Louise Arquivo Público

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O Arquivo Público do Império como lugar de memória: a administração de Joaquim Pires Machado Portela (1873-1898) LOUISE GABLER * O Arquivo Público do Império (API) foi fundado em 1838, através do regulamento 1 que determinou suas atribuições, no mesmo ano de criação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) e do início do funcionamento do Imperial Colégio de Pedro II, instituições consideradas pela historiografia como elementos difusores do projeto civilizatório da elite dirigente 2 . Entretanto, sua existência já havia sido concebida na Constituição de 1824, em seu capítulo IV, que tratava da proposição, discussão, sanção, e promulgação das leis. O artigo 70 desse capítulo determinava que “Assinada a lei pelo Imperador, referendada pelo Secretario de Estado competente, e selada com o selo do Império, se guardará o original no Arquivo Público, e se remeterão os exemplares dela impressos a todas as câmaras do Império, tribunais, e mais lugares, aonde convenha fazer-se publica” (BRASIL, 1886a). A demora para a implantação do Arquivo Público pode estar relacionada à precária estruturação da administração pública nos primeiros anos do Império. A organização das práticas burocráticas do Estado já era uma ideia antiga 3 , porém a estruturação e especialização das atividades da administração da nova nação só configuraram o modelo burocrático mais especializado 4 , salvo algumas exceções, a partir da década de 1840. Um exemplo disso foi a própria Secretaria de Estado dos Negócios do Império, a qual o Arquivo Público era subordinado, que até 1843, não possuía uma organização formal de sua estrutura central 5 em * * Pesquisadora do Programa Memória da Administração Pública Brasileira (MAPA), do Arquivo Nacional e mestranda em História na Universidade Federal Fluminense. 1 BRASIL. Regulamento n. 2 de 2 de janeiro de 1838. Dá instruções sobre o Arquivo Público provisoriamente estabelecido na Secretaria de Estado dos Negócios do Império. Coleção das Leis do Império do Brasil, Rio de Janeiro, tomo 1, parte II, p58-64, 1860. 2 Sobre elite dirigente ver MATTOS, Ilmar. O Tempo Saquarema. Rio de Janeiro: ACCESS, 1994. 3 Em Portugal a ideia de organização da burocracia remete à administração Pombalina. 4 Entende-se como modelo burocrático mais especializado as práticas de organização da administração pública mais próximas das que conhecemos atualmente, como a divisão da administração por funções; o servidor como um agente do Estado, tendo suas atividades reguladas e regras para o ingresso no serviço público; e a existência de normas e regulamentos que oriente as atividades e os serviços. 5 Ainda em 1842 em uma reforma administrativa instituída pelo decreto n. 256, de 30 de novembro, a Secretaria de Estado dos Negócios do Império tinha a sua estrutura central constituída pelo secretário de Estado,

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Artigo sobre o Arquivo Público do Rj

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  • O Arquivo Pblico do Imprio como lugar de memria: a administrao de Joaquim Pires Machado Portela (1873-1898)

    LOUISE GABLER*

    O Arquivo Pblico do Imprio (API) foi fundado em 1838, atravs do regulamento1 que determinou suas atribuies, no mesmo ano de criao do Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro (IHGB) e do incio do funcionamento do Imperial Colgio de Pedro II, instituies consideradas pela historiografia como elementos difusores do projeto civilizatrio da elite dirigente2. Entretanto, sua existncia j havia sido concebida na Constituio de 1824, em seu captulo IV, que tratava da proposio, discusso, sano, e promulgao das leis. O artigo 70 desse captulo determinava que Assinada a lei pelo Imperador, referendada pelo Secretario de Estado competente, e selada com o selo do Imprio, se guardar o original no Arquivo Pblico, e se remetero os exemplares dela impressos a todas as cmaras do Imprio, tribunais, e mais lugares, aonde convenha fazer-se publica (BRASIL, 1886a).

    A demora para a implantao do Arquivo Pblico pode estar relacionada precria estruturao da administrao pblica nos primeiros anos do Imprio. A organizao das prticas burocrticas do Estado j era uma ideia antiga3, porm a estruturao e especializao das atividades da administrao da nova nao s configuraram o modelo burocrtico mais especializado4, salvo algumas excees, a partir da dcada de 1840. Um exemplo disso foi a prpria Secretaria de Estado dos Negcios do Imprio, a qual o Arquivo Pblico era subordinado, que at 1843, no possua uma organizao formal de sua estrutura central5 em

    * * Pesquisadora do Programa Memria da Administrao Pblica Brasileira (MAPA), do Arquivo Nacional e mestranda em Histria na Universidade Federal Fluminense.

