Lúcio Cardoso

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Lúcio Cardoso – “O amor é um monólogo travado nas sombras” I. Maleita (fragmentos) “Eu chegava então a Curvelo, ardendo para penetrar o sertão.” “Compreendia que o pensamento de Elisa voava sobre e estrada e se detinha em Pirapora. Arrastava de Curvelo o temor de quem não conhece o mundo. Insulada na cidade pobre e triste, aprenderia a amar a tranquilidade daquele atraso. Nela os dias corriam numa serenidade sem limites. A gente era simples. A vida igual.” “O sertão, agora, subjugava-o. Estava ali, diante de mim, em toda a sua grandeza trágica, a força oculta que vinga o rio maculado e a mata devastada pelo homem.” “O assassino dorme, roto e ensanguentado. O morto avulta na claridade”, “E o rio lavando os pecados dos homens...”. “Casebres, construções, lutas, vapores, festas, mortes, mascates, tudo absorvido pelo deserto. A cidadezinha inútil, esmagada pelas forças adversas da natureza.” II. Diário Completo “Minas, esse espinho que não consigo arrancar do pé. O que amo em Minas é a sua força bruta, seu poder de legenda, de terras lavradas pela aventura, que, sem me destruir incessantemente, me alimenta (...) Meu movimento de luta, aquilo que viso destruir e incendiar pela visão de uma paisagem apocalíptica e sem remissão é Minas Gerais. (...) Meu inimigo é Minas Gerais. O punhal que levanto, com a aprovação ou não de quem quer que seja é contra. Minas Gerais. Que me entendam bem: contra a família mineira. Contra a literatura mineira. Contra o jesuitismo mineiro. Contra a religião mineira. Contra a concepção de vida mineira. Contra a fábula mineira. Contra o espírito judaico e bancário que assola Minas Gerais. Enfim, contra Minas, na sua carne e no seu espírito. (CARDOSO, 1979) III. Crônica da Casa Assassinada (fragmentos) “Que é o pra sempre senão o existir contínuo e líquido de tudo aquilo que é liberto da contingência, que se transforma, evolui e deságua sem cessar em praias de sensações também mutáveis? Inútil esconder: o para sempre ali se achava diante dos meus olhos. Um minuto ainda, apenas um minuto – e também este escorregaria longe do meu esforço para captá-lo, enquanto eu mesmo, também para sempre, escorreria e passaria – e comigo, como uma carga de detritos sem sentidos e sem chama, também escoaria para sempre meu amor, meu tormento e até mesmo minha própria fidelidade. Sim, que é o para sempre senão a última imagem deste mundo – não exclusivamente deste, mas de qualquer mundo que se enovele numa arquitetura de sonho e de permanência – a figuração de nossos jogos e prazeres, de nossos achaques e medos, de nossos amores e de nossas traições – a força enfim que modela não esse que somos diariamente, mas o possível, o constantemente inatingido, que perseguimos como se acompanha o rastro de um amor que não se consegue, e que afinal é apenas a lembrança de um bem perdido – quando? – num lugar que ignoramos, mas cuja perda nos punge, e nos arrebata, totais, a esse nada ou a esse tudo inflamado, injusto ou justo, onde para sempre nos confundimos ao geral, ao absoluto, ao perfeito de que tanto carecemos.” (CARDOSO, 1979, p.19- 20).

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Lcio Cardoso O amor um monlogo travado nas sombrasI. Maleita (fragmentos)

Eu chegava ento a Curvelo, ardendo para penetrar o serto.

Compreendia que o pensamento de Elisa voava sobre e estrada e se detinha em Pirapora. Arrastava de Curvelo o temor de quem no conhece o mundo. Insulada na cidade pobre e triste, aprenderia a amar a tranquilidade daquele atraso. Nela os dias corriam numa serenidade sem limites. A gente era simples. A vida igual.

O serto, agora, subjugava-o. Estava ali, diante de mim, em toda a sua grandeza trgica, a fora oculta que vinga o rio maculado e a mata devastada pelo homem.

O assassino dorme, roto e ensanguentado. O morto avulta na claridade,

E o rio lavando os pecados dos homens....

Casebres, construes, lutas, vapores, festas, mortes, mascates, tudo absorvido pelo deserto. A cidadezinha intil, esmagada pelas foras adversas da natureza.

II. Dirio Completo

Minas, esse espinho que no consigo arrancar do p. O que amo em Minas a sua fora bruta, seu poder de legenda, de terras lavradas pela aventura, que, sem me destruir incessantemente, me alimenta (...) Meu movimento de luta, aquilo que viso destruir e incendiar pela viso de uma paisagem apocalptica e sem remisso Minas Gerais. (...) Meu inimigo Minas Gerais. O punhal que levanto, com a aprovao ou no de quem quer que seja contra. Minas Gerais. Que me entendam bem: contra a famlia mineira. Contra a literatura mineira. Contra o jesuitismo mineiro. Contra a religio mineira. Contra a concepo de vida mineira. Contra a fbula mineira. Contra o esprito judaico e bancrio que assola Minas Gerais. Enfim, contra Minas, na sua carne e no seu esprito. (CARDOSO, 1979)

