Lu Mounier - O jardim da luz continuação

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Vovo costumava dizer que a Esperança deveria ser a última a morrer, e que enquanto houvesse esperança, haveria vida. Se for verdade ou não pouco importava, porém, a única alternativa que me restava era acreditar que um dia eu voltaria à re encontrar o grande amor da minha vida e podermos viver em paz. Enquanto eu estivesse vivo, lutaria para manter acesa a chama do meu amor. -Hans... - Interrompeu-me mamãe adentrando em meu quarto. -Já? -Recebi uma carta de papai! -O que aconteceu com o vovô? - Perguntei assustado. -Nada. Disse que ele e mamãe estão sentindo-se muito sozinhos e virão passar um tempo conosco, já que também estamos praticamente sozinhos. -Que legal! Quando chegam? -Na próxima semana. Sentei-me à mesa da cozinha. Ao ligar o rádio, o ministro da propaganda Joseph Goebbels falava a nação alemã de dentro do estúdio fortemente protegido, informando que a Alemanha invadira a Polônia. A notícia abalou o mundo. No dia 1º de setembro de 1939, sem aviso as forças alemãs cruzaram a fronteira polonesa.

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Vovo costumava dizer que a Esperança deveria ser a última a morrer, e que enquanto houvesse esperança, haveria vida. Se for verdade ou não pouco importava, porém, a única alternativa que me restava era acreditar que um dia eu voltaria à re encontrar o grande amor da minha vida e podermos viver em paz. Enquanto eu estivesse vivo, lutaria para manter acesa a chama do meu amor.

-Hans...

- Interrompeu-me mamãe adentrando em meu quarto.

-Já?

-Recebi uma carta de papai!

-O que aconteceu com o vovô?

- Perguntei assustado.

-Nada. Disse que ele e mamãe estão sentindo-se muito sozinhos e virão passar um tempo conosco, já que também estamos praticamente sozinhos.

-Que legal! Quando chegam?

-Na próxima semana.

Sentei-me à mesa da cozinha. Ao ligar o rádio, o ministro da propaganda Joseph Goebbels falava a nação alemã de dentro do estúdio fortemente protegido, informando que a Alemanha invadira a Polônia.  A notícia abalou o mundo. No dia 1º de setembro de 1939, sem aviso as forças alemãs cruzaram a fronteira polonesa.

Da sacada do escritório da chancelaria, Adolf Hitler falou ao povo:

"Faremos o nosso dever."

Dois dias após a invasão da Polônia, França e Grã-Bretanha declaram guerra a Alemanha. Na Grã-Bretanha, eis que o primeiro ministro anunciara a seu povo: "

Estou falando para vocês do gabinete número 10 da Rua Downing. Esta manhã o embaixador britânico em Berlim entregou ao governo alemão uma nota final declarando que, a menos que ele respondesse até às 11h00 da manhã que estavam preparados para retirar seus soldados de Berlim,

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haveria um estado de guerra entre nós. Preciso lhes dizer agora que tal garantia não foi recebida e que, conseqüentemente este país está em guerra com a Alemanha".

Chamberlain Havia combates por todas as ruas da Polônia, em Danzig. A fronteira entre Polônia e Alemanha desapareceu, enquanto os poloneses resistiam e enfrentavam uma barreira de 32quilômetros de aço e poder de fogo com sua antiquada cavalaria. Hitler vai até a frente de combate observar o massacre em

Poznan

. Em três semanas, a nação polonesa estava reduzida a cinzas, sem resistência. Embora França e Grã-Bretanha tomassem a iniciativa de ajudar o país atacado,havia pouco que pudessem fazer.

Cerca de trinta minutos após a invasão nazista, os aviões da

Luftwaffe

Sobrevoaram a Polônia, destruindo sua força aérea. A maioria surpreendida ainda no chão, e os aviões que conseguiram decolar se viram em minoria, sendo logo abatidos. Os alemães possuíam cinco mil tanques super modernos, enquanto a Polônia dispunha de aproximadamente 600 comuns. A Luftwaffe possuía seis mil aviões modernos, e a Polônia, menos de mil em modelo inferior. As esquadrilhas nazistas invadiram a Polônia destruindo estradas, comunicações, estações de rádio, usinas elétricas, pontes e ferrovias. O exército polonês encontrou-se desorganizado com a perda de sua força aérea e sem comunicação.  Em terra, os nazistas avançavam. Durante vinte dias de morte e horror, cada homem, mulher e criança lutaram para salvar o país. Mas sem comida e água, a resistência acabou.

Esperei o bonde passar para poder atravessar a rua. Caminhei pela calçada por dois quarteirões, até o prédio onde Stephan morava. Naquele momento ventava forte, fazendo-me bater o queixo involuntariamente. Abri lentamente a porta do edifício, tomando cuidado para não ser visto por quem passava por ali. Subi a escada até o primeiro andar, procurando nas portas dos apartamentos o número 202. Ao chegar ao segundo andar, encontrei. Meu coração acelerou. Minha perna direita tremia como nunca. Respirei fundo, tomei coragem e bati três vezes à porta. Pouco tempo

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depois ela foi se abrindo lentamente, até a distância de um palmo. Um olhar curioso revelou-se por trás daquele pequeno espaço entre a porta e o batente.

-Pois não?

- Questionou uma senhora curiosa.

-Hallo!... Poderia falar com Stephan?

-Quem é você?

-Fischer... Hans Fischer

.-Fischer?...

-Ja... Sou irmão de Patrick Fischer, o melhor amigo de Stephan.

-Ah sim! Entre, por favor...

- Pediu esboçando um leve sorriso abrindo a porta.

-Com licença, senhora...?

-Heiselmann, Marta Heiselmann.

-Ah sim!

-Sente-se, por favor.

- Falou enquanto girava a chave.

-Danke! Mas preciso ser breve.

-Ora, por favor, não recuse um convite de uma velha senhora solitária.

- Riu.

-Tudo bem, não recusarei.

-Pelo menos essa tarde não tomarei chá sozinha. Vou lhe servir uns biscoitos amanteigados que eu mesma preparei.

-Danke!

Enquanto aguardava aquela simpática e generosa senhora buscar o chá na cozinha, permaneci sentado naquela velha poltrona de couro escuro e gasto.

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Silêncio. O pêndulo do cuco ia e vinha num ritmo constante. Na parede recoberta por papel com desenhos florais havia um retrato de um senhor, provavelmente o esposo da senhora Heiselmann, emoldurado em um quadro dourado e prata.

-Aqui está!

- Exclamou ela portando uma bandeja nas mãos.

-Hum... Minha barriga já respondeu só de sentir o cheiro do seu chá... Maçã?

-Ja! Gosta?

-Muito!

-Vou lhe servir então...

-Ta bom.

Enquanto servia-me seu chá de maçã, ela comentava:

-Eu não sabia que você também era amigo de Stephan...

-Bem... Na verdade não sou.

-Não?

-Não.

-Então...?

-O que acontece é que pedi um favor a Stephan, e ainda não obtive resposta. Sendo assim, resolvi saber o que aconteceu...

-Favor? Que tipo de favor?

- Perguntou levando um biscoito a boca.

-Ele não comentou nada com a senhora?

-Não...  Na verdade, já faz alguns dias que não o vejo.

-Mas ele não mora aqui?

-Sim, mora...

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-Então?

-Humpf... Stephan vem apresentando um comportamento muito estranho.

- Lamentou repousando sua xícara ao pires.

-Comportamento estranho?

-Ja. Stephan está cada vez mais agressivo rebelde...

.-Bem, desde que o conheço, ele sempre foi assim.

- Comentei antes de dar um gole no chá.

-Não!... Stephan era um rapaz doce, carinhoso, estudioso

.-Então o que explica ele ser atualmente tão malvado quanto um SS?

Levantando-se do sofá, ela esclareceu:

-Após a morte de meu marido, Stephan ficou muito abalado, pois era muito apegado ao pai. Para que não se sentisse muito sozinho e aconselhada pelo meu cunhado, acabei o colocando na Hitlerjugend¹... Stephan nunca mais foi o mesmo.

-Senhora Heiselmann...

-Marta.

-Como?

-Pode me chamar apenas de Marta!

-Bem... Marta, minha mãe também está muito decepcionada com o comportamento de Patrick... Essa perseguição aos judeus...

.-Perseguição? O Patrick também está envolvido nessa paranóia?

-Ja.

-Gott!

- Exclamou sentando-se ao sofá.

-Patrick foi capaz de denunciar a família de um amigo meu ao governo. Conseqüentemente eles foram expulsos da Alemanha.

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-Humpf... Você acha que Stephan tem participação nisso?

-Não sei, mas quando precisei de sua ajuda ele concordou em meu ajudar. Claro que não saiu de graça.

-Seja mais claro?

Obs: - Hitlerjugend:

Juventude Hitlerista. Tratava-se de uma instituição governamental da qual os jovens, crianças e adolescentes de ambos os sexos entre 6 e 18 anos eram obrigados a participar. Criada pelo Estado entre 1922 e 1945, começou como um pequeno movimento, e a partir de 1936 com o alistamento obrigatório, cerca de 3,6 milhões de membros foram recrutados. Em 1938, os números alcançavam 7,7 milhões, e em1939, já no período pré-guerra, decretou-se recrutamento geral.

-Dona Marta... Eu preciso ajudar meu amigo Eliezer a sair da Europa, mas para isso necessitamos de um passaporte falso, porque ele é judeu.

-E o que Stephan tem a ver com isso?

-Stephan possui conhecidos que falsificam documentos perfeitamente, então pedi sua ajuda em troca do único bem valioso que eu possuía...

Assustada, dona Marta levou sua mão à boca ao mesmo tempo em que esbugalhou olhos.

-Como eu posso ajudá-lo, Hans?

-Perdão...?

-Quero saber como eu posso ajudar você e seu amigo.

-A senhora?

-Ja.

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-Bem... Confesso que fui pego de surpresa...

-Nunca concordei com essa perseguição a judeus...

-Algum motivo em especial?

-Um dia eu lhe conto, quem sabe!

-Desculpe.

-Vai aceitar minha ajuda?

-Claro!... Mas, quanto irá me custar?

-Encare isso como um pedido de desculpa pelo que Stephan fez contra seu amigo ajudando seu irmão.

-Danke!

- Agradeci com um enorme sorriso.

- Stephan disse que ainda essa semana o documento estaria pronto, sendo assim, gostaria de poder buscar meu amigo e trazê-lo para Berlim. Seriam poucos dias de espera até que os documentos estejam em nossas mãos.

-Entendo...

-A senhora sabe onde ele poderia ficar?

-Ja. O apartamento de minha irmã está vazio, pois ela está na Suíça...

Levantando-se do sofá, deu uma volta pelo sofá e continuou:

-Tenho as chaves do apartamento... Vou emprestar a vocês!

-Está falando sério?

- Levantei-me.

-Mas é claro que sim!

-Dona Marta... Nem sei o que dizer...

-Não se preocupe com isso! Mas por favor, não comente nada com ninguém. Nem com sua mãe.

-Será um segredo nosso!

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-Ja.

-Agora preciso ir, logo irá anoitecer e do jeito que as coisas estão...

-Eu o acompanho até a porta

.-Danke!

-Hans...

-Ja?

-Sua mãe deve ter muito orgulho de você.

Comentou com os olhos cheios d’água.

-Por que diz isso?

Abotoando o casaco até o pescoço abaixei a aba do chapéu e coloquei as mãos no bolso. Caminhei em passos longos em direção a casa onde estava o Eliezer, tomando cuidado para não ser visto por ninguém. Meu medo era tanto que eu chegava a suar. Subi a escada do prédio na ponta dos pés para não chamar atenção. Na metade dos degraus tirei meu relógio do bolso e vi que já passava das três da tarde. Continuei a subir, e quando faltava apenas um andar, eis que uma família passa por mim. Os cumprimentei rapidamente e apressei os passos. Seus olhares desconfiados me deixaram com receio, mas mantive-me firme, sem transparecer o nervosismo. Antes de abrir a porta, olhei de um lado para o outro, tomando cuidado para não ser visto por algum vizinho. Entrei rapidamente. Sentado a mesa estava o Eliezer, chorando. Preocupado, aproximei-me dele perguntando:

-O que aconteceu, Eli?

Esfregando o olho ele entregou-me o papel que dizia:

Lodz, 15 de outubro de 1939.

Querido irmão,

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Esperamos que você tenha chego bem de volta a Berlim. Nossa situação está complicada. Ontem, por volta das oito da manhã fomos acordados com fortes batidas a porta. A Gestapo entrou em nossa casa e em minutos, após uma minuciosa revista, nos expulsou de casa apenas com a roupa do corpo. Devíamos nos mudar para o gueto. Levaram nossos pertences pessoais, e caso reclamássemos, seriamos fuzilados. Nossa casa foi confiscada, lacrada, sem que nada pudéssemos fazer. Sentimos sua falta. Não deixe de nos escrever!

Ashira Lovitz

Dobrando o papel, perguntei:

-Como isso chegou até você?

-O rapaz que trabalha na mercearia... Ele conhece meus pais, deixei o endereço dele para nos comunicar.

-Agora, junto com seu povo os conflitos irão diminuir Eli.

.-Eu preciso ir vê-los... Eles estão precisando de mim!

-Está louco? Se te pegarem por ai, podem te levar sabe-se lá pra onde...

Abraçando-me, ele comentou:

-Só você para me dar forças...

Nesse momento ouvimos fortes batidas à porta.

-Você está esperando alguém?

- Perguntou o Eliezer assustado.

-Não...

.-Abram Gestapo!

- Gritaram lá fora.

-Adonai!... O que vamos fazer?

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- Questionou sussurrando.

-Esconda-se no quarto.

-Mas e você?

-Faça o que eu to mandando... Vai, esconda-se!

Esperei que ele encostasse a porta do quarto, em seguida, abri a da sala. Fui empurrado para longe por um soldado que perguntou:

-Cadê o judeu?

-Que judeu?

-Não tente nos enganar, rapaz.

Quando ela pronunciou aquela frase, três homens altos e cara feia adentraram armados até os dentes.

-Não sei do que estão falando... Estou sozinho.

-Vasculhem a casa!

Quando ele deu ordem para que vasculhasse o apartamento eu gelei. Eles foram diretos para o quarto, e ao vê-los entrar naquela sede insaciável, vi minha vida acabar naquele instante. Portas batiam, objetos caiam. Mas de tudo, o pior momento foi quando ouvi um tiro ser disparado. Pensei que tudo estava acabado, nossas vidas chegavam ao fim, até os soldados voltarem exclamando:

-Nada, senhor! Não encontramos nada...

-Muito bem... Não foi dessa vez, mas não desistiremos. Estamos de olho em você, rapaz.

Após deixarem o apartamento, levei certo tempo até entender que ainda estava vivo. Ofegante, corri até o quarto, que revirado já não tinha mais nada além da bagunça.

-Psiu!... Hans me ajude aqui!

- Pediu o Eliezer pendurado a janela. Corri até ele comentando:

-Meu Deus!... Eu quase morri do coração. Você quer me matar?

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-Eu não... A Gestapo talvez.

-Pensei que haviam lhe encontrado quando ouvi aquele tiro.

-Posso ter cara, mas não sou tão tonto a ponto de deixar me pegarem tão fácil.

Abraçamo-nos forte, e assim permanecemos por um bom tempo.

"Eu realmente não tinha esperanças de sobreviver. Quando estava uns cinco minutos deitada na vala, pensei que a morte ainda viria. Só notei que ainda estava viva quando ouvi os assassinos indo embora cantando, bêbados".

Rozele Goldstein

Sobrevivente do Holocausto 

Melancólico, o Eliezer pediu:

-Hans... Já faz dias que não vejo a rua... Respiro ar puro... Sinto falta da minha liberdade!

-Você sabe que isso é provisório!

-Sim, eu sei!

Tirando o envelope do casaco, falei:

-Veja o que eu tenho aqui...

-O que é isso?

-Seu passaporte!

-Nossa!

-Agora nós já podemos partir para o Brasil. Só preciso providenciar as passagens de navio...

-Não poderia haver notícia melhor do que essa!

Após um profundo suspiro, continuei:

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-Mas tenho que te contar uma coisa...

-O quê?

-Humpf... A senhora Heiselmann procurou-me hoje para pedir ajuda, e também me alertar.

-Alertar?

-Ja... Fomos denunciados à Gestapo, e estamos sendo vigiados... Suspeitos de ajudar judeus a fugirem!

-Adonai!

-Isso não é tudo. Há poucas horas estive em sua casa, e não a encontrei.

-Mas ela não estava na SUA casa?

-Sim, mas precisei falar com ela e ao chegar em sua casa encontrei tudo bagunçado e...

-E...?

-E... Quando cheguei à rua de seu prédio avistei um carro da Gestapo saindo, e ao entrar em seu apartamento... A luva que ela usava quando foi em casa estava caída no chão de sua casa, com respingos de sangue.

-Humpf...

-Você acha quê...

-Tenho certeza que eles a levaram.

-E agora? Os próximos seremos nós!

-Calma... Não vamos pensar no pior. Seremos mais cautelosos quando andarmos por ai.

-Temos que partir logo então...

.-Ja!

Esperamos o final da tarde para podermos sair para um passeio. Para não chamar atenção, pedi ao Eliezer que retirasse de sua roupa a Estrela de Davi amarela dessa forma sua identificação não seria tão notória. Após caminharmos por quase uma hora pela floresta longe da cidade, paramos

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para descansar um pouco. Abraçados, permanecemos encostados em uma árvore. Com sua cabeça apoiada em meu peito, o Eliezer comentou seguido de um profundo suspiro angustiado:

-Hans...

-Hum?

-Será que meus pais estão bem?

-Não há porque não estar... Foram levados para um bairro só de judeus!

-Mas aquela carta me deixou angustiado, sabe...

-Tire isso da sua cabeça. Uma hora dessa sua família deve estar trabalhando junto com os outros judeus...

-Meu coração está apertado...

Dando-lhe um beijo na testa, falei:

-Não se preocupe que nós vamos encontrá-los. Primeiro temos que resolver nossa situação.

-Você promete?

-Prometo!

Quando íamos iniciar um beijo ouvimos um barulho de carros se aproximarem.

-Está vindo alguém!

- Disse o Eliezer afastando-se.

-Vamos sair daqui.

Começamos a correr por dentro da floresta. O barulho estava cada vez mais perto, até que tudo ficou no mais absoluto silêncio. Ofegante, o Eliezer parou perguntando:

-Acho... Acho que conseguimos.

Bastou ele falar e novamente começamos a ouvir ruídos, só que dessa vez já não eram mais tão distantes de nós.

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-E agora, Hans?

-Psiu! Não faça barulho! Espere aqui...

A nossa frente havia um muro de pedras, e sem ter alternativa, corri até ele, escalei as pedras e lá de cima estendi a mão dizendo:

-Vem!

Olhando, o Eliezer falou:

-Eu não vou conseguir...

Ao olhar entre as árvores, avistei vários soldados aproximando-se através daquela estrada de pedras. Fiquei assustado. Imediatamente desci até onde ele estava e peguei em seu braço dizendo:

-Nós precisamos sair daqui agora!... Os soldados estão vindo pra cá.

Desesperado, escalei novamente o muro sem largar sua mão. Barulho de gritos e passos estavam cada vez mais perto e alto.

-Hans... Eu estou escorregando...

-Agüenta mais um pouco, Eli... Nós já estamos conseguindo.

Já no topo do muro, pulei para o outro lado, esperando pelo Eliezer logo abaixo.

-Pode pular que eu te seguro.

- Falei.

-Hans... Eu vou pular!

-Vem!

Assim que ele pulou eu o peguei. Ficamos observando pelas frestas. Estávamos assustados, com medo de sermos vistos. Quietos, assistíamos a tudo amedrontados, pois o risco de sermos vistos pelos soldados era eminente. Após estacionarem três carros na estrada ainda na floresta, os soldados com suástica nazista nos braços arrastavam várias mulheres enfileiradas até a clareira próxima ao muro do cemitério onde estávamos escondidos.

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-Andem!... Andem!...

- Gritava um dos soldados. As mulheres choravam, aparentando estar cansadas. Não cheguei a contar, mas certamente havia mais de cem entre crianças e idosas.

-Todo mundo tirando a roupa e colocando aqui.

- Gritou o mesmo soldado. Segurando minha mão o Eliezer sussurrou:

-Estou com medo, Hans.

-Calma, procure ficar quieto, por favor.

-Ta.

Depois de tirarem as roupas, os soldados pegavam as garotas mais jovens e as levavam para o meio da floresta, onde eram estupradas seguidas vezes por eles até desfalecerem, enquanto as mais velhas eram enfileiradas em frente uma vala rasa, cavada por elas mesmas pouco antes de tirarem suas roupas.

O frio estava nos incomodando, e a umidade da floresta contribuía ainda mais para aumentar a sensação de térmica. Segurando a mão do Eliezer percebi que ele tremia, mas não era de frio, mas sim de puro medo. Rindo, um dos soldados mandou que uma senhora largasse as duas crianças que segurava nos braços. Implorando, ela gritava para que não fizessem nada com seus bebês, mas não adiantou, pois ele atirou nela e em suas crianças.

-Adonai!

- Exclamou o Eliezer aterrorizado com a cena que havíamos acabado de ver.

-Psiu... Por favor, Eli...

-Eu vou lá...

- Sussurrou.

-O quê?

-Alguma parenta minha pode estar no meio dessas mulheres...

-Você não vai poder fazer nada...

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- Pedi apavorado.

-Não posso deixar que eles façam meu povo...

-Eliezer!

- Interrompi.

- Por tudo que você mais ama, não faça uma besteira.

-Você não tem idéia do quanto meu peito está doendo...

-E você acha que pra mim é fácil esse tipo de cena diante dos meus olhos sem nada poder fazer?

Ouvimos mais dois tiros. Os gritos não paravam, e uma matança desenfreada acontecia covardemente. Mulheres, antes felizes, agora tinham seus corpos amontoados em valas, nus, sem um pingo de dignidade, compaixão.

Já havia escurecido quando os soldados foram embora, deixando para trás uma mancha que marcou a História para sempre.

"Já estávamos despidos enquanto éramos conduzidos. Nossas roupas foram retiradas e levadas embora. Papai recusou-se a tirar suas roupas, então foi espancado. Nós imploramos, suplicamos para que ele as tirasse, mas ele não fez, não queria ficar nu. Nada adiantou. Os soldados rasgaram suas roupas e depois o mataram. Em seguida pegaram mamãe. Desesperados, pedíamos: „Deixe-nos ir até ela? ‟

Sem um pingo de clemência atiraram nela também. Assistimos isso com nossos próprios olhos, sem que nada pudéssemos fazer. Depois foi vovó. Com duas crianças no colo, morreu aos 80 anos perfurados pelas balas do ódio indescritível de uma minoria, assim como minha tia ao seu lado. Minha irmã mais nova correu nua, implorou, pediu aos alemães que a poupasse abraçada a uma amiga. Ele olhou no fundo de seus olhos e atirou nas duas. Elas caíram imediatamente, abraçadas, minha irmã e sua amiguinha. Aproximando-se de mim, perguntou aquele alemão: “Em quem você quer que eu atire primeiro?”

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Calei-me. Fechei meus olhos e senti que ele pegava a criança de meus braços que de medo chorava, gritava. Ele atirou nela, e depois em mim. Cai na vala entre os corpos. Naquele instante pensei que estivesse morta, que aquela era a sensação que vem depois da morte. Mas logo senti que estava sendo sufocada. Outras pessoas, corpos caiam sobre mim, empurrando-me cada vez mais pro fundo. Com a pouca força que me restava, subi até o topo daquela 'sepultura'. Eu tentava ver onde terminava aquela fileira de corpos, mas era impossível. Nem todos estavam mortos, permanecendo ali, deitados, nus em seu último sofrimento. As crianças gritavam„ Mamãe!‟... Papai”.

Depoimento de uma sobrevivente

A noite já estava alta quando voltamos para casa, decididos que não iríamos mais esperar.

Abri a porta de casa.

Estava tudo escuro. Fechei a porta lentamente para não fazer barulho. Dei apenas dois passos até sentir um tapa. A luz acendeu. Com um cinto na mão papai me esperava.

-Vater!...

-Seu desgraçado! Eu vou acabar com você...

-Por favor, pare com isso...

Todos que já estavam dormindo, foram até a sala para ver o que acontecia. Papai me batia com força, com ódio.

-Oliver! Pare com isso... Pelo amor de Deus!

- Pediu mamãe entrando na frente.

-Você está louco, Oliver?

- Gritou vovô.

-É por isso que esse rapaz continua assim... Você sempre passando a mão na cabeça dele.

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-Ele é meu filho!

- Respondeu mamãe abraçando-me.

-E meu também... E filho meu não vai envergonhar a Alemanha, enquanto eu viver vai servir ao Führer e honrar nossa raça!

-Você está tão louco quanto Adolf Hitler. Vá para seu quarto, meu neto.

-Ja, vovô.

Passei por vovó, que chorando lamentava a cena que presenciava. Meu olho estava inchado, dolorido. Tirei meu casaco e deitei-me sobre a cama. Ao fechar os olhos ouvi passarem a chave na porta. Levantei-me imediatamente. Tentei abri-la, mas não adiantou.

Revoltado, ele levantou-se da cama, pegou o abat-jour e jogou à parede gritando:

-Drogaaaaaaaa! Não é justo!...

Corri até ele e o segurei para que não atirasse mais nada, pedindo desesperadamente:

-Não!... Pelo amor de Deus, pare!

-Isso é injusto, Hans!

-Eu sei, mas sozinhos não temos forças contra a Gestapo, SS...

Chorando muito ele encostou sua cabeça em meu peito. Queria um dia acordar e receber a noticia de que tudo aquilo não passou de um pesadelo, uma noite mal dormida com um breve fim, mas infelizmente aquela era nossa realidade. Após um profundo suspiro, toquei em sua face com as duas mãos e falei:

-Agora precisamos dormir... Vou deixar tudo pronto para quando sairmos no início da manhã não perdermos muito tempo.

Fazendo sinal com a cabeça ele concordou. Peguei suas malas e caminhei em passos largos até a sala. Coloquei-as sobre a mesa, pois estavam um pouco pesadas. Esfregando uma mão à outra, comentei:

-Nossa! O que você tanto leva dentro dessa mala?

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Antes que ele respondesse, alguém bateu à porta. Olhamo-nos assustados. Caminhando em direção à porta na ponta dos pés, fiz sinal para que voltasse ao quarto e fizesse silêncio. Segurando ao batente da porta, perguntei:

-Quem é?

-Sou Helene, vizinha do lado.

Desconfiado, abri parcialmente a porta questionando:

-Sim?

-Bem... Eu ouvi um forte barulho e vozes, queria saber se está tudo bem.

- Falou tentando enxergar o interior da sala.

-Sim, por aqui está tudo bem.

-Tem mais alguém com você?

-Estou sozinho, senhora

.-Há quanto tempo mora aqui? Nunca tinha o visto...

-Qual a razão de tantas perguntas, minha senhora?

-Bem... Ouvimos falar que ainda existem judeus escondidos pela cidade...

-Como pode ver, não sou judeu nem estou escondido.

Nesse momento ouvimos um barulho vindo do quarto.

-Você não disse que estava sozinho?

- Questionou aquela intrometida apoiando a mão à porta.

-Isso não é da sua conta!

-Deixe eu ver se não chamarei a polícia!

- Ameaçou já forçando entrar.

-Tudo bem.

- Respondi liberando sua entrada. Assim que ela entrou, tranquei a porta. Como um leão faminto em caça à presa ela caminhou em direção ao quarto.

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Entrei em desespero. Se descobrissem o Eliezer, na melhor das hipóteses iriam nos separar, algo que eu não estava disposto a aceitar.

Tomado pelo desespero, peguei uma panela vazia que havia sobre a mesa e acertei sua cabeça. Imediatamente ela caiu desmaiada, antes mesmo de chegar ao quarto.

-Vamos embora daqui, agora!

- Falei pegando a mão do Eliezer.

-Mas Hans...

-Não temos mais tempo... Vamos!

Na pressa, deixamos as malas para trás. Descemos aquelas escadas rapidamente, parando logo na entrada antes de cruzarmos o portão. Aquelas alturas, todo cuidado era pouco, pois tínhamos todos contra nós, somente o amor ao nosso favor. Olhando de um lado para o outro da rua, disse ao Eliezer:

-Vamos!

- Sussurrei. Cabisbaixos, seguimos apressados pela calçada até o ponto do bonde. Devido ao horário demoraria a passar, sendo assim, aguardaríamos ali até que o primeiro passasse. Respiramos fundo, pois mais uma etapa estava vencida, pelo menos era o que achávamos, até ouvir nos chamarem. Voltamos a caminhar.

-Não olha e continua andando.

- Falei.

-Estou com medo, Hans...

-Agora não é hora de ter medo, e sim coragem.

Apressamos os passos. Embora eu tivesse tomado todo cuidado ao entrar no prédio, a Gestapo conseguiu seguir-me sem que eu suspeitasse. Notando que os soldados estavam cada vez mais próximos, disse ao Eliezer:

-No três você corre. Um... Dois... Três... Vai!

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Entramos na primeira rua e começamos a correr como loucos. Por sorte não levamos um tiro. Ao chegarmos ao parque, escalei o muro primeiro e ajudei o Eliezer a subir. Cada minuto que passava, nosso destino se distanciava, aumentando nossa angústia. Cansado, o Eliezer falou:

-Não quero mais fugir.

Entrei em desespero.

-Eli, por favor, precisamos sair depressa.

-Não! É a mim que eles querem não você

.-Pelo amor de Deus, não se entregue...

-Corre Hans!... Corre!...

-Sem você eu não vou.

- Respondi chorando.

-Vai, antes que eles te peguem.

-Se eles te levarem, vão ter que me levar também!

Nesse momento ele deu-me um soco, fazendo-me rolar morro abaixo em meio às folhas secas caídas ao chão. Desmaiei. Abri os olhos lentamente, com certa dificuldade devido a luz do dia que começava a clarear. Levantei-me com o corpo dolorido, e um pequeno corte na testa que me fazia sangrar. Voltei pra casa arrasado, mancando e chorando, louco de raiva e remorso.

Abri à porta cabisbaixo, com raiva de mim mesmo por não ter lutado mais. Segui para meu quarto, aproveitando que não havia ninguém em casa. Pelo menos era o que eu pensava, pois logo que passei pelo corredor minha mãe abordou-me:

-Hans! Onde está com a cabeça?

- Questionou séria.

-Que susto, Mutter!

Pegando pelo meu braço, levou-me até seu quarto, fechou à porta e quis saber:

Page 22: Lu Mounier - O jardim da luz continuação

-O que você está pensando, Hans? Está achando que essa situação toda é um parque de diversão?

-Não estou me divertindo... Eu estava fazendo justiça!

Mamãe chorava, mas mantinha seu jeito durão e seco de ser.

-Em meu lugar, minha avó teria te colocado pra fora... Minha mãe...

-E a senhora? - interrompi.

- Vai-me por pra fora de casa?

-Acha que me alegraria-te ver sofrer? Sendo massacrado pela sociedade, pelos nazistas?...

-Mutter...

-Hans você não sabe como uma mulher sofre nesse mundo controlado por homens... Agüentamos tudo caladas, sem poder opinar, escolher...

-Humpft... Obrigado por não ter contado nada ao Vater, Mutter.

- Agradeci abraçando-a. Tocando minha cabeça, disse após um longo suspiro:

-Hans... Pelo amor de Deus... Não deixe que as pessoas abusem de você...

-Não sei preocupe, Mutter... Ninguém ficará sabendo... Somos discretos.

-Meu filho... Você sabe que não foi isso que eu sonhei pra você...

-Eu sei Mutter.

Ouvimos um barulho.

-Seu irmão!

- Exclamou ela correndo em direção à porta...

-Vou para o meu quarto .

-Não...

-Ainda não enlouqueci.

Page 23: Lu Mounier - O jardim da luz continuação

Voltei ao meu quarto, e lá permaneci por dias, comportando-me como um bom rapaz. Papai ficou super feliz, pois ao que tudo parecia, eu havia esquecido aquela história tola de ajudar judeus deixe que ele descubra ou desconfie de algo... Seu pai saiu hoje achando que você estava no quarto.

-Danke!

-Hans, você sabe como o Patrick é... Pelo amor de Deus, ele não pode saber de nada definitivamente. Doce ilusão. Na verdade eu só estava ganhando tempo, aguardando a oportunidade para partir em busca do meu grande amor. Sentados ao sofá, vovô e eu conversávamos quando a campainha tocou. Da cozinha vovó foi atender:

-Eu atendo!

- Disse ela carregando um lindo vaso nas mãos.

-Mutter!

- Exclamou tia Ingrid em prantos.

-Ingrid! O que aconteceu?

-Uma desgraça... Uma desgraça!

- Disse ela abraçando vovó com um papel a mão.

Enxugando as mãos mamãe veio até a sala questionando:

-O que está acontecendo?

Vovô e eu nos levantamos.

-Ingrid! O que aconteceu?

-Gisela... Olha...

- Falou entregando-lhe o papel.

Não era muito difícil de adivinhar o teor daquele papel, e minha suspeita confirmou-se na expressão que mamãe fazia enquanto a lia.

-Gott!

-O que houve Gisela?

Page 24: Lu Mounier - O jardim da luz continuação

- Perguntou vovó, trêmula.

-Robert faleceu, Mutter.

-Gott!

-Meu menino... Meu Robert...

-Julia, sente-a aqui ao sofá...

-Ai, Vater...

.-Venha minha filha, sente-se aqui um pouco.

-Vou buscar um copo com água para ela.

- Disse vovó. Assim que ela se sentou, peguei o papel que informava sobre a morte de meu primo para ler. Partiu nosso coração ver o desespero da tia Ingrid, embora todos nós já estivéssemos preparados para tal notícia. Na verdade Robert foi vítima de um dos princípios do nazismo: O embelezamento do mundo. Segundo a visão do partido, há muito tempo atrás o mundo era lindo, mas a miscigenação e degeneração o poluíram. Somente a volta aos antigos ideais faria a humanidade ascender. Nos anos 1930 Adolf Hitler abriu uma exposição apresentando os ideais de beleza que pretendia adotar, semelhante ao representado pela antiga Arte Grega. Ao anunciar a aquisição da clássica estátua grega “O Discóbolo", Hitler teria dito:

"Notem como o homem já teve beleza física. Só podemos falar em progresso se re- adquirimos tal beleza e a superarmos. Para que possamos enfrentar os deveres de nosso tempo. Vamos nos empenhar na busca da beleza e elevação. Assim, nossa raça e nossa arte resistirão ao julgamento de todo milênio!"

Colocando em prática esse ideal, algumas semanas após o início da guerra, o Führer da Alemanha iniciou o programa de Eutanásia. Dessa vez a nação ficaria livre de pessoas com deficiências. Seu amigo e médico pessoal,

Karl Bradt e seu chefe de Estado-Maior, Philipp Bouhler, selecionaram os médicos que fariam parte do programa. A ordem foi escrita em papel pessoal de Hitler, com datada com o dia em que iniciou a guerra. Trazendo um copo com água da cozinha, vovó questionou:

-Mas não disseram qual a causa do falecimento?

Page 25: Lu Mounier - O jardim da luz continuação

-Dizem na carta que foi por Tifo...

- Respondeu mamãe.

-Tifo? Em um hospital?

- Duvidou vovô.

-É mentira, Vater!... Vocês não estão vendo que isso é só uma desculpa pra justificar a morte do meu filho? Eles mataram o Robert!

Após efetuar testes na prisão de Brandemburgo, Adolf Hitler delegou o médico da SS e recomendou o uso letal de monóxido de carbono. Em seguida foi aberto um escritório em Berlim para o programa, localizado na Rua Tiergarten, número 4, posteriormente utilizado como codinome da organização: T4.

Um formulário foi desenvolvido com questionário e laudo médico, onde eram distribuídos em hospitais e asilos. Os mesmos deveriam ser preenchidos com os dados da patologia, capacidade para o trabalho, religião, raça e ficha criminal de cada paciente. No rodapé era reservado um espaço para a decisão do médico. Um sinal azul significava Vida, e o vermelho Morte. Obviamente os judeus possuíam um status especial. Mais tarde os pacientes selecionados seriam levados, sendo providenciado transporte pela equipe de avental branco da SS. Para que não fosse vistos, as janelas dos ônibus eram pintadas. Antes de transportar o paciente para a unidade de morte aguardavam-se um período. Durante esse tempo a família recebia três cartas. A primeira justificava a mudança do paciente devido à guerra. Já a segunda carta informava que o paciente havia chegado bem em seu destino, e a última, preparada por um departamento especial. Atestava a causa fictícia da morte e dava condolências. Os médicos assinavam as cartas com assinatura falsa, e foi uma dessas cartas que tia Ingrid recebera.

A medicina alemã estava entre as melhores do mundo, com tratamentos modernos e a mais nova tecnologia existente. Porém, aquele papel ambíguo do médico que curava com uma mão e matava com a outra começou a gerar desconfiança no povo alemão. Desesperada, tia Ingrid acusava:

-Foram eles... Foram eles...

-Eles quem, Ingrid?

Page 26: Lu Mounier - O jardim da luz continuação

- Perguntou mamãe.

-Foi as SS, Gisela... Eles mataram meu filho.

-Mas por que eles fariam isso, filha?

- Questionou vovó tocando em sua mão.

-Porque meu filho é deficiente... Especial... Covardes!... Eles são covardes!

Nesse momento papai entrou em casa. Tirando seu casaco, olhou curioso para nós perguntando:

-O que acontece aqui?