    1 BRASIL. Regulamento n. 2 de 2 de janeiro de 1838. D instrues sobre o Arquivo Pblico provisoriamente estabelecido na Secretaria de Estado dos Negcios do Imprio. Coleo das Leis do Imprio do Brasil, Rio de Janeiro, tomo 1, parte II, p58-64, 1860.

    2 Sobre elite dirigente ver MATTOS, Ilmar. O Tempo Saquarema. Rio de Janeiro: ACCESS, 1994.

    3 Em Portugal a ideia de organizao da burocracia remete administrao Pombalina.

    4 Entende-se como modelo burocrtico mais especializado as prticas de organizao da administrao pblica mais prximas das que conhecemos atualmente, como a diviso da administrao por funes; o servidor como um agente do Estado, tendo suas atividades reguladas e regras para o ingresso no servio pblico; e a existncia de normas e regulamentos que oriente as atividades e os servios.

    5 Ainda em 1842 em uma reforma administrativa instituda pelo decreto n. 256, de 30 de novembro, a Secretaria de Estado dos Negcios do Imprio tinha a sua estrutura central constituda pelo secretrio de Estado,

    Ana Paula CaldeiraRealce

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  • reas especficas de atuao. Desde 1832, de acordo com os relatrios ministeriais, os ministros da pasta j sinalizavam a necessidade de reformas administrativas como forma de otimizar os trabalhos da Secretaria.

    Alm disso, o Primeiro Reinado e as Regncias, foram perodos marcados por conflitos polticos e sociais que polarizavam os grupos conservadores e liberais. Somente a partir da regncia de Arajo Lima em 1837, observa-se uma poltica de carter mais conservador, em direo a uma administrao centralizadora. Essa conjuntura levou ao advento de um projeto de Estado e sociedade baseado na ordem e na civilizao. De acordo com Ilmar Mattos6 a garantia da ordem no seria apenas no sentido coercivo, mas significava a manuteno das estruturas sociais e econmicas vigentes, assim como a difuso da civilizao seria um meio de propagar a razo, o progresso, a unificao territorial e a formao do povo. Com o estabelecimento da ordem, abriu-se caminho para a criao e reformulao de instituies que seriam desse modo, elementos necessrios para a formao de uma nao civilizada, tendo sobretudo, a Europa como paradigma.

    O modelo adotado pelo Arquivo Pblico do Imprio aproximava-se da concepo francesa de arquivos, fator que influenciou, inclusive, sua diviso administrativa. De acordo com o regulamento n. 2, de 02 de janeiro de 1838, o Arquivo brasileiro seria dividido em trs sees: Legislativa, Administrativa e Histrica. Na Seo Legislativa, deveriam ser arquivados os originais da Constituio de 1824, do Ato Adicional de 12 de agosto de 1834, assim como todos os atos legislativos da Assembleia-geral Constituinte e da Assembleia-geral Legislativa. Tambm ficariam sob a guarda do Arquivo, as cpias autnticas de documentos como os atos legislativos das assembleias provinciais, as propostas e mensagens do Executivo Assembleia Legislativa, cartas Imperiais de nomeao dos senadores e tambm as atas das eleies dos senadores e deputados. A Seo Administrativa deveria recolher a documentao relativa aos originais de todos os atos do Poder Executivo, do Poder Moderador, os regulamentos e atos dos presidentes de provncia, a documentao relativa aos bens nacionais, aos emprstimos internacionais, aos assuntos eclesisticos, aos assuntos estrangeiros e de guerra, e tambm dos processos originais do senado.

    um oficial-maior, e funcionrios como oficiais, amanuenses, porteiro, ajudantes e correios a cavalo. No ano seguinte o decreto n. 273, de 25 de fevereiro determinou uma nova reforma, dessa vez criando seis sees, divididas de acordo com os trabalhos da Secretaria.

