Lorena Avellar de Muniagurria_Ganhar o Olhar
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7/22/2019 Lorena Avellar de Muniagurria_Ganhar o Olhar
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SULINSTITUTO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
GANHAR O OLHAR:ESTUDO ANTROPOLGICO DE AES DE MEDIAO EM EXPOSIES DE ARTES
VISUAIS
LORENA AVELLAR DE MUNIAGURRIA
Dissertao apresentada como requisitoparcial para obteno do grau de mestre em
Antropologia SocialOrientador: Prof. Dr. Caleb Faria Alves
Porto Alegre2006
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Diro sem dvida que nada disso caracterstico de nossa cidade e que, em suma,todos os nossos contemporneos so assim.
Albert Camus
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Agradecimentos
Agradeo a meu orientador, Caleb Faria Alves, pela orientao atenta, dedicada,
disponvel e inspiradora. Especialmente, pela combinao de amizade e
profissionalismo. E pelo sbio dosar da abertura, que me permitiu desenvolver um
trabalho prprio, e do norte, que me guiou de maneira segura.
CAPES pelo financiamento, que foi fundamental quando da escrita e
finalizao desta pesquisa.
s equipes de mediadores do Museu de Arte do Rio Grande do Sul, do
Santander Cultural, da 4. e da 5. Bienais do Mercosul, e s suas coordenaes e
assessorias, pela disponibilidade, abertura e ateno que possibilitaram esta pesquisa.
Aos queridos colegas do grupo de estudo, Grazi Dainese, Hel Gravina, Patrcia
Gomensoro e Patrick Laigneau, pela amizade, a troca de experincia e de saberes, o
partilhar de diversos momentos. Vocs foram fundamentais, e tambm uma de minhas
maiores conquistas neste curso.
minha famlia: me, pai, av, irmos, sobrinhas, tios e primos, que ao longo
deste perodo demonstraram seu apoio e estiveram presentes de diversas formas. Muito
obrigada.
s minhas muitas pessoas queridas, todas centrais em minha vida:
Rafael Wild, amigo e companheiro que compartilhou esses anos de cincias
sociais e de mestrado, e de danas, imagens, histrias e pessoas... Obrigada.
Aline Roza, Waldemar, Ricardo Weber, Janice Martins e Letcia Ponso, amigos
queridos que acompanharam muito deste trabalho, e que partilharam de muito mais
tambm.
Aida Leguizamn e Gilda Arra, amigas distantes, mas sempre lembradas e
presentes.
Arlei Damo, Daniel Etcheverry, Janete Ros, colegas e amigos que colaboraram
com materiais, dicas e apoio das mais diversas formas.
Bruno Zorek e Marcos Gref, pela amizade e afeto certos, e pelo apoio no
quando do final deste trabalho, com correo, editorao e impresso.
Mrio Guima, mais do que tudo, pelo exemplo de pessoa e de viver. Saudades.
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Sumrio
Resumo............................................................................................................................VI
Abstract..........................................................................................................................VII
Introduo..........................................................................................................................1
I.1:Mediao, aes educativas e mudanas napromoo da cultura: encontro do pblico com a arte................................1
I.2: Uma antropologia da arte............................. ...................................................9
I.3: O trabalho de campo......................................................................................11
I.4: Estrutura da dissertao ................................................................................13
Captulo 1. A narrativa da arte contempornea...............................................................151.1: Formao de mediadores: a iniciao...........................................................20
1.2: A narrativa da arte contempornea...............................................................26
1.3: As idealizaes da narrativa da arte contempornea ...................................42
Captulo 2. Criar pblico: as propostas eo entendimento geral de mediao..................................................................................47
2.1: Espao institucional, aes educativas e mediao......................................52
2.2: 4. Bienal do Mercosul e o entendimentogeral de mediao em Porto Alegre...............................................................62
2.3: Entendimento geral de mediao, a narrativa daarte contempornea e a arte-educao..........................................................71
2.4: A mediao e o olhar: aproximar o pblicoda arte e a etiqueta da visitao.....................................................................74
2.5: Como despertar esse interesse para o que est do outrolado da 'ponte'? Ah! Isso magia!..............................................................77
Captulo 3. Ganhar o olhar: o fazer da mediao........................................................82
3.1: Quem gosta de pagodinho?: parceria, acionar refernciasdo grupo e criar interesse...............................................................................87
3.2: Vocs viram que j esto descobrindo um monte de coisas?:valorizar o grupo............................................................................................94
3.3: A gente pensava que era fcil, s fazer uns rabiscos!:dificuldade tcnica e levar o artista a srio..............................................106
3.4: Criana tambm assunto srio!Dosarassuntos e interesses...................113
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Consideraes finais......... .............................................................................................119
Referncias Bibliogrficas.............................................................................................123
Outras referncias......... .................................................................................................128
Anexo I Relao das palestras ministradas no Curso de Formao deMediadores para a 4 Bienal do Mercosul...................................................132
Anexo II Qualidades elencadas para a mediao.......................................................134
Anexo III Qualidades elencadas para os momentos da mediao..............................135
Anexo IV Aes apontadas para os momentos da mediao.....................................136
Anexo V Histrico do Santander Cultural e de seu prdio.........................................137
Anexo VI Histrico do Museu de Arte do Rio Grande do SulAdo Malagoli e de seu prdio......................................................................138
Anexo VII Relao das palestras ministradas no Curso de Formao de Mediadorespara a 5 Bienal do Mercosul. Porto Alegre: 2005......................................141
Anexo VIII Ficha tcnica das exposies e das obras referidas.................................143
Anexo IX Lista de figuras..........................................................................................146
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VI
Resumo
O objetivo desta dissertao foi analisar trabalhos de mediao levados a cabo em
exposies de artes visuais na cidade de Porto Alegre/RS entre 2003 e 2005. A figura do
mediador, tradicionalmente pensada como o guia que conduz um grupo de visitantes
em uma exposio, tem ganhado maior visibilidade em nosso pas com a recente
proliferao de eventos artsticos destinados a pblicos massivos e leigos em arte. A
partir de etnografias de cursos de formao de mediadores e dos trabalhos das equipes
de mediao de trs importantes instituies culturais da cena artstica local 4. e 5.
Bienal do Mercosul, Museu de Arte do Rio Grande do Sul Ado Malagoli e Santander
Cultural mostro como, apesar de no existir um modelo nico, existe sim um
entendimento geral de o que deve ser uma ao tal, assim como h um conjunto
freqente de recursos e tcnicas disponveis ao mediador para realizar sua tarefa de
aproximar o pblico da arte. Mostro tambm que este entendimento geral de mediao
articula-se com a narrativa dominante nos espaos pesquisados: a narrativa prpria
arte contempornea. Diversos valores, noes e referncias da arte contempornea se
constituem enquanto princpios do que se entende atualmente por mediao, em
contraposio figura tradicional do guia. Pesquisar aes de mediao realizadas no
cenrio artstico contemporneo foi um modo de discutir questes amplas prprias a
este cenrio tais como as concepes de arte,fruio etc. a partir de casos concretos
e especficos.
Palavras chaves: mediao/monitoria; antropologia da arte; aes educativas em
espaos expositivos; arte contempornea; arte-educao.
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VII
Abstract
The purpose of this study is to analyse mediation work carried out in visual art
expositions in Porto Alegre City between 2003 and 2005. The figure of mediator,
thought traditionally as a guide which leads groups of visitors in an exposition hasgained more visibility in our country, because of recently increasing artistic events
addressed to big and layman public in arts. Through ethnographies of mediators
formation courses and activities of mediation teams in three important local culture
institutions 4thand 5thBienal do Mercosul, Museu de Arte Rio do Grande do Sul Ado
Malagoli and Santander Cultural we can show the existence of a general
understanding of how these actions should be, although theres no a single model of
initiative, as well as there is always a set of resources and techniques available to the
mediator to make public closer to art. We show also that this general understanding ofmediation links to prevailing narrative in institutions analysed: narrative peculiar to
contemporary art. Many values, notions and references of contemporary artconstitute
themselves as principles of what is currently thought as mediation, in opposition to
traditional figure of the guide. To research activities of mediation carried out in
contemporary artistic scenario was a way to discuss broad issues particular to this
context as conceptions of art, pleasure etc. through real and specific examples.
Key-words: mediation/monitory; anthropology of art; educational actions inexpositions; contemporary art; art-education.
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Introduo
I.1:Mediao,aes educativas e mudanas na promoo da cultura:encontro do pblico com a arte
A turma, aps 50 minutos de atraso, finalmente chegou eles se
perderam e ficaram rodando com o nibus pelo campus da Universidade de So
Paulo (USP). Era um grupo de adultos: homens e mulheres, funcionrios da
Prefeitura Municipal de Jundia; dos que mais sofrem, segundo a professora que
os acompanhava porteiros, serventes, etc. Naquele ano 2004 haviam
participado de um programa de reciclagem centrado em arte. Visitar o museu era
a atividade de encerramento. A professora comentava, satisfeita, os frutos do
programa e a liberao (obtida com dificuldade) para traz-los So Paulo, fim
de conhecer o Museu de Arte Contempornea da USP (MAC-USP).
