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Lua de Cetim Texto de Alcides Nogueira Para Júlia Pascale. Em São Paulo, no maio de 1981.

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Lua de

Cetim

Texto de Alcides Nogueira

Para Júlia Pascale.

Em São Paulo, no maio de 1981.

PERSONAGENS

Alcebíades Antônio Guimarães (GUIMA) - O Pai

Candelária Souza Guimarães (CANDÊ) - A Mãe

Alcebíades Antônio Guimarães Júnior (JÚNIOR) - O filho criança -

Alcebíades Antônio Guimarães Júnior (JÚNIOR)

- O filho adulto -

Marisa - A amiga de Júnior

Vozes de vizinhas, locutores, etc.

"Depois de tudo ter sido quietamente peneirado através da minha

cabeça, sobreveio-me uma grande paz. Aqui, onde o rio serpenteia

delicadamente através do cinturão de colinas, existe um solo tão

saturado de passado que, por mais que a mente vagueie para trás, a

gente nunca pode separá-lo de seu fundo humano".

HENRY MILLER

1º ATO: 1.961 2º ATO: 1.971 3º ATO: 1.981

1º ATO

CENA I

Sala-copa de uma casa classe média de uma cidade do interior do Estado de São Paulo: Torrinhas. A um canto,

uma mesa de fórmica com quatro cadeiras, geladeira Com pingüim em cima, folhinha, muitos vasinhos de

flores. Mostra capricho da dona da casa. Desse ambiente, há uma porta interna que liga para a cozinha e o resto da

casa, apenas sugeridos. Do outro lado, um jogo de palhinha, meio envelhecido, que mostra ter pertencido

aos avôs ou bisavôs dos donos. Um cachepô antigo, com alguma folhagem em cima. Quadros do Sagrado Coração de Jesus e de Maria. Retratos do casamento dos donos da casa. Um rádio antigo, colocado sobre um bufê. Há uma janela que dá para fora. Outra porta, que dá para a rua. A ação do primeiro ato transcorre-se em 1961, dias

antes da renúncia de Jânio Quadros. Luz vai se acendendo lentamente por sobre a sala de jantar. De

repente, D. Candelária atravessa a cena e vai até a janela. Há certo barulho quem vem do lado de fora.

CANDELÁRIA - Júnior, já pra dentro! Vem pra dentro, seu moleque! (Tempo. Enquanto isso, Candelária arruma algumas coisas na sala. Volta à janela. O barulho é bem maior. Latidos de cachorro, voz de mulher berrando. Gritaria de molecada. À janela.) Júnior, vem pra dentro! O que é que você está fazendo, seu moleque? (Tempo. Júnior entra correndo na sala, esbaforido. Candelária agarra-o pela manga da blusa.) O que aconteceu, seu moleque? (Antes que Júnior possa explicar, ouve-se a voz da Vizinha, lá de fora.).

VIZINHA - Seu bandido, seu animal, seu marginal, seu filho de uma boa mãe! Vem cá, moleque safado, que te corto o pescoço! Vem cá, seu marginal, seu bandido! (Candelária chega à janela novamente.). CANDÊ - O que aconteceu, dona Nicota? VIZINHA - O Júnior andou correndo atrás do Sultão. Enfiou um pedaço de pau no fiofó do cachorro! Seu filho é um marginal! CANDÊ - Marginal não, dona Nicota! Eu vou bater no menino, mas não precisa chamar o moleque de marginal. Marginal é muito pesado, dona Nicota! VIZINHA - É marginal mesmo! Quero ver se alguém enfiasse um pedaço de pau no fiofó dele! Quero ver! (Candelária vira-se para Júnior.). CANDÊ - Você fez isso? JUNIOR - Mas... mãe... eu... CANDÊ (À janela) - Marginal é seu filho, dona Nicota! O Júnior está aqui dizendo que não fez nada! JUNIOR - Mas eu fiz mãe! CANDÊ - Cala a boca, menino! Estou resolvendo a situação! VIZINHA - Filho da senhora só podia dar nisso mesmo! CANDÊ - Ah é, sua sirigaita! Desde quando tem moral pra falar de mim? Vai dar uma olhadinha na Neusa Maria, vai! Não sou eu quem fica namorando até a meia-noite... VIZINHA - Cuida do seu filho! Ele vai virar ladrão! Vai virar, não, já é! Ontem ele roubou goiaba e chuchu! CANDÊ - Roubou não! Deus pôs as coisas no mundo pra isso mesmo! A senhora não come as goiabas e não deixa ninguém comer!

VIZINHA - As goiabas são minhas! CANDÊ - Não são! O pé é seu, mas as goiabas estão do meu lado! VIZINHA - Se não tivesse o pé, não tinha goiaba! CANDÊ - Ah, vá lamber sabão! (Bate a janela.). VIZINHA - Biscatona! CANDÊ (Abre a janela) - Biscatona é a sua mãe que deu pra cidade inteira. Todo mundo sabe disso. E sabe também que seu marido tem mulher na zona. É isso mesmo, sua cornuda! (Bate a janela. Encara Júnior.). CANDÊ - Seu safado, seu marginal, seu ladrão! Quem mandou fazer isso com o cachorro? Quem mandou roubar goiaba da Dona Nicota!? (Júnior tenta protestar, mas Candelária vai dando puxão de orelha e cabelo. O menino só chora aquele choro de manha.) E vá tomar banho, e volte aqui correndo porque está na hora da reza. Vai, Vai, seu marginal, seu ladrãozinho, eu não criei ninguém pra ficar batendo boca com vizinho. Filho meu tem que andar certo. Vai, vai, vai, vai... (Júnior sai correndo, anda manhoso. Candelária despenca em uma cadeira.) Quando isso vai acabar? Eu queria tanto que esse pestinha crescesse logo... Que arrumasse uma moça direita, casasse, tivesse uma casinha ajeitada e um bom emprego... Podia ser no Banco do Brasil... Pagam bem... É seguro... Podia chegar à gerente... Que nem o Seu Passos... que começou como contínuo e hoje é inspetor... Mas falta tanto tempo... O diabo só tem onze anos... E quem tem que cuidar dele sou eu. O pai não dá bola. Quer dizer, não tem tempo pra dar bola. Está lá, na lojinha dele... cheio de planos... Diz que vai ser a maior loja de tecidos da cidade. Do interior... E eu aqui... Vassourando a casa o dia inteiro... Vassourando o menino o dia inteiro. (Tempo.) Mas, também, quem manda as goiabas da dona Nicota ficarem dando sopa? E ela, mesmo? Quem é ela pra chamar meu filho de marginal? Prefiro ter um filho assim, espoleta, mas com saúde, porque isso só pode ser sinal de saúde, do que um que nem o dela. Verde! Verdinho! De tanto ficar lá no Correio batendo telegrama! E de noite, dizem, ele fica correndo atrás de menino! Meu Deus, será que isso é verdade? E a filha, então, namorando, sem-vergonha, atrás

da quaresmeira, até meia-noite, com aquele playboy do filho do delegado!... Mas eu não tenho nada a ver com isso! Nada! ... Mas se eu não me meto com a vida dela por que ela vem fuçar na minha?... O meu Júnior é fogo, mas é um amor! É muito bonitinho, e muito, muito inteligente! A dona Sálua disse que ele é líder! Lí... der! Isso é o que ele é! Ainda vai liderar muito pela vida afora. E liderando, ele vai subir todos os postos do Banco do Brasil e chegar à gerente. E depois inspetor. E depois... e depois... (Júnior entra de banho tomado, cabelo arrumadinho, etc.) Seu pestinha, lavou o ouvido? Deixa Ver! Lavou as unhas? Lavou o pipi? Ajoelha aí agora, seu marginalzinho, que está na hora da benção do padre Donizetti! Liga o rádio, que eu vou buscar o copo d'agua! (Sai. Júnior liga o rádio e se ajoelha apoiado em uma cadeira. Ouve-se a Ave Maria de Gounod, em um disco meio rachado. Depois, a voz do Padre Donizetti.). PADRE - Estamos mais uma vez, neste cair da tarde, reunidos na paz de Deus e com a bênção da Virgem Maria, rezando para a união da família brasileira, e pela paz em todos os lares. Nosso Senhor, através de sua Mãe, mandou um recado pelas crianças de Fátima: rezem todos, para que o mundo seja salvo! (Candê entra, coloca um copo de água em cima do rádio e se ajoelha sem prestar muita atenção a Júnior. Este tira uma caixa de fósforos do bolso e acende um palito, enquanto o padre Donizetti continua falando pelo rádio. Põe fogo no assento da cadeira. Candê não percebe de imediato, pois esta entretida na oração.) Rezemos, pois, e abençoemos essa água que todos colocaram sobre o rádio, e que servirá, depois de benta, para a cura dos males do corpo. A água cura o corpo, e a oração cura a alma. Que Deus vos abençoe, em nome do Pai... (Candê percebe o fogo.). CANDÊ - Seu desgraçado! (Lembra-se do Padre.) Desculpe, Padre Donizetti, mas este menino vai apanhar! (Agarra Júnior, dá-lhe uns croques, enquanto o Padre continua.). PADRE - No primeiro mistério glorioso, contemplamos a ascensão de Jesus. Ave-Maria, etc... CANDÊ (Batendo em Júnior) - Seu desgraçado, você vai ver agora o que é bom pra tosse! (Com a água benta, tenta apagar o fogo. Júnior berra.).

JUNIOR - Eu vou fugir de casa! A dona Sálua disse que num líder ninguém bate!

CENA II

De noite. A sala está vazia, mas com a luz acesa. A mesa está posta para o jantar. O rádio irradia uma novela. A

porta que dá para a cozinha está aberta. Dona Candelária está lá. Ouve-se um bater de panelas. Para que ela ouça,

o rádio está alto. LOCUTOR - Já passava das onze, e Edelzuíte achava-se cansada. A recepção ao Duque durara muito tempo, e ela não via a hora de chegar em casa. Mas, nem todo o cansaço do mundo conseguiria apagar aquela sensação maravilhosa que lhe percorria todo o corpo. Sim, finalmente, Edvard olhara para ela. Não um simples olhar, mas um olhar de paixão, de cumplicidade e de ternura. Um olhar que lhe devorara o coração. Seu corpo estremecera, o suor começara a gotejar em suas mãos, finamente enluvadas em cetim rosa, e os pezinhos tremeram naquele saltinho de dois centímetros que sua madrasta, até que enfim, concedera que ela usasse. Voltava agora para casa, acompanhada do pai e da madrasta, cheia de alegria. O barulho do coche pelas ruas de paralelepípedos embalava os seus sonhos! (Barulho de coche sobre paralelepípedos. Música neutra. A voz do pai.). PAI - Por que estás tão calada, Edelzuíte? EDEL - Nada, papai, apenas um pouco cansada da recepção oferecida hoje ao senhor Duque. MADRASTA - Não deverias estar cansada, e sim feliz com o que fizestes! EDEL (Sobressaltada) - O que fiz eu, querida madrasta?

MADRASTA - Bem sabes... Ha ha ha ... Mas não terás futuro! PAI - O que aconteceu de errado com a nossa filha? MADRASTA - Nada. A sua filha procedeu mal... Não adiantou nada todo o dinheiro que empregastes com os preceptores alemães! EDEL - Mas papai... nada fiz... nada fiz... Nada! MADRA - Eu vi... quando... EDEL (Pensando alto) - Agora, essa velha senhora contará tudo a papai. E como Edvard é sobrinho do primo do marido do cunhado do vice-cônsul russo, ele não permitirá nosso namoro! Como sofro! Como sofro! MADRASTA - Eu vi quando você repetiu duas vezes o ponche! Isso é errado menina! Ponche se toma só uma vez! PAI (FURIOSO) - Edelzuíte!! EDEL (Aliviada e feliz) - Oh, papai... Oh, querida madrasta... É que estava tão bom aquele gostinho de xerez com jenipapo! Mas nunca mais o farei! Lembrar-me-ei sempre das aulas de etiqueta de Fraulein Gerda Von Studbaker Von Kellsner e nunca mais repetirei essa má ação... (Para si.) Mal sabem eles que eu assim o fiz para esconder a emoção que me atingia. LOCUTOR - Seguiram em silêncio para casa, silêncio às vezes entrecortado por algum comentário ferino de Dona Dolores. Em chegando ao lar dos Abrantes, Edelzuíte, após tomar a bênção de seu pai e de sua madrasta, correu para o dormitório, não vendo a hora de estar a sós com a lembrança de seu querido Edvard. (Barulho de pezinhos subindo escadas. Porta que se bate.). EDEL - Finalmente a sós! Agora, posso pensar em você, querido Edvard! (Batidas à janela. Assustada.) Batidas à janela? Quem será? (Barulho de cama que range.).

LOCUTOR - Edelzuíte levantou-se da cama, temerosa! (Barulho de passos.) Atravessou o quarto na ponta dos pés em direção à janela... (Nisso, Guimarães, marido de Candelária, entra na sala. Deixa o chapéu sobre a cadeira e olha em volta. Estranha o barulho do rádio e tapa os ouvidos.) Edelzuíte, chegou-se à janela, abriu-a olhou para fora e perguntou... (Guima desliga o rádio e grita.). GUIMA - Ó de casa! Quem está aí? (Candelária entra brava.). CANDÊ - Eu nunca vou saber quem estava na janela de Edelzuíte! Nunca! GUIMA - Outra vez de papo com a vizinha Candê? CANDÊ - Não, Guima, era a novela! Você sempre chega na hora errada! O meu único divertimento e, você estraga! Não saio de casa, não vou ao cinema, não tenho televisão... não faço nada. Só ouço a minha novela, e você estraga! GUIMA - Não reclama que tem notícia boa! CANDÊ - A última notícia boa que tive foi a de que o Seu Presidente proibiu briga de galo. Nem a minha fezinha eu posso fazer mais. GUIMA - O Jânio está certo. Briga de galo é irracional. CANDÊ (Provocante) - Mulher de biquíni também é irracional? GUIMA (Pigarreando) - Deixa pra lá... Quede o Júnior? CANDÊ - Está de castigo! GUIMA - Outra vez? O que ele fez desta vez? Botou fogo na casa? CANDÊ - Quase! Torrou o assento de palhinha da cadeira da Vó Pureza e enfiou um pedaço de bambu no rabo do cachorro da dona Nicota... GUIMA - Ha... ha... ha... Devia ter enfiado no rabo dela!

CANDÊ - Guima, desse jeito você deseduca o menino. É claro que é engraçado, pois não é você que fica aqui o dia inteiro, com ele. Não é você que agüenta falatório de vizinho, reclamação do delegado, bilhetinho da diretora, mãe de moleque batendo na porta... GUIMA - É muito melhor ter um filho assim que um peixe morto! CANDÊ - Quero ver se você agüentaria ficar um dia inteiro com ele! GUIMA - Tira o menino do castigo! CANDÊ - Não tiro! GUIMA - Candelária, aqui quem manda sou eu. CANDÊ - Então, vai lá e tira o menino! GUIMA - Candelária, não faça escândalo! CANDÊ - Faço! GUIMA - É que quero dar uma boa notícia para todo mundo! CANDÊ - Já disse que a melhor notícia que você poderia me dar seria a morte do Jânio! GUIMA - Vira essa boca, Candê! CANDÊ - Não gosto daquele caspento! GUIMA - Ele não é caspento! CANDÊ - Pior ainda. Põe caspa no paletó para falar que é pobre. Come sanduíche de mortadela para falar que é igual à gente. Mas fica lá no palácio, assistindo filme de bangue-bangue e se encharcando de uísque! GUIMA - Pára de falar mal dele, senão, falo mal do Juscelino! CANDÊ - Quem não deve não teme! O JK é o maior!

GUIMA - O povo estava cansado dele. Se não tivesse, teria elegido o Lott. CANDÊ - O Jânio enganou todo mundo. Com aquela cara de louco e aquela vassoura de bruxa. Devia é sair voando! GUIMA (Perdendo a paciência) - Chama o moleque! CANDÊ (Cantando) - Cuidado, minha gente, com esse tipo de rapaz... Se perde a lotação, nervosinho bate o pé... Vai ver que é... GUIMA - Pára de encher, Candelária. Vai buscar o menino! CANDÊ (Condescendente) - Só se você me prometer uma coisa. Ou melhor, duas. ... GUIMA - O que é? CANDÊ - A primeira é não desligar mais o rádio quando chegar. GUIMA - Prometo. E a segunda? CANDÊ - Me levar amanhã para assistir “A Imitação da Vida", com Lana Turner. Tem duas sessões no Paratodos... GUIMA - Bom... CANDÊ - Você prometeu! GUIMA - Só se você prometer não falar mais mal do Jânio! CANDÊ - Prometo! E você promete também? GUIMA - Prometo! Então, vai, vai buscar o menino! (Candelária sai berrando.). CANDÊ - Júnior, seu pai chegou pra te dar um couro! Vem cá, moleque! Seu pai vai te malhar, seu marginalzinho! GUIMA - Candelária, você me traiu! (Gritaria.).

CANDÊ (Sai berrando) - Vem cá Júnior! (Júnior sai correndo pela porta da frente. Os pais atrás.). VIZINHA - Ele foi pra direção do córgo! OS PAIS - Júnior! Júnior! Júnior! (Vozes se afastando. Tempo. Voltam os três. Candê, emburrada. Guima, bravo, e Júnior, fingidamente com medo.). GUIMA - Não fala isso, Candê. Você usou meu nome! CANDÊ - Que nem Deus. Não usar seu santo nome em vão! GUIMA - Não pra assustar o menino! CANDÊ - Não é você o homem da casa? Sou só eu que tenho que bater o menino? (Júnior resmunga algo incompreensível.). GUIMA (Para o filho) - Não fique com medo não, filho! Ninguém vai bater em você. (Para Candê.) Quem merecia apanhar é outra pessoa! CANDÊ - Vem... vem... GUIMA - Não quero briga na frente da criança. O padre diz que dá trauma. CANDÊ - Que Mané. Trauma? Pai mole, filho torto! A Dona Candelária aqui é que tem que educar! Além de cozinhar, de costurar, de encerar e de lavar, tem que educar! (Júnior fica choramingando num canto. Depois, enquanto os pais batem boca, tira um sapo e coloca no chapéu do pai.). GUIMA - Não fico mais aqui. Vou jantar na pensão. CANDÊ - Vai, está rico! Está podre de rico! A loja de tecidos “A Admirada" de Alcebíades Antônio Guimarães, é a maior potência de tecidos da cidade! Riquíssimo! A única coisa que vende lá, meu filho, é JK! Por ironia do destino, JK é o único pano que você tem, o resto é chita!

GUIMA - Chita ou não, é de onde você come! CANDÊ - Pois vá embora! Suma! (Guima pega o chapéu para sair. O sapo pula. Ele grita de susto. Candê, depois do susto, cai na gargalhada.) Muito bem, Júnior, mostre quem é o covarde nesta casa. Medo de sapo, hein? (Candê ri e agarra o filho. Guima fica meio sem jeito, vai até a porta, volta e senta-se emburrado.). GUIMA - Também, não conto a novidade!

