncia Nacional, onde ela trabalhava como redatora. Tinha 20 anos, ele 28. E esse no um fato externo que importa apenas biografia e lenda dos dois escritores. Para eles o tempo comea a contar-se por esse encontro. Por vezes a realidade dissolve-se em ambiguidades, ironias, nuanas devastadoras, de tal forma que a histria pessoal passa a importar pelos oblquos e indiretos jogos de motivaes, ainda que incompletos, como marca do estilo e da vida do artista. Uma vida no relatvel e no vivvel, diria Clarice.

A primeira carta, datada de Belo Horizonte, junho de 1941, narra uma paixo de perder-se e tambm de perder, retiradas as possibilidades de se afirmar a presena do outro: quanto ao teu fantasma, procuro-o intimamente pela cidade. O pulso do amor batia forte, mas Lcio insistia em no peg-lo na travessia grande dissipador. Para ele, nada mais srdido do que a proximidade. E o silncio, a imediata recusa.

Em 1943, Clarice casa-se com Maury Gurgel Valente, diplomata, que no havia entrado na histria, nem nas cartas de Clarice que, endereadas a Lcio, ainda assim se avolumavam. O interesse afetivo e intelectual pelo amigo no se desfez, surpreendentemente se manteve intenso. Ela ento lhe mostra um manuscrito que considerava um esboo despretensioso; ele o l e percebe um romance pronto; escolhem juntos o ttulo Perto do Corao Selvagem.

O livro seria publicado no incio de 1944, dez dias depois, Clarice se transfere com o marido para Belm, onde residira por seis meses. O mundo imerso na irrealidade e no desnorteamento de uma guerra imprevisvel, enquanto os combates pessoais prosseguem. A necessria deriva. Belm, 6 de fevereiro de 1944. Estou aqui meio perdida. Fao quase nada. Comecei procurar trabalhar e comeo de novo a me torturar, at que resolvo a no fazer programas; ento a liberdade resulta em nada e eu fao de novo programas, e me volto tambm contra eles. Tenho lido o que me cai nas mos. Caiu-me plenamente nas mos Madame Bovary, que reli. Aproveitei a cena da morte para chorar todas as dores que tive e as que no tive. Eu nunca tive propriamente o que se chama ambiente, mas sempre tive alguns amigos. Aqui s tem mutuca, (isso besouro, mas por que no chamar tudo mutuca logo de uma vez?).

A presena de Clarice em Belm mais do que uma vaga referncia emocional. Foi aqui que toda a repercusso de sua estreia revolucionria veio encontr-la, entre as paredes de um quarto no Hotel Central, na Presidente Vargas. o caso do artigo de Lcio, no Dirio Carioca: Poucas vezes temos visto um to exacerbado individualismo, uma to lenta e obstinada sondagem do seu prprio eu, como faz a autora de Perto do Corao Selvagem. Deste mundo essencialmente feminino, cheio de imagens, de sons, de claridades azuis, brancas e esverdeadas, de folhas novas e manh ainda cheirando a mato, Clarice Lispector consegue nos transmitir uma imagem poderosa e viva: no h dvida de que estamos diante de uma singular personalidade, que sabe captar do mundo exterior e interior, e muitas vezes da sua fuso, uma vida perfeita. Nesta estranha narrativa, onde o romance se esfuma para converter muitas vezes numa rica cavalgada de sensaes, a poesia brota como uma fonte nova e pura.

O artigo valeu como se Lcio tivesse respondido a sua primeira carta, mas ela sabia no se tratar de uma resposta, e sim da voz selvagem de demnios, entre exlios e expulses, silenciando o corao de Lcio. Imagine que eu estava junto mesa, pronta para escrever para voc e contar coisas, quando bateram porta e trouxeram-me, vindo do Rio, o que voc publicou no Dirio Carioca... Fiquei assustada com o que voc diz que possvel que o meu livro seja o mais importante. Tenho vontade de rasg-lo e ficar livre de novo ( horrvel a gente estar completa). Sei que no isso que voc quis dizer. Quanto ao meu meio sucesso me perturbar, s vezes, ele me deixa saciada e cansada. s vezes, embora possa parecer falso, me desanima, no sei porqu. Parece que eu esperava um comeo mais duro e, tenho a impresso, seria mais puro. Enfim, tudo isso tolice minha.

Mestre de bruxarias incrustadas na carne e no verbo, Lcio lhe faria amar qualquer coisa viva, talvez mesmo uma barata, desde que em silncio. O inexprimvel nada a oscilar: Al Lcio, isto apenas para perguntar como voc vai. O qu? Ah, estou bem, obrigada. O qu? Ah, sim, voc talvez tenha razo. Que voc tem me escrito muito? Sim, recebo sempre suas cartas; at ia lhe dizer que no me escrevesse tanto porque voc pode se cansar. O qu? Que voc faz isso por amizade? claro, pois foi o que pensei. Que voc me mandou seus livros? realmente, todos os dias recebo um. Se eu li seu poema Miradouro? sim, li e gostei tanto, tanto. O qu? desculpe, no estou mais ouvindo, a distncia grande, minha aura est acabando e o esforo desta comunicao to sobrehumano que mal tenho fora de assinar.

Lcio fazia um mnimo de gestos, reduzia tudo a quase nada, no fossem as palavras de Clarice a narrar uma paixo em que o caso amoroso no era do outro mais o outro, mas do outro menos o outro. A prpria reverso das iniciais do nome de Clarice Lispector (CL) e de Lcio Cardoso (LC) talvez insinuasse a impossibilidade de se tocar sequer as extremidades queimadas dos dedos, numa despedida; no realizada na pessoa amada a alquimia nica e vibrante que o tempo ousa ser. Contudo, de um jeito ou de outro, nem a beleza, nem o amor escapam a ele. Paixo de perder e no de exceder. Excesso tambm vazio, sabeis.

