“LOTES VAGOS”: ENSAIOS SOBRE ARTE E BOTÂNICA

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“LOTES VAGOS”: ENSAIOS SOBRE ARTE E BOTÂNICA Beatriz França Borja, Universidade Federal Fluminense Marise Basso Amaral, Universidade Federal Fluminense Neste trabalho procuramos contar sobre experiências estéticas, dissertando reflexões construídas no encontro com trabalhos artísticos, cujos temas envolvessem plantas. Exercitamos uma narrativa ensaística e propositiva. Não buscamos colocar os trabalhos artísticos em tubos de ensaio e fazer análises explicativas. Apenas tentamos levantar questionamentos, olhar por outros ângulos, (re)significar entendimentos, com a pretensão de pensar possíveis potencialidades pedagógicas da arte para o ensino de botânica. Para começar, faremos uma breve introdução sobre a história da botânica e seu ensino, com o intuito de contextualizar nossa relação com o conhecimento sobre as plantas, e uma breve introdução sobre aproximações entre arte-ciência e arte-docência, mostrando a potência nesses interstícios, para depois apresentarmos um dos trabalhos artísticos estudados. Norteamos nosso trabalho com base teórica nos Estudos Culturais da Ciência, que investigam os processos de construção de conhecimento através de discursos e linguagens culturais, com o entendimento da cultura como parte construtora de sentidos e significados. Esta pesquisa faz parte de um trabalho de conclusão de curso de licenciatura de Biologia e em função dos limites deste texto, decidimos não aprofundar em algumas questões e dissertar apenas sobre um dos três trabalhos artísticos investigados. Contextualizando a Botânica e seu ensino A botânica começou a se constituir como ciência num momento histórico em que emergiam ciências positivistas, sendo um ramo estudado como passatempo ou especialização de alguns médicos (GÜLLICH, 2003). O estudo científico botânico, portanto, foi desenvolvido pela demanda da identificação e da classificação de plantas, sendo norteado pela taxonomia e pela sistemática (GÜLLICH et al., 2004). No entanto, o conhecimento sobre as plantas é anterior ao desenvolvimento da botânica e está presente desde o início da história da humanidade, através do uso de plantas para alimentação, fabricação de ferramentas, vestimentas, uso medicinal e ritualístico (MORTON, 1981).

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“LOTES VAGOS”: ENSAIOS SOBRE ARTE E BOTÂNICA

Beatriz França Borja, Universidade Federal Fluminense

Marise Basso Amaral, Universidade Federal Fluminense

Neste trabalho procuramos contar sobre experiências estéticas, dissertando reflexões

construídas no encontro com trabalhos artísticos, cujos temas envolvessem plantas.

Exercitamos uma narrativa ensaística e propositiva. Não buscamos colocar os trabalhos

artísticos em tubos de ensaio e fazer análises explicativas. Apenas tentamos levantar

questionamentos, olhar por outros ângulos, (re)significar entendimentos, com a pretensão de

pensar possíveis potencialidades pedagógicas da arte para o ensino de botânica.

Para começar, faremos uma breve introdução sobre a história da botânica e seu ensino,

com o intuito de contextualizar nossa relação com o conhecimento sobre as plantas, e uma

breve introdução sobre aproximações entre arte-ciência e arte-docência, mostrando a potência

nesses interstícios, para depois apresentarmos um dos trabalhos artísticos estudados.

Norteamos nosso trabalho com base teórica nos Estudos Culturais da Ciência, que investigam

os processos de construção de conhecimento através de discursos e linguagens culturais, com

o entendimento da cultura como parte construtora de sentidos e significados. Esta pesquisa faz

parte de um trabalho de conclusão de curso de licenciatura de Biologia e em função dos

limites deste texto, decidimos não aprofundar em algumas questões e dissertar apenas sobre

um dos três trabalhos artísticos investigados.