CENA III

Os três estão à mesa do jantar. Candê faz os pratos e serve. Primeiramente para o marido, depois para o filho, e

depois, para si mesma. GUIMA - O feijão está frio! CANDÊ - Ah, Guima não continua com esse mau-humor, não! Além de tudo, tem baba de moça de sobremesa! GUIMA - Está bom. Então, deixa eu contar a novidade para vocês. Lá pelas três da tarde, eu resolvi dar uma folguinha, e fui até o Café do Ponto. CANDÊ - Como sempre... JUNIOR - O senadinho, pai... GUIMA - Olha o respeito, menino... CANDÊ - E daí? GUIMA - Daí fiquei conhecendo um sujeito de São Paulo. O Moreira. Acabou de chegar aqui em Torrinhas. E sabe com o que é ele mexe? CANDÊ - Com tecidos...

GUIMA - Como você sabe? JUNIOR - A madrinha Anunciadinha contou. GUIMA - Eta fofoqueira!! CANDÊ - A comadre não é fofoqueira, não. GUIMA - Como não é? O sujeito mal chegou de São Paulo, não tinha nem arrumado ainda lugar pra ficar, não sabia nem que existia o Hotel São José, e a Anunciadinha já fica sabendo, e já bate o recado pras amigas... Acho que foi ela a inventora do telégrafo sem fio. CANDÊ - Você se esquece de que o Pedro trabalha na Estação? Pois o tal de Moreira ex-Gerente das Casas Pernambucanas chegou, contou que era isso e aquilo, e perguntou onde poderia encontrar os comerciantes de Torrinhas. GUIMA - E o Pedro falou que era no Café do Ponto? CANDÊ - Não. Como ele está brigado com o Souza, disse que era no Bar do Bié. Mas lá no Bar do Bié disseram que era no Café do Ponto. (Pausa.) E o que o tal de Moreira disse? GUIMA - Disse que está procurando um sócio aqui em Torrinhas! CANDÊ – Você... você não... GUIMA - Não o que, Candê? Eu não prometi nada... mas acho que vou pensar no negócio. Ele diz que está pra receber um dinheiro lá de São Paulo... Que tem direito à indenização, pois tinha quase quinze anos de casa e foi despedido injustamente. E, com esse dinheiro, ele quer abrir um negócio de tecidos por conta própria. Pensou em abrir sozinho, mas como não conhece ninguém por aqui... precisa de um sócio. E veio falar comigo, pois soube que eu tenho um grande tino comercial, e que conheço muita gente, e que sou respeitado, e etc... etc... CANDÊ - E você caiu como um patinho, não é? Vê que é golpe, Guima? O tal do sujeito quer mais, é ficar rico às suas custas! Você,

com tino comercial? Desde quando? A “Admirada" está que só tem retalho! Vive de liquidação de inverno, verão primavera e outono! Se tivesse mais uma estação, tinha mais uma liquidação! Que você conhece muita gente? Conhece mesmo! E só vende fiado! Por isso, está na pindura! E o sujeito quer entrar como sócio? Ele quer passar a perna em você, Guima! GUIMA (Humilde) - Não fala assim na frente do menino, Candê! CANDÊ - Por quê? Pobreza não é sujeira! Nem defeito! Que tem de mais ser pobre? E depois, ele não entende mesmo! JUNIOR - O senhor está falindo, pai? GUIMA (Bravo) - Não entende, Candê? Não entende? Não entende? Como não entende? O que você pensa da juventude de hoje? Com esse tal de esputinique, o tal de roque e a Coca-Cola, o que você pensa da juventude? Ele sabe de tudo... De tudo... CANDÊ - O Júnior não é juventude é infância! GUIMA - Dá na mesma. (Para o filho.) Não estou falindo não, meu filho! Estou prosperando! Vou aumentar o estoque da "A Admirada" e ela vai ser... JUNIOR - A maior potência de tecidos da cidade, não é pai? GUIMA - É verdade. JUNIOR - Lá na escola outro dia me chamaram de filho da potência, pai! CANDÊ – Júnior: respeite o pai! JUNIOR - Eu respeito. Não briguei não. Disse que era isso mesmo. Meu pai era uma potência. Mas eu nem sei o que é potência, pai! Só sei que o senhor botou lá aquela placa: Casa "A Admirada", a maior potência de tecidos da cidade! CANDÊ (Carinhosa) - Não liga, Guima!

GUIMA - Não... não ligo.. Vai filho, vai brincar na rua! JUNIOR - Ué, já sai do castigo? (Guima olha para Candelária.). CANDÊ - Por hoje, já. Mas, se fizer outra, fica dois dias. JUNIOR - Eu vou ficar bonzinho. (Levanta. Pega o estilingue.) Bença, pai. Bença, mãe! CANDÊ - Aonde você vai com o estilingue? Não tem passarinho de noite! JUNIOR - Tem uns gatos aí que quero acertar! CANDÊ - JUUUUUUUUNNNNNIIIIIIOOOOOOOOORRRRRRR!!!! (Antes que ela possa dizer alguma coisa, o menino sai correndo. Tempo. Candê olha para Guima. Os dois frente a frente na mesa. Tempo) Você quer a baba de moça? GUIMA - Depois, tem café? CANDÊ - Tem. Vou buscar! (Sai. Volta com um bule e duas xícaras. Serve café para ambos. Senta-se.) Tentando me desculpar hoje, eu estava meio nervosa por causa do menino... GUIMA – É... Ele está sem jeito... CANDÊ - É que cansa, Guima, o dia inteiro... GUIMA - Eu sei... CANDÊ - E depois, tem sempre uma vizinha enchendo a gente... GUIMA - Imagino... CANDÊ – Guima: me desculpe! (Silêncio.). CANDÊ - Me desculpe, Guima, eu não deveria ter dito aquilo, mas acontece que tenho medo de que alguém...

GUIMA - Você me acha um bobo, não é? Pensa que eu não sei? Acha que eu não consigo olhar a realidade... que eu só levo a pior... Sempre. Só você, Candelária, é que tem os pés no chão. Só você sabe como deve fazer as coisas. Eu não passo de um bobão. De um coitado que só sabe sonhar. Sonhar com a política, achando que o "homem da vassoura", como você diz, vai dar um jeito nas coisas, salvar o Brasil do buraco... Sonhar com a loja de tecidos... Sonhar com o futuro da gente... Sonhar com um jogo novo de sofá para substituir este monte de cadeira quebrada e furada que a gente ganhou da Vó Pureza... Sonhar com uma televisão... com um telefone... com uma viagem para Poços de Caldas... com o futuro do Júnior. Com ele dono de uma grande loja de tecido. Sonhar com meu filho proprietário da maior potência de tecidos... só isso que eu sei. CANDÊ (Emocionada) - Não é isso, não... (Tentando mudar o assunto.) Olha, Guima, eu vou buscar um licorzinho de mexerica que a Anunciadinha me mandou... GUIMA - Não quero nada daquela jararaca... CANDÊ - Não fale assim... Ela é madrinha do Júnior. E gosta muito de você. GUIMA - Eu vou ouvir o Grande Jornal Tupi. (Levanta-se e vai se sentar no jogo de palhinha. Liga o rádio, enquanto Candê sai para buscar o licor. Ela volta. Serve dois copinhos. Senta-se em frente ao marido. Este beberica o licor e finge que não a vê. O rádio toca uma música romântica da época. Depois de um tempo, ele começa a falar.) Você se lembra, Candê, como eu pedi você em casamento? (Candê não reponde.) Seu pai não queria saber de mim. Só deixou porque a gente já namorava há dez anos. Eu falei pra você que não tinha nada a lhe oferecer, a não ser a vontade de vencer na vida. Pois eu continuo com ela... Com a mesma vontade. Só que você parece que não acredita mais nisso. CANDÊ - Guima, não é assim... é que as coisas estão duras... GUIMA (Como que não ouvindo) - Eu montei a minha lojinha com a parte que herdei do sítio de papai. Comprei aquele ponto, mandei fazer os balcões lá no Gomes... em vinte prestações... E as estantes

combinadas... Pedi pro italiano pintar a placa... e comecei a comprar pano... Só que eu enxergo mais longe que todo mundo aqui em Torrinhas. Eles querem chita... e eu vendo JK. Mas eles têm de aprender a comprar JK. CANDÊ - Ou você a aprender a vender chita, Guima! GUIMA - Não é isso, não, Candê... Eu só queria que você acreditasse em mim... Que sou capaz... Capaz de transformar a “A admirada” em uma grande loja... como as Pernambucanas... E depois, abrir outra filial... e mais outra... e mais outra... até formar uma cadeia... A maior potência... E daí entregar tudo para o Júnior... que terá um futuro garantido... e a gente poderá desfrutar em paz a nossa velhice! CANDÊ (Comovida) - Eu preferia que ele fosse empregado do Banco do Brasil... É mais seguro... GUIMA - Empregado? Empregado do governo? Pra quê? Ele pode ser seu próprio patrão! A Dona Sálua não disse que ele é líder? Então, Candê! Ele poderá aumentar ainda mais a loja. As lojas. E chegar até a exportar... Você já imaginou nosso Júnior assim? CANDÊ (Cortando) - Eu tenho medo, Guima! Quanto mais alto, maior o tombo! GUIMA - Que tombo, Candê? O Júnior é muito esperto! Ele vai pegar esse patrimônio e duplicar. Triplicar. Ele vai pegar essa base sólida que eu deixei e fazer grandes coisas... CANDÊ (Voltando à realidade) – Guima: pára de sonhar! Que patrimônio? Que base sólida? Você não tem nada. Tem um monte de promissórias vencendo... dívidas... e ainda fala em cadeia de lojas... em patrimônio para o Júnior? Põe o pé no chão, Guima! E agora vem com essa conversa de sócio? GUIMA - Eu vou vencer, Candê, e vou entregar toda essa riqueza para o Júnior. Um dia eu vou dizer: toma, filho, isso é o que teu pai juntou pra você. CANDÊ - Esquece, Guima! Ele vai ser empregado do Banco do Brasil!

GUIMA - Não vai! CANDÊ - Sempre teimoso! GUIMA - Com orgulho! CANDÊ (Carinhosa) - Mesmo, assim, eu gosto de você! GUIMA - É verdade, Candelária? CANDÊ - Não me chame de Candelária, que penso que é meu pai. Chama de Candê. GUIMA - Me dá um beijo Candê? CANDÊ (Ruborizada) - Guima! (Os dois, vão se aproximando, e se beijam. O rádio continua tocando. Júnior entra nesse momento.). JUNIOR - Então eu vou ganhar um irmãozinho?

CENA IV

Madrugada. O nascer do sol invade a casa pela janela. Tempo. Candê entra pela porta interna, de peignoir, ainda sonolenta. Atravessa a sala e liga o rádio, que transmite músicas sertanejas. Candê vai até a cozinha e volta com um bule de café. Senta, desolada, com a xícara à mão, à

mesa. Um galo canta. CANDÊ (Cantando baixinho junto com o rádio) - Eu nasci naquela serra, num ranchinho à beira-chão... Todo cheio de buraco donde a lua faz clarão... (Toma um pouco de café. O locutor do rádio começa a falar.). LOCUTOR - Hê hê pessoar bão dos interior. Hoje já é dia 15 de Agosto de 1961. Bom dia! E aqui é a Rádia Tupi de São Paulo transmitindo nos seus mir seiscentos quilohertz, pra todo o interior

paulista. Botucatu, São Manuer, Pereiras, Tieter, Jaúr, Agudos, Lençóis, Torrinhas, Avaré Três Pedras... Eta Pessoar! Vamo pulando da cama, que o galo já cantô e os cafezar num espera! Pílula de vida do dotor Rós: é saúde garantida! Vermífugo Parreirinha, aquele que é bão pra solitária! Temo aqui muitas carta de ouvinte pedindo música e poesia! E vamo atendê o primeiro pedido, que é?Jaçanã? Do irmortar Angelino de Oliveira! (Entra música.). MÚSICA - De manhã/ Eu estava me levantando / Sabiá estava cantando / Lá no fundo do quintal / Mais pra baixo, na lagoa / Bem no meio da tabôa./ Jaçanã pegou gritar / Neste dia, a tristeza / Veio cedo me acordar / E a lembrança do passado / Veio então me recordar / Que foi aqui / Neste ranchinho / Que ela veio me querer / E nóis passemo / E si gostemo / Inté as rosas florescê / Mais um dia / A cabocla ruminou / Foi imbora e me deixou / Num ranchinho a suspirar / Hoje as rosas florescem / E a cabocla num aparece / Pra saudade me deixar / (Candê olha fixamente para um ponto, como se estivesse tendo uma visão.). CANDÊ - Oh, Guima... Eu não quis magoar você não... Eu só estava querendo avisar que as coisas estão duras... O seu Presidente não está conseguindo fazer nada. A gente está ficando sem dinheiro... Veja: ontem eu gastei um dinheirão lá no mercadinho e a caderneta já está cheia de conta... E não comprei quase nada. Eu tenho confiança em você, sim. Não tenho é no Brasil. Está cheio de gente ruim. Cuidado com o Moreira das Casas Pernambucanas. Cuidado com todos esses Moreiras que aparecem por aí... Oh Guima! Desiste de querer montar uma potência de tecidos... Não vai dar certo, Guima. E a gente tem que pensar no Júnior... O Júnior... O Júnior... Ah, meu filhinho, eu tenho tanto medo de que façam mal a você... Toda essa gentarada ruim que está por aí... em todo o canto. Eu até agora não sei como você é. Tem horas que eu acho que você se parece comigo: pé no chão olhando a vida! Tem hora que você é seu pai escarrado: sonhando o tempo todo, acreditando que os outros acreditam em você. Mas quem está errado? Eu ou ele, meu filho? Não sei... não sei ... Eu só queria que você crescesse... liderando tudo... liderando a sua própria vida. Fiquei com medo também! Será que não é melhor ficar quieto num canto, filhinho, sem querer muita coisa? Só um cantinho no mundo, pra se viver direito? Não sei... não sei ... não sei nada... (Sonolentamente, Candê vai falando mais algumas coisas, quase

que desconexas e acaba pegando novamente no sono, em plena sala de jantar. Tempo. Galo canta. O dia amanhece totalmente. O locutor do rádio está mais animado.). LOCUTOR - Acorda Dona Maria, que é dia! Vamo lá, gentarada do sertão! O sor já tá quente, e a Mimosa está esperando no currár. (Mugido de vaca.) As crianças tão acordando e o marido tem que trabaiá! (Barulho de sino e despertador.) Acorda, dona Maria! (Candê acorda sobressaltada. Olha para todos os lados, assustada.). CANDÊ - Meu Deus: aconteceu isso de novo? Dormi outra vez aqui? Mas eu estou tão cansada, tão cansada... (Vai abrindo a janela, colocando cadeiras em cima das outras, indo e vindo da cozinha. Vai à janela) Bom dia, dona Nicota! O seu marido melhorou? Graças a Deus! Acho que não chove mais não! O dia tá bom, não acha? (Para dentro de novo, em direção à porta interna.) Guima, acorda que já são sete horas... Júnior, tá na hora da escola, menino... Guima... vê se passa na venda e encomenda o lombo da janta... Júnior: vai levantando, menino... Já está atrasado... (Vai até a cozinha. Volta com um pacotinho de lanche. Põe na lancheira. Começa a trazer o café e pão para a mesa. O rádio esta animado. Toca alguma coisa como Moendo Café, transmitindo horóscopo, previsão do tempo, etc...). GUIMA (Entrando sonolento) - Que horas são Candê? CANDÊ - Sete! GUIMA - Estou morrendo de sono! Dormi como um santo! CANDÊ - Também, mamou o litro inteiro do licor da Anunciadinha! GUIMA - Só espero não pegar fofoca na língua! CANDÊ - Não começa, Guima! (Berra.) Oh Júnior, levanta moleque! (Júnior entra, também com sono.) Vai lavar o rosto, vai! (Júnior sai.) Guima, você pensou no que eu disse? GUIMA - No que mulher?

CANDÊ - Na estória da sociedade? GUIMA - Vou pensar depois. CANDÊ - Não faça bobagem! GUIMA - Não faço! (Voz da Vizinha, que corta a conversa.). VIZINHA - Dona Candelária: me empresta uma xícara de açúcar que acabou aqui de casa? Depois eu devolvo. GUIMA - Manda ela devolver cinco quilos, pois com essa xícara ela já completou o pacote CANDÊ - Cala a boca, Guima. Empresto sim dona Nicota... (Sai, vai buscar a xícara, enquanto Guima senta para o café.). VIZINHA - O seu Guima estava alegrinho ontem, não? CANDÊ – Que é isso dona Nicota! VIZINHA - Eu ouvi ele cantar até a meia noite! GUIMA (Berrando) - Fiz dueto com seu marido que tava chegando da zona! CANDÊ - Cala a boca, Guima! GUIMA - Essa sirigaita! VIZINHA - Brigada, dona Candelária, depois eu devolvo a xícara! CANDÊ - Tem de quê, dona Nicota! (Tempo. Candê olha para Guima.) Não faz bem beber assim, Guima? GUIMA - Foi só um traguinho, Candê que saco! (Não percebem que Júnior entrou e ficou ouvindo a um canto.). CANDÊ - Eu tenho medo de álcool!

GUIMA - Não tomei porre nenhum! CANDÊ - Você nunca gostou de beber! GUIMA - Um golinho não faz mal! CANDÊ - É assim que começa! GUIMA - Eu estava precisando esvaziar a cabeça. CANDÊ - Do que, Guima? Algum problema? GUIMA - Nada... Candê... nada... Preocupações, somente... CANDÊ - Às vezes você chega cheirando à pinga. GUIMA - Um aperitivozinho. O pessoal convida. Não fica bem ficar negando. E depois, tenho que fazer freguesia com eles. Conversa vai, conversa vem, acabo vendendo um paninho... CANDÊ - Desde quando marmanjo compra tecido? GUIMA - Pra dar de presente para a patroa! CANDÊ (Perdendo a paciência) - Pra ela não ficar brava quando ele chega cheirando à pinga, não é? Pra não dizer que ele só gasta dinheiro no boteco, com os amigos, não é? GUIMA - Eu não sou bêbado! E chega dessa conversa idiota Você só sabe pensar em feijão com arroz; não consegue ver mais nada no mundo. Ontem até pensei que você tivesse melhorado um pouco. Mas não... Você é tapada... como toda lottista! CANDÊ - Eu estou cheia de limpar vômito no banheiro... de madrugada... pro menino não perceber que tem um pai pinguço! GUIMA - Cala a boca! (Nisso, ambos notam Júnior, que está no canto, olhando.).

CANDÊ – Filho: vem tomar café! (Guima abaixa a cabeça e continua tomando o seu. Júnior fica quieto, sem jeito.) Vem, filho, senta aqui! (Júnior irrita-se.). JUNIOR - Não quero! Me dá o lanche que eu vou pra escola! (Pega o lanche e sai batendo a porta. Guima não encara Candê. Esta pega a vassoura e começa a varrer violentamente a casa. Guima sai. O rádio continua animado.).