Clarice seguiu acompanhando o marido por diversos postos diplomticos. De Npoles, a 26 de maro de 1945, estica ou condensa outra carta/isca: Lcio, me escreva e conte coisas. Ou ento no escreva, que posso eu fazer? Um dia desses fui ver a lava do Vesvio. Tenho um pedao feio de lava para voc. Depois de um ano ainda estava quente; uma extenso enorme, negra, de vinte a trinta metros de altura; a gente anda sobre casas, igrejas, farmcias soterradas. A erupo foi em maro de 1944 e quando chove sai fumaa ainda.

Mesmo sem querer avessa que era a dar pistas sobre seu texto , Clarice faz aqui, com sutileza mpar, uma das mais belas descries de sua obra. Passados quase 30 anos de sua morte, ocorrida a 9 de dezembro de 1977, essa escritura permanece quente e uma extenso enorme de um territrio engendrado por ausncias e vazios, que no se captura, quando muito se rivaliza pelos subterrneos inventivos da palavra, atravessados por poucos: um Lcio Cardoso, Guimares Rosa, Osman Lins. Quem mais? Tanto que, nas tardes de chuvas intensas como as que caem sobre Belm, sai fumaa ainda de suas palavras.

Crnica de Clarice para Lcio CardosoLcio, estou com saudade de voc, corcel de fogo que voc era, sem limite para o seu galope.Saudade eu tenho sempre. Mas, saudade tristssima, duas vezes.A primeira quando voc repentinamente adoeceu, em plena vida, voc que era vida. No morreu da doena. Continuou vivendo, porm era homem que no escrevia mais, ele que at ento escrevera por uma compulso eterna gloriosa. E depois da doena, no falava mais, ele que j me dissera das coisas mais inspiradas que ouvidos humanos poderiam ouvir. E ficara com o lado direito todo paralisado. Mais tarde usou a mo esquerda para pintar: o poder criativo nele no cessara.Mudo ou grunhindo, s os olhos se estrelavam, eles que sempre haviam faiscado de um brilho intenso, fascinante e um pouco diablico.De sua doena restaria tambm o sorriso: esse homem que sorria para aquilo que o matava. Foi homem de se arriscar e de pagar o alto preo do jogo. Passou a transportar para as telas, com a mo esquerda (que, no entanto, era incapaz de escrever, s de pintar) transparncia e luzes e levezas que antes ele no parecia ter conhecido e ter sido iluminado por elas: tenho um quadro, de antes da doena, que quase totalmente negro.A luz lhe viera depois das trevas da doena.A segunda saudade j foi perto do fim.Algumas pessoas amigas dele estavam na ante-sala de seu quarto no hospital e a maioria no se sentiu com fora de sofrer ainda mais ao v-lo imvel, em estado de coma.Entrei no quarto e vi o Cristo morto. Seu rosto estava esverdeado como um personagem de El Greco. Havia a Beleza em seus traos.Antes, mudo, ele pelo menos me ouvia. E agora no ouviria nem que eu gritasse que ele fora a pessoa mais importante da minha vida durante a minha adolescncia. Naquela poca ele me ensinava como se conhecem as pessoas atrs das mscaras, ensinava o melhor modo de olhar a lua. Foi Lcio que me transformou em mineira: ganhei diploma e conheo os maneirismos que amo nos mineiros.No fui ao velrio, nem ao enterro, nem missa porque havia dentro de mim silncio demais. Naqueles dias eu estava s, no podia ver gente: eu vira a morte.Estou me lembrando de coisas. Misturo tudo. Ora ouo ele me garantir que eu no tivesse medo do futuro porque eu era um ser com a chama da vida. Ora vejo-nos alegres na rua comendo pipocas. Ora vejo-o encontrando-se comigo na ABBR, onde eu recuperava os movimentos de minha mo queimada e onde Lcio, Pedro e Mriam Bloch chamavam-no vida. Na ABBR camos um nos braos do outro.Lcio e eu sempre nos admitimos: ele com sua vida misteriosa e secreta, eu com o que ele chamava de vida apaixonante. Em tantas coisas ramos to fantsticos que, se no houvesse a impossibilidade, quem sabe teramos nos casado.Helena Cardoso, voc que uma escritora fina e que sabe pegar numa asa de borboleta sem quebr-la, voc que irm de Lcio para todo o sempre, por que no escreve um livro sobre Lcio? Voc contaria de seus anseios e alegrias, de suas angstias profundas, de sua luta com Deus, de suas fugas para o humano, para os caminhos do Bem e do Mal. Voc, Helena, sofreu com Lcio e por isso mesmo mais o amou.Enquanto escrevo levanto de vez em quando os olhos e contemplo a caixinha de msica antiga que Lcio me deu de presente: tocava como em cravo a Pour lise. Tanto ouvi que a mola partiu. A caixinha de msica est muda? No. Assim como Lcio no est morto dentro de mim.

POESIAS

POEMAQuando na escurido o teu riso retinia,

eu chamava baixinho: Egito ...

E ela desnudava a espdua onde estava gravada

como marca de fogo, a rosa do amor.

Egito! O ar palpitava como se um pssaro voasse

e eu fechava os olhos - to grande era a paixo que me queimava.

s vezes, quando a noite nos envolvia na sua nsia mortal,

sentia o seu corao bater - e dizia comigo que ela era humana

e sua alma estava aprisionada minha.

Mas ns ainda jazamos por trs das grandes muralhas.

As flores faziam-na fremir como dedos vorazes,

as cantigas dos rios deixavam-na febril,

o grito dos chacais causava-lhe desmaios.