-Robert faleceu.

- Respondeu mamãe. O que nos surpreendeu foi a indiferença com que papai tratou a notícia, como se uma barata fosse esmagada.Caminhando em direção ao quarto, ele falou:

-Precisam fazer esse alarme todo?

-Alarme todo? Você fala isso porque não era um filho seu!

- Gritou tia Ingrid revoltada.

-Se eu tivesse um filho aleijado, já teria dado um fim há muito tempo.

-Gott!

- Exclamou vovó

-Oliver!... O que deu em você?

-Nada, querida! Já pensou no que teremos para o jantar de hoje?

-Você não tem coração!

-Vou tomar um banho. Meus sentimentos, Ingrid.

Sem responder ela o olhou indignada. Mamãe parecia não acreditar na cena que acabávamos de presenciar, o que para mim não foi uma surpresa.

-Eu vou embora dessa casa!

-Calma, Ingrid... Você está muito nervosa.

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-Calma? Sou obrigada a ouvir desaforos do seu marido, na situação em que me encontro, e você me perde calma?

-Ingrid, sua irmã tem razão.

-Ninguém sabe a dor que estou sentindo, Vater.

-Nós imaginamos filha... Como mãe eu também não aceitaria a morte de um filho. Eu lhe entendo...

-Danke, Mutter!

Obs: - Em um filme produzido pelos nazistas, eles teriam esclarecido:

"Hoje, as pessoas saudáveis vivem em guetos e casebres. Porém, foram construídos palacetes para os loucos. E eles nem sequer se dão conta de toda beleza que os cerca. O povo alemão mal sabe a extensão dessa peste. O povo alemão não conhece a atmosfera opressiva onde milhares de doentes têm de ser alimentados e tratados. Indivíduos que são inferiores a qualquer animal.

Na cozinha, tentava consertar a alça da chaleira

Que sem querer havia derrubado ao chão, quando vovô chegou discretamente exclamando:

-Aqui está você!

-Bom dia, vovô!

-Bom dia!... Olhe o que chegou para você...

- Disse entregando-me uma carta.

-Uma carta?

-Ja!

-É do Eli, vovô!

-Eu sei... Por isso que tratei de vim logo lhe entregar, antes que seu pai a visse e...

Page 28: Lu Mounier - O jardim da luz continuação

-Danke! Vou ler em meu quarto.

- Falei levantando-me da mesa.

-Vá, meu neto!

Meu coração só faltou sair do peito, tamanha era a ansiedade por notícias suas. Tranquei a porta para não ser pego de surpresa. Deitei-me a cama e abri o papel de dentro do envelope.

Obs: - Em 07 de maio de 1940 o gueto de Lodz já possuía aproximadamente 162 mil moradores convivendo num espaço de 1,6 km².

Lodz, 15 de Abril de 1940.

Hans,

Infelizmente tivemos que nos distanciar para que nossa integridade física fosse preservada. Mas não se preocupe, estou bem, morando com meus pais em Lodz. Longe do que era em Berlim, nossa casa aqui no gueto é muito humilde, e pouco tempo sobra para outros afazeres a não ser trabalhar. Espero que você esteja bem. Penso em você todas as noites, e espero um dia poder reencontrá-lo.

Shalom

Eliezer Lovitz

Aproximei aquele papel em meu peito para sentir um pedacinho daquele que me fazia sonhar. Impossível controlar as lágrimas que desciam a cada suspiro involuntário. Embebido na saudade extrema, adormeci.

-Hans... Hans...

- Chamava mamãe batendo a porta.

-Ja!

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-Sua avó e eu vamos à ópera. Não quer ir conosco?

-Danke, mas prefiro ficar aqui. Vovô não irá com vocês?

-Nein... Disse que está com dor de cabeça.

-Esse velho vive com dores...

- Completou vovó calçando suas luvas.

-Vamos logo, Gisela, antes que perdemos a hora. Odeio chegar atrasada...

-Vamos indo, Hans. Cuide de seu avô para nós...

-Pode deixar.

Fechei a porta da sala, e não demorou muito vovô apareceu, com uma caneca na mão e um charuto na outra.

-Aquelas duas já se foram?

-Sim.

-Ainda bem.

-Por quê? O que houve?

-Mulheres... Só servem para nos perturbar.

-Ainda dói sua cabeça?

-Cabeça? Dor?

-Ja... Disseram que o senhor não quis ir à ópera porque estava com dor de cabeça...

-Ah... Foi a primeira desculpa que me veio em mente...

- Disse sentando-se a poltrona do papai.

-Sabe vovô... Sinto uma tristeza tão grande pelo meu amigo, por não ter conseguido ajudá-lo a fugir.

-E só porque não conseguiu uma vez irá desistir?

-Hum?

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-Se Adolf Hitler tivesse desistido quando foi derrotado nas eleições, hoje não seria o Führer da Alemanha!

-O que quer dizer com isso?

-Na vida, nada é fácil. Não se desiste de uma guerra no primeiro obstáculo que encontramos pela frente. Seja forte, lute pelos seus objetivos...

-O senhor acha que...

-Ah se eu tivesse a sua idade...

Aquela pequena conversa com vovô encheu-me de ânimo. Naquele instante eu decidi. Não importava o lugar que Eliezer estivesse, eu iria encontrá-lo. Alguns dias se passaram, e uma viagem de última hora de papai deu-me a chance que eu precisava.

-Hans... Que mala é essa?

- Questionou mamãe entrando em meu quarto.

-Humpf... Eu preciso ir, Mutter.

-Ir? Ir aonde?

-Salvar a minha felicidade.

Seus olhos começaram a lacrimejar.

-De novo essa história? Será que você ainda não se deu conta de que a vida não os quer juntos?

-Meu amor é mais forte que a vontade da vida. Por isso eu vou tê-lo de volta.

- Respondi colocando mais roupa dentro da mala.

-Meu filho, pelo amor de Deus!... Essa guerra...

-Que venha a guerra! Existe forma melhor de morrer do que por amor?

-Gott!

No final da tarde, tudo já estava pronto para que eu definitivamente partisse. O trem partiria em breve, sendo assim, não poderia demorar muito.

Page 31: Lu Mounier - O jardim da luz continuação

-Hans...

-Vovô!

-Meu neto...

Demos um forte abraço. Chorando, ele desejou-me:

-Talvez, quando você voltar, eu já não esteja mais aqui nesse mundo para comemorar seu sucesso...

-Não diga uma coisa dessas, vovô!

-Mas lembre-se de que eu, seja qual erro for, estive sempre do seu lado...

Aquela despedida foi forte demais. A maior tristeza de tudo era que vovô tinha razão, pois aquela seria a última vez que trocaríamos um abraço, um olhar, antes de sua morte, que acontecera semanas depois. Abri à porta da sala quando mamãe apareceu dizendo:

-Não vai nem se despedir de mim?

-Humpft... Não te queria ver sofrer...

- Falei colocando a mala ao chão.

Demos um forte abraço. Quanto sofrimento! Assim como mamãe, milhares de outras mulheres passavam pelo mesmo sofrimento perdendo seus filhos e maridos na guerra. Mas ela era forte, e isso me servia de incentivo para continuar minha luta. Entregando-me um papel, ela disse enxugando suas lágrimas:

-Pegue!

-O que é isso?

- Questionei.

-Foi pra esse lugar que levaram o Eliezer.

-Que lugar é esse?

-É um gueto... Em Lodz...

-Mas como a senhora descobriu?

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-Coração de mãe não falha... Eu já previa que isso cedo ou tarde iria acontecer... Humpft... Pedi ao Patrick que me desse o endereço desse gueto onde levavam os judeus...

-Ao Patrick?

-Humpf... Ja! Seu irmão não entrou em muitos detalhes, mas disse que esse é um dos lugares onde estão isolando os judeus na Polônia.

-Mutter... Por que a senhora fez isso?

-Porque sei que de qualquer jeito você iria, porém, sem minha ajuda demoraria mais para...

-Humpf... Danke!

- Beijei sua mão.

-Que Deus esteja com você a todo o momento e não lhe desampare.

-Amém!

Após me despedir de todos, peguei um carro de aluguel e parti para a estação de trem. Meu coração estava dividido entre deixar minha família e encontrar o Eliezer, porém, em nenhum momento pensei em desistir. Naquele momento, Lodz era meu único destino. No início do século XX, Pinsk e Lodz eram as cidades onde os vendedores se levantavam cedo as segundas e quintas para vender suas mercadorias no mercado. Varsóvia, capital polonesa, era onde os escritores saboreavam vagarosamente seu chá e descreviam a vida da época. Em Viena, seus parques e amplas ruas viviam repletos de artistas captando momentos de lembranças, ao mesmo tempo em que violinistas transformavam cafés em salas de espetáculo.

Obs: - “Não se pode viver verdadeiramente e desistir do que dá significado e propósito a uma vida inteira.”

- Adolf Hitler

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Obs: No dia 09 de novembro de 1940, em Heckfield, Arthur Neville Chamberlain, Primeiro-ministro do Reino Unido, veio a óbito. Renunciando seu cargo de Primeiro Ministro em 10 de maio de 1940, foi substituído por Winston Churchill.

O barulho de ferro arranhando acompanhado de bruscos solavancos indicava que o trem estava parando. Eu já havia perdido a noção das horas que passei dentro daquele vagão.

-Por favor... Como faço para chegar ao gueto?

- Perguntei a um funcionário da estação. Olhando-me com desprezo ele indicou-me o caminho. Caminhei até o ponto do bonde mais próximo e segui à risca suas orientações. Minutos depois, deparei-me com o tal gueto.

Caminhando pelas ruas, reparei que as pessoas olhavam-me estranho, com ar de repugnância. A quantidade de gente circulando no interior daquele bairro era grande, assim como a sujeira. Duas horas já havia se passado desde a minha chegada, e a fome estava cada vez mais insuportável. Ao passar por uma feira, levei as mãos no bolso para ver se tinha algum dinheiro, quando ouvi alguém chamar meu nome:

-Hans!? Virei-me.

-Senhora Lovitz!

-O que faz aqui, rapaz?

- Questionou aproximando-se de mim segurando um cesto cheio de batatas.

-Vim ajudar vocês...

-Nos ajudar? Já nos ajudou mandando nossa família pra cá.

- Ironizou.

-A senhora sabe que não tive culpa alguma... Mesmo assim, peço que me perdoem.

-Humpft... Quanto tempo faz que você está aqui?

-Acabei de chegar...

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-Já tem onde ficar?

-Ainda não.

-Venha comigo.

- Disse subindo à calçada.

-As pessoas nos olham estranho nesse lugar.

- Comentei enquanto caminhávamos.

-Eles sabem que somos de Berlim... Dizem que os judeus de lá se acham melhores por falar alemão.

-Mas eu não tenho cara de judeu.

-Está entre nós, e isso já basta.

Obs: “Os judeus sempre foram um povo com características raciais definidas e nunca uma religião.”

- Adolf Hitler 

Entramos em um prédio. Depois de subirmos dois andares de escada, a senhora Lovitz tirou uma chave de seu bolso e abriu à porta.

-Entre!

- Exclamou empurrando-a.

-Com licença...

No interior do apartamento não havia ninguém. O vidro da janela entre aberta fazia com que a cortina verde clara desse único sinal de vida naquele lugar escuro e úmido. No centro da sala uma mesa de madeira com quatro cadeiras ocupavam um pequeno espaço, e ao canto próximo à porta um grande cesto com alguns vegetais. Vê-los naquela situação apertou-me o peito. A senhora Lovitz, que sempre foi uma mulher fina, jamais imaginei vê-la vestida em andrajos, magra e abatida.

-Vou preparar uma sopa de batatas pra você comer.

Page 35: Lu Mounier - O jardim da luz continuação

-Por favor, senhora Lovitz, não quero incomodar...

-Onde comem três, comem quatro. Daqui a pouco o Boris chega e estará faminto...

Pegando quatro batatas ela olhou para mim e disse:

-Quero que você saiba Hans, que sua presença aqui não me agrada nem um pouco. E só estou fazendo isso pelo meu filho que muito lhe estima.

-Senhora Lovitz, eu nunca fiz nada para prejudicá-los!

-Sua família nos colocou aqui.

-Não!... Adolf Hitler os colocou aqui. Eu e minha mãe não temos culpa de nada. O Patrick teve sua contribuição, mas, por favor, não me trate assim... Ele não sabe o que está fazendo...

-Não sabe? Acha que sou ingênua, Hans?

-Senhora Lovitz, os jovens desse país estão hipnotizados por esse governo que...

-Chega Hans!

- Interrompeu-me.

- Vamos esquecer esse assunto, certo?

-Humpf... Tudo bem.

A porta se abriu. Virei o pescoço em sua direção e avistei o Eliezer entrar, em seguida seu pai. Meu coração quase saiu pela boca. Nossos olhares se falavam sem que nossas bocas proferissem uma só palavra. Levantei-me. Como ele estava diferente! Seu rosto abatido, sujo, expressamente cansado. Vestido em andrajos, mais parecia um morador de rua. Tive vontade de chorar de emoção, mas também de tristeza por vê-lo naquele estado deplorável.

Caminhando lentamente em minha direção, questionou parecendo não acreditar:

-Hans?... O que faz aqui?

-Vim te buscar!

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- Respondi exibindo um expressivo sorriso. Abrindo seus braços ele veio em minha direção. Que saudade! Abraçamo-nos com tanta vontade, tal como matar a sede num deserto.

-Você está louco?

- Questionou chorando com sua mão esquerda apoiada em minha nuca. Em seu ouvido sussurrei:

-Sou louco por você.

Arranhando a garganta, sua mãe mostrou-se presente, e para não denunciar nossa relação, nos afastamos.

-Hans!

- Exclamou o senhor Lovitz fechando a porta.

-Senhor Lovitz!

Apertando minha mão e dando-me um abraço, perguntou assustado:

-O que faz aqui, rapaz?

-Vim ajudá-los.

-Adonai! Você é louco?

-Será que vocês podem parar de me chamarem de louco?

-Daqui a pouco a sopa está pronta.

- Disse senhora Lovitz levantando-se e indo até o fogão. Ela não conseguia esconder que em sua casa eu não era bem vindo, mesmo sem dizer com essas palavras, mas ainda assim preocupou-se com minha integridade ao abordar-me na rua e oferecer um prato de comida.No canto da sala, sentados ao sofá Eliezer e eu conversávamos:

-Hans... Esses meses em que ficamos afastados, não houve um só dia em que eu não tivesse sonhado contigo.

-Sério?

-Ja...

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-Tive um pouco de receio, confesso, mas o que sinto por você é tão forte que o medo foi menor que a saudade.

-Você não tem idéia de como estou feliz em te ver aqui.

-Mas não pretendo ficar por muito tempo. Precisamos partir em breve.

-Humpf... E deixar minha família, Hans?

-É por pouco tempo, Eli... Assim que nos acertarmos, daremos um jeito de levá-los para o Brasil conosco!

-Está bem.

-Eli...

-Hum?

-Onde está sua irmã?

-Humpf... Ashira acabou indo para o gueto de Varsóvia.

-Mas por quê?

-Porque os alemães quiseram assim...

-E ela está bem?

-Ja... Não faz muito tempo que ela partiu.

-Entendo...

-Meninos...

- Interrompeu a senhora Lovitz.

- A sopa está pronta!

Começamos a jantar, todos em silêncio. A comida não era lá aquelas coisas, um caldo ralo com míseros pedaços de batata, quase sem sal. Percebi que a quantidade também não era muita, provavelmente uma situação de pobreza extrema os obrigava aquela situação.

"Tudo parecia inútil. Ninguém se importava conosco. Éramos a bagagem extra do mundo. Já havíamos desistido da esperança, até que ouvimos uma história magnífica a respeito de um diplomata sueco, Raoul Wallenberg,

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que foi para a Hungria em uma missão de salvar judeus. Logo aquele homem se tornou o salvador. Todos os dias, correndo um grande risco ele tiravam pessoas das mãos dos nazistas. Ele conversava conosco e nos mostrava que havia um ser humano que se importava um anjo naquele inferno. Raoul imprimia seus próprios passaportes suecos, em seguida corria para os trens de deportados, trens que estavam saindo para Auschwitz, alcançando o grupo desesperado. Estendendo seus braços, dava aos judeus a passagem para viver. Ele conseguiu salvar 30 mil pessoas, sendo apenas um homem. Mas depois da libertação de Budapeste, os russos o raptaram. Essa é a ironia de tudo. Aquele nobre ser humano que fez tanto pelos outros, poderia estar apodrecendo em algum lugar. Completamente só.”

Raspando a colher ao fundo do prato de lata amassado, o senhor Lovitz comentou:

-Nada como uma sopinha para nos aquecer nesse frio.

-Pois é... Desde que me mudei para a Europa eu vivo com frio.

- Comentei. Todos riram.

-Bem, vou me preparar para dormir.

- Disse ele levantando-se da mesa. Olhando para mim, o Eliezer disse:

-O Hans pode dividir a cama comigo...

-Melhor não!

- Disse sua mãe enfática.

- Ele pode dormir em uma esteira que tem no...

-Esther, com um frio desse... Está louca?

- Interrompeu o senhor Lovitz.

- É melhor que vocês dividam a cama, acredito que o Eliezer não irá se importar.

-Por mim não há problemas, meu pai.

-Então pronto! Resolvido!

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De um jeito ou de outro a senhora Lovitz queria nos manter afastados. Embora eu quisesse muito, sentia-me constrangido. Mesmo sem dizer, ela dava a entender que sabia sobre nós e que não aprovava. Mais tarde eu descobriria que no gueto os judeus recebiam apenas o mínimo de alimento, obrigados a realizar trabalhos forçados, existindo como prisioneiros totalmente a mercê de seus capatazes nazistas.

-Hans... Está acordado?

- Sussurrou o Eliezer.

-Ja.

-Está com frio?

-Já.

Eliezer apenas aguardava minha confirmação para fazer aquilo que ele estava fazer, que era me abraçar. Óbvio que o abraço foi só o começo, pois bastou nossa pele se tocar para um beijo iniciar. Que delícia! Tomando cuidado para não fazer barulho ele trouxe seu corpo para cima do meu, já sem camisa, ao mesmo tempo em que sua mão esquerda descia pelo meu peitoral até chegar em meu membro já excitado. Que loucura! Estávamos todos no mesmo quarto, porém, a saudade e desejo eram tantos que o risco valia a pena.

Sua boca lambia meu pescoço, intercalando com leves mordidas no queixo. Gemi baixinho. Meu tesão estava a mil, e num único movimento brusco o puxei mais para cima e comecei a chupar seu mamilo. Arrepiado, Eliezer puxava meu cabelo. O cobertor subia e descia, seguindo o ritmo dos movimentos pélvicos que fazíamos, roçando nossas penas, coxas com coxas. Minha boca foi parar em seu pênis, enquanto a sua o mesmo fez. Penetrados, gozamos juntos, com força, calados. Aquelas alturas minha pele estava toda marcada, provas de um prazer absoluto, onde o limite era o Amor.

Gelei. Sua indireta pareceu-me provocação, um teste para saber até onde eu era capaz de chegar. Por um momento calei-me, mudando de assunto em seguida:

-O pessoal aqui acorda bem cedo...

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-A vida no gueto não é como no mundo lá fora. Por aqui tudo é mais difícil.

-Vocês não pensam em ir embora?

-E quem disse que estamos aqui por vontade própria?

-Humpf... Desculpe.

Da Eslováquia, o Rabino Weissmandel escreveu para organizações judaicas na Suiça:

"Não entendemos como vocês podem comer e beber, dormir a noite, como podem sair para passear. Tenho a impressão de que fazem essas coisas. Essa responsabilidade está sobre seus ombros. Nós estamos juntos há meses e vocês ainda nada fizeram".

No início da tarde o senhor Lovitz chegou acompanhado de uma notícia que mudaria nossas vidas para sempre.

-Boa tarde!

- Exclamou cabisbaixo, fechando a porta.

-Boa tarde!-Boris... Aconteceu alguma coisa?

-Humpf... As novidades desse lugar parecem não ter mais fim.

-E qual foi a novidade dessa vez?

-Estamos proibidos de deixar o gueto.

-Como isso?

-Ninguém mais pode sair ou entrar sem autorização... - Adonai!

- Exclamou a senhora Lovitz preocupada. No dia 1º de maio de 1940 a trágica notícia de que ninguém poderia deixar o gueto pegou a todos de surpresa. Ninguém poderia entrar ou sair sem ordem expressa alemã. Posteriormente descobriríamos que o gueto de Lodz foi o primeiro gueto europeu a ser fechado com arame farpado.

Obs: Os judeus que viviam em guetos eram obrigados a usar uma faixa branca no braço com uma estrela de Davi azul. Deixar o gueto era crime,

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bem como contrabandear pão ou qualquer outro alimento. A punição para os chamados "crimes" quase sempre era a morte. Mas os judeus não foram as únicas vítimas dos nazistas. Começando em outubro de 1939 e durante 1940 eles já haviam assassinado mais de 70 mil alemães e austríacos que foram considerados "inadequados para viver". Entre esses estavam os portadores de doenças crônicas, retardados mentais. Eram exterminados em câmaras de gás em 6 instituições especiais de eutanásia.Tal programa de eutanásia tornou-se base de treinamento para a SS, que mais tarde usaria sua recém-adquirida habilidade ao administrar os campos de extermínio nazistas.

Proibido de deixar aquele lugar, passei a morar no gueto com Eliezer e sua família, e no meio dessa convivência as diversas dificuldades como todos os judeus. Certo dia, ao andar pela rua deparei-me com uma situação absurda. Um pequeno bonde que interligava Lodz às cidades vizinhas passava pelo meio do gueto. A rua por onde ele transitava foi cercada por arame farpado de ambos os lados, e sobre ela foram instaladas pontes que ligavam as duas partes do gueto. Freqüentemente os alemães praticavam tiro - ao- alvo em direção àquelas pontes, mirando nos pedestres que por ali passavam. O gueto cresceu de tal maneira que se tornou uma espécie de "estado", totalmente autônomo, com suas próprias leis, polícia, funcionários e até um "presidente" acompanhado de "ministros".

Rumkowski, o presidente do gueto, procurou impor sua autoridade perante os moradores através da fome. Todos se submetiam a ele de um modo ou de outro. A comida passou a ser controlada, onde as rações semanais não supriam a necessidade de um único dia. A população passava fome, porém, aqueles que possuíam algum dinheiro podiam comprar alimentos contrabandeados.

-Boa noite!

- Saudou Eliezer entrando em casa.

-Boa noite!

-O que aconteceu com você?

- Perguntei preocupado.

-Nada, não se preocupem.

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Com a roupa imunda e o rosto machucado, dizer que nada havia acontecido era o mesmo que contar piada para surdo.

-Foram os guardas novamente?

- Questionou sua mãe.

-Humpf... É

.-O que tem os guardas?

- Perguntei sem entender.

-Eles me obrigaram, junto com outros rapazes, a lavar as calçadas da cidade.

-Lavar as calçadas da cidade?

-É, Hans...

-E esse corte em sua testa?

-Isso foi um escorregão que levei.

-Vou preparar um banho para você, meu filho.

-Obrigado, Ima... Estou morto de fome!

Obs: A cidade de Lodz foi incorporada ao Reich, recebendo o nome de Litzmannstadt em homenagem ao general alemão, do qual a conquistara na Primeira Grande Guerra.

-Eli...

-Hum?

-Estou muito preocupado.

-Com o quê?

-Com tudo!... Quase não temos comida!

-Humpf... Além disso, nos falta dinheiro.

Page 43: Lu Mounier - O jardim da luz continuação

- Falei levantando-me e seguindo até a pia.

-Se ao menos tivéssemos um emprego...

Umedecendo um pedaço de pano na água, continuei:

-Enquanto não encontrarmos um emprego, darei um jeito de conseguir mais comida.

-Como?

-Vou pensar.

- Respondi caminhando em sua direção.

- Agora me deixe limpar esse ferimento...

-Ai!

-Doeu?

-Não... Foi charme!

- Falou colocando sua mão sobre a minha.

-Felizmente foi um pequeno arranhão... Já está quase acabando.

-Se você cuidar de mim assim sempre que algo me acontecer, vou querer cair todos os dias.

Rimos.

-Não diga tolices... Pronto!

-Seu banho já está pronto.

- Avisou sua mãe voltando à cozinha.

-Obrigado, Ima. Deixa-me eu tomar banho e tirar essa roupa suja...

-Vá, que quando você voltar o jantar já estaremos servindo o jantar.

Assim que ele entrou no banheiro o senhor Lovitz chegou, e como já era de costume, portando mais uma notícia sobre a guerra.

-Boa noite!

-Boa noite, senhor Lovitz!

Page 44: Lu Mounier - O jardim da luz continuação

-Vocês não sabem o que estão comentando por todo o gueto.

-O quê?

- Perguntamos curiosos.

-A Alemanha invadiu a França!

Tal notícia chegou como uma bomba. Cada dia que passava a Alemanha avançava cada vez mais, diminuindo nossas esperanças de breve aquela guerra acabar. Após o ataque a Polônia o exército nazista voltou-se para o Ocidente. Na madrugada de 10 de maio de 1940, sem declarar guerra, o exército alemão atacou três países neutros: Holanda, Bélgica e Luxemburgo, além de invadir a França. Agora, mais 500mil judeus ficariam sob o domínio nazista.

"A violação da neutralidade da Holanda e Bélgica não importa. Ninguém a questionará quando alcançarmos a vitória".

Chegara a vez de a França sofrer. Com o ataque à Holanda e Bélgica, começou a ofensiva. Em junho de 1940 Hitler estava no auge, quando em uma cinzenta madrugada de23 de junho de 1940 um avião aterrissou em

Le Bourget, fora de Paris. Acompanhado de um grupo de artistas ele passeou pela cidade sucumbida. O relógio já marcava seis da manhã. Aquela era a primeira vez que Adolf Hitler pisava na capital francesa, porém, não o fez sozinho. Acompanhado do escultor Arno Breker e os arquitetos Hermann Giesler e AlbertSpeer, seguiram para o teatro Ópera de Paris. Como um perito em casas de ópera, Hitler liderava o grupo.

"Meu sonho era conhecer Paris".

- Comentou ele enquanto voltava para o aeroporto. Empolgado, perguntou a Speer:

-"Paris não é linda?"

"Meditei muito se deveria ou não destruir Paris. Mas quando Berlim estiver pronta, Paris será uma sombra. Então por que destruí-la?"

- Adolf Hitler

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A tarefa de destruir Paris ficou a cargo de Albert Speer. Os projetos para a criação da nova capital mundial estavam prontos. Através de enormes maquetes, Hitler expôs o que seria a nova Berlim. Speer projetou um arco do triunfo duas vezes maior que o original de Paris, inspirado em um esboço de Hitler de 1925, bem como o Palácio do Führer, um complexo arquitetônico destinado a nova residência de Hitler. Um dos seus maiores projetos era o Centro Cultural, ostentando uma cúpula dezessete vezes maior que a Basílica de São Pedro em Roma, com capacidade para 180 mil pessoas. Sua extensão era inacreditável, com uma abertura no teto que permitia entrada da luz do dia, e por sugestão do próprio Führer uma imensa estatua sua seria posta logo na entrada. Até 1950, no mais tardado, a nova capital estaria pronta, tendo vencido a guerra. Naquela noite eu não consegui dormir pensando em como faria para conseguir comida, pois sinais de desnutrição já eram visíveis a todos, inclusive a mim que há pouco tempo havia chegado. O dia mal havia amanhecido e eu já havia levantado. Fiquei sabendo que fora do gueto, nas imediações, havia barracas comercializando hortaliças, coisa que faltava muito por lá. Tratei de sair de casa primeiro que todo mundo, dessa forma não seria questionado e impedido de me arriscar. Enquanto caminhava minha barriga resmungava, premida pela fome e desespero. Aproveitei-me de uma pequena confusão e consegui enganar uma sentinela, passando por baixo de uma cerca de arame farpado. O dinheiro que eu possuía não era muito, porém, na situação em que nos encontrávamos de estrema pobreza, daria para segurar as pontas por um bom tempo. Comprei verduras e legumes, além de um pouco de café. Escondi um pouco dentro da roupa, e o que não coube deixei dentro de uma pequena sacola, enrolada e colocada embaixo do braço. Torci para que na volta tudo desse certo, caso contrário minha cabeça poderia rolar.

Felizmente deu tudo certo, e ao chegar à casa todos me aguardavam, preocupados com minha saída sem aviso.

Hallo!

-Hans! Onde você estava?

- Questionou o Eliezer apreensivo.

Page 46: Lu Mounier - O jardim da luz continuação

-Fui fazer umas comprinhas!

-Comprinhas?

-Ja... Trouxe batatas, beterrabas, espinafre, rabanete, tomate...

-Mas como você conseguiu tudo isso?

- Questionou a senhora Lovitz com os olhos brilhando.

-Contrabando... Comprei fora do gueto.

-Você está louco?

- Revoltou-se o Eliezer.

-Permanecer na situação em que todos estávamos não dá...

-Mas você poderia ser pego!

-Porém não fui. Trouxe muitas coisas para comermos, pelo menos uma semana comendo bem...

-Vou preparar uma farta sopa de legumes para o almoço!

- Disse a senhora Lovitz toda feliz. Levantando-se da mesa o Eliezer foi para o quarto. Percebendo que ele não havia gostado da minha escapada, fui atrás dele para tentar conversar.

-Com licença...

- Entrei no quarto. Deitado a cama, ele nada disse.

-Eli... Não quero que você fique assim...

-Mas eu fiquei muito bravo! Ainda estou...

Sentei-me ao seu lado.

-Você sabe que só fiz isso pelo bem de todos!

-Humpf... Eu sei, mas e se algo acontecesse com você?

-Porém, nada aconteceu. Olha eu aqui, sem nenhum arranhão!

-Fiquei com um medo tão grande de te perder, Hans...

-Eu sei, eu sei...

Page 47: Lu Mounier - O jardim da luz continuação

-Mas posso te contar uma coisa?

-Já!

-Senti-me lisonjeado com sua atitude!

-Verdade?

-Uhum... Você é um homem e tanto!

Demos um forte abraço.

-Por você eu ofereço minha vida!

-Ani ohev otcha!

-Eu também.

Obs: No dia 22 de junho de 1940 a França se rendeu aos Nazistas.

Naquele dia jantamos sobre uma farta mesa. A senhora Lovitz até mudou um pouco a maneira de me tratar, enquanto seu marido exibia um sorriso que ia de orelha a orelha.

-O jantar de hoje estava espetacular!

- Comentou o senhor Lovitz.

-Devemos isso ao Hans!

- Completou o Eliezer.

-Muito bem, Hans... Nós estamos muito felizes pela sua bravura e coragem. Mostrou que é um homem honrado, de caráter!

-Obrigado, senhor Lovitz.

Tendo em vista o sucesso da primeira tentativa, passei a deixar o gueto para comprar comida fora toda semana. Em quase todas elas me dei bem, mas como na vida nem tudo é como planejamos, eis que me peguei em apuros.

Segurando dois pacotes de hortaliças e frutas

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eu caminhava pelas ruas de Lodz, voltando para o gueto quando de repente um policial alemão gritou:

-"Ei!... Você ai, tem documentos?"

Naquele momento gelei. Minha vida passou diante meus olhos em segundos, acompanhado de um frio na espinha que subiu dos pés a cabeça. Tremendo, ia responder qualquer coisa quando alguém atrás de mim disse:

-Wir sind Lumpen Handler¹.

Depois daquele susto, sentei-me por um momento a calçada até minhas pernas se recuperarem e voltarem a sua firmeza.Levantei-me. Respirei fundo e dei apenas dois passos antes de surgir dois garotos aminha frente que começaram a gritar:

-Wyglada jak zydek².

Calei-me.

-Ei, judeu... O que você está fazendo aqui? Judeu! Judeu! Judeu!

Cansado daqueles deboches, virei-me para eles e os xinguei em alemão:

-Polnische Schweine³ !

Constrangidos, eles se desculparam:

-Przepraszam.

Obs

1. Wir sind Lumpen Handler:

Somos vendedores de trapos.

2. Wyglada jak zydek:

Parece judeu.

3. Polnische Schweine:

Porcos poloneses.

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Cheguei em casa mais branco que um fantasma. Fechei a porta da sala e logo a senhora Lovitz aproximou-se, ao mesmo tempo em que secava suas mãos em um pano.

-Hans!...

-Senhora Lovitz... Preciso de um copo d’água...

-Venha até a cozinha... Mas o que aconteceu?

- Questionou puxando a cadeira para mim.

-Quase fui pego pelos alemães.

-Adonai! Mas como isso?

-Um guarda me parou na rua e me pediu documentos. Por sorte um grupo de vendedores de trapos disse que eu trabalhava com eles, caso contrário eu teria sido fuzilado ali mesmo.

-Mas que perigo!

-E para completar, dois garotos começaram a me apontar na rua gritando que eu era judeu.

-Hans, a partir de hoje não vamos mais permitir que você se arrisque dessa forma.

-Mas senhora Lovitz...

-Não adianta Hans... A última coisa que queremos é ver você ferido ou punido por conta dessas escapadas. Daremos um jeito de conseguir boa comida sem arriscar tanto.

-Humpf... Tudo bem.

Alguns dias se passaram. Já estávamos no verão, e a estação daquele ano foi extremamente quente, e a falta de higiene somada a de medicamentos resultou na morte de quase todas as crianças recém-nascidas do gueto. O medo do aparecimento de outras doenças preocupava a todos. Em casa passamos a tomar cuidado com a água e alimentos, claro que dentro das nossas possibilidades. Adentrando a sala, a senhora Lovitz comentou:

-Já estão sabendo da última?

Page 50: Lu Mounier - O jardim da luz continuação

-Não!

- Dissemos eu e Eliezer sentado ao sofá.

- O que houve Ima?

-A França se rendeu.

-Como?

-É o que estão comentando no quintal...

O quintal do prédio onde morávamos era também utilizado para reuniões da vizinhança, e claro, não se falava em outra coisa que não fosse a Guerra. Freqüentemente surgia alguém com novidades, onde as supostas derrotas alemãs não passavam de uma farsa.

No gueto não tínhamos acesso a rádios nem jornais, e a única forma das notícias chegarem até nós eram as vindas de alguém com acesso a pessoas de fora do gueto, porém,sem garantias da veracidade das mesmas.Ao tomarmos conhecimento da derrota da França depositamos nossas esperanças na Rússia, acreditando que Stalin daria um ultimato a Hitler exigindo Lodz e Varsóvia, cidades das quais pertenceram à Rússia antes da Primeira Guerra. Mas nada disso aconteceu.

“Assim como a orientação denominal de um homem é o resultado de sua educação, e o religioso precisa de um retiro para sua alma, a opinião pública das massas representa nada mais que o resultado final de uma incrível tenacidade e perfeita manipulação de sua mente e alma.”

- Adolf Hitler

Dormíamos tranquilamente, no mais profundo silêncio quando ouvimos um barulho de carro parar na rua. Seria uma situação normal, se não fossem os gritos chamando por socorro. Assustados, todos levantaram e seguiram até a janela.

-Não acenda a luz!

- Sussurrou a senhora Lovitz.

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-Mas... O que estão fazendo?

- Questionou Eliezer.

-Psiu!

Espiávamos pela janela, calados, sem que nada pudéssemos fazer. Os soldados alemães invadiram o prédio da frente e pouco tempo depois famílias inteiras caminhavam em fila, vestindo apenas pijamas, acuadas à parede, ameaçadas por rifles, metralhadoras e cães.

-De frente pra parede!

- Gritavam eles. Sem que esperássemos, uma rajada de tiros foram disparados contra aquelas pessoas, banhando a calçada com o sangue da dor. Silêncio. Assustada, a senhora Lovitz levou a mão à boca, amparada pelo seu marido. Ficamos sem entender a razão pela qual fizeram aquilo. Não havia outra explicação se não por Maldade.

-Adonai!

- Exclamou o Eliezer levando sua mão à boca. Fechando a cortina o senhor Lovitz nos afastou da janela. Depois do que acabávamos de ver, não conseguimos dormir. Quem garantia que não seríamos os próximos? No dia 08 de agosto de 1940 iniciou a Batalha da Grã-Bretanha. Em setembro daquele mesmo ano a Inglaterra era bombardeada sem piedade, ao mesmo tempo em que submarinos alemães cercaram as linhas inglesas do atlântico. Com isso a Inglaterra ficara sozinha.

"A situação da Inglaterra é sem esperança. Vencemos a guerra. Reverter o processo de vitória é impossível."

Mas ao que parecia impossível para os alemães, o grande senhor da guerra enganou-se. Os britânicos acabaram com a invencível Luftwaffe de Goering, e a invasão da Grã-Bretanha precisou ser adiada.

Todos do gueto desejávamos a vitória dos ingleses. Na vizinhança só se falava nisso, uma maneira de não deixar que nossas esperanças se perdessem pelo vento e pelo tempo. As notícias também eram alimentadas

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pelos mendigos-cantores, que em troca de moedas jogadas pelas janelas ouviam-se canções sobre Rumkowski e a ida à terra de Israel.

Obs: Em 15 de novembro de 1940 foi erguido o muro que isolou o gueto de Varsóvia. Sendo o maior de todos, o gueto de Varsóvia abrigava cerca de 350 mil judeus vindos de toda parte da Europa ocupada pelos nazistas, já em 16 de novembro a população do gueto atingiu a média de 500 mil habitantes.

Já estávamos no final do verão quando o presidente do gueto declarou que as áreas desocupadas seriam divididas entre aqueles que desejassem cultivá-las. Cada lote dispunha de 50m², sendo que o voluntário que fosse cultivá-la receberia por apenas um marco uma porção de sementes.