III. Crnica da Casa Assassinada (fragmentos)Que o pra sempre seno o existir contnuo e lquido de tudo aquilo que liberto da contingncia, que se transforma, evolui e desgua sem cessar em praias de sensaes tambm mutveis? Intil esconder: o para sempre ali se achava diante dos meus olhos. Um minuto ainda, apenas um minuto e tambm este escorregaria longe do meu esforo para capt-lo, enquanto eu mesmo, tambm para sempre, escorreria e passaria e comigo, como uma carga de detritos sem sentidos e sem chama, tambm escoaria para sempre meu amor, meu tormento e at mesmo minha prpria fidelidade.Sim, que o para sempre seno a ltima imagem deste mundo no exclusivamente deste, mas de qualquer mundo que se enovele numa arquitetura de sonho e de permanncia a figurao de nossos jogos e prazeres, de nossos achaques e medos, de nossos amores e de nossas traies a fora enfim que modela no esse que somos diariamente, mas o possvel, o constantemente inatingido, que perseguimos como se acompanha o rastro de um amor que no se consegue, e que afinal apenas a lembrana de um bem perdido quando? num lugar que ignoramos, mas cuja perda nos punge, e nos arrebata, totais, a esse nada ou a esse tudo inflamado, injusto ou justo, onde para sempre nos confundimos ao geral, ao absoluto, ao perfeitode que tanto carecemos. (CARDOSO, 1979, p.19-20).

Na verdade, nem sei como comear; antes de dar incio a est confisso porque assim eu quero que o senhor a tome, padre, e s assim meu corao se sentir aliviado pensei que este seria o meio mais fcil de me fazer compreender, e que as palavras viriam naturalmente ao meu pensamento. (CARDOSO, 1979, p. 98).

Nunca sai sozinha, nunca vesti seno vestidos escuros e sem graa. Eu mesma (ah, padre! Hoje sei disto, hoje que imagino como poderia ter sido outra pessoa certos dias, certos momentos, as clareiras, os mares em que poderia ter viajado! com que amargura o digo, com que secreto peso sobre o corao [...] (CARDOSO,1979, p. 99).

Ah, podia ser que no houvesse nisto nenhuma inteno, que fossem simples gestos mecnicos, possivelmente a lembrana de uma me carinhosa que sabia eu das mes e dos seus costumes! -, mas a verdade que no podia refrear meus sentimentos e estremecia at o fundo do ser, desperto por uma agnica e espasmdica sensao de gozo e de aniquilamento. No, por mais que eu repetisse minha me, no devo fazer isto, e imaginasse que era assim que todas elas procediam com seus filhos, no podia fugir embriaguez do seu perfume, nem fora da sua presena feminina. (CARDOSO, 1979, p.194).

Foi por isto que me prendi aos restos da nica coisa que para mim representou a existncia. Foi por isto que passei a defender estes restos, como quem defende a imagem da nica possibilidade de ser feliz neste mundo. [...] No foi a esperana que me fez debruar to avaramente sobre este tmulo, pois a esperana no existe para mim. (ah, eu sou talvez o nico ser totalmente sem esperana. No h tempo para mim, nem passado e nem futuro, tudo feito de irremedivel permanncia. O inferno assim um espao branco sem fronteiras no tempo.) Repito, no foi a esperana que me fez to ciosa desses pobres restos: foi a avidez de me justificar, de reter entre as mos as provas mais iniludveis de que houve um instante em que existi realmente. (CARDOSO, 1979, p. 280)

III. Poesia

AUTO-RETRATOA fronte onde uma veia denuncia a vida concentradapensamentos breves, desejos que se avolumam ao correr das horas graves,uma centelha e o mistrio sempre renovado da msica que nasce.Os olhos, alvo onde se fundem os elementos de discrdia,como o azul e o negro sobre os mares abertos,como o riso e o pranto nos delrios do amor.Sombras, ainda sombras dolentes ao longo das narinas que fremem,os lbios que se abrem vidos para os turvos vinhos da terra,para a memria maldita dos beijos sem resposta.E de tantas sombras que se misturam nesta face humana,qualquer coisa que lhe empresta um ar alucinado,como se uma fora maior, de suprema distncia,tentasse arrancar das trevas o anjo adormecido.WOLFF Lado a lado, vai de mim passando o lobo -nunca me acabo, mesmo se andandoo real se despe de mim e fica o bobo.O que resta por a vai divagando.

Incipiente, prncipe reduzido ao nada,que este sou, de mim me naufragando?Que nvia fera espera aquarteladaatenta-me - se a lua vagarosa em alto anda?

Quem me espera presa aniquilada?Quem me contempla neste poder o ser um rei?Que noite me busca angustiada?

Quem mais do que eu sei o que sei?Vou do princpio de mim ao fim vagando,e me olham, pensando de mim o que de mim nunca direi.

Quem Aquele que no Sendo Algum:

Quem aquele que no sendo algum

investe com o frio do inverno,

esmorece

resplende e devagar entardece

como se suceder fosse inferno?

H um lema no infinito:

ningum ningum.

()

morre o que finito na tarde arde

em seu esplendor de abismo encarde

o morto

ei-lo que cintila em seu pretenso

e a verdade

veneno que queima sem direo.

Aquele Lcio Cardoso

em seu calmo sepulcro:

o que brilha

o que brilha do gnio em seu fulcro.CARDOSO, Lcio. Crnica da casa assassinada. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1979.

______. Poemas inditos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.

______. Dirio completo. Rio de Janeiro: Jos Olympio/Instituto Nacional do Livro, 1979