Contextualizando a Botânica e seu ensino

A botânica começou a se constituir como ciência num momento histórico em que

emergiam ciências positivistas, sendo um ramo estudado como passatempo ou especialização

de alguns médicos (GÜLLICH, 2003). O estudo científico botânico, portanto, foi

desenvolvido pela demanda da identificação e da classificação de plantas, sendo norteado pela

taxonomia e pela sistemática (GÜLLICH et al., 2004). No entanto, o conhecimento sobre as

plantas é anterior ao desenvolvimento da botânica e está presente desde o início da história da

humanidade, através do uso de plantas para alimentação, fabricação de ferramentas,

vestimentas, uso medicinal e ritualístico (MORTON, 1981).

Apesar da importância e presença das plantas no cotidiano, tem-se percebido na sociedade

contemporânea, a “cegueira botânica”, que se caracteriza na não percepção visual dos

humanos em relação às plantas, além do não reconhecimento da importância delas na biosfera

e na interação com humanos, da concepção de inferioridade dos vegetais em relação aos

animais, e da falta de interesse e da apreciação estética e da singularidade da forma de vida

desses seres (WANDERSEE & SCHULLER, 2001). Além de uma explicação neurológica –

em que é explicada a dificuldade de perceber as plantas com nosso aparato visual humano –

os autores explicam que quando não damos valor e importância a algo, este algo pode passar

despercebido aos nossos olhos e cérebro.

O Ensino de Botânica tem grande potencial de despertar o interesse sobre as plantas e

possivelmente reduzir a cegueira botânica, porém ele tem sido caracterizado como quase

sempre muito teórico, priorizando a memorização de conteúdos, de maneira

descontextualizada histórica, cultura e ambientalmente e assim, dificultando aos alunos a

construção de relações com seu cotidiano (KINOSHITA et al., 2006; MACHADO &

AMARAL, 2014). Destacamos também que a maior parte das propostas para melhorar esse

cenário é voltada para elaboração de materiais e modelos didáticos e, para a realização de

atividades práticas adequadas à metodologia e à linguagem científicas. A linguagem científica

não abre espaço para questões culturais e coloca obstáculos para incluir os sujeitos

(MACEDO, 2004), por ser estruturada para ser objetiva e neutra (SILVA et al., 2006).

Trabalhar a botânica dessa forma muitas vezes resulta em aulas repletas de termos difíceis, e,

com escassez, do protagonismo das plantas e suas histórias, ou seja, o que falta são “as plantas

'em si', e o porquê de se aprender sobre elas” (MACHADO & AMARAL, 2014).

É importante destacar que a linguagem científica tem sua importância e não deve ser

excluída do ensino de botânica. O que propomos é que ela não deve ser encarada como a

única e a melhor forma pedagógica, pois já existem estudos mostrando a potencialidade das

abordagens culturais para a botânica (FARIA et al., 2011; MACHADO & AMARAL, 2014;

SALOMÃO, 2008). Dessa forma, o ensino de botânica precisa beber de outras fontes para se

inspirar e se reinventar. Nesse sentido a partir dos Estudos Culturais de Ciência, propomos

traçar aproximações com outros campos de conhecimento na investigação por outras

possibilidades de narrativas sobre e de experiências com as plantas.

Arte-ciência

A ciência, sobretudo a taxonomia, está atrelada às artes plásticas na sua trajetória já no

século XVIII, em que era preciso ilustrar a flora e a fauna do novo mundo nas expedições de

naturalistas (FORTES, 2014). A autora Santaella (2012) compara as relações entre arte-

ciência – no Renascimento até a contemporaneidade – e arte-religião – na Idade Média –

mostrando que era praticamente impossível conceber um rompimento entre elas, e que havia

uma subordinação da arte quanto às demais, sendo esta compreendida como uma ferramenta

acessória com papel de registro e documentação.

No transcorrer da Modernidade, ciência e arte começaram a traçar caminhos

diferentes: a ciência caminhava em direção a especializar e especificar suas áreas de estudo,

enquanto que a arte se lançava em direção de um caminho mais autônomo, podendo circular

em diversos campos, incluindo o próprio campo científico (FORTES, 2014). Dessa forma, no

campo das artes começou-se a entender que o artista não está simplesmente em uma posição

da reprodução do que a ciência faz, mas sim na posição de participante ativo da construção de

pesquisa e de conhecimento, traçando aproximações entre arte-ciência (SANTAELLA, 2012).