Aquela “política” animou a todos em casa. Tratei de alugar um lote e imediatamente

Plantei rabanetes e cenouras. Para me ajudar o Eliezer conseguiu comprar um pouco mais de sementes e plantou batatas, nabo e cebolas. Em pequenas latas colocadas a janela a senhora Lovitz plantou salsa e alface, rendendo muita comida para nós e até para comercializarmos como pequena fonte de renda. Todos os dias ao acordar eu era o responsável por regá-la, e no final da tarde isso ficava a cargo do Eliezer. Mas infelizmente essa situação não era favorável e de acesso a todos. Ainda havia muita gente passando fome, e revoltados com tal indiferença perante ao problema um grande grupo de pessoas saiu às ruas e começou a espancar todos os funcionários do gueto que encontravam pela frente, incluindo policiais. Nem mesmo as residências dos ministros escaparam.

-O que está acontecendo?

- Questionei ao Eliezer que entrava correndo em casa.

-Entre, entre!...

- Exclamou fechando rapidamente a porta. Afastei-me imediatamente, com medo, sem saber o que fazer. Das ruas eu só ouvia gritaria, vidros quebrando, carros correndo.

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-Eli... Pelo amor de Deus, o que está havendo?

-Estão fazendo justiça.

-Estão?... Quem?

-O povo está revoltado pela situação em que estamos vivendo no gueto. Uma multidão está surrando os funcionários, policiais...

-Gott! E onde estão seus pais?

-Pensei que estivessem aqui...

-Não... Achei que você tinha ido até a feira com sua mãe...

-Adonai! E agora?... Eu vou atrás deles.

-Não!

- Exclamei o segurando rente a porta.

-Me solta, Hans!

-Não!... Não vou deixar você sair no meio dessa confusão...

Nesse momento a porta se abriu. Segurando um pacote a mão, questionou a senhora Lovitz:

-Que briga é essa aqui?

-Ima! Estava preocupado com a senhora e o pai...

-Não se preocupe seu pai já está subindo. Nem pensem em sair de casa, já viram a confusão que está lá fora?

-Prefiro não ver.

- Respondi.

A polícia alemã começou a percorrer as ruas em carros abertos atirando em todo mundo. Aquela atitude desesperada complicou nossa situação ainda mais. Muita gente morreu, e a polícia judia recebeu reforço de mais 800 policiais, em sua grande maioria criminosos e ex-presidiários.

A vida no gueto tornou-se insuportável.

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Um pelotão especial da polícia judia foi criado, o Sondercomando, cuja tarefa era efetuar buscas nas residências. Todas as vezes que apareciam, confiscavam objetos e toda espécie de valores, principalmente jóias, ouro e prata. Mas os alemães também não ficavam atrás. Sempre davam um jeito de tirar dos judeus tudo que conseguiam, os explorando ao máximo. Jantávamos todos a mesa quando ouvimos baterem a porta:

-Abram... Polícia judia!

Esbugalhando seus olhos a senhora Lovitz limpou a boca e sussurrou para o Eliezer:

-Vá até o quarto e esconda aquela caixa!

-Ta!

Em seguida ela levantou-se, pegou um pão inteiro e começou a esconder pequenos brincos de diamante e ouro entre o miolo.

-Abram essa porta!-Já vai!

- Gritou o senhor Lovitz. Ao abri-la seis soldados entraram em casa, como gafanhotos na lavoura. Começaram a revirar toda a cozinha, enquanto outros faziam o mesmo na sala e no quarto. Minutos depois saíram levando alguns objetos de prata, dois quadros e algumas porcelanas. Sorte a nossa que não foram os Krypo, pois esses costumavam torturar a todos na ânsia de descobrir objetos escondidos, diferente da Sondercomando que fazia somente buscas. Tais torturas vitimavam judeus todos os dias, levando à morte centenas de inocentes que em sua maioria das vezes nada possuíam.

Não demorou muito para que surgisse uma nova espécie de dinheiro: o Rumki .Todas as células de dinheiro alemão deveriam ser substituídas pelo Rumki, sendo considerado a posse de marco crime sob pena de morte.O dia mal havia amanhecido quando o senhor Lovitz abriu a porta de casa exclamando ao voltar da rua:

-Mais uma!

-O que houve Boris?

- Questionou a senhora Lovitz.

-As novidades nesse lugar parecem brotar da terra!

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-Mas o que aconteceu?

-Não podemos mais possuir nenhum dinheiro alemão, sob pena de morte.

-Adonai!

-Devemos trocar tudo pelo Rumki, uma nova moeda a ser utilizada no gueto.

-Então vamos trocar!

Carregando todo o marco que possuíam no bolso, o senhor e senhora Lovitz saíram para trocá-lo por Rumki. Enquanto isso aproveitei que estava sozinho em casa e resolvi preparar um almoço surpresa. Preparei um chucrute com salsicha e talos de agrião, igual ao preparado pela vovó em casa. Percebi que alguém havia chego quando a porta bateu ao fechar.

-Hallo!

-Oi, Eli!

-Onde estão todos?

-Seus pais foram trocar marcos por Rumki...

-Rumki?

-Ja...

-Mas o que é isso?

-A nova moeda do gueto... Ninguém mais poderá utilizar moeda alemã sob pena de morte!

-Humpf... Isso já está se tornando perseguição...

-Mas e você? Onde estava?

-Fui ver se conseguia algum trabalho.

-Conseguiu algo?

-Ja!... Começo amanhã mesmo.

-Sério?

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-Sim!... Começaram a ser instaladas fábricas de uniformes para soldados. Como uma delas será controlada pelo pai de um colega meu de escola também judeu, ele conseguiu uma vaga para mim.

-Que bom!

Abraçamo-nos.

-Agora nossa situação aqui no gueto vai melhorar você vai ver!

- Disse ele com um enorme sorriso estampado na face.

-Com certeza!

Pegando pela minha mão ele arrastou-me para o quarto dizendo:

-Vem comigo...

-Para onde?

-Vamos aproveitar que não tem ninguém em casa e curtir um pouquinho!

Tirando suas calças ele já mostrou o quanto estava excitado. Suas chupadas em meu pescoço deixaram-me também. O perigo que corríamos nos deixava com mais tesão, nos fazendo suar de medo e prazer.Fizemos sexo intenso, pelados. Abraçados, com as pernas entrelaçadas o Eliezer deitou sua cabeça sobre meu peito e assim permanecemos, curtindo intensamente os raros momentos que tínhamos para nos amarmos.

-Hans...

-Hum...

-Seria tão bom podermos ficar juntos sem nos esconder de ninguém...

-É... Um sonho que ainda viveremos.

-Que jeito? Essa guerra maldita...

-Amor, essa guerra não irá durar para sempre... Eterno só nosso amor!

-Algo que eu não consigo entender... Por que tanto ódio em relação ao nosso povo?

-Não vamos mais pensar nisso, tudo bem?

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-Humpf... Ta bom.

Durante todos os séculos o mundo olhava com desconfiança para o povo judaico. Aqueles homens que precisavam de bode expiatório para seus próprios fracassos voltavam-se contra os judeus. Nos primeiros dias do Cristianismo, São João Crisóstomo frustrado pela recusa dos judeus a se converterem os chamou de "os mais miseráveis dos homens".

O teólogo Martinho Lutero, ao se deparar com a mesma firmeza, disse:

"As sinagogas deles deveriam ser incendiadas e suas casas da mesma forma deveriam ser destruídas. Vamos expulsá-los do país para sempre".

Em todos os países os judeus eram um inimigo conveniente. Para os analfabetos, eles eram instruídos. Para os camponeses, ricos. Para os ricos, espertos. Os romanos os viam como rivais políticos. Os inquisidores os viam como "assassinos de Cristo". Os cossacos os viam como "ladrões da riqueza da terra". Para eles, os judeus eram diferentes. Diferentes na aparência, no modo de se vestir, nas crenças, na observância dos dias santos.

Obs: - Hoje acredito que estou agindo de acordo com a vontade do Criado Todo-Poderoso: - ao defender-me contra os judeus, estou lutando pelo trabalho do Senhor.”

- Adolf Hitler 

Com a chegada do inverno, a fome e miséria aumentaram de forma insuportável. Certo dia acordei com um barulho de cavalos. Em casa todos ainda dormiam. Curioso, levantei-me e segui até a janela para espiar o que acontecia. Parado próximo a um amontoado de neve avistei um enorme furgão, puxado por dois cavalos. Sua função era recolher os mortos que eram deixados pelas ruas, tudo porque aquelas alturas, no gueto já não se realizavam enterros, sendo assim, os mortos eram deixados frente as casas para serem recolhidos pelo barulhento furgão. Os corpos eram jogados de

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qualquer jeito, como amontoado de lixo, sem nenhum tipo de respeito. Aquela imagem jamais me sairia da cabeça.

-O que foi Hans?

- Questionou o Eliezer tocando minhas costas com sua mão.

-Que susto!...

Por quê?

-Veja...

- Sussurrei.

-O que é aquilo?-Estão recolhendo os mortos...

-Humpf... Que situação triste!

- Comentou afastando-se. Fechei a cortina traumatizado.

-Esse frio está demais... Precisamos dar um jeito nisso!

- Falou o Eliezer batendo o queixo.

-Mas como conseguiremos combustível para nos aquecer desse inverno?

-Atrás do nosso quarteirão tem várias casas abandonadas. Podemos ir até lá e buscar lenha para a lareira.

-Boa idéia! Eu vou com você...

-Ta.

Agasalhamo-nos bem e fomos à rua em busca de lenha. Na Rua Brzezinska duas portas quebradas ocupavam um lugar na calçada.

-Veja Hans! Duas portas caídas ali...

- Apontou o Eliezer.

-Mas são grandes... Devem ser pesadas...

-Vamos pegar alguns pedaços e depois voltamos para pegar mais.

-Certo.

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Juntamos uma pilha de taboas das portas e levamos para casa. Acendemos a lareira enquanto o senhor e senhora Lovitz ainda dormiam. Em pouco tempo a casa inteira já estava aquecida.

-Nossa!... Mas o que aconteceu aqui?

- Questionou a senhora Lovitz deixando o quarto.

-Por que, senhora Lovitz?

-Por quê? Não sinto frio...

-Trouxemos lenha, Ima... Temos o suficiente para dois dias!

-Que bom! Pelo menos por esses dois dias não passaremos frio.

-Verdade!

Obs: Em 27 de março de 1940 Heinrich Himmler ordenou a construção do campo de concentração deAuschwitz, tendo sua abertura em 20 de maio daquele mesmo ano.

Certo dia a senhora Lovitz chegou em casa com um sorriso de orelha a orelha. Colocando um pacote sobre a mesa, exclamava contente:

-Consegui! Consegui!

-Ima... O que aconteceu?

-Consegui filho! Consegui um emprego!

-Mas que maravilha!

- Festejou o senhor Lovitz. Com o avanço da guerra começaram a ser instaladas no gueto fábricas de uniformes para soldados. A oportunidade de melhorar de vida deixou os moradores alvoroçados. Todos almejavam um emprego nas fábricas, porém, não era uma tarefa tão fácil. A senhora Lovitz só conseguira uma vaga porque a esposa do irmão de Rumkowski a conhecia,indicando-a para ele que aceitou empregá-la.Aqueles que não conseguiam um emprego, enfrentavam a fome e o frio da maneira em que podiam. Todos os cães e gatos existentes no gueto já haviam sido

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sacrificados. Certa vez um morador do mesmo quintal comentou que havia encontrado um cachorro perdido ao voltar do trabalho. Seu relato causou inveja a todos que o ouviam. Como o invejamos loucos para que a sorte nos desse a mesma oportunidade. Junto com a fome veio a sujeira, e com ela os piolhos. Eles eram brancos e grandes, espalhando-se por todo nosso corpo. Lembro-me que quando os peguei, passava horas tentando tirá-los do corpo.

-Hans... Pode me ajudar aqui?

- Pedia o Eliezer se coçando.

O que foi?

-Me ajuda a tirar essa praga... Do meu corpo... Adonai! Adonai!

-Calma... Tire a roupa primeiro... Vamos lavar com água quente!

-Ta.

Tiramos nossas roupas, e de corpos nus passamos a caçar os piolhos um do corpo do outro. Minha pele de branca já estava vermelha, marcada de unha, com algumas feridas. O tempo foi passando e nós continuávamos nossas vidas, sobrevivendo dia após dia, em condições desumanas. Como se já não bastassem àqueles problemas, outros passaram a surgir. O gueto começava a receber mais judeus que chegavam todos os dias, milhares provenientes de toda Alemanha. Por estarem corados, saudáveis, bem vestidos, acabavam despertando a inveja de todos que ali estavam. As relações deles com os habitantes do gueto não eram das melhores, pois por virem de cidades como Berlim, Frankfurt entre outras cidades alemãs, julgavam-se superiores aos demais por falarem alemão. Enganados e animados, desembarcavam na periferia de Lodz achando que estavam próximos do Canal da Mancha, onde supostamente seriam trocados por alemães junto a Inglaterra. Carregados com malas de couro, logo se viram em situação pior que a nossa, vendendo tudo que tinham a troco de comida, vivendo na mais absoluta sujeira. Quando anunciaram no gueto que os alemães necessitavam de 20 mil judeus para trabalhar fora do gueto, eles foram o primeiro a se candidatarem, e também, os primeiros a morrer. Posteriormente o gueto passou a receber também judeus de outras cidades polonesas e da Tchecoslováquia. Com a lotação do gueto de Lodz, as famílias se viam obrigadas a dividirem as moradias, e nós, claro, não

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ficamos fora disso. Em nosso pequeno apartamento recebemos a família Schneider recém chegada da Alemanha. Acompanhado apenas de sua mãe, o jovem Samuel Schneider contou-nos sua história em nosso primeiro jantar:

-Em primeiro lugar, Ima e eu gostaríamos de agradecê-los por nos receber em vossa casa...

-Onde cabem quatro, cabem seis!

- Brincou o senhor Lovitz. Após um profundo suspiro, sua mãe comentou:

-Espero que não estejamos atrapalhando...

-Existem coisas na vida que não temos escolha. Essa é uma amostra disso...

- Respondeu a senhora Lovitz.

-Mas conte-nos, senhora Schneider... Como vieram parar no Gueto?

- Perguntei.

-Depois que tivemos nossa casa invadida pelos alemães, tivemos que ir morar na casa de amigos, eu, meu marido e Samuel. Certa vez, ao voltarmos da sinagoga, nos deparamos com a casa toda revirada. Escondidos, os alemães ainda nos aguardavam. Naquele dia apanhamos muito, sem qualquer motivo. Levaram nossas jóias, pertences de valor, dinheiro. Como se já não fosse o bastante, levaram nossos maridos, além da dignidade que um ser humano poderia ter.

-E a senhora nunca mais teve notícias do seu marido?

- Questionou o Eliezer.

-Humpf... Disseram que o levariam para trabalhar em uma fábrica de munições, porém, aquela foi a última vez que nos vimos.

Colocando mais sopa em seu prato, a senhora Lovitz comentou:

-É um absurdo o que os alemães estão fazendo com nosso povo!

-Desculpe pelo desabafo, Esther.

- Disse ela limpando as lágrimas.

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Chegou o ano de 1941 e com ele muita crueldade. No período de 21 a 26 de janeiro foram organizados motins anti-judeus na Polônia, onde centenas foram mortos com requintes cruéis. Quando recebemos a notícia de que a Rússia havia entrado no combate, achávamos que ela havia decretado guerra contra a Alemanha e que em no máximo três dias tudo estaria acabado. Doce ilusão. Ao chegarem as notícias sobre o avanço alemão, ninguém acreditou, achavam que tais notícias teriam sido plantadas para encobrir as derrotas. Aos comandantes, Hitler teria dito:

"Fechem o coração à piedade! Sejam brutais! 80 milhões de pessoas devem obter o que é delas. Sejam duros. O mais forte sempre terá razão."

- Adolf Hitler 

No dia 22 de junho de 1941 os alemães invadiram a URSS, seu aliado durante os últimos dois anos. Unidades de tropas especiais conhecidas como "Brigadas da Morte" iam logo atrás dos exércitos assassinando os judeus em cada cidade e aldeia. O mundo ficou chocado. Ninguém esperava aquilo. Stalin e Hitler eram aliados, dividiram a Polônia, até assinaram um pacto de assistência mútua. A ofensiva alemã adentrou fundo no território russo, e seu avanço foi acelerado porque a Luftwaffe possuía controle total do ar. Apesar do Pacto, Hitler planejava o ataque à Rússia desde o verão de 1940, porém, para que isso fosse possível era preciso proteger a retaguarda. Aquelas alturas o horizonte já não brilhava tanto, e apesar das vitórias do eixo na Europa, o fascista Mussolini sofreu uma humilhante derrota para os ingleses no norte da África. Não recebendo qualquer ajuda da Espanha, Adolf Hitler foi visitar Francisco Franco¹, afinal, ele havia o apoiando. Tal encontro durou mais de nove horas, e apesar dos apertos de mão e sorrisos diante das câmeras, Franco não se comprometeu.

“O maior dos gênios deve possuir a habilidade de fazer com que diferentes oponentes pareçam como se eles pertencessem a uma única categoria.”

- Adolf Hitler

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 Com a invasão da Rússia, Himmler discursou:

"As nações que possuam sangue do nosso tipo, tomaremos. Se necessário, raptaremos as crianças educando-as conosco. Se outros países prosperam ou seu povo morre como gado, a mim só interessa que necessitamos de escravos para nossa Kultur. Se dez mil mulheres russas morrem de exaustão cavando valas anti-tanques, só me importa que essa vala sirva para o bem da Alemanha."

Obs:

1 - Nascido na cidade de Ferrol em 4 de dezembro de 1892, Francisco Franco Bahamonde foi militar, chefe-de-estado, ditador espanhol, Regente do Reino Espanhol desde outubro de 1939 até sua morte que ocorrera em 20 de novembro de 1975 na cidade de Madrid.

Hitler pensou que a Rússia seria derrotada em 4 meses, e que a maioria dos russos apoiaria os alemães provocando o colapso russo, dos quais eram incompatíveis com essa idéia, comprometendo seus planos.

"Devemos resgatar os antigos princípios. As cidades precisam ser completamente destruídas."

- Disse Hitler em Leningrado. 

Enquanto todos já dormiam, Samuel, Eliezer e eu conversávamos.

-Como era sua vida antes de chegar aqui, Samuel?

- Perguntou o Eliezer.

-Vivíamos felizes em Berlim... A alfaiataria do meu pai era uma das melhores da cidade.

-Seu pai é alfaiate?

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- Questionou o Eliezer.

-Ja!... Tinha muitos clientes importantes...

-E se ele estiver aqui no gueto também?

- Cogitei.

-Será, Hans?

-Claro Eli!... Talvez essa história de fábrica de munição tenha sido só pra despistar e assim separá-los...

-Então o que acha de sairmos para procurá-lo amanhã?-Que boa idéia!

- Exclamou o Eliezer.

-Sério mesmo que vocês vão me ajudar a reencontrar meu pai?

-Claro! Amanhã mesmo começaremos.

-E pensar que isso tudo é culpa de Adolf Hitler!

- Desabafou Samuel.

-O Hans o conhece muito bem... Até jantou na casa dele.

-Isso é verdade, Hans?

-Não... Eu não o “conheço muito bem”, apenas estive sim uma vez na casa da montanha.

-Sério?

-Ja!

-E você não ficou com medo dele?

-Não...

-Ele parece ser muito mal.

- Falou o Eliezer.

-Pessoalmente não transparece. Mas confesso que ele tinha umas manias estranhas...

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Adolf Hitler era sem dúvida uma pessoa com transtornos e frustrações sentimentais. Não bebia nem fumava, além de uma fixação por doenças. Vegetariano, adorava bolos, doces e quando estava relaxado gostava de ouvir antigas músicas infantis conhecidas porto do mundo. Nunca chegava na hora certa e sempre partia rapidamente de carro. Hitler adorava velocidade. Apenas ele sabia onde o encontrá-lo, um verdadeiro adorador de animais e crianças. Amante do bom gosto, o Führer preferia tapetes grandes e macios. Levando uma xícara de chá à boca, Samuel me perguntou:

-Será que por causa dessas esquisitices que ele é solteiro até hoje?

-Mas quem disse que ele é solteiro?

- Questionei.

-E não é?

-Não! Pelo menos no dia em que fui jantar na residência de Berghof ele nos apresentou uma linda mulher, Eva Braun.

-Então por que ele não a apresenta a todos?

-Não sei.

Um casamento prejudicaria sua imagem de solitário. Embora gostasse de se passar por homem do povo, Hitler estava a todo tempo cercado por guardas da SS ao seu lado. Obviamente que o Führer, cujas horas acordadas eram turbinadas de deveres e obrigações, não tinha como oferecer atenção à Eva como uma garota de sua idade esperava. Alguns trechos de seu diário falavam da raiva que sentia pela negligência de Hitler, mas também escreveu com orgulho o trecho em que citou ser amante do maior homem da Alemanha e do mundo.

Obs: Governanta de Hitler em Berghof, Frau Raubal além de meia irmã, tinha como função manter o chalé da montanha funcionando perfeitamente para que o Führer sempre pudesse utilizá-lo para encontros políticos e negócios longe da chancelaria. Mas depois que sua filha se suicidou por amor a Hitler, Frau ressentiu-se com a posição de Eva como sucessora de

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sua filha, largando o emprego e deixando Eva sob responsabilidade de seu mestre.

Deixamos a barbearia aliviados, nos considerando como os caras mais sortudos do gueto.

-Não acredito! Meu pai está bem e em Berlim!

-Que bom hein, Samuel!

- Comentou Eliezer.

-Nem sei como agradecer vocês dois...

-Mas eu sei.

- Respondi.

- Pode nos ajudar a trazer lenha para a semana.

-Claro! Com o maior prazer!

"A situação da Inglaterra é sem esperança. Vencemos a guerra. Reverter o processo de vitória é impossível."

- Adolf Hitler.

 Mas o Grande Senhor da Guerra enganara-se. Os britânicos explodiram com a invencível Luftwaffe de Goering. Sendo assim, a invasão da Inglaterra foi adiada. Enquanto isso, o gênio militar Adolf Hitler dizia aos generais:

"Preparem-se para esmagar a Rússia Soviética rapidamente, antes de eliminarmos a Inglaterra."

Hitler tratou de montar as pressas um novo plano de ataque em uma distante floresta a leste da Prússia, onde preparou a estratégia da grande batalha contra a Rússia. Com uma linha de frente que ia do báltico ao mar negro, os alemães atacaram, e para que não restasse nada para o invasor, os

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russos queimavam tudo que deixavam para trás, restando apenas terra calcificada. Ao serem capturados eram feitos prisioneiros aos milhares pelos nazistas. Ao que o Marechal Hering teria escrito:

"Nos campos de prisioneiros os russos começaram a comer uns aos outros. Este ano, entre 20 e 30 milhões morrerão de fome na Rússia. Talvez seja bom, porque certas nações devem desaparecer."

Tudo indicava que as duas cidades maiores da Rússia cairiam, Moscou e Delingrado. Triunfante, Hitler exclamou:

"Basta chutar a porta e toda aquela estrutura podre virá abaixo!"

Quanto mais os russos entendiam o caráter da guerra, mais bravamente eles resistiam. O inverno russo chega a novembro.

"Não haverá luta no inverno", assegurou Hitler aos generais. As tropas alemãs não estavam preparadas para o inverno. Mais uma vez ele mentiu. O negro inverno russo surpreendeu os alemães, até então invencíveis. Sem roupas e equipamentos apropriados, não resistiriam por muito tempo.

Hitler subestimou o rigoroso inverno russo e demitiu alguns generais, assumindo também o posto de Comandante Chefe.

Obs:

Fracassando com a Inglaterra, a Alemanha fica com duas frentes de guerra. Semanas depois, Hitler quer ir ao território russo ocupado.

"O comando operacional pode ser feito por qualquer um. Atarefa do comandante-chefe é treinar o exército do modo nacional- socialista. Não conheço general que o faça como eu quero. Assim decidi assumir o comando."

- Adolf Hitler

O Führer tinha sempre razão, porém, enganou-se quando achou que Inglaterra e Rússia cairiam. O exército vermelho lutou até o fim, e a

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campanha nazista já se atrasara quatro fatais semanas decorrentes da tomada da Iugoslávia e Grécia. Hitler proibiu bombardeios em Atenas, confessando seu sentimento e estima a Goebbels. Amante da arte, seu coração pertencia à Antiguidade, Roma e Atenas. Ele tinha fixação pela antiguidade, alimentando uma admiração irrestrita pela antiguidade, considerando um modelo de sociedade que queria formar.

"Se falarmos em antepassados, chegaremos aos gregos."

-Adolf Hitler.

Hitler descreveu Esparta como "o Estado de raça mais pura". Roma Antiga era a "República mais poderosa que já existiu".

"Atenas, Esparta, Roma... Se criarmos a síntese das três, nossa Nação jamais perecerá."

- Adolf Hitler. 

Naquela noite, Samuel mal se agüentava de ansiedade para contar a sua mãe a novidade, esperando até a hora do jantar para a grande revelação.

-Mãe... Tenho uma novidade...

- Disse ele partindo um pedaço de pão. Todos à mesa paramos para ouvi-lo.

-Que novidade, filho?

-Descobrimos onde papai está.

-Como!

-Hoje de manhã... Na barbearia...

-Samuel, explique isso direito.

- Pediu a senhora Lovitz.

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Essa manhã saímos a procura de meu pai... Quando passamos por uma barbearia, eis que um senhor nos contou que dividiu um quarto com papai em Varsóvia, e que ele foi trabalhar em Berlim para os alemães...

-Adonai! Que ótima notícia!

-Isso sim é motivo para comemorar.

- Propôs o senhor Lovitz.

-Verdade, Ima! Vamos comemorar...

-Como comemorar? Mal temos dinheiro para comer!

Após alguns minutos de silêncio, o Eliezer sugere:

-Bem... Acredito que o Shabat já pode ser uma comemoração... Assim agradecemos ao criador e...

-Boa idéia, filho!

-Obrigado, pai.

-Então está resolvido.

Com a preocupação nítida em sua face, a senhora Schneider comentou seguido de um profundo suspiro:

-Mesmo sabendo de que seu pai está bem, ainda fico preocupada.

-Mas por que, Ima?

-Um judeu na Alemanha... Essa idéia me assusta!

-Mas ele foi a trabalho, Ima!

-Porém, continuará sendo judeu.

-Sua mãe tem razão, Samuel.

- Concordou a senhora Lovitz.

- O Führer não é de confiança. Todos nós sabemos que ele odeia judeus.

-Eu só não entendo como é que um povo tão esclarecido como o povo alemão elegeu esse louco!

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-Mas Hitler não foi eleito pelo povo.

- Interrompi. Curioso, o senhor Lovitz quis saber:

-Desde quando você entende de política, Hans?

-É que o avô dele foi amigo do Führer, Tateh.

-Amigo do Führer? Como assim, Hans?

- Questionou a senhora Lovitz.

-Vovô lutou com Adolf Hitler na Primeira Grande Guerra.

-Eu nem sabia que Hitler lutou na Guerra!

- Exclamou o senhor Lovitz.

-Sim, mas não passou de um mero mensageiro.

Adolf Hitler nunca venceu uma eleição livre. Mas se nunca foi eleito, como chegou ao cargo de Chanceler da Alemanha?Algumas situações lhe foram favoráveis. Primeiro porque industriais investidores e banqueiros viram em Hitler a única força contra os esquerdistas, o apoiando e financiando sua campanha. Além disso, Hitler contava com o temor da classe média em perder o que haviam conquistado após a terrível inflação, já os desempregados tomados pelo desespero vestiram a camisa parda de Hitler. E foi em janeiro de 1933 que Rindenburg rendeu-se a pressão esmagadora da população e cedeu dando a Adolf Hitler o posto mais alto do governo depois do presidente.

"Sinto-me como um Robert Koch da política"

- Adolf Hitler

Em seus comícios, Hitler prometia tudo a todos. Prometeu uma Alemanha forte e sólida. Prometeu emprego aos desempregados, marido para todas as mulheres solteiras. Prometeu rasgar o Tratado de Versailles, esmagar a corrupção do governo, diminuir o poder das indústrias e bancos, os mesmos

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que financiavam sua campanha. Tal promessa ele jamais cumpriria. O tempo todo ele prometia esmagar os judeus.

"São os grandes culpados"

- Berrava ele. Essa ele cumpriria até o fim. Assim triunfou o austríaco anônimo. O mesmo que odiava socialistas e judeus, defensor da brutalidade, inimigo da democracia que baseou todo seu programa político em mentira e propaganda.

“Podemos controlá-lo”

- Diziam aqueles que lhe deram o poder,enquanto gritava o povo:

“Queremos nosso líder!”

. Assim começou o III Reich. Em uma tranqüila manhã o senhor Lovitz bateu a porta assustado, trazendo a novidade:

-Mas o que é isso!

- Exclamou a senhora Lovitz levando a mão ao peito.

-Você não sabe da última...

Ainda deitado, ouvia tudo calado.

-O que houve dessa vez?

-Os alemães...

-O que tem os alemães?

-Eles estão retirando todos os doentes dos hospitais...

-Retirando os doentes dos hospitais?

-Sim! Estão deportando todos!

-Adonai! Ainda bem que em casa não temos ninguém doente.

-Independente de termos ou não, isso me assusta.

-Por quê?

-Porque amanhã pode ser os judeus!

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-Boris... Você falando assim me deixa apreensiva!

-Esther, a situação em que nos encontramos agora é uma ameaça pra qualquer um, independente do estado de saúde...

-Prefiro não pensar nisso agora. Preciso ir para a fábrica.

- Disse ela dando o último gole em seu café. Naquela tarde sai para procurar emprego, ou melhor, para candidatar-me a uma vaga na mesma fábrica em que a senhora Lovitz estava trabalhando. Ao voltar para casa deparei-me com uma situação da qual jamais conseguiria apagar de minha mente. Do outro lado da rua doentes estavam sendo arrancados de seus leitos e jogados de qualquer jeito em um enorme caminhão. A cena era horrorizante. Ainda vestindo avental, crianças gritavam arremessadas pelas janelas. Parado em frente ao hospital, observava tudo imóvel, incrédulo. As pessoas que por ali passavam fingiam não ver, medo de serem repreendidas talvez, porém, algumas não conseguiam disfarçar nem esconder sua indignação. Por um momento achei estar vivendo um pesadelo quando me deparei com um soldado SS arrancar um bebê do colo de sua mãe e o arremessar contra a parede. Voou sangue para todo lado. Jamais pensei que pudesse haver ser humano com tamanha perversidade.

-Pelo amor de Deus!

- Exclamei abrindo a porta de casa.

-Hans?... O que aconteceu?

- Questionou o Eliezer correndo até mim.

-Eu... Eu... Ah céus!

-Sente-se aqui!

- Disse ele puxando a cadeira.

- Agora me conte... O que foi que...

-Eu conheci o inferno!

- Interrompi.

-Como?

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-Eu acabei de ver uma cena que jamais pensei viver para presenciar tal situação...

-Hans, por favor, conte-me o que acontece?

-Eli... Eu vi os soldados da SS jogarem crianças pelas janelas do hospital..

.-Adonai!

-Eles arrancaram um bebê do colo da mãe e jogaram contra a parede!

-Mas... Por que isso?

-Eu não sei! Estou muito impressionado com tudo que vi Eli...

- Desabafei o abraçando.

-Calma... Não se desespere, estamos aqui para te confortar...

-Eli... Se algum dia quiserem me torturar, promete que dará um tiro em minha cabeça antes?

-Você está louco?

-Por favor?-

Deixe de dizer tolices!

Abraçamo-nos. Durante dias eu não consegui dormir a noite. Acordava no meio da madrugada sonhando que estava sendo jogado pela janela do hospital, na mira das armas. Às vezes encontrava-me em estado febril, com o lençol molhado de suor.Em uma dessas noites acordei chorando. Meu corpo todo tremia de medo. O pesadelo foi tão real que meu coração estava disparado. Levantei-me e segui até a cozinha, onde preparava um café.

-Hans!...

- Exclamou o Eliezer ainda com os olhos praticamente fechados.

-O que faz acordado uma hora dessa, Eli?

-Vi que você não estava na cama, fiquei preocupado...

-Humpf... Não se preocupe, está tudo bem.

-Outro pesadelo?

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- Questionou bocejando.

-Ja...

Puxando a cadeira, aconselhou-me:

-Hans... Não acha melhor procurarmos um médico para...

-Não! Pode deixar que o tempo resolverá tudo.

-Mas você vai ficar dormindo mal por quanto tempo mais? Vejo que você está exausto, com olheiras...

-Seu amor é minha força, Eli.

Esboçando um leve sorriso ele aproximou-se de mim e me abraçou. Aos poucos nossas faces foram deslizando até o encontro de nossas bocas. Iniciamos um beijo, recheado de ternura e amor. No silêncio da madrugada trocávamos carícias, e por um instante ao abrir levemente os olhos notei o Samuel parado a nossa frente.

Em dezembro de 1941 a ofensiva alemã foi detida fora de Moscou. Sua derrota tornou-se uma catástrofe, onde logo em seguida os Estados Unidos entraram na guerra. Com o ano de 1941 chegando ao fim, Adolf Hitler percebeu que a guerra estava em um momento decisivo. Os objetivos propostos não tinham suporte material, enquanto sua ambição de dominar o mundo caia por terra. Agora, o que restava era a dor da morte do Terceiro Reich, que sucumbia lentamente. Sendo assim, um objetivo secundário começaria a tomar forma: a eliminação dos judeus.

A presença de Samuel ali parado feito uma estátua me fez interromper o beijo imediatamente. Empurrei o Eliezer para trás, sem saber o que fazer.

-Samuel!

- Exclamei.

-Adonai!... Samuel, por tudo que é mais sagrado, não conte nada a ninguém!

- Pediu Eliezer.

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-Eu... Bem, eu... Não sei o que dizer... Desculpem, não fiz por querer.

-Nós podemos explicar...

-Não, vocês não precisam me explicar nada...

-Precisamos sim!

- Confirmou Eliezer. Sentamos-nos à mesa. Conversamos por horas. Atento, Samuel ouviu de nós toda a história, desde seu início. Confesso que fiquei com receio de que ele não compreendesse, e de fato ele não compreendeu, mas nos respeitou e prometeu guardar segredo, o que nos deixou mais aliviados.

-Mas... Como conseguiram manter esse segredo por tanto tempo?

-O Amor é nosso motivo maior...

-Vocês são homens! Eliezer, você sabe que o Criador jamais aprovará tal situação...

-Se ele desaprova uma forma de amor bonita como a nossa, não é quem eu pensei que fosse.

-Humpf... Bem... De minha parte não comentarei nada com ninguém.

-Obrigado, Samuel!

-Não tem de que agradecer, Hans... Você e o Eliezer sempre foram muito legais comigo, ajudaram-me a procurar meu pai... Não seria justo eu fazer qualquer coisa contra vocês

Abraçamo-nos os três. A partir daquele dia nosso segredo passou a ser compartilhado, tirando o peso e angústia que tomava conta de nós. Com os hospitais vazios, viver no gueto tornava-se cada vez mais triste. As pessoas já não viam mais motivos para viver, pois haviam perdido seus entes queridos, muitas das vezes único representante da família vivo. A fome e o sofrimento só faziam aumentar. Ao distribuírem as rações no gueto, observava a mistura de miséria e alegria que tomava a todos. Ao pegar sua parte de ração, corriam até o canto mais próximo e devoravam em segundos. Tal situação fazia com que passássemos horas falando em comida, relembrando o que comíamos antes daquela maldita guerra. A população do gueto poderia ser dividida em duas categorias. Os coitados

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andavam mal vestidos, subnutridos, mal conseguiam andar. Já os privilegiados, desfilavam de roupa limpa, comiam bem, todos eram funcionários e policiais.

-Hans...

-Ja?

-Você não sabe o que aconteceu.

-O quê?

-Os Weismann...

-O que tem os Weismann?

-Foram expulsos de casa pela Sondercomando!

-Nossa! Mas quando?

-Ontem. Encontrei com o filho mais novo deles que me contou.

-Que tragédia!

-Você não sabe da pior... Tiveram que ir morar com outra família. Disse-me que estão dividindo um quartinho com menos de quatro metros, e para cozinhar precisam usar o corredor.

-Quanta maldade!

A família Weismann havia chego ao gueto de Lodz dias antes da família Lovitz. Ocupavam um apartamento consideravelmente grande, gerando um certo conforto para os seis integrantes daquela misteriosa família. Raras vezes cruzei com algum dos Weismann pelo quintal, pois eram pessoas muito reservadas, quase não saiam de casa. Em meados de julho de 1941, mais precisamente no dia 31, Goering mandou Heydrich iniciar os preparativos da “Solução Final” para a questão dos judeus.

Seis meses depois, em uma reunião envolvendo 15 oficiais de alta patente em Wansee, subúrbio de Berlim, voltaram a discutir a implementação da “Solução Final”.

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Obs: Em 15 meses os"Einsatzgruppen"assassinaram um milhão de judeus, porém, os nazistas sabiam que tais métodos não poderiam ser utilizados para eliminar judeus em nenhum outro lugar da Europa onde o anti-semitismo não estava tão profundamente enraizado. Sendo assim, decidiram montar centros para assassinato sem massa para onde os judeus da Europa poderiam ser deportados. Já no fim de 1941 foi inaugurado o primeiro campo de extermínio situado em Chelmno, uma pequena vila na Polônia ocupada pelos alemães.