    6 MATTOS, Ilmar. O Tempo Saquarema. Rio de Janeiro: ACCESS, 1994.

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  • J a Seo Histrica destinava-se ao arquivamento dos contratos de casamento, batismo e bito do Imperador e da famlia real, dos mapas e relaes estatsticas enviadas pelos presidentes de provncias e das correspondncias enviadas e julgadas convenientes para guarda. Tambm era atribuio dessa seo a guarda das cpias autnticas de patentes, assim como planos e modelos das invenes, alm de memrias ou planos oferecidos ao governo sobre a histria do Imprio, sobre o desenvolvimento da agricultura, comrcio, indstria, navegao, cincias e artes. E ainda, a Histrica encarregava-se da preservao de notcias de qualquer provncia relativas a descobertas sobre histria natural, mineralogia, botnica e fenmenos naturais. Ainda que sob a inspirao da organizao dos Archives Nationales, a seo Histrica divergia de sua similar francesa em relao ao contedo do acervo, destinada guarda da documentao anterior ao perodo revolucionrio, na perspectiva de preservao da memria da nao. No Brasil, o arquivo que voltava-se no apenas para a preservao da histria do pas nascente, como tambm para a construo de sua memria, como pode ser observado no regulamento que conferiu suas atribuies7. O regulamento de 1838 determinava, por exemplo, a conservao da documentao da famlia real, mas tambm descobertas e transformaes relevantes no pas, sendo ao mesmo tempo conservador, ao que se prende aos faustos da dinastia, e modernizante, ao demonstrar uma preocupao com o futuro8.

    Apesar das funes do Arquivo Pblico j estarem delimitadas em 1838, o que podemos observar, numa leitura preliminar dos relatrios dos diretores9 nas primeiras dcadas, era que havia uma grande dificuldade para o funcionamento da instituio e para o recolhimento e tratamento do acervo de acordo com as atribuies dadas pelo regulamento n. 2, de 02 de janeiro de 1838. Em 1860, pelo decreto n. 2.541, de 03 de maro, o Arquivo passa por uma nova reforma. A diviso das sees continua a mesma, e as atribuies um pouco mais detalhadas, mas no muito diferentes das do regulamento de 1838. Destaca-se nessa reorganizao a referncia a uma periodizao da distribuio dos documentos: O Ministro

    7 ESTEVO, Silvia Ninita de Moura & FONSECA, Vitor Manoel Marques da. A Frana e o Arquivo Nacional do Brasil. In: Acervo: Revista do Arquivo Nacional, Rio de Janeiro, v.23, n.1, p.83, jan./jun. 2010. 8 Idem. p. 84.

    9 Parte dos relatrios dos diretores do Arquivo no sculo XIX esto transcritos na publicao: CASTELLO BRANCO, Pandi Hermann de Tautphoeus. Subsdios para a historia do Arquivo Nacional na comemorao do seu primeiro centenrio (1838-1938). Rio de Janeiro: Oficinas Grficas do Arquivo Nacional, 1937.

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  • do Imprio expedir instrues sobre a distribuio dos documentos em cada seo, os quais sero divididos em trs classes correspondentes as trs pocas - Brasil colnia - Brasil Reino Unido - Brasil Imprio10. Nesse regulamento tambm aparece o cargo de palegrafo, que deveria ser nomeado por decreto.

    Os trabalhos produzidos sobre o Arquivo Nacional so muito escassos, sendo muitos desses breves artigos e efemrides produzidos na instituio. Dentre as obras pesquisadas, destaca-se o trabalho de Pandi Hermann de Tautphoeus Castello Branco11, na ocasio do centenrio, que buscou elucidar a histria do rgo atravs da transcrio da documentao administrativa, enumerando legislaes, relatrios da direo, fatos e personagens de maior destaque nos primeiros 100 anos do rgo. Atravs de breves comentrios acerca da documentao exposta, o autor traa a histria do Arquivo, entretanto, sem preocupar-se com uma anlise sciocultural.