Apesar da arte ter se aproximado da ciência, o contrário dificilmente ocorre,

caracterizando uma relação assimétrica, tendo em vista que suas leituras de mundo são

distintas (SANTAELLA, 2012). Enquanto que a ciência tenta “decifrar as leis da natureza

para predizer ocorrências futuras”, fazendo uso de “meios de observação acurada, aferição,

experimentação e mesmo simulação do real”, com o objetivo de que seus discursos se afastem

de “ambigüidades, sentidos suspensos e resultados inconclusos”, a arte não pressupõe se

comprometer com o real, pois “ela nasce e se realiza por força dos apelos indomáveis do

imaginário e seu discurso”, e “alimenta-se do impreciso, do incerto, do indecidível”

(SANTAELLA, 2012, p. 109). Assim, o ponto forte estrutural da ciência é seu engajamento

com a investigação da natureza através de métodos rígidos e linguagens próprias, enquanto

que o ponto forte da arte é a criação de modos de enxergar e externalizar mundos existentes

ou possíveis (SANTAELLA, 2012).

Apesar dos diferentes modos de se colocar no mundo, há uma potência da

miscigenação entre arte e ciência, pois mesmo que haja diferenças entre os dois campos, não

se deve descartar suas similaridades, que diz respeito ao teor inventivo e criativo do ser

humano, e que permitem “a capacidade de transcender os constrangimentos da realidade”

(SANTAELLA, 2012, p. 111) e criar novas possibilidades para um mundo que ainda está por

vir (JOUBERT, 2013). Esse pensamento mais holístico de mundo, na qual as fronteiras entre

os campos do saber não são tão nítidas (FORTES, 2014) dá abertura ao interstício arte-ciência

e arte-ciência-educação.

Arte-educação e aproximações com a botânica

Speglich (2012, p. 17) entende que ciência e docência se constituem como uma forma

de arte, no sentido de que cientistas e professores possuem “ação e intensidade de criar”. Essa

“criação” diz respeito à produção de explicações, entendimentos e significados de mundos, “e

não uma atividade meramente descritiva” (SPEGLICH, 2012, p. 17). Loponte (2008) pesquisa

como a arte, principalmente a contemporânea, pode ser interessante à docência, num sentindo

de proporcionar inspiração e reinvenção de olhares que podem estar cegos às belezas e

possibilidades da escola. A autora explica que a relação arte-docência vai ao encontro da

reflexão sobre o saber e o fazer docente, que são constituídos de uma condição estética.

Definir “estética” em palavras fechadas acaba por não abranger todo seu significado,

no entanto Perissé (2009) dá pistas do que se entende desse conceito, explicando que sua

etimologia tem relação com a percepção de mundo pelo sentir. Ele expõe que a experiência

estética pode nos fazer enxergar a beleza das coisas, pode nos transformar, nos fazer enxergar

algo de modo diferente, gerar novos entendimentos e significados sobre o mundo e sobre nós

mesmo, e que pode ser gerada pelo encontro com a arte. Apesar deste encontro possibilitar a

experiência estética, o autor explica que não é o bastante apenas se deparar com a arte, é

necessário estar aberto e atento, numa recepção ativa, sendo importante aprender como o

fazer.

Pensando em experiência estética dessa forma, podemos imaginar o que a arte pode

acrescentar na profissão docente. Para um professor planejar uma aula, além de selecionar os

conteúdos abordados, ele pensa a forma de abordagem daqueles conhecimentos, e escondidas

nessas escolhas há bagagens pessoais, ou seja, sua subjetividade (LOPONTE, 2008). Como a

experiência estética possibilita o autoconhecimento e a transformação de si, o professor que

vive essa experiência, acaba sendo mais capaz de se reinventar, e reinventar seus valores e a

sua aula. A arte nos convida a ser criativos e inventivos, pois nos inspira e transforma nosso

olhar. Um professor que tem a oportunidade de olhar um conhecimento com um olhar

estético, pode pensar abordagens novas e mais interessantes dos conteúdos. Ainda acrescento

com as palavras de Loponte (2013):