Tomando a palavra, Heydrick disse:

“Os judeus devem ser separados por sexo, para que não nasçam mais crianças judias. Uma vez separados, eles devem ser colocados para trabalharem em colônias de trabalho, onde uma grande parte vai definhar através dar edução natural".

Aqueles que sobrevivessem teriam de ser tratados apropriadamente, de forma a evitar que se tornassem "célula germe" de um novo desenvolvimento judeu. Tal organização seria comandada por Eichmann, do qual disse reunião:

"Eu não consigo lembrar em detalhes, mas falaram sobre métodos de matança, sobre liquidação, sobre extermínios".

Após sua palavra, todos falaram. Enquanto a reunião acontecia, garçons se movimentavam distribuindo bebidas. Ao término da conferência, os planos discutidos na reunião prosseguiram com a criação de um grande complexo de campos de concentração em Auschwitz, Birkenau, locais onde os judeus de toda parte da Europa seriam enviados. Em Treblinka, o comandante mandou construir uma fachada idêntica a uma estação de trem para enganar as vítimas que ali chegavam.

No dia 07 de dezembro de 1941 os EUA foram atacados pelas forças navais e aéreas do império japonês a sua base em Pear Harbor. A operação aeronaval de ataque à base estado-unidenses de Pearl Harbor, na ilha de Oahu, Havaí, foi executado sem prévio aviso contra a frota do Pacífico da Marinha dos Estados Unidos da América e suas forças de defesa. Quatro dias após o ataque a Alemanha declarou guerra aos EUA. Ao receberem a notícia os judeus poloneses respiraram aliviados por saberem que não

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estariam mais sozinhos, pois Stálin, Churchill, e agora Roosevelt estavam comprometidos em destruir o nazismo derrotando Hitler.Durante semanas tentamos entender o que levou o Japão a bombardear a marinhados Estados Unidos.Sete de dezembro de 1941. Era uma calma manhã de domingo. Os soldados estavam começando a acordar. As ruas de Honolulu, Havaí, estavam quietas, tranqüilas. Porém, tal tranqüilidade não duraria por muito tempo, dando lugar a um acontecimento que mudaria mais uma vez o curso da História, assim como a vida de milhões de pessoas pelo mundo.

"Nós imaginamos que entrariam em guerra com o Alemanha primeiro; muitos pensaram que declarariam guerra à Alemanha para ajudar a Inglaterra. Os rapazes no Atlântico já tinham entrado em guerra com eles. Os destróieres que estavam escoltando os navios de abastecimento até a Inglaterra. Estavam lutando uma guerra não declarada no Atlântico Norte com os U-boats alemães. Só pensaram no Japão por lá, estavam ocupados com a China. Não estava acontecendo muita coisa lá; ninguém imaginou que atacariam os Estados Unidos, ou pelo menos os que eu conhecia não."

Mas para quem pensava que a rincha entre Japão e EUA começara a partir do ataque a Pearl Harbor enganou-se. Na verdade os conflitos iniciaram-se 88 anos antes, em 1843,quando quatro navios de guerra estado-unidenses comandados pelo Comodoro MatthewPerry ancoraram no porto de Uraga, no Japão. Perry havia exigido permissão para entregar uma mensagem do presidente Fillmore ao Shogunato. Mesmo conseguindo uma audiência, não conseguiram convencer os japoneses de abrirem seus portões aos navios estado-unidenses. No ano seguinte Fillmore retornou, dessa vez com sete navios, repetindo suas exigências. Devido à diplomacia persistente de Perry e uma demonstração clara de superioridade naval, os japoneses não viram alternativa senão ceder. Naquela época o Japão era um mundo muito diferente, pois tinha isolando-se de influências políticas, comerciais externas e religiosas por mais de dois séculos. A partir de então, as barreiras foram rompidas. Três anos mais tarde, o cônsul estado-unidenses Townsend Harris foi acompanhado até a sala de audiência, onde atualmente é o Palácio Imperial em Tóquio, então conhecido como Edo, para iniciar as negociações que levariam a um acordo de intercâmbio entre Japão e EUA. Coincidência ou não, a data de chegada de Harris foi em 07 de dezembro de 1857. O efeito da mudança repentina no Japão foi grande. O principal motivo era, em grande parte, à sua inabilidade de manter a política de

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isolamento do Japão. Com isso, Shogunato foi deposto de seu cargo e o imperador voltou ao poder. Mas ao se expor a outras culturas, o Japão na verdade estava se preparando para dominá-las. Antes mesmo da queda dos Shoguns, a liderança Japonesa começou a arquitetar manobras que os colocaria em posição de poder, tanto na Ásia como no mundo. "As nações do mundo verão nosso imperador como o grande líder de todas as nações, seguirão nossa política e cederão aos nossos julgamentos." - Disse um conselheiro japonês. Tal afirmação havia sido anunciada1200 anos antes, uma política de Hakko Icchiu. O imperador Jimmu teria dito: "Traga o mundo todo para debaixo do mesmo teto imperial." Em poucas palavras, queria dizer: "Controlem o mundo.” Inglaterra, EUA, Rússia, França, Holanda e Japão disputavam terras na região do pacífico no início do século XX. Tendo tirado as Filipinas da força da Espanha, os Estados Unidos também controlavam Midway, Samoa e as Ilhas Havaianas. Além disso, todas estas nações disputavam poder na China, e no ano de 1900 a Rebelião Boxer levou a morte demissionária, diplomatas e outros estrangeiros que viviam na China, abrindo portas para outras nações mandarem uma força expedicionária de 19000 soldados. No tratado resultante a Grã-Bretanha saiu vencedora, e apesar de manter presença militar na China, os Estados Unidos haviam perdido influência no país. Este episódio, somado com o de ter seus recursos no Pacífico consumidos rapidamente ao tentar criar um movimento de independência nas filipinas, induziu os Estados Unidos a fecharem todos seus territórios no Pacífico para investimentos estrangeiros. Isso deixou os japoneses ofendidos, porém, não disseram nada.

No ano de 1895 o Japão já havia tornado-se a primeira potência asiática dos tempos modernos ao derrotar uma potência européia num conflito armado, quando derrotou a Rússia em Porto Arthur. Somado com a derrota da China em 1894 numa batalha por influência da Coréia, deixou claro que o Japão era um poder em ascensão na Ásia. Para chegar a esse patamar, sendo por séculos uma sociedade feudal, o Japão levou menos de 50anos. Agora ele era uma nação moderna, alcançando o sucesso seguindo uma antiga legislação, fazendo bom uso em suas grandes vitórias militares de um antigo princípio Samurai: “Vença primeiro, lute depois.

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Obs: - O ataque à base dos EUA danificou 11 navios e 188 aviões, matando 2403 militares estado-unidenses e 68 civis. Porém, os três porta-aviões da frota do pacífico não estavam no porto, sendo assim não foram danificados, bem como os depósitos de combustível e outras instalações. Em um ano a Marinha dos EUA na base já havia reconstruído sua frota apenas com os recursos existentes não danificados pelo ataque. O ataque marcou a entrada dos EUA na Segunda Guerra Mundial e o início da Guerra do Pacífico, passando a ser conhecido como Ataque a Pearl Harbor.

Ja estávamos no fim de setembro de 1942 quando os alemães ordenaram que 20.000 judeus deveriam ser deportados.Entrando em casa, a senhora Lovitz exclamou após um profundo suspiro:

-Está chegando a hora!

-Hora de que, Ima?

- Questionou o Eliezer.

-Vão transferir vinte mil judeus do gueto..

.-Humpf... Já estamos sabendo...

-Avistei Rumkowski no pátio do Corpo de Bombeiros rodeado por uma multidão de pessoas. Parei para ouvi-lo, e cabisbaixo ele disse que tentou, mas nada pôde fazer. Os alemães estão exigindo vinte mil judeus para deportação, e que precisam de três mil voluntários por dia durante uma semana.

A preferência inicial era por judeus improdutivos, ou seja, velhos e doentes deveriam se apresentar voluntariamente. Quanto às crianças, tentavam convencer os pais de entregar seus filhos, com a promessa de uma vida melhor fora do gueto.

-Será que tem algum louco capaz de se candidatar como voluntário?

- Ironizei. Naquele mesmo dia, receberíamos uma reveladora notícia enquanto jantávamos.

-Bem... Eu gostaria de dizer algo...

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- Disse Samuel pedindo a palavra.

-Pois diga, Samuel!

- Apoiou o senhor Lovitz. Levantando-se da mesa, Samuel continuou:

-Gostaria que vocês soubessem que Ima e eu somos muito gratos por nos acolher em vossa casa...

-Imagina! Não tem do que agradecerem...

- Falou a senhora Lovitz.

-Mas Ima e eu tomamos uma decisão, devido a tudo isso que vem ocorrendo conosco, judeus... Minha mãe e eu decidimos que nos candidataremos a voltar para Berlim..

.-Adonai! Mas como?

-Senhora Lovitz... Talvez lá esteja nossa redenção!

-Ou a morte!

-Que seja, mas é uma chance que temos... Se ficarmos aqui, nunca saberemos de fato a verdade. Além disso, podemos reencontrar meu pai!

-Samuel, por favor, não faça isso!

- Pedi.

-Sinto muito, Hans... Mas nossa decisão já está tomada. Partiremos amanhã pela manhã.

-Adonai, o que fez com que vocês tomassem essa decisão?

-Esther... Vocês sabem como a situação dos judeus vem se tornando cada vez mais difícil aqui no gueto... Não sabemos aonde isso vai parar, e se não arriscarmos uma nova oportunidade, continuaremos aqui, esperando que o pior aconteça.

-Humpf... Eu os compreendo!

-Ima!

- Exclamou o Eliezer.

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-Filho, em partes eles tem razão! E se lá houver melhores condições de vida? Tanta fome, mortes, desgraças que vemos acontecer à beira dos nossos olhos sem que possamos fazer nada...

Embora tivessem decididos a irem embora, faltou-lhes iniciativa, adiando a partida. Assim como eles, ninguém se apresentou. Furiosos, os alemães declararam estado de sítio no gueto, proibindo a todos de saírem de casa. Iniciava então mais um pesadelo. Acompanhados de enormes caminhões, os soldados cercavam um quarteirão após o outro, exigindo que todos saíssem à rua. Doentes, idosos e crianças eram imediatamente encaminhadas para caminhões especiais. No quinto dia após o início da ação, chegara nossa vez. Descemos apreensivos, esperando pelo pior.

-Se eles tentarem levar você, eu vou junto!

- Sussurrou o Eliezer enquanto descíamos as escadas.

-Por favor, não faça nenhuma besteira, Eli...

-Por você eu faço qualquer coisa.

-Rápido, para aquele lado!

- Gritou um soldado SS apontando para nosso lado direito.

Obedecemos sem nada dizer. Enfileirados, aguardávamos suas decisões, ou melhor, a decisão de um dos soldados que selecionava um a um. Ao passar pelo Eliezer ele parou.

Minha mão começou a suar.

-Qual seu nome?

- Perguntou ele.

-Lovitz... Eliezer Lovitz...

Respiramos aliviados quando ele continuou a caminhar. Pouco tempo depois se deu por terminada a ação do dia, onde várias famílias que moravam no mesmo prédio que nós foram levadas. Com isso várias moradias foram desocupadas no quarteirão, e visando um conforto melhor, Samuel e sua mãe trataram logo de se mudar para uma delas, mais exatamente na rua de trás a nossa. Para nosso alívio, naquele dia o estado

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de sítio cessou, pois haviam preenchido a cota de 20 mil judeus deportados. Posteriormente tomaríamos conhecimento de que toda aquela gente havia sido exterminada em Chelmno.

Com vinte mil judeus a menos, a vida dos que ficaram teve uma significativa melhora. Além do espaço, passamos a receber mais rações. A rotina dos Lovitz continuava normalmente. Às vezes cruzávamos com os Schneider, que felizes, acabaram mudando de idéia e desistiram de partir.Ouvi a campainha tocar e imediatamente fui atender.

-Pois não?

Sem nada dizer, um soldado SS entregou-me uma intimação e partiu. Curioso, abri a convocação que nos dava ordem de desocupar aquele prédio. Tivemos que nos mudar para um outro bem menor, pois com um pretexto de construção de uma estrada que ligava Moscou a Berlim, a mesma passaria pela rua Brzezinska, quando na verdade isso era apenas um argumento para demolição do gueto.Em nosso novo apartamento localizado no quarto andar mal cabíamos nós. A cozinha era menor que a anterior, e com apenas um quarto, mal conseguíamos disponibilizar as duas camas de solteiro que ficavam praticamente coladas uma a outra. Subir e descer quatro andares de escada era uma tarefa fatigante, e para evitar tal esforço demais de uma vez por dia, providenciamos um balde com tampa para fazer nossas necessidades. Além das camas, só coube um cesto onde passamos a utilizá-lo para guardar legumes.

-Eu não posso acreditar... Olha só o estado desse lugar!

- Exclamou a senhora Lovitz inconformada.

-Esther, poderia ser pior.

-Pior? Nem banheiro mais nós temos! Vamos ter que dividir com o prédio inteiro!

-Bem, pelo menos temos um pouco de ração que durará por semanas.

Duraria até o zelador bater a nossa porta:

-Com licença...

-Pois não?-Sou zelador do prédio e vi que vocês possuem interesse em ficar com o apartamento.

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-Sim.

-Pois bem, para que vocês fiquem com esse quarto cobrarei dois quilos de açúcar e um quilo de pão.

Lá se foi nossa ração extra. Tivemos que entregar ao zelador tudo que tínhamos para compensar os quilos extras que ele exigiu e não havíamos em estoque.

"Uma das histórias que me lembra minha mãe são da época em que estávamos no gueto. Ela preparava alguma coisa para comermos. Mas ela nunca comeu conosco. Um dia ela desmaiou, e eu a peguei no ar. Durante cinco dias ela não comeu nada, deixando tudo para nós. Isso é tão dramático! Nada mais me deixou tão impressionado, quanto aquele momento. Uma verdadeira mãe judia."

- Simon Wisenthal 

Nossa primeira noite foi um pesadelo. As paredes do apartamento eram recobertas com papel de parede, que mofado e velho, abrigavam percevejos. Podíamos senti-los passear pelo quarto sem parar, centenas deles. Combatê-los tornou-se uma de nossas tarefas diárias.

-Hans...

-Me chamou senhora Lovitz?

-Sim... Ajude-me aqui com essa bacia...

- Pediu seguindo em direção ao quarto.

-O que vai fazer com essa bacia cheia de água?

-Vou colocar nos pés das camas. A vizinha me disse que isso ajuda a espantar os percevejos.

-Nossa! Pois então vamos colocar mais!

-O que estão fazendo?

- Questionou o Eliezer ao chegar.

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-Estamos tentando resolver um dos problemas da casa... Percevejos!

-E para que são essas bacias com água?

-Pergunte à sua mãe.

-Foi a dona Basya que me ensinou. Parece que na casa dela deu certo...

- Respondeu a senhora Lovitz.

Semanas se passaram e assim como as bacias d’água, nenhum método contra percevejos adiantou.

-Senhora Lovitz, vou buscar um pouco de lenha para essa noite.

-Obrigada, Hans!

-Volto já.

Depois de procurar pelas redondezas, encontrei um pacote de lenha em um amontoado de entulhos num quarteirão desocupado. Tratei de me apressar para pegá-lo, pois se fosse visto por algum soldado, poderia ser fuzilado imediatamente, já que tudo no gueto passou a ser motivo para punição. Ao voltar, passava pela praça quando o zelador anunciou aos que ali estavam:

-Caros judeus... Existe uma necessidade de pessoas para a produção de uniformes na Alemanha, e o Führer resolveu lhes dar a oportunidade de trabalhar nas fábricas, em lugar seguro, distante da guerra. Não se preocupem, porque eu acompanharei vocês... Ouçam os canhões de Varsóvia! Não precisam de bagagens, levem apenas panelas e talheres, porém, aviso-lhes que os que logo se apresentarem receberão os melhores lugares...

Voltei para casa desconfiado.

-Hans!

- Exclamou Samuel ao encontrar-me na rua.

-Samuel! Como você está?

-Estou bem e você?

-Bem também!

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-O que leva nesse saco?

-Lenha.

-Pegue...

- Disse oferecendo-me dois tijolos de carvão.

-Carvão!

-Sim... Conseguimos bastante e não custa nada dividir com os amigos, afinal, você e a família Lovitz foram muito bons comigo e com minha mãe quando precisamos.

Demos um abraço.

-Puxa... Muito obrigado, Samuel!

Os tijolos de carvão eram feitos de pó de carvão colados com piche. O bom era que acendiam com mais facilidade do que os carvões de antes da guerra, porém, queimavam muito rápido.

-Você ouviu a proposta do zelador, Hans?

-Ouvi...

-Acho que dessa vez Ima e eu iremos.

-Samuel, não faça isso...

-Não tem mais jeito, Hans... O gueto vai fechar.

-O gueto vai fechar?

-Sim...

-Quem disse isso?

-Ouvi uns comentários... Vejo tanta gente sendo obrigada a fazer coisas absurdas, agredidas, executas... Dói ver seu povo sofrer sem nada poder fazer.

-E se você esperasse uns dias mais?

-Não sei, dependendo de como a situação estiver...

-Bem, preciso ir. Foi muito bom revê-lo e saber que estão bem!

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-Obrigado, Hans!

Cheguei a casa e só estava o senhor Lovitz. Sentado a cadeira na cozinha, mantinha a perna direita esticada a sua frente, ao mesmo tempo em que massageava a própria coxa.

-Senhor Lovitz... Está tudo bem?

-Hans! Filho, sinto muita dor nessa região da perna...

-Mas o senhor sente dor no músculo? Na pele?

-Creio que seja no osso.

-Provavelmente seja falta de cálcio.

- Comentei colocando os pacotes sobre a mesa.

-Deixa-me ver...

Apertando sua coxa, eu ia perguntando:

-Dói aqui?

-Não...

-E aqui?

-Também não...

Bastou eu tocar em sua patela para que um grito soasse.

-O que houve?

-Ai também dói!

-Senhor Lovitz... Isso é problema nas articulações!

-Ah é?

-Sim. Eu aconselho o senhor a procurar um médico...

-Médico? No gueto? Mal temos comida...

-Humpf... Infelizmente tenho que concordar com o senhor..

.-Boris? O Que houve?

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- Questionou a senhora Lovitz entrando em casa.

-Hans e eu estamos tentando descobrir de onde vem essa minha dor na perna...

-E o Hans é médico por acaso?

-Deixe de ser rabugenta, Esther!

-Hoje nos fizeram uma proposta lá na fábrica...

-Qual proposta?

-O Führer quer que os judeus vão trabalhar em fábricas de uniformes na Alemanha...

-Eu também ouvi tal proposta na praça agora há pouco.

- Comentei.

-E o que você está pensando em fazer?

-Não sei, Boris... Mas parece uma boa proposta.

-Senhora Lovitz, estão querendo nos enganar...

-E se ficar... Morrer de fome? De frio?

-E qual era a proposta, Esther?

-Aqueles que se apresentassem primeiro, teriam os melhores lugares e postos de trabalho. Garantiram um local seguro, longe da guerra...

-Isso sim é bom!

-Eu achei uma boa proposta...

Embora eu não concordasse em partir, concordava com ele nessa questão. A proposta era boa, e ficar no gueto já não era mais garantia de sobrevivência, assim como partir também não. Mas como eu tinha em mente o plano de fugir com Eliezer, voltar para a Alemanha acabaria atrapalhando, até mesmo dificultando nossa fuga por estarmos no centro do poder Nazista.

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No dia seguinte

Eliezer acompanhou-me para trocar nossas rações. O senhor senhora Lovitz estavam trabalhando, ficando ao nosso encargo o preparo do jantar.Depois de quase duas horas de espera na fila, voltávamos para casa quando um alvoroço começou a se formar.

-Hans... Alguma coisa está acontecendo!-Vem comigo!

Peguei pelo seu braço e corremos por um túnel por dentro de um prédio abandonado. Com as costas apoiadas naquela parede de tijolos lascados, aguardamos que um carro da polícia passasse. Sobre ele estavam três soldados, todos armados, prontos para possivelmente atirar em alguém.

-E agora, Hans?-Calma! Apenas me segue.

Assustado, fez sinal positivo com a cabeça. Corremos pelas ruas vazias nos esquivando de muro em muro, até finalmente chegarmos ao prédio em que morávamos.Subimos as escadas correndo. Trancamos a porta com uma madeira para reforçar. Através da fresta da janela observávamos a movimentação nas ruas, principalmente na praça, onde o zelador voltou a dizer em alto e bom som a todos:

-Estão vendo como posso prender todos a força?... Entendam minha intenção e desejo não é essa. Quando voltarem para suas casas, pensem muito bem na proposta e se apresentem livremente com suas respectivas famílias a partir de amanhã.

Olhando-me apavorado, o Eliezer questionou:

-Hans... O que faremos agora?

-Não podemos nos apresentar sem nenhuma garantia...

-Mas o zelador garantiu que...

-Garantiu?

- Interrompi.

- Você viu a forma como essas pessoas estão sendo tratadas?Olha a situação em que nos encontramos! Chegamos ao fundo do poço, suportando todo tipo de humilhação, passando fome e frio...

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-Mas Hans, essa guerra não vai durar muito.

-Quem disse que não? Não temos mais certeza de nada!

Abraçando-me, ele falou após um longo suspiro:

-“Conforme o camelo, assim o fardo.” Se o Criador nos deu essa provação, é porque tem certeza do quanto poderemos agüentar...

Pelo restante do dia não saímos de casa, amedrontados com o que poderia nos acontecer. Já era tarde da noite quando o senhor e a senhora Lovitz chegaram. Respiramos aliviados ao vê-los, porém, uma felicidade que não durou muito.

-Boa noite, rapazes!

- Saudou o senhor Boris.

-Boa noite!

- Respondi.

-Tateh... Precisamos te contar uma coisa...

-Já estamos sabendo, Eliezer.

- Respondeu.Colocando uma sacola sobre a mesa, disse a dona Esther:

-Não se falava em outra coisa lá na fábrica...

-Eu e o Hans vimos tudo, Ima...

-Filho, eu e seu pai decidimos nos apresentar voluntariamente.

-O quê? Vocês não podem fazer isso!

-Eliezer, não temos escolha.

- Disse seu pai.

-Nossa fábrica não funcionará mais a partir de amanhã.

-Mas...

-E sendo assim, não teremos emprego, nem o que comer.

-Tateh, é arriscado partir sem saber nosso destino!

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-Estamos em um barco sem saída, filho. Precisamos partir...

-Eu não vou!

- Gritei apavorado.

-Mas o Eliezer vai.

- Respondeu sua mãe.

-Eu?... Ima...

-Esther, os meninos ainda possuem condição de ficar, não é justo tirá-los daqui.

-Eu não vou sem meu filho!

-Vai ser melhor para todos nós... Os meninos ficam.

- Decidiu o senhor Boris. O caos começou a se instalar naquela família. O Eliezer não aceitava a decisão dos pais de partirem, gerando um tremendo conflito naquela longa noite. No gueto, ninguém sabia sobre Maidanek, Treblinka e os demais campos de concentração. Os deportados anteriormente jamais mandaram qualquer notícia, motivo que nos fazia suspeitar das tais promessas.

No dia seguinte os dois partiram. Apertou-me o coração ver o Eliezer sofrer pela despedida dos pais. Muitas lágrimas, tristeza.

-Filho... Um dia tudo isso irá acabar, e nos reencontraremos para reviver como sempre fomos... Uma família feliz!

-Ima... Não deixe de mandar notícias assim que chegarem em Berlim?

-Claro!

- Afirmou ela cobrindo-se com um xale velho e desbotado, vestes completamente diferente das que costumava usar antes da guerra. Ao fecharem a porta, selavam mais um capítulo daquela terrível História. Eliezer nunca mais voltaria a ver seus pais. Deitado à cama, ele chorava calado, de bruços, lamentando a partida que no fundo ele sabia ser para sempre.

-Eli... Não fique assim...

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- Pedi acariciando seu cabelo.

-Eu deveria ter ido com eles...

-Ah é? Como você é egoísta!

-Egoista, eu?

-Sim! Eu deixei minha casa, minha mãe, briguei com minha família, estou passando fome, sendo perseguido, tudo isso para poder ficar ao seu lado!

-Hans...

-E você diz que deveria ter partido com eles?

- Levantei-me indignado.

-Mas Hans...

-Olha Eliezer... Por mais dificuldades que passei aqui, jamais cogitei a hipótese de jogar tudo pro alto e voltar pra minha casa quentinha, para o colo da minha mãe. Meu único propósito por estar aqui é somente o amor que sinto por você, apenas isso.

-Desculpe Hans... Eu não quis dizer...

-Eliezer, por favor. Não diga mais nada, vamos dormir cedo porque a fome já está a me incomodar.

-Mas Hans...

-Boa noite!

Deitei-me na outra cama e não abri mais a boca. Cansado e faminto, adormeci em pouco tempo. Enquanto o sono não vinha fiquei refletindo, achando que havia exagerado nas palavras com o Eliezer, mas ele em momento algum também havia se mostrado preocupado comigo, onde a única coisa que importava eram seus pais. Acordamos com latidos dos enormes cães que os soldados soltavam pelas ruas.

-Hans... Está ouvindo?

- Perguntou o Eliezer.

-Ja...

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Levantamos da cama imediatamente. Corremos até a janela para espiar o que acontecia lá fora. O quarteirão inteiro estava cercado por inúmeros soldados SS armados. Em um primeiro momento os soldados atiravam para o alto, mandando que todos deixassem suas casas de imediato, em seguida começavam as buscas vasculhando cada canto com seus cães famintos por sangue judeu.

-Adonai! Estão vindo pra cá!...

- Exclamou o Eliezer em pânico.

-Calma...

-Como calma? Vão nos pegar, nos enviar sabe lá pra onde... Nos separar...

- Cogitava desesperado com as mãos à cabeça.

-Ninguém vai nos separar, Eli.

-Por favor, Hans... Promete que você não irá me abandonar?

-Prometo! Agora precisamos nos esconder.

- Respondi olhando em seus olhos. Decidido que não iríamos nos entregar. Peguei o pinico que havia embaixo daminha cama e comecei a jogar urina por todo o quarto.

-O que você está fazendo? Está louco?

- Disse o Eliezer tapando seu nariz com a mão.

-Se subirem aqui com os cães, o cheiro vai confundir o olfato deles e deixar os soldados com nojo!

Em seguida, abri o cesto de roupas e tirei algumas peças dizendo:

-Você terá que se esconder aqui.

-Dentro do cesto?

-Sim!

-Humpf... Ta bom.

Imediatamente o Eliezer pulou para dentro do cesto. Não houve dificuldade para ele, pois sendo baixinho e magro, ficaria bem acomodado por algum

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tempo. Em seguida comecei a preencher o cesto com algumas roupas que havia tirado, e para completar soquei todos os legumes que tínhamos disponíveis. Aproveitei os pacotes de lenha e as caixas de carvão, colocando-as sobre a tampa do cesto. Dessa forma ninguém suspeitaria de que ali dentro houvesse alguém escondido. Preguei uma tábua na porta pelo lado de fora e coloquei um cadeado, dando a impressão de que o lugar estava abandonado. Ouvi passos se aproximarem. Antes de entrarem pânico, escondi-me rapidamente dentro do forno, controlando inclusive a respiração para que ninguém suspeitasse de nossa existência. Que aperto! Mexer o corpo era quase que impossível, e o medo de me faltar ar faziam-me sentir fobias. Um estrondo foi ouvido. O suor em minha testa escorria sem parar. Arrombaram aporta! Comecei a rezar. Através de uma pequena fresta no forno eu conseguia ver aquelas botas pretas e altas, das quais jamais irei me esquecer. Meu queixo tremia. Além de torturar, os alemães sentiam um prazer sádico em descobrir esconderijos. Por sorte eles não ficaram por muito tempo em nosso quarto. Ao saírem, veio o silêncio. Ouvimos batidas nas portas vizinhas, seguidas de choros e gritos. Os alemães haviam acabado de descobrir as crianças do prédio escondidas no forro. Que azar!Levaram-nas para fora e novamente um silêncio de expectativa se fez presente. Certos de que a polícia e os soldados SS haviam partido, deixamos nosso esconderijo. Todos haviam sido levados, apenas eu e Eliezer conseguimos escapar.

Nos dias seguintes o cerco ao gueto so aumentou.

Os alemães passaram a isolar os judeus em uma parte, pois assim era mais fácil controlá-los e deportá-los.

"Havia boatos de uma operação no gueto. Sabíamos que iria acontecer em cerca de uma semana. Nós ainda tínhamos um relógio de ouro. Sem notícias de minha mãe, fui até seu apartamento e perguntei à vizinha: 'Eu dei um relógio de ouro para minha mãe'. E ela respondeu: 'Sim, eu sei'. E que quando o policial saiu sem levar minha mãe ela bateu em sua porta e disse: 'Graças a Deus! Eu dei o relógio pra ele'. Mas uma hora depois, outro policial ucraniano voltou e como minha mãe não tinha mais nada pra dar ele a levou. Fui até a estação de trem, e corri freneticamente entre um vagão e outro. As pessoas estavam nuas, sem nada, e a gente ouvia: Água,

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Água, Água'... Eu gritava: 'Mãe, mãe, mãe'. E nada! Não havia possibilidade de ajudar. Muitas vezes sonhei com aquela situação, com as pessoas dentro dos vagões. No sonho eu me vejo correndo e não podendo ajudar... Eu sei que a mataram em Belzec. Minha esperança era que ela tivesse morrido no caminho de Belzec e tivesse sido poupada de ir para a câmera de gás. Você sabe o que significa dizer:Eu espero que ela tenha morrido durante o transporte?"

- Simon Wisenthal

Teve uma noite que fazia muito frio, e como não podíamos utilizar métodos que denunciassem nossa presença naquele edifício abandonado, tivemos que nos contentar com uma pequena brasa próxima a cama que aquecia uma panela com água, além de uma vela bem próxima para aquecer nossas mãos. Com a cabeça deitada em meu peito, o Eliezer questionou:

-Hans...

-Hum?

-Como será que meus pais estão nesse momento?

-Acredito que já tenham chegado a Berlim.

-Mas sem me avisar?

-Avisar como? Olha só a condição em que nos encontramos...

-Humpf... Você tem razão... Hans?

-Hum?

-Você não sente saudade da sua mãe?

-Claro que sinto!... Às vezes sonho com ela, fico imaginando o que ela estaria fazendo nesse momento... Mas tenho certeza que Mutter está muito bem.

-Sem dúvida! E tudo isso por culpa do Führer! O que eu não entendo, é como um homem que queria ser artista tornou-se líder de um partido que hoje pretende dominar o mundo!

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Adolf Hitler adorava as músicas de Wagner, dizendo ter visto sua ópera “O crepúsculo dos Deuses” mais de cem vezes. Quando ainda jovem sentia

-se encantado pela mitologia germânica, transformado posteriormente por

Rosenberg em exemplo de raça “ariana”. Através de Wagner também vieram as noções de arte para uma nova civilização.

"É o exército que nos faz homens. Quando vemos um exército reforçar-se a fé no futuro de nosso povo."

-Adolf Hitler Hitler

Julgava-se seguidor daqueles que haviam forjado uma nação guerreira como Frederick o Grande e Bismark. Acontece que nenhum líder nazista utilizou-se de idéias originais, valendo-se de antigos conceitos alemães, os distorcendo para enquadrá-los nas ideologias do partido. Mas, afinal, como Adolf Hitler chegara ao partido Nazista?O Exército alemão havia o contratado para espionar um determinado grupo que tinha por hábito se reunir nas cervejarias, chamado Partido Nacional Socialista Alemão dos Trabalhadores (Em alemão:

National sozialistische Deutsche Arbeiterpartei - NSDAP), ou então, Partido Nazista. Mas Hitler, ao invés de espioná-los, preferiu unir-se a eles.

"Foi o passo mais decisivo de minha vida. A partir dali, não mais haveria retorno."

- Adolf Hitler

 Adolf Hitler tornou-se chefe do partido nazista em 29 de julho de 1921, quando iniciou logo em seguida um programa transformando o partido numa organização radical e revolucionária. A Sturmabteilung (seção de assalto) foi fundada naquele mesmo ano, começando uma política de

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expansão do Partido Nazista através do medo, intimidação e ataques violentos a outros partidos políticos.

Hitler usou seus dons artísticos na política. Ele criou tudo, desde o uniforme, as bandeiras e o estandarte. Ele deu forma ao nazismo com seus desenhos e instruções. A insígnia do Partido foi criada por Hitler em 1923. Repousando sua colher ao prato, o Eliezer comentou:

-Amanhã eu começo a trabalhar...

-Mas como? Você não me contou nada...

-É que só fiquei sabendo hoje também... Farei o trabalho de carregar entulho.

-Eli, você está tão magrinho que...

-Hans, eu preciso trabalhar, nós precisamos comer!

-Humpf... Eu sei amor... Em breve também conseguirei um trabalho e conseguiremos uma boa quantia para partimos ao Brasil.

-É tudo que eu mais quero!

-E vamos conseguir...

Dei-lhe um beijo em sua testa e adormecemos.

O dia nem havia clareado quando ouvi o Eliezer levantar-se. Abri levemente os olhos, sem que ele percebesse. No escuro do quarto, com apenas uma vela acesa em sua mão ele agasalhava-se para sair. Coitado, dava para perceber que ele estava morrendo de cansado, mas isso não o impedia de ir em busca de seu objetivo.

-Você vai sair assim, só com esse sapato?

- Perguntei enquanto ele dava um gole em um ralo café.

-Hans!... Eu te acordei?

Sussurrou.

-Não... Você precisa se agasalhar bem deve estar muito frio lá fora.

Levantei da cama e imediatamente senti um mal estar.

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-Hans! Você está bem?

- Questionou o Eliezer amparando-me.

-Não sei... Estou com sede...

-Você está suando! Volte para a cama... Vamos que eu te ajudo...

-Mas Eli...

-Não discuta comigo, anda!

-Humpf... Está bem...

Com muita dificuldade voltei para a cama.

- Fique quietinho ai que vou pegar um copo d’água pra você.

-Obrigado!

Ergui um pouco a cabeça e enquanto a bebia ele comentou:

-Você está ardendo em febre!... Adonai, não posso ir trabalhar com você nesse estado...

-Não! Você não vai perder seu primeiro dia de trabalho por minha causa. Pode ir trabalhar, eu ficarei bem.

-Mas Hans...

-Eli! Por favor, vá... Eu ficarei bem.

-Humpf... Ta bom.

-Mas antes é melhor você proteger seus pés.

-Como?

-Em cima do cesto tem um pedaço de pano velho. Corte-o no meio e enrole em seus pés...

-Tudo isso é preocupação?

-Zelo por alguém que a gente ama!

-Você foi a melhor coisa que já me aconteceu na vida...

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- Disse ele deixando uma lágrima escapar. Após enrolar os pés como eu havia pedido, deu-me um beijo na testa e foi trabalhar.Assim que ele saiu, deixei a vela próxima a minha cama e acabei adormecendo. No meio do sono comecei a tossir. Quanto mais eu tossia, mais dores eu sentia, fazendo-me gemer, até gritar de dor.Quando o Eliezer chegou e me viu chorando, pegou-se no desespero.

-Adonai! Hans... O que houve?

-Estou... Sentindo muita... Dor...

-Precisamos ver um médico...

-Ai... Ai...

- Gritei ao tossir.

-Eu vou chamar um médico.

Desesperado o Eliezer saiu, e pouco tempo depois voltou acompanhado de um médico.

-Olá!

- Exclamou o médico com um simpático sorriso.

-Olá!

Aproximando-se da cama, questionou:

-Então você que é o Hans?...

-Sim.

-Eu sou o doutor Asher... Vim a pedido do seu amigo Eliezer...

-Ah sim...

-O que você está sentindo, Hans?

-Estou sentindo muitas dores no peito, fraqueza...

-Sente mais dores em algum outro lugar?

-Também me dói um pouco o abdômen.

-E essas dores no peito são contínuas?

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-Pioram quando eu respiro profundamente, tusso, espirro...

-Teve febre?

-Uhum.

-O que você comeu hoje?

-Nada. Não sinto fome...

-Humpf... Vamos ver...

Após examinar-me, diagnosticou seguido de um profundo suspiro:

-Essas dores são ocasionadas quando as duas superfícies pleurais se esfregam uma a outra e sentem-se na parede do tórax junto ao local da inflamação...

-E o que isso quer dizer, doutor?

Pegando seu cobertor, o jogou sobre mim.

-Você vai ficar bom... Agora precisa se manter bem quentinho.

- Comentou acariciando-me. Com o cobertor a mais a tosse amenizou, porém, quando vinham pareciam que iriam acabar comigo. Limpando suas lágrimas o Eliezer pegou uma beterraba, fez um furo no meio e recheou com açúcar. Em seguida ele colocou no forno.

-Eli...

-Hum?

-O que você está fazendo?

-Todas as vezes em que tínhamos tosse em casa, Ima fazia um xarope de beterraba com açúcar. Isso vai ajudar a melhorar a tosse.

-Mas no forno?

-É... O açúcar e a beterraba irão derreter e formar um espesso xarope.

Todas as vezes que eu tossia, ele dava-me uma colher daquele xarope. Confesso que algum resultado surtiu, pois as tosses começaram a diminuir.No dia seguinte Eliezer saiu levando em um embrulho seu par de sapatos novos que eu havia lhe dado. Fingi que dormia, para que não se

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sentisse constrangido ao mesmo tempo em que derramava suas lágrimas de preocupação. Dando-me um beijo na testa, sussurrou:

-Melhoras, meu amor!