Foram divididos em dois grupos. Fiquei com o que acompanhou omediador chamado Pedro. No hall de entrada, aps recepcionar e cumprimentar a
turma de modo gentil, Pedro sondou se eles j haviam ido a algum museu e
perguntou o que era um museu para eles. Um lugar de coisas antigas, de
preservar a histria responderam. Pedro, com o intuito de situar a visita,
mencionou que ali no MAC-USP se preservava a histria recente, a arte. Ainda
nesta rpida introduo, ele indicou algumas regras da visitao: conversar e dar
opinio importante; no pr a mo nas obras; no ultrapassar as faixas de
segurana; no comer bala nem chiclete; no fazer fotos; anotaes, apenas a
lpis.
E entramos no museu. Aqui onde est localizada a arte
contempornea; no acervo do museu, apresentou Pedro. Estvamos no primeiro
espao, dedicado s obras mais recentes, produzidas a partir da dcada de 80.
Paramos junto a uma delas: uma tela pendurada na parede, que representava
alguns lpis quebrados e apoiados uns nos outros, com algumas inscries ou
gravuras em suas superfcies.1Pedro frente, junto tela e ao lado esquerdo do
pblico que se amontoara em uma espcie de semicrculo, iniciou a conversa:
tratava-se, segundo ele, de uma obra tradicional do ponto de vista do material
era uma pintura.
Vamos observar.
1A obra era A queda dos obeliscos, de Alex Flemming, 1988, acrlica s/ tela, (270,5 x210,0 cm), acervo MAC-USP.
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Depois de aproximadamente um minuto de silncio, ele perguntou:
O que tem inscrito nesses lpis?
Hierglifos respondeu algum do pblico.
So obeliscos continuou o mediador Cs sabem o que ? um
smbolo de poder.
Nesse momento, uma mulher integrante do grupo perguntou: Eles [os
lpis] no esto quebrados, caindo?. A este comentrio, Pedro reagiu com uma
suave risada de satisfao (que pareceu-me mais dirigida para si prprio que parao pblico) e disse: Isso mesmo: o nome da obra 'A queda do obelisco' .
Fiquei impressionada! J na primeira obra, estabelecera-se a dinmica
que (tantas vezes!) ouvi ser uma das mais desejadas e esperadas em uma
mediao e em uma leitura de imagem: dilogo pblico-mediador estabelecido a
partir da obra. Parecera que o pblico o havia descoberto o ttulo a partir do
prprio quadro. E aqui importante ter em mente de que pblico se tratava: dos
que mais sofrem, de porteiros e serventes, a priori leigos em arte que, em sua
maioria, nunca haviam entrado em um museu (mas que fizeram um curso de
reciclagem centrado em arte). Por isso a risada de satisfao do mediador.
E a conversa seguiu sem demoras. Outra pessoa do grupo deu
continuidade leitura, comentando: Escorou um no outro; no caiu totalmente.
Pedro, estimulando e conduzindo a discusso, perguntou por qu.
Porque um segurou o outro.
Existe ento um poder que ainda est a? indagou o mediador.
Figura 1.A queda do obelisco
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Com certeza respondem vrios.
Desde o Egito, ento. O que isso quer dizer?
Muda as pessoas, mas permanece o poder disse um homem do
pblico Mas est caindo.
A discusso, que at esse momento se dava mais entre mediador e
pblico, instaurou-se no seio do grupo: trocaram idias sobre a situao do poder
existente naquele momento, sobre ele estar caindo ou no, e chegaram
concluso de que ele permanecia: Estados Unidos!; Bush!; China!.
Pedro, que observava a troca de idias, retomou a palavra. Fez alguns
comentrios que incorporaram as falas do grupo e, encaminhando para o
fechamento da leitura da tela, perguntou:
interessante uma obra como essa?
Quando voc explica... disse um homem do pblico.
Mas eu expliquei?! Foi a colega que falou que eles estavam caindo.Novamente, discusso rpida dentro do grupo: frases curtas, avaliando a
obra, trocando impresses. A conversa foi interrompida por Pedro que, ante uma
frase que lhe chamou a ateno, manifestou-se: algum havia dito Eu colocaria
na minha sala.
A arte contempornea no exatamente isso que vai buscar retrucou
o mediador, referindo-se avaliao do quadro pautada pelo critrio colocaria
em minha sala. E seguiu: O principal em arte contempornea refletir sobre a
sociedade, sobre o mundo. Lgico que ela tambm busca certa beleza, certa
maneira de comunicar. Escolham uma outra obra.
E o grupo escolheu e se dirigiu obra seguinte: um monte de tule pretosobre um carrinho de mo, no fundo da sala.
Aes de monitoria ou de mediao em exposies de artes visuais: sobre este
fenmeno que a presente pesquisa se debrua. A partir do estudo das aes de mediao
realizadas em trs importantes instituies da cena artstica de Porto Alegre/RS o
Museu de Arte do Rio Grande do Sul Ado Malagoli (doravante Margs), o Santander
Cultural e as 4. e 5. edies da Bienal do Mercosul busco saber como estas aes soconcebidas, como so praticadas e quais os valores e referncias nelas mobilizados.
A descrio acima apresenta um momento de uma visitao que tive ocasio de
acompanhar em outubro de 2004, realizada junto a uma mostra do acervo do Museu de
Arte Contempornea da Universidade de So Paulo (MAC-USP). Eu fazia ento um
trabalho de campo exploratrio sobre as Aes Educativas de algumas instituies
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culturais da capital paulista.2 O intuito era conhecer melhor algumas das referncias
importantes para os trabalhos de mediao que, h alguns anos, comearam a ser
desenvolvidos em Porto Alegre, cidade na qual desenvolvi efetivamente minha
pesquisa. Escolhi iniciar com esta descrio por se tratar de um exemplo extremamente
denso e rico para anlise. Se me permitem a metfora, diria que ela possibilitaapresentar com pinceladas largas uma srie de elementos que veremos surgir ao longo
deste trabalho e que so centrais para o entendimento das aes de mediao e do
cenrio artstico dentro do qual elas ocorrem.
Podemos, por exemplo, identificar vrias das tcnicas freqentemente prescritas
em uma mediao. o caso da sondagem ao pblico para mapear o que seus integrantes
sabem ou pensam em relao a algo (sobre a arte, o museu, uma determinada exposio
ou uma determinada obra etc.). Tambm, o de tentar estabelecer o dilogo com o
pblico e de tentar faz-lo a partir da obra, ou o de conduzir a leitura de imagemequilibrando falas do grupo e intervenes do prprio mediador s vezes o mediador
lanando as idias, outras, ele retomando falas do grupo. Podemos identificar, ainda,
outros elementos, tais como discutir o contedo de uma obra relacionando-o com o
cotidiano do pblico, ou promover que o grupo construa sua prpria interpretao sobre
a obra. E, tambm, conhecer algumas das regras freqentemente presentes em uma
visitao (no tocar a mais clssica e conhecida). Finalmente, nessa leitura de
imagem, encontramos alguns elementos relacionados viso de arte prpria aos espaos
estudados: meno ao tradicional e ao contemporneo, ao que a arte contempornea
pretende (ela no pretende, por exemplo, um efeito decorativo), a que a arte
contempornea est mais preocupada com reflexodo que com beleza(e que, contudo,
a questo da beleza no est totalmente excluda desse universo).3
Todos esses elementos sero trabalhados nos captulos subseqentes (as
referncias artsticas, no Captulo 1; as propostas e tcnicas de mediao, no Captulo
2). Contudo, o que gostaria de destacar, j nesta introduo, so elementos outros, que
possibilitam delinear o contexto atual dentro do qual as aes educativas e as mediaes
ocorrem no Brasil. A partir daquele episdio, podemos vislumbrar uma situao que
cada vez mais freqente no pas. Qual seja: a veiculao, junto a um grande pblico
2As aes educativas visitadas foram as do Instituto Cultural Tomie Ohtake, do Ita Cultural, do MAC-USP, do Museu Lassar Segall, do MASP, da Pinacoteca do Estado de So Paulo, e do Museu deArqueologia e Etnologia da USP.
3 Reservo o itlico para destacar do conjunto do texto as categorias micas. Eventualmente, ainda,utilizo esta marcao quando da primeira meno de conceitos dos autores utilizados.
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leigo, de certos tipos de produo artstica tradicionalmente restritas a poucos, e o
recurso visita mediada como instrumento para viabilizar, facilitar ou qualificar esse
encontro do pblico com a arte.