CENA V

Tarde. Junior está à mesa, tentando fazer a lição de casa. Mas, na Verdade está mais preocupado em caçar um

mosquito que zanza à sua volta. Candê faz um tapete de retalhos, sentada na sala... Ouve-se a filha da vizinha

cantar algum sucesso antigo de Ângela Maria. CANDÊ (Absorta) - Não dá pra combinar verde com amarelo! Se não, o tapete vai ficar com cara de bandeira brasileira... Só se eu colocar um branco no meio... Daí o Guima vai achar que é homenagem ao Palmeiras... Verde e branco... Se eu colocar azul e branco, parece Filha de Maria... Não sei como fazer isso... (Ainda absorta, fala automaticamente com Júnior) Está fazendo a lição, Júnior? JUNIOR (Caçando mosquito) - Tô mãe, tô estudando geografia. CANDÊ - Depois vou tomar o ponto. (Continua a mexer com os retalhos. Até que dá um grito.). JUNIOR (Assustando-se) - Ai mãe! A senhora me deu um susto. Vou ter trauma! CANDÊ - Vou fazer roxo, amarelo, verde e azul. Pronto. Fica que nem festa de São João. E tem cor pra todo mundo... Depois, como esse é pra quermesse de São Benedito mesmo, estou pouco ligando... Vai aparecer tanta barbaridade! Não sei por que eu disse que ia fazer o

tapetinho. Era muito mais fácil mandar um bom prato de torta de banana! JUNIOR (Ouvindo só o fim da frase) - Eu não agüento mais torta de banana! Acho que é o único doce que a senhora sabe fazer. A madrinha Anunciadinha, pelo menos, faz arroz-doce, sagu, pé-de-moleque, fios de ovos e tudo! CANDÊ – Hummmm. Se gosta tanto assim de doce, vai morar lá com ela! JUNIOR - Eu hein!? Cada vez que chego lá, tenho que ficar ajoelhado, rezando o terço junto com a nona Fiica! CANDÊ (Rindo) - Ela ainda manda você ler o livro de orações? JUNIOR (Mal humorado) - Manda! Mas agora eu pulo umas páginas! CANDÊ - E ela não percebe? JUNIOR - Não. Só fica perguntando: ele já morreu na cruz?? Daí, eu conto a estória assim: Jesus foi fazer um piquenique e acabou o peixe e o pão. Ele pegou um pedaço de pão e disse: comei e bebei este é o meu corpo! Pegou o peixe e disse: crescei e multiplicai-vos! Daí, o peixe virou um montão de peixe e ele distribuiu tudo para os amigos dele, que eram os apóstolos, e depois Judas falou que não ia trair e traiu, e ele foi passear num jardim, os homens do Imperador, foram lá, cataram ele, e mataram na cruz. E ele foi pro beleléu! CANDÊ - Júnior, isso é um sacrilégio! JUNIOR - Eu acho essa história muito mal contada. Se o Jesus era muito valente e poderoso, muito mais que qualquer Roy Rogers por aí, por que ele não virou pros amigos dele, disse "camanbói" e deu uma surra nos homens do Imperador? Depois, fugia num cavalo, mandava buscar a Virgem Maria e ia morar lá no Egito. CANDÊ - Porque ele precisava salvar o mundo e você tem que acreditar nisso, porque isso é um dogma!

JUNIOR - Dó o quê? CANDÊ - Dogma. É uma coisa que o Papa falou que é e fica sendo, e ninguém pode discutir. JUNIOR - Quer dizer que se o Papa falar que a Terra é quadrada, ela fica sendo quadrada? Não é verdade! O Papa não pode mandar em ninguém. O Ve... (Interrompe assustado, com se tivesse cometido um engano. Candelária deixa o tapete e vem para perto dele curiosa.). CANDÊ - O que o senhor ia dizendo? JUNIOR - Nada, mãe... Eu só tava pensando umas coisas... CANDÊ - Que nome o senhor ia dizendo? JUNIOR – Nenhum mãe... O Velho Pepito não tem nada a ver com isso! CANDÊ - Ah, é? Então o senhor anda conversando com o velho Pepito? Eu sabia, eu sabia! Dessa cabecinha oca que nem a sua, que só pensa em papagaio, matar passarinho e correr atrás de cavalo pra fazer porcaria, não podia sair um pensamento desses. Isso é coisa daquele velho galego! Mas eu já tinha proibido de ir lá! NÃO QUERO CONVERSA COM ELE! ELE É COMUNISTA! CO-MU-NIS-TA! JUNIOR - Não é, é anarquista! CANDÊ - E você ainda vem desculpando o galego? Seu sem-vergonha! Você vai para o inferno! Vai direitinho pro inferno, e pra parte mais quente! Onde tem mais diabo! Junto com os judeus... os padres casados e os comunistas! Daí, quero ver você ficar chorando lá embaixo, enquanto eu e seu pai estivermos no céu, pedindo pra subir também! Quero ver! JUNIOR - A senhora disse que o pai também ia pro inferno! Ele e a dona Nicota!!

CANDÊ - JUUUUUNNNNIIIIOR! Eu nunca disse isso. Nunca! Nunca! Eu sabia! Bem que o padre Zezinho avisou que... que o comunista tentava jogar os filhos contra os pais. Bem que ele disse que lá na Rússia os próprios filhos entregavam os pais para a polícia, e contavam que os próprios pais e mães iam à Igreja escondidos! Agora... o meu filho... o meu Júnior... virou comunista... Renega Deus... Vai matar seu pai e sua mãe só pra servir o seu Partido... Eu não posso acreditar... Não... não posso acreditar... JUNIOR - Não... Eu acredito em Deus... CANDÊ - MENTIRA! Você é um comunista! Um comunista que nem o Prestes e os outros! Que nem o Jango! JUNIOR - A senhora votou no Jango! CANDÊ - Eu votei no Lott! O Jango foi por acaso! Ele se aproveitou da sombra do marechal! Mas você... você... Eu nunca pensei que o meu filho fosse virar comunista! JUNIOR - Mas... mãe... Eu não sou... CANDÊ - Então, prova! JUNIOR - Como? CANDÊ - Vem aqui e reza o ato de contrição! JUNIOR - Ah... mãe.... CANDÊ - Vem! Prova que eu quero ver! Reza e mostra que está arrependido! JUNIOR - Não vou! Pronto! CANDÊ - Vem! JUNIOR - Não vou! CANDÊ - Se não vier, não tem matinê Domingo!

JUNIOR - Não tem importância. Mas se a senhora não deixar eu ir na matinê de Domingo, não tomo parte na festa do Dia dos Pais amanhã na escola! CANDÊ - JJUUUUUNNNIOR! JUNIOR - Não tomo parte! CANDÊ - Você não gosta do seu pai. JUNIOR - Gosto, mas não tomo parte! E olha que eu até ia cantar a música do Francisco Alves, a "Criança Feliz". CANDÊ - Você vai ver, seu safado! (Vai apanhá-lo. Júnior corre e sai pela porta da frente. Candê fica no batente, gritando, mal humorada.) Nada, Maria Sapoti, meta o nariz onde é chamada! VIZINHA - Maloqueira! CANDÊ - COMUNISTA!!

CENA VI

Hora do almoço. A mesa já tinha sido preparada por Candê, para festejar o Dia dos Pais. Entram os três, em

roupas domingueiras. Candê vem choramingando, Guima vem fazendo força para não rir e Júnior vem contrafeito,

terninho azul marinho de casimira e gravata branca. Entram.

CANDÊ - Eu sabia... eu sabia que ele ia fazer de propósito... Olha, Guima, eu não quero mais saber do seu filho... A gente cria... a gente educa na fé cristã... e ele faz isso. Na frente de todo o mundo... A dona Sálua até tossiu de vergonha! Até ela, que gosta tanto dele! GUIMA - Não foi nada, Candê. Eu tenho certeza de que não foi propósito! Foi, Júnior? (Júnior não responde.).

CANDÊ - Viu? Viu? Quem cala consente! Ele fez de propósito! Tudo por causa daquele galego nojento! GUIMA (Espantado) - Que galego, Candê? CANDÊ (Nervosa) - Nada... Guima... Nada... Guima... Eu não queria deixar você nervoso... Eu... (Lembrando-se, vira-se para Júnior.) E você, seu malcriado, de castigo, vai lá pra casa de Anunciadinha, leia o dia inteiro pra Nona Fiica! GUIMA - Mas... Candê... Tudo por causa de uma bobagem? CANDÊ - Bobagem, Guima? Bobagem? Você acha bobagem ele ir lá na frente do palco, olhar pra todo mundo e começar a cantar a Criança Feliz, E dizer... e dizer... que JESUS LAZARENTO foi criancinha também? Eu tenho vontade de morrer só de lembrar! GUIMA - Ele trocou a palavra, não é Júnior? (Júnior não responde.). CANDÊ - Viu? Viu? Ele não fala porque não tem nada a dizer! Tudo por causa do galego! GUIMA - Mas, caramba, Candê, que estória é essa? CANDÊ - Quer saber mesmo? O seu filho, o seu querido Alcebíades Antônio Guimarães Júnior, depois de ter estado de prosa com o velho Pepito, aquele que todo mundo diz que é louco, mas que é muito sabido, virou comunista! Sim, senhor, comunista! E a prova foi essa: dizer em público que ele renega a fé cristã. GUIMA (Caindo na gargalhada) - Mas, Candê, você está biruta? Um menino comunista? Onde já se viu isso? CANDÊ - É claro que você concorda, pois o seu Presidente condecorou o barbudo cubano. O tal do Xê. GUIMA - Mas, Candê... CANDÊ - Tal pai, tal filho... Em que antro eu estou? Em que antro?

GUIMA - Você está fazendo tempestade em copo d'água! Quer ver? Foi de propósito, filho? (Júnior, que estava sentadinho e aprumado em sua cadeira, vira-se para os dois, e responde resolutamente.). JUNIOR - Foi sim senhor! CANDÊ (Diabólica) - Eu não disse? Eu vou já falar com o Padre Zezinho. (Sai batendo a porta. Guima permanece olhando Júnior, meio boquiaberto. Tempo.). GUIMA - Vem cá, filho! (Júnior se aproxima temeroso, mas confiante em si.) Foi mesmo de propósito, filho? JUNIOR - Foi, pai. Mas eu não sou comunista não! Se fosse, o senhor acha que eu estaria lá na Cruzada Infantil? GUIMA - Vai ver que você está lá só por causa do futebol. Mas por que fez isso? JUNIOR - Não sei, pai. Eu já tinha passado a raiva da mãe. Ontem ela me encheu o saco, só porque contei umas estórias pra ela. Daí, ela me proibiu de ir na matinê. E eu disse que não ia participar da festa hoje. Ela falou que eu não gostava do senhor. Então eu fui, porque gosto. Quando começou tudo, eu já tinha até esquecido a briga de ontem. Mas daí foi subindo uma coisa aqui dentro. Uma coisa que não sei explicar como é. Um negócio que nem foguinho que foi crescendo, crescendo e virou uma fogueira. Então, quando eu vi todo aquele pessoal lá, e a mãe, com uma carona assim rindo, eu achei que ela tava rindo de mim. Achei que ela achava que tinha ganhado a briga. Então, a fogueira dentro de mim subiu pra minha cabeça, e eu olhei bem pra ela e cantei o Jesus Lazarento. Eu queria mostrar pra ela que ela não podia mandar assim em mim. O senhor entende? GUIMA (Pensativo) - Entendo, filho, entendo! JUNIOR - Foi só isso pai. O Velho Pepito não tem nada a ver com a estória. Nem os comunistas! Eu até gosto do cheiro de incenso e procissão do Senhor Morto! (Depois, com medo.) O Senhor acha que eu vou pro inferno por causa disso?

GUIMA - Acho que não, filho! Mas por que você não pede desculpas pra mãe? JUNIOR - Não! GUIMA - Ela vai chorar e ficar brava! JUNIOR - Eu também choro e fico bravo quando apanho! GUIMA - Então, é melhor você ir lá pra casa da Anunciadinha! JUNIOR - Eu vou! Mas não volto mais! Só se ela for lá me buscar. A benção, pai! GUIMA - Deus te abençoe, filho! (Júnior sai e Guima fica olhando para a porta.).

CENA VII

Meia noite. Candê e Guima estão sentados na sala. O rádio toca baixinho e Guima morre de sono. Candê esta

nervosa. CANDÊ - Guima... Guima... Ele disse que não voltava mesmo? GUIMA – Disse Candê. Só se você for lá buscar. Se não ele ficava, nem que tivesse que ler todos os livros de religião do mundo pra Dona Fiica. CANDÊ - Ele não agüenta. Ele volta! Tenho certeza de que ele volta! GUIMA - Não volta Candê! Ele é igual a você. Teimosa que nem um jumento. Não volta, enquanto você não for lá. CANDÊ - Não me ofende, hein? Mas eu não vou lá buscar!

GUIMA - Então, vamos dormir, que eu não agüento mais, e amanhã é dia de serviço pesado lá na "A Admirada". CANDÊ - Não... Eu não vou dormir. Nem você. Vamos ficar aqui sentados, esperando o Júnior. GUIMA - Candê, já é quase meia noite! O menino não vem mais. Você acha que a Anunciadinha vai deixar ele sair a essa hora da noite? É perigoso, Candê! CANDÊ (Traindo-se) - O meu Júnior não tem medo do escuro, não! GUIMA - Ai Candê: vamos deixar isso pra amanhã? CANDÊ - Pai molenga. Por isso que tudo aconteceu. Porque você é molenga. Porque não educa o filho e fica só pensando em sonhos e sonhos e sonhos... GUIMA - Não, senhora. Tudo aconteceu porque a senhora não tem a cabeça no lugar e não tem papas na língua. Onde já se viu acusar o menino de comunista? Onde já se viu? CANDÊ - Eu fiquei com medo, Guima. Falei isso pro Padre Zezinho. GUIMA - Candê eu não te entendo. Você nunca foi beata, nunca foi rabo de saia de padre. Tá certo, sempre levou suas obrigações católicas a sério. Vai à missa, comunga na Páscoa, ajuda os pobres, faz torta de banana pra quermesse... CANDÊ - Tapetinho! GUIMA -... Tapetinho pra quermesse, e tudo. Mas nunca foi de ficar correndo atrás de padre pra pedir conselho. Uma vez até disse que padre e urubu davam azar! CANDÊ - É que eu ando com uns medos, Guima! Não sei, o mundo esta virando muito! Eu sempre vi as coisas assim do jeito que elas são. Pão, pão. Queijo, queijo. Agora, começou a mudar tudo. Tem homem indo pro espaço, tem comunista entrando no governo, tem

homem virando mulher, tem música que não entendo... Então, eu não consigo mais saber como é que eu fico. Daí eu apelo pra fé! GUIMA - Mas, Candê, Você não é uma velha coroca que tem que ficar sentada o dia inteiro, só olhando o mundo mudar... Muda junto. CANDÊ - Você acha... Você acha que eu vou sair por aí... por exemplo usando essa moda saco ? Ou então... pondo Bombril no cabelo ... ou dançando essas músicas que parecem doença de São Guido? Vão pensar que eu sou uma... zinha! E depois, você acha que eu vou renegar a minha fé... tudo o que eu aprendi com minha mãe e meu pai? GUIMA - Candê... Não é assim... Olha: eu que fico proseando por aí... CANDÊ - Viu? Você mesmo admite que fica proseando por ai, enquanto eu dou duro aqui em casa! O que adianta ser Rainha do Lar? Só pra levar patada do filho? GUIMA - Ah, Candê, eu desisto... Eu vou dar uma cochilada... Se o Júnior chegar... você me acorda... CANDÊ - Não! Quer dizer, Guima... Você não iria... não iria lá na casa da comadre buscar o menino ? GUIMA - Você está louca, acordar a comadre essa hora? CANDÊ - E você acha que ele está dormindo? Nunca! Deve estar tão preocupado quanto eu! Mãe é mãe, Guima! A gente sofre junto sempre. (Tempo.) Se pelo menos a gente tivesse telefone aqui em casa!! GUIMA - Vai começar, é? CANDÊ - É uma das poucas modernidades de que gosto. O telefone e útil! GUIMA - O telefone, a televisão e o jogo de courvin imitando couro!

CANDÊ: É pedir muito da vida? Eu só queria isso e que o Júnior conseguisse um emprego no Banco do Brasil e que você deixasse de beber... GUIMA - Candê!!! CANDÊ - Desculpa, Guima, eu estou nervosa! GUIMA - Eu vou deitar. CANDÊ - Não vai, não! GUIMA - Vou sim! CANDÊ - Por favor... GUIMA - Vou sim, Candê. Você precisa aprender que não manda em mim. Nem no Júnior. (Guima se levanta e sai.). CANDÊ - Traidor! Judas! Vocês são todos uns Judas! (Guima reaparece na porta interna.). GUIMA - Vem dormir Candê! CANDÊ - Não vou! (Orgulhosa.) Eu vou bancar o pai de família, e esperar esse mal-educadinho, pra lhe dar umas boas palmadas! GUIMA - Duvido! CANDÊ - Suma, seu enxerido! (Guima desaparece, Candê fica sozinha. O rádio pára de tocar e o locutor se despede.). LOCUTOR - Neste momento, a Rádio Tupi de São Paulo se despede, deixando a todos os seus ouvintes os votos de uma boa noite. É zero hora na capital paulista. (O rádio sai do ar. Candê volta-se para ele.). CANDÊ - Até você seu locutorzinho de araque? Seu Judas! Todo mundo me abandona nesta hora! Todo mundo! Mas eu fico sozinha aqui! (Tempo.) Minha mãe, onde a senhora está? Eu preciso daquela

coragem que a senhora tinha... quando ficava de madrugada esperando o pai... esperando que ele voltasse lá da fazenda onde tinha ido apartar os bois... E a gente era tudo pequenininho. Eu, a Adelaide, o Onofre, o Zé Pedro e a Amelinha... A gente nunca sabendo de nada... pois no dia seguinte o pai estava lá. Mas a senhora ficava de madrugada, esperando, do lado do fogão de lenha. Aquele cheiro de fumaça. Uma noite, eu entrei na cozinha, porque estava sem sono, e vi a senhora lá... chorando... E a senhora disse que tinha sido um cisco no olho... (Tempo.) Juninho... Juninho... vem logo, ... (Tempo.) Boi... Boi... Boi... Boi da cara preta... Vai buscar o Júnior... que tem medo de careta. (Tempo.) Oh meu filho! A mamãe gosta tanto de você... Eu só quero defender você de tudo o que está por ai... Mas acho que vou ter que aprender a esperar... como minha mãe fazia... (Começa a mexer nos retalhos, que ainda estão na sala.) Era uma vez uma cidadezinha... bem no meio do Estado. Lá vivia uma mulher... com seu marido... e seu filhinho... Moravam numa casinha pobre... mas amarelinha. No jardim tinha uma primavera... e um canteiro de gerânio. No quintal, umas galinhas, e um pé de guiné e outro de comigo-ninguém-pode. O marido tinha uma lojinha cheia de paninhos coloridos... E o filhinho era bonitinho e bonzinho, que nem um pedacinho de cetim. Então um dia, veio um bicho-papão, um sacizão, e roubou o seu filhinho para sempre... A mulherzinha ficou chorando na porta da casinha... e o marido ficou lá dentro... pensando... pensando... pensando... onde estaria o seu filhinho. E ela sentou do lado do fogão à lenha e ficou esperando até que a caapora devolvesse o seu filhinho. E que o boi da cara preta fosse buscar o seu filhinho lá onde ele estava escondidinho... Boi... boi ... boi ... boi da cara preta... (Canta e vai se aninhando num canto da cadeira, junto com os retalhos. Luz em resistência. Tempo. Guima aparece, sonolento. Vem até ela e a toma pelo braço.). GUIMA - Vem, Candê, vamos dormir! CANDÊ (Frágil) - Eu estou aqui esperando! GUIMA - Você está chorando Candê! CANDÊ - Imagina Guima, é um cisco no olho! (Os dois saem abraçados, enquanto ouve-se o ruído do rádio fora.).