    Jos Honrio Rodrigues, diretor do Arquivo Nacional entre 1858 e 1964, tambm escreveu um trabalho monogrfico12 sobre o rgo. Ao assumir a direo do Arquivo, Rodrigues deparou-se com diversos problemas na instituio e produziu um estudo, a partir da leitura de todos os relatrios da direo desde 1844, com o objetivo de estabelecer os aspectos fundamentais do problema e encaminhar as solues para que o Arquivo Nacional seja um arsenal da Administrao e possa assegurar ao povo as provas de seus direitos e o acesso legal ao conhecimento e a informao (RODRIGUES, 1959: s. p.). Nesse estudo, o autor relaciona os problemas do Arquivo Nacional com a concepo dos Arquivos Nacionais no sculo XIX:

    No sculo passado quando se criaram ou se reorganizaram os Arquivos Nacionais, por influncia do romantismo histrico, dominava a concepo de que o Arquivo era Histrico e o arquivista deveria ser um historiador. Evidentemente, para o Estado assoberbado de problemas presentes e de preocupaes imediatas, o histrico, a reconstituio histrica, a pesquisa histrica eram uma tarefa louvvel, mas secundria e marginal, ou melhor, no era uma obrigao estatal, mas obra de

    10 BRASIL. Decreto n. 2.541, de 3 de maro de 1860. Reorganiza o Arquivo Pblico. Coleo das leis do Imprio do Brasil, Rio de Janeiro, p. 58, 1860. Art. 7.

    11 CASTELLO BRANCO, Pandi Hermann de Tautphoeus. Subsdios para a historia do Arquivo Nacional na comemorao do seu primeiro centenrio (1838-1938). Rio de Janeiro: Oficinas Grficas do Arquivo Nacional, 1937.

    12 RODRIGUES, Jos Honrio. A situao do Arquivo Nacional. Rio de Janeiro: Ministrio da Justia e Negcios Interiores, 1959.

  • iniciativa privada. As prprias histrias oficiais limitavam-se a reconstruir a obra em que o Estado se empenhou como um todo, como nos casos das duas Guerras Mundiais, ou ainda a favorecer os documentos oficiais das grandes personalidades que dirigiam ou inspiraram o governo, como fazem os Arquivos Nacionais de Washington no seu programa de publicaes (A National Program for the Publications of Historical Documents), apesar de todo seu carter administrativo, ou no Brasil, por exemplo, a Casa de Rui Barbosa. Afora isso, o programa de publicaes dos Arquivos e das Bibliotecas sempre consistiu na divulgao de suas fontes histricas, neste caso, matria primria, no elaborada. A consequncia dessa concepo conhecemos todos hoje: os arquivos foram sendo abandonados e relegados a uma posio inferior no quadro da administrao pblica. A prpria expresso arquive-se ou arquivado significava o encerramento e a consequente imprestabilidade ou inutilidade. (RODRIGUES, 1959: s. p.)

    Segundo a descrio acima, os arquivos nacionais foram criados com o objetivo de tornarem-se um lugar de guarda de documentos que pudessem legitimar e disseminar uma histria oficial. Entretanto, essa viso acaba por generalizar as funes dos arquivos no sculo XIX, se considerarmos as motivaes descritas por Theodore Schellenberg13 ao tratar da criao dos arquivos pblicos.

    O autor enumera quatro razes fundamentais para o processo de institucionalizao dos arquivos. A primeira e mais importante, segundo Schellenberg, foi a necessidade prtica de criao de uma poltica de eficincia governamental. O sentido cultural seria a segunda razo, j que os arquivos pblicos constituiriam uma importante fonte de cultura, sobretudo no que tange os documentos oficiais e a ideia de preservao dessa documentao torna-se uma obrigao pblica. O terceiro motivo seria o interesse de preservar a documentao como valor de prova de relaes sociais, econmicas e polticas. Nesse sentido, utiliza o exemplo da institucionalizao dos arquivos na Frana revolucionria, relacionando-os com a criao de uma nova sociedade em detrimento a do Antigo Regime e deste modo, a documentao preservada funcionaria como instrumento de prova das relaes entre governo e governados, sobretudo as que pudessem justificar os direitos e privilgios recm-adquiridos, assim como os direitos do Estado em relao s propriedades confiscadas. A quarta razo, Schellenberg chama de ordem oficial, afirmando que os documentos so necessrios s atividades do

    13 SCHELLENBERG, Theodore Roosevelt. Arquivos modernos: princpios e tcnicas. SOARES, Nilza Teixeira (Tradutor). 6.ed. Rio de Janeiro: FGV, 2006. p.30-33.

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  • governo, refletindo sua origem e crescimento, sendo sua principal fonte de informao de suas atividades. Sendo assim, os documentos seriam tambm instrumentos administrativos por meio dos quais o governo executa seu trabalho.