Egito!Egito, por que me abandonaste,

por que envenenaste o ar que eu respirava?

Junto de ti as violetas fenecem, o mel se torna cido,

junto de ti o meu amor no seno castigo e tormento.

Ah, de que terrvel noite nasceste, desejo,

de que fonte de amargura, luz crepuscular!

Egito! Mistrio do cu infinito

desdobrado sobre mim como negro sudrio

que fora me revelar o teu verdadeiro nome,

Esmeralda, Safira, constelao de astros efmeros e malditos!

POEMA DO FERRO E DO SANGUEEsqueceram os campos revolvidos

onde vegetam perdidos

os ossos obscuros

calcinados

de dez milhes de mortos.

Esqueceram as cruzes improvisadas

erguendo para o alto

preces de galhos retorcidos.

E esqueceram o rumor das granadas

revolvendo a terra e os vivos

devorando os mortos

destruindo.

NICO POEMA DE AMORtudo to calmo

a vida dormindo

comoagoraque tombasse sem murmrio

na plancie do meu pensamento ...

folhas mortas que no voam,

pssaros imveis que no cantam,

gua paradaque nocorre...

e teu corpo como um lrio sobre a terra,

e a terra muda impregnada de perfume,

teus olhos grandes como flores noturnas,

flores que se abrem na doura do silncio

e minha sombra como uma nuvem perdida

debruada sobre teus cabelosimveisquebiamna gua da plancie...

ROMANCE PSICOLGICO

O gneroromance psicolgicotem como principal caracterstica a imerso nas razes dos motivos, escolhas e aes dos seres humanos, no fluxo inconsciente das memrias que passa a determinar o comportamento dos personagens. Ao contrrio de outros tipos de romance, onde o ambiente sociocultural fator crucial para o desenvolvimento da trama, o psicolgico apega-se anlise das decises e motivos ntimos.

O gnero ganharia reconhecimento no final do sculo XIX, quando a obra prima Dostoivski foi traduzida do russo para outras lnguas: Crime e Castigo (1866), que apresenta um personagem atormentado por sua memria aps cometer um assassinato.

Na literatura inglesa, um clssico do romance psicolgico O Morro dos Ventos Uivantes (Wuthering Heights), de Emily Bront, escritora britnica. Em suas pginas, a autora apresenta um imenso campo em que podem ser feitas interpretaes das instncias psquicas dos personagens (superego, id e ego.

O marco inicial do romance psicolgico no que se refere literatura do Brasil foi escrito por Machado de Assis. Com seu livro, Dom Casmurro, o autor apresenta personagens multifacetados e analisa profundamente as caractersticas psicolgicas de cada um deles. Ainda na literatura brasileira, outros ttulos de romances considerados psicolgicos so: Crnicas da Casa Assassinada, de Lcio Cardoso, A Menina Morta, de Cornlio Pena, So Bernardo, de Graciliano Ramos, Laos de Famlia e Perto do Corao Selvagem, duas obras de Clarice Lispector.

Lcio Cardoso e sua "Crnica da Casa Assassinada"

O romance acompanha a runa de uma aristocrata famlia mineira. Uma saga que se desenrola nos limites de uma casa de fazenda. A casa desempenha o papel principal: os personagens so feitos do cimento da casa e esta, da carne dos seus habitantes. A perspectiva dos temores que habitam a casa, da casa que sangra, que sofre, que abriga os mais trgicos segredos.

Crnica da Casa Assassinada reconstri de maneira admirvel o clima de morbidez que envolve os ambientes e os seres. Fixa a angstia de um amor que se cr incestuoso. Em vez de referncias diretas, so as cartas, os dirios e as confisses das pessoas que conheceram a protagonista (e dela prpria), que vo entrar como partes estruturais do livro, tornando a narrativa incomum e que costuram com maestria a histria dos Meneses, centrada na presena de uma mulher desconhecida..

A obra surpreende antes de tudo pelo seu flego, e tambm pelo uso apropriado e coerente de vrios instrumentos narrativos, cada um deles a cargo de um narrador diferente. Enquanto viaja devagar por uma trilha escura, margem da qual se sucedem os sinais de desvios psicolgicos e conflitos de natureza moral, o leitor testemunha a demorada queda da casa dos Meneses, tradicional famlia mineira - esse reduto de dominao e violncia discreta que o autor fez questo de atacar sem piedade.

A agonia de Nina, protagonista da obra, sua alma presa a um corpo carcomido pelo cncer, a ramificao da metstase que condena a casa e contagia seus habitantes com a degenerao da propriedade produtiva transformada em um cemitrio de mortos-vivos.

A essncia do livro, Lcio desenharia em linhas duras, num depoimento na poca do lanamento:"Meu movimento de luta, aquilo que viso destruir e incendiar pela viso de uma paisagem apocalptica e sem remisso Minas Gerais. Meu inimigo Minas Gerais. O punhal que levanto, com aprovao ou no de quem quer que seja contra Minas Gerais. Que me entendam bem: contra a famlia mineira. Contra a literatura mineira. Contra o jesuitismo mineiro. Contra a religio mineira. Contra a concepo de vida mineira. Contra a fbula mineira"

O depoimento do autor explicita as motivaes que impulsionam a narrativa em torno e por dentro dos Meneses, tradicional famlia da aristocracia decadente de Minas Gerais. Para investir contra Minas Gerais, Lcio Cardoso acompanha a crescente desagregao das relaes entre os familiares, a cidade e a casa. No h especificamente a representao de smbolos regionalistas, uma vez que o romance deslinda os complexos universos interiores das personagens, que mal conseguem dialogar entre si ou produzir discursos coerentes. H, sim, a construo e a representao alegrica de elementos regionalistas dentro de uma perspectiva subjetiva, quando, por exemplo, ao final do romance, a populao da cidade dizimada por uma epidemia:

"(...) ia a meio a triste epidemia que liquidou nossa cidade. A Chcara dos Meneses foi das ltimas a tombar, se bem que seu interior j houvesse sido saqueado pelo bando chefiado pelo famoso Chico Herrera. Vejo-a ainda, com seus enormes alicerces de pedra, simples e majestosa como um monumento em meio desordem do jardim. A calia j tinha quase completamente tombado de suas paredes, as janelas, despencadas, batiam fora dos caixilhos, o mato invadia francamente as reas outrora limpas e subiam pelos degraus j carcomidos - e, no entanto, para quem conhecia a crnica de Vila Velha, que vida ainda ressumava ela, pelas fendas abertas, pelas vigas mostra, pelas telhas tomadas, por tudo enfim, que constitua seu esqueleto imvel, tangido por to recentes vibraes." (Cardoso, 2008, p. 495)

Conhecido por travar polmicas com os escritores nordestinos regionalistas de seu tempo, Lcio Cardoso no nutria simpatia por esse tipo de literatura, enveredando por outras searas estticas. Esse fato torna Crnica da casa assassinadaum romance muito particular da histria da literatura brasileira, porque no se enquadra facilmente em um nico tipo de produo literria. O tom intimista com que realizada a explorao de personagens enigmticas como Nina, que seduz seu suposto filho, Andr, d forma e sustentao para a contestao da cultura mineira, lida na desagregao das tradicionais formas de relao familiar.

Composta por meio de cartas enviadas e no respondidas, de trechos de dirios, de depoimentos, de confisses parciais, a narrativa fragmentada, no-linear e sem nexos explcitos de causa e consequncia. As primeiras pginas com que depara o leitor so parte do dirio de Andr. Ele nos conta o momento final das tramas ainda a serem apresentadas, mergulhando na profunda dor e revolta que lhe causara a morte de Nina, mulher da capital carioca que aporta no conservadorismo rural sustentado pela casa dos Meneses. Encerrado em seu relacionamento, Andr se sente profundamente trado pela perda de seu objeto de desejo. Vivendo alienado de todos e do mundo, sua fuga e sua separao da casa dos Meneses ao fim da narrativa, depois do enterro da me, no significam uma possvel libertao da engrenagem da dor em que se encontrava preso:

"18 de... de 19... - (meu Deus, que a morte? At quando, longe de mim, j

sob a terra que agasalhar seus restos mortais, terei de refazer neste mundo o caminho do seu ensinamento, da sua admirvel lio de amor, encontrando nesta o aveludado de um beijo - era assim que ela beijava' - naquela um modo de sorrir, nesta outra o tombar de uma mecha rebelde dos cabelos - todas, todas essas inumerveis mulheres que cada um encontra ao longo da vida, e que me auxiliaro a recompor, na dor e na saudade, essa imagem nica que havia partido para sempre ?...)" (Cardoso, 2008, p. 19)

O testemunho de Andr faz ressoar um trauma fundamental, insupervel e aponta para a imagem do sobrevivente de guerra, para o qual a tragdia se perpetua ainda que a realidade afirme o contrrio. Essa a guerra da qual Andr no consegue se libertar e que o impede de construir sua prpria identidade, indelevelmente cindida pela presso exercida pelos Meneses, que o queriam afastado da influncia materna.

O passado paira sobre a Chcara, insinuando-se, a cada novo evento, como um fantasma que continuamente ronda e oprime os vivos. Abrindo fissuras na realidade aparente, a imagem das runas perpassa diversos nveis narrativos: est na impossibilidade de comunicao entre os personagens, na fragmentao dos discursos, na corroso das estruturas da casa, no fim mesmo da cidade Vila Velha e dos seus habitantes.

O prprio ttulo do livro j anuncia o enigma em que ele se constituir, ao se debruar sobre as lembranas angustiadas e desconexas dos vrios personagens, que no se fiam na memria que construram sobre suas relaes com os outros e com a realidade. O relato que se anuncia como sendo uma crnica carece de verdade, porque no h fatos claros e objetivos. Assim, cabe ao leitor desvelar o assassino e reconstituir o crime que baila entre sofisticadas tcnicas narrativas, trabalhadas por uma linguagem meticulosa, que se desdobra em descries quase lricas no fosse a explorao aguda dos perfis psicolgicos elaborados e o grotesco que surge dos dramas apresentados:

"Decerto, quando as pessoas no nos interessam, esmaecem em torno a ns com a indiferena dos objetos. Alberto, para mim, sempre fora o jardineiro, e jamais conseguira identificar sua presena seno daquele modo. Eis que agora, pelo simples manejo da existncia de Nina, eu o descobria como havia descoberto a mim mesma. Este deve ser, Padre, o primeiro dom essencial do demnio: despojar a realidade de qualquer fico, instalando-a na sua impotncia e na sua angstia, nua no centro dos seres." (Cardoso, 2008, p. 110)

Trecho da primeira confisso de Ana a Padre Justino, nico em misso sacerdotal na pequena e mtica cidade de Vila Velha, esse registro se encontrar com a ltima parte do romance, quando, em uma carta do mesmo Padre, o incesto sugerido entre Nina e Andr era uma fico tecida cuidadosamente para vestir a inveja que movia a confessa. Somente no ltimo depoimento, que se abre a fenda interpretativa desse romance, apenas insinuada em momentos anteriores. Ao virar pelo contrrio os sentidos engendrados, o leitor pode elucidar os mistrios que acompanham a narrativa. Nessa perspectiva, Deus e Diabo, bem e mal ocupam lugares opostos no plano literrio: o pecado est com aqueles que se eximem de experimentar a vida em sua plenitude e no com os que a conhecem em todas as suas facetas e contradies:

"Deus quase sempre tudo o que rompe a superfcie material e dura do nosso existir cotidiano - porque Ele no o pecado, mas a Graa. Mais ainda: Deus acontecimento e revelao. Como sup-lo um movimento esttico, um ser de inrcia e de apaziguamento? Sua lei a da tempestade, e no a da calma." (Cardoso, 2008, p. 508)

O veredito de Padre Justino divide os aspectos narrativos: de um lado, Nina e seus modos e valores cariocas, urbanos; de outro, Ana e seus modos e valores mineiros, interioranos. Dentre as duas, a tempestade est inegavelmente ao lado da criatura que movimenta a famlia, desestabilizando a inrcia dos que passivamente acompanham a decadncia da casa, da cidade e a putrefao das relaes entre as pessoas.

Ao praticar a leitura s avessas, v-se que Ana, segundo seu prprio ponto de vista, a representao do mal, por evidenciar a verdade que por tanto tempo se esforou para encobrir: ela trai o marido, Demtrio, com o jardineiro, Alberto, amante de Nina, e gera Andr, filho atribudo a Nina e a Valdo.

Padre Justino, aps longa incurso interior, empurrado pelo terror diante da verdade contada por Ana, encontra uma possibilidade para perdo-la, j que, contrariamente s expectativas, o mal est a servio de Deus, porque rompe com a estagnao demonaca da vida:

"precisamente em nome desse mal que era uma oposio s suas noes morais, desse mal que eu lhe concedia como a suprema indulgncia que se concede a um moribundo. Que ele, em ltima instncia, revestido afinal das formas dessa Graa que ela tanto renegara, apaziguasse suas penas e lhe desse certeza de que vivera, padecera e usara sua essncia mortal at o ltimo claro." (Cardoso, 2008, p. 508)

O pecado maior mesmo este: a inrcia que mantm as aparncias sob o vu da calma e da tranquilidade. Deus, sendo ao, no est na pacata cidade de Vila Velha, no passado, nas foras regressivas. Eis a palavra do escritor contra Minas Gerais, contra a famlia mineira, contra os valores regionais. Eis o regionalismo que surge da explorao dos universos ntimos e da sondagem existencial das personagens.

O suposto incesto vai se naturalizando na medida em que se acentua a degradao das relaes entre os familiares. O horror com que se l nas primeiras pginas os prazeres sexuais de que desfrutam me e filho substitudo gradativamente pela desconfiana de que a verdade dos fatos provisria e eternamente contestvel:"- Sim, me - balbuciei, deixando pender a cabea.Ela lanou-me um olhar onde brilhava ainda mais um pouco de sua velha clera:- Me! Voc nunca me chamou de me... por que isto agora?E eu, atnito, sem poder impedir que o espelho tremesse em minhas mos:- Sim, Nina, voltaro os velhos tempos." (Cardoso, 2008, p. 25)

Andr descreve seu ltimo encontro com Nina em um turbilho de imagens que condensam a entrada do leitor no romance por inseri-lo, sem qualquer prembulo, no centro nervoso da narrativa. O relacionamento incestuoso o mote para que se percorra a histria da famlia Meneses, que se esfora at a morte para manter o estoicismo dos tempos idos ainda que a Chcara no produza mais riquezas, os irmos no saibam administr-la, as relaes estejam esgaradas. Em lugar de os novos acontecimentos no seio da famlia provocarem atrito e, portanto, alguma transformao, como quer uma perspectiva utpica que se abra para a construo de relaes justas e igualitrias, as experincias, duramente silenciadas, impedem que os sujeitos se reconheam uns nos outros e que as relaes mudem.

A artificialidade que pauta a vida dos Meneses leva Nina a procurar o Pavilho, ambiente desprezado e abandonado dentro da Chcara. Em oposio a casa, central, esse espao, perifrico, adquire crescente importncia na narrativa. Nina que o elege como espao privilegiado, ao retirar-se para l junto com Valdo. Tambm a onde Nina vive seus primeiros encontros sexuais com Andr e com o jardineiro, Alberto. Da paixo morte, o Pavilho, j completamente destrudo, abrigar as tragdias que viro: a condenao de Nina ao exlio, a morte do jardineiro, a confisso de Ana ao Padre e sua solitria morte:

"E foi ali - lembra-se? - que passamos realmente os mais belos dias de nossa vida em comum. Ali, naquele Pavilho abandonado e coberto de hera, com largas janelas de vidro mais ou menos intactas, e que flamejavam ao sol da tarde, e comungavam to intimamente com o mundo vegetal que nos cercava, ali aprendi a conhecer o amor e a aguardar o filho que havamos gerado." (Cardoso, p. 80 e 81)

Valdo uma entre as estranhas criaturas desse romance a lutar pela manuteno das artimanhas mentirosas, que sustentam a narrativa. Para conquistar Nina, dona de beleza e mistrios incomuns, ele se passa por homem rico do interior. Sua farsa , contudo, desmontada por seu irmo, Demtrio, que o contesta no primeiro jantar em famlia, proferindo um agressivo discurso contra a fachada construda por Valdo. Betty, aquela que ser a fiel servidora de Nina na casa dos Meneses, testemunha a cena:"(...) Dona Nina apenas ergueu as sobrancelhas e declarou com frieza:- Casei-me com um homem rico.- Rico? Foi isto o que ele lhe disse? - gritou o Sr. Demtrio.- Foi.Ele, que se inclinara exageradamente sobre a mesa, voltou a tombar para trs, e com tanta fora que temi v-lo cair, arrastando a cadeira.- Mas no tem nem onde cair morto! Devemos aos empregados todos, farmcia, ao banco do povoado... No, esta forte demais.S a a patroa pareceu perder a calma. Atirando o guardanapo sobre a mesa, e com um tremor nos lbios, exclamou:- Ah, Valdo, isto uma humilhao!" (Cardoso, 2008, p. 64)