CENA VIII

Manhã. O rádio começa a tocar as músicas sertanejas. O galo canta. O locutor animado volta a anunciar seu

programa. LOCUTOR - He he pessoar bão dos interior. Aqui está o seu "Despertar no Sertão", de rádia Tupi de São Paulo, com o gentir patrocínio das pílulas de vida do dotor Rós e do vermífugo Parreirinha, aquele que é bão pra solitária! Bom dia, dona Maria! Vai levantando que o sor tá quente e o marido percisa trabaiá! E pra começá nossa programação musicar, Cascatinha e Inhana com essa beleza de música que é "O Meu Primeiro Amor". (Ouve-se a música. Candê aparece com cara tresnoitada. Abre a janela, dá bom dia para a Vizinha e espia o céu. Desliga o rádio.). VIZINHA - O Júnior dormiu fora, dona Candelária? CANDÊ - Foi passar a noite com a comadre. A nona Fiica não está muito boa. VIZINHA - Que é que ela tem? CANDÊ - Não sei Dona Nicota. Deve ser enxeridice aguda! VIZINHA - Apendicite? Estimo melhoras! (Candê sai da janela e vai pra cozinha. Guima entra. Olha – sonolento -, a sala e abre a porta da frente. Grita.). GUIMA – Júnior! Filho, o que você está fazendo aí? (Júnior entra, ainda de terninho, todo amarrotado.). JUNIOR - Eu dormi na varanda. GUIMA - Você não foi para casa da Anunciadinha? JUNIOR - Eu não queria ler livro de religião. Fiquei andando. Fui na casa do Robertinho e depois fui pro açougue do velho Pepito.

GUIMA: Psssiiiuuuu... Não conte isso pra sua mãe. JUNIOR - Ela ainda está brava? (Antes que Guima responda, Candê entra com o bule e o pão. Olha assombrada para Júnior.). CANDÊ - Júnior? JUNIOR - A bença, mãe! CANDÊ - Deus te abençoe! (Ela examina o filho e este a mãe. Não se falam. Como quem mede forças.) Dormiu bem, filho? JUNIOR - Dormi. CANDÊ - Então, vem tomar café! (Guima olha para os dois sem compreender.). GUIMA - Vão tomando, que eu preciso fazer a barba! (Sai. Júnior e Candê sentam-se em silêncio.). CANDÊ - E a madrinha? JUNIOR - Não sei. CANDÊ - Como não sabe? JUNIOR - A senhora falou que eu não deveria mentir, não é? Eu não dormi lá. Dormi aqui na varanda. CANDÊ - Por que não entrou? JUNIOR - Não podia. CANDÊ - Por quê? JUNIOR - A senhora disse que homem nunca deve abaixar a cabeça. CANDÊ - Você é menino! JUNIOR - Eu sou homem! (Candê olha enternecida para ele.).

CANDÊ - Eu não fiquei preocupada! Achei que você devia estar lindo e loiro, lendo os livros de orações para a Nona Fiica. JUNIOR - A senhora tá com cara de quem não dormiu. CANDÊ - Dormi muito bem, pergunte pro seu pai. (Júnior sorri para ela. Candê procura desviar o olhar.). JUNIOR - Eu tive um sonho gozado. CANDÊ - E é? JUNIOR - Sonhei que a senhora tinha feito um tapetão colorido e que a gente voava nele que nem o Aladim. E eu, a senhora e o pai tínhamos montado nele e a gente tava se mudando prum outro lugar. A senhora tava com uma cara de contente!!! CANDÊ - E daí? JUNIOR - Daí, o pai falava que a gente ia indo conhecer a nova loja dele, que era a maior potência de tecidos do mundo! CANDÊ - Pelo jeito você já começou a sonhar como seu pai. E o que aconteceu? JUNIOR - Quando a gente ia chegando, eu vi uma torre grande, grande, como se fosse a da igreja de São Benedito, mas muito mais alta, e ele falou: é logo ali, depois da torre! Mas, nisso, o tapete enroscou na torre, e a gente ficou lá, berrando que nem um desesperado! CANDÊ - E aí? JUNIOR - Aí eu acordei com o rádio da senhora tocando uma música e dizendo que o sol tava quente. Então, eu vim ver... quer dizer... vim buscar... meus cadernos... porque a dona Sálua... CANDÊ (Terna) - A mãe hoje vai fazer um lanche de mortadela bem gostoso com Tubaína. Quer?

JUNIOR - Quero! (Levanta-se correndo e vai abraçar a mãe.). CANDÊ (Sem jeito) - Que é isso filho? Que é isso, Júnior? JUNIOR - Nada, mãe, eu tava com saudades! CANDÊ - Eu também, filho! (Nisso batidas à porta. Guima entra correndo pela porta interna.). GUIMA - Deixe que é comigo! (Júnior e Candê, ainda abraçados, olham espantados. Guima retorna e deixa a porta semi-aberta.) Dona Candelária, o primeiro de seus pedidos foi atendido. Acabou de chegar o seu conjunto de courvin imitando couro. (Candê vai abraçar Guima, quando a vizinha grita de fora.). VIZINHA - Gente... O Jânio renunciou!

2º ATO

CENA IX

O cenário é praticamente o mesmo, com algumas modificações. A mesa de fórmica e os apetrechos do canto onde é a copa, continuam como no ato anterior. Talvez, alguns detalhes a mais. No canto que forma a sala, está o conjunto de courvin imitando couro, que

substitui o antigo jogo de palhinha. Ele está meio gasto, mas traz, por cima, um plástico. Há também uma

televisão e um telefone. Continuam algumas plantas, os retratos, o Sagrado Coração de Jesus, etc. A ação se passa em setembro de 1971. Manhã, antes do almoço.

Dona Candelária está sentada à mesa da copa, escolhendo feijão e olhando para a televisão, que

transmite um programa feminino. Não se vê a imagem. Ouve-se a voz da locutora.

LOCUTORA - Como as telespectadoras podem notar, Paris manda que as saias se abaixem novamente. Como uma reação à moda londrina de Mary Quant, os costureiros franceses decretaram que, nesta temporada, as mulheres elegantes usem suas saias pelos tornozelos... Os padrões são variados... Temos desde a camponesa, até à ciganinha.. até um corte mais clássico, em lã ou tweed... CANDÊ (Resmungando) - Pra mim, parece Maria Mijona... (O telefone toca. Candê levanta-se, ainda de olho na tevê.). LOCUTORA - Márcia Maria apresenta modelo Clodovil, com saia bege e blusa de seda pura em ton-sur-ton. Os adereços procuram realçar, etc... CANDÊ (Falando alto) - Alô! 22.2553. Espera um pouco, comadre! Deixa abaixar a televisão! (Abaixa a TV. Volta ao telefone.) Não... aqui não pega bem o sete! Eu estava vendo um desfile de Marias Mijonas... Quem vai gostar é o Guima. Ele sempre reclamou da mini-saia. Não por causa da moral... mas por causa do pouco pano... Vai... Vai... Vai chegar hoje... Pelo menos telefonou dizendo que vinha... Acho que sim, comadre... Ele tem um mês de férias... Por que férias em Setembro? Sei lá... Faculdade deve ser diferente do colégio! Diz que vai ficar uns dias, e depois vai pra não sei onde. Filho é assim mesmo... Esquece que tem mãe... Mas eu vou dizer isso a ele... Claro... comadre... Claro que ele vai passar aí... Ele nunca se esqueceu da madrinha... Quando eu escrevi contando da morte da Nona Fiica ele respondeu dizendo que sentia muito... É... Eles se davam bem... Lembro... lembro... Claro que lembro quando ele lia os livros de religião pra ela! Como não ia lembrar! O Guima vai indo... Com a graça de Deus! Tá certo que o dinheiro anda curto, comadre, mas ele tem trabalhado... Não comadre, isso não é verdade... Nunca mais bebeu... Desde que foi para aquela clínica Kardec lá de Sorocaba, nunca mais pôs um gole na boca... Sei que é fofoca da Nicota... Agora pra contar que a filha dela teve criança depois de dois meses de casada e ainda tem a coragem de dizer que era prematura! Pra isso ela serve, não é? Sem dizer que o filho, dizem... dizem... É invertido! E vem falar do meu Guima!? Bom, comadre, eu deixei o feijão no fogo. Preciso ir lá ver... Fica com Deus... Recomendações ao Pedro... Apareça... Pode deixar... Eu falo com o Júnior... Eu falo! Até logo... Pode deixar... Pode deixar, pode deixar... Po... Pode deixar...

(Com ar de evidente saturação, fica ouvindo a comadre com um olho na teve. Até que desliga.) Eu não posso dizer na frente do Guima, mas a Anunciadinha é uma matraca! (Volta a escolher o feijão.) Na época que só havia o mercadinho pra comprar o feijão era ótimo. Agora, com esse tal de Serve-mais, está uma porcaria. Só tem sujeira! (continua resmungando. Até que ouve uma voz de homem cantar junto à porta, do lado de fora.). JUNIOR - Maria Candelária / é alta funcionária... (Candê dá um pulo, abre a porta e grita.). CANDÊ - Júnior! (Júnior entra, de cabelos semi-compridos, jeans, topa-tudo, camiseta e mochila.). JUNIOR - E aí Dona Candelária? (Os dois se abraçam afetuosamente.). JUNIOR - Pelo jeito cheguei a tempo pra pegar o rango! CANDÊ - Júnior, você não devia ficar tanto tempo fora... meu filho. Olha essa cara de doente... essa barba mal feita... essa cara amarela... esse cabelo... JUNIOR (Brincando) - Vai começar, dona Candê? Eu volto no primeiro ônibus, hein? CANDÊ - Que saudades meu filho! JUNIOR - Tá ficando mole, dona Candelária? CANDÊ - E você mal-educado. Quanto tempo sem aparecer, meu filho! Passou na loja de seu pai? JUNIOR - Passei. O Inácio me disse que ele tinha saído pra tomar um aperitivinho. Devia estar lá no Café do Ponto. Mas não quis ir lá. Primeiramente, quis vim ver a minha Rainha do Lar! CANDÊ - Seu pai... não deve ter ido lá... não... filho. Deve ter ido falar com algum freguês. Sabe... Apesar da loja não estar indo muito bem... têm alguns fregueses que são fiéis e só compram com seu pai e ....

JUNIOR - Qual é mãe? O pai tem direito a uma santa cachaçinha, sim! Sabe o que é ficar o dia inteiro atrás de um balcão? E olhe que ele ainda acredita na potência, não é? CANDÊ - Só ele! JUNIOR (Percebendo o clima) - Mas e aí, dona Candelária? Continua vendo televisão o dia inteiro, falando ao telefone com a Anunciadinha Alto-Falante, brigando com a Nicota e fazendo tapetinhos pra quermesse? CANDÊ - Você brinca com sua mãe porque não está aqui pra ver o trabalhão que eu tenho. JUNIOR - Eu imagino, Dona Candê. Mas, deixe eu lhe entregar o presente que trouxe para a senhora! CANDÊ - Um presente? JUNIOR - Eu não entendo nada disso. Foi uma amiga minha que escolheu um perfume, Dona Candelária. Disse a amiga que é a última moda em São Paulo. O cheiro é bom. (Abre a mochila e tira um vidro de Rastro. Entrega à mãe.). CANDÊ (Maravilhada) - Rastro! Que nome estranho, não? (Cheira.) Hummm, que cheiro de grã-fino! Até parece daquelas domadoras do Lyons! Mas você anda gastando dinheiro com essas porcarias é? Vive reclamando que não tem! JUNIOR - Foi a Marisa quem comprou pra eu dar pra senhora. CANDÊ - Quem é Marisa? JUNIOR - Minha amiga. CANDÊ - Isso tá cheirando nora. JUNIOR - Que é isso, Dona Candê? Ciúmes?

CANDÊ - Imagine! O que mais quero é ver você casado. Mas com moça direita, de preferência professora e VIRGEM! Entendeu? VIRGEM! Eu ainda faço questão! JUNIOR (Brincando) - Acho que quem deve fazer questão sou eu! CANDÊ - Desaforado! (Júnior agarra-a e rodopia com ela pela sala.). JUNIOR - Estava com saudades de nossas brigas, Dona Candê. Das suas resmungadas. Das suas queixas. Dos seus pitos. CANDÊ - Pois se continuar assim vai receber muitos. Me deixa, menino... JUNIOR - Eu falei muito da senhora para a Marisa. CANDÊ - Ah é? JUNIOR - Ela está louca para conhecê-la. Aliás, ela chega amanhã. (Candê pára.). CANDÊ - O quê? Ela vem pra cá amanhã? Mas Júnior... JUNIOR (Sério) - Ela precisava dar uma descansada de São Paulo, mãe. E como não tem pra onde ir, eu convidei-a pra vir pra cá. Só por uns dias. CANDÊ - Mas meu filho, eu queria tanto que você ficasse comigo... pra conversar... Preciso dizer tanta coisa... E agora vou ter que fazer sala! Tem certos assuntos que a gente não pode conversar na frente de estranhos. Roupa suja se lava em casa. JUNIOR (Brincando) - Pelo jeito a trouxa é bem grande, não? CANDÊ - É sim, filho. É bem grande. Mas agora, com essa moça... E, além disso, onde ela vai dormir? Aqui só têm dois quartos! JUNIOR - No meu quarto.

CANDÊ - E tem cabimento? JUNIOR - Eu durmo aqui na sala, em cima do seu primeiro pedido de Aladim. Aliás, os três foram atendidos, não, Dona Candelária: o conjunto de sofá, o telefone e a televisão! CANDÊ - Ficaram faltando dois: seu emprego no Banco do Brasil e que seu pai... JUNIOR (Sério) - Ele continua mãe? CANDÊ - Eu queria tanto falar sobre isso com você. Mas essa moça... JUNIOR - Ela não vai interferir em nada. Somos colegas de faculdade. Só que ela não faz Ciências Sociais. Faz Comunicações. Mas somos grandes amigos. E eu posso muito bem pedir pra ela dar um tempo, pra gente conversar. CANDÊ - O que é dar um tempo? JUNIOR (Rindo) - É ficar de fora, mãe, pra gente lavar a roupa junto. CANDÊ - É que a situação, filho, não está boa... JUNIOR - Depois falamos.. E o almoço? CANDÊ (Lembrando-se) - Gente, deixa eu tratar da cozinha! (Sai correndo. Júnior fica um tempo olhando a casa, como que inspecionando lentamente tudo. Nisso a porta se abre e o pai entra, bêbado. Ao entrar quase tropeça.). JUNIOR - Cuidado, Seu Guimarães! (Guima olha para Júnior, com cara de quem foi pego em flagrante.). GUIMA - Eles ofereceram uma bebidinha, e a gente não tem como recusar... Não tem... Não tem mesmo... filho... JUNIOR - É... Não tem mesmo, pai. (Ambos se abraçam.).

CENA X

Noite. Candê vê TV, enquanto Júnior e o Pai jogam truco na mesa da copa.

GUIMA - É zap! JUNIOR - E corto. GUIMA - Roboque de igreja véia, e pelo cavalo que cê comprô, eu pago a metade! JUNIOR - E pago pra vê! GUIMA - Taí! (O jogo de truco prossegue em clima eufórico. Candê, de vez em quando, olha meio aborrecida para eles, por causa do barulho que fazem. Depois de um tempo, os dois conversam enquanto jogam mais calmos.). JUNIOR - E aí pai, como vai “A Admirada"? Continua uma potência? GUIMA - Uma potência, filho! Uma potência! Estou pensando em ampliar as instalações, em contratar uns dois vendedores novos para a loja, e outro para correr as fazendas. Eu sempre achei que não se pode descuidar do pessoal das fazendas. Sabe como eu comecei com essa estória de tecido? O Seu avô, meu falecido pai, Antônio Guimarães, tinha aquela terrinha ali perto de Três Pedras. Pra ir até o lugarejo, a gente levava bem umas três horas a cavalo. E não era sempre que podia. Mas aparecia por lá, de vez em quando, o seu Habib, um turco mascate, que ia vender tudo o que você possa imaginar. Mas, principalmente, pano. E o pessoal da colônia, a mulherada, ficava louca! E ele vendia muita chita, muito algodão, muita sarja pra fazer calça pra molecada e pros adultos. Fora os badulaques, as águas de cheiro, as bijuterias e o resto. Eu era menino e ficava olhando a carroça do Seu Habib. Achava que aquilo era meio mágico. E ficava com vontade danada de ter uma igual. Depois, você sabe, seu avô morreu, a gente partilhou a terra, eu vendi minha parte e resolvi montar “A Admirada". Sua mãe nunca quis que eu fizesse

isso. Mas o nome da loja foi dado, inclusive em homenagem a ela. A Admirada Dona Candelária Souza Guimarães! CANDÊ - Não vem com prosa Guima! JUNIOR - É verdade mãe? CANDÊ - Isso é coisa do seu pai. Toda vez que ele faz coisa errada, vem com essa prosa que é pra se desculpar. Mas não me pega mais, não! JUNIOR - Quer dizer que a Dona Candelária, era de fechar o comércio! GUIMA - No meu caso, foi de abrir o comércio! CANDÊ - Vixe, que conversa mais boba! Prefiro quando vocês ficam aí gritando, que nem dois italianos velhos! GUIMA - E você, filho, como vão as coisas na capital? JUNIOR - Eu estou lá pai, batalhando, pela vida. A escola é uma porcaria. A gente tem problemas de verba, de censura. Os professores estão com medo, está todo mundo aterrorizado. O curso de Ciências Sociais foi o mais visado pela Revolução, pois é lá que se discute o projeto da ditadura, um projeto que faliu. CANDÊ - Não quero essa conversa em casa, Júnior! JUNIOR - Mas a senhora não pode ficar de olho fechado, mãe! As coisas estão pretas! CANDÊ - Preta ou não preta, nós não temos nada a ver com isso! JUNIOR - Temos sim. Eu tenho. A senhora tem. O Pai tem. Todo mundo tem. GUIMA - Você fala que nem o padre novo que veio para cá. O Padre Augusto.