    Clia Maria Leite Costa14 em sua tese de doutorado, O Arquivo Pblico do Imprio e a consolidao do Estado brasileiro, buscou relacionar essa instituio ao processo de consolidao do Estado Imperial e construo da nacionalidade, entre 1838 e 1860. Para isso, a autora estudou o tipo de Arquivo criado no Brasil, relacionando sua fundao e funcionamento aos processos de continuidades e descontinuidades da independncia. Alm disso, relacionou o Arquivo Pblico do Imprio a duas outras instituies inseridas na lgica de construo da nacionalidade, numa perspectiva do processo civilizatrio: O Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro e o Museu Nacional.

    A concluso de Costa foi a de que o Arquivo Pblico do Imprio no desempenhou seu papel de instrumento da administrao, visto que no conseguiu recolher plenamente os documentos produzidos pelo Estado, funo que constava em suas atribuies. Alm disso, a instituio no desempenhou a funo de guardi da memria, pois no conseguiu reunir a documentao referente ao passado colonial, necessria a escrita da histria da nao. Esse insucesso explica-se, segundo a autora, pelo modelo de Estado que se formou no Brasil, que mesmo com a independncia, manteve em certos aspectos, as estruturas de Estado vigorantes, dentro de uma certa continuidade15. Nesse sentido, a monarquia ligada Casa de Bragana e a vinculao ainda forte com Portugal, foi responsvel pela presena dos aspectos autoritrios e patrimonialistas no Estado brasileiro. E deste modo, apesar da concepo de um arquivo pblico aberto ao cidado, como os arquivos europeus no perodo, o caso brasileiro foi o de um Arquivo Nacional prximo aos depsitos centrais do absolutismo, tendo o segredo de Estado como poltica. A poltica de sigilo tambm vigorou em outros rgos da administrao pblica, fator que prejudicou a remessa de documentos ao Arquivo Pblico do Imprio.

    Clia Costa segue essa linha de raciocnio afirmando que a poltica de sigilo levou a uma separao da funo de instrumento administrativo de Estado e de guardio da memria

    14 COSTA, Clia Maria Leite. Memria e administrao: o Arquivo Pblico do Imprio e a consolidao do Estado Brasileiro. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Cincias Sociais, 1997. (Tese de doutorado) 15 Costa enfatiza que a questo de continuidade ou ruptura em relao ao perodo colonial uma discusso que ainda divide o debate historiogrfico em relao formao do Estado independente. Para sua anlise, utilizou a ideia de Ilmar Mattos, que engloba os dois aspectos.

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  • escrita da nao. As dificuldades impostas consulta, mesmo de um pblico ilustrado, gerou a necessidade de criao de outros espaos de memria. Isso levou a autora a uma segunda concluso, a de que o Arquivo ficou em segundo plano no que diz respeito construo de uma nacionalidade. Deste modo, o Arquivo Nacional funcionou apenas como detentor dos aspectos legais dessa construo, isto , o recolhimento e a guarda do equipamento jurdico capaz de comprovar a existncia do Estado, particularmente no que toca a sua delimitao fsico-geogrfica, enquanto o IHGB estaria relacionado s dimenses mais culturais dessa construo (COSTA, 1997: 191).

    O trabalho de Clia Costa foi fundamental por sua constatao de que o Arquivo Pblico do Imprio, nos primeiros anos de sua existncia, no exerceu as funes determinadas no momento de sua fundao. Entretanto, seu trabalho limitou-se a uma anlise da instituio at a dcada de 1860. Nesse sentido, o estudo da administrao de Portela, torna-se relevante, pois se observa uma fase de grandes reformas no perodo em que esteve frente da instituio. Em 1874, por exemplo, a sala de consultas foi aberta ao acesso pblico. Portela tambm encaminhou uma proposta de regulamento, que foi aprovada em 1876, pelo decreto n. 6.164, de 24 de maro. Esse ato trouxe grandes transformaes em relao aos regulamentos anteriores, como a criao da Seo Judiciria e a atribuio de adquirir e conservar debaixo de classificao sistemtica todos os documentos concernentes ao direito pblico, a histria e a geografia do Brasil (BRASIL, 1876: 423). O termo classificao sistemtica demonstra a institucionalizao de um plano de tratamento, descrio e organizao do acervo. Nos artigos abaixo, podemos observar a proposta de classificao:

    Art. 21. A classificao ser feita por matrias, seguindo-se em cada matria a ordem cronolgica. Este mesmo sistema ser adotado na organizao dos respectivos catlogos; entretanto haver ndices alfabticos e cronolgicos. Depois de organizados, podero ser impressos estes catlogos, e os da Biblioteca e da Mapoteca.