Visto por Nina como responsvel pelo afastamento entre Valdo e ela e, consequentemente, entre ela, a Chcara e a infncia do suposto filho, Demtrio nutre, segundo Ana, uma paixo incontrolvel e no assumida pela cunhada, o que se revela em suas investidas constantes contra ela. Desse Meneses, no h nada mais do que o olhar dos outros sobre ele e suas aes. Essa ausncia falta ao leitor que compe o sentido do texto no com pouco esforo atravs das outras vozes textuais, distribudas na narrativa de modo aparentemente aleatrio.

Tambm para Ana, Nina objeto de atrao e de repulsa, menos por disputar a ateno de Demtrio, a qual, alis, nunca obtivera, do que por perceb-la plena da vida que seduzira Alberto:

"Ela aproximou-se por trs dos meus ombros:- Pena que tivssemos amado o mesmo homem.Voltei-me, e toda a clera havia retornado ao meu corao:- Voc! Bradei com um desprezo indizvel.Deixou pender os braos e sorriu tristemente:- Eu sim, que que tem? - E com uma expresso onde eu reconhecia a antigaNina: - Pensa que eu tambm no posso amar um jardineiro?" (Cardoso,2008, p. 299)O mdico e o farmacutico, junto com o padre, formam o olhar estrangeiro sobre a famlia dos Meneses, que gozaram de imensa reputao em tempos idos como atesta o segundo depoimento do mdico, ao escrever sob a necessidade de buscar elucidar os estranhos fatos que acompanharam a vida na Chcara:

"No do meu gosto remexer essas coisas que considero mortas, se bem que nem todas tenham sido convenientemente esclarecidas e nem tudo signifique uma acepo aos entes que delas participaram. Alm do mais, acredito que uma famlia, como a dos Meneses, que tanto lustro deram histria do nosso Municpio, tenha direito ao silncio que vem buscando atravs dos anos e que no consegue, pela violncia dos fatos que viveu - e que no entanto s nos merece compreenso e esquecimento. Pesa-me a conscincia, no entanto, ocultar fatos que poderiam elucidar alguns daqueles mistrios que na poca tanto abalaram nosso povoado. Pensando bem, este o motivo por que me encontro aqui, reajustando sobre o passado essas lentes, que apesar de trmulas s procuraram servir verdade." (Cardoso, 2008, p. 144)

O esforo do mdico de "reajustar as lentes", para contar os fatos que poca testemunhou, e "servir verdade", apesar de respeitar o silncio dos Meneses, o esforo que o leitor deve realizar se quiser entender, atravs da armao literria, as relaes entre fico e contexto histrico. Conhec-las , pois, prtica exaustiva, porque requer coragem para os sujeitos desafiarem as tradies e vencerem a inrcia, a que se habituaram.

Como Ana declara mais adiante ao Padre, o preo pago para participar da famlia dos Meneses calar os crimes cometidos e testemunhados, colocando-se margem da histria. Mas nem por isso a realidade perde a fora de seu contedo de verdade, correndo a base das relaes, do espao, da Chcara, da prpria identidade das pessoas. Mortos, a casa sucumbe tragdia da estagnao diante do caos. Talvez por isso sejam salvos os pecadores, porque contestam a lei imutvel das coisas.

Timteo, o irmo marginalizado pelos Meneses, por seus comportamentos esdrxulos, incorpora o louco que, em lapsos temporais, o visionrio lcido capaz de enxergar a verdade das tramas. Depois da morte de Nina, carcomida pelo cncer que tornava o ar da Chcara insuportavelmente ftido, ele sai do quarto em que estivera confinado por toda vida, para, menos do que prestar homenagem morta, sua nica amiga, vingar-se da famlia.

Tambm para Timteo a morte, a estagnao era o estado natural das coisas, da sua vida, da Chcara dos Meneses. Sua figura grotesca, imensamente gorda, adornada com joias antigas de famlia e com os velhos farrapos das roupas de uma tia lendria, irradia o ar de fatalidade que envolve cada momento da narrativa. Quando sua voz silenciada por outros discursos que se sucedem no texto, a narrativa ganha ainda mais tenso, porque se fortalece a desconfiana de que algo ocorre sob a aparente inao dos personagens. Exilado dentro da prpria casa, Timteo pode ser lido como uma espcie de alegoria do Estado mineiro, ao carregar os smbolos e a opulncia de um passado morto, cujo sentido histrico, completamente deslocado de seu contexto original, nada mais significa a no ser a necessidade urgente de transform-lo em memria.

Nina rompe com a imutabilidade aparente dos Meneses, oferecendo, assim, a possibilidade de remisso dos pecados de seus moradores. Para tanto, sua trajetria evidencia que preciso assumir as consequncias da ao na realidade, as quais, invariavelmente, contestam a tradio e os valores regionais. a que se encerra o foco regionalista desse romance intimista: na prpria ausncia e na negao dos elementos regionalistas.