O que a descrio inicial nos mostra? Uma leitura de imagem. Um momento de
uma visitao na qual um grupo de pessoas leigas em arte, com o auxlio de ummediador, estabelece contato com uma instituio cultural, com uma exposio e com
obras artsticas, descobrindo ttulos, tendo um papel ativo na construo de
interpretaes dos trabalhos, e sendo apresentadas a certos conceitos artsticos e
museolgicos (museu, acervo, curadoria, arte tradicional, arte contempornea, estilo,
tcnica, material, entre outros). Experincias deste tipo acontecem em um contexto de
mudana no entendimento da cultura e no modo de promover e difundir determinadas
produes culturais, contexto este marcado pela proliferao de instituies e eventos
culturais e artsticos no cenrio nacional e pela constante participao da iniciativaprivada no financiamento, patrocnio e promoo de atividades culturais. Os sentidos
atribudos a essa mudana so diversos e, de modo geral, oscilam entre dois plos: de
um lado, considerar que ela corresponde ao aumento da promoo e fomento da
cidadania, dada pela distribuio de bens culturais; e, de outro, que, grosso modo, o
aumento de instituies e eventos se d apenas por interesses econmicos.4
A freqente associao entre cultura e cidadania possibilita que experincias
como a visita de leigos a exposies de artes visuais sejam consideradas como
enriquecedoras por diversos segmentos da sociedade e tm sido cada vez mais
valorizadas.5 comum depararmo-nos com manifestaes que afirmam que o contato
com a arte(a cultura, em geral) enriquecea vida das pessoas, favorece a formao da
cidadania etc.. Seja pela valorizao de fato dessa experincia, seja por marketing
cultural ou por necessidades operacionais (de gerir um pblico massivo dentro dos
espaos expositivos), o fato que a mediaoe as aes educativas so cada vez mais
pensadas como elementos importantes e necessrios em eventos artsticos em especial,
nos que pretendem alcanar grandes nmeros de visitao. A figura do mediador tem
assim ganhado visibilidade e se tornado uma constante em espaos expositivos. As
4 comum considerar os investimentos da iniciativa privada na cultura como meras estratgias decomunicao empresarial (o que se convencionou chamar de marketing cultural)sem preocupao comvalores propriamente culturais e artsticos. Esta presena explicada pelo estimulo gerado por polticasde incentivos fiscais cultura (SOUSA E SILVA, 2000).
5 Tanto governos quanto ONGS ou entidades privadas promotoras de aes culturais associam cultura ecidadania desta forma. Para alguns exemplos, ver: GIL, 2003; IPEA, 2004; UNESCO, 2003.
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aes de mediao so, portanto, uma das aes que ganharam fora e espao no novo
contexto cultural nacional (como promoo de apresentaes, de shows, de concursos, e
de outros eventos e atividades artsticos e culturais, alm de programas e projetos
culturais diversos). A especificidade da mediao em relao a estes outros elementos
advm da relao que ela possui com um cenrio artstico legitimado e reconhecido, eda posio que ela possui nesse cenrio.
Este aumento na promoo de aes de mediao est associado ao referido
aumento da promoo de eventos artsticos. No Brasil, vem-se observando o surgimento
de fundaes culturais ligadas iniciativa privada e a proliferao de eventos e
exposies por elas promovidos (MICELI, 2002; SOUSA E SILVA, 2000). Segundo
Srgio Miceli, tal proliferao est associada entrada de novos agentes institucionais
na cena cultural por exemplo, grandes grupos econmicos que passaram a
consolidar sua presena na rea cultural por meio da criao de fundaes e institutosculturais. Esta srie de novas instituies culturais passou a integrar, conjuntamente com
outras j estabelecidas (muitas delas pblicas, como museus e centros culturais) uma rede
nacional e internacional de espaos culturais e expositivos, entre os quais existem trocas e
circulao de exposies e produes culturais, e tambm de profissionais, modelos de
gesto etc.(MICELI, 2002).
Em Porto Alegre, a partir de meados da dcada de 90, foram criadas diversas
instituies do tipo: a Fundao Iber Camargo em 1995, a Fundao Bienal do
Mercosul em 1996, o Santander Cultural em 2000, o Centro Cultural CEEE ricoVerssimo em 2002, entre outras. Com o surgimento das mesmas, observou-se tambm
na cena local o incremento de eventos artsticos e, conjuntamente, o surgimento e
consolidao de diversas aes educativas na cidade ligadas a estas instituies. A partir
do surgimento destas fundaes, a cena artstica porto-alegrense passou a integrar com
maior intensidade o circuito de circulao e trocas do cenrio nacional mais amplo. De
um lado, as novas instituies disponibilizam espaos que passaram a receber mostras e
exposies que divulgam na cena local a produo artstica nacional e internacional. De
outro, elas tambm tm promovido exposies itinerantes, que so divulgadas em outras
praas do pas e no exterior.6
importante destacar que os eventos de artes visuais (como as Bienais) e as
6Para alguns exemplos e maiores informaes das programaes e atuaes das instituies, ver os sites:www.bienalmercosul.art.com, www.iberecamargo.uol.com.br, www.santandercultural.com.br,www.cccev.com.br
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instituies culturais promotoras de exposies constituem, na atualidade, espaos
centrais do cenrio artstico contemporneo. Segundo o socilogo da arte francs,
Raymonde Moulin, as grandes exposies e eventos internacionais e os museus de arte
so algumas das instncias importantes na construo do valor artstico (MOULIN,
2003).7
Para ele, tamanha legitimidade concedida a estes eventos e instituies graasao aval de especialistas que nelas atuam (curadores, historiadores e crticos de arte,
muselogos etc.) que, com sua participao, homologam o valor artstico, dando-lhes a
credibilidade prpria ao plano esttico (MOULIN, 2003, 41). Tambm Miceli,
tratando especificamente do cenrio artstico brasileiro e das instituies culturais
ligadas iniciativa privada, refere a centralidade dos eventos promovidos pelas mesmas:
[] o acesso aos espaos de exposio ou aos elencos de mostras sobo patrocnio desses grandes investidores institucionais passou aconstituir um dos elementos bsicos de diferenciao para se entender
os rumos e as perspectivas de xito artstico e comercial dos artistas.(MICELI, 2002, 87).
So justamente eventos e instituies desse tipo que costumam contar com
departamentos de ao educativa responsveis pela promoo das visitas mediadas. O
quadro mais amplo dentro do qual podemos situar as aes de mediao , portanto, o
da cena artstica nacional, que integra por sua vez o cenrio artstico internacionalizado.8
O momento que a descrio inicial apresenta, portanto, no foi nico, nem algo
isolado. Em nosso pas, cada vez mais, pessoas fazem visitas mediadas a exposies de
arte. No se trata, contudo, apenas de uma multiplicao em termos quantitativos das
aes de mediao. Observam-se tambm mudanas nas concepes e buscas de
qualificao destas aes, decorrentes da atuao de profissionais das artes, da
museologia e da arte-educao que as tm tomado por objeto de reflexo e estudo.9A
leitura de obra apresentada corresponde a uma determinada forma de recepcionar e
conduzir grupos em visitas a exposies de artes visuais que valorizada por arte-
educadores. Trata-se de um modelo atual de monitoria ou de mediao que pensa a
7 Segundo Moulin, a participao nos grandes eventos artsticos tornou-se uma etapa obrigatria nacarreira artstica do duplo ponto de vista da reputao do autor e do preo das obras e tambmparticipam na elaborao da hierarquia dos valores estticos (MOULIN, 2003, 48)
8 Segundo Moulin e Miceli, hoje, o cenrio artstico mundializado e de natureza cosmopolita. Elecompem-se de uma rede internacional de instituies e eventos culturais que realizam entre si trocas ecirculaes de diversos tipos (de mostras, obras, profissionais, referncias, conceitos etc.) pondo emcontato diversos cenrios locais e nacionais (MOULIN, 2003; MICELI, 2002, 88).
9Alguns exemplos disso so teses e dissertaes produzidas na ECA/USP sobre arte-educao e aeseducativas dentro de museus e espaos expositivos, que discutem qual o papel e o alcance de aes dotipo, quais so ou deveriam ser seus objetivos, quais os meios de atingi-los e quais suas dificuldades elimites (FERRARI, 1999; FRANCOIO, 2000; FREIRE, 1990; GRINSPUM, 1991; SANTO, 2001).
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tarefa de conduo do pblico em um espao expositivo enquanto uma ao
educativa.10 Este modelo pretende se distanciar da idia tradicional do guia que
explica a obra e a exposio para um pblico receptor e passivo. Segundo o
entendimento atual, o mediador no deve seguir um roteiro predeterminado, nem ditar a
leitura da obra, nem transmitir interpretaes pessoais sobre as obras. Tampouco devetransmitir apenas datas e informaes histricas e biogrficas sobre o artista, o perodo
ou o estilo. Deve, sim, tentar estimular e conduzir leituras e discusses de modo a
promover a construo de uma interpretao das obras pelo prprio pblico.
So necessrias, aqui, algumas consideraes quanto natureza do cenrio
artstico em questo. Ao estudar essas instituies, estamos nos debruando sobre
fenmenos artsticos prprios nossa sociedade ocidental contempornea. No entanto, o
sistema artstico integrado por tais instituies no abrange nem inclui toda produo
realizada na atualidade no Ocidente que se pretende artstica e/ou que reconhecida emalguma instncia enquanto arte. Neste mundo artstico11 especfico, a produo
artstica atual reconhecida e legitimada aquela denominada arte contempornea. A
expresso uma categoria micaque no se refere apenas cronologia, mas tambm s
caractersticas estticas das obras. No abrange, portanto, toda a produo de artistas
vivos.12 Destaco ainda que, com o termo contemporneo, refiro-me natureza das
instituies e dos circuitos, e no necessariamente das obras neles expostas e
veiculadas. Mesmo que os objetos artsticos presentes nas exposies sejam, por
ventura, prprios a outros perodos ou a outras sociedades, eles so ali apreendidos no
mbito de um conjunto de instituies e sujeitos ligados a um sistema artstico
institucionalizado que propriamente ocidental e contemporneo.13
10 Em Porto Alegre, utiliza-se o termo mediao para denominar a tarefa de conduo de grupos devisitantes em exposies de artes visuais. Na maioria das outras cidades do pas, utiliza-se o termomonitoria.