JUNIOR - Eu já conheço. CANDÊ - Conhece, é? De onde? Você nunca gostou de padre! JUNIOR - O Padre Augusto é diferente, mãe. Conheci lá na Faculdade num seminário que o centrinho promoveu. CANDÊ - Júnior, meu filho você não está metido com esses... GUIMA - Candê, você não vai recomeçar a mesma estória de dez anos atrás, não é? JUNIOR (Brincando) - Eu não virei comunista não, Dona Candelária! CANDÊ - Nem terrorista? Eu fico apavorada. Cada vez que vou ao correio, ao banco, a qualquer lugar, eu vejo aqueles cartazes de procura-se! Cheio de retratos de gente que nem você, meu filho. E lá está escrito que eles mataram, roubaram, destruíram lares, e que querem o fim do sossego do Brasil. JUNIOR - Isso é um jogo sujo dos filhos da puta! CANDÊ – Júnior: olha o respeito, menino! Palavrão aqui dentro, não! JUNIOR - Desculpa, mãe, mas é que fico com raiva! GUIMA - Mas as coisas estão assim mesmo, Júnior? JUNIOR - As coisas estão piores do que senhor imagina. Todo mundo está passando fome. Quantos nordestinos existem que não tem nada para comer? Ou mesmo, quantos favelados na grande São Paulo, ou no Rio de Janeiro, ou em qualquer outra cidade? E o camponês? E o estudante, que não tem acesso a uma educação mais realista, mais verdadeira? O senhor não está sentindo na carne? A senhora, mãe, quando vai fazer compra, não sente essa maldita inflação? GUIMA - Mas o Brasil vai indo bem, filho. É o despertar do gigante, é o milagre brasileiro! Estamos recuperando agora tudo o que perdemos há muito tempo atrás. Estamos saindo do buraco!

JUNIOR - Isso é um jogo sujo, muito sujo. Que começa, por assim dizer quando o SEU Presidente renunciou! CANDÊ - Isso eu concordo! GUIMA - Mas havia as forças ocultas! CANDÊ - Que forças ocultas, Guima? Ele não teve culhão! JUNIOR - Nem o Jango teve pra segurar o movimento popular que vinha vindo, que estava nascendo por todo o Brasil. E isso preparou o golpe. Agora estamos aqui, nesta porcaria. Mas eles que se cuidem, pois a coisa vai mudar! CANDÊ - Júnior, eu proíbo você de tomar parte em qualquer reunião de subversivo! JUNIOR - O que é subversivo, Dona Candê? É lutar por uma sociedade mais justa, mais decente, mais honesta? É querer ver a forma de acabar, e poder ter direito de escolher os meus próprios governantes? Então, eu vou participar de reuniões subversivas, sim senhora! CANDÊ - Júnior, por que você não deixa São Paulo e volta pro interior? Presta o concurso do Banco do Brasil, filho. Você é tão inteligente! Passa! E depois, pede remoção pra cá. GUIMA - Ou então, filho, vem tomar conta da loja que está crescendo. CANDÊ - Guima, não minta pro menino! JUNIOR - Meus planos são outros, mãe. Eu preciso ficar lá em São Paulo. Talvez um dia vá para outro lugar, mas por enquanto tenho que ficar lá. CANDÊ - Eu tenho medo, Júnior! (Júnior levanta-se e vai até Candelária.).

JUNIOR - Do que, Dona Candelária? Eu sou forte! E teimoso que nem a senhora. Portanto, não adianta mais discutir isso. Tenho muita coisa para fazer. Depois, então, vou pensar na vida! CANDÊ - Você vai ficar igualzinho seu pai. Sonho não enche barriga, não é Guima? GUIMA - Eu não sonho. Vivo com os pés no chão. (Júnior e Candê caem na risada.). CANDÊ - Ai meu Deus, onde fui me meter? Esse pai e esse filho... JUNIOR - A senhora arrumou o quarto para Marisa? CANDÊ - Hiii, essa moça vem mesmo? JUNIOR - Vem sim. A senhora vai gostar dela. O pai também. Ela é muito amiga do Padre Augusto. CANDÊ - Já vi tudo. GUIMA - Quem sabe ela pode me ajudar a decorar os balcões da loja, hein Júnior? Ou então me dizer direitinho o que se está usando em São Paulo... JUNIOR - Bem... Eu acho meio difícil... pai... Mas quem sabe? CANDÊ - Ah, já sei! Ela deve ser daquelas que só usam camiseta e calça que nem homem. Daquelas que parecem Paraíba. Usam esses tênis fedidos e não raspam as pernas. Tenho certeza! JUNIOR – Eh, Dona Candê, a senhora é fogo! GUIMA - Filho... Que tal dar um pulinho lá no Café do Ponto? Pra dar um dedo de prosa com o pessoal! CANDÊ - Guima... Você não vai... JUNIOR - Deixa, mãe. Eu tomo conta dele. Um golinho só e pronto. Vamos lá pai! (Os dois se levantam e saem. Candê fica olhando a

tevê, fixamente. Ouve-se uma conversa de novela da época. Candê fica mexendo com os retalhos. Nisso, batidas à porta. Vai até lá e abre. Há uma moça, da idade de Júnior, vestida do jeito que Candê imaginara.). MARISA - Boa noite. O Bira está? CANDÊ - Quem? MARISA – Desculpe: o Júnior! Esqueci que a senhora trata o Bira por Júnior! CANDÊ - Pelo jeito, você é a tal! MARISA - É... Acho que sou! CANDÊ - Entra, faz o favor! MARISA - Muito obrigada. CANDÊ - De nada. (Marisa entra meio sem jeito. Candê não faz nada pra deixá-la à vontade. Sempre muito fria, pergunta.) Quer sentar? Estou vendo tevê? Quer ver? MARISA - Obrigada. (Senta-se.) E o Bira? Quer dizer, o Júnior? CANDÊ - Saiu com o pai. Mas não demora. Quer dizer, espero!!! MARISA - Ah... (Ficam as duas em silencio, olhando para a tevê. Tempo. A luz vai caindo em resistência.).

CENA XI

Madrugada. A sala está vazia. Júnior entra, segurando o pai, que está bêbado.

GUIMA - Cuidado... senão a Dona Candelária bota nós dois pra correr.

JUNIOR - Vai, pai, com calma! GUIMA - Eu não estou bêbado, não, oh, seu moleque! Tomei só um aperitivinho... JUNIOR - O Senhor tomou doze caipirinhas... Doze... Uns três pés de cana pelo menos, mais um limoeiro inteiro... GUIMA - Psssssiiiuuuuu... Não conte pra mãe... Ela não gosta. JUNIOR - Nem eu gosto... Mas amanhã a gente conversa. Eu vou passar um café forte para o senhor. GUIMA - Eu não quero... Eu não preciso... Tá pensando que estou bêbado? JUNIOR - Eu não estou pensando... Eu tenho certeza. Vai, fica quieto aí na sala, que eu vou fazer café. GUIMA - Se você fica fazendo barulho... a Candê acorda... e é aquele sururu... JUNIOR - Então, fica quieto também. GUIMA - Eu quero deitar... JUNIOR - O senhor vai tomar um café antes! (Júnior sai para a cozinha. Guima, sem resistência, cai sentado no sofá liga a TV, alto, só com o ruído de fora do ar. Júnior vem correndo da cozinha, desligando a TV.) Pai, não faça barulho! GUIMA - Eu quero ver o noticiário! JUNIOR - Não tem noticiário agora! Fica quietinho, vai... GUIMA - Então, senta aqui! JUNIOR - Deixa eu pôr a água pra ferver, que eu sento! (Sai e volta em minutos. Guima fica gingando no sofá) Pronto. Está melhor?

GUIMA - Eu estou ótimo! Eu sempre estou ótimo! Eu estou melhor do que nunca! Mas estou preocupado com a sua mãe, filho! JUNIOR (Condescendente) - Por que, pai? GUIMA - Ela anda falando sozinha! JUNIOR - A mãe sempre fez isso. Acho que quando ela nasceu não chorou, resmungou! GUIMA - Mas agora ela estava falando umas coisas birutas. É, acho que sua mãe biruteou de vez. JUNIOR - Por quê? GUIMA - Ela diz que a vida toda fez um tapete de retalhos, e que o tapete agora está enroscado em cima da torre da Igreja de São Benedito... Não está louca? JUNIOR (Rindo) - Não... pai... Eu sei o que é isso. É uma estória muito velha... de uns dez anos atrás... Coisa da cabeça de Dona Candelária ficar lembrando isso... GUIMA - Se você sabe... então também está louco! Está todo mundo louco... O único certo aqui sou eu... Eu sabia... Eu sabia... JUNIOR - Fica quieto, que eu vou passar o café. GUIMA - Filho... se você sair no quintal... ali atrás do tanque tem uma garrafa de caninha... Vamos tomar a saideira? JUNIOR (Bravo) - De Jeito nenhum. O senhor vai tomar café. (Sai.). GUIMA - Eles estão loucos... Eles andam falando coisas que ninguém entende... Preciso tomar cuidado com eles... Vai ver que eles são espiões das Casas Pernambucanas... É... Eles querem destruir o império da potência... Querem acabar com a “A Admirada”... Mas eu não vou deixar... Nem que seja pra botar fogo no estoque todo... Nos morins... nos JK... nas sedas puras... Amanhã eu preciso encomendar

mais uma peça de tafetá... e outra de voil... Mas tenho que ter cuidado... (Fica resmungando. Júnior volta com o café.). JUNIOR - Pronto. Beba! GUIMA (Tentando se impor) - Eu não quero! Sei lá o que você pôs aí dentro? JUNIOR - Pára com isso, pai. Beba logo, antes que a mãe acorde! (Guima toma o café.). GUIMA - Eu tinha pensado em levar você pra ver o estoque da “A Admirada” amanhã, mas acho que mudei de idéia. JUNIOR - Por quê? GUIMA - É melhor esperar um pouco. E amanhã eu tenho muita coisa pra fazer. JUNIOR - Principalmente curar a ressaca! GUIMA - Eu não estou bêbado, não! Que mania é essa de dizer que eu estou bêbado!! (De repente ele sente ânsia de vômito.). JUNIOR - Espere pai! Eu levo o senhor pro banheiro! GUIMA - É só um mal estar! (Sai cambaleando em direção ao banheiro, sozinho. Júnior pensa em segui-lo, mas fica. Senta-se cansado, com a mão na cabeça. Guima volta pálido.). JUNIOR - Melhorou, pai? GUIMA - Eu vou me deitar! É melhor você ir também pra sua mãe não perceber nada. JUNIOR - Eu vou. Primeiro preciso guardar essas coisas aqui. Boa noite pai! GUIMA - Deus te abençoe, filho! E veja se melhora essa sua loucura!

JUNIOR (Sorrindo) - Tá bom, pai! Tchau! (Guima sai, anda cambaleante. Júnior acende um cigarro e abre a janela. Fica olhando para fora. Marisa entra pela porta interna, sem que ele perceba. Chega-se até perto dele. Júnior se volta.). JUNIOR - Você? MARISA (Dando-lhe um beijo) - Oi. Cheguei à noite. Você tinha saído com seu pai. JUNIOR - Foi um bode homérico. Doze caipirinhas, uma conversa mole, uma bela vomitada. MARISA - Eu percebi. JUNIOR - Onde você está dormindo? MARISA - No seu quarto. Com a proibição expressa de não me encontrar com você de madrugada. JUNIOR - Pelo jeito já recebeu o Manual de Instruções! MARISA - Fui recebida pela Mãe Coragem em pessoa. Dona Candelária é o próprio teatro épico alemão. JUNIOR - Mas é boa gente! MARISA - Claro! Ficamos as duas durante duas horas olhando para a televisão, sem dizermos nada, até que ela perguntou se eu estava cansada. Disse que sim. Ela me preparou um chá de erva cidreira, umas torradas e me deu seu quarto. Avisou que aqui todo mundo levanta cedo. JUNIOR - É regime de quartel! MARISA - E você? JUNIOR - Tudo bem. E você? Mais Calma?

MARISA - Um pouco. Mas com a cabeça cheia de nuvens. Vou ter que me decidir rapidamente. JUNIOR - Pelo jeito, seu amigo está fazendo uma revolução aqui. MARISA - O Padre Augusto é uma força. (Júnior toma-lhe a mão, e ambos ficam à janela.). JUNIOR - Quando olho para a Lua, fico imaginando quando ela começar a ter os mesmo problemas aqui da Terra. Imperialismo, colonialismo, luta de classes, luta pelo poder, fome, miséria. Vai bastar que o homem bote sua parte lá, para que toda a sua paz se acabe. MARISA - Você anda lendo muito Hobbes. JUNIOR - É isso mesmo. Quando sobre ela descer “a sombra do sórdido, do bruto e do pequeno", duvido que continue com essa pálida luz prateada. MARISA - Por enquanto temos que pensar aqui mesmo. JUNIOR - Logo, logo, ela será uma grande base militar capitalista, pronta a esmagar qualquer tentativa de revolta dos minúsculos terráqueos. MARISA - Meu Deus, como você esta péssimo hoje! JUNIOR - Acho que meu casulo foi invadido por algum bicho estranho. As coisas aqui estão muito ruins. E quando olho a Lua, não consigo deixar de ser menos pessimista. MARISA - Onde você vai dormir? JUNIOR - Aqui na sala. Minha mãe quer que você continue virgem! MARISA: Coitadinha! Então, boa-noite! Sonhe com seu Leviatã! JUNIOR - Boa-noite! (Ambos se beijam na boca, enquanto a luz cai em resistência.).

CENA XII

Manhã. Já é dia claro. Júnior ainda dorme na sala. Candê está na cozinha. De vez em quando vem até a sala, espia

ou apanha alguma coisa. Mas não faz muito barulho. Toma certo cuidado com Júnior. Em uma dessas vezes,

em que entra na sala, vai até o sofá, olha meio enternecida para o filho e ajeita o cobertor. Nisso o

telefone toca. CANDÊ (Tentando falar em voz baixa) - Alô... sim ... sou eu ... Não comadre... não estou rouca não... É que o Júnior está dormindo aqui na sala... Por quê? Ora, comadre, porque ele quis... Não aconteceu nada... não... Eu não briguei com o Guima de novo não... É que estou com hóspede... É... É uma colega do Júnior lá de São Paulo... Uma moça boa, simpática, fina, de berço... E é claro que o Júnior cedeu o quarto dele para ela. (Júnior acorda e fica olhando a mãe ao telefone. Esta não percebe.) Ele está muito bem, Anunciadinha... Está progredindo lá em São Paulo. Por isso, é que não tem vindo muito pra cá... Muito trabalho... Inclusive a moça conversou comigo e contou que ele é um ótimo aluno. Só tira dez e muito bem. Lembra que a dona Sálua já dizia que ele era muito inteligente? Pois é... O menino está fechando o comércio na tal da USP... A moça...? Que é isso, Anunciadinha, claro que não... Veja só... (A Vizinha grita, de fora.). VIZINHA - Dona Candê! Dona Candê! CANDÊ - Bom, eu vou desligar, comadre, que a Nicota está me chamando. Quero só ver o que aquela sirigaita vai dizer... É claro que ela quer especular... Vai levar dois quentes e um fervendo. Fica com Deus, comadre. Recomendações ao Pedro! Té logo! (Desliga o telefone e abre levemente a janela.). VIZINHA - É verdade que a noiva do Júnior chegou? CANDÊ - É sim, Dona Nicota. VIZINHA - Ele vai casar apressado, Dona Candelária?

CANDÊ - A moça não é do time da sua filha, dona Nicota. Passe bem. (Júnior cai na gargalhada.). JUNIOR - A senhora continua a mesma, hein, dona Candê? CANDÊ - Que mulher mais enxerida! Isso é coisa que se pergunte? Mas pode se preparar, viu filho, que a vizinhança inteira vai falar... Eu também não sei se concordo muito com essa moça aqui em casa. JUNIOR - É só por uns dias. CANDÊ - Pior ainda. Vão dizer que ela é isso e aquilo. Que você já... bom... (Mudando de tom.) Que horas o senhor chegou ontem? JUNIOR (Pulando da cama, só de cuecas) - Cedo. CANDÊ - Mentira. Eu esperei você e o Guima até a uma. JUNIOR: A senhora tinha acabado de se deitar. CANDÊ - Ele bebeu de novo, não é filho? (Antes que Júnior responda, entra Marisa na sala.). MARISA - Bom dia, Dona Candê! CANDÊ - Bom dia, moça! (Lembra que Júnior está só de cuecas.) Júnior, isso é jeito de receber moça? Se enrola no cobertor menino! MARISA - Eu não ligo, Dona Candê. CANDÊ - Mas eu ligo. Estão pensando que esta casa é um bordel? Estão pensando que vou tolerar sem-vergonhice por aqui? Pois este é um lar decente e cristão. Aqui não tem modernidade não, moça. (Júnior se enrola num lençol e continua a conversa bem-humorado.). JUNIOR - Esqueci de contar, Marisa que a Mãe Coragem aqui, foi das primeiras que fizeram a Marcha com Deus pela Família, tava lá na primeira fila, de rosário e tudo.

CANDÊ - Na primeira não, porque aquelas pó-de-arroz do Lyons não deixaram: a dona Rosita Carvalho, a Inesinha Sampaio, a Lilinha Moreira Passos. Mas tava na segunda. Eu e a Anunciadinha. E se tiver outra, eu vou também! JUNIOR - E adiantou Dona Candê? MARISA - Pare de chatear sua mãe, Bira. CANDÊ - Ele não chateia não, moça. Conheço esse estrupício desde que nasceu. Já me fez cada uma, que dá pra arrepiar o cabelo. JUNIOR - Mãe, o nome dela é Marisa e não moça. CANDÊ - Desculpa moça, mas acontece que a minha cabeça anda fraca pra guardar nome. MARISA - Não tem nada, não, Dona Candê. A senhora precisa de ajuda? CANDÊ - Nunca precisei e não vai ser agora. Você é visita e visita na minha casa tem tratamento de rei. É só não fazer sem-vergonhice. Vão sentando que eu vou buscar o café. (Candê sai para a cozinha. Júnior dá um beijo em Marisa. Nisso entra Guima.). GUIMA – Ai... minha dor de cabeça! Tem uma banda só de trombone tocando dentro dela! MARISA - Bom-dia, seu Guima. JUNIOR - Pai, esta é a Marisa, lá de São Paulo, que eu falei pro senhor. Ela vai ficar uns dias aqui em casa descansando. GUIMA - Bom-dia, Marisa. Prazer. Eu hoje não estou muito bom. Sofro de umas dores de cabeça. Deve ser da vista ou dos nervos. Já consultei tudo quanto é médico e ninguém resolve. (Candê entrando.). CANDÊ - Eu sei o que resolve!