Tal a atitude que o livro exige do leitor, caso queira libertar-se do inferno. preciso remexer os entulhos e viver o caos. O leitor, depois de cumprir a leitura das mais de quinhentas pginas, descobre que desde o incio da trama narrativa tambm ele era vtima das aparncias, pois o incesto, afinal, no ocorrera. Andr foge da casa sem conhecer a verdade e Valdo, que nem sequer desconfiava do que seu suposto filho pensava estar vivendo, abandona o territrio dos Meneses. O cadver de Nina, mesmo enterrado, faz vibrar a urgncia de se enxergar atravs da cortina, por entre alguma brecha possvel. Esse desejo de rever o passado para que se faa a justia o que movimenta Padre Justino em seu ltimo depoimento:

"No sei o que essa pessoa procura, mas sinto nas palavras com que solicitou meu depoimento uma sede de justia. E se acedo afinal - e inteiramente - ao seu convite, menos pela lembrana total dos acontecimentos - tantas coisas

se perdem com o correr dos tempos... - do que pelo vago desejo de restabelecer o respeito memria de um ser que muito pagou neste mundo, por faltas que nem sempre foram inteiramente suas." (Cardoso, 2008, p. 495)

De fato, h um cadver em putrefao em plena luz do dia. Trata-se da prpria cultura mineira que se nega a enterrar os mortos e a compor uma memria histrica capaz de fazer justia com o passado. Eis o cadver que a crnica apresenta ao leitor, concretizando o desejo de Lcio Cardoso de destruir a "fbula mineira".

Resumo do enredo

Quando Nina, recm-casada com Valdo chega chcara dos Meneses, vinda do Rio de Janeiro depois de sucessivos adiamentos que levam seu marido a uma situao de desconfiana e cime fica sabendo logo na primeira refeio com a famlia, da difcil situao econmica em que esta se encontra: Valdo a tinha enganado. Demtrio, talvez por alguma desforra de briga familiar ou simplesmente por inveja, faz questo de revelar a verdadeira situao econmica da famlia, em meio a spero dilogo com seu irmo, chega inclusive a dizer que Valdo no tinha enviado o dinheiro que prometera a Nina para a viagem at a chcara porque no o possua.

A vida montona na chcara Meneses vai pouco a pouco desconsolando Nina, pouco acostumada a essa vida do campo. Depois de muito insistir com Valdo, passa a morar com ele no "pavilho" que ficava afastado da casa onde moram os demais e, nesse ambiente, tem uma temporada feliz.

Entretanto, e aproveitando-se dessa situao, Nina pde comear um romance oculto com o jardineiro Alberto, at que um dia foi surpreendida por Demtrio em atitude suspeita, apesar de no ser de todo conclusiva. Demtrio no deixa de fazer um escndalo de Nina, mesmo esperando o primeiro filho, decide abandonar a chcara e voltar para o Rio.

Por causa desse incidente, Valdo fica bastante desolado e tenta o suicdio. Nina, ao ver a reao do marido, como que movida de compaixo, volta atrs na sua deciso de partir. No entanto, esse sentimento dura pouco e, passado o primeiro momento, volta para o Rio.

As atitudes de Nina so sempre abusivamente falsas. Engana a todos defendendo seus interesses. Mente dizendo ser sincera. Estando j no Rio, chega a escrever a Valdo dizendo que apenas pensou remotamente no jardineiro, depois de ter negado tantas vezes qualquer envolvimento. A Ana, do mesmo modo, confessa abertamente ter-se apaixonado e relacionado com ele, com a finalidade exclusiva de faz-la sofrer e escandaliz-la, desabafando todo dio que sentia por ela.

Sua deciso definitiva de abandonar a chcara tomada pelas revelaes de Timteo e Betty, a empregada, que tinham escutado a conversa entre Valdo e Demtrio, quando discutiam e decidiam mandar Nina embora.

Timteo um personagem totalmente excntrico; sempre trancado em seu quarto vestia-se com as roupas se sua me, mas chegou a ganhar a amizade de Nina

Betty sempre muito fiel e prudente, amiga e fiel servidora de todos e chega mesmo a ser conselheira apesar de no estar totalmente a par dos fatos.

Para Ana a partida de Nina representa um grande triunfo e alvio, pois no se pode conter na sua inveja e inferioridade e por outro lado (como s ao final do livro se revela), tinha-se apaixonado por Alberto exatamente quando descobre o romance deste com Nina e faz tudo por ganhar a preferncia dele, do qual acaba por esperar um filho.

A sua vida com Demtrio era tediosa e o seu cime cresce dia a dia. Persegue Nina em suas sadas e encontros furtivos e chega mesmo a enfrentar-se com ela.

O que encobriu suas faltas foi a sada de Nina, pois aproveitando-se do conselho que o mdico lhe dera: "j no anda bem de sade", obtm permisso de viajar para o Rio e tentar convencer Nina a voltar, ou pelo menos trazer o filho do Valdo. Em virtude deste fato, oculta a sua gravidez e pode dar a luz a seu filho no Rio de Janeiro.

Quanto a Alberto, no dia em que soube da partida definitiva de Nina, suicidou-se. Um pouco antes, para agravar o seu estado emocional, tinha sido despedido por Demtrio, mas mesmo assim no fora embora. O Autor habilmente faz parecer pelo relato de Ana que Nina teria jogado um revlver pela janela propositalmente, o qual apanhado pelo jardineiro que espreitava pelo jardim uma conversa de Nina e Valdo.

Ana ainda o v agonizante, mas j no pode fazer mais nada. Antes riu porque suspeitava dessas consequncias, mas apenas aguardou os acontecimentos.

Somente depois de quinze anos que Nina volta a manifestar-se a Valdo. Pede-lhe dinheiro e depois diz que vai regressar chcara, para o que seu, principalmente seu filho, Andr.

Passou todo esse tempo, como antes de casar-se, protegida por um coronel amigo de seu pai, o qual a sustentava sem nada exigir.

Entretanto abandona o bom amigo e regressa chcara, iniciando logo um estranho e apaixonado romance com seu aparente filho, Andr.