11 Mundos artsticos um conceito cunhado por Howard Becker, segundo o qual um mundo artsticocorresponde a uma rede de relaes e de cooperao que inclui o conjunto de pessoas necessrias produo dos trabalhos tidos por essas mesmas pessoas enquanto arte (BECKER, 1982, 34).
12 Segundo Moulin, existe um consenso entre os especialistas da rea de que o nascimento da artecontempornea teria se dado entre 1960 e 1969 (MOULIN, 2003, 39).
13Sally Price, ao estudar a arte primitiva nos centros civilizados (em museus, colees, etc), estuda naverdade a mstica do conhecedor de arte, que prpria ao Ocidente (PRICE, 2000). Assim tambm,consideramos que a natureza do fenmeno artstico que a presente pesquisa aborda (se contemporneoou no, se ocidental ou no...) demarcada pela natureza do circuito dentro do qual ele ocorre, e nopela natureza das exposies ou dos objetos em mostra.
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I.2: Uma antropologia da arte
Entendo uma antropologia que se debrua sobre fenmenos artsticos no como
uma subdisciplina preocupada em criar uma teoria sobre arte independente e, sim,
como a aplicao das teorias antropolgicas gerais e da metodologia prpria rea aos
fenmenos ditos artsticos. Como mencionado por Clifford Geertz, uma teoria da arte, ao mesmo tempo, uma teoria da cultura:
A participao no sistema particular que chamamos de arte s se tornapossvel atravs da participao no sistema geral de formas simblicasque chamamos de cultural, pois o primeiro sistema nada mais queum setor do segundo. Uma teoria da arte, portanto, ao mesmo tempo,uma teoria da cultura e no um empreendimento autnomo.(GEERTZ, 1997, 165)
A sociloga francesa Nathalie Heinich aponta que, de modo geral, desde a
dcada de 60, as pesquisas sobre arte produzidas nas Cincias Sociais mudaram seu
foco, no mais privilegiando o estudo de objetos artsticos propriamente ditos e, sim, ode processos e fenmenos que constituem o que considerado arte. Segundo a autora,
ao lanar mo de mtodos prprios rea (estatstica e etnometodologia) e ao realizar
tal transferncia de foco, estes trabalhos diferenciam-se de forma mais marcada da
Esttica e da Histria da arte, consolidando o estudo da arte como sociedade (HEINICH,
2001, 15). Nas cincias sociais brasileiras, tambm possvel identificar uma produo
que pensa os fenmenos ditos artsticos como propriamente sociais ou seja, como
resultado de processos e interaes sociais no marco de sistemas simblicos.14Trata-se,
portanto, de pensar a arte e seus fenmenos correlatos como resultado de relaes econfiguraes sociais, de interao entre sujeitos no marco de sistemas simblicos e de
significados especficos arte, mas ligados vida social como um todo. Em suma,
como resultado de uma dinmica especfica, porm social.
Para dar conta dessa proposta, a abordagem antropolgica da arte aqui assumida
parte do referencial de trabalhos anteriores desenvolvidos nas Cincias Sociais como
um todo (BECKER, 1982; BOAS, 1996; BOURDIEU, 1996 e 1998a; GEERTZ, 1997;
ELIAS, 1995; PRICE, 2000) e tambm de trabalhos de reas vizinhas como a Histria e
a Psicologia (BAXANDALL, 1991; GOMBRICH, 1986).15 Estes trabalhos
14Para alguns exemplos de trabalhos do tipo, ver: ALVES, 2003; CAVALCANTI, 1995; DABUL, 2001;MICELI, 2003; MICELI, 1996; SCHWARZ, 1998; WEDEKIN, 2000.
15 Refiro aqui a produo de Michael Baxandall, historiador, e de Gombrich, que transitou entre aPsicologia e a Histria da arte, porque eles tiveram grande influncia nos trabalhos sobre artedesenvolvidos nas Cincias Sociais. Baxandall, em especial, referncia fundamental para autores comoCliffort Geertz (1997) e Pierre Bourdieu (1996).
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caracterizam-se pelo esforo em firmar uma abordagem crtica de desnaturalizao da
arte, contrapondo-se a disciplinas que propunham o estudo da arte fechada sobre ela
mesma, como a filosofia esttica.16Seus autores, de modo geral, pretendiam demonstrar
que a arte, a produo artstica, o artista, o olhar e a capacidade de apreciao esttica
so produzidos social e historicamente. Ou seja, so fenmenos sociais que, portanto,devem ser estudados enquanto tais.
Para este trabalho, so especialmente importantes as contribuies de Bourdieu e
de Norbert Elias. A principal dimenso das obras destes autores que apreendendo aqui
a da existncia de uma dinmica social de busca pela distino e reconhecimento, dada
dentro de um sistema de interdependncias entre sujeitos. Os conceitos destes autores
que do conta desta dinmica so, respectivamente, o de campoe o defigurao social
(BOURDIEU, 1989a e 1989b; ELIAS, 2001).
O conceito bourdiano de campo conjunto de relaes entre posies queconfigura um sistema com autonomia relativa, com um habitus, valores e sistemas de
consagrao prprios (BOURDIEU, 1996, 1998b e 1998c) tem sido referncia
fundamental nos estudos sobre arte, e tambm o aqui. Este conceito nos permite
pensar a arte como um sistema simblico que possui uma dinmica especfica, porm
no isolada de outras dimenses da vida social (BOURDIEU, 1989a).
Por sua vez, as reflexes de Elias acerca da figurao social e da etiqueta da
sociedade de corte foram centrais para pensar, luz dos valores do sistema artstico aqui
em questo, os comportamentos considerados adequados de serem adotados em
exposies de arte. Utilizamos, neste trabalho, o termo valores em conformidade com o
proposto por este autor. Segundo ele: nossa escala de valores constitui um elo na
corrente de interdependncias a que estamos submetidos (ELIAS, 2001, 93).
Quando falo em estudar e compreender os valores artsticos mobilizados nas
aes de monitorias, refiro-me assim a esses elos que constroem interdependncia entre
os sujeitos envolvidos nesse cenrio artstico, em funo dos quais eles agem e se
julgam mutuamente (o que arte? o que artista? o que um encontro legtimo com a
obra de arte?), na busca de uma confirmao dos valores ou do acrscimo de ateno e
de importncia aos olhos dos outros (ELIAS, 2001, 94).
16Diversos autores referem tal contraposio e a abordagem essencializante da arte pela filosofia esttica.Entre eles, podemos citar Howard Becker (1982, 39); Pierre Bourdieu (1996); Cliffort Geertz (1997);Norbert Elias (1995); Nathalie Heinich (2001,56).
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I.3: O trabalho de campo
Esta pesquisa teve por objeto um conjunto de aes de mediao que integram o
cenrio de aes educativas em exposies de artes visuais realizadas em Porto Alegre.
O trabalho de campo que embasa esta dissertao constitudo principalmente de
etnografias da formao de mediadores e do trabalho das equipes de mediao de trsinstituies culturais da cidade de Porto Alegre/RS: o Museu de Arte do Rio Grande do
Sul, o Santander Cultural e as 4. e 5. edies da Bienal do Mercosul. A maior parte do
trabalho de campo realizou-se no ano de 2005, com exceo da etnografia da ao
educativa da 4. Bienal do Mercosul, realizada ainda em 2003.17 A caracterizao
especfica dos campos utilizados, das instituies e das mostras especficas trabalhadas,
feita ao longo dos captulos. Apresento aqui apenas um resumo e uma cronologia geral
dos diversos momentos do mesmo.
Na 4. Bienal do Mercosul, de julho a setembro de 2003, acompanhei o Curso deFormao de Mediadores para a mostra. De outubro a novembro do mesmo ano,
acompanhei a movimentao geral, mediaes agendadas e espontneas18no Cais do
Porto, um dos cinco espaos expositivos da mostra.19
No Margs, durante dois meses, de julho a agosto de 2005, acompanhei
sistematicamente os encontros semanais de estudo e formao do Grupo de Mediadores
Voluntrios do museu. Nesta instituio, tive a ocasio de presenciar uma reunio da
coordenao do grupo com os mediadores novos e o processo de aceitao de alguns
candidatos a mediadores. Participei, ainda, de uma viagem de estudos cidade de
Pelotas/RS, alm de observar mediaes com turmas agendadas. Alm dos espaos
17Esta etnografia foi base para meu Trabalho de Concluso no curso de Cincias Sociais da UFRGS,intitulado 4. Bienal do Mercosul: produo, reproduo e mediao no campo artsticocontemporneo, realizado sob orientao do Prof. Dr. Caleb Faria Alves e defendida no incio de 2004.Devido ao fato de que a presente pesquisa um desdobramento desse primeiro trabalho e,principalmente, centralidade que esta ao educativa teve na consolidao do entendimento geral demediao aqui apresentado, parte do material emprico do trabalho de campo anterior foi incorporado presente dissertao.