JUNIOR - Mãe! CANDÊ - Vai botar roupa menino! Não é índio pra andar pelado! (Júnior pega a mochila, as roupas espalhadas e sai para o banheiro.). GUIMA - Estou até pensando em ir ao centro. Me disseram que fazem umas operações espirituais que dão muito certo. CANDÊ - Seu negócio é falta de vergonha, homem! GUIMA - E o seu é língua comprida! CANDÊ - Não vamos brigar na frente da visita. MARISA - Eu não sou visita não, Dona Candê! CANDÊ - É sim senhora. Tá pensando o quê? Que já é nora? GUIMA - Não liga, que ela é espoletada. MARISA (Rindo) - Não vou roubar seu filho não, Dona Candê! CANDÊ - Eu estou rifando ou dando o Júnior. Se quiser, pode levar. E dou o Guima de troco. (Júnior voltando.). JUNIOR - Olha que a gente foge pra casa da Anunciadinha Alto-Falante! CANDÊ - Mais respeito com a madrinha. Falando nisso, ela disse pra você passar lá. Não vá fazer um papelão e deixar de pedir a bênção, hein? (Todos estão à mesa.). MARISA - A senhora não vai tomar café, Dona Candê? CANDÊ - Ih, moça, pra mim já é quase hora do almoço. Eu levanto as cinco. Vou pra feira. Guima, não se esquece de pegar a caderneta e trazer as compras da janta. GUIMA - Pois não, Dona Candelária!

CANDÊ (Saindo) - E não se esquece de fechar o gás depois, e dar água pro cachorro, e jogar milho pras galinhas, e trancar a porta da rua, e deixar dinheiro pro supermercado e... GUIMA - Vai com Deus, marechal Lott! (Pra Marisa.) Então a menina veio conhecer Torrinhas? A cidade é pequena, mas é boa! Você precisa levar a Marisa pra conhecer a nova sorveteria, Júnior. E tem brincadeira dançante no sábado lá no Tênis. Mas é claro que isso pra juventude de São Paulo deve ser meio chato, não é?... E se você tiver um pouquinho de tempo, Marisa, gostaria que aparecesse lá na A Admirada pra ver os tecidos que comprei. Nós estamos aumentando o estoque agora e gostaria de saber sua opinião, sobre... JUNIOR (Cortando) - A Marisa não entende nada disso, pai. MARISA - Não seja mal-educado, Bira. JUNIOR - E o senhor sabe muito bem que a loja está indo mal. MARISA - Bira! JUNIOR - Ele precisa ouvir umas coisas, Marisa! GUIMA - Não fale assim, filho! JUNIOR - Falo sim, pai! Eu e ela não temos segredos. Ontem o senhor tomou um porre danado e ficou falando horas a respeito dos planos que tem para a sua loja. Mas o senhor tem que entender que sua loja está falida. É um monte de trapo velho, que ninguém quer comprar. A não ser os pobres coitados dos bóias-frias que chegam aqui aos sábados e compram aquelas chitas, que são as únicas coisas que podem. E o senhor ontem virou o palhaço do Café do Ponto. Eles riam do que falava. Dos seus planos... Dos seus maravilhosos planos de aumentar a loja e abrir uma filial... e um mundo de besteira... Pai... O senhor é um cara sensível... inteligente... vivido... Bote na cabeça que não é essa a realidade. A mamãe esta se matando de vender tapetinho, toalhinha, crochê e tudo... pra agüentar a despesa da casa... E o senhor está bebendo e enchendo sua cara e seu corpo de álcool e fantasia...

MARISA - Não seja cruel, Bira! JUNIOR - Ele tem que ouvir Marisa! GUIMA - Júnior, não é bem assim... Ontem fui ao Banco do Brasil e o seu Antenor... JUNIOR - O Seu Antenor negou o empréstimo. E veio falar com a mamãe porque o senhor queria inclusive penhorar esta casa. A única coisa que possuem. GUIMA - É mentira. Eu tenho crédito na praça... Os comerciantes de Torrinhas sabem que não devo... JUNIOR – Papai: pare de sonhar. Pare de mentir pra si mesmo. Eu estou aqui. Vamos conversar direito sobre essas coisas. Vamos resolver essa situação. Eu não posso deixar que você e mamãe se destruam assim... MARISA - Não é desse jeito, Bira. Você não tem o direito de mexer com a cabeça de seu pai assim. JUNIOR - Você não sabe de nada! MARISA - Não seja grosso. Você não está conseguindo nem resolver a sua situação, quanto mais a deles! JUNIOR - Quem está embananada é você! E meu pai precisa saber de muita coisa. Do estado em que ele está! Do estado que mamãe está! Eu não vou poder cuidar deles! Eles têm que se virar! E ele tem que saber como resolver isso! GUIMA - Pode deixar meu filho, que EU resolvo! Você está me maltratando demais e me magoando muito! Eu tenho força ainda, eu tenho cérebro ainda! Eu vou reerguer tudo, tudo! Mas não quero a sua ajuda! Não quero e dispenso! É muito fácil você viajar de São Paulo para cá para dar palpite nas nossas vidas. O duro é estar aqui! JUNIOR - Pai, eu não quis...

GUIMA - Cale a boca, seu molecote! Você não tem topete de levantar a voz para o seu pai! Quem canta neste galinheiro ainda sou eu! Mas o dia que você souber da minha morte e se der conta de que herdou um grande império de lojas de tecidos, então vai se arrepender do que falou! Vai se arrepender muito. (Levanta-se e prepara-se para sair.). JUNIOR - Pai, eu acredito no senhor, mas acontece que o seu sonho está maior que a realidade... GUIMA - Você vem me dar lição? Ora, seu fedelho! Mal saiu do cueiro e quer dar lição de vida! Você vai ter que se arrebentar muito ainda, menino, pra aprender as coisas! Até logo! (Sai. Júnior bate furiosamente na mesa. Depois acende um cigarro e olha para Marisa.). JUNIOR - Eu fiz uma cagada! MARISA - Fez mesmo. Desse jeito só piorou tudo. Ele achava que você era um aliado, um amigo, um alguém em quem podia confiar, alguém que poderia entender seu sonho. E você caiu de paulada e cacetada! JUNIOR - Mas ele está alucinado, Marisa! Precisava ver a situação dele ontem, no Café do Ponto. O ridículo da situação! MARISA - A quota dele de exploração já foi paga, Bira! Ele tem direito ao sonho! Ele tem direito a qualquer sonho, depois dessa vida de merda que viveu. JUNIOR: Não tem, não. Ninguém pode abdicar de certas verdades! MARISA - Que verdades, Bira? Você está repetindo chavão! JUNIOR - Ele é um homem que tem plena capacidade de trabalho ainda. Que pode ser útil, a si e aos outros! Ele não pode entrar nessa. Está em processo de alienação total! MARISA - E é você quem vai julgá-lo? Vá à merda, Bira!

JUNIOR - Eu não admito a decadência! Nenhum homem pode ceder a esse impulso de loucura, a esse impulso de cair fora tranquilamente, como se não tivesse nada a ver com ninguém, com nada, com seu país, com sua mulher. MARISA - Com seu filho? Você está se tornando ridículo. Ridículo. Ridículo e cruel. É isso que me assusta em pessoas como você, como eu, como os companheiros. JUNIOR - Não misture departamentos. Meu pai é uma vítima. MARISA - Sem dúvida. Mas não seja você o seu segundo algoz. JUNIOR - Eu gosto dele. MARISA - Então o entenda. JUNIOR - Eu não consigo. MARISA - Então, não o julgue! JUNIOR (Explodindo) - Tudo isso é uma porra!

CENA XIIII

Tardezinha. Candelária ouve rádio, enquanto põe a mesa de jantar. Júnior fuma a um canto, lendo jornal.

CANDÊ - Seu pai está atrasado outra vez Júnior. Eu acho que ele resolveu passar lá no Café do... JUNIOR - Não quero falar disso agora, mãe! CANDÊ - Ué, aconteceu alguma coisa? JUNIOR - Não!

CANDÊ - Vocês brigaram? JUNIOR - Não! CANDÊ - E não conheço o fruto do meu ventre? Brigaram, não é? JUNIOR - Brigamos. CANDÊ - Você tem que ter paciência, filho. Ele esta passando por um mau-bocado... As coisas não vão bem! JUNIOR (Explodindo) - Vocês são gozados! Eu não entendo realmente a cabeça de nenhum dos dois. A senhora me atazanou, dizendo que papai tinha virado alcoólatra... CANDÊ - Júnior, eu não disse isso! JUNIOR - Disse, sim! Disse que ele estava enlouquecendo, que a loja ia indo de mal a pior, contou a estória do seu Antenor, da hipoteca da casa. E me pediu ajuda! Que ajuda eu podia dar? Falar com ele, é claro! Falei, ele ficou uma fera, brigamos. Tá certo, eu posso ter sido até cruel, mas era para o bem dele. E agora a senhora vem dizer pra ter paciência! Vá pros diabos a paciência, e tudo! CANDÊ - O quê você disse para ele? JUNIOR - Isso que eu contei para a senhora. CANDÊ - Desse modo? JUNIOR - Um pouco mais bravo. CANDÊ - Desgraçado! JUNIOR (Espantado) - Quem? Eu? CANDÊ - É modo de tratar um pai? Pinguço ou não, louco ou não, sonhador ou não, ele é seu pai! JUNIOR - Não me venha a senhora com essa moral cristã.

CANDÊ - Eu não entendo essa sua conversa de faculdade, não. Mas pai é pai. JUNIOR - Acima de pai, ele é homem. E homem não pode ficar sendo desrespeitado do jeito que ele está sendo, e nem se desrespeitando a si mesmo. CANDÊ - Olha aqui, filho! Você está vendo estas mãos? Mal tratadas, cheias de calos, feias, velhas... Está vendo? Pois essas mãos sempre foram assim... desde que era menininha... Pois eu peguei muito na enxada pra ajudar meu pai... E depois, quando cresci, continuei trabalhando, ajudando o seu pai, o meu Guima, na lavoura... antes dele vender o sitinho. Pois foi nessa mão que ele colocou uma aliança de não mais tirar. A não ser quando Deus vier e me levar embora. E foi essa mão que ajudou você a nascer e também a dar comida pra você, e cuidar de você quando foi crescendo. E bateu também. E deu couro. Mas também fez carinho, e cuidou dos seus machucados, quando você caía das suas goiabeiras. Então, menino, eu exijo RESPEITO por ela, e pela mão que tem segurado a minha por ai. A mão de seu pai. JUNIOR - Eu não desrespeitei! CANDÊ - Desrespeitou sim! Seu pai é muito bom. Bom demais. Por isso que não tem lugar pra ele aqui. JUNIOR - Isso não justifica. Ele esta sendo explorado. É uma vítima dessa estrutura social. CANDÊ - Não entendo esse palavreado de discurso. Entendo do duro que eu e ele temos dado. Eu reclamo, eu xingo, eu brigo, eu dou uma coça nele, mas eu o respeito. Apesar de tudo, nós dois temos catado as pedras que a vida joga e temos feito um muro! JUNIOR - Isso não é vida. Isso não é justo! CANDÊ - Isso não é comigo, nem com ele, nem com você! É com o mundo! Eu quero a sua ajuda, sim. Seu pai está doente. Está viciado, e eu sei que o vício a gente pode curar. Mas ninguém, nem eu, nem você tem direito de enfiar o dedo nas feridas que ele tem no coração!

JUNIOR - Sinto muito, então, mãe! Mas eu não posso fazer nada! CANDÊ - Quando você fala todas aquelas coisaradas que leu nos livros ou aprendeu com os professores, eu fico pensando: será que ele não consegue ver que uma pessoa traz dois sacos nas costas - um de sonho e outro de realidade? O meu saco de sonho sempre esteve meio vazio, porque o outro era muito pesado. Mas o seu pai sempre empresou um pouco do sonho dele, e a gente barganhou a vida! Por isso estamos casados há vinte e três anos! E por isso vamos continuar brigando e dormindo juntos, porque as coisas não podem ser diferentes! (Marisa entra antes que Júnior responda.). MARISA - Boa-noite, dona Candê! Oi, Bira! JUNIOR - Marisa, desculpe, mas estou tendo uma conversa aqui com minha mãe! MARISA - Oh, perdão, eu vou para o quarto! CANDÊ - Não, moça, fique aí! Eu já falei tudo o que tinha pra dizer pro meu filho. Talvez você, que é colega de faculdade e estudada que nem ele, possa se entender melhor. Eu sou cavalo véio, que só se acostumou a comer um tipo de espiga de milho. Não adianta mesmo! (Candê sai, deixando os dois a sós.). MARISA - O bode piorou mais ainda ? JUNIOR - Muito mais. Acabo de receber outra lavada. MARISA - Então, vai receber três. JUNIOR - Ah, pelo amor de Deus, Marisa, você também? MARISA - Estou indo para um sítio aqui perto. Fui conversar com o Padre Augusto e acertei tudo. As coisas estão muito melhores do que eu imaginava. O trabalho deles é ótimo, Bira. O Padre está junto com os bóias-frias. Trabalho de campo, junto com a realidade imediata. Eu fico mesmo por lá, com eles. JUNIOR - Você está fugindo.

MARISA - Caguei pro que você e o pessoal de São Paulo esteja pensando. A teoria pra mim chegou até às tampas. Vou fazer minha parte de outra maneira. JUNIOR - Não quero conversar mais nada hoje. MARISA - Você é quem sabe. A minha opção está feita. Vou catar as minhas coisas e dizer obrigado pros seus pais. JUNIOR - Marisa, desculpe: estou com a cabeça quente. Acho que precisamos pensar melhor nisso tudo. MARISA - Não tem o que pensar, Bira. Nós viemos até aqui juntos e aqui a gente se separa. Não tem escala de valor nisso. É só uma questão de modo. Nós dois lutamos pela mesma coisa. Mas eu só posso continuar lutando se confio nas minhas ações. JUNIOR – É. Talvez você esteja certa... MARISA - Ou você. Um dia nos encontraremos, ou sempre, para fazermos um balanço disso tudo. JUNIOR - O que vai dizer pra minha mãe? MARISA - Que vou para uma fazenda. Com o tempo, pretendo retomar o contato, pois gostei deles. Sua mãe é uma leoa, no melhor sentido da palavra e seu pai é um passarinho, na acepção mais livre do termo. JUNIOR - E nesse zoológico eu não caibo, não é? MARISA - Trate de achar a sua espécie. Beijos, querido. A gente fala a qualquer hora. Quando você volta pra São Paulo? JUNIOR - Agora não sei mais nada. Mas, de qualquer forma, tenho um contato por telefone amanhã, com o Japa. MARISA - Diga a ele que eu morri. Ou melhor, que renasci! (Sai pela porta interior.).

JUNIOR - Três contra um é uma vergonha! (A porta se abre e entra Guima.) Oi, pai! GUIMA - Eu lhe trouxe um corte de brim ótimo para fazer uma calça! JUNIOR (Aproxima-se e o abraça) - Desculpe por tudo, pai! GUIMA - Que é isso, Júnior? Homem não chora! JUNIOR - Hoje aprendi que chora sim, pai!

CENA XIV

Candê está encerando a casa, que está toda de perna pro alto. A televisão está com o som muito alto, para encobrir

o barulho da enceradeira. Uma locutora transmite um programa feminino.

LOCUTORA - E o delicioso suflê de queijo deverá ser acompanhado com uma saladinha fresca, quase que sem tempero. Com esse prato, completamos a dieta revolucionária, que hoje já conta com milhares de adeptos nos EUA. As telespectadoras interessadas poderão nos escrever, e receberão inteiramente grátis o folheto completo com todas as instruções do "Emagreça contrabalanceando a refeição". (Candê tinha parado em frente à TV, de enceradeira na mão, olhando para a Locutora. Quando esta termina, Candê tira o som e começa a discursar.). CANDÊ - Sabe, sua pó-de-arroz, quantos nordestinos morrem de fome por dia? Sabe quantos favelados existem em São Paulo e no Rio de Janeiro? Sabe quanto ganha um bóia-fria que trabalha de sol a sol? E ainda fica falando nessa tal de refeição contrabalanceada? Emagrecer quando tem muito brasileiro precisando engordar? Bem que o meu Júnior tem razão! A riqueza tem que ser dividida mesmo. É uma falta de vergonha isso que a senhora está dizendo! Vem aqui passar um dia em Torrinhas, que eu levo a senhora lá no tanquinho e

no lava pés, e a beleza aí vai ver o que é alimentação contrabalanceada! Todo mundo magrinho, sem precisar de suflê de queijo e nem de saladinha quase que sem tempero! Absurdo! VIZINHA - Fazendo discurso, Dona Candê? (Candê vai até a janela.). CANDÊ – Por que a senhora não experimenta fazer hoje no jantar um suflê de alfafa e uma saladinha de capim? VIZINHA - O seu Guima gosta, muito, não é dona Candê? CANDÊ - Desaforada! Vê se se enxerga! E a Neusa Maria, já largou o marido pra fugir com aquele guarda? VIZINHA - Fuxiqueira! (Candê sai rindo da janela. Está doente. Vai ao telefone e disca para a comadre.). CANDÊ - Tarde, comadre... Tô aqui encerando a casa... É. A Marisa foi para uma fazenda aqui perto... Boa moça, comadre... Disse que gostou muito da gente... Até daria uma boa nora... Mas precisava deixar de usar aqueles tênis fedidos... Sabe que eu precisei desinfetar o quarto do Júnior... Ele não apareceu? Deve estar ajudando o pai na loja... Andam tão amigos... Sabe, comadre, eu estou telefonando pelo seguinte: recebi mais encomendas daqueles tapetinhos de retalhos... Pois é, sobra tanto pano na loja do Guima, né?... Mas sabe o que acontece, comadre, eu não consigo mesmo combinar as cores... Então, queria ver se você não pode me dar uma mãozinha... Faz dez anos que luto com isso e não aprendi... Ou fica filha de Maria ou vira time de futebol!... Como eu vi aquelas belezas de xales que você fez com sobra de lã, achei que podia me dar uma ajuda... Por que você não faz uma listinha?... Peraí... deixe apanhar um papel... (Deixa o telefone e apanha papel e caneta.) Vai ditando, comadre. Preto e branco... preto e branco? Mas fica que nem dominó, comadre... Amarelo e vermelho... Mas fica com cara de doce de abóbora mal feito, comadre... Anunciadinha, azul com verde? Pelo amor de Deus, Anunciadinha... Rosa e roxo? Anunciadinha... Anun... Ela desligou! Mas que desaforada! (Bate o telefone.) Desaforada! E é pra bater o telefone na minha cara? Depois de vinte e cinco anos de amizade? Ela vai ver! Nunca mais, nunca mais ligo pra ela! Morro seca e dura se ligar pra ela. Desaforada! (O telefone toca de novo. Candê vai

nervosa atendê-lo.) Escuta aqui, sua sirigaita, eu combino as cores do jeito que eu quiser! Como? Não é a Anunciadinha? Desculpe... desculpe... Não... O Júnior não está... Quem quer falar com ele? Japa? Japa de que?... Não sei a que horas ele volta... De São Paulo?... Pode deixar... pode deixar que eu digo.. digo... Telefona na hora do jantar? A que horas? A que horas você janta moço? As seis é claro! Que horas ia de ser? Passe bem! (Desliga o telefone. Fica pensativa. Depois, dá de ombros e volta a encerar. Trabalha mais um pouco e pára de novo. Vai ao telefone. Hesita. Senta. Levanta. Vai ao telefone. Disca.) Comadre... Não... Não... Não... Não telefonei pra brigar não... Mas comadre... não fiz desfaçatez não... Não comadre... Tá bom... tá bom... da próxima vez escuto... (Nervosa.) Fica quieta um minutinho comadre, eu estou nervosa... Recebi um telefonema estranho de São Paulo... Eu não... o Júnior... Um tal de Japa... quis falar com ele... Por que estou nervosa? Ora comadre, o que o meu filho quer falar com um japonês? Sei lá... Será? Será, comadre? Será mesmo, comadre?... Posso ficar sossegada?... Qualquer coisa eu telefono de novo. Obrigada! (Desliga. Para si.) Será que o Júnior está montando uma quitanda? A comadre está mais biruta que o Guima, acho! (Volta a trabalhar. De repente, entra Júnior.). JUNIOR - Oi mãe. Dourando o assoalho? CANDÊ - Telefonaram pra você. JUNIOR - Para mim? CANDÊ - De São Paulo. JUNIOR (Ansioso) - Que disseram? CANDÊ - Nada. Você não estava! JUNIOR - Mas não deixaram recado? CANDÊ - Deixaram. O moço vai telefonar de novo na hora do jantar. JUNIOR - Só isso?