    Art. 22. Na classificao ter-se-o em vista as trs pocas histricas do pas: - Brasil colnia, Brasil Reino Unido e Brasil Imprio; e empregar-se- um distintivo que bem as extreme. Art. 23. Os livros manuscritos e os documentos que estiverem ilegveis ou danificados sero restaurados por meio de traslados fiis, que sero revestidos das necessrias solenidades para sua autenticidade.(BRASIL, 1876: 423)

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  • O regulamento tambm estabeleceu os procedimentos para a consulta, que dependiam de autorizao prvia para ser efetuada e criou uma biblioteca e uma mapoteca. A biblioteca seria composta pela coleo impressa da legislao, obras sobre direito pblico, administrao, historia e geografia do Brasil. Alm disso, determinou que todas as obras que tratassem de tais assuntos, impressas na Tipografia Nacional, deveriam ter um exemplar remetido biblioteca do Arquivo. J na mapoteca, deveriam estar classificados os atlas, mapas, planos, plantas, cartas geogrficas, hidrogrficas e outras, antigas e modernas, relativas ao Brasil. Tambm determinou que qualquer trabalho desta ordem que se mandasse litografar nas oficinas do Arquivo Militar, ou em outro estabelecimento pblico, deveria ser remetido um exemplar Mapoteca. Um outro aspecto relevante do regulamento de 1876 foi o projeto de instituio de uma aula de diplomtica, em que deveriam ser ensinadas paleografia, cronologia e a crtica histrica, tcnicas de diplomtica e regras de classificao. Alm disso, ainda foi criado o cargo de cronista.

    Percebe-se, a partir do regulamento de 1876, uma iniciativa de melhor organizao e ampliao do acervo, alm de um maior direcionamento em relao preservao e a construo de uma memria nacional, sobretudo pela criao do cargo de cronista e pelo projeto da aula de diplomtica. Alm disso, outras medidas na administrao de Portela caminharam em no sentido de uma maior nfase histria nacional. Em 1886 foi lanada a primeira publicao do API denominada Catlogo das cartas rgias, provises, alvars, avisos, portarias, de 1662 a 1821, existentes no Arquivo Nacional e dirigidos, salvo expressa indicao em contrrio, ao governador do Rio de Janeiro, e, depois de 1763, ao vice-rei do Brasil16. Esse catlogo inaugurou a srie Publicaes Histricas, at hoje existente na instituio.

    Com a proclamao da Repblica, Machado Portela continuou frente do rgo, que mudou sua denominao para Arquivo Pblico Nacional. O advento do novo regime levantou uma discusso acerca do destino dos bens e da memria da famlia Imperial e nesse contexto, cria-se no Arquivo um museu histrico com colees de moedas, medalhas, modelos ou

    16 PORTUGAL. Catlogo das cartas rgias, provises, alvars, avisos, portarias, de 1662 a 1821, existentes no Archivo Nacional e dirigidos, salvo expressa indicao em contrrio, ao governador do Rio de Janeiro, e, depois de 1763, ao Vice-Rey do Brasil. 2 ed. Rev. e melhorada por A Esteves. Publicaes Histricas, 1, 1922.

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  • exemplares de patentes, cartas ou diplomas impressos ou litografados, e mais uma coleo de figurinos, retratos e bustos de brasileiros notveis, estampas de edifcios e de monumentos comemorativos da memria ptria17. A observao dessas transformaes ocorridas no Arquivo na gesto de Joaquim Pires Machado Portela leva a crer que a partir dessa administrao, o Arquivo foi se transformando em um lugar de memria, de acordo com a ideia proposta por Pierre Nora18. Os lugares de memria, grosso modo, seriam:

    (...) lugares, com efeito nos trs sentidos da palavra, material, simblico e funcional, simultaneamente, somente em graus diversos. Mesmo lugar de aparncia puramente material, como um depsito de arquivos, s lugar de memria se a imaginao o investe uma aura simblica. Mesmo um lugar puramente funcional, como um manual de aula, um testamento, uma associao de antigos combatentes, s entra na categoria se for objeto de um ritual [...] material por seu contedo demogrfico; funcional por hiptese, pois garante ao mesmo tempo, a cristalizao da lembrana e sua transmisso; mas simblica por definio visto que caracteriza por um acontecimento ou uma experincia vividos por um pequeno nmero ou uma maioria que deles no participou. (NORA, 1993: 21-22)

    O sentido de aura simblica s teria sido adquirido pelo Arquivo Pblico do Imprio a partir da periodizao proposta nesse trabalho, quando as reformas ocorridas buscaram transformar a instituio em um espao de memria nacional.