18Mediaes espontneas so aquelas realizadas sem agendamento. Em geral, correspondem a mediaesindividuais ou com pequenos grupos, dadas quando algum visitante, solicitando informao acerca dedeterminada obra ou da exposio como um todo, encontra algum mediador disponvel, em turmaagendada.
19 A Bienal do Mercosul costuma ocupar diversos espaos da cidade, todos prximos e localizados nocentro da mesma. Em sua 4. edio, ela ocupou trs prdios histricos situados junto Praa daAlfndega: o Santander Cultural, o Memorial do Rio Grande do Sul e o Margs. E ocupou o centrocultural municipal Usina do Gasmetro e os armazns A4, A5, A6 e A7 do Cais do Porto, situados junto orla do Guaba. O Cais do Porto o espao que tinha maior concentrao de obras contemporneas.
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oficiais de estudo e trabalho, partilhei de conversas, cafs e passeios do grupo ou
parte dele.
No Santander Cultural, acompanhei os trabalhos da Ao Educativa da
instituio de meados de julho a finais de agosto de 2005. Alm de observaes de
mediaes, tive ocasio de acompanhar um encontro de formao de mediadores junto coordenadora da ao educativa e assessora pedaggica da mostra em cartaz. Tambm
um encontro de formao de professores para a mostra ento em exposio, e um
encontro com diretores de escolas da regio metropolitana de Porto Alegre que visava
promover as visitas agendadas. Ainda, acompanhei o incio do processo de treinamento
de uma mediadora recm contratada, e diversos almoos e perodos de intervalo com
um ou mais integrantes da equipe.
Na 5. Bienal do Mercosul, durante dois meses, de agosto a setembro de 2005,
acompanhei o Curso de Formao de Mediadores para a mostra. No cheguei a observarde forma sistemtica os trabalhos de mediao realizados durante esta quinta edio do
evento, mas fiz algumas visitas a um dos espaos expositivos novamente os armazns
do Cais do Porto e presenciei alguns momentos de mediaes.
Em todas essas quatro aes educativas, estabeleci contato pessoal com alguns
de seus mediadores. Cafs, intervalos, almoos e eventualmente passeios foram, assim,
momentos integrantes das etnografias realizadas. Alm do acompanhamento sistemtico
dessas aes educativas, tambm realizei contatos exploratrios com outras aes
educativas a da Fundao Iber Camargo/RS20 e diversas da cidade de So Paulo,
como j foi mencionado. Na Fundao Iber Camargo, no cheguei a realizar
observao das mediaes, apenas realizei entrevistas semi-estruturadas com a
coordenadora da Ao Educativa, Mauren de Leon, e com a coordenadora do Projeto de
Catalogao, Mnica Zielinsky (que fora coordenadora do curso de formao de
mediadores para a 4. Bienal do Mercosul). Em So Paulo, tive ocasio de realizar
diversas entrevistas e observaes.21
20
A Ao Educativa do Museu Iber Camargo no foi objeto de estudo aprofundado nesta pesquisa, masintegra o cenrio de aes educativas da cidade de Porto Alegre. Para alm do crculo de profissionaisem arte-educao onde muito prestigiada ela ainda possui pouca visibilidade, devido aos limitesfsicos impostos pelo tamanho de sua sede provisria (a casa da viva de Iber Camargo). Ainaugurao de sua sede prpria est prometida para o ano de 2006.
21 O trabalho de campo exploratrio junto a aes educativas da capital paulista foi realizado de21/10/2004 a 30/10/2004, e incluiu entrevistas semi-estruturadas realizadas com os coordenadores dasmesmas e observao de mediaes. Foram visitadas as aes educativas do Instituto Cultural TomieOhtake, do Ita Cultural, do MAC-USP, do Museu Lassar Segall, do MASP, da Pinacoteca do Estado deSo Paulo, e do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP.
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Na realizao dessas etnografias, lancei mo prioritariamente das tcnicas de
observao e de observao participante junto aos espaos de formao, de trabalho e
momentos diversos junto aos mediadores (intervalos, cafs, almoos e viagens).
Tambm realizei entrevistas semi-estruturadas com os coordenadores das aes
educativas, e anlise de materiais diversos tais como materiais educativos para o pblicoou para o mediador produzidos pelos departamentos de aes educativas, materiais
oficiais das instituies promotoras dos eventos (principalmente da Fundao Bienal do
Mercosul e do Santander Cultural), sites das instituies e matrias divulgadas na mdia
acerca dos trabalhos de mediao.
1.4: Estrutura da dissertao
No primeiro captulo, discuto a delimitao do objeto desta pesquisa luz dos
debates da Antropologia Urbana e, em seguida, apresento as referncias artsticasprprias ao cenrio artstico em questo que informam as propostas de mediao e o
fazer dos mediadores. Apesar de grande parte destas referncias fazer parte do que
chamado de Histria, Teoria e Crtica da arte e do debate contemporneo de
especialistas da arte, no possvel tomar a Histria da arte ou a produo destes
especialistas como diretamente equivalentes s referncias identificadas nos espaos
pesquisados. necessrio pensar em termos de apropriaes especficas e verificar
quais as categorias, os elementos e as histrias particulares deste conjunto mais amplo
de referncias so acionados no contexto em questo. O objetivo neste captulo,
portanto, no fazer uma reviso histrica do desenvolvimento do sistema artstico que
teria redundado na chamada arte contempornea, nem dar conta da produo
especializada da Histria, Teoria e Crtica da arte. Apenas, delinear o conjunto geral de
referncias dentro do qual as aes educativas so concebidas e realizadas, de modo a
que as descries e dados etnogrficos sobre as mediaes propriamente ditas possam
ser melhor compreendidos.
No segundo captulo, apresento inicialmente uma rpida caracterizao das
instituies cujas aes educativas foram pesquisadas (Margs, Santander Cultural, 4. e
5. Bienal do Mercosul) e do perfil de suas equipes de mediao. A partir da anlise das
propostas especficas de mediao em cada uma destas instituies, mostro que, apesar
de no existir uma forma ou modelo nico de mediao em Porto Alegre, existe um
entendimento geral de o que deve ser uma ao tal, assim como existe um conjunto
recorrente de tcnicas e recursos utilizados. Mostro tambm que este entendimento geral
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condizente com a narrativa de arte dominante no cenrio artstico estudado a
narrativa da arte contempornea e que o modelo geral de mediao atual pretende se
distinguir da figura tradicional do guia.
No terceiro captulo, a partir das descries de alguns momentos centrais de
determinadas mediaes, mostro como os diversos condicionantes ao de mediao(as referncias da arte contempornea apresentadas no Captulo 1; as demandas e
recursos institucionais especficos e as referncias da arte-educao apresentadas no
Captulo 2; a mostra e obras disponveis e o perfil especfico do pblico) so acionados
e trabalhados pelos mediadores em sua busca de aproximar o pblico da arte. A seleo
das mediaes trabalhadas foi definida a partir da escolha daquelas que, em conjunto,
melhor ilustraram a existncia de um entendimento geral de o que mediao, mas,
tambm, como esse entendimento geral concretizado no fazer dos mediadores a partir
de condies dadas especficas e distintas em cada instituio.Ao longo dos captulos e nas Consideraes Finais, paralelamente
apresentao das propostas, entendimentos e prticas de mediao, fao uma anlise dos
valores e das concepes sobre arte e sobre fruir arte prprias ao cenrio artstico
contemporneo pesquisado. Mostro como este cenrio corresponde a um universo de
significao especfico, com cosmologia prpria que integra noes especficas sobre o
que arte e sobre o mundo e o tempo atualmente vividos.
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Captulo 1: A narrativa da arte contempornea
No momento de iniciar a escrita deste trabalho, colocou-se a questo de por onde
comear. Deveria apresentar primeiro dados relativos ao de mediao e depois, a
partir deles, construir o cenrio artstico em questo, de modo a no produzir
descolamentos entre a escrita e o detalhamento etnogrfico? Mas, se assim fosse, como
tornar as descries das aes de mediao significativas ao leitor sem antes ter
colocado as referncias que informam todo um ethos e uma configurao artstica
especfica dentro da qual acontecem tais aes de mediao?
Contidas nestas perguntas sobre como comunicar algo sobre a mediao em
exposies de artes plsticash trs questes de fundo, concernentes ao pensamento
antropolgico. A primeira diz respeito s dimenses micro e macro de um
fenmeno social dado. A segunda, delimitao do grupo estudado e do objeto de
pesquisa. A terceira, escrita sobre o outro.