No horário do almoço ele voltou para casa. Sobre a mesa depositou um pacote, em seguida tirou suas luvas e o echarpe. Em passos lentos ele aproximou-se de mim, aflito, com medo de que o pior houvesse acontecido.

-Hans... Você está acordado?

Sussurrou.

-Ja!

-Que bom!

- Exclamou após um profundo suspiro.

- Trouxe uma coisa que vai lhe fazer sarar.

-O quê?

-Consegui comprar cinco injeções de cálcio de 10 cm³ cada.

Naquele instante eu entendi o porquê de sua saída com os sapatos que eu havia lhe dado. Para conseguir comprar as injeções e me salvar ele vendeu o presente que guardava com tanto carinho.

-Mas por que você foi vender os sapatos?

-Sapatos?... Do que você está falando, Hans?

- Fingiu não saber.

-Eu vi quando você saiu essa manhã com os sapatos que eu lhe dei...

-Humpf... Eu pensei que você estivesse dormindo...

-Mas não estava. Eli, não precisava ter feito aquilo...

-Você acha que eu trocaria sua vida por um par de sapatos? Hans deixa de ser bobo!Quando você estiver recuperado poderá me dar outro... Nesse momento sua vida é o que me importa!

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-Humpf... Nesse momento eu acabo de descobrir uma coisa.-Que coisa?-Porque te amo!

Vi seus olhos brilharem e as lágrimas descerem. Sem nada dizer ele abraçou-me, apoiando sua cabeça em meu peito, permanecendo por alguns minutos.

-Preciso voltar ao trabalho, Hans...

-Está bem.

Calçando suas levas, ele avisou-me:

-Pedirei para que uma enfermeira venha visitá-lo para lhe aplicar as injeções...

-Está bem.

-Te amo!

- Sussurrou fechando a porta. Algum tempo depois levantei-me da cama e fui espiar a janela, que coberta com papelão para não dar pistas de que havia alguém lá, impedia a entrada de luz natural.Afastei um pouco aquele papelão velho e amassado. A rua estava deserta. Caminhando em passos lentos voltava para a cama quando alguém bateu à porta.

-Quem é?

-Perguntei.

-Sou Leah, enfermeira. Vim a pedido de Eliezer Lovitz...

-Um momento.

Caminhei até a porta e abri.

-Boa tarde!

-Boa tarde! Você que é o Hans?

-Sim.

-Sou enfermeira Leah. Vim aplicar-lhe as injeções de cálcio.

-Por favor, entre!

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-Com licença!

Fechei a porta. Colocando sua maleta sobre a mesa, ela questionou:

-Preciso de um pouco de água e uma panela para ferver a seringa... Posso pegar essa aqui mesmo?

-Claro!

-Com licença...

Enquanto a água fervia, ela puxou uma cadeira e passamos a conversar.

-Vocês moram aqui sozinhos?

-Sim... Os pais do Eliezer voltaram para a Alemanha

.-Então vocês são da Alemanha...

-Ja! Você também?

-Sou de Munique... Mas... Você não me parece judeu...

-Humpf... Bem, é por que... Por que... É que tenho dois avós que são judeus e ai fui considerado um judeu também.

-A água já está fervendo!

Percebi que ela não acreditou muito na minha justificativa, porém, estava pouco me importando com o que ela estava pensando. Ao voltar com a seringa desinfetada, disse-me:

-Vou precisar amarrar seu braço com esse cordão de borracha...

-Tudo bem.

-Você vai abrir e fechar a mão para que o sangue circule.

-Ta.

Após amarrar a borracha em meu braço, Leah pediu:

-A partir de agora você comece a respirar pela boca...

-Sim... É a primeira vez que tomarei injeção na vida.

-Está falando sério?-Sim...

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-Mas fique despreocupado, não vai doer nada.

Ela tinha razão. Quase não senti a picada da agulha, porém, um calor quase que insuportável passou a tomar conta de mim, efeito do remédio que acabara de ser aplicado.

-Prontinho Hans!

- Disse ela desamarrando o cordão de borracha do meu braço.

-Nossa! Que calor isso me deu!

-É normal sentir esse calor no momento da aplicação.

- Explicou levantando-se.

-Muito obrigado, enfermeira Leah!

-Imagina... Dentro de dois dias eu voltarei para aplicar mais uma injeção.

- Disse arrumando sua maleta.

-Dois dias?

-Sim. É preciso um dia de intervalo para esse procedimento.

-Entendi.

-Se tudo der certo, nos veremos em dois dias.

-Se tudo der certo?... Como assim?

-Humpf... Estão fechando o cerco para os judeus no gueto...

- Contava encostada a porta.

-Os alemães vão fechar o gueto...

-Mas será mesmo verdade isso?

-Sim... Aqueles trabalhadores de rua serão os alvos mais fáceis agora para deportação.

-Nossa!

-É... Hoje possivelmente já deve está tendo algum tipo de “caça aos judeus”...

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Meu coração começou a bater na garganta. Assim que ela se foi eu tratei logo de vestir uma roupa bem quente e sai para procurar o Eliezer. O perigo que ele estava correndo sem saber deixava-me mais angustiado.Passei pela rua Brzezinska e só de olhar o prédio onde morávamos em ruínas partiu-me o coração. Como eu não sabia o endereço exato de onde o Eliezer trabalhava, passei a procurá-lo por todos os cantos possíveis do gueto, já que ele fazia trabalhos externos. A tosse estava quase me matando. A cada dez metros que eu andava tinha que parar para descansar e tossir, claro, segurando os gritos por conta de uma dor indescritível.Quase duas horas após o início da procura, eis que avistei o Eliezer atravessando a rua.

-Eli!

- Acenei. Sem acreditar no que via, aproximou-se rapidamente de mim questionando:

-Hans!... O que faz aqui? Você está louco?

-Eli... Eles vão deportar os judeus que trabalham nas ruas...

- Explicava ao mesmo tempo em que tossia.

-Mas do que você está falando?

-A enfermeira Leah disse que os judeus que trabalham nas ruas serão os primeiros a serem levados, porque o gueto vai fechar...

-Hans, isso é boato.

- Respondeu trazendo-me para um canto da calçada.

-Diziam que a perseguição nazista era boato e você viu no que deu?

- Tentava convencê-lo em meio a tosses violentas.

-Tudo bem. Vamos sair daqui... Conversamos em casa

Voltamos para casa, caminhando em passos lentos. Debilitado, apoiava-me ao Eliezer, que preocupado, perguntava a todo momento se estava tudo bem.Ao dobrarmos a rua Wolborska, um homem veio correndo desesperado dizendo:

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-Escondam-se! Os alemães estão vindo ai e pegando todo mundo que encontram pela frente para deportação...

-Adonai!

Correr não podia, pois no estado em que eu estava mal conseguia andar. Apressamos os passos. Silêncio na rua. Antes de contornar o quarteirão ouvimos barulho de carro se aproximar.

-Não adianta Eli... Eu não agüento mais...

-Não podemos parar agora, Hans!

-Por favor...

- Pedia tossindo.

- Estou sentindo muita dor.

-Adonai!

Parados em frente uma montanha de escombros, o Eliezer sentou-me a beira da calçada e pediu:

-Espere por mim aqui.

-Aonde você vai?

-Salvar nossas vidas!

Correndo ele atravessou a rua, pegou um pedaço de papelão e voltou. No terreno amontoado de entulhos ele retirou algumas pedras, deixando um buraco na parte próxima ao muro do prédio abandonado.

-Vem comigo...

- Disse ele pegando em minha mão. Deitei-me sobre o papelão. O barulho de carro aproximava-se cada vez mais. Colocando seu corpo por cima do meu o Eliezer deitou, protegendo-me de qualquer entulho que pudesse cair sobre nós.

-Tente se acalmar, tudo vai ficar bem...

-Eu... To com vontade... De tossir, Eli...

Sussurrei.

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-Segure mais um pouco...

A forma como ele abraçou-me, preocupado, fez com que me sentisse o homem mais seguro do mundo. O cuidado em forrar o papelão para que minhas costas não pegassem friagem, colocar seu corpo por cima do meu cara que nada me acontecesse.

-Logo isso tudo vai passar.

- Acalmava-me com um beijo na testa. Um barulho aterrorizante de passos, caminhão e tiros nos fizeram tremer. A poucos metros de nós estavam aqueles que poderiam interromper nossa história para sempre. De repente ouvimos ao que pareciam duas mulheres gritando. As vozes pediam para que as deixassem ir, e ao chorar de uma criança, eis que um tiro as silenciou.

-Meu Deus!

- Exclamei.

-Por favor, Hans... Não se mova.

- Sussurrou o Eliezer.

-Eu não vou agüentar...

-Você vai sim... Você enfrentou sua família e uma nação inteira para ficar ao meu lado, e vai desistir agora? Se você fizer isso, não é o homem que pensei que fosse.

- Dizia chorando. Não respondi, apenas o abracei. Foram mais de quatro horas esperando dentro daquele buraco empoeirado. Pensei que fosse morrer, segurando aquela tosse que parecia querer explodir meu peito.

Já havia anoitecido quando o Eliezer disse:

-Acho que já podemos sair...

Chegamos em casa mais pálidos que dois fantasmas. Tirei aquele casaco cheio de sujeira e deitei-me a cama.

-Vou preparar aquele xarope de beterraba pra você. Ele vai te ajudar com essa tosse...

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-Obrigado, Eli!

-Fique ai deitadinho, deixe tudo comigo...

-Está bem.

Dando-me o xarope na boca, o Eliezer comentou:

-Amanhã não irei trabalhar você precisa de mim por perto...

-Não! Despreocupe-se, você precisa trabalhar, eu vou ficar bem.

-Humpf... Não posso ir sabendo que você está doente aqui. Estou decidido, eu vou ficar.

Durante aquela semana o Eliezer acabou cumprindo sua promessa, ficando em casa e me cobrindo de paparicos. Sobravam tantas rações que conseguia alimentar-me duas vezes por dia, e com as injeções de cálcio que a enfermeira Leah aplicava-me sentia a recuperação dia após dia.

-As rações estão durando, Eli...

-Você viu?... Isso é muito bom, não acha?

-Sim, acho.

- Respondi desconfiado. Mais tarde eu descobriria que as rações não estavam durando mais, a verdade era que o Eliezer deixou de comer suas rações, as deixando para mim. Sua atitude foi tão nobre que somente alguém que ama de verdade poderia fazer. Apesar de tudo, ele jamais soube que eu havia descoberto.

Ja fazia um mês que eu havia me recuperado por completo, quando num belo final de tarde nos surpreenderam com fortes batidas à porta.

-Quem será?

- Sussurrei. Caminhando na ponta dos pés em direção a porta o Eliezer pediu silêncio com o dedo a boca.

-Abram! Polícia Alemã!

-Adonai!

-Calma, não se desespere.

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- Sussurrei.

- Deixa que eu abro.

-Não, Hans!

-Eli, calma! Deixa comigo.

Respirei fundo e abri a porta.

-Pois não?

-Pegue sua mala e nos acompanhe.

-Mas para onde?

-Não faça perguntas. Pegue apenas uma mala de até vinte quilos e nos acompanhe!

-Bem, como posso...

Um dos policiais puxou o gatilho de sua arma, não me fazendo pensar duas vezes.

-Tudo bem. Já estou indo.

Arrebentando a porta com o pé não nos deram tempo de fazer as malas. Pegamos aquilo que vimos a frente e fomos arrastados para fora de casa. Escoltados sobre a mira daquelas enormes armas seguimos até os bondes que já aguardavam por nós. Partimos sem saber para onde. Algum tempo depois já estávamos no desvio da estrada de ferro em Marysin, onde fomos obrigados a descer e entrar em vagões de carga.

-Para onde estão nos levando?

- Perguntei a um dos soldados que nos escoltavam.

-Vocês vão para Alemanha trabalhar com aquilo que possuem habilidade... Não há nada do que temer fiquem tranqüilos. Uma boa viagem!

A porta do vagão se fechou. Que escuridão! Apreensivo o Eliezer pegou em minha mão sussurrando:

-Calma... Tudo vai ficar bem...

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Os vagões foram trancados pelo lado de fora. Todos ficaram no mais absoluto silêncio. No primeiro sacolejar, o trem começou a partir. O vagão em que estávamos estava tão lotados que mal conseguíamos respirar, amontoados como gado. Durante aquelas viagens que chegavam a durar dias ao longo de 2.400 quilômetros, muitas coisas aconteciam. Grande parte dos idosos e crianças acabava morrendo no caminho, ou por sufocamento, desnutrição, inanição. Os vagões eram selados, mal permitiam a entrada de ar para que se pudéssemos respirar.

-Hans...

- Sussurrou o Eliezer com a cabeça apoiada em meu ombro.

-Hum?

-Estou com muito frio!

Tirei meu paletó e dei para ele. Havíamos improvisado um banheiro nos fundos do vagão, estendendo um cobertor para que pudéssemos fazer nossas necessidades em umbalde. Em pouco tempo o cheiro tornou-se insuportável.

-Não estou conseguindo respirar, Hans...

Encostei a cabeça do Eliezer em meu ombro e assim permanecemos, ouvindo o barulho do atrito dos ferros do vagão. Sentíamos fome, sede, frio, medo. Assim adormecemos. Dormíamos num profundo silêncio, quando de repente o trem começou a parar.Espiei pela fresta ao meu lado direito e avistei luzes em um ponto distante, dos quais se aproximavam cada vez mais, tornando-se mais fortes. Embora fosse uma novidade, as pessoas continuavam indiferentes, reservadas em seu mais profundo silêncio da alma. O Eliezer acordou. Esfregando o olho, perguntou-me:

-O que está acontecendo, Hans?

-Não sei... Só sei que o trem parou.

Sussurrei. Seu olhar era curioso. Aproximamo-nos mais da fresta para tentar ver alguma coisa, mas não era possível avistar muito, apenas o que parecia ser postes de cimento, com isoladores de arame e uma grande quantidade de soldados.

-Chegaram mais judeus!... Vieram para a fábrica de sabão.

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- Gritou alguém lá de fora. Claro que pensamos que iríamos realmente trabalhar em uma fábrica de sabão, porém, o que nos esperava ia muito, além disso. Sentimos mais um solavanco. O trem começou andar novamente. Adentramos ao que parecia uma muralha, feita de tijolos e altos muros. Como o dia já estava clareando foi possível avistar vários postes de cimento entrelaçados com isoladores feitos de arame farpado. Inúmeros soldados andavam de um lado para o outro carregando submetralhadoras. Assustado, o Eliezer exclamou apertando forte minha mão:

-Adonai!... Que lugar é esse?

-Acalme-se!

Pedi.Os freios rangeram bruscamente. Em um estrondo apavorante as portas dos vagões foram abertas.

-Raus, raus, verfluchte juden¹!

- Gritavam aqueles homens armados. Acabávamos de chegar a Aushwitz.

Obs: - 1. Raus, raus, verfluchte juden:

Fora, fora, malditos judeus

Fundado no ano de 1940, o campo de prisioneiros de Auschwitz recebia nos mesmo ano 728 prisioneiros políticos poloneses, e em 1942 chegaria a marca de 20 mil prisioneiros em dado momento. Nunca paravam de chegar pessoas, cujas vidas não tinham qualquer valor. Localizado no sul da Polônia, Auschwitz foi símbolo do Holocausto nazista,um complexo de campos. Ao todo existiram três campos principais e mais trinta e nove campos auxiliares. Muita gritaria, choro, desmaios. O barulho era de enlouquecer, deixando a todos assustados.

-Adonai!... O que está acontecendo?

- Questionava o Eliezer apavorado.

-Alles raus¹!

- Gritavam três soldados SS.

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-Hans... O que vão fazer com a gente?

-Eu não sei, mas faça o que eles estiverem mandando.

Fomos tirados dos vagões com violência. Que cena triste! Crianças abraçavam , gritando desesperadamente.

-Mulheres de um lado, homens do outro!

- Gritou um soldado SS. Algumas pessoas trajando roupas listradas ajudavam a formar as filas. Crianças de colo eram arrancadas dos braços de suas mães e entregues nos braços dos idosos. Entramos na fila dos homens.

“Nós andávamos vagarosamente. Um homem da SS ficava alguns metros à nossa frente. Quando passávamos na sua frente, ele fazia um sinal com o bastão para uns irem para a esquerda e outros, para a direita. Para a esquerda, direcionava todos os velhos e crianças que estavam sem pais. Às vezes, uma mãe ia para a direita e seu filho para a esquerda. Se a mãe se recusasse a deixar o filho os dois eram mandados para a esquerda. Para a esquerda estava o caminho para as câmaras de gás”.

- Depoimento de um sobrevivente.

Os listrados tratavam logo de separar as crianças de idade aproximada e razoavelmente parecidos, as instruindo para que se identificassem perante aos alemães como gêmeos. Apavorados, nos mantivemos calados. Caminhávamos em fila, pouco apouco.

-Hans... Se alguém quiser nos separar...

-Eliezer!

- Interrompi.

- Pára de dizer tolices.

-Mas Hans...

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-Por favor, não fique pensando no pior.

Embora eu pedisse calma, o cenário em que nos encontrávamos não nos permitia tê-la. Seu desespero justificou-se quando a nossa frente um soldado SS mostrou a que estavam. Com uma baioneta ele segurava a cabeça de uma senhora, que cansada, mal conseguia se levantar. Sem motivo algum ele deu-lhe um golpe em sua face, fazendo com que ela caísse ao chão. Os outros soldados que estavam ali próximos, riram. Aproximando-se de nós um dos listrados aconselhava:

-Quem tiver de óculos os retire... Belisquem as bochechas até que fiquem vermelhas, e não parem na fila!

-Mas pra que tudo isso?

- Questionei.

-Se quer sobreviver, não questione nada. Apenas faça o que eu te aconselho...

- Respondeu amedrontado. Chorando, o Eliezer resmungava:

-Adonai... Por quê?... O que fizemos a ti?

Sem querer ele tropeçou, empurrando outros que estavam a sua frente. Atentos ao início de uma confusão, dois soldados se aproximaram gritando:

-O que está acontecendo aqui?

Percebendo que a situação poderia piorar, entrei na frente e o ajudei a levantar dizendo:

Obs:

O campo de concentração Auschwitz I servia de centro administrativo para todo o complexo. Neste campo morreram aproximadamente 70.000 prisioneiros de guerra soviéticos e polacos. Já o segundo, Auschwitz II (Birkenau), tratava-se de um campo de extermínio onde foram exterminados cerca de um milhão de judeus e dezenove mil ciganos. Quanto ao terceiro campo, Auschwitz III (Monowitz), foi utilizado como campo de trabalho escravo para a empresa IG Farben.

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Alles raus!:

Todos pra fora!

-Não houve nada, ele apenas tropeçou e caiu...

Outro soldado apontou sua metralhadora para nós. Nesse momento gelei. Parecia que o mundo havia parado, onde minha vida passou em um instante pelos meus olhos, que fechados de medo só abriram quando o Eliezer falou:

-Hans... Já está tudo bem...

-Cadê eles?

-Correram para separar uma confusão lá atrás.

Após nos separar em grupos, mandaram-nos passar diante de um alemão, cujo exibia um olhar horrorizante. Escoltado por outros soldados SS, aquele homem nada dizia, apenas virava o dedo à direita ou à esquerda, do qual nos separava conforme sua vontade. Chegara minha vez. Com suas calças por cima de uma camisa parda e um suspensório segurando-a, aquele homem olhou para mim desconfiado. Gelei. Por um instante achei que fosse ser fuzilado á seu pedido, mas logo respirei aliviado quando ele liberou-me. Mais tarde ficaríamos sabendo que aquele homem com cara de carrasco tratava-se de Josef Mengele¹.

Logo atrás de mim havia um senhor cujo um SS deu-lhe ordem para que tirasse seu chapéu, porém, o mesmo não o fez. Furioso, outro soldado que estava ao lado de Mengele gritou questionando:

-Por que não tirou o chapéu, velho imundo?

Calado, ele descobriu sua cabeça. Ao expor seus cabelos brancos, Mengele pegou a bengala que segurava e deu-lhe dois golpes na costela ao mesmo tempo em que gritava furioso:

-Tentando me enganar? Vigarista! Judeu vigarista!

Agarrado pelo colarinho ele foi retirado da fila, onde logo foi cercado por vários soldados SS que começaram uma sessão de espancamento.

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-Não olha... Continue caminhando.

Pedi ao Eliezer.

Apelidado de “Anjo da Morte”, Josef Mengele foi um dos responsáveis por realizar experimentos macabros utilizando cobaias humanas no complexo de Auschwitz, deixando a comunidade médica internacional estupefata. Mengele tinha verdadeira obsessão por mulheres e crianças ruivas, principalmente por gêmeos, dos quais acreditava encontrava-se a chave do enigma da pureza ariana. Para atraí-las para seus experimentos, Mengele distribuída doces, encaminhando-as para seu laboratório logo em seguida, onde iniciava suas diabólicas experiências. Amputação de órgãos e injeções de vírus e outras substâncias letais, sobretudo radioativas, eram apenas alguns dos seus modos de estudo. Relatos de algumas de suas crueldades consistiam em dissecar prisioneiros anões vivos, com intuito de provar ser fruto da excessiva miscigenação de raças. Além disso, também amputava pernas e braços de crianças para tentar (sem sucesso) regenerá-los, ou então jogava prisioneiros em água fervente para ver o quanto suportavam. Seu laboratório estava localizado no Bloco 10 do campo Auschwitz, para onde levava ciganos e judeus que possuíam doenças hereditárias, tal como Síndrome de Down, nanismo, irmãos siameses e outras anomalias que julgava dignas de seus “estudos”, dissecando pessoas mestiças e submergindo seus cadáveres numa tina com um líquido que consumia as carnes, deixando expostos os ossos que eram enviados para Berlim, tornando-se macabro mostruário da degeneração física dos judeus ou outros em exposições.

Continuamos a caminhar, agora bem longe da fúria dos soldados. Mais da metade daquela multidão que vieram conosco no trem foi barrada por Mengele. Os gritos e choros iam ficando cada vez mais baixos distantes. Nitidamente cansado, Eliezer perguntou a um dos listrados que nos acompanhava:

-Esse... Esse povo... Para onde serão levados?

-Para o crematório.

- Respondeu apontando para uma chaminé que expelia uma fumaça negra misturada a fuligens que pairavam no ar.O cheiro daquela fumaça era

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horrível. A princípio não entendemos o que tal chaminé significava, mas logo descobriríamos, assim como todos que por ali passaram.

-Pode nos dizer por onde saímos daqui?

Questionei.

-Por ali.

- Respondeu o listrado apontando novamente para a chaminé.

- A gente entra por ali, e sai por lá...

-Adonai!... Eu vou voltar...

- Desesperou-se o Eliezer.

-Por favor, não faça isso!

- Pediu um listrado.

-Eli, pelo amor de Deus, não faz isso comigo...

Curioso, um rapaz na fila questionou:

-E as crianças... O que farão com elas?

-Apenas os gêmeos são poupados, mas ainda assim por pouco tempo. Doutor Mengele adora utilizá-los para suas experiências, seu passatempo favorito.

Quanta violência! Eu parecia estar vivendo um pesadelo. Olhava o rosto daquelas pessoas, imaginando o quanto deveriam ter sofrido até chegarem ali, quantos parentes perderam. Foram filhos que perderam pais, mães que perderam seus filhos, maridos.

“O primeiro quesito essencial para o sucesso é o emprego eternamente, constante e regular da violência.”

- Adolf Hitler 

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Um grupo de listrados aproximou-se de nós com baldes vazios nas mãos dizendo:

-Brilhantes, ouro, prata, dinheiro... Não escondam nada, despejem tudo no balde.

Como eu e Eliezer nada tínhamos de valor, não depositamos nada nos baldes, porém, fomos logo avisados que se estivéssemos escondendo algo, seriamos fuzilados imediatamente. Conforme iam passando, acompanhei o barulho dos metais que lá caíam, e em pouco tempo os listrados saíram com os baldes lotados.

Obs - 1. Josef Mengele:

Nascido na cidade de Günzburg em 16 de Março de 1911, Josef Mengele estudou Filosofia e Medicina na Universidade de Munique, na Alemanha, sendo condecorado em 1942 por bravura militar e partindo para Auschwitz no ano seguinte. Mengele foi oficial médico chefe da principal enfermaria do campo de Auschwitz Birkenau, porém, na escala de hierarquias estava abaixo dos médicos Eduard Wirths e HilarioHubrichzeinen.

Levados para uma horrível sala recebemos ordens para que ficássemos nus. Lugar úmido, paredes manchadas de mofo. Encurralaram-nos em um canto. Sem que déssemos motivo, um soldado SS aproximou-se de nós, passando a nos chicotear. Coloquei os braços na frente para que não ferisse meu rosto. Alguns se desesperavam, esses apanhavam ainda mais. Quanta maldade! Procurei ficar na frente do Eliezer para que nada fizessem com ele, e deu certo.

-Schma Israel¹!

- Exclamou Eliezer em estado de choque.

- O sangue judeu está sendo derramado!

Empurraram-nos para o chuveiro, sangrando, a base de gritos e chicotadas.

-Agüente firme.

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- Sussurrei ao Eliezer ao vê-lo chorar, desprotegido.

-Não sei por quanto tempo mais irei agüentar...

Tentávamos trocar poucas palavras em meio a gritos, correria, violência.

Obs: - 1. Schma Israel: ouvi Israel.

A água do chuveiro estava fria, e numa velocidade inexplicável passou para o estado quente, assim oscilando entre ambas as temperaturas. Pouco tempo depois mandaram-nos seguir até o fim do corredor. Ao chegarmos, vários listrados começaram a raspar nossas cabeças e pêlos embaixo dos braços. Agüentamos tudo calados, sem reclamar. Em seguida tivemos que passar por um estranho homem que rasparia nossos pêlos pubianos. Sua navalha velha e cega nos fazia pular de dor, causando naquele bruta montes um sádico prazer. Quanta humilhação!

-Próximo pau!

- Gritava ele assim que acabava. Para matar os piolhos, um dos listrados encostava uma toalha molhada com um remédio ardente embaixo dos braços e no pênis. A dor era tão forte que parecia que iria queimar nossa pele, principalmente pelas feridas causadas pela navalha cega. Pensei que fosse desmaiar, mas me segurei. Minha preocupação era com o Eliezer, pois aqueles que muito manifestaram sua indignação acabaram desaparecendo no meio dos outros.

Por fim, recebemos “roupas novas”. Um paletó em farrapos, uma calça velha e nada mais. Camisa nem pensar. O máximo que recebemos foram dois triângulos costurados um no outro, que ao ser abertos poderíamos enfiar os pés, os usando como meias. Um par de tamancos holandeses de madeira finalizava o procedimento inicial de “boas vindas”.

Deixamos aquele lugar tenebroso. Já havia anoitecido. Em fileiras, caminhávamos em silêncio. Um cheiro insuportável de carne e ossos queimados exalava naquele ambiente. A fumaça negra nos impedia parcialmente de ver o céu, onde uma massa cinzenta com partículas

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brancas era tudo que nossos olhos podiam enxergar. Os isoladores por onde passavam o arame farpado se faziam notórios, e os postes pendiam luminárias com lâmpadas de fraca luminosidade, o que davam a entender que grande parte da energia qu epor ali corria era voltada para os arames que os cercavam.

-Esse lugar... Esse lugar é o inferno!

- Comentou o Eliezer ofegante.

-Logo estaremos bem longe daqui...

-Adonai... Por quê? O que fizemos para merecer isso?

-Eli, por favor, mantenha a calma...

-Calma? Vamos morrer Hans!

-Não! Nós não vamos!

-Calados!

- Gritou um SS.

Obs - Os campos de concentração eram ocupados por pessoas vindas de todas as partes da Europa, religião e preferência política. Para facilitar as equipes de transporte na identificação, criou-se um sistema de distinção, onde classificavam os prisioneiros por triângulos coloridos costurados no braço do paletó.

Os de cor preta eram destinados a pessoas consideradas anti-sociais como deficientes, grevistas, alcoólatras, feministas, lésbicas, anarquistas.

O vermelho, para Presos políticos.

O verde era para criminosos comuns.

O triangulo azul para imigrantes.

Os judeus usavam dois triângulos amarelos, que sobrepostos formavam a Estrela de David.

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Triangulo roxo para Testemunhas de Jeová.

O marrom para Ciganos.

O rosa para Homossexuais masculinos.

Baixamos a cabeça. Adentramos em Birkenau, onde havia a inscrição logo na entrada: “Arbeit macht frei¹”. Fomos levados até um barracão vazio, onde havia na porta um cartaz escrito “quarenta cavalos”. Naquele aglomerado de gente havia em média quatrocentas pessoas, ocupando um espaço, ao que tudo indicava o espaço de quarenta cavalos. Estávamos todos apavorados, desnorteados, sem saber o que fazer. O lugar estava sujo, mal iluminado. Pouco tempo depois avistamos um homem de estatura baixa adentrando, balançando uma bengala ao mesmo tempo em que gritava:

-Seus filhos da puta! Vocês sabem o que estão fazendo aqui?

Silêncio! Ao se aproximar da luz, percebemos seu olho esquerdo com uma enorme cicatriz. Cabelo raspado, dentes podres. Jamais me esquecerei daquele sorriso sarcástico que nos mantinham imóveis próximos à parede.

-Vocês estão em Auschwitz!

- Gritava ele.

- O maior complexo de concentração do mundo!Estão com medo? Pois devem ficar... Devem mesmo! Porque daqui, só se sai pela chaminé!

Ao meu lado havia um balde de lata, amassado e sem alça. Ao vê-lo, apontou-me dizendo:

-Você!

-Eu?

-É... Traga esse balde aqui...

Tremendo, peguei o balde e levei até ele.

-Coloque-o aqui... Bem no meio!

-Sim.

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Após deixar o balde ali, voltei para o meio dos rapazes onde estava antes.

-Tratem de jogar dentro deste balde tudo que vocês estão escondendo na boca e no cú!...Ouro, brilhantes, diamantes...

Ninguém se manifestou.

-Aquele que não o fizer, eu matarei sem dó.

Todos ficaram com medo. Percebendo que ninguém havia se pronunciado para entregar o que havia pedido, chamou dois rapazes que estavam logo a frente e os fez baixaras calças na frente de todos. Em seguida, os fez defecarem para mostrar que nada escondiam, porém, um deles não conseguiu, e esse apanhou bastante com a bengala que trouxera. Não demorou muito e o balde já estava cheio de ouro, brilhantes, diamantes, fazendo com que aquele psicopata maldito saísse rindo, um contentamento macabro. Mais tarde ficaríamos sabendo que aquele infeliz era tão prisioneiro quanto nós, um polonês do submundo que fazia aquilo por conta própria. Depois de passar três horas dentro de um tanque de água gelada, já não suportando mais, um soldado russo implorou a um oficial alemão para que o matasse.

-"Não espere compaixão daquele cão fascista"

- Disse outro russo que dividia o tanque com ele.

Obs - 1. Arbeit macht frei: o trabalho liberta.

Com o auxílio de um intérprete, o cientista responsável pelo experimento compreendeu o significado do que falavam e foi até o escritório. Ao voltar, ameaçou os soldados alemães com uma arma nas mãos caso alguém tentasse atender ao pedido do soviético. Passaram-se mais duas horas de sofrimento e agonia até que a morte chegasse para os dois russos.Nossa primeira noite no campo foi horrível. Dormimos naquele mesmo barracão, no chão sujo e frio, ambiente sombrio, fétido, úmido. Tivemos medo, dor, angústia. Não sabíamos o que nos esperava, e nosso futuro era incerto.O dia ainda não havia amanhecido quando fomos despertados aos gritos:

-Todo mundo se apresentando em frente o barracão... Agora!

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Levantamo-nos rapidamente. Antes que desse tempo de sairmos, os Kapos¹ adentraram ao barracão e começaram a nos bater com chicotes, porretes. Apanhávamos sem saber por quê. Por um momento, ao me virar para o lado, avistei um deles erguendo um porrete e vindo na direção do Eliezer, que de costas não percebeu. Imediatamente corri até ele e o puxei. Sua intenção era acertar a cabeça e na certa o mataria.

-Adonai! O que foi isso?

- Questionou assustado.

-Ele quase acertou sua cabeça...

Fomos empurrados para fora, chutados como animais. Lembro-me que levei mais de cinco socos nas costas, um deles me fez perder a respiração por algum momento, tudo para que não o fizessem com o Eliezer.

-Todo mundo enfileirado!

- Gritou um alemão. Tratamos de imediatamente formar várias fileiras, um atrás do outro. Mandaram-nos correr em círculos em volta do barracão. Deveria ser por volta das cinco da manhã, um frio de doer os ossos, e mais de 30 horas sem comer absolutamente nada. Estávamos fracos, famintos e com sede. Não podíamos parar. Achei que fosse desmaiar, e quando pensei em desistir, eis que um judeu logo a minha frente o fez. Imediatamente dois Kapos o pegaram e começaram a chutá-lo ao mesmo tempo em que diziam:

-Quem mandou parar?...

-Por favor... Por... Favor...

-Aqui vocês só devem fazer o que a gente mandar. Entendeu?

Depois da terceira volta, não vi mais o rapaz se mexer. Virei o rosto e continuei correndo.

-Seja forte, Eli...

Quando ele disse que não agüentaria mais imediatamente o imaginei no lugar daquele pobre rapaz, e ver o Eliezer apanhar daquela forma eu não iria suportar.

-Eu vou parar...

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Obs - 1. Kapo: tratavam-se de prisioneiros judeus encarregados de vigiar os outros prisioneiros dos campos de concentração. Exerciam os trabalhos mais sujos, cansativos, considerados indigno pelos alemães que se recusavam a fazer, o que davam aos Kapos privilégios perante os outros prisioneiros. Muitas vezes os Kapos tratavam seus semelhantes com muito mais violência que os próprios alemães, com o intuito de mostrarem um bom trabalho e assim se tornarem insubstituíveis perante os nazistas.

Ao mesmo tempo em que ele parou, os Kapos solicitaram que formássemos fila novamente. Que sorte! Por pouco o Eliezer não se tornara mais uma vítima daqueles nojentos. O que parecia ser o máximo de onde um ser humano poderia chegar descobriríamos posteriormente que o pior ainda estava por vir.

Após o almoço, voltávamos a fazer exercícios até a hora da revista. Um SS acompanhado de uma metralhadora fazia a contagem dos prisioneiros. E por fim,recebíamos um naco de pão com margarina antes de irmos dormir.

-Está acordado ainda?

- Questionei ao Eliezer sentando-me na beira de sua cama.

-Ja...

-Humpf... Amanhã darei um jeito de encontrar uma maneira de sairmos daqui.

Deitado de lado, de costas para mim ele argumentou:

-Você já se deu conta de onde estamos? Já reparou na quantidade de cercas elétricas nos mantém aqui dentro?

-Até hoje eu nunca desisti de você. E é pensando assim que estou passando por tudo isso, e é por você que nos tirarei dessa.

Virando-se para mim, ele tocou em minha mão dizendo:

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-Se você não estivesse ao meu lado, nesse momento certamente eu não estaria vivo.

-Pare de dizer bobagens!

-É verdade, Hans... Só você para me dar forças nesse momento tão difícil para mim... Ver meu povo passando por humilhações que ser humano algum merece...

-Confie em mim...

- Pedi acariciando seu cabelo.

- Farei de tudo para que nossa permanência nesse lugar dure o menor tempo possível.

-Danke!

-Agora eu vou voltar pra minha cama... Daqui a pouco é hora de levantar...

-É verdade... Boa noite!

-Boa noite!

Alguns meses se passaram. Durante esse tempo, muito sofrimento e dor. Aquelas alturas não éramos mais considerados como seres humanos, se é que algum dia isso realmente aconteceu. Acredito ter perdido ao menos 15 quilos nos dois primeiros meses em que lá passei. Quando Eliezer e eu nos olhávamos, uma vontade de chorar sem igual nos apertava o peito.Em novembro de 1942, aos 21 anos de idade Rosa Robota viu sua família ser levada para a câmara de gás em Birkenau. Revoltada, nada pôde fazer, porém, a oportunidade de vingança chegaria dois anos depois. Com a ajuda de um grupo de amigas na fábrica de munições Krupp, em Auschwitz, elas conseguiram contrabandear dinamites para a organização de resistência no campo. E então, no dia 07 de outubro de 1944 Auschwitz surpreendeu-se com o que parecia ser inacreditável. Um dos crematórios cujos corpos de tantos pais e filhos foram queimados explodiu. Com a explosão quatro homens da SS foram mortos, e cerca de 600 pessoas conseguiram escapar. Em poucos dias a maioria foi perseguida e morta, e após uma investigação aprofundada, Rosa foi presa. A SS usou-se de todos os métodos de tortura com ela, mas Rosa não traiu ninguém. “Pouco antes de ser enforcada ela

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rabiscou suas últimas palavras em um pedaço de papel:” Chasak V'Hamatz¹". Enquanto nos exercitávamos, reparava na fumaça que saída daquela tenebrosa chaminé. O crematório não parava de funcionar, expelindo fogo e fumaça ininterruptamente.

Obs - 1. Chasak V'Hamatz: sejam fortes e corajosos.

Em uma noite chuvosa, acordamos com gritos que vinham de fora. Levantamos assustados, e em silêncio fomos até a janela espiar o que acontecia. Avistamos um homem correndo, gritando, pisando em poças de água a sua frente.

-Adonai!

- Exclamou o Eliezer.