CANDÊ - O que mais ele iria dizer para mim? Não me conhece! JUNIOR - É, tá certo! Liga na hora do jantar? CANDÊ - Telefona na hora do jantar! (Júnior vai sair para o quarto quando Candê grita.) Quanto tá custando um maço de agrião em São Paulo? JUNIOR - E eu sei, mãe? Pra que isso agora? CANDÊ - Nada. (Júnior sai.). CANDÊ - Então, não é quitanda! Meu Deus, o que será? (Pega o telefone e disca, falando baixo.) Não posso falar alto... Não é quitanda... Comadre... O que? Seixo o que? Ah... Aqueles dos livrinhos? Será? Mas ele nunca foi religioso... Vou ver... Estou calma. Até logo, comadre... (Júnior entra de novo.). JUNIOR - A senhora viu um livro que deixei por aqui? CANDÊ - Um tudo cheio de risquinho assim, que nem coisa de japonês? JUNIOR - Mãe, a senhora está muito louca hoje. O que aconteceu? CANDÊ - Nada... nada... Você conhece o Seixo não sei o que? JUNIOR – Seicho-No-Iê? Sei que existe, mas não sei o que é. Por quê? CANDÊ - Nada... A comadre que queria saber... JUNIOR - A senhora viu passarinho verde hoje, acho! (Júnior sai de novo. Candê pensa mais um pouco. Depois dá de ombros. Continua arrumando a sala. Liga o rádio. Toca um rock. Desliga e grita.). CANDÊ - Música de capitalista! (Júnior entra rindo.). JUNIOR - Dona Candê!

CANDÊ - Eu quis dizer música que toca na capital!

CENA XV

Hora do jantar. A mesa está posta. Guima está sentado em frente à TV, esperando o noticiário. Candê entra e sai

trazendo as coisas do jantar. Júnior lê um jornal. CANDÊ - A mandioca não ficou boa. Tava passada. Mas o que não mata, engorda. Por isso, vai assim mesmo. GUIMA - Fala baixo, Candê, que o noticiário vai começar. JUNIOR - Não tem nada de interessante no noticiário, pai. A censura corta tudo. Só deixa passar aquilo que convém à ditadura. GUIMA - Mataram o tal do Lamarca lá no Nordeste. CANDÊ - O terrorista? GUIMA - É, parece que teve tiroteio. JUNIOR (Abaixando a cabeça) - Assassinos, assassinos, assassinos! (Não conseguindo falar mais nada.). GUIMA - Filho? JUNIOR - Assassinos! (O telefone toca. Guima abaixa a TV, que continua dando notícias triviais. Atende.). GUIMA - Sim... Um momento... Filho: é para você! (Júnior levanta-se automaticamente.). JUNIOR – Alô... Eu... fiquei sabendo agora.. pela TV... Tá tudo acabado... Volto amanhã... na mesma hora... mesmo lugar... (Desliga pálido. Candê entrara correndo ao ouvir o telefone.). CANDÊ - Quem era? Quem era?

JUNIOR - Um amigo! CANDÊ - O tal do Japa? JUNIOR - Não mãe! (Fica olhando para ela e abre a porta.). CANDÊ - Júnior, não vá sair. Tá na hora da janta! JUNIOR - Não estou com fome! GUIMA - Mas, filho, o que aconteceu? JUNIOR - Nada! (Bate a porta. Guima e Candê se entreolham, sem entender.). CANDÊ - Vem jantar, Guima! GUIMA - Estou indo, mas estou preocupado! (Sentam-se.) Acho que foi a morte do homem! Mas o que o Júnior tem a ver com isso? CANDÊ - Espero que nada! GUIMA - Acho que ele ficou triste. Ele nunca gostou de morto! CANDÊ - Esse é pior, Guima! GUIMA - O que você quer dizer, Candê? CANDÊ - Acho que nosso filho morreu um pouco agora. GUIMA - Que é isso, Candê? CANDÊ (Desconversa) - Quer mais feijão, Guima? GUIMA – Candê: acho que amanhã vou realizar um grande negócio. Você conhece o Amâncio, aquele das Casas Vermelhas? Pois é, hoje ele me procurou pra dizer que está interessado em abrir uma sociedade comigo. Além de a gente vender tecidos, poderíamos começar com armarinho também. Eu disse que não estava muito interessado, e isso e aquilo. Mas ele insiste, dizendo que eu conheço

bem o ramo, que sou respeitado, etc... Então, ficamos de aparecer amanhã no Café do Ponto, para resolver de vez essa estória. Pode até que seja bom, pois com tudo o que estou montando, uma loja de armarinhos pode entrar bem na cadeia. Mas eu gostaria de conversar com o Júnior amanhã... Candê... você está prestando atenção? (Candê come em silencio.). CANDÊ - Estou sim, Guima. Só me distraí um pouco. O que o Amâncio disse? GUIMA - Pois é... Se eu quiser, se eu topar, a gente pode começar logo... Ele tem capital... Tem inclusive um ponto já em condições de... Candê, o que está acontecendo? (Candê levanta-se.). CANDÊ - Nada, Guima. Estou sem fome. Acho que foi um pedaço de cuscuz que a Nicota mandou que não fez bem! GUIMA - Eu digo pra você não aceitar nada daquela jararaca! CANDÊ - Jante você. Vou ficar ali, costurando meu tapetinho! GUIMA - Você e seus tapetes... você e seus tapetes... Já lhe disse que pode parar de trabalhar... Mas você insiste... Mas você quer. CANDÊ - É... Pra que fazer tapete de retalho, não é, Guima? Eu nunca sei combinar as cores! (Triste.) Acho que acabei de perder o fio da meada!

CENA XVI

Candê ouve rádio. É noite. Guima está à mesa, escrevendo.

GUIMA - Ué, Candê, desistiu da TV hoje?

CANDÊ - Deu vontade de escutar rádio. Fazia tempo. Cansei de ver aquela mulherada toda, tudo com cara igual falando e falando. E as novelas estão uma xaropada. Não saem da mesma coisa. GUIMA - Eu sempre preferi rádio. Mas você quis tanto essa TV. Por mim, preferia mesmo que tivessem continuado aqueles programas do nosso tempo. Os da Rádio Tupi, as valsas do Chico Alves, o Galhardo, a Ângela Maria. Agora, você liga a TV e é esse tal de Roberto Carlos, cabeludo, com o tal do iê-iê-iê. E aquela moça, a Wanderléia. Não gosto! CANDÊ - Guima, você está fora do tempo, homem. A Jovem-guarda já acabou faz tempo! GUIMA - Pra mim tudo é igual, tudo cabeludo! CANDÊ - O que você está fazendo? GUIMA - Planos... planos... Se eu continuar do jeito que estou... logo... logo... poderemos ir para Poços de Caldas. Você sempre quis, não é, Candê? CANDÊ - Será que Poços de Caldas ainda existe? GUIMA - Que é isso, Candê? Desanimada com a vida? CANDÊ - Um pouco. Hoje já faz um mês que o Júnior foi e nenhuma notícia. GUIMA - Deve estar lá paquerando as moças da faculdade. CANDÊ - Onde você aprendeu a falar assim? GUIMA - No Café. Quando uma moça passa, a marmanjada diz que só tá na paquera. CANDÊ - Que palavreado! GUIMA - E você, ainda com o tapete?

CANDÊ - É. Tentei usar a listra que a comadre me deu, mas ficou uma porcaria. Acho que vou morrer sem conseguir combinar direito essas cores! (O rádio começa a tocar "Dez Anos".) Escuta essa, Guima. É do nosso tempo! GUIMA - Eu tô só na sua paquera! CANDÊ - Que é isso Guima? (Guima se levanta, chega até ela.). GUIMA - Quer dançar, Candê? CANDÊ - Guima, você ficou louco? A gente está velho! GUIMA - Imagina Candê! Vamos! (Ela tenta protestar, mas Guima força. Saem dançando pela sala. Você continua com aquele cheirinho bom de terra molhada! CANDÊ – Guima: pare de indecência! Você sabe muito bem que eu não sou mais capaz de... GUIMA - Nem de um namorinho, Candelária? Lembra quando a gente dançou pela primeira vez? Foi na casa da Anunciadinha! CANDÊ - Se me lembro! Eu era uma caipirona! Não sabia nem como mexer o pé! GUIMA - Mas na hora do xóte, você se soltou! CANDÊ - Também, você era um pé-de-valsa! GUIMA - Eu fiquei sentindo seu corpo grudado no meu, e morri de desejo! CANDÊ - Que indecência, Guima? Você nunca me disse isso! GUIMA - Agora já pode. Já faz vinte e três anos, hein, Candê! CANDÊ - Vinte e três! Lembra aquela vez que a gente ficou vendo o luar lá na porteira? Eu morri de medo que o pai me pegasse. Se ele

visse a gente, era surra de marmelo em mim, e dois tiros de trabuco em você. GUIMA - O velho João de Souza não era de brincadeira. Quando eu fui pedir sua mão, depois de dez anos de namoro, ele me chamou de "senhor". CANDÊ - E você tremia que nem vara verde! GUIMA - Era de emoção! CANDÊ - Falso! GUIMA - Parecia que era a primeira vez que eu via você. E a sua mãe e seus irmãos me olhando, me olhando. Parecia que queriam me comer. CANDÊ - Eles nunca acreditaram que a gente se casasse! GUIMA - Por quê? CANDÊ - Por causa do meu gênio. Diziam que você não agüentava dois dias. Que ia pegar suas trouxas e fugir de casa, com a primeirazinha que aparecesse. E eu tinha medo... GUIMA - Tinha mesmo, Candê? CANDÊ - Você nunca fez as coisas com outra, não é, Guima? GUIMA - Depois de casado, não! CANDÊ - E antes? GUIMA - Eu precisava aliviar Candê! CANDÊ - Safado! GUIMA - Me dá um beijo?

CANDÊ - Guima! O que é isso? (Param de dançar. Beijam-se levemente.). GUIMA - Vem se sentar aqui, do meu lado, bem como antigamente. Faz de conta que tem um caramanchão de primavera aqui em cima, e nós dois estamos de mãos dadas! (Sentam-se.). CANDÊ - Que é isso? Você nunca namorou embaixo de caramanchão de primavera? Sempre foi atrás do paiol! Ora vejam... Onde aprendeu isso, hein? GUIMA - Você sempre estraga tudo, não é, Candê? Eu tava imaginando, só. Um caramanchão de primavera, um coqueiro do lado, um caminhozinho, e lá no fundo uma casa, soltando fumaça. Que nem uma folhinha da Tecelagem Santa Marta Fabril. CANDÊ (Quase entrando no sonho) - É bonito! GUIMA - E bastante sabiá cantando, enquanto o sol vai caindo, a noite vai chegando cheia de estrela! Cheinha de estrela! Daí, eu aponto uma para você... CANDÊ - Não faça isso, que dá verruga na ponta do dedo. GUIMA - Ah, Candê, estragou outra vez! CANDÊ – Desculpe. Guima: acho que ainda não aprendi a sonhar direito. É que nem a estória do tapete. Nunca consegui combinar. Acho que só quem sonha consegue. GUIMA - Fecha os olhos e imagina que a gente esta lá em Poços de caldas. Eu alugo uma charretinha e a gente vai passear. CANDÊ - Eu não tenho roupa de grã-fina! GUIMA - Você comprou uma. Um vestido de seda branca, bem fina, com bastante queda. Já é hora da Ave Maria. Nós dois vamos indo e vamos indo e lá no fundo tem uma árvore com um banco. Nós sentamos e ficamos prestando atenção no mundo. As cigarras

cantam, os grilos, os passarinhos, tudo canta. E nós dois encostamos a cabeça e ficamos quietinhos. CANDÊ - Que bonito Guima! Nunca tinha ouvido você falar assim! (Subitamente.) Estou sentindo uma dorzinha aqui, bem do lado, Guima! GUIMA - Acho que é emoção, Candê! CANDÊ - É uma coisa triste e triste que vai subindo. Não é dor Guima, é uma angústia funda, funda, que nem eu sentia quando era menininha e olhava aquele pasto sem fim, bem na hora da noitinha. Naquela hora que a gente não sabe mais quem manda no céu, se o sol ou a se é a lua! Ai... Guima... É um apertão... cheio... de... medo... Eu estou com medo... Guima... Com medo... com medo... Guima... (Fecha os olhos e morre abraçada a ele. Guima, a princípio, não percebe. Depois, sacode Candê, aflito. Toma a mão dela e percebe que está morta. Começa a chorar baixinho.). GUIMA - Por que isso, Candê? Eu dei o que você queria. Tudo o que você queria! O conjunto que imitava couro, o telefone e a televisão! Que é isso, Candê? Não seja ruim, Candê! Você está indo embora? Você jurou que era amor pra sempre, Candê. A gente tem que ir pra Poços de Caldas, a gente tem que cuidar do Júnior, a gente tem que arrumar a Admirada... A Admirada Dona Candelária Souza Guimarães! Não faça isso, Candê... Eu nunca mais dou nada pra você! Nem que você me peça ajoelhada! Por que, Candê? (Levanta-se furioso. Pega o telefone, joga na televisão, arrebentando os dois. Depois, tira um canivete do bolso e começa a rasgar o sofá.) Não faça isso, Candê! Não faça isso! Eu nunca dou mais nada para você! Nem mesmo o meu coração! (Cai sobre ela chorando.).

3º ATO

CENA XVII

O cenário é o mesmo do anterior. A casa está em profunda decadência. Tudo empoeirado, o sofá de courvin rasgado pela fúria de Guima, o telefone e a

televisão quebrados. É como se a casa não fosse quase que nunca aberta e tivesse mofado. O rádio, no entanto, está intacto. Os retalhos dos tapetes de Candelária, já

sem cor de tão velhos e empoeirados continuam sobre o jogo de courvin e por alguns móveis. A ação passa em 1981. Manhã. A casa está deserta. Ouvem-se batidas à

porta da frente. Voz de Marisa que grita.

MARISA - Seu Guima, seu Guima, sou eu. Preciso entrar e falar com o senhor! (Tempo. Ninguém respondeu ou aparece. A voz insiste.) Seu Guima, preciso entrar! Tenho um recado pro senhor! (Guima entra na sala pela porta interior. Está desfigurado pela bebida e tem certo ar de alucinado. Tenta se vestir com algum cuidado. Mas as roupas são antigas, surradas e empoeiradas.). GUIMA (Junto à porta, desconfiado) - Quem é? O que quer? MARISA - Sou eu, Marisa, tenho um recado pro senhor! GUIMA - A faxineira do padre? MARISA - É... A faxineira do padre... GUIMA - Que é que você quer? MARISA - Entrar, Seu Guima, por favor, é importante! (Guima abre a porta e Marisa entra meio ofegante.) Oi, Seu Guima... Bom-dia... Eu tenho um recado pro senhor!

GUIMA - O que é? Fala rápido, pois eu tenho que sair. Tenho que ir buscar uma partida de tecidos que chegou de Sorocabana. E ainda tenho que passar pra falar com o seu Antenor. MARISA - O Seu Antenor morreu o ano passado, Seu Guima! GUIMA - Que é isso, menina? Onde você está com a cabeça? O Antenor quer falar comigo hoje, a respeito de um financiamento... Mas foi pra falar bobagem que você veio aqui? MARISA - Não, Seu Guima... É outro assunto. GUIMA - Mas hoje não é sábado... Não é dia de faxina... E eu só pago uma faxina por semana... MARISA - Seu Guima, o Padre Augusto recebeu um telefonema hoje... Do Júnior... Ele chegou... Ele está vindo para cá... Ele pediu pra vim avisar o senhor! GUIMA - Quem? MARISA - O Júnior, Seu Guima. Ele chegou... Ele vem vindo pra Torrinhas pra ver o senhor... GUIMA - Você está louca, menina... O Júnior está estudando na França. MARISA - Não está mais. Ele chegou. GUIMA - Quem contou? MARISA - Ele telefonou pro Padre Augusto. GUIMA - Por que não telefonou para cá? Ele sabe o número! MARISA - Aqui não tem mais telefone, Seu Guima. O senhor não se lembra? GUIMA - Telefonasse para A Admirada!