Em relao primeira questo, sabe-se que a antropologia preza a anlise do
micro e que, em grande medida, suas pesquisas tm sido reconhecidas prioritariamente
pelo estudo da dimenso microscpica da vida social. Contudo, reconhece-se a
importncia de se levar em conta tambm o nvel macro, pois existem determinados
condicionantes gerais que precisam ser considerados para uma compreenso adequada
dos fenmenos estudados. A questo da decorrente : como equacionar o etnogrfico
com uma contextualizao mais ampla que tambm necessria para o entendimento de
um objeto de estudo especfico? Marcio Goldmann, por exemplo, ao pensar sobre o
fazer da antropologia urbana e refletir sobre a tenso entre particularismo e
universalismo presente na tradio antropolgica, pergunta: como conciliar a
abordagem microscpica caracterstica da antropologia tradicional com a perspectiva
macroscpica exigida pelo estudo de sociedades de grande escala, perspectiva que no
deixa de caracterizar igualmente a antropologia tradicional quando esta se esfora por
restituir o todo social ou a totalidade da cultura? (GOLDMANN, 1999, 112).
A segunda questo se refere definio dos limites de um grupo ou cultura e
tem implicaes na delimitao e recorte de um objeto de estudo especfico. Neste
sentido, o problema que se coloca para a presente pesquisa sobre mediao a natureza
fluida das fronteiras sociais e culturais nas sociedades complexas e nos espaos urbanos
e os desafios para a anlise antropolgica que dela decorrem. Dado que no possuo
um grupo claramente delimitado, quais so os limites ou fronteiras do meu objeto de
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estudo? Para dar conta dos objetivos a que este trabalho se prope, deveria privilegiar o
estudo das aes educativas ou analisar tambm o cenrio artstico contemporneo? E
dentro deste cenrio, a qual nvel deveria me ater: o local, o nacional ou o internacional?
Na verdade, a preocupao com as tenses micro-macro, ou particular-universal,
esto presentes na disciplina desde os clssicos. A preocupao malinowskiana emperscrutar a totalidade da vida nativa, o conceito de fato social total de Mauss,
construdo a partir da manipulao de extenso volume de dados etnogrficos, e o desejo
de Lvi-Strauss de, a partir da observao emprica, alcanar realidades profundas so
exemplos disso (MALINOWSKY, 1984; MAUSS, 2003, 311; LVI-STRAUSS, 2003,
30).22Mas, com os estudos de antropologia urbana e de sociedades complexas, essas
discusses foram retomadas e aprofundadas. Vrios autores da antropologia urbana
brasileira se debruaram sobre esses problemas (CARDOSO, 1986; DURHAM, 1986;
GOLDMANN, 1999; VELHO, 1994, 1997a e 1997b).23 Dentre estas produes, asformulaes de Gilberto Velho e o modo como ele se apropria do interacionismo
simblico so de grande proveito para pensar um objeto de estudo como o que aqui se
apresenta.
Velho aborda a questo nos termos de um dilema entre unidade e continuidade
dos sistemas sociais. Para o autor, este dilema uma questo central e recorrente na
disciplina, e se instaura com especial fora nos estudos de sociedades urbanas e
complexas (1997a, 7). Segundo Velho, a existncia de tradies diferentesdentro de
uma mesma sociedade coloca o problema da comunicao entre seus grupos e
segmentos. Esta comunicao no nula, mas tampouco absoluta:
Tomando-se como referncia qualquer sociedade, poder-se-ia dizer
22Quanto a essa questo, na antropologia social britnica, por exemplo, caracterstica a conciliao datradio empirista do trabalho de campo com a preocupao da reconstituio do conjunto de umsistema social dado (MALINOWSKY,1984; RADCLIFE-BROWN, 1973; LEACH, 1996). Naantropologia francesa, o conceito maussiano de fato social total abriu caminho para recompor o todosocial (MAUSS, 2003, 311). Exemplo disso sua tentativa de, a partir de dados etnogrficos sobre opotlache outros tipos de trocas, pensar a troca como um princpio geral presente em distintas sociedadeshumanas. Por sua vez, mesmo para Lvi-Strauss, cuja produo se caracterizou pela busca da construo
de grandes teorias e explicaes estruturalistas, a etnologia se dedica a estudar grandes questes (porexemplo, a relao indivduo e sociedade) a partir de coisas pequenas e cotidianas. Segundo ele, nesseestudo, no h nada de ftil, nada de gratuito, nada de suprfluo (2003, 12).
23 Diversos autores apontam que a origem da dificuldade em equilibrar o nvel etnogrfico e o geraladvm da tradio da antropologia clssica. Ao ter trabalhado prioritariamente com sociedades depequena escala e culturas relativamente homogneas, a antropologia clssica tendeu a pensar as culturasou sociedades enquanto totalidades fechadas, unidades independentes, auto-suficientes e isoladas(CARDOSO, 1986; DURHAM, 1986; GOLDMANN, 1999; VELHO, 1997a, 1997b). Todavia, estaconsiderao deve ser relativizada, pois, como j foi mencionado aqui, a preocupao com as relaesmicro-macro e particular-universal est presente na disciplina desde os clssicos.
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que ela vive permanentemente a contradio entre asparticularizaes de experincias restritas a certos segmentos,categorias, grupos e at indivduos e as universalizaes de outrasexperincias que se expressam culturalmente atravs de conjuntos desmbolos homogeneizadores paradigmas, temas etc. Na realidade,esse , por excelncia, o problema bsico da prpria existncia do quechamamos de cultura: o que pode ser comunicado? Como asexperincias podem ser partilhadas? (VELHO, 1997a, 18-19).
Tal qual Velho e, assim como ele, inspirada nos trabalhos de Clifford Geertz,
concebo a cultura como uma comunidade de sentidos e a dinmica que lhe prpria
como um processo de comunicao que requer o compartilhamento em maior ou menor
grau de redes de significado (VELHO, 1994 e 1997a; GEERTZ, 1978).24 As aes
educativas que aqui proponho estudar existem dentro de um contexto urbano e social
mais amplo; defrontamo-nos, portanto, com a impossibilidade de pensar a total
separao entre os grupos e nveis em questo (arte-educadores, artistas, curadores etc.;
e nveis local, nacional e internacional). Ao mesmo tempo, defrontamo-nos tambmcom a inexistncia de uma unidade homognea. O que se observa so distintos graus de
familiaridade e de compartilhamento de referncias, cdigos e valores. As fronteiras
entre os grupos, dadas pelo compartilhamento de referncias especficas, so, portanto,
fluidas o que propicia uma alta dinamicidade e instabilidade na definio das mesmas.
Quem vive a illusio do campo artstico e quem no? Quem vive o mundo da arte
contempornea e quem no? Seguindo as recomendaes de Velho (VELHO, 1994,
25), devido maleabilidade e fluidez das fronteiras inter-grupais, mais do que construir
mapas socioculturais fixistas, interessa pensar a definio das fronteiras dos grupos e dopertencimento aos mesmos enquanto um jogo dinmico de papis e de identidade. O
desafio que se coloca, portanto, o de encontrar as continuidades e as descontinuidades
no compartilhar de referncias: trata-se de pensar as continuidades e descontinuidades
entre as particularizaes de experincias restritas dos sujeitos com os quais tratei de
modo mais direto (em especial mediadores e arte-educadores, mas tambm alguns
curadores, artistas, pblico e outros) e os paradigmas homogeinizadores e
universalizantes atuais sobre arte.
24 Para formular seu entendimento semitico da cultura, Clifford Geertz inspira-se em Max Weber(GEERTZ, 1978, 15). Weber referncia clssica nas Cincias Sociais como um todo. O seu conceitode ao social definido como uma conduta humana dotada de um significado subjetivo dado por quemo executa, o qual orienta seu prprio comportamento tendo em vista a ao de terceiros. A explicaosociolgica, para Weber, busca compreender o carter social das condutas humanas: ou seja,compreender o sentido, o desenvolvimento e os efeitos da conduta de um ou mais indivduos referida do outro. Explicar, numa acepo weberiana, seria portanto captar e interpretar a conexo de sentidoem que se inclui uma ao (WEBER, 1964, 9 e 18; QUINTANEIRO, 1995, 107).