-Fale baixo!

- Reclamou um listrado.

Com um prazer sádico em torturar, três Kapos corriam atrás daquele homem com dois cães. Antes que ele chegasse até as grades, os enormes cães negros o alcançaram. Em minutos aquele pobre homem desesperado foi devorado como num rio de piranhas. Com os clarões dos relâmpagos víamos aquele sangue sofrido se misturar à água da chuva, onde nascia um lago de sofrimento e dor. Assustados, voltamos para nossas camas. Embora tentássemos ninguém conseguiu dormir naquela noite. A ordem de extermínio dos judeus vinha sendo cumprida rigorosamente pelo SS, onde tal tarefa era mais importante que a própria segurança dos soldados alemães. No período da ofensiva russa, por exemplo, o exército alemão em fuga chegava a desalojar os feridos alemães que seriam transportados em vagões, dando lugar aos judeus que seriam deportados para Auschwitz. Tal acontecimento pôde ser presenciado em Lublin.

"No fim de março de 1943, o comandante da SS, Heinrich Himmler, visitou o campo de Mauthausen, Áustria. Para entretê-lo, mil judeus alemães recém chegados foram reunidos à margem da pedreira. Um a um

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foram jogados para a morte, de uma altura de50 metros abaixo. Chamavam isso de 'salto de para quedas', tornando-se passatempo favorito dos SS."

- Simon Wisenthal Certo dia, fui um dos primeiros a chegar para receber a sopa. Enquanto tomava,reparei que os Kapos não possuíam controle das filas para a distribuição das mesmas, pois éramos praticamente iguais, com aquela aparência cadavérica. Imediatamente enxerguei uma grande oportunidade, e claro, coloquei-a em prática. Voltei ao final da fila e consegui pegar outro prato de sopa. Passei a fazer isso todos os dias, pegando o maior número de sopa que conseguia. Dias antes havia conseguido um prato de latão, fator importante quem e ajudou nesse momento, pois aqueles que não possuíam prato recebiam a sopa nas mãos. Como era rala, escorria entre os dedos, e ver aqueles homens desesperados lambendo os dedos era uma situação que eu não queria para mim.

-Eli...

-Hum?

-Descobri uma maneira de sairmos dessa situação de fome absurda!

- Comentava enquanto limpávamos o barracão, supervisionados por dois Kapos.

-Como?

-Quando for a hora da distribuição das sopas, seja um dos primeiros a chegar na fila...Pegue uma das primeiras filas, e depois que você tomá-la, volte para a última fila!

-Mas Hans... Se alguém descobrir poderá nos fuzilar!

-Ninguém irá descobrir... Eles não possuem controle das filas...

Com nossos pratos amarrados à cintura, continuávamos a trabalhar, pois não podíamos descuidar se não éramos roubados.

-Humpf... Não estou me sentindo muito bem...

-O que você tem?

-Acho que estou com febre...

-Me deixa eu ver... Está mesmo! Quer deitar-se um pouco?

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-Não! Ninguém pode saber, Hans... Você bem sabe para onde levam os doentes...

-Vou ver se consigo roubar algo na cozinha para você se alimentar. Isso deve ser desnutrição!

-Não vá se arriscar, Hans! Amanhã passarei a fazer o que você me aconselhou...

-Mesmo assim tentarei conseguir algo pra você.

O barracão estava cada vez mais lotado de gente. Durante a noite, a dificuldade era maior ainda, pois mal conseguíamos nos mexer na cama. Caso alguém levantasse para defecar ou urinar, ao voltar para a cama seu lugar já estaria ocupado por outro. Chegou um momento que para sairmos do barracão tínhamos que pisar nos outros. A única coisa boa de tudo isso foi que o Eliezer passou a dividir a cama comigo, o que nos permitia trocar carícias enquanto todos dormiam.

-Hans...

-Hum?

-Se algum dia nos separarmos... Promete que não irá me esquecer?

-Separar? De onde você tirou isso?

-Humpf... Do jeito que isso aqui está tão corrido, tenho medo de que nos desencontramos e não te ache mais.

-Pois caso a gente se perca, vamos marcar um ponto de encontro.

-É uma ótima idéia! Mas onde?

-No Jardim da Luz.

-Em que lugar?

-Em frente à fonte...

-Combinado! Mas em que dia?

-Como não temos certeza se isso vai acontecer, nem quando sairemos daqui, não vamos marcar datas. Assim que sairmos daqui, vamos direto ao Brasil e lá esperamos um o outro.

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-Então ta bom... Se eu for e você não estiver...

-Vá no outro dia!

-Ja! Irei todos os dias lhe esperar, até lhe encontrar!

Dei um beijo em sua testa, e logo ele adormeceu. Esperei que a madrugada adentrasse para seguir até a cozinha. Caminhei na ponta dos pés, esquivando-me pelos cantos para não ser visto. Atravessei três barracões, e antes de partir para o próximo, esquivei-me diante a sombra de um deles para não ser pego pelo foco de uma lanterna. Gelei. Munido de uma metralhadora, um soldado SS caminhava vagarosamente, vigiando o exterior dos barracões. Algum tempo depois consegui chegar à cozinha. Estava tudo escuro. Percebi que dois Kapos ainda permaneciam por lá, vigiando para que o ambiente não fosse saqueado. No momento em que se distraíram, consegui adentrar na dispensa. Peguei duas maçãs e as coloquei dentro da calça. Quatro batatas cruas também não me escaparam. Abaixei-me para não ser visto. Fui esquivando-me pelas sombras dos alojamentos, sem ser notado por ninguém

Quanto estava quase chegando no barracão em que Eliezer e eu dormíamos, ouvi alguém chamar após um breve assovio:

-Hey, você!

Parei.

-O que pensa que está fazendo?

Ouvi uma arma sendo engatilhada. Aos poucos fui me virando, apreensivo, morrendo de medo de ser alvejado.

-Eu... Eu...

-Pensa que engana quem?

- Questionou aproximando-se. Ao chegar mais perto, um raio de luz iluminou sua face.

-Samuel!

- Exclamei surpreso.

-Quem é você?

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-Não está me reconhecendo? Sou eu... Hans!

-Adonai! O que faz aqui?

-Eu é que pergunto... O que VOCÊ faz aqui? Não tinha ido trabalhar em Berlim?

-Era mentira!

-Ceus! Então os pais do Eliezer...

-Sim, Hans... Ninguém escapou.

-E sua mãe?

Percebi que a notícia não seria boa ao vê-lo abaixar sua cabeça.

-Ima adoeceu no trem enquanto vínhamos para Auschwits...

-Mas recuperou-se ao chegar?

-Ela faleceu ainda no trem.

Incrédulo, lamentei:

-Eu... Eu sinto muito por ela...

-Humpf... Tudo bem. Mas e você?

-Permanecemos no gueto o máximo que conseguimos, porém, chegamos no limite e acabamos vindo para aqui...

-Cheguei a ver o senhor Lovitz chegar aqui...

-E onde ele está?

- Perguntei esperançoso.

-Humpf... Não está mais... Foi levado para a câmara de gás no mesmo dia em que chegou.

Decepcionado, perguntei a ele ao mesmo tempo em que reparava em sua arma:

-E você... Como pôde se sujeitar a esse papel? Seu próprio povo!

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-Humpf... Eu sei Hans... Mas foi uma oportunidade que apareceu e eu não poderia deixar de aproveitar... Sendo um Kapo, pelo menos garanto comida e minha sobrevivência...

-E você vai me maltratar por ter pego um suposto judeu roubando comida na cozinha?

-É o meu dever, Hans... Mas você é meu amigo, e sou eternamente grato por você e a família Lovitz que nos ajudou quando precisei. Não se preocupe Hans... Farei o possível para ajudar você e o Eliezer, inclusive com a comida.

-Obrigado, Samuel!

-Mas, por favor, volte logo para sua cama, ninguém pode lhe ver aqui.

-Sim.

-Vou lhe escoltar até lá...

-Obrigado!

Após me acompanhar até a porta o Samuel voltou para seu campo. Atravessei um mar de homens que dormiam naquele barracão abarrotado. Às vezes ouvíamos um gemido, pois muitas das vezes voltavam feridos ou doentes dos trabalhos forçados. Habitante da pequena cidade de Malhouse, na França, Pierre Seel foi preso aos seus17 anos de idade juntamente com seu primeiro amor Jo. Para descrever os terríveis momentos em que passou no campo de concentração, Pierre escreveu o livro, Moi – PierreSeel.

- Déporté Homossexuel, onde relata um dos períodos mais trágicos e inesquecíveis de sua vida, quando Jo, ao som de cantatas de Bach, fora levado ao centro do campo e despido pelos alemães. Em seguida lançaram cães sobre ele para que o devorassem vivo. Pierre até hoje não entende os motivos da morte de seu companheiro com tamanha crueldade, já que o campo em que estavam não era de extermínio e sim trabalhos forçados. Ao voltar do campo, Seel decidiu esquecer o pesadelo, trancando-se em seu quarto,sem conversar com ninguém. Desolado, não revelou a seus pais o motivo de sua prisão, condenando-se a mais de 40 anos de silêncio e

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sofrimento que duraram até o dia 27 de Maio de 1981, quando durante um debate na cidade de Toulouse, Seel resolveu falar. Seu depoimento foi concedido na condição de total anonimato, o primeiro de uma vítima francesa da perseguição nazista aos homossexuais, divulgado em uma revista por ocasião da recém lançada peça Bent, na França, em 1981. Somente em 1982 Pierre decidiu assumir seu passado, após ouvir o arcebispo de Estrasburgo pregar contra a salvação dos homossexuais, os chamando de "Enfermos". Sua confissão soou como um escândalo, resultando em divórcio e afastamento de filhos e netos. Atualmente Pierre vive em Toulouse, na França, com uma aposentadoria de menos de $800,00 euros.

"Resolvi romper o silêncio para não ser cúmplice dos alemães. Descobri que se eu não contasse minha história me colocaria na posição de cúmplice dos carrascos nazistas... Contei em uma carta ao arcebispo toda a minha história e mandei uma cópia para minha mulher e para meus três filhos adultos."

- Pierre Seel 

Deitei-me à cama ao lado do Eliezer. Percebi que ele estava suado, molhado. Toquei em sua testa e percebi que estava com febre.

-Eli...

- O chamei.

- Eli...

-Hum?

-Acorde... Trouxe algo pra você comer...

-Hans! Não acredito que...

-Psiu!... Coma logo antes que alguém veja...

Deu gosto vê-lo comer com tanta vontade aquelas maçãs, enchendo-me de alegria.

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Obs: - A lei que permitia perseguir homossexuais vigorou na Alemanha até 1979, quando foi oficialmente revogada.

Após saciar sua fome, deitou-se ao meu lado e suspirou dizendo:

-Você não deveria ter se arriscado assim por mim.

-Claro que deveria! Você é minha razão de viver... Voltarei lá e roubarei comida quantas vezes forem necessárias para te ver bem.

-Você não existe, Hans!

-Existo sim... Eu existo pra te amar!

-Danke!... Por tudo...

-Sabe quem encontrei na cozinha?

-Não!

-Samuel Schneider.

-Como? Ele e sua mãe não tinham ido para Berlim?

-Pois é... Mas acabaram vindo parar aqui.

-Hans! Será que meus pais também vieram pra cá?

Não tive coragem de revelar a verdade a ele. Um dia, quando não estivéssemos mais naquela situação, contar-lhe-ia a verdade.

-Claro que não, Eli...

-Como pode ter tanta certeza?

-Bem... Se eles estivessem vindo parar aqui, já estaríamos sabendo...

-Humpf... Não sei... Há tanto tempo estamos presos nesse lugar e ninguém se manifestou... Não creio que o mundo ainda não saiba da existência de Auschwitz...

-Talvez não saiba mesmo...

A desconfiança do Eliezer fazia sentido. A existência dos campos de extermínio havia chego ao ocidente, porém, tal notícia foi tratada com

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insignificância. Em 02 de julho de 1942 o jornal The New York Times trazia na página 06 uma reportagem comentando que mais de um milhão de judeus foram exterminados na Europa, onde a primeira página da mesma edição dava grande destaque ao tênis do Governador Lehman que foi doado para uma campanha. Já em outubro de 1943, durante as deportações de Roma para Auschwitz o embaixador alemão, Barão von WeizsacKer, mandou um telegrama para o Ministro Exterior alemão.

"Embora sob muita pressão, o Papa não se deixou levar por nenhuma demonstração de crítica à deportação de judeus de Roma."

O tempo ia passando,pessoas iam morrendo,chegando, e nós permanecendo. Mantínhamos a esperança de deixar aquele lugar o mais rápido possível, e sabia que nossa hora chegaria. Enquanto isso, muitas coisas aconteciam fora daquele cercado de arames farpado, e uma delas fora o atentado contra o Führer. Em 20 de julho de 1944 concretizava-se um fracassado atentado contra Adolf Hitler.

Dentro do Wolfsschanze, quartel General Secreto de Hitler localizado na Prússia Oriental, serviu de cenário para um plano que tinha tudo para dar certo. Organizado por um grupo de oficiais do Wehrmacht liderados pelo Coronel Conde Claus von Stauffenberg como parte de um golpe de estado, batizado como Operação Valquíria Stauffenberg levou para a reunião de lideranças dentro de uma mala uma bomba,deixando-a próxima de Hitler. Após explodir, Stauffenberg pensava que o líder nazista havia morrido, declarando que sua força de comando assumiria o controle da Alemanha. Mas, para o azar de todos, Hitler havia sobrevivido e posteriormente descobrira a lista de conspiradores. Cerca de 5.000 pessoas foram presas e 200 executadas, incluindo o coronel Stauffenberg.Tal conspiração fora iniciada por aproximadamente 500 oficias alemães, que estavam frustrados com a forma como a Segunda Guerra estava sendo administrada, as grandes baixas do exército alemão desde a derrota de Stalingrado, a incompetência de Hitler em recuos militares e os diversos crimes cometidos contra civis e, em especial, o Holocausto. Considerado um dos dias mais relevantes da Segunda Guerra Mundial, caso houvesse tido êxito, poderia ter modificado drasticamente a guerra e o mundo. Este foi apenas o último de um total de 42 atentados sem sucesso contra Adolf Hitler, sendo que somente Stauffenberg já havia tentado pessoalmente por três vezes assassinar o Führer.

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Acordamos com uma enorme gritaria. Abriram o barracão e nos mandaram sair. Espiei pela janela e notei certo tumulto.

-Tem alguma coisa errada...

- Comentei enquanto caminhava no meio daquele aperto.

-O que há de errado, Hans?

- Questionou o Eliezer.

-Não sei... Mas não podemos seguir esse fluxo. Vem comigo...

Peguei em sua mão e aproveitei o tumulto para escapar. Disfarçadamente caminhávamos pelos fundos, como se pertencêssemos a outro setor.

-Hans... Para onde estamos indo?

-Precisamos nos esconder!

-Mas por quê?

Antes que eu respondesse, ouvimos dois soldados SS comentarem:

-Precisamos mandar pelo menos quinhentos para os “chuveiros”...

Para dar a sensação de segurança, o uso de uma nova “lingua” foi

adotada.

“Deportação” tornou-se “reassentamento”, enquanto que “chuveiros” significavam “câmaras de gás”.

O cerco começou a se formar. Vários soldados SS começaram a chegar, e o terror começou a se formar.

-Olha ali mais dois judeus!

- Exclamou um deles. Apressamos nossos passos e ao dobrarmos o corredor dos banheiros, entramos em um deles.

-Adonai! Vão nos pegar...

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-Ninguém vai nos pegar!

Encostei levemente a porta de um dos sanitários para não chamar atenção. Abri a tampa do vaso e disse ao Eliezer:

-Vamos ter que entrar aqui.

Tapando o nariz, fez cara de nojo. Sem ter alternativa, pulamos dentro do vaso sanitário, caindo em uma piscina de fezes. Esquivamo-nos em um canto e ali ficamos em silêncio. O cheiro estava insuportável. Aquela água podre batendo em nossa cintura, fria, fétida. Entre as frestas de madeira alguns raios de luz se permitiam entrar, porém, não o suficiente para iluminar o ambiente por completo. Olhando-me, o Eliezer chorava em silêncio. Toda vez que me lembro daquela cena, choro indignado. Para garantir nossas vidas, descemos a mais absoluta humilhação que um ser humano pode chegar.

Obs: - Na cabana onde se realizou a reunião em 20 de julho de 1944, estavam presentes os seguintesoficiais: Führer Adolf Hitler, Marechal-de-campo Wilhelm Keitel, General Alfred Jodl, General WalterWarlimont, Franz von Sonnleithner, Major Herbert Buchs, Heinz Buchholz, Tenente-General HermannFegelein, Coronel Nicolaus von Below, Almirante Hans-Erich Voss, Otto Günsche (Ajudante de Hitler),Major-General Walter Scherff, Major Ernst John von Freyend, Heinrich Berger, Almirante Karl-Jesco vonPuttkamer, General Walther Buhle, Tenente-Coronel Heinrich Borgmann, Major-General Rudolf Schmundt,Tenente-Coronel Heinz Waizenegger, General Karl Bodenschatz, Coronel Heinz Brandt, General GuntherKorten, Coronel Claus von Stauffenberg, Adolf Heusinger.

Quase duas horas depois voltamos ao nosso barracão. Silêncio. A maioria dos homens que lá estava haviam desaparecido, ou melhor, exterminados nas câmaras de gás.

-Hans!

- Exclamou Samuel adentrando ao alojamento.

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-Samuel!

-Que susto! Quando fiquei sabendo que levariam quinhentos homens daqui pro chuveiro, vim correndo, mas não os encontrei...

-Nos escondemos nas fossas...

-Vocês estão bem?

-Sim... Obrigado pela preocupação!

Tirando um saco de dentro do casaco, ele nos entregou dizendo:

-Aqui tem um pouco de pão e margarina... Não deixe ninguém ver...

- Pediu olhando de um lado para o outro.

-Obrigado!

- Agradeceu o Eliezer com um tímido sorriso na face.

-Agora tratem de tirar essa roupa suja que vou arrumar outros uniformes para vocês... Rápido!

Imediatamente tiramos nossa calça e casaco. Enquanto isso ele saiu do barracão, e ao voltar, conforme prometido trouxe roupa limpa.

-Enquanto eu estiver aqui, ajudarei vocês no que puder...

-Samuel, precisamos sair daqui! Você tem que nos ajudar...

-Humpf... Se eu pudesse, Hans faria... Mas esse tipo de coisa não está ao meu alcance.

-Mas você é um vigia!

-Sim, mas não temos total liberdade, Hans! Somos tão prisioneiros quanto vocês dois, também obedecemos ordens... Tudo aquilo que faço, preciso me reportar aos alemães...

-Eu pensei quê...

-Vocês acham mesmo que se houvesse essa liberdade toda eu já não teria dado um jeito de fugir desse inferno?

Antes que chegasse alguém, ele falou:

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-Agora eu preciso ir. Não se preocupem, sempre que eu puder farei de tudo para ajudá-los... Trarei a vocês comida e os livrarei do bloco 11...

O bloco 11 de Auschwitz I tratava-se de uma prisão dentro da própria prisão, onde se aplicavam os mais terríveis castigos, e muitas das vezes sem qualquer motivo justificável. Alguns consistiam em confinamento por vários dias em celas tão pequenas que não permitiam sentar-se. Muitos prisioneiros eram executados, pendurados pelos pés, mãos, ou até mesmo esquecidos para morrer de fome. Em Treblinka, o comandante de trabalho do campo, Carl Gustav Farfi, necessitou de uma cirurgia, sendo a mesma realizada por um médico judeu chamado Julian Choransky. Durante sua cirurgia a chave do depósito de munições do campo foi furtada e copiada. Ao término da intervenção, demonstrando sua gratidão, Choransky foi mandado à câmara de gás por Carl Farfi. Com os rumores de que o campo de extermínio seria desativado, começou a ser organizado um movimento clandestino cujos participantes pertenciam a dois campos diferentes. Com o objetivo de conseguir o acesso ao depósito de munições tentariam destruir o maior numero de instalações possíveis, além de guardas, com isso livrariam centenas de prisioneiros daquele inferno.

Acordei e logo percebi que o Eliezer não estava bem. Respirando com dificuldade ele ainda parecia dormir. Levantei-me e comecei a andar pelo barracão a procura de algum médico.Martelando uma fresta de madeira, um dos listrados apresentou-se como médico:

-Eu sou médico.

-Graças a Deus! Meu amigo não está nada bem. Poderia examiná-lo?

-Onde ele está?

-Por favor, venha comigo...

Caminhamos até nossa cama. Após examiná-lo, deu seu diagnóstico.

-Humpf... Como eu suspeitava... É Tifo.

-Tifo!

- Exclamei apavorado.

-Sim...

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Tifo trata-se de uma doença epidêmica transmitida pelo piolho humano do corpo chamado Pediculus humanus corporis, que excretam em suas fezes a bactéria Rickettsiaprowazekii. Através de feridas invisíveis ela penetra o ser humano, onde seu período de incubação gira em torno de 10 a 14 dias, período em que as bactérias se reproduzem no interior de células endoteliais que revestem os vasos sanguíneos, ocasionando inflamação dos vasos. A mortalidade gira em torno de 20% dos casos não tratados corretamente, porém, o índice aumenta para dois terços quando acometida em desnutridos. Olhei para o Eliezer ali deitado, abatido. Seus olhos profundos, recobertos por olheiras, tão diferente daquele garoto saudável e garboso que eu conheci.

-Ninguém pode saber que ele está doente... Entendeu?

- Disse o médico.

-Tudo bem... Muito obrigado.

Em silêncio ele se afastou. Piscando lentamente o Eliezer olhava-me, dizendo após um profundo suspiro:

-Acho que está chegando minha hora...

Comecei a chorar.

-Pare de dizer bobagens!

-Hans... Deixe eu tocar em sua mão?

Aproximei-me dele. Ao tocar-me, esboçou um leve sorriso comentando:

-Como é bom sentir você... Saber que você está comigo...

-E continuarei sempre!

-Quando eu morrer, Hans, não desista de lutar pela justiça desse povo...

-Não quero que você fale assim!

- Desabafei o abraçando, chorando como uma criança.

-Como foi bom te amar!... Para onde eu for sempre te levarei comigo em meu coração, meus pensamentos... Minha alma pertence a você...

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-Você não vai a lugar nenhum sem mim! E o nosso encontro no Jardim da Luz?

-Estarei lá, conforme o combinado!...

-Eli... Não faz isso comigo? Por favor!

-Quero dormir um pouco... Sinto-me cansado...

-Vou deixar você descansar um pouco.

Dei-lhe um beijo em seus lábios feridos, saindo do barracão logo em seguida. Procurei pelo Samuel, desesperado por ajuda. A angústia que sentia era indescritível, como se mil facas atravessassem meu peito de uma só vez. Vasculhei todos os cantos daquele lugar, até encontrá-lo próximo aos chuveiros.

-Samuel!

-Hans!

- Exclamou apreensivo.

- O que faz aqui?

-Preciso de sua ajuda...

Levando-me rapidamente para um canto longe da movimentação dos guardas, pediu:

-Por favor, não se comporte dessa maneira... Não sabe o risco que coloca nossas vidas!

-Desculpe... Eu estou desesperado!

-Mas o que houve?

-O... O Eliezer...

-O que tem o Eliezer?

-Está com Tifo!

-Adonai!

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-Por favor... Será que você não poderia ver se consegue uns remédios para ele?

Preocupado, andou de um lado pro outro.

-Mas como conseguirei isso?...

-Não sei... Deve ter algum laboratório médico aqui para os soldados...

-Humpf... Talvez o doutor Mengele tenha algo... Mas entrar lá é muito arriscado!

-Diga-me onde é que eu irei.

-Está louco? Se te pegam, fuzilam-te na hora!

-Não me importa, quero tentar...

-O Eliezer precisará mais de você vivo do que morto. Eu sei de alguém que poderá nos ajudar.

-Verdade?

-Sim... Mas agora volte para seu alojamento e deixe que eu lhe procuro.

-Tudo bem.

Virei-me e voltava para o barracão quando ele falou:

-Hans...

-Sim?

-Não deixe que ninguém saiba que ele está enfermo.

-Farei de tudo para que isso não ocorra.

Mais aliviado, voltava com o olhar atento quando um prisioneiro passou por mim gritando feito um louco. Assustei-me. Chorando ele aproximou-se da cerca elétrica e assegurou. Faíscas começaram a pular, acompanhadas de fumaça. Seu corpo tremia, grudado naqueles arames farpados que o prendiam e derretiam sua pele. Pouco tempo depois ele parou de tremer. Estava morto. Rindo, dois soldados aproximaram dizendo:

-Um a menos... Deixe-o ai...

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Com um balde e um esfregão, limpava o refeitório sob a mira de rifles dos soldados e Kapos. Avistei o Samuel, que discretamente andou pelo refeitório, em passos lentos. Ao notar-me ali, caminhou até mim, deu-me um tapa na cara e comentou:

-Hoje é a sua vez.

Puxando-me pelo casaco ele me arrastou para fora do local, xingando-me de todos os nomes. Eu nada fiz. Os soldados riam, gargalhavam. Longe dos olhos de todos, atrás de uma viga caída de madeira, olhou de um lado pro outro antes de entregar-me um frasco dizendo:

-Aqui está o remédio para o Eliezer.

-Ah! Obrigado!

-Desculpe pelo tapa e pela maneira em que te tirei de lá, mas era a única maneira de não levantar suspeitas...

-Tudo bem...

-Agora vá logo antes que alguém descubra...

-Obrigado!

Voltei ao barracão onde estava o Eliezer. Ao me aproximar ele abriu os olhos dizendo:

-Que bom que você chegou... Estava justamente sonhando com você...

-Ah é?

-Ja!

-E o que você sonhou?

-Não me recordo muito bem... Só me lembro da parte em que você me beijava dentro de um trem...

Quando episódios daquele tipo aconteciam, os soldados davam ordem para que não retirassem o cadáver da cerca, onde o mesmo permanecia lá até apodrecer. À noite víamos aquelas sombras em meia à pálida iluminação, dependuradas no arame farpado, impossível de esquecer.

Page 142: Lu Mounier - O jardim da luz continuação

Sentando-me a beira da cama, mostrei-lhe o frasco dizendo:

-Sabe o que é isso?

-Não... O que é?

-O remédio para você ficar bom!

-Como você conseguiu isso?

-Neste momento é o que menos importa... Beba um gole...

- Falei destapando o frasco. Após dar-lhe o remédio, guardei-o no bolso do casaco para que ninguém descobrisse. Embora não estivesse totalmente curado, conforme os dias foram passando o Eliezer começou a apresentar significativas melhoras.

“As maiores mudanças revolucionárias do mundo seriam

impensáveis se sua força motivadora, ao invés do fanatismo, sim, a paixão histérica, tivessem sido meramente as virtudes ordinárias da lei e da ordem.”

- Adolf Hitler 

Depois do jantar, preparava-me para dormir quando o Samuel adentrou ao barracão. Olhando-me, fez sinal para que eu me aproximasse. Sai discretamente. Sussurrando, ele comentou encostando-se próximo a janela:

-Hans... Você precisa tomar cuidado...

-Tomar cuidado?

-Sim... Hoje eu ouvi perguntarem por você.

-Por mim? Quem?

-Não sei... Dois soldados alemães estavam perguntando por ti.

-Céus! Será que descobriram algo?

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-Humpf... Temo que alguém descobriu e nos denunciou... Preciso deixar esse lugar o quanto antes.

-Você sabe que não será fácil.

-Sim, mas você vai me ajudar.

-Eu?

-É.

-Como?

-Preciso que você estude a rotina dos soldados...

Olhando de um lado para o outro desconfiadamente, questionou:

-Hans... O que você está pretendendo?

-Por enquanto não posso contar. Mas conto com sua ajuda.

-Humpf... Farei o possível para lhes ajudar, meu amigo!

-Obrigado!

Voltei ao barracão, preocupado, em silêncio.

-Aonde você foi Hans?

- Questionou o Eliezer já deitado.

-Eu?... Fui... Fui urinar...

O dia a dia dos soldados nos campos de concentração era por eles encarado como um trabalho comum. Passavam o dia batendo em prisioneiros, fuzilando crianças, mulheres, jogando corpos em valas comuns. No final da tarde voltavam para suas casas, para o conforto de suas famílias, como se tivessem passado o dia em escritórios, confraternizando agradáveis atividades sociais. Mais tarde isso seria relatado em um livro escrito pelo historiador estado-unidenses Daniel Jonah Goldhagen em Os Carrascos Voluntários de Hitler. Segurando em minha mão, o Eliezer pediu:

-Hans... Abraça-me? Estou com frio...

Coloquei a mão em sua testa. Estava quente, febril. Fiquei preocupado, pois o remédio parecia não estar mais fazendo efeito como antes.

Page 144: Lu Mounier - O jardim da luz continuação

-Eli...

-Hum?

-Você está se sentindo bem?

-Humpf... Só um pouco de dor de cabeça... Mas não se preocupe, logo vai passar.

-Acalmava-me já de olhos fechado .Pouco tempo depois ele adormeceu. Passei a noite em claro, sem sono, chorando. Olhava para o Eliezer dormindo, abatido, magro. Parecia ontem quando corríamos pelas calçadas de Berlim, brincando no parque. Bateu uma enorme saudade de quando saíamos para tomar gasosa, de brincar com soldadinhos de chumbo.

“-O que aconteceu com seu chapéu?

-É uma kipá!”

Só de imaginar tudo que havíamos vivido, as lágrimas desciam como uma torneira aberta.

“-Hans... Aonde vai?

-Vou convidar o Eliezer para tomar uma gasosa!”

Perdido naquela angústia tentava entender o tamanho de tanta maldade. Não encontrei resposta.

“-Hans...

-Eu?

-Você quer ser meu amigo?”

O dia amanheceu. Aquela manhã estava fria, pálida. Deixei o Eliezer lá deitado, no canto, descansando para que logo se recuperasse.

Levantei-me e segui com todos para nossa rotina fatigante diária, todo o tempo vigiados pelos soldados armados, famintos por maldade e sofrimento alheio. Olhei para o céu e lá estava aquela fumaça negra, constante, sem começo nem fim.

"As SS geralmente selecionavam prisioneiros, chamados Kapos, para fiscalizar o resto. Todos os prisioneiros do campo realizavam trabalhos e.

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exceto nas fábricas de armas, o domingo se reservava para limpeza com duchas e não tinha trabalho."

Mario Tomé - Historiador português. No interior do barracão, lavava o chão com um esfregão quando um soldado entrou, nos ensurdecendo com sua batida a porta. Levei um susto. Cabisbaixos, todos continuam os nossos serviços, calados. Ao avistar-me, o soldado caminhou em minha direção e pressionou-me contra a parede, foi quando pude ver sua cara.

-Patrick!

- Exclamei surpreso. Levei um soco no olho. Em seguida ele começou a gritar, mandando todos saírem. Nos fundos do galpão, em uma das fileiras de camas, estávamos apenas nós dois. Agarrando meus cabelos, falou-me com ódio:

-Seu desgraçado!... Tem idéia do quanto te procurei por esses campos a fora?

-A mim? O que você quer?

-Minha vontade era te matar!

- Respondeu soltando-me.

-E por que não faz agora?

Com ódio nos olhos, gritou:

-Por sua culpa Mutter está doente!

Ao tomar conhecimento daquela notícia, desesperei-me.

-Doente?

-É!

-O que ela tem?

-Ficou preocupado?... Seu porco! Você é a vergonha de nossa família!

-Não sou eu que estou tirando a vida das pessoas.

- Respondi limpando a boca sangrando. Empurrando minha cabeça para frente, provocava-me.

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-O que a Mutter tem?

- Perguntei já entrando em desespero. Apoiando seu antebraço direito à parede o Patrick falou:

-Ela está muito doente... Ficou assim desde que você teve essa infeliz idéia de sair de casa pra correr atrás desse judeu imundo!

-Se você não tivesse aberto essa boca, muitas coisas poderiam ter sido evitadas...

-Será que você ainda não percebeu que essa raça maldita só trás problemas?

-Você poderia ter evitado Patrick!

-Não poderia trair nossa nação.

-Trair a nação?

-Se o Führer...

-Ah... O Führer outra vez!... Humpf... Você tem idéia de quantas famílias estão sendo destruídas?... Não temos nem certeza se voltaremos a ver nosso pai outra vez!

-Essa Guerra veio para o bem.

-Bem de que, meu Deus!? De quem? Não feche os olhos para aquilo que você não quer ver...

-Suas palavras não me comovem, Hans.

- Respondeu com um sorriso irônico.

-Patrick... Pela nossa mãe, me ajude sair daqui?

-Não posso.

- Falou caminhando em direção à porta.

-Mas pode deixá-la morrer de desgosto?...

-Não foi você quem escolheu? Trocou o conforto de nossa casa para embarcar em trens imundos de carga como ovelhas indo para o massacre!

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-Ovelhas indo para o massacre? O que você sabe sobre ficar amontoado de uma forma que nem animais ficam? Enfraquecidos por dias de fome e privações? O que você sabe sobre ficar trancado em vagões fechados, sem amigos, armas, sem comida? Mesmo que escapássemos dos nazistas, quem estaria lá para nos receber? Quem se importava conosco? Quem levantaria um dedo por nós?

Aproximando-se dele, continuei:

-O que as pessoas que usam frase como essa Patrick, sabem sobre honra?... Sobre os milhares de pais que não deixaram seus filhos? Ou que ficaram para abraçá-los, para acariciá-los, trocar olhares com eles por uma única vez mais?...

Aos poucos ele foi se emocionando.

-Será que eles conhecem o significado de Respeito? Aqueles que deram sua ração diária de alimento para que um pai, uma avó, um rabino pudesse viver por mais um dia? O que sabem de um povo que se recusou a acreditar na morte da humanidade em um lugar abandonado chamado inferno?

Tocando em seu ombro, questionei:

-Onde estão seus valores humanos, meu irmão?... Orgulha-te ver crianças chorarem vendo seus pais sendo brutalmente assassinados, separados, agredidos, mutilados? Coloque-se no lugar dessas pessoas... Imagine como mamãe está sofrendo em saber que você está contribuindo com isso...

-O que você está tentando conseguir com isso?

-Não deixar que nossas lembranças se percam na História.

Demos um abraço. Finalmente consegui quebrar o gelo daquele coração duro.

-Lembra quando você quebrou o cinzeiro do Vater e eu assumi a culpa para ele não te castigar?

- Perguntei. Rimos.

-Lembro!... E quando você me salvou dos meninos que queriam me bater lá na Praça da República...

Page 148: Lu Mounier - O jardim da luz continuação

-Mamãe costumava dizer que você era o redime de todos seus pecados...

Ele começou a se emocionar.

-Tenho saudade daquele tempo.

- Falou sobrepondo sua mão à minha. Após um profundo suspiro, falei olhando em seus olhos:

-Acha que vale a pena enterrar nossa história? Deixar nossas memórias serem consumidas pelo mesmo fogo que queimam os judeus?

Dando-me um abraço ele se calou. Percebi que estava emocionado, porém, ele não queria demonstrar, e o que eu poderia fazer naquele momento era respeitar.

Tentando parecer durão, afastou-se de mim dizendo:

-Essa noite chega mais um trem trazendo judeus... Se prepare para partir.

-Só vou se o Eliezer for junto.

-Outra vez esse judeu?

Respondi apenas com meu olhar.

-Mais tarde eu volto... Procurem ser discretos.

- Disse o Patrick fechando à porta. Feliz, deixei que lágrimas escapassem. Eu não via a hora de poder sair daquele lugar e tirar o Eliezer dali, vivermos em paz nossa história longe da perversidade humana.

Voltei ao barracão onde Eliezer e eu dormíamos feliz da vida, mancando por conta do frio, ansioso para contar a novidade que mudaria nossas vidas para sempre.Atravessei a neve apreensivo, pois do lado de fora do campo não havia ninguém, e se os guardas me vissem poderiam atirar sem qualquer questionamento. A fumaça negra parecia estar a todo vapor com altas labaredas de fogo.Empurrei à porta lentamente, tomando cuidado para não ser visto pelos guardas.Ouvi uma forte gritaria, em seguida um aglomerado de homem caminharam rapidamente enfileirados e escoltados por quatro SS e dois Kapos. Escondido, esperei que todos saíssem. Pulei uma poça d'água que alguns rapazes puxavam com rôdo e caminhei em direção ao fundo do barracão. Sobre a cama que dormíamos estava apenas

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o echarpe xadrez que o Eliezer adorava.Fiquei desesperado quando meus olhos não encontraram aquilo que eu tanto procurava.

-Você viu o Eliezer?

- Perguntei a um senhor que arrumava à cama ao lado.

-Está deitado naquela cama!

- Respondeu apontando para o último leito no final do corredor. Caminhei apressado até ele, que ao me ver abriu um enorme sorriso exclamando:

-Hans!

-Que susto levei...

-Susto?

-Estava procurando por ti, mas não estava encontrando...

-Estava ajudando o pessoal com a arrumação das camas, mas não me senti muito bem e resolvi deitar aqui um pouco.

-Você ainda está com febre!

- Exclamei tocando sua testa.

-Logo vai passar.

- Respondeu beijando minha mão.

-Tenho uma novidade pra você.

- Sussurrei próximo ao seu ouvido.

-Que novidade?

-Essa noite deixaremos esse inferno!

-Como!?

-O Patrick vai nos ajudar.

-Seu irmão?

-Ja!

-Hans... Mas como? O que ele faz aqui?

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-Isso não importa agora, mas sim que vamos deixar esse lugar de uma vez por todas.