MARISA - A Admirada não existe mais, Seu Guima! GUIMA - Você não sabe de nada, menina! Quê não existe! Você não sabe de nada! Ontem dois homens das Casas Pernambucanas tentaram arrombar essa porta aí, pra roubar o estoque! MARISA - É verdade Seu Guima? GUIMA - Forçaram a porta, tentaram usar pé-de-cabra. Mas eu escondo muito bem escondido todo o estoque, e eles não vão conseguir não... Estão pensando o que? Que eu trabalho pra sustentar vagabundo? MARISA - E o Júnior, Seu Guima? GUIMA - Que Júnior? O Júnior está na França, estudando. Meu filho está estudando no estrangeiro, pra ficar conhecendo todas as lojas de Paris, e depois assumir a gerência da A Admirada... Meu filho é muito inteligente... Ele é um líder... Sabia? MARISA - Sabia. Mas ele está vindo para cá. Então, é melhor a gente dar um jeito aqui na casa... Tirar o pó... Arrumar alguma coisa pra comer... Trocar a roupa de cama, não é? Seu Guima? GUIMA (Absorto) - Meu filho vai voltar um entendido em tecidos... Os tecidos franceses ainda são os melhores do mundo... Muito melhor do que esses nylons e coisas que tal que tem por aí... MARISA - E o senhor precisa fazer a barba, tomar um banho, trocar de roupa, não é, Seu Guima? Acho que não é bom que o Júnior veja que o senhor está meio descuidado, não é? GUIMA - Quem está descuidado? Quem? Você acha que um comerciante digno, que respeita a freguesia, anda sem paletó e gravata? Eu não sou desses modernos, não, menina, que ficam em mangas de camisa... Minha loja é de respeito... A Candê não deixa que eu pareça desalinhado... Aliás, eu já disse para a Candê que é uma bobagem ela querer engomar tanto meus colarinhos e punhos... Mas ela insiste... Diz que roupa tem que ser sempre limpa e bem cuidada... Ela já está meio cansada... Por isso é que mandei que ela

fosse para Poços de Caldas... Ela está lá... descansando... Afinal, ela precisa... Fez muito tapete na vida! MARISA - A Dona Candelária está morta, Seu Guima! Faz dez anos que morreu... Foi em 1971! GUIMA (Não ouvindo) - Eu já disse que ela não precisa trabalhar, a loja está crescendo... Está indo muito bem... Mas ela insiste... Diz que foi acostumada com o trabalho, dando duro, e que não é agora, depois de velha, que vai mudar... Ontem mesmo, nós estávamos conversando ali embaixo daquele caramanchão de primavera e eu toquei nesse assunto com ela... Vige, ficou uma onça... Não quer nem ouvir falar de descansar. Foi uma luta fazer com que aceitasse essa viagem para Poços. MARISA (Chegando perto dele, sente o cheiro) - O senhor andou bebendo de novo, não é? GUIMA (Autoritário) - Quem é você pra se meter na minha vida? MARISA - O senhor prometeu pro doutor João que não ia mais beber! GUIMA - Eu não bebi! MARISA - Estou sentindo o cheiro, Seu Guima! Não minta! GUIMA (Desculpando-se) - Foi só um golezinho... Um aperitivinho... A gente não podia deixar de aceitar, não é? MARISA (Autoritária) - O senhor não pode beber Seu Guima! Não pode, senão acaba morrendo também! GUIMA (Como uma criança) - Ah, moça, eu não quero morrer... não... Eu preciso trabalhar ainda... pra deixar a Candelária e o meu filho bem de vida... Seguros... Eu estou montando um grande negócio... Eu não quero morrer não... Eu tenho medo da morte... A morte é fria... É feia... Ela tem uma foice na mão... Que nem aqueles homens do sitio do meu pai que iam carpir a lavoura. Eu tinha medo das foices...

MARISA (Enternecida, puxa Guima pela mão e senta-se com ele no sofá) - O senhor não vai morrer não, Seu Guima. O doutor João diz que o senhor vai ficar bom. Mas tem que ajudar, não é? E cada vez que o senhor bebe, a saúde piora! GUIMA (Criança ainda) - Nem um golinho? MARISA - Nenhum golinho, Seu Guima! Se não, não adianta! O senhor pira tudo de novo! GUIMA - Você não vai contar pra Candelária, não é? MARISA - Não seu Guima, não vou! GUIMA - Nem pro Júnior, não é? MARISA - Nem pro Júnior, não, seu Guima. Quando ele chegar, ele vai encontrar o pai dele em ótimo estado. Limpinho, arrumadinho, bem alimentado, bem vestidinho... com a casa bem... GUIMA (Como que recobrando a lucidez) - Eu não quero ver esse moleque. MARISA - Que é isso, Seu Guima? Ele é seu filho, vem vindo pra cuidar do senhor! GUIMA - Eu não preciso! Nunca precisei! Ele fugiu! A vida inteira ele só fugiu... Sempre que precisei dele, ele não estava... E me arranjei sozinho... Por que ele vem agora? Por que não estava aqui quando... MARISA - Quando? (Guima hesita em responder, em encarar a realidade.) Quando o que, Seu Guima? GUIMA - Quando a mãe dele morreu! Por quê? Por quê? MARISA - O senhor sabe Seu Guima, que ele precisou fugir do país. Ele escreveu pro senhor! GUIMA - Fugir por quê? Ele fez alguma coisa de errado?

MARISA - Não, Seu Guima. O senhor sabe que não. Foi problema de política. O senhor entendeu tudo, naquela época. Será que está se esquecendo disso? GUIMA - Eu nunca me esqueço de nada... de nada... Nem do bando de ferimentos que meu filho fez em meu coração... Ele não confia em mim... Falava que eu só sonhava... que eu era incapaz de fazer qualquer outra coisa... Mas eu vou mostrar pra ele agora quem é Alcebíades Antonio Guimarães... que fez da A Admirada uma verdadeira potência. (Entrando na loucura novamente.) O fabuloso estoque que montei pra ele... Todas as filiais... Os empregados todos... Vou mostrar quem é o pai dele. Pena que a Candelária esteja em Poços de Caldas... Outro dia, eu li uma frase num caminhão que gostaria muito de dizer agora. Posso? MARISA - Que frase, Seu Guima? GUIMA - Que Deus dê forças ao meu inimigo, para que ele possa aplaudir em pé a minha vitória. MARISA - O Júnior não é seu inimigo! GUIMA - Já foi. Agora ele terá que se render ao meu império! MARISA - Então, vamos tomar um banho, Seu Guima? GUIMA - Escute aqui, moça. Eu pago pra você ser faxineira, que nem na casa do padre. E isso, só enquanto a Candê está viajando. Não me venha com intimidades não, hein? MARISA - Pode deixar, Seu Guima, eu me ponho no meu lugar. GUIMA - Acho bom!... A que horas ele chega? MARISA - À noitinha! GUIMA - É uma pena. Nessa hora eu tenho um encontro com o Antenor.

MARISA - Até logo, Seu Guima! (Apanha suas coisas e sai, deixando Guima a sós.).

CENA XVIII

Guima roda pela sala. Entra na cozinha e sai com uma garrafa de cachaça. Dá um gole no gargalo, faz uma

careta, volta a esconder a garrafa. Começa a procurar uns papéis pela casa. Acha-os e vem com eles para a

mesa. Senta-se. GUIMA (Mexendo com os papéis) - Preciso fazer estas contas. É tanta coisa. O Antenor me disse que só dá o empréstimo se eu fizer o levantamento de todo o estoque, e mais o passivo e o ativo... e toda a contabilidade do caixa. Talvez seja melhor pagar um guarda-livros... Será verdade que ele vem? A faxineira me disse, mas eu não acredito nessa estória não... Preciso escrever pra ele contando da loja... (Pára com as contas.) Por que será que aquela moça parou de estudar e foi ser faxineira de padre? Será que se desiludiu de amor por causa do meu Júnior? Ou será que ela e o padre... Não... Isso não... O Padre Augusto pode ser esquerdinha... mas é direito. Coitado! Dizem que apanhou quem nem o diabo lá na polícia! Por causa dos bóias-frias... Mas por que foi se meter com bóia-fria? Lugar de padre é na igreja, não é na lavoura, ah... Tudo isso é muito atrapalhado pra minha cabeça! Deixa eu fazer as contas do Antenor... (Volta às contas.) Quanta fartura, meu Deus! Nem acredito que comprei tudo isto aqui! Beleza de estoque! O Júnior vai babar de alegria e de admiração! É isso! De admiração! Ele tem que me admirar! Ele precisa me admirar! Está certo que eu não sou estudado que nem ele, que nem a amiga dele, que nem o Padre Augusto! Mas eu sei muita coisa da vida, eu sei ganhar a vida! Eu sei lutar com ela e dar uma rasteira, e sair por cima, trotando que nem cavalo dos bons! (Como que se lembrando do que fazia.) Mas o que é isso, Seu Guima? Pra que tanto palavrório? O que é isso? Você tem que terminar essas faturas... Tem que examinar o estoque... Tem que fazer tanta coisa... O estoque... O estoque... Preciso ver se não roubaram o estoque... (Sai e volta meio trôpego, com algumas peças já rotas. Nisso, Júnior entra na casa.).

JUNIOR - Pai, pai! GUIMA - Quem está aí? JUNIOR - Sou eu, o Júnior! GUIMA - Não é o ladrão das Pernambucanas? JUNIOR - Não, pai, sou eu! (Abraçam-se comovidamente.). GUIMA - Quem está girando o mundo, hein filho? JUNIOR - Não sei, pai. Não sei! (Pausa.) Mas vamos tomar um café! GUIMA (Autoritário) - Não me atrapalha que estou trabalhando! JUNIOR - Depois o senhor faz isso! GUIMA - Depois não dá. O ladrão pode voltar de novo e aí a gente fica sem o estoque. E eu preciso medir pra colocar lá no papel pro Antenor. Se não, não sai o empréstimo! JUNIOR - Amanhã o senhor faz isso. GUIMA - Amanhã eu quero descansar. Agora que você voltou, posso descansar. É só entregar tudo escrito pro Antenor, e passar a loja pra você... E, depois, descansar... Eu tenho trabalhado muito meu filho, muito mesmo. JUNIOR - Eu sei, pai! GUIMA - Não sabe, não! Não sabe, não! Quer ver? (Joga uma das peças para Júnior.) Estenda essa peça de sarja aí... JUNIOR - Deixe para amanhã, pai! GUIMA (Autoritário) - Vai lá, menino! (Júnior obedece. Pega a peça de sarja e estende sobre o chão.) Veja que mundão de pano! É sarja de primeira! Agora, estende esta de chita! (Júnior faz o mesmo com a chita.) Já sei... Já sei o que você está pensando... Eu não gosto de

trabalhar com chita. Mas vende bem... Vende muito bem... Mas amanhã vão entregar umas peças de tecidos mais finos... de voil... de amorela. Mas quanto tem! JUNIOR - Eu não tenho metro aqui! GUIMA - Meça com passadas... JUNIOR - Eu não sei, pai... Mas vi que é bastante pano! GUIMA - Você não viu nada! (Levanta-se meio com dificuldade e vai até onde o tecido está esparramado. Andando sobre o pano, como se o medisse com passadas largas.) Tem um mundo de pano aqui... Um, dois, três, dez, vinte, trinta metros... Dá pra fazer calça de sarja pra toda homarada e vestido pra toda a mulherada de Torrinhas. É um bom estoque, não é Junior? JUNIOR - É sim, pai. GUIMA - Levei muito tempo pra juntar tudo isto. Mas agora ele é seu. Estou dando tudo isso de papel passado... Tudo seu... Agora posso ir encontrar Candê em Poços de Caldas e ficar sossegado por lá... Descansando num caramanchão de primavera! Pegue essas duplicatas aí! JUNIOR - Que duplicatas? GUIMA - Essas que estão aí em cima da mesa. São duplicatas de tecidos que já comprei nas melhores casas do ramo. JUNIOR (Pegando os papéis) - Aqui só tem faturas, pai... Faturas que não foram pagas! GUIMA - Que é isso, menino? Contrariando seu pai? Você não está lendo direito! Até parece que não fez faculdade... Até parece que não é líder! ... É duplicata... duplicata paga de mercadorias a entregar... Quantos metros de Voil estão marcados aí? JUNIOR (Amargurado) - Cinco... seis...

GUIMA - Que é isso, menino? Vinte e cinco... vinte e seis... E algodão do bom! JUNIOR - Trinta, pai? GUIMA - Trinta e oito. E amorela? JUNIOR - Cinqüenta, pai? GUIMA - Cinqüenta? Então estou louco! O que vou fazer com cinqüenta metros da mesma amorela? É muita coisa! Não se pode ter muito pano repetido! Está escrito cinqüenta aí, menino? JUNIOR (Muito emocionado) - Acho que li errado, pai. São trinta e oito também! GUIMA - Ah, bom! Eu devia estar louco de pedir mais... E pode ver que tem seda, cetim, juta e... JUNIOR (Fazendo um esforço) - E JK, pai, tem? GUIMA - Que é isso, menino? Isso já caiu de moda há muito tempo. Tem cabimento... JK... Tem cabimento? Ô Júnior, agora que você vai ser o dono da A Admirada, não vá me fazer besteira, hein! JUNIOR - Pode deixar, pai. GUIMA - Eu não vou poder cuidar de você, não. Me dá essas duplicatas! (Júnior passa os papéis para Guima.) Missão cumprida! Passo toda A Admirada para você... Tudo... tudo... Todo o estoque... as duplicatas... as filiais... os empregados... e vou embora daqui! (Joga as faturas no chão. Júnior abaixa-se para apanhá-las.) Agora, a única coisa que quero é que me peça desculpas! JUNIOR - Do que, pai? GUIMA - De não ter confiado em mim! JUNIOR - Eu confiei, pai!

GUIMA - Confiou coisa nenhuma! JUNIOR - Confiei, sim... GUIMA - Então prova... JUNIOR: Como? GUIMA - Se sua mãe estivesse aqui, mandava você rezar o ato de contrição... JUNIOR - Eu não sei mais... GUIMA - Vou lhe contar uma coisa. Eu nunca soube. Sempre precisava ler aquele papelzinho que ficava colado no confessionário... Ela mandava a gente confessar uma vez por ano... na época da Páscoa... Agora, nem mais isso... Também. Não gosto dessa padraiada sem batina... JUNIOR - É tudo igual, pai. GUIMA - Talvez seja. Mas meu negócio não é com eles... quer dizer... não é com padre... Acho que nem com Deus... JUNIOR - Com quem é? GUIMA - Comigo mesmo! JUNIOR - Não entendi, pai! GUIMA - Não tem importância! Recolhe esses panos aí, menino, senão o ladrão vem e você fica sem nenhum. E pegue esses papéis também. Essas duplicatas valem milhões. (Júnior começa a recolher os papéis e panos. Guima se dirige para a porta interna.). JUNIOR - Aonde o senhor vai? GUIMA - Não é da sua conta!... Vou me encontrar com a Candelária! JUNIOR - O Senhor não prefere descansar antes?

GUIMA - Eu já comecei a descansar. Alcebíades Antonio Guimarães Junior, o senhor agora é o dono da A Admirada! JUNIOR - Sim senhor! (Guima entra, enquanto Júnior continua a ajeitar as coisas. Tempo. Ouve-se um tiro de espingarda dentro do quarto. Tempo. Abraça-se aos panos. Tempo.) Pronto, Seu Guima, está tudo acabado. Acabo de assumir o seu reinado. O meu manto é uma peça de sarja e meu cetro é uma garrafa de caninha! Mas eu não quero essa herança, pai! Eu só preciso da memória pra continuar lutando!

CENA XIX

Noite. Júnior está sentado na sala em desordem, mexendo com uma cesta de Natal, que está cheia de

badulaques de infância. Tempo. Ele toca uma gaitinha. Tempo. Marisa entra, com um embrulho na mão.

MARISA - Oi Bira... Eu trouxe alguma coisa pra você comer. JUNIOR - Oi, Marisa... Eu estou aqui descobrindo o Tesouro da Juventude... Minha mãe guardava tudo... (Apanha um estilingue.) Marisa, olhe a minha primeira arma revolucionária... MARISA - Bira, eu... preciso falar com você... Desde que você chegou que eu preciso falar... Mas aconteceu tudo aquilo, não é? JUNIOR (Seco) - É. Mas eu não gostaria de tocar mais nesse assunto. MARISA - Não é a respeito do seu pai. Não se preocupe, eu já cuidei de toda a documentação necessária. É sobre a gente! JUNIOR - Eu não tenho tempo, nem saco, pra qualquer conversa séria. MARISA - Você tem que ouvir, Bira.

JUNIOR - Marisa, por favor... Eu estou aqui arrumando as minhas coisas, dando um fim dessa tralha toda... porque quero sumir daqui. Tenho muito que fazer. Tenho que cuidar da minha vida. MARISA - Tá, eu entendo! Mas eu estou confusa, e achei que você precisava saber disso! JUNIOR - Você está sendo egoísta. Depois a gente conversa. (Marisa prepara-se para sair.). JUNIOR - Desculpe, eu estou péssimo. O que está acontecendo? MARISA - Nada. Aqui nunca acontece nada. Comigo nunca acontece nada. Toda a tragédia do mundo foi reservada para você. JUNIOR - Agora é você que está sendo agressiva. MARISA - Estou, estou sendo agressiva. É que passou muita coisa... passou muito tempo... A gente mudou muito... Eu não sou mais aquela estudante de dez anos atrás... Sei que pra você a barra foi pesada. Mas para mim também foi. Ter que mudar toda a minha cabeça pra entender como funcionavam as coisas aqui. Eu, uma pessoa da capital, sempre no meio das atividades intelectuais, políticas, universitárias... De repente... por opção, sim... uma professora trabalhando com bóia-fria, tendo que aprender a linguagem deles, e ver realmente o universo deles, e tentar mexer com isso, pra oferecer alguma alternativa de vida melhor. Ao lado de tudo isso, minha barra emocional... Foi o que me fez romper com a organização, você sabe... JUNIOR (Agressivo) - Sim, eu sei! MARISA - A minha ligação com você, por exemplo... (Júnior não diz nada.) Você não quer falar disso, não é? JUNIOR - Não... não quero falar sobre isso. Como você mesma disse, a gente mudou muito... E, apesar de transarmos naquele tempo, você nunca abriu o jogo! MARISA - Que jogo, Bira? Eu tenho certeza de que, naquela época, nós estávamos totalmente tomados pela nossa luta! Mas não se

preocupe que eu não vim aqui cobrar amor na linha da seduzida e abandonada. Vim falar sobre o Pedro! JUNIOR - Eu estava esperando um momento mais adequado para falar sobre o Pedro. Mas, já que você insiste. Você fez uma puta sacanagem... Você nem me escreveu contando. MARISA - Até agora eu estava relutando em te contar. Achava que essa era uma trajetória minha e não sua. Mas depois pensei que seria uma deslealdade você não saber. E um filho naquela altura do campeonato, não iria ajudar em nada... JUNIOR - Eu não teria caído fora... MARISA - Você não podia ficar! JUNIOR - Você nem me consultou, porra! MARISA - Sobre o que? Sobre as possibilidades de deixar uma continuidade? Não, meu querido, esse moleque tem uma individualidade própria, que não minha nem sua. A paternidade, afinal, acaba sendo uma relação de convivência. Aprendi isso aqui, onde um menino de dez anos já tem que batalhar pelo próprio sustento, pois não tem pai que o ajude... (Vai sair. Júnior a segura.). JUNIOR - E como ele é hein, Marisa? MARISA - Ah, Bira, aparece lá pra conhecê-lo! (Júnior tira o estilingue que mantivera no pescoço.). JUNIOR - Marisa, você entrega isso ao Pedro? MARISA - Entrego, e digo que quem mandou foi um velho lutador! (Quando Júnior vai entregar o estilingue a Marisa, entra uma voz off, que preenche todo o palco.). LOCUTOR - E atenção: duas bombas explodiram agora à noite no estacionamento do Riocentro, onde estava sendo realizado um show em homenagem ao 1º de maio. Uma pessoa não identificada morreu e o capitão Wilson Chaves Machado ficou gravemente ferido. Dentro do

Riocentro, vinte mil pessoas comemoravam o Dia do Trabalho. (Júnior e Marisa ficam estáticos. Depois, Júnior lentamente começa a armar seu estilingue e dispara contra o vazio.).

FIM