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Para dar conta deste problema de delimitao do grupo e do objeto de pesquisa e
de como equacionar a experincia local com um quadro mais amplo e abrangente que
so as referncias mais universalizantes da arte , lano mo de dois recursos terico-
metodolgicos. Um deles j foi apresentado: seguir as redes de compartilhamento de
sentidos. Isto significa que, na medida em que a narrativa sobre arte, prpria a umcenrio artstico mais amplo, informa os conceitos e as prticas de mediao, ela
tambm objeto desta pesquisa. O outro recurso, inspirado no conceito de art world de
Howard Becker (1982), atentar para as redes de relaes concretas e objetivas, tanto
pessoais quanto institucionais, envolvidas na produo social do objeto em questo a
mediao em exposies de artes visuais. Se, por um lado, s possvel estudar o
cenrio (um art world) a partir de um ponto de observao e de entrada especfico, por
outro, este ponto apenas compreensvel a partir da (re)construo do cenrio como um
todo e da posio deste ponto nesse cenrio.25Trata-se, portanto, de estudar um circuitode aes educativas que identifico existir em Porto Alegre.26
A terceira questo como escrever sobre o outro tambm pode ser pensada
com Gilberto Velho e Clifford Geertz como referncias. Se pensarmos a possibilidade
de comunicao,no sentido que Velho dava ao termo possibilidade de dar a conhecer
a algum um conjunto de referncias novo e especfico , pensar a escrita do trabalho
equivale a pens-la em termos propriamente antropolgicos: como escrever sobre o
outro. Segundo Geertz, o que impede a compreenso imediata dos sentidos atribudos
por sujeitos outros s suas aes (ou s aes dos outros, aos objetos e elementos
presentes em seu mundo etc.) a falta de familiaridade com o universo imaginativo
dentro do qual os seus atos so marcos determinados ou seja, a falta de familiaridade
25 As Cincias Sociais j chegaram concluso de que estes nveis no existem isoladamente um dooutro. Assume-se que essa dicotomia entre micro e macro, assim como outras (local e global, indivduoe sociedade etc.), so resultado de uma operao analtica, mas no dados de realidade. Alm dasreferncias j apresentadas de antroplogos que trataram esses temas, importante destacar acontribuio dos trabalhos de Pierre Bourdieu e de Norbert Elias, que com seus conceitos de habitus ede campo ou configurao social construram referenciais tericos que possibilitam operacionalizaranlises no dicotmicas (BOURDIEU, 1996a, 1989b; ELIAS, 1994, 1997 e 2001).
26A Ao Educativa do Museu Iber Camargo que tambm integra este circuito, posto que existemtrocas e referncias mtuas entre os profissionais ali atuantes e os das outras aes educativaspesquisadas no ser aqui trabalhada. Um estudo que inclusse a anlise desta ao certamente seriaproveitoso e cooperaria no entendimento do circuito de aes educativas de Porto Alegre e doentendimento de mediao ali presente. O trabalho desta ao educativa, contudo, apesar de ser muitovalorizado por integrantes das outras aes educativas, tem ainda pouca visibilidade para alm dasmesmas: o museu ocupa um espao fsico restrito, na casa da viva de Iber Camargo, pequeno e dedifcil acesso, no tendo uma visitao massiva como acontece nas outras instituies aqui pesquisadas.Esta situao provavelmente ser alterada quando da inaugurao da sede prpria do museu, prometidapara 2006.
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com sua cultura especfica (1978, 23). O antroplogo, para dar conta de seu objetivo
o alargamento do universo do discurso humano deveria primeiro apreender seu
objeto (as estruturas de significao a partir das quais as aes humanas tm sentido)
para, depois, apresent-loem uma descrio densa (1978, 20 e 24).
Com essas questes em mente, e para resolver o problema de como dar aconhecer ao leitor o universo das aes educativas e do cenrio artstico pesquisado,
tentei repassar os diferentes momentos de meu trabalho de campo, de minha trajetria
de aproximao mediao e de pesquisa dessas aes educativas em grandes
exposies de arte. Meu intuito com esse exerccio foi refletir sobre o que observei e
acompanhei, e a pergunta que nele me guiou, a seguinte: o que foi pesquisar mediao?
Muito mais do que estudar o momento da conduo de um grupo visitante a uma
exposio, pesquisar aes de mediao foi acompanhar mediadores e arte-educadores
em uma srie de espaos e situaes. Foi observar os espaos oficiais de formao demediadores, tais como cursos, palestras ou grupos de estudo; tambm espaos informais
de trocas de opinies e informaes, sua convivncia antes e depois das mediaes
propriamente ditas, suas conversas durante almoos, cafs e caminhadas at o ponto de
nibus. Foi ainda conhecer alguns dos livros que lem, alguns dos especialistas que
reconhecem, quais as exposies que assistem, que obras gostaram, que palestras lhes
agradaram, quais suas opinies sobre notcias ou comentrios feitos s aes educativas
etc.. As histrias que ouvi, portanto, no foram apenas sobre mediaes; foram tambm
sobre exposies, obras, artistas, curadores e instituies.
Com essa pequena retrospectiva, constatei que, ao pesquisar aes educativas e
mediao e freqentar esses diferentes espaos e momentos, fui iniciadaem uma srie
de referncias artsticas adentrei em uma nova provncia de significado,27 com um
conjunto de referncias especficas, qual seja, a da chamada arte contempornea.
Veremos, ao longo deste trabalho, que estas referncias informam o entendimento geral
de mediao presente na cidade e so freqentemente acionadas na prtica dos
mediadores. Algumas dessas referncias da arte contempornea chegam inclusive a
constituir-se enquanto princpios que regem a mediao. , portanto, fundamental
apresent-las neste trabalho.
27 Provncia de significados um termo que Gilberto Velho toma de Alfred Schultz, e designa umdomnio social especfico dentro do qual existe o compartilhamento de sentido e de referncias(VELHO, 1994).
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Por que, na mediao descrita na introduo, Evandro ficou to satisfeito quando
o pblico descobriu o ttulo da obra? O que ele queria dizer com Lgico que ela [a
arte contempornea] tambm busca certa beleza, certa maneira de comunicar? O
pblico no havia falado nem em beleza nem em possibilidade de comunicao: esses
foram elementos que o mediador acionou a partir da fala de um integrante do pblico Eu colocaria na minha sala. Qual a relao especfica que Evandro estabeleceu entre
esses elementos e este modo de avaliao da obra observada? O sentido exato destas
falas e aes no est dado de forma imediata. De fato, apenas ser possvel apreender
os sentidos das aes e falas feitas pelos mediadores durante as visitaes se soubermos
o que eles consideram que arteou arte contempornea; qual o valor e o sentido desta
arte especfica em relao a outros tipos de produo artstica; qual o ethose a imagem
a ela associados; o que se espera de uma obra de arte, do artista, do mediador, do
pblico; etc..Meu objeto de estudo extrapola, portanto, o que poderia ser entendido enquanto
mediao de forma mais imediata. Ele inclui esse quadro referencial, assim como a
(re)construo do cenrio artstico no qual ela se d pois apenas a partir destes
elementos que a descrio de uma leitura de obra tal qual a apresentada pode tornar-se
significativa.
1.1: Formao de mediadores: a iniciao
Retomo, ento, a idia que central: o que foi estudar mediao? Foi uma
iniciao em um domnio ouprovncia de significadosespecfica: o universo das aes
educativas realizadas em grandes exposies de artes visuais voltadas a um pblico
massivo. Neste captulo, meu intuito apresentar o conjunto de referncias especficas
prprio a este domnio. Considero, aqui, o conjunto de referncias dominante resultante
da convergncia dos sentidos das enunciaes, falas e aes de diversos sujeitos
autorizados (historiadores, crticos e especialistas em arte em geral) durante os cursos de
formao de mediadores para as 4. e 5. edies da Bienal do Mercosul. Lano mo,
portanto, de parte de minha experincia de iniciao. Se utilizo aqui este artifcio no
apenas em um sentido metafrico, nem uma escolha aleatria. Tal escolha se deve a,
pelo menos, trs motivos.
O primeiro deles que apresentar a relao intersubjetiva a partir da qual se deu
o processo da pesquisa pode ser uma ferramenta para apresentar certos elementos do
grupo e objeto estudado uma vez que parte do trabalho do antroplogo corresponde
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iniciao em um novo universo de sentidos e que, nesse empreendimento, sua
subjetividade uma instrumento de pesquisa (CARDOSO, 1989, 101; DA MATTA,
1978; DURHAM, 1989, 33; GEERTZ, 1978; VELHO, 1997b). O segundo que,
conforme veremos ao longo deste trabalho, a iniciao no gosto pela arte um
elemento central no cenrio artstico em questo e, em especial, nas aes educativas.(Veremos no prximo captulo que uma das principais tarefas que se coloca para a
mediao iniciar o pblico leigo no gosto pela arte, no hbito da visitao a
exposies e na leitura de obras de arte). O terceiro que parte importante dos trabalhos
de campo que embasam esta pesquisa foram realizados em espaos e momentos de
formao de mediadores formao esta que, para muitos deles, constituiu tambm sua
iniciao nesse conjunto de referncias.
O primeiro trabalho de campo que realizei para esta pesquisa foi no Curso de
Formao de Mediadores para a 4. Bienal do Mercosul, em 2003. Ele constituiu ummomento inicial e central no processo do meu adentrar no conjunto de referncias
prprio ao cenrio artstico em questo. Contudo, ele no foi o nico: a narrativa sobre
arte que pretendo apresentar aqui foi enunciada a todo momento, em diferentes espaos
e de diferentes formas, nas falas e aes de diversos sujeitos pertencentes a este cenrio
(em palestras de especialistas; em textos de Histria, Teoria e Crtica de arte; nas
propostas curatoriais; nos depoimentos de artistas, de estudantes de arte, de mediadores
e de arte-educadores; etc.).