-Humpf... Não confio nele.

-Nesse momento nós só temos ele para confiar.

-Humpf... Eu gostaria de acordar e saber que tudo isso não passou de um sonho.

Acariciando sua face, falei:

-Mas isso vai acontecer... Essa noite estaremos livres...

-E partiremos para o Brasil!

-Ja!... E daqui 70 anos, quando estivermos bem velhinhos iremos relembrar de tudo isso e relatar para os livros de História.

-E onde estaremos daqui 70 anos exatamente?

-Hum... Imagino eu e você, bem velhinhos, caminhando no Jardim da Luz, em frente ao chafariz.

-E posso saber o que você faz com minha echarpe na mão?

-Estava em sua cama... Pensei que...

-Acabei esquecendo. Fique com ele, guarde no seu bolso para ninguém pegá-lo.

-Tudo bem. Agora vou voltar para o barracão e esfregar o chão... Pela ultima vez!

-Até mais tarde!

-Até!

Percebi que o clima no campo estava estranho. Os vigias haviam sumido o que parecia ser obra do Patrick para me ajudar. Por volta das cinco da tarde ele apareceu. Com ar de desconfiança ele entregou-me dois uniformes de soldado e ordenou-me:

-Vistam-se com isso e me aguardem no galpão 1 em duas horas.

-Ta bom.

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Assim que ele fechou a porta escondi as fardas embaixo de uma das camas e fui procurar pelo Eliezer. Meu coração parecia que iria saltar pela boca de tanta felicidade. Entrei naquele barracão com um sorriso que ia de orelha a orelha, correndo como um louco ara tirá-lo definitivamente daquele purgatório. Percorri aquele enfileirado de camas. Como não o encontrei, passei a procurá-lo do outro lado. O barracão estava vazio. Apenas dois listrados amontoavam uma pilha de uniformes, do qual perguntei a um deles:

-Hey, você!... Viu o Eliezer por ai?

-Quem é Eliezer?

-Humpf... Cadê o pessoal que estava aqui há umas horas atrás?

-Saíram agora há pouco para o banho.

-Banho?

Na mesma hora desesperei-me. Sai correndo em direção ao barracão apelidado de Canadá. Os prisioneiros iam para lá enganados, acreditando que fossem tomar banho. Conforme ia me aproximando, conseguia ouvir gritos cada vez mais altos. Tentei correr o mais rápido possível, mas desnutrido, sem forças, logo me cansava e tinha que parar para respirar e não sucumbir à fraqueza. Logo na entrada havia a inscrição:

Banhos

. Entrei. No fundo daquilo que parecia um vestiário, avistei uma enorme porta de aço se fechando. Após trancá-la, um soldado saiu,passando por mim, que escondido, não me notou. Os gritos cessaram. Sob os bancos do vestiário havia diversos sapatos, todos arrumados como se logo fossem recuperados. Da mesma forma os uniformes listrados, colocados sobre os bancos de forma cuidadosa. Corri até aquela porta, procurando pelo Eliezer entre aquele monte de gente nua, através de um pequeno vidro grosso. Desesperei-me. Meus olhos não o encontravam. Dois rapazes olharam-me profundamente, respirando com dificuldade, aparentando falta de ar. Seus olhos me pediam ajuda, mas eu nada podia fazer. Ouvi barulho de botas se aproximarem. Corri até os bancos e comecei a juntar os uniformes.

-Mas o que você faz aqui?

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- Perguntou um soldado SS. Bati continência e respondi:

-Fui encarregado de juntar todos os uniformes, senhor!-Pois então continue o que estava fazendo, seu verme!-Sim, senhor!

Dobrei todos os uniformes e arrumei os sapatos. Percebendo que o caminho estava livre, deixei aquele lugar imediatamente. Os prisioneiros eram levados para as câmaras de gás enganados. Pensando que iriam tomar banho, recebiam sabonetes e toalhas na entrada, e quando todos estavam amontoados naquele espaço, as enormes e pesadas portas de ferro eram fechadas. Ao invés de água, os canos liberavam Zyklon B, um gás produzido pelas fábricas Degesch, na cidade de Dessauna Alemanha. Iniciava-se então o espetáculo assistido pelos SS atrás de grossos vidros. Todos os prisioneiros morriam asfixiados em poucos minutos. Ao cruzar a porta, caminhava apressado para longe dali quando me deparei com quem não esperava.

-Samuel!

Obs : - Diferente da polícia de Sonder comando do gueto, a Sonderkom mando do campo tratava-se de um comando especial.

-Hans... O que faz aqui?

- Questionou-me olhando de um lado para o outro apreensivo.

-Estou procurando pelo Eliezer... E você? O que faz vestindo esse uniforme listrado?

-Humpf... Não sou mais um Kapo... Mandaram-me para a Sonderkommando, sou um dos responsáveis por arrumar os corpos retirados das câmaras de gás...

-Samuel... Eu preciso saber se o Eliezer foi levado para as câmaras de gás...

-Vem comigo!

Para dar a sensação de segurança, inventou-se um novo significado para a língua alemã, onde “Deportação” passou a chamar-se “Reassentamento”,

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“seleção para a morte tornou-se “Tratamento especial” e “Chuveiros” nada mais eram que as “Câmaras de gás”.

Depois que todos morriam, os alemães ligavam poderosos ventiladores para tirar o gás que restava dentro dos banheiros, e logo em seguida retiravam os corpos para serem reciclados.

-Se perguntarem, diga que você é novo e começou hoje por aqui, Hans...

- Alertou-me Samuel.

-Tudo bem.

No meio daquele amontoado de corpos, procurava pelo Eliezer numa angústia sem fim, pulando um a um. Ali encontrava-se o destino de famílias inteiras, o término de um sofrimento interminável.

-E agora? O que vamos fazer?

- Questionei perdido.

-Bem... Agora nossa função é retirar anéis, alianças, dentes de ouro...

Antes de serem encaminhados aos crematórios, os Sonderkommando retiravam dos mortos tudo aquilo que poderia ser reutilizado. Dentes, anéis e alianças de ouro, por exemplo, eram derretidos e transformados em novas jóias, das quais eram ostentadas pelas senhoras alemãs sem que desconfiassem de sua origem. Os cabelos eram raspados, principalmente os femininos, embalados para que fossem transformados em tapetes, decorando a casa de muitas famílias alemãs. Como se não fosse o bastante, a gordura dos corpos era reprocessada e transformada em sabão, enquanto que os ossos com as cinzas eram transformados em fertilizantes. Para que não restassem testemunhas do que acontecia, após três meses de exercício naquela função os Sonderkommando tinham também como destino as câmaras de gás.

“Torne a mentira grande, simplifique-a, continue afirmando-a, e eventualmente todos acreditarão nela.”

Adolf Hitler 

Page 154: Lu Mounier - O jardim da luz continuação

Ao pisar em um braço caído gelei. Olhei para aquele corpo esquelético de um jovem rapaz, chamando-me atenção. Seus olhos abertos pareciam querer dizer algo, um último pedido que não pôde ser ouvido nos seus últimos momentos de agonia. Seu rosto cadavérico me fez lembrar o meu Eliezer, da última vez em que o vi, do seu beijo em minha mão. Passei horas procurando por ele, mas não o encontrei.

Através de uma canalização especial, a gordura extraídas dos corpos no crematório era redirecionada para uma fábrica situada num edifício ao lado. A tal fábrica chamava-se “R.J.F” (Rein Juden Fetz), que significa Gordura Pura de Judeus.

Deixei o Canada correndo, fugindo pra longe daquele vale de sombras. Chorei como uma criança perdida, apavorada. A fumaça negra que saída daquela chaminé escurecia o céu. Denominados de Krema II e Krema III, os crematórios em Birkenau tinham suas instalações subterrâneas com salas para despir, duchas e tratamento desinfetante. Em uma crueldade sem tamanho, soldados nazistas ordenavam que os prisioneiros despissem e deixassem seus pertences no vestiário, dizendo que poderiam pegá-las ao final do suposto banho. Quando todos já estavam amontoados, nus liberava-se descargas do agente tóxico Zyklon B pelos chuveiros cujo jamais saíram uma só gota d’água. Tudo acontecia de forma rápida e eficiente. Corria de um barracão para o outro, quando dois soldados SS cercaram-me. Com um rifle apontado para mim mandaram que eu seguisse para uma fila, juntando-me com vários outros prisioneiros.

Obs: - A seleção de prisioneiros que seriam levados às câmaras de gás acontecia de diversas maneiras e por diversos motivos. Às vezes, durante a revista diária soldados SS escolhiam um grupo de prisioneiros e os mandavam “tomar banho”.

O fato de olhar ou não para um SS de forma a não agradá-lo também poderia ser fatal. Tudo poderia significar viver ou morrer, até mesmo em momentos de necessidades fisiológicas.

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-Todo mundo andando em fila!

- Gritava um SS. Seguimos andando um atrás do outro, até a saída do campo. A princípio eu não estava entendendo nada do que estava acontecendo, até avistar o trem. Com a aproximação das tropas dos EUA, os nazistas precisavam dar fim nos campos de concentração para que não restassem provas contra eles. Sendo assim, as pessoas que lá estavam precisavam deixá-lo, fosse pela chaminé, enterrado em valas comuns após serem fuzilados, transferidos para outros campos mais distantes. Fomos jogados nos vagões que ali estavam parados como sacos de lixo. No meio de toda aquela confusão meus olhos procuravam pelo Patrick entre os soldados, mas não o encontrou.

-Depressa! Depressa!

- Gritavam os soldados. Os vagões eram abertos, não muito grandes. Aglomeraram por volta de 60 pessoas por composição, e no meio daquele amontoado de gente, escolhi um cantinho para ficar. Estávamos expostos a tudo, frio, chuva, sol. Não sabíamos para onde iríamos nem quanto tempo levaria, nada nos foi dito.No dia 26 de Novembro de 1944, o comandante de Auschwitz, Richard Baer,recebeu uma surpreendente ordem para desfazer a instalação, diminuindo o ritmo de extermínios do campo. Tal ordem partiu diretamente de Adolf Hitler, causando espanto a muita gente. Para Josef Mengele a ordem não causou estranheza, pois ele estava convencido que a Alemanha Nazista perderia a guerra. De forma encoberta ele abandonou o campo em 17 de Janeiro de 1945, 10 dias antes da invasão pelo Exército Vermelho, do qual libertou os poucos sobreviventes. Após deixar Auschwitz, Mengele seguiu para o antigo campo de concentração de Gross-Rosen, onde teve suas operações encerradas em Agosto de 1944. Em meados de1945 fugiu para o Oeste disfarçado de membro da infantaria regular alemã portando identidade falsa, mas não adiantou muito, pois Mengele foi capturado. Como prisioneiro de guerra, cumpriu pena em prisão próximo a Nuremberg, libertado depois quando se desconhecia sua identidade, pois durante os julgamentos de Nuremberg não se mencionou Josef Mengele como genocida. Livre, Mengele fugiu para a Argentina ainda na década de 1940. Ao saber que Adolf Eichmann fora capturado por agentes do Mossad em Buenos Aires, Mengele tratou de fugir da Argentina escondendo-seno Paraguai, mudando-se para o Brasil em seguida, onde viveu nas cidades de Serra Negra, Assis, Nova Europa, Mogi das Cruzes e

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Bertioga. Algum tempo após o trem partir uma pequena confusão se iniciou no vagão em que eu estava. Levantei-me e fui ajudar a separar a briga antes que tal fúria contaminasse outros homens.

-Samuel!

- Exclamei segurando um dos envolvidos na confusão.

-Hans! Que bom que lhe encontrei!

- Desabafou abraçando-me. Sem entender, questionei a ele:

-Mas... O que faz aqui?...

Afastando-nos dos outros rapazes, ele contou-me em voz baixa:

-Esqueceu que eu já fui um Kapo? Assim que vi uma brecha, escapei daquele inferno!

-Ou seja, você fugiu...

-Não se preocupe, no meio da confusão só vão dar por minha falta quando estivermos bem longe...

Três dias após o início da viagem começaram a morrer os primeiros prisioneiros. Caso acontecesse, tínhamos ordens para deixar os corpos nas paradas dos trens, porém, não fazíamos isso com todos, pois usávamos os cadáveres como colchão, amenizando o frio e dureza daquele chão de madeira e lascas.

-Sabe Hans... Mesmo que essa guerra acabe amanhã, pra mim não fará mais nenhuma diferença.

-Por que você diz isso, Samuel?

-Já perdi toda minha família, minha casa, minha dignidade...

-Mas não perca as esperanças!

Tocando em minha mão ele disse após um breve sorriso:

-Obrigado por tudo que você tem feito por nós judeus...

-Por favor... Pare com isso...

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-Não... Se não fosse por você e os Lovitz, Ima e eu teríamos morrido naquela noite...

-Do que você está falando, Samuel?

-Humpf... Naquele dia em que batemos a sua porta, estávamos fugindo da polícia... Fomos tirados de casa e levados para a praça para sermos fuzilados, e quando percebemos um momento de distração dos guardas, escapamos. Se voltássemos para a rua tão breve, certamente seriamos capturados e mortos...

-Entendi... Bem, nem sei o que dizer, Samuel...

-Por isso serei eternamente grato a vocês!

Ao amanhecer do dia chegávamos em mais uma parada. Acordei com o ranger dos trilhos enquanto o trem parava. Levantei-me e notei que na estação havia um cano jorrando água em um balde sem parar. Desci do trem e corri até lá. Demorei a acreditar, e não perdi tempo, peguei logo aquele balde e voltava ao trem quando um soldado gritou:

-Você ai... Pare imediatamente!

Parei. Sem pensar duas vezes respondi com a voz trêmula:

-Foi... Nosso SS quem mandou senhor... Não atire!

Acreditando, deixou-me levar o balde para o trem. Isso foi o bastante para que os outros prisioneiros corressem até lá para quererem fazer a mesma coisa. A confusão estava armada. Encolhi-me em um canto e tomei aquela água até não agüentar mais, dividindo com Samuel o conteúdo daquele balde. Os soldados começaram a atirar, e eu, mantive-me encolhido naquele canto. Quando consegui espiar, vi corpos caídos por todos os lados, um sobre os outros, banhados em poças de sangue.

Obs: - Em meados de Novembro de 1944, com a intenção de esconder das tropas soviéticas as atividades do campo, os nazistas iniciaram a evacuação de Auschwitz Birkenau. A maioria dos prisioneiros deveria partir para o oeste. Os que estivessem muito fracos para caminhar foram deixados para trás. Estima-se que foram libertados pelo exército soviético entre 3000 e

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7500 prisioneiros pesando de 23 a 35kg, sendo libertadas em27 de Janeiro de 1945.

Aqueles que nos viram beber água pediram para que urinássemos no balde para que pudessem beber. Que humilhação! Aquilo era desumano. Por mais que tentei, não consegui urinar.

-Hans...

- Sussurrou Samuel.

-Sim?

-Tenho aqui comigo pão e mel... Dividirei com você a noite para que ninguém veja.

-Danke!

- Agradeci feliz. Mas Samuel não resistiu e acabou beliscando um pedaço de seu pão. Percebendo que um prisioneiro o olhava com olhos brilhantes, naquele mesmo dia entregou-me tudo que tinha dizendo:

-Tenho certeza que ele tentará me roubar.

- Sussurrou.

- Guarde com você, por favor...

-Tudo bem...

Samuel tinha razão. Naquela mesma noite ele acordou com a mão daquele rapaz segurando seu pescoço, enquanto a outra revistava seu casaco em busca do pão. Ao encontrar um naco no bolso de seu casaco, o soltou e afastou-se para longe. A partir de então chegamos a conclusão de que guardar comida era arriscado, sendo assim, tratamos de comer tudo de uma só vez.

“As maiores mudanças revolucionárias do mundo seriam impensáveis se sua força motivadora, ao invés do fanatismo, sim, a paixão histérica, tivessem sido meramente as virtudes ordinárias da lei e da ordem.”

- Adolf Hitler 

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Dois dias se passaram e durante esse período nada comemos. Alguns prisioneiros já mostravam sinais de que estavam doentes, e um deles era o Samuel.

-Acho que estou com febre, Hans...

- Falou tremendo.

-Deixa eu ver... Sim, você parece febril.

-É... Esse é meu fim, Hans...

-Do que você está falando?... Pare de dizer bobagens!

-Não, amigo... Sinto que minha hora está chegando...

-Samuel, não diga mais nada... Deite sua cabeça em meu ombro e descanse.

-Danke!

Quando as forças aliadas avançaram em direção à vitória na primavera de 1945, depararam-se com os campos de concentração alemães, sendo que poucos estavam preparados para o terror que encontrariam.

"Os soldados se aproximaram da cerca e ficaram parados olhando para nós. Eu não conseguia entender a reação deles. Eu gostaria de poder lhe dizer como foi estranho observá-los enquanto nos encaravam de uma maneira incompreensível. Então, notei um soldado se contorcer e vomitar, e depois outro fez a mesma coisa, e depois mais outro, e então compreendi. Eles nos olhavam com repugnância. Um profundo desespero tomou conta de mim, me senti como Adão na primeira vez em que percebeu que estava nu deplorável e envergonhado. Olhei à minha volta e vi a mim mesma e aos outros prisioneiros com os olhos daqueles soldados. Era repulsivo olhar para nós, sem dúvida. É estranho, não é mesmo, que eu nunca tivesse me dado conta disso antes. Logo depois daquele soldado passar mal, algo estranho aconteceu entre os prisioneiros. Nós começamos a nos virar em outra direção, nós lhes demos as costas. Não queríamos que nos vissem. E se alguns instantes atrás queríamos que entrassem no campo, agora, com muita veemência, queríamos que ficassem onde estavam, ou então que fossem embora."

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Antes do dia amanhecer chegávamos em mais uma parada. Notei que os guardas já não nos vigiavam como antes, deixando os prisioneiros mais soltos. Com isso, percebi uma oportunidade única de fugir.

-Samuel, acorde... Chegamos em mais uma parada... Samuel... Samuel?...

Chamei, o chacoalhei, mas ele não se mexia. Toquei em seu rosto, estava gelado.

-Sério mesmo que vocês vão me ajudar a reencontrar meu pai?

-Claro! Amanhã mesmo começaremos.

-Samuel... Pelo amor de Deus, fala comigo?

- Pedia desesperado.

-Mãe... Tenho uma novidade...

-Que novidade, filho?-

Descobrimos onde papai está.

Aproximando-se de nós, um dos prisioneiros falou:

-Ele está morto!

-Não!... Ele não está... Está dormindo!

-Temos que tirá-lo do vagão.

- Gritou outro.

-Por favor... Não!...

Por mais que tentei, não adiantou. Mal tive tempo de me despedir de Samuel, pois logo o retiraram do vagão.

"Quando se olha para eles, não há como distingui-los um do outro. A cabeça raspada e o aspecto cadavérico. Não há meios. Era difícil vê-los como humanos. Diante das circunstâncias evita-se falar muito a respeito. É muito difícil."

Ao chegarmos a nosso destino final

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, no vagão em que eu estava restaram menos de 30 pessoas vivas. O silêncio predominava, todos estavam amedrontados, sem saber o que fazer. O trem parou. Estranhei quando notei os soldados nos abandonarem, correndo para dentro do mato. Olhei para trás e avistei soldados russos se aproximarem. Estávamos livres!Os bombardeios à Alemanha estavam avançando. Para momentos de desespero, Hitler encontrava em sua cadela o conforto, pois quando ameaçada a vida do Führer ela era treinada para matar sob ordens.

Na frente russa, a situação ia de mal a pior. As tropas alemãs foram expulsas daAlbânia, Grécia, Iugoslávia e Bulgária, e o próximo alvo de manobra seria Berlim. As tropas alemãs enfrentaram com bravura os maciços ataques russos, e com tropas em menor número, possuem menos armas, frio e fome. Os aliados dobraram os ataques aéreos na Alemanha, ao mesmo tempo em que os alemães estavam se rendendo aos milhares.Crente que a derrota chegara, Hitler disse a si mesmo:

“Que assim seja. Se o Terceiro Reich tem que cair, que seja para os americanos.”

Mas tal desejo não aconteceria. Após um acordo, os americanos e britânicos limitaram-se o avanço de suas tropas à Elba, deixando que os russos tomassem Berlim. Hitler sentiu a necessidade de voltar a Berlim na tentativa de mudar o rumo da vitória. De volta a capital, ele e Eva Braum instalam-se na chancelaria, onde clama por sacrifícios maiores de seu exército.Por volta do dia 20 de Abril de 1945 os russos já adentravam nos subúrbios de Berlim. Preocupado, Hitler convocou sua equipe para uma reunião final, onde decidiu ficar até o fim. Em seguida, seguiu para o bunker sob a chancelaria acompanhado de Eva.

Com a derrota inevitável, Himmler e Goering desertaram. Abandonado por maioria de seus companheiros de confiança, Hitler encontra-se próximo de um colapso nervoso, recusando-se a deixar o bunker.

“A saúde de Adolf Hitler piorou muito por causa de contratempos no front especialmente após a batalha de Stalingrado. Não conseguia dormir, os seus nervos pioraram. Foi obrigado a medicar-se. Mas preciso acabar com esses boatos. Seu cérebro funcionou perfeitamente até sua morte."

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- Julius Schaub, assistente pessoal de Hitler Com o avanço das tropas inimigas, os defensores de Berlim eram expulsos, ao mesmo tempo em que cápsulas de veneno eram distribuídas aos ocupantes do bunker e da chancelaria. Sabendo que seu fim estava muito próximo, no dia 29 de Abril, Adolf Hitler casou-se com Eva Braum.

"Entrei no quarto do bunker com ele. Na mesa havia uma pistola 75. Aproximou-seda pistola. Fiquei muito chocado. Pegou a arma. Mas, não. Ainda não era o fim. Estava apenas verificando se estava carregada. Alguns dias depois, o evento que achei que fosse ocorrer naquele momento, aconteceu."

- Julius Schaub Hans Bauer, piloto particular do Führer, declarou sobre as ordens finais que recebeu de Adolf Hitler:

"Cerca de 30 ou 45 minutos antes da morte de Hitler, no dia 30 de abril, ele mandou me chamar. Quando me apresentei, tomou as minhas mãos nas dele e disse: ' Bauer, quero me despedir... ' Por um momento fiquei sem palavras, e demorou 20 minutos para nos despedirmos, onde pedia: 'Bauer, tenho mais duas ordens para você. A primeira é que será responsável por queimar o meu corpo e o de minha esposa. E a segunda é para que faça com que Bormann chegue até Doenitz.

Doenitz é o meu sucessor natural. Dei a Bormann muitas ordens e documentos para que leve ao Doenitz.' O tempo todo fiquei pasmo como Hitler falava claramente. Não podia acreditar que o fim seria esse."

Berlim, em chamas, foi tomada. Seus últimos defensores foram arrancados de seus esconderijos, e no meio das ruínas empoeiradas, escombros, era difícil saber o que de fato aconteceu com o caído ídolo nazista. Obviamente, a história completa seria “montada”

depois.Trancado em seu bunker, localizado no porão da chancelaria, o Senhor da Alemanha se mata com um tiro na boca, enquanto sua esposa morre após ingerir veneno. Seus corpos foram queimados por Joseph Goebbels e Martin Bormann, guarda-costas do Führer, em seguida jogados em uma vala no pátio do lado de fora do bunker, bem próximo à entrada.

"Quando vi o chefe pela última vez, tive o pressentimento que o final estava próximo, mas não havia mudança visível alguma nele. Nem o caráter dele, nem em mais nada. Ele se despediu e me dispensou. No dia

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seguinte, quando o chefe estava morto, fui até o bunker no momento em que retiravam o corpo. Então veio o Martin Bormann com Eva Braun nos braços. Tomei o corpo dela e a carreguei atrás de Adolf Hitler. Colocamos os corpos lado a lado no jardim. Tinha me incumbido com o difícil dever moral de jogar gasolina neles e atear fogo aos corpos. Os corpos queimaram das 13h30min às 19h30min."

- Erich Kempka, motorista particular de Hitler. Para não ser caçado pelas tropas inimigas e sofrer prováveis e severas punições pela sua significativa contribuição nazista, Joseph Goebbels atirou em seus seis filhos. Em seguida, mandou um guarda da SS atirar nele e em sua esposa.

Já em Berlim, os russos hastearam sua bandeira vermelha nos portões de Brandenburgo. As tropas americanas de ocupação que chegavam do oeste hasteavam a bandeira dos EUA, enquanto os líderes aliados, incluindo generais americanos e russos, assumiam o controle. Chegara o fim. O Terceiro Reich morre numa catástrofe convulsiva.

Em 04 de maio de 1945 Berlim tratava-se de uma cidade de ruínas em brasa, que assim como a Fênix, deveria se reerguer das suas próprias cinzas. Assim como a capital, o cenário dos encontros amorosos de Hitler e Eva Braum em Berchtesgaden estava em ruínas. Seus principais atores deixaram a cena para sempre, enquanto os figurantes, líderes nazistas, encontravam-se mortos ou presos. Os russos estavam atirando em todas as pessoas consideradas suspeitas pelas ruas a fora. Aquele que um dia foi um simples operário, cujo sonho de levar o seu povo a conquista do mundo, terminou totalmente destruído. O mesmo que supervisionara violência, tortura, campos de concentração, câmaras de morte em massa, permanece até hoje como símbolo sinistro de tirania. O tirano cruel, cuja ambição insana não parou com a escravidão do seu próprio povo, foi detido somente depois que desencadeou no mundo a mais brutal guerra já registrada na história. No dia 8 de maio de 1945 a Alemanha se rendeu.

Um mês se passou.

Durante esse tempo, mesmo convalescente não deixei de pensar em minha mãe e principalmente no Eliezer. Aos poucos fui me recuperando. Ganhei

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20 kg, o que pode parecer pouco para alguém que chegou a pesar 32 kg, mas para quem estava no limite entre a vida e a morte, era muito. Não houve um só dia em que eu não tivesse procurado pelo Eliezer no meio daqueles sobreviventes. Percorria todos os dias aqueles corredores enlamaçados, esperando encontrar o verdadeiro amor da minha vida. Não houve um só instante em que eu não deixasse de lembrar de seu rosto, de seu sorriso,de suas palavras de conforto.

"Quando fomos libertados nós comemos, e comemos sem parar. Não havia a sensação de saciedade, apenas a consciência de que estávamos com fome e de que no dia seguinte não teria o que comer. Não sabíamos como parar."

- Depoimento de um sobrevivente.

Na ânsia para se alimentar, muitos sobreviventes tiveram seu estômago rompido, enquanto outros que haviam lutado para viver, não tinham mais forças para enfrentar o tifo e a tuberculose que tomou conta dos campos de concentração. Algumas semanas após achegada dos aliados, milhares de prisioneiros libertados morreram. Só em Bergenbelzin foram enterrados cerca de 13.000 corpos.

"Nosso primeiro ato como homens livres foi atacar os suprimentos. Só pensávamos naquilo, não pensamos em vingança, nem nas nossas famílias. Nada, a não ser comida."

- Depoimento de um sobrevivente.

Com minha liberdade de volta, tratei de partir para Berlim o mais rápido que possível. Ao chegar, deparei-me com uma cidade fantasma, destruída pelos bombardeios inimigos. Segui para minha antiga casa. Enquanto caminhava, chorava emocionado com momentos e lembranças de lugares que agora, não passavam de ruínas. Duas quadras antes de chegar no prédio onde morávamos eu e minha família, parei em frente a antiga sapataria do senhor Dirk.

“-Hallo, Hans! Como está seu pai?

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-Bem... Apesar de ter ficado um pouco mal esses últimos dias, mas já está melhor.”

“-Encontrei um dos filhos do senhor Dirk no armazém...

-Ah é? E como ele está?

-Ele faleceu essa madrugada.”

Nada mais existia, a não ser entulhos aglomerados em meio a dor e sofrimento daqueles que nada tinham a ver com a situação. As manchas de sangue pelas ruas era pouco, perto do número de lares que foram desfeitos, famílias que foram destruídas. Foram mulheres que perderam seus filhos, maridos, netos, pais. Nações inteiras sacrificadas pelo simples capricho de poucos, lutando por um ideal fanático e fantasioso, cujo único efeito foi a derrota de uma humanidade facelada pela guerra. Caminhei em passos lentos, tomado pela angústia e o medo. Olhei para o lado e avistei um bonde, cravejado de tiros de fuzil. Fiquei imaginando em que momento seu destino foi interrompido, onde estariam seus passageiros. Conforme aproximava-me da minha antiga casa, arrepiava-me pensar que o prédio poderia não mais existir. Mas para minha felicidade, lá estava ele, ao que parecia intacto. Parei em frente a porta. Meu coração parecia que iria sair pela boca. Minha vida inteira passou diante dos meus olhos naquele instante, momentos de alegria e tristeza que para muitos não significava nada, mas para mim significava muito.

“-Eliezer, por favor, me espere...

-Meus pais... Será que fizeram alguma coisa com eles?”

“-Hans... Pare! Alguém pode nos ver aqui...

-Não me importo que nos vejam, só quero te beijar mais e mais!”

Abri o portão lentamente. Emocionado, entrei. Quanto tempo longe! A sensação era inexplicável, como se eu tivesse voltado no tempo, aos meus doze anos de idade. Aquelas paredes escuras, deterioradas com o tempo e a guerra, que foram também testemunhas de um romance proibido. Parado em frente a porta de minha antiga casa, respirei fundo e tomei coragem para tocar a campainha. Tremendo, toque-a e esperei. Ninguém abriu. Depois da terceira tentativa, virei as costas e já ia descendo as escadas quando ouvi a porta destrancar.Imediatamente parei.

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-Posso ajudar?

- Questionou uma voz.

Gelei. Aos poucos virei-me. Parada a porta estava uma jovem moça de cabelos loiros e olhos claros, que lendo meu silêncio, questionou novamente:

-Posso ajudá-lo?

-Bem... Eu... Acho que me enganei...

Que decepção! Para onde levaram minha família? Quem era aquela mulher? O que fazia em minha casa? Tantas perguntas que levaram anos para serem formuladas, e agora, não sabia o quefazer da minha vida, nem para onde ir. Eu estava literalmente sozinho.

-O senhor está bem?

- Questionou aquela jovem moça.

-Aqui... Aqui não era a casa dos Fischer?

-Anne, quem está ai?

- Questionou alguém lá de dentro antes que ela respondesse. Aquela voz eu conhecia. Era da minha mãe. Imediatamente eu empurrei aquela porta e entrei. Parada próximo à porta da cozinha estava ela, abatida, triste. Olhando-me assustada, parecia não acreditar no que via. Senti-me como se fosse um fantasma, um monstro de causar medo.

-Mutter!... Mutter!... Sou eu... Hans!

-Gott!... Filho!? Meu Deus!

Corri até mamãe antes que ela caísse de emoção. Abracei-a com o peso da saudade de anos sem vê-la.

-Vem, Mutter... Sente-se um pouco...

- Pedi levando-a até o sofá. Fechando a porta, Anne falou:

-Dona Gisela, vou buscar-lhe um copo d’água.

-Danke, querida!

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Sentei-me ao seu lado. Olhávamo-nos um ao outro, parecia estar vivendo um sonho. Acariciando meu rosto ela questionou chorando:

-Meu filho... O que aconteceu com você?... Está tão magro, abatido... Gott! O que fizeram com você?

Beijando sua mão, respondi:

-O importante é que estou aqui, Mutter... Vivo e ao seu lado.

-Aqui está sua água, dona Gisela!

- Falou Anne entregando-a o copo.

-Danke, querida! Anne deixe-os apresentá-los... Esse é meu filho Hans, irmão de Patrick.

-Encantada!

-Anne é a esposa de seu irmão.

-Esposa de Patrick?

Eu não sabia que ele havia se casado.

Nesse momento um choro soou do quarto. Apressada, Anne saiu correndo para atender ao que parecia uma criança.

-Mutter... Eu não sabia que...

-Que era tio?

-Tio?

-Ja! Patrick e Anne têm uma linda filha... Katharina!

Segurando sua filha no colo, Anne dizia a ela:

-Veja Katharina... Esse é seu tio Hans!

Levantei-me. Era uma menina linda, cabelos cacheados com laço, loiros como trigo.

-Hallo, Katharina! Mais que menina mais graciosa! Quantos anos ela tem?

-Dois!

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- Respondeu Anne.

Toquei em sua minúscula mão, branca e delicada como porcelana. Chorei de emoção.

-Ela é linda, Mutter!

-Onde está Patrick, Mutter?

-Na guerra!...

Naquele instante percebi que mamãe ainda não tinha tomado conhecimento do fim da guerra. Por hora, achei melhor não revelar.

-Ai... Meu coração!...

-Mutter... Não quer deitar um pouco?

-Não! Quero ficar um pouco mais com você, meu filho!

-Teremos todo tempo do mundo para ficarmos juntos... Para sempre!

-Hans tem razão, dona Gisela... Vá descansar um pouco!

-Humpf... Está bem...

Ajudei-a levantar e a levei para seu quarto. Encostei a porta e apaguei a luz. Enquanto ela descansava, parei por um momento para olhar cada canto daquele apartamento, cada história que ele deixou. Era como se o tempo voltasse e eu revivesse exatamente aquelas situações. Abri a porta do meu antigo quarto lentamente. Após um leve ranger, silêncio. O perfume de lavanda que exalavam os lençóis remetia-me à infância. Quanta saudade!Aproximei-me da janela, tocando levemente à cortina. Fechei meus olhos.

“-O que você está fazendo, Hans?

-Aquilo que meu coração “está pedindo.”

“- Meninos! Pensei que não sairiam mais do quarto...”

No auge das minhas lembranças, alguém bateu a porta:

-Com licença...

-Ah! Entre, Anne...

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- Falei limpando as lágrimas sem que ela visse. Abrindo timidamente a porta, ela dizia:

-Você deve estar com fome... Gostaria de comer um pouco?

-Claro!

-Vou aquecer para você...

-Danke!

Antes que ela deixasse meu quarto, quis saber:

-Anne!

-Ja?

-Onde está Patrick?

Após um instante de silêncio, Anne deu dois passos a frente e falou após um profundo suspiro:

-Patrick... Patrick faleceu, Hans.

-Como!?

-Não sei... Apenas recebi a notícia de que foram surpreendidos pelas tropas inimigas e todos os homens do exército alemão que ali estavam foram aniquilados.

-Gott! Mutter deve ter ficado arrasada...

-Ela ainda não sabe Hans... Não tive coragem de contar a ela... Sua mãe está muito doente, não sei se iria agüentar...

-E sobre meu pai? Alguma notícia?

-A última notícia de que recebemos do senhor Oliver foi há dois anos, em uma correspondência em que ele dizia estar partindo para o Leste... Depois disso, nunca mais tivemos notícias...

-Humpf... Danke!

Ao sair, Anne fechou a porta. Sentei-me em minha cama. Tirei o sapato, em seguida a calça. Abri a gaveta e peguei uma roupa limpa. Segui para o

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banheiro, onde tomei um banho de quase uma hora. Que alívio! Há meses eu não sabia o que era sentir-se limpo novamente.

-Hans... Já coloquei a comida na mesa.

- Falou Anne a me ver sair do banheiro.

-Danke!

Seguimos até a cozinha. Nos sentamos a mesa e começamos a conversar.

-Quer pão, Hans?

-Ja!

-Aqui está!

-Danke...

Após um breve momento de silêncio, comentei:

-Patrick não me contou que havia se casado.

-Quando você o encontrou?

- Questionou esperançosa.

-Não tenho noção de tempo... Há alguns dias...

-Gott! Ele... Estava bem?

-Ja...

-Rezo todas as noites para que ele volte pra casa... Conhecer nossa filha...

-Patrick não conhece a filha?

-Não!... Quando Patrick partiu para os campos de concentração, ainda não sabíamos que eu estava grávida.

-Então ele não sabe que é pai?

-Sim, sabe... Recebeu a notícia por correspondência, inclusive um retrato de Katharina...

-Lamento tanto nossa relação não ser como a de tantos outros irmãos comuns...

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-Por que você diz isso?

-Porque Patrick não gostava de mim...

-Mas... De onde você tirou isso, Hans?

-Patrick e eu nunca nos demos muito bem...

-Hans... Patrick amava você!

-Anne, sei que você chegou há pouco e...

-Não, Hans... Patrick amadureceu, tornou-se homem...

-Como você sabe de tudo isso, Anne?

-Ele revelou-me que iria atrás de você, e que faria o possível para trazê-lo de volta ao seio da família...

-Ele... Realmente falou isso?

-Humpf... Ja... Foi por isso que ele decidiu pedir permissão para ser transferido aos campos de concentração... E passou de campo em campo procurando seu irmão...

-Até me encontrar em Auschwitz.

-Então ele conseguiu!

- Comemorou emocionada.

-Se hoje estou aqui, é graças ajuda dele.

-Tenho certeza!

-E... Como você entrou na vida do meu irmão?

Partindo um pedaço de pão, ela revelou:

-Tudo começou em um desfile militar... Papai era chefe de uma das tropas e acabamos trocando olhares. Alguns meses depois ele foi jantar em casa e após algumas trocas de olhares, ele pediu para me namorar ao papai.

Rimos.

-Minha mãe não concordou muito com a idéia, mas papai adorou ter na família mais um militar...

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-Coisa de nazista?

-Talvez!... Seis meses depois Patrick e eu nos casamos. Viemos morar aqui, com sua família... Alguns dias depois seu pai partiu para o Leste, e três meses depois seu irmão...

-Foi ai que descobriu que estava grávida?

-Cerca de uma semana após partir eu descobri a gravidez.