Arte e vida fundem-se, ou o modo de ver a vida transfigura-se esteticamente. Nem

tudo é arte, mas qualquer material, sentimento, objeto ou vontade pode

materializar-se em uma produção artística. Por que, então, o campo da educação e

da formação docente não poderia impregnar-se dessas experiências e começar a

produzir diferença em práticas pedagógicas e docentes que insistem em modos

tradicionais de pensar? (p. 15)

Diante disso, é destacável a importância da formação cultural dos professores, pois

para que um professor tenha experiências artísticas e estéticas e transforme sua aula, é preciso

que ele aprenda a experimentar esteticamente. Além de que, a formação cultural dos

professores o estimulam a procurar cultura, e assim aumentam sua bagagem de

conhecimentos, o que pode “potencializar a autoria docente, alimentando a inventividade, a

criação e a ampliação de repertórios” (SAMPAIO & AMARAL, 2015, p. 5).

Assim perguntamos: o que se pretende com o ensino de botânica? Seria o objetivo

desse ensino, somente aprender nomes, classificações e conceitos científicos, ou há outras

possibilidades de aprendizagens que promovam maior interesse no estudo das plantas? É

possível desviar um pouco dos caminhos científicos, adentrando em abordagens culturais e

artísticas para se ensinar botânica? Como reinventar o ensino de botânica por aproximações

com a arte? Pensamos em tentar responder a essas questões não como uma criação de uma

receita a ser seguida sobre o uso de artefatos culturais (e artísticos), mas como uma tentativa

de abrir os olhos para diferentes narrativas – e não obrigatórias – e poder estar atenta aos

potenciais pedagógicos que elas podem apresentar. A partir dessas questões apresentadas, é

perceptível a necessidade de pensar em propostas mais atentas à produção de sentidos para o

ensino de Botânica, e o desafio deste trabalho é pensar o seu encontro com outras linguagens.

Traçando os caminhos da pesquisa

O ponto de partida do trabalho foi tentar realizar aproximações entre arte, botânica e

educação, porém somente após muitas discussões foi possível definir a proposta de investigar

possíveis potencialidades pedagógicas em trabalhos artísticos. Mesmo após a definição do

foco, os modos como os encontros estéticos aconteceriam e o que seria dito sobre eles, só

foram ficando mais nítidos através do aprofundamento de leituras sobre arte, estética, arte-

educação e arte-ciência, e ao longo das próprias experiências estéticas.

Várias estratégias foram traçadas para construir os encontros estéticos, como por

exemplo, escrever palavras, sentimentos e frases que fossem despertadas. Muitas reflexões,

pensamentos, sentimentos, abstrações e até desenhos em cadernos e folhas soltas foram

esboçados. Percebeu-se que essa pesquisa seria um processo, cheio de rascunhos, que teria

que percorrer diversos caminhos, e caminhos que não necessariamente levassem a algo

concreto para a pesquisa, mas que possivelmente poderiam ser importantes para a experiência

estética e assim, para conseguir dissertar sobre ela.

Para procurar os trabalhos artísticos, foram pesquisados em sites de busca, palavras-

chave como “arte botânica” e “arte plantas”, e também buscamos em sites de vídeos e filmes,

palavras-chave, como “plantas”, “botânica”, “árvore” etc. Muitas produções de arte

relacionada às plantas foram encontradas, desde quadros, esculturas, instalações,

performances, filmes, entre outros tipos. Nesse momento foram armazenados os endereços

dos sites, com os nomes e descrições de cada produção artística encontrada, para depois

escolher quais entrariam no trabalho. Além dessa busca virtual, fez-se necessário ficar em

estado de espreita às artes que poderiam chegar espontaneamente. Observar a cidade,

situações cotidianas, os cartazes nas ruas, as sessões de cinema e exposições também fizeram

parte do processo, assim como, dar abertura à possiblidade de artes serem trazidas por outras

pessoas.