Nesse curso, durante trs meses, assisti aos encontros semanais junto a um grupo
de futuros mediadores.28Quem eram essas pessoas? Como j foi mencionado, no todos
os alunos eram iniciados em arte. Estudantes universitrios, aproximadamente um tero
deles era das Artes Visuais. O resto era de cursos diversos: Histria, Arquitetura, Artes
Cnicas, Letras, Jornalismo, Cincias Sociais, Design, Pedagogia, Psicologia, entre
outros. Os estudantes de artes estavam mais familiarizados com as questes tratadas no
curso e com o vocabulrio empregado, mas no possvel considerar que
compartilhassem desse universo de cdigos e referncias na mesma medida. Dentre os
28Em trabalho anterior, analisei a proposta de mediao e o Curso de Formao de Mediadores para a 4.Bienal do Mercosul (MUNIAGURRIA, 2004). O curso realizou-se entre 23 de junho e 2 de outubro de2003. Iniciou com aproximadamente 200 alunos, estudantes universitrios de reas afins propostacuratorial da mostra, divididos em duas turmas turno manh e turno noite. Os encontros eram, emgeral, semanais, e ocorriam no prdio do Santander Cultural. Foram duas etapas. Uma primeira, maislonga, constituiu-se de palestras ministradas por especialistas nas temticas propostas para cadaencontro. Na segunda, mais curta, tratou-se especificamente de conceitos e tcnicas de mediao, sob oformato de aulas prticas. Ao longo deste captulo, terei ocasio de retomar e aprofundar algumas destasinformaes. Para os nomes das palestras e dos especialistas convidados para proferi-las, ver Anexo I.
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alunos que no eram das artes, muitos no tinham grandes referncias sobre arte ou arte
contempornea foco da exposio. Possuam sim um perfil especfico e desejado:
estudantes universitrios da rea das humanidades que, acreditava-se, tinham algum
interesse em arte, mesmo que vago.
Assim como a maioria, eu tambm no era estudante de artes. No era iniciada,mas j possua algumas referncias sobre o assunto, alm de simpatia por arte e por arte
contempornea. Em 2001, fiz um curso de Introduo arte contempornea na Casa de
Cultura Mrio Quintana, ministrado por Janice Martins.29Por ocasio de um trabalho
para uma disciplina de Histria, li alguns livros sobre arte moderna: Teorias da arte
moderna de H. B. Chipps, Conceitos de arte moderna de N. Stangos, Realismo,
racionalismo, surrealismo de F. Briony entre outros (BRIONY, 1998; CHIPP, 1988;
STANGOS, 1991). Vinha tambm, desde a graduao, tentando me familiarizar com a
produo acadmica do Programa de Ps-Graduao em Artes Visuais da UFRGS sobreo sistema das artes de Porto Alegre via reviso bibliogrfica leitura de artigos,
dissertaes e teses (BRCHER, 2000; BULHES 1991, 1992, 1993, 1999 e 2000;
CARVALHO, 1994; FERREIRA, 1999; PIETA, 1995; SCARINCI, 1982).
Enfim, nesse curso, a platia de alunos era constituda por pessoas com graus
extremamente desiguais acerca da Histria da arte e das proposies da arte
contempornea. No havia, ali, uma comunidade de sentidos instaurada: no todos os
integrantes do pblico compartilhavam das referncias prprias ao cenrio artstico em
questo, ou o faziam em graus desiguais. Eu, por exemplo, tinha noo de algumas
questes e referncias presentes na arte contempornea: conhecia os nomes e as linhas
gerais de algumas das vanguardas modernistas; sabia da existncia de Duchamp e de
suas experincias dos ready-mades; do ideal de interao do pblico com a obra; da
valorizao de novas linguagens, suportes e materiais; do ideal de desconstruo e de
desmistificao da arte. Mas, por outro lado, no conhecia a Documenta de Kassel, a
mostra de arte contempornea de maior prestgio no mundo na atualidade. Assim
tambm, no pude apreender diversos nomes, conceitos e histrias especficas
mencionadas durante as palestras vrios dos quais, algum tempo depois, soube serem
referncias centrais e muito conhecidas dentro deste cenrio.
Ou seja, eu, assim como muitos alunos do curso, possua algumas noes sobre
arte e/ou sobre arte contempornea. Mas muitas destas noes correspondiam apenas a
29Janice Martins artista plstica, bacharel em pintura e desenho pelo Instituto de Artes da UFRGS.
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mapasque Gilberto Velho menciona em seu texto Observando o familiar. Segundo o
autor, devido proximidade existente entre diferentes domnios sociais em uma
sociedade complexa e variabilidade dos graus de familiaridade com os mesmos,
comum possuirmos mapas sociais que incluem determinados cenrios e situaes
sociais com os quais nos defrontamos em nosso cotidiano, mas isso no significa queconhecemos o ponto de vista e a viso de mundo dos diferentes atores em uma situao
social nem as regras que esto por detrs dessas interaes (VELHO, 1997b, 126-127).
A existncia destes mapas, portanto, no indicava pertencimento ao domnio especfico,
nem um verdadeiro conhecimento das referncias e dos sentidos ali existentes. O curso
foi, de fato, o momento de iniciao em arte para diversos mediadores, assim como para
mim, constituindo-se em um espao de aprendizado sobre arte, sobre mediao e sobre
arte contempornea.
Vivenciei, portanto, junto a alguns mediadores, esse processo de iniciao;ouvimos as mesmas palestras, fizemos comentrios sobre elas, avaliamos os
palestrantes, trocamos impresses e opinies. Posso dizer que o universo ao qual
estvamos nos aproximando era extremamente sedutor. E quando falo em seduo, no
incorro em subjetivismos; trata-se de um elemento importante dentro deste cenrio.
Veremos, ao longo deste trabalho, que a seduoe a paixoso elementos apontados
como fundamentais no processo de iniciao no gosto pela arte ou de aprender sobre
arte.
A arte pensada como um bem universal. Ela socialmente valorizada e fonte
de prestgio e de distino (BOURDIEU, 1996a, 1998b, 1998d; BECKER, 1982;
PRICE, 2000). Os alunos do curso eram capazes de reconhecer este valor que, a todo
momento, era afirmado e reafirmado. E o curso de formao de mediadores para a 4.
Bienal do Mercosul no frustrou as expectativas. Espao demarcado de diversas formas
como que para privilegiados, ele constituiu a via de acesso no apenas a aulas e
palestras ministradas por importantes especialistas em arte de nosso pas, mas tambm a
artistas, curadores, musegrafos, processos de montagem das obras e bastidores da
produo da mostra Bienal. A impresso por parte dos mediadores de terem acesso a
algo especial foi expressa em diversos momentos e situaes ao longo do curso, tanto
em conversas e comentrios durante os intervalos e nas sadas das aulas, quanto em
depoimentos dados nas ltimas aulas como o transcrito abaixo:
E outra questo, que eu ia falar, que mesmo se no me pagarem eutrabalho na Bienal. [] Porque eu acho que tem coisas pra mim,
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alguma coisa de mudana na Bienal que fez outro sentido na vida, naminha. (mediadora, Curso de Formao de Mediadores para a4.Bienal do Mercosul/2003)
Nesta, assim como em outras manifestaes similares, os mediadores disseram
de forma explcita que o curso foi vivenciado como uma experincia marcante,
enriquecedora, de construo e aprendizado, que acrescentou algo s suas vidas.30
A demarcao do curso como espao privilegiado se estabelecia a partir do
prprio espao fsico e institucional que o abrigava. Os encontros foram realizados no
Santander Cultural, importante instituio da cena artstica da cidade. Ele est situado
na Praa da Alfndega, no corao de Porto Alegre, vizinho do Museu de Arte do Rio
Grande do Sul Ado Malagoli e do Memorial do Rio Grande do Sul. Esta localizao
possui uma centralidade tanto urbanstica quanto simblica. Alm de concentrar
diversas instituies culturais de prestgio, a Praa da Alfndega tambm recebe eventos
culturais de grande porte na cidade, como a tradicional Feira do Livro de Porto Alegre.O Santander construiu rapidamente um grande prestgio no circuito cultural local,
associando sua imagem especificamente contemporaneidade. Ele atua
preferencialmente nas artes visuais, na msica e no cinema, veicula produes e debates
contemporneos nestas trs reas.31 Seu suntuoso prdio, a partir da reforma feita
quando o Centro Cultural foi criado, integrou a arquitetura original de estilo neoclssico
(seus mrmores, grandes galerias internas, vitrais e corrimos de ferro) a elementos
prprios a uma arquitetura e tecnologias de construo mais recentes, como cho de
vidro, ao inox, vigas de metal expostas e partes de rebocos aparentes. A sala na qual os
encontros se realizavam tambm era sofisticada, alm de confortvel: ar condicionado,
boa iluminao e sistema de udio com diversas caixas de som distribudas pelo espao;
cadeiras de ao inox com forros vermelhos organizadamente dispostas sobre o piso de
ladrilho hidrulico, ornatos de gesso nas paredes e forro do teto, janelas altas. Ainda,
monitores uniformizados todos jovens, disponveis e srios que operam o
computador, o data show ou o projetor de imagens (conforme o caso) enfim, que
garantem a infraestrutura necessria para a aula. Fotgrafos e cmera registram os
encontros. No espao, ainda, ploters institucionais do curso e da exposio,
apresentando os realizadores e os patrocinadores.
30 Tambm o trabalho durante a mostra foi vivido desta maneira por vrios mediadores tanto na 4.como na 5. Bienal do Mercosul. No site da quinta edio da mostra, no link Especiarias, possvelencontrar