    Bibliografia

    BRASIL. Constituio (1824). Carta de lei de 25 de maro de 1824. Manda observar a Constituio Poltica do Imprio, oferecida e jurada por Sua Majestade o imperador. Coleo das leis do Imprio Brasil, Rio de Janeiro, p. 1-36, 1886a. ___ Regulamento n. 2 de 2 de janeiro de 1838. D instrues sobre o Arquivo Pblico provisoriamente estabelecido na Secretaria de Estado dos Negcios do Imprio. Coleo das Leis do Imprio do Brasil, Rio de Janeiro, tomo 1, parte II, p58-64, 1860.

    17 ESTEVO, Silvia Ninita de Moura & FONSECA, Vitor Manoel Marques da. A Frana e o Arquivo Nacional do Brasil. In: Acervo: Revista do Arquivo Nacional, Rio de Janeiro, v.23, n.1, p.94, jan./jun. 2010. 18 NORA, Pierre. Entre memria e histria. Projeto histria. So Paulo: PUC, n.10, p. 7-28, 1993.

  • ___ . Decreto n. 47, de 25 de abril de 1840. Revoga algumas disposies do regulamento n. 2, de 2 de janeiro de 1838. Coleo das leis do Imprio do Brasil, Rio de Janeiro, v. 3, parte II, p. 40, 1840.

    ___ . Decreto n. 2.541, de 3 de maro de 1860. Reorganiza o Arquivo Pblico. Coleo das leis do Imprio do Brasil, Rio de Janeiro, p. 58, 1860. ___ . Decreto n. 6.164, de 24 de maro de 1876. Reorganiza o Arquivo Pblico do Imprio. Coleo das leis do Imprio do Brasil, Rio de Janeiro, v. 1, parte II, p. 423, 1876. ___ . Decreto n. 8.820, de 30 de dezembro de 1882. Aprova o regulamento para execuo de lei n. 3.129, de 14 de outubro de 1882. Coleo das leis do Imprio do Brasil, Rio de Janeiro, p. 636, 1882. ___ . Decreto n. 10, de 21 de novembro de 1889. Altera a denominao do Arquivo Pblico do Imprio. Decretos do Governo Provisrio dos Estados Unidos do Brasil, Rio de Janeiro, v. 3, p. 8, 1889. ___ . Decreto n. 547, de 17 de setembro de 1891. Desliga do Arquivo Pblico a parte do servio que lhe cabe na execuo do regulamento aprovado pelo decreto n. 8.820, de 30 de dezembro de 1882. Coleo das leis da Repblica dos Estados Unidos do Brasil, Rio de Janeiro, v. 2, p. 375, 1891. ___ . Decreto n. 1.580, de 31 de outubro de 1893. Reforma o Arquivo Pblico Nacional. Coleo das leis da Repblica dos Estados Unidos do Brasil, Rio de Janeiro, v. 2, p. 734, 1893. CASTELLO BRANCO, Pandi Hermann de Tautphoeus. Subsdios para a historia do Arquivo Nacional na comemorao do seu primeiro centenrio (1838-1938). Rio de Janeiro: Oficinas Grficas do Arquivo Nacional, 1937.

    COSTA, Clia Maria Leite. Memria e administrao: o Arquivo Pblico do Imprio e a consolidao do Estado Brasileiro. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Cincias Sociais, 1997. 242 p. (Tese de doutorado) ___ . O Arquivo Pblico do Imprio: o legado absolutista na construo da nacionalidade. In Revista Estudos Histricos, Rio de Janeiro, v. 14, n. 26, 2000. DUCHEIN, Michel. Passado, presente e futuro do Arquivo Nacional do Brasil. Acervo: revista do Arquivo Nacional, Rio de Janeiro, v.3, n.2, 0, p.91-97, jul./dez.1988. ESTEVO, Silvia Ninita de Moura & FONSECA, Vitor Manoel Marques da. A Frana e o

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