Ana logo desconfia e descobre a situao seguindo-os e no fundo procurando uma vingana contra Nina, por seu recalque e cime.

Valdo, pela atitude do filho, comea a desconfiar e tenta dialogar com Nina, a qual reage fulminantemente, surpreendida de que seu marido pudesse desconfiar dela e do prprio filho. At que um dia Nina revela padecer uma doena e pede dinheiro para tratar-se no Rio. Parte no dia seguinte, depois da anuncia de Valdo (que por sinal no acredita) e sem dizer nada a ningum.

Durante 15 dias que passa no Rio, vai ao mdico, examina-se e se comprova o estgio muito avanado da enfermidade e o pouco tempo de vida que ter. No ltimo dia de Rio de Janeiro encontra-se com o coronel, dizendo que voltava para ficar e que era sincera com ele; no entanto, consegue fazer com que ele compre todo um guarda-roupa novo para si e desaparece sem nenhuma outra satisfao.

Regressa chcara e pouco tempo depois tem que guardar o leito at o dia do seu falecimento.

Para Andr, a sua vida se transforma quando conhece Nina e a paixo por ela o cega totalmente. Vive como um adolescente apaixonado, sem perceber direito a dimenso do seu pecado. No entende muito o que ocorre e tambm no se esfora por faz-lo, somente querendo dar vazo ao seu sentimento.

O ltimo captulo do livro "Ps-escrito numa carta do Pe. Justino", traz a grande revelao final. Ana luta contra a sua conscincia. A sua maldade e frustrao haviam sido demasiadamente grandes. Tinha ido morar no "Pavilho" e estava moribunda, quando manda chamar o Pe. Justino. Queria dizer-lhe tudo a bem da verdade e que todos soubessem, Andr era seu filho natural e no de Nina e Valdo.

Entretanto o que mais lhe doa que Nina devia sab-lo (nunca teve certeza disto). Deu-se esta circunstncia exatamente porque quando foi ao Rio buscar Nina, entrou em contacto com ela aps o nascimento de Andr. Nina disse-lhe ter deixado o filho de Valdo no hospital e que no sabia mais dele, e aproveitando-se disso, Ana trouxe Andr chcara como sendo o filho de Nina e Valdo. Na verdade, ela no tinha ido ao hospital busc-lo, como dissera a Nina.

Assim como durante toda a sua vida, Ana morre sem esboar arrependimento, mas apenas um remorso profundo por ter agido errado. O Pe. Justino no pode tentar mais nada apesar de compreender bem o estado daquela alma e da gravidade do seu pecado.

Consideraes finais

A Crnica da Casa Assassinada uma histria surpreendentemente bem escrita e com uma trama to dinmica que o leitor se sente um refm do autor.

Lcio Cardoso escreveu uma das obras mais belas e mais chocantes da literatura brasileira. Tratando de temas polmicos como homossexualismo e o relacionamento incestuoso, Lcio rompeu barreiras impostas pela sociedade, sendo seu livro aclamado por muitos, porm detestado por outros no momento de sua publicao. A obra uma viagem no tempo, para a poca em que o coronelismo perdia suas razes e o interior comeava a se tornar parte dos acontecimentos urbanos.

Com personagens inesquecveis como Nina, Valdo e Timteo Meneses, esse livro pretende levar o leitor a uma reflexo, no qual o questionamento sobre o certo, o errado e o que imposto pela sociedade uma parte principal da trama. Seria o status social visto uma necessidade de sobrevivncia? At que ponto o jogo de aparncias deve ser mantido para que as pessoas possam admirar a falsidade de se ter uma vida perfeita?

um livro imperdvel que alm de entreter de forma extraordinria o leitor apresenta um papel social maior: questionar a racionalidade dos seres humanos, a valorizao das emoes e principalmente, at quando a manuteno do status pode trazer uma efetiva felicidade.Notas

Ernst Theodor Amadeus Wilhelm Hoffmann(Knigsberg,24 de Janeirode1776Berlim,25 de Junhode1822) foi um escritorromntico, compositor, desenhista e juristaalemo, sendo sobretudo conhecido como um dos maiores nomes daliteratura fantsticamundial. Suas histrias foram a base da famosa pera deJacques Offenbach,Os Contos de Hoffmann, em que Hoffman aparece como personagem. Agripino Grieco (Paraba do Sul RJ 1888 - Rio de Janeiro RJ 1973). Crtico literrio, poeta, contista, tradutor, jornalista. Sua importncia no meio literrio, do incio da dcada de 1920 dcada de 1950, est diretamente ligada ao fato de permanecer todo esse tempo escrevendo diariamente em importantes jornais, com suas colunas caracterizadas pelo ecletismo e pelo tom polmico e satrico, tratando de escritores brasileiros, estrangeiros e lanamentos.

RefernciasCARDOSO, Lcio. Crnica da casa Assassinada. 5.ed. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2004.

SANTOS, Cssia dos.Polmica e controvrsia em Lcio Cardoso. Campinas: Mercado das Letras, 2001.http://ebooks.pucrs.br/edipucrs/anais/Xsemanadeletras/comunicacoes/Sullivan-da-Silva-Flores.pdfhttp://www.uel.br/eventos/sepech/sumarios/temas/conformismo_e_religiao_a_criacao_do_espaco_provinciano_na_obra_de_lucio_cardoso.pdfhttp://catalisecritica.wordpress.com/2011/05/24/cronica-da-casa-assassinada-lucio-cardoso/http://www.maxwell.lambda.ele.puc-rio.br/22021/22021.PDF

http://www.vermelho.org.br/prosapoesia/noticia.php?id_noticia=173110&id_secao=133