Foram escolhidas três propostas artísticas, por trazerem mais reflexões e aproximações

entre arte, botânica e educação, sendo elas: “Lotes Vagos: Ocupações experimentais”, de

Breno Silva e Luise Ganz, “Ervas sp.”, de Laura Lydia e “Years”, de Bartholomäus Traubeck.

Foi preciso conhecer mais sobre cada trabalho, aprofundando as pesquisas, conhecendo os

artistas idealizadores, procurando entrevistas, vídeos, livros, ou seja, criando um convívio

com eles. Deste convívio foi possível refletir, questionar e imaginar, tentando sempre que

possível aproximar as reflexões à botânica e ao seu ensino, e tentando tecer relações com

autores da literatura. Essa relação traçada com os trabalhos artísticos é reconhecida por

Perissé (2009) como “encontro analítico”, o qual se cria um convívio com a arte, conhecendo-

a melhor através de pesquisas.

Como a pesquisa não foi na mesma época e no mesmo lugar em que foram feitos os

trabalhos artísticos, não foram possíveis encontros físicos com as artes, e assim, foi preciso

utilizar outros recursos para conhecê-las e estudá-las. Para estudar os trabalhos foram

utilizados sites, vídeos, blogs, livros e entrevistas, que foram fontes muito importantes para a

investigação, uma vez que havia descrições dos projetos, relatos e reflexões dos artistas e

muitas fotos. Além disso, todos os artistas possuíam um site próprio, com apresentação de

um portfólio de suas produções artísticas e sua biografia, que também foram examinados.

Portanto, foi preciso aprender a examinar esses materiais, perceber os sentidos que ali

permeavam, e para isso foi necessário criar uma forma de investigação própria.

Um desafio grande do trabalho foi fazer um exercício estético, tentar se abrir para

inspirações trazidas pelas artes, tentar se relacionar com o abstrato e tornar isso palpável em

reflexões, não com um tom de análise crítica, mas tentando tecer aproximações entre arte e

ensino de botânica, e ao mesmo tempo, evitando dar um sentido utilitarista e esquivando de

formular receitas para essa relação.

Lotes Vagos – Ocupações Experimentais

“Lotes Vagos: Ocupações Experimentais” foi uma iniciativa dos artistas Breno Silva e

Louise Ganz, realizada em Belo Horizonte (2005-2006), em Fortaleza e Ceará (2008). Este foi

um trabalho de ação coletiva entre artistas e arquitetos, que foi apoiado por Conexão Artes

Visuais, Fundação Nacional de Arte, Ministério da Cultura e Petrobrás. O projeto consiste em

ocupar temporariamente lotes de propriedade privada, que estejam vagos, como terrenos

baldios, e fazer intervenções nos ambientes, transformando-os em outros. Os artistas

procuram pela cidade esses lotes e quando se interessam por algum, comunicam-se com a

comunidade vizinha sobre o projeto e negociam com o proprietário do lote o seu empréstimo

temporário.

Os artistas trazem ideias para transformar o lote, e convidam a vizinhança e

transeuntes para participar. Juntos tiram entulhos, capinam, plantam, trazem objetos e,

sobretudo, trazem ideias de uso daquele espaço. A ideia é transformar lugares vazios,

estagnados, abandonados, em ambientes comuns da vizinhança, onde se possa transitar e usar

de diversas maneiras, como fazer hortas comunitárias, ambientes para tomar sol, se refrescar,

praticar atividades físicas, realizar sessões de cinema, etc. O projeto abre espaço para ideias

novas circularem e se concretizarem pela cidade. Os artistas explicam que o intuito não é de

transformar totalmente o ambiente, de maneira que ele não perca sua característica anterior de

lote vago, pois do vago é que há possibilidade.