No dia 06 de agosto de 1945, após seis meses de intenso bombardeio em 67 outras cidades japonesas, na ordem do então presidente estado-unidense Harry S. Truman que há poucos meses ocupava o cargo do falecido Franklin Delano Roosevelt, a bomba atômica "Little Boy" cai sobre Hiroshima numa segunda-feira. Três dias após, em 09 de agosto, a "Fat Man” caiu sobre a cidade de Nagasaki. Os Bombardeamentos de Hiroshima e Nagasaki foram ataques nucleares contra o Império Japonês, realizados pela Força Aérea dos Estados no fim da Segunda Guerra Mundial. Historicamente, até agora estes foram os únicos ataques onde se utilizaram armas nucleares. As estimativas do número total de mortos variam entre 140 mil na cidade de Hiroshima e 80 mil em Nagasaki. As estimativas se elevam quando contabilizadas as mortes posteriores devido à exposição à radiação, sendo que a maioria dos mortos eram civís.

Com o nome de Projeto Manhattan, os EUA projetaram e construíram as duas bombas atômicas com o auxílio do Reino Unido e Canadá, inicialmente para o uso contra a Alemanha nazista. Em 16 de julho de 1945 o dispositivo nuclear, chamado Gadget, foi testado em Los Alamos, no Novo México. As bombas de Hiroshima e Nagasaki foram a segunda e terceira a serem detonadas, sendo as únicas empregadas como armas de destruição em massa. A escolha dos "Alvos" foi feita a partir de interesses militares, mas, sobretudo de interesse político-econômico. Hiroshima e Nagasaki tratavam-se das regiões mais desenvolvidas industrialmente do Japão na época, e ao fim da Segunda Guerra o Japão seria a única potência que poderia desequilibrar o fluxo de capitais e mercadorias dos EUA, motivando os ataques a estes alvos.

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Obs: - As explosões nucleares, juntamente com a destruição das duas cidades somado as centenas de milhares de mortos em poucos segundos, levaram o Império do Japão à rendição incondicional no dia 15 de agosto de 1945, onde assinou o armistício em 02 de setembro na baía de Tóquio. Posteriormente, o papel dos bombardeios atômicos que levaram a rendição do Japão e findaram a Segunda Guerra seria motivo de discussões e debates. Nos EUA o ponto de vista que prevalece é claro, o do seu próprio interesse, onde afirma que os bombardeios terminaram a guerra meses mais cedo do que haveria acontecido, salvando muitas vidas que seriam perdidas em ambos os lados caso a invasão planejada do Japão tivesse ocorrido. E no Japão, a população em geral acredita que os bombardeios foram desnecessários, uma vez que a preparação para a rendição já estava em progresso em Tóquio. Atualmente o Japão não possui exército ou qualquer força militar, tendo sua proteção fornecida pelo vitorioso EUA após assinatura do armistício, bem como Alemanha.

De volta em meu quarto, peguei o echarpe do Eliezer que havia deixado sobre a cama, dobrei e o guardei na primeira gaveta do armário. Todos os dias ao acordar e antes de dormir eu o tocava, cheirava tentando extrair a essência de sua pele, cheiro.Alguém bateu a porta.

-Entre!

- Gritei.

-Filho!

-Mutter!... Por que não está descansando?-Queria vim ficar um pouquinho com você...

-Claro! Venha...

Sentando-se a beira da cama, ela questionou:

-O que é isso que você está segurando?

-Humpf... Era o echarpe do Eliezer, Mutter.

Após um momento em silêncio, ela comentou seguido de um profundo suspiro:

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-Ainda não teve notícias dele?

-Não...

-E seus pais?

-Foram mortos nas câmaras de gás... Em Auschwitz...

-Gott!

-Tenho tanto medo que algo tenha acontecido com ele, Mutter...

-Meu filho... Noticias ruim chegam depressa... Se algo de mal tivesse acontecido, você já estaria sabendo...

Não consegui conter a emoção. Que vergonha! Chorei na frente de mamãe, perdido, sem saber o que fazer nem por onde começar. Deitei minha cabeça sobre seu colo, recebendo os afagos de uma mãe preocupada.

-Cedo ou tarde receberemos noticias dele, meu filho...

-A esperança me mantém vivo, Mutter.

-Quem sabe se você anunciar seu nome nos jornais...

-Não havia pensado nisso!

-É uma alternativa.

-Ja... Mas pretendo ir ao Brasil o quanto antes.

-Ao Brasil?

-Ja... Marcamos de nos encontrar, caso nos perdêssemos, no Jardim da Luz...

-E você acredita que o encontrará no Jardim da Luz?

-Muito! Eu senti que naquele instante nossas almas uniriam-se, Mutter...

-Humpf... Hans, tudo isso é tão difícil pra mim...

-Eu sei Mutter...

-Mas não posso lhe recriminar... Você é meu filho, não vou lhe abandonar quando precisa mais de mim.

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-Filho... Se for preciso ir ao Brasil para encontrar o Eliezer, nós iremos!

-Nós?

- Questionei emocionado.

-Ja...

-Mutter...

Abraçamo-nos. Eu já sabia que tinha uma mãe especial, mas naquele momento, descobri que ela era muito mais do que eu pensava e sabia.Dois meses haviam se passado. Durante esse período levamos nossa vida normalmente. Consegui um trabalho em uma revistaria próximo de casa, e assim comecei ajuntar o dinheiro para o tão sonhado retorno ao Brasil. Cansado, cheguei em casa louco por um banho. Fechei a porta e tirei o casaco, o colocando sobre o sofá.

-Hans!

-Hallo, Mutter!-Veja... Veja!

- Exclamava exibindo um papel nas mãos.

-O que é isso, Mutter?

-A resposta!... Alguém viu o nome do Eliezer no jornal e nos encaminhou essa correspondência dizendo onde ele pode estar.

Nesse momento quase desmaiei. Minhas pernas amoleceram, minhas mãos tremiam. Nervoso, peguei o papel, mas a ansiedade não me permitia ler.

-O que diz aqui, Mutter?

Após uma violenta tosse inesperada, mamãe respondeu-me:

-Aqui diz que ele seguiu para Palestina...

-Palestina?

-Ja...

-Mas... O que ele faria na Palestina?

-Não é a terra do povo judeu?

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-Se é lá que ele está, é para lá que vou...

-E se ele não estiver lá, Hans?-Só saberei se for descobrir...

-Não necessariamente.

- Disse Anne parada próxima a porta do corredor.

-Como assim?

Adentrando a sala, ela dizia:

-Desculpem pela minha intromissão, mas não pude deixar de ouvir...

-Diga Anne... O que você sabe?

-Eu? Não sei de nada, dona Gisela... Mas minha mãe trabalha para o governo inglês, e como a Grã-Bretanha quem possui o controle palestino, achei que ela pudesse saber...

-Será que ela poderá nos dizer se Eliezer Lovitz adentrou à Palestina?

-Posso telefonar para ela amanhã pela manhã e descobrir.

-Anne... Nem sei como lhe agradecer...

-Imagina!... Eu digo que ele é o que seu?

-Bem...

-Diga que se trata de um conhecido muito querido de nossa família.

- Interviu mamãe.

-Humpf... Está bem... Vou ligar para ela na primeira hora do dia.

-Danke!

Embora cansado, naquela noite nem consegui dormir direito, tamanha ansiedade. As horas pareciam não passar, a e única coisa que eu desejava naquele momento era que o dia clareasse. Para os judeus, Eretz Israel tratava-se da terra onde seu povo permanecera continuamente por três mil anos. Mesmo depois da destruição de Jerusalém pelos romanos e a expulsão dos judeus no Século II, os judeus mantiveram o sonho de retornar à sua pátria bíblica. A Palestina foi invadida pelos árabes por volta do Século VII, onde permaneceram apesar do território ter sido conquistado

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e reconquistado. Com o aumento do número de judeus seguindo para a Palestina fugindo de Adolf Hitler, os árabes temiam que os judeus viessem a se tornar a maioria. Desde a Primeira Guerra Mundial os britânicos governaram o território palestino, dividido pelo mandato da Liga das Nações, na intenção de apaziguar árabes e judeus, além de proteger seus próprios interesses imperialistas no Oriente Médio. Apesar da promessa britânica de estabelecer um território nacional para os judeus, se viram obrigados a mudar os planos políticos devido a grande pressão dos árabes. Em 1939, os britânicos emitiram um documento onde tornava restrita a imigração de judeus para terras palestinas, e já em junho de 1945 a Grã-Bretanha passou a permitir a entrada somente de 1500 judeus por mês.

Obs: - A Segunda Guerra Mundial deixou a Europa em ruínas, e na Alemanha cerca de onze milhões de refugiados vagando pelas ruas devastadas, dominados pela fome, doenças e desespero. O exército aliado tentava manter a ordem em meio à anarquia e o caos que encontravam. Já os refugiados chegavam de toda Europa Oriental, Rússia e Países Bálticos, sendo todos classificados oficialmente como Migrantes Forçados.

"Éramos odiados porque havíamos voltado da morte. Eles consideravam que estávamos mortos e enterrados. Estavam muito felizes porque não havia mais judeus e nem problemas com os judeus. Nosso retorno foi uma dolorosa surpresa para eles. Olhavam para nós como se fossemos fantasmas e ninguém gosta de fantasmas." -

Depoimento de um sobrevivente.

"Os tchecos olhavam para você e diziam:

- Como você ousa voltar pra cá. Na Polônia o anti-semitismo era pior, eles matariam você por ter voltado." -

Depoimento de um sobrevivente.

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Após falar com sua mãe no Reino-Unido, Anne bateu à porta do meu quarto para contar-me a notícia:

-Entre!

- Pedi.

-Estava dormindo?

-Não... Não consegui pregar o olho a noite inteira.

- Comentei sentando-me à cama. Adentrando ao quarto, ela comentou:

-Falei com minha mãe e depois de consultar uma listagem de judeus que adentraram à Palestina, Eliezer Lovitz não está na lista.

-Humpf... Meu Deus! Será que ele entrou com outro nome?

-Essa hipótese não faz sentido, mas caso tenha acontecido, se tornará quase impossível essa procura...

Desanimei.

-Aceita outra sugestão?

-Ja!

-Pelas ruas existem listas com os nomes dos judeus libertados dos campos de concentração. O que acha de ir até lá checar?

-Você iria comigo?

-Mas é claro que sim!

-Danke, Anne!

Enquanto tomávamos café, mamãe comentou elevando sua xícara a boca:

-Anne contou-me que irá acompanhá-lo para checar as listagens com os nomes dos judeus...

-Ja... Fico muito grato a ela, Mutter.

-Se for preciso eu ir às ruas ajudar, também farei.

-Não! A senhora está doente, não deve ficar se esforçando.

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-Hans tem razão, dona Gisela. Iremos eu e ele, a senhora fica em casa descansando na companhia de Katharina...

-Vocês têm certeza? Gostaria tanto de ajudá-los...

-Mas Mutter...

-Por favor, Hans?

-Humpf... Está bem. Vamos todos então.

Depois de tomarmos nosso café da manhã, nos preparamos para ir às ruas. Enquanto descíamos as escadas, mamãe comentou:

-Filho...

-Ja?

-Será que nossa história teria sido diferente se nossa família fosse unida como está agora?

-A senhora tem alguma dúvida?

Silêncio. Cruzamos o portão da rua. Segurando Katharina no colo, caminhei sentido a praça. As ruas já estavam mais limpas do que quando cheguei, e o transporte público aos poucos foi retomando a normalidade.

-Tio... Olha!

- Apontou Katharina para um grupo de soldados do Exército Vermelho que passavam por nós. Parei. Só de vê-los passar por nós, todas as lembranças ruins em que passei vieram à tona. Agora eu sabia que o inferno era na Terra.

-Hans... Hans... Hans!

- Chamava mamãe.

-Ja?

-Está tudo bem?

-Algumas recordações... Apenas isso...

-Você ficou pálido de repente!

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-Não é nada...

Com o fim da Segunda Guerra Mundial na Europa, o que restou da derrotada Alemanha foi dividido em quatro zonas de ocupação. Cada zona passou a ser controlada por uma das quatro potências aliadas, sendo elas: Estados Unidos, França, Reino Unido e União Soviética. Já Berlim, capital e sede do Conselho de Controle Aliado, foi igualmente dividida em quatro setores, mesmo estando situada bem no meio da zona soviética.Nos dois anos seguintes ocorreram divisões entre soviéticos e as outras potências aliadas, porém, os russos se negavam a contribuir com os planos de reconstrução para uma Alemanha pós-guerra, auto-suficiente e detalhamento contábil das infra-estruturas industriais e instalações já removidas pelos próprios soviéticos. França, Estados Unidos,Reino Unido e países do Benelux reuniram-se para que mais tarde fossem transformadas as zonas não-soviéticas do país em zonas de reconstrução, aprovando a ampliação do Plano Marshall para reconstruir a Europa para a Alemanha.Em 1945 Stalin chegou a revelar aos líderes alemães comunistas que pretendia enfraquecer aos poucos a posição Britânica em sua zona de ocupação, que os EUA retirariam sua ocupação em no máximo dois anos. Após isso, nada mais impediria uma Alemanha unificada sob controle comunista soviético. A principal função do Partido Comunista na zona Soviética alemã foi encobrir as ordens russas através de sua administração, simulando para outras zonas de ocupação que tratavam-se de iniciativas próprias. Enquanto isso, a propriedade e a indústria foram nacionalizadas na zona de ocupação Soviética. No ano de 1948 Stalin instituiu o Bloqueio de Berlim, impedindo que suprimentos e alimentos pudessem chegar a Berlim Ocidental após um desentendimento sobre a reconstrução do país e uma nova moeda alemã.Apontando para um poste do outro lado da rua, Anne exclamou:

-Vejam! As listas!

Atravessamos à rua. Em volta de um mural havia algumas pessoas procurando entre os nomes das listas divulgadas seus parentes, amigos, entes-queridos. Algumas mulheres se desesperavam por não encontrar quem procuravam. Sua dor era compreensível, claro, pois só quem passou por determinada situação sabe a dor e trauma que nos acometeria para sempre. Enquanto procurávamos, nos dividimos em três. Mamãe começou

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pela ponta, onde havia várias pessoas com sobrenome Lovitz, enquanto eu checava o final da lista, onde também haviam Lovitz.

-Achei! Hans... Achei!

- Comemorava mamãe. Pensei que meu coração fosse sair pela boca. Com Katharina corri até onde mamãe estava, procurando ansiosamente pelo nome do meu grande amor.

LANG, Maria

KLEIN, Jack

LOVITZ, Elieser

BLAT, Ishmael

GELTSCHIMIDT, Enoch

THAL, Berger

Ao ler, desanimei-me. Aquele não era o nome do Eliezer, mas sim de outra pessoa.

-Não... O nome do Eliezer não escreve com S, Mutter...

-Se estivessem catalogados por ordem alfabética, ficaria mais fácil de identificar.

Aquela lista mais parecia um improviso, pois os nomes estavam catalogados deforma aleatória, tomando de nós um bom tempo. No final da tarde terminamos a checagem. Nada de encontrá-lo. O meu Eliezer havia sumido da História como se nunca houvesse existido. Assim como ele, quantas outras pessoas tiveram suas vidas apagadas como cinzas ao vento?No final do verão, milhões de refugiados voltaram para suas casas e para os familiares. Mas não os judeus, pois esses não tinham para onde voltar.

"Todos aqueles dias lutamos para sobreviver. Hora após hora, dia após dia, e não tivemos tempo de compreender a monstruosidade da nossa tragédia. Agora tudo estava claro. Nossas famílias já não esperavam mais por nós, não tínhamos um lar para o qual pudéssemos voltar. Para nós a vitória havia chegado tarde demais."

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- Depoimento de um sobrevivente.

Assassinado por guerrilheiros da Resistência italiana Benito em 28 de abril de 1945, Amilcare Andrea Mussolini fundou a República Social Italiana (conhecida como República de Salò), ao Norte do país.Juntamente com sua esposa Claretta Petacci, tiveram seus corpos expostos à execração pública durante dias, na Piazza Loreto em Milão.Voltamos para casa. Enquanto subíamos as escadas, um sentimento de perda remoia dentro de mim. Segurei-me para não chorar diante de mamãe que comentou:

-Será que um dia o mundo terá paz?

-Dona Gisela, todos nós esperamos que as guerras acabem...

Com o fim da Primeira Guerra Mundial em 1919, sentiu-se a necessidade de uma organização internacional com objetivo de arbitrar os conflitos e manter a paz entre as nações, criando-se então a Liga das Nações. Embora fosse estabelecida para esse fim, no período entre guerras, de 1919 a 1939, sua ação foi limitada devido a oposições entre países europeus, pois na década de 1930, Itália e Alemanha passaram a demonstrar interesse porem novo conflito mundial. Não demorou muito e a Segunda Guerra foi declarada, e com ela sentiu-se novamente a necessidade de uma organização com o mesmo caráter da Ligadas Nações, pois a mesma havia fracassado. No ano de 1945, em uma conferência realizada na cidade de San Francisco nos EUA, reunindo representantes de cinqüenta países do Bloco Aliado, foi assinada a Carta de criação de uma nova organização. Com sede em Nova York, essa nova organização deveria ter como objetivos evitar guerras, defender os Direitos Humanos, promover o Desenvolvimento mundial, paz e segurança mundial, entre outros. E foi no dia 24 de outubro de 1945 estabeleceu-se a Organização das Nações Unidas (ONU).

Obs: - Teoricamente as coisas funcionariam perfeitamente, porém, muito diferentes na prática. Outras guerras vieram, tal como a do Iraque, Vietnã, Guerra Fria, e a ONU pouco fez, tendo sua autoridade desrespeitada por

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um de seus criadores, os Estados Unidos da América. As atrocidades e desrespeitos contra os direitos humanos continuam em toda parte do mundo, e países ameaçam declarar guerras contra aqueles que os impedirem de criar suas próprias bombas atômicas, mesmo não assumidamente reveladas, como fazem a Coréia do Norte e o Irã.

Alguns dias se passaram. Tudo parecia normal, um dia tranqüilo como qualquer outro. Levantei-me antes de todo mundo e resolvi preparar o café da manhã. Enquanto a água aquecia, resolvi espiar mamãe em seu quarto. Abri a porta lentamente, para que não acordasse. Quando me aproximei de sua cama notei que mamãe estava suando demais.

-Mutter... Mutter...

Percebendo que ela não respondeu, corri para chamar um médico.

-Hans... Você fez muito bem em ter me chamado... Por pouco sua mãe não infartou.

- Disse o médico após examiná-la.

-Ela vai ficar bem, doutor?-Ja... Mas eu gostaria de conversar com você lá fora. Pode ser?-Podemos.

Deixamos que mamãe descansasse em sua cama e seguimos até a sala, onde o doutor revelou-me sua real situação:

-Infelizmente, Hans, sua mãe não possui muito tempo de vida...

-Doutor!

-O coração da senhora Fischer está muito fraco, à beira de um infarto...

-Não pode ser!

- Exclamei sentando-me ao sofá, chorando, em prantos. Adentrando a sala, ainda sem saber de nada, Anne questionou:

-Hans?... O que houve?

-A senhora é parente da senhora Fischer?

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-Sou sua nora... Anne Fischer.

-Senhora, sua sogra está passando por um momento conturbado de sua saúde... Como explicava ao senhor Hans, o coração da senhora Fischer está muito fraco, não resistirá por muito tempo.

-Gott! E o que podemos fazer para ajudá-la?

-Evitar que ela fique nervosa, e mante-la em repouso.

-Pode ter certeza que faremos o que estiver ao nosso alcanse, doutor.

-Tenho certeza que sim. Agora eu vou indo, e caso precisem, contatem-me com urgência.

-Danke, doutor.

Acompanhei o doutor até a porta, transtornado.

-Não fique assim, Hans... A dona Gisela ficará bem!

-Minha mãe é a única pessoa que me restou nessa vida... Entende?

-Eu imagino como você deve estar se sentindo...

Sentando-se ao meu lado no sofá, ela continuou:

-Quando perdi meu pai para essa guerra, achei também que mais nada no mundo me consolaria, com o tempo fui me conformando... É a lei da vida... A relação dos meus pais também não foi fácil...

-Como assim?

-Meu pai era alemão e minha mãe inglesa. Depois que essa guerra começou, tiveram quês e separar... Mas papai optou pelo exército nazista porque quis... E como mamãe já trabalhava para o governo inglês, decidiu continuar. Foi ai que papai veio morar na Alemanha por conta de sua escolha militar, enquanto eu e mamãe permanecemos em Londres.

-E como conheceu meu irmão então?

-Uma vez que viemos visitá-lo, acabamos assistindo em desfile da Gestapo. Papai estava tão feliz que nos encheu de alegria, e foi nesse mesmo dia que fui apresentado, Patrick e eu.

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Levantando-me do sofá, comentei:

-Vou me arrumar, se não chegarei atrasado no trabalho. Enquanto eu não estiver em casa, cuide bem da minha mãe por mim?-Pode deixar! Agora vou preparar uma sopa de legumes para ela...

Naquela tarde trabalhei bastante, sempre de olho nas notícias dos jornais, na esperança de encontrar alguma pista que me levasse ao Eliezer.

-O que está fazendo, Hans?

- Perguntou meu patrão.

-Estou tentando obter notícias de um velho amigo, senhor Hoffmeister.

-Ele é um refugiado da guerra?-Ja.

-E você já tentou procurá-lo nos campos de refugiados?

Indesejados e desabrigados, os judeus sobreviventes se reuniram na zona americana da Alemanha e da Áustria. Em ex-campos de trabalho forçado, estábulos e campos esportivos, foram criados mais de quinhentos centros para refugiados. Os centros menores poderiam abrigar entre cinquenta e quinhentos refugiados, já os maiores, mais de cinco mil.Os migrantes forçados eram encaminhados para os acampamentos conforme seu país de origem, enquanto os judeus misturavam-se a população geral, da qual incluía ucranianos, lituanos, croatas e estonianos, sendo que muitos desses haviam adentrado na Alemanha durante a guerra para ajudar os nazistas.George S. Patton Jr., general americano, insistia que cada acampamento fosse cercado com arame farpado vigilância dos detentos por guardas armados.Cheguei em casa já havia anoitecido. Segui até meu quarto, abri a gaveta e peguei a echarpe do Eliezer. Quanta saudade! De olhos fechados, o abracei. Era a única coisa que eu tinha do meu grande amor, pois nem um retrato sobrou para registrar sua passagem pela História. Nossas almas estavam tão ligadas que eu conseguia sentir seu calor, seu cheiro, sua respiração ao meu ouvido.

-Hans... Hans!

- Chamava mamãe de seu quarto. Deixei o echarpe sobre a cama e segui até onde ela estava, abrindo lentamente aporta ao mesmo tempo em que questionava:

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-Chamou Mutter?

Estendendo sua mão, ela pedia:

-Aproxime-se...

-Estou aqui, Mutter... Está tudo bem?

-Meu filho... Pode me dar um abraço?

-Mas é claro!

- Respondi abraçando-a.

-Agora estou pronta!

-Pronta? Do que a senhora está falando, Mutter?

-Chegou a hora da despedido, Hans.

Meus olhos encheram de lágrimas.

-Despedida? Do que a senhora está falando?

-Filho... Eu estou partindo...

-Mutter... Não diga bobagens!

Segurando forte em minha mão ela pediu:

-Jamais desista, filho... Jamais desista de seu objetivo.

-Mutter...

-Agora eu já posso ir em paz,

-Pare com isso, Mutter... Não me deixe aqui sozinho...

-Aonde quer que eu vá jamais lhe deixarei...

-Mutter...

-Te amo, meu filho!

-Mutter... Mutter... Não! Não! Mutter...

Assustada, Anne adentrou ao quarto questionando:

-O que houve?

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-Anne... Minha mãe ta morrendo!

-Dona Gisela... Dona Gisela!...

-Temos que pedir socorro!

- Gritei levantando-me.

-Hans... Não adianta! Sua mãe... Faleceu!

Ouvir aquela notícia foi como receber uma facada no peito. Naquele momento eu queria que uma bomba caísse sobre mim, que o chão se abrisse e me levasse em um buraco sem fim.

Ao declarar que era chegada a hora da "solução final", o número de judeus que fugiam para Israel aumentou. Para eles, a Palestina era a Terra Prometida, para onde levaram seu potencial financeiro e tecnológico, iniciando a construção de um país. Mas a região já estava ocupada por uma sociedade de cultura e tradição muito antigas, tanto quanto às dos recém-chegados, com a diferença que, no Oriente, 65% da população era pobres e analfabetas.

Obs: - Com o apoio do Canadá, juntamente com a maioria da Europa capitalista, em 1949 os EUA criaram a OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte), uma aliança militar com objetivo de proteção internacional caso haja um suposto ataque de países do leste europeu. Em resposta à OTAN, a URSS firmou em 1955 entre seus aliados o Pacto de Varsóvia, com intuito de unir forças militares da Europa Oriental. Em pouco tempo as alianças militares estavam em pleno funcionamento, onde qualquer conflito entre dois países integrantes poderia ocasionar em uma guerra nunca vista antes. Naquele mesmo ano (1949) a URSS testava seu primeiro dispositivo nuclear.

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Com o término da Segunda Guerra Mundial, a recém-criada ONU propõe uma divisão da Palestina, tornando-se Estados: um Estado árabe e um Estado judeu. Juntamente com o apoio de países árabes, a União Soviética rejeitam tal proposta. Para os judeus que escapara do Holocausto, Israel tratava-se do paraíso que tanto esperaram, mas para os palestinos, sua ocupação por judeus tratava-se de uma grande injustiça ao permitir que sua terra fosse ocupada por pessoas recém-chegada.Em meio a protestos e recusas, no dia 14 de maio de 1948 foi proclamada a criação do Estado de Israel, assinada por Ben Gurion. Em seguida os ingleses se retiram e, quase que imediatamente, o Egito, Iraque, Jordânia, Líbano e Síria atacam Israel. Mas foram derrotados em poucos meses. Setecentos e cinqüenta mil palestinos tiveram que abandonar o país, passando a ser exilados. Neste êxodo, nascia outro povo. Dava-se início a um novo drama: o dos refugiados palestinos.

Apos a morte da mamãe, Anne foi morar em Londres com seus familiares maternos, enquanto eu vendi nossa antiga casa e me mudei para o Brasil. Durante todo esse tempo, não deixei de procurar um só dia por notícias que me levassem ao paradeiro do Eliezer, todas elas sem sucesso. Na madrugada do dia 13 de agosto de agosto de 1961 as forças armadas bloquearam as conexões de trânsito à Berlim Ocidental. A população acordara com algo até então inacreditável, um muro que dividia a capital em duas, apoiadas por forças soviéticas preparadas à luta, nos pontos de fronteira para os acessos ocidentais. Todas as conexões de trânsito ficaram interrompidas. Assim nascia o famoso Muro de Berlim.

Obs: - O Muro de Berlim tratava-se de uma barreira física, erguida pela República Democrática Alemã(Alemanha Oriental) durante o período da Guerra Fria, circundando toda a Berlim Ocidental e separando-a da parte Oriental. Além de dividir Berlim ao meio, o muro representava a divisão do mundo em dois blocos, sendo República Federal da Alemanha, do qual era controlado pelos EUA. Já o lado da República Democrática Alemã (RDA) era dominado pelos socialistas e simpatizantes do regime soviético.

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Sessenta anos se passaram desde o término do “inferno”. Durante esse tempo, presenciei revoluções. Aquela guerra trouxe muitas mudanças no rumo da História, além das inúmeras questões que até hoje dispertam curiosidade e interesse por curiosos e estudiosos do mundo inteiro. Afinal, como Adolf Hitler conseguiu informações dos judeus naquela época? Obviamente, nos anos de 1930 não havia computadores, porém, já existia a tecnologia Hollerith de cartões perfurados da IBM, onde Edwin Black diz que somente através da assistência tecnológica da IBM, Hitler conseguiu atingir números assombrosos do Holocausto. Durante muito tempo foi dito que a teoria de superioridade da raça ariana fora invenção dos alemães nazistas, porém, uma recente publicação nos Estados Unidos escrita por Edwin Black mostra que não. Tal eugenia foi criada no século XIX na Inglaterra pelo matemático Francis J. Galton, atravessando o oceano até os EUA. Orientado pelo zoólogo Charles Davenport, esse movimento eugenista contou com o apoio de instituições renomadas, como a Carnagie Institution, da qual montou a primeira empresa de eugenia em Long Island. Além disso, contou também com a Fundação Rockefeller e de inúmeros acadêmicos, políticos e intelectuais.

Obs: - Em setembro de 1991 os países bálticos conseguiram sua independência, já em Dezembro daquele mesmo ano a Ucrânia também se tornou independente. Dias depois, mais exatamente em 31 de Dezembro de1991, Gorbachev anunciava o fim da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, renunciando ao cargo que ocupava. Em 1993 a Tchecoslováquia dividiu-se tornando duas nações, República Checa e Eslováquia, extinguindo-se a Tchecoslováquia na chamada Separação ou Divórcio de Veludo.

Ao ser desmascarado pelo genocídio hitlerista, o movimento eugenista baixou aguarda, e mesmo assim por volta dos anos de 1972 até 1976, hospitais de quatro cidades estado-unidenses esterilizaram cerca de 3.406

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mulheres e 142 homens. Além disso, muitas mulheres pobres foram ameaçadas com a perda de benefícios sociais ou até mesmo aguarda dos filhos.

Obs: - Criado pelo britânico Francis Galton em 1883, o termo Eugenia defendia a tese de que a cultura e o conhecimento eram resultados de transmissão genética, e não fatores culturais ou ambientais. Em seu livro "

A Hereditariedade do Gênio" (Hereditary Genius) de 1869, Francis Galton fez um comparativo relacionando o histórico familiar de homens considerados gênios e outros renomados cientistas para demonstrar que todos descendiam de uma privilegiada hereditariedade. No ano de 1907, após introduzir a cadeira de eugenia na Universidade de Londres, Francis Galton fundou a The English Eugenics Society, inspiradora da American Eugenics Society surgida em 1926, da qual pregava a superioridade dos germânicos sobre os demais integrantes da raça branca.

Acordei cedo naquela manhã de 08 de novembro de 2005. Levantei ansioso, otimista, esperançoso. Tomei café da manhã, saboreando um delicioso Strudel de cerejas, como há anos não provava. O relógio da sala marcavam 08h05 quando sai de casa. Tranquei a porta e segui em direção ao ponto do ônibus com minha inseparável bengala. A dificuldade para andar fazia-me caminhar lentamente. Segui em direção ao Jardim da Luz, na esperança de reencontrar o meu amor. Ao chegar na estação de trem já comecei a perceber as mudanças que o tempo trouxe. A estação da Luz toda reformada, moderna. A Pinacoteca fazendo parte do parque , em estilo rústico. Quanta mudança!Cruzei a rua e entrei no parque, emocionado. Tudo estava muito diferente, porém, algo não havia mudado. Lá estava ela, a velha fonte, esquecida pela modernidade, mas recheada de histórias, segredos. Obras de arte se espalhavam por todo o jardim, despercebidas pela pressa das pessoas que por ali passavam. Meu peito doía, e a saudade acumulada em todos esses anos matava-me por dentro. Uma lágrima desceu. A única lembrança que eu tinha do Eliezer era aquele seu echarpe xadrez, porque sua imagem existia apenas em minha memória.

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Aproximei-me da fonte. O dia estava lindo, ensolarado. Os pássaros cantavam como na chegada da primavera, e a brisa leve acariciava minha face cansada e enrugada. De repente o sol deu lugar às nuvens, e uma leve garoa começava se formar. O cheiro de grama molhada se fez presente, trazendo a nostalgia dos velhos tempos de infância. Debrucei-me um pouco para ver aquelas sujas águas da fonte, esquecida por todos. Enquanto observava meu reflexo à água parada, minhas lágrimas se misturavam a elas,desejando o tão sonhado encontro com o meu amor.Naquele momento ouvi chamar meu nome:

-Hans!

Assustei. Aquela voz eu conhecia. Provavelmente era a idade que estava me deixando louco, imaginando coisas. Mas logo a verdade se fez presente. O reflexo da água mostrava-me a imagem de um jovem garoto, o mesmo que deixou o Brasil contra sua vontade e encontrou na Alemanha sua razão de viver. Ali estava refletida entre folhas e lágrimas minha imagem de menino.

-Hans!

- Chamou-me novamente aquela voz.

Olhei para trás e avistei o que parecia um sonho. Lá estava o Eliezer, sorrindo para mim, lindo, todo arrumado como se fosse a uma festa. Naquele momento minha bengala caiu ao chão, e minhas pernas já não doíam mais. Reparei que ao nosso redor tudo estava se transformando, onde senhoras caminhavam com seus longos vestidos e sombrinhas, os homens com seus chapeis, casacos, exatamente como acontecia quando eu o visitava na infância. De longe avistei um bonde passar, cenário exatamente igual ao da década de 1930. Realmente acreditei que estava vivendo um sonho. Aproximando-se de mim, com o sorriso mais lindo do mundo, o Eliezer exclamou:

-Como você demorou! Eu estava te esperando...

-Eliezer... É você?

-Claro que sou eu, bobo!

Caminhei em sua direção, correndo como um menino.

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-Eli!... Eu estou sonhando?

Rindo, ele respondeu:

-Não! É a mais absoluta realidade... A nossa realidade!

Eu já não sentia mais dor nas articulações, apenas uma sensação de alívio no peito. Meu corpo estava leve, e tudo ao que meus olhos alcançavam acompanhou-me no tempo.

-Mas... Não pode ser! Eliezer... Eu morri?

Segurando em minhas mãos ele soltou uma breve gargalhada, respondendo com um sereno tom de voz:

-Não... Você começou a viver agora!

-Hans!

- Chamou-me alguém atrás de mim. Ao me virar avistei mamãe correndo em minha direção.

-Mutter!?

-Filho!...

-Mutter!... Mutter!...

-Você não sabe o quanto esperamos por você!... Quanta saudade!

-Mutter... Como a senhora está bonita!

- Exclamei abraçando-a. Pouco a pouco fui avistando outras pessoas chegarem, e entre elas estavam vovô Peter e a vovó, o senhor e senhora Lovitz, que logo me abraçaram contentes, Patrick,senhor Dirk, quanta gente!

-Eli... Você não tem idéia do que estou sentindo agora...

- Comentei chorando feito criança.

-Eu sei Hans... Eu sinto tudo que você sente. A partir de agora, ninguém mais irá nos separar.

-Não?

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-Não! Eu vim te buscar... Vou te levar comigo!

-Jura!? Aonde vamos?

-Ao reino dos eternos apaixonados, Hans...

Demos um forte abraço, e a partir de então, a concretização do amor eterno. Foi naquele momento que tive a certeza de que um amor verdadeiro, jamais se deixa morrer. A vida é uma passagem, da qual levamos apenas nossa consciência e nosso amor.

Hans Fisher

Considerações Finais

Foi cansativo, trabalhoso, mas valeu à pena. Foram dois anos de dedicação à pesquisas, horas assistindo filmes, documentários, de leitura e revisões. Quando iniciei esse livro, não fazia idéia da repercussão que ela traria.

O Jardim da Luz foi sem dúvida a obra mais longa e complexa que já escrevi até então, e mesmo sendo recheado de detalhes e informações omitidas em nossas aulas de História no colégio, não foi possível detalhar e citar outros acontecimentos dentro desses anos em que a guerra se intensificou, tal como O Dia D e os atentados à Hitler, por exemplo. Ainda existem muitas coisas a serem faladas, mas que não caberiam apenas em 2 livros. Por isso, resumi as informações colhidas ao máximo, transformando-as em um romance repleto de conflitos, tendo a Fome, Dor, Frio e Medo, superados pelo verdadeiro Amor. Eu não entendia o que foi Adolf Hitler, até estudar sua história. Seus ideais começaram a fazer sentido, assim como seus propósitos, e embora eu concorde com alguns, não significa que eu apóie seu método de prática dos mesmos. Todos aqueles que estudam o assunto (Ou sua grande maioria) se fascinam, alguns

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até se arriscam quando se autodenominam Neo-Nazistas, repetindo aquilo que o poder Nazista exerceu de ruim.

A Segunda Guerra Mundial significou muito mais do que o massacre de 6 milhões de judeus. Ela mudou o curso do mundo. É injusto quando citam apenas os Judeus como vítimas desse tenebroso período de conflitos, tendo em vista que milhões de outros inocentes também foram vítimas, violência vinda de todos os cantos do mundo por diferentes motivos. Na época em que a crise na Alemanha levava seu povo à miséria, os judeus eram os únicos que ainda conseguiam manter um bom padrão de vida, porém,recusavam-se a compartilhar o que tinham se não entre eles mesmos. Isso foi uma das revoltas de Adolf Hitler, que considerou a fortuna deles como sendo fruto de exploração dos próprios alemães, tomando conta das casas e famílias germânicas após a derrota do país na Primeira Guerra. Ao seu modo, os Judeus não foram integralmente os mocinhos da história, tendo em vista que muitos se omitiram à condição, contribuíram para os feitos do Führer e até mesmo se aproveitaram da exploração de seu próprio povo.Atualmente, temos o exemplo de Israel e Palestina. Depois de sanções ao país, Israel bombardeou um navio em missão de paz que desafiou seus embargos levando comida para parte da Palestina. Onde está aquele povo pacífico, que fora vítima de atrocidades sem revidar? Onde está a Paz prometida com a criação desse Estado após a guerra?

As respostas do certo ou errado estão dentro de cada um. Reflitam sobre as causas, julgue imparcialmente e assim chegarão às conclusões que jamais pensou um dia existir.