Para ilustrar uma das ocupações, vamos nos ater a uma que aconteceu em um lote de

500 m², situado em Belo Horizonte, que foi denominada “100m² [de grama]”. Após

negociarem o empréstimo do lote por três meses, os artistas começaram a se encontrar com os

moradores e juntos chegaram na ideia de um plantio de placas de grama pelo terreno. A

limpeza do terreno foi feita por um serviço de limpeza da prefeitura, e as placas de grama

foram cedidas por uma empresa, que em troca ganhou um anúncio no muro do lote. Algumas

coincidências foram acontecendo ao longo da intervenção, como transeuntes que resolviam

ajudar com ideias novas, o comércio no entorno que se mobilizou doando sanduíches para os

envolvidos, e motoristas de um caminhão que carregava terra que sobrara de uma obra,

resolveram doar para cobrir buracos e partes do terreno. A ideia não era se prender a um

projeto predeterminado, mas que pessoas fossem chegando, e ideias fossem surgindo.

Professoras de uma escola infantil, pais e crianças reuniram-se para pensar em plantios de

flores e hortaliças, fazendo uma bela aula com plantas. Aos poucos as ideias foram

acontecendo, e o espaço antes abandonado e estagnado foi ganhando vida e novos sentidos

para os participantes. Silva e Ganz (2009) enfatizam que o papel deles como artistas é o da

proposição, assim, os 100 m² de grama foram uma forma de ativação do espaço, e os outros

400 m² do terreno ficaram em aberto para os demais participarem e contribuírem com seus

desejos. O que eles trazem com essas ideias é a proposta de novos modos de habitar e de

intervir, não somente em lotes, mas no mundo.

Mas o que isso tem a ver com plantas? Como os lotes vagos são locais abandonados,

normalmente, as plantas e alguns animais acabam tomando conta do espaço, e a ideia do

projeto é que essa natureza seja mantida, podendo ser modificada, para que esses espaços

sejam locais de encontro com a natureza, em plena cidade urbanizada. A intenção é

possibilitar momentos para respirar, momentos de pausa, ócio e prazer, tornando possível o

encontro com as plantas de maneira prazerosa, seja por adentrar em um local onde a natureza

tomou conta, ou por possibilitar a inserção de outras plantas. A experiência estética abre

portas para visões mais poéticas sobre o mundo (PERISSÉ, 2009), e isso sendo relacionado às

plantas poderia gerar maior empatia, e produzir significados e importâncias outras que não

aquelas que observamos hoje, em que há pouca atenção a esses seres.

O projeto “Lotes Vagos” pode proporcionar contato significativo com as plantas para

muitas pessoas, pois as ocupações foram situações que fugiam da rotina comum. Imaginar as

crianças plantando hortaliças em canteiros, pessoas descansando embaixo de uma mangueira,

ou fazendo plantio de gramíneas, nos fazem pensar quantas possíveis histórias essas pessoas

podem contar, quantas pessoas podem se inspirar por essas narrativas e sentirem vontade de

conhecer mais o mundo vegetal, e quantos professores e professoras podem se inspirar para

planejarem suas aulas de botânica. Talvez planejar uma aula no canteiro da escola, no quintal

de alguém, ou em um possível terreno abandonado ao lado da escola. Talvez professores que

levem histórias inspiradoras para suas aulas, como essas das ocupações experimentais, e

encantem seus alunos, estimulando-os a criarem novas possibilidades de relação com o seu

entorno, e com as plantas que os circundam.

Neste projeto também circula a possibilidade da união da cidade urbana, dita como

uma “paisagem artificial”, e a natureza, contrapondo o entendimento da separação entre ser

humano e natureza, no qual não há espaço para as plantas na cidade. A possibilidade de ter

espaços com árvores, gramados, flores e hortas, dá abertura à aproximação das pessoas com

as plantas, e talvez isso possa ser uma maneira de criar outros significados para elas. Espaços

repletos de plantas, emanando verdes e coloridos, dentro de uma cidade predominantemente

cinza, podem acabar ganhando destaque e chamando atenção dos habitantes. “Uma mistura

potente e descontrolada de cidade e natureza. Isso implicaria uma outra lógica de viver, talvez

mais divertida, mais prazerosa” (SILVA & GANZ, 2009, p.16).

Quando se pensa em diferentes formas de se habitar numa cidade e diferentes formas

de se relacionar com a natureza, damos espaço para a construção de diferentes significados e

sentidos, que talvez seja um dos aspectos que estejam faltando ao ensino de botânica.

Carvalho (2004) explica que a educação é também uma forma de “transformar a natureza em

cultura, atribuindo-lhe sentidos, trazendo-a para o campo da compreensão e da experiência

humana de estar no mundo e participar da vida”. Ela explica que o educador tem papel de

mediador e tradutor de mundos, e “está sempre envolvido na tarefa reflexiva que implica

provocar outras leituras da vida, novas compreensões e versões possíveis sobre o mundo e

sobre nossa ação no mundo”, lembrando que não existe apenas uma leitura. Portanto, é de

grande importância o encontro com trabalhos artísticos desse tipo, uma vez que nos traz novas

percepções de mundo, e assim aumentamos nossa bagagem de interpretações, sendo essencial

na nossa formação docente.

Considerações finais

O que buscávamos saber a priori era se o ensino de botânica poderia ser pensado de

outra forma através do encontro com linguagens artísticas. Ao longo do processo da pesquisa

pudemos perceber mais do que isso: a potência da experiência estética pode proporcionar

transformações na nossa formação – como professoras, biólogas e pesquisadoras – ao

encararmos o desafio de lidar com sensações abstratas e sentimentos gerados nos encontros

estéticos para construir reflexões e elaborar dissertações.

Conseguimos nos inspirar pelas artes para pensar em outras narrativas ao ensino de

botânica. Pudemos imaginar outras aulas, outras histórias, outras abordagens que

enaltecessem o protagonismo das plantas e que talvez proporcionassem maior proximidade,

atenção e interesse a elas. Estudando o projeto “Lotes Vagos” conhecemos outras

possibilidades de ocupar a cidade, e de ter contato com a natureza no ambiente urbano. “Lotes

Vagos” nos fez pensar que talvez as aulas de botânica possam acontecer em ambientes

diferentes da escola, em situações cotidianas nas quais não se espera aprender sobre plantas.

Todos os trabalhos investigados mostraram que tentar ensinar botânica com grandes

intenções explicativas e finalidades de transmissão de um conhecimento pronto, talvez não

seja a melhor forma, pois oculta as plantas, que são os protagonistas do assunto. Assim, a arte

se mostrou uma forma de contribuir ao ensino de botânica na criação de outras narrativas em

que as plantas sejam protagonistas, o que conversa com os trabalhos de Machado e Amaral

(2014; 2015) sobre abordagens culturais que protagonizam os vegetais. Dessa forma,

percebemos a necessidade de se investir na formação cultural dos professores, para que se

encoraje a criação de outras narrativas para o ensino, “cultivando um olhar inventivo e menos

conformado pelo que já está dado, pelo que já se sabe”, e assim estimulando o exercício da

autonomia docente (SAMPAIO & AMARAL, 2015, p. 5).

Pensar em educação pela/na arte é não ter uma intenção pedagógica e, ao mesmo

tempo, educar, como explica Larrosa (2014) sobre a intenção dos artistas de apenas dizerem

algo para um possível alguém. Também encaramos nosso trabalho dessa forma, pois

dissertamos sobre arte e educação sem um intuito e espera de que alguém tenhas as mesmas

inspirações e concorde em seguir os mesmos percursos que fizemos. Nossa pesquisa se

assemelha à ideia de Silva e Ganz (2009) quando se dizem artistas que fazem propostas e

convites – a outras leituras, interpretações e proposições.

Além dessas considerações, acrescentamos que através da aproximação entre arte e

botânica, outras percepções foram emergidas acerca de natureza, de meio ambiente, de

diferenças entre urbano e natural, de modos de interagir e intervir com/no mundo, e assim,

outras formas de se fazer e ensinar botânica também foram estimuladas. Como explica

Joubert (2013), essas aproximações entre arte e ciência podem trazer diversas contribuições

ao aumento da capacidade do pensamento humano, por estimularem o exercício de pensar por

diferentes modos, e assim, contribuir na criação de conhecimentos que atendam às demandas

de um mundo que ainda está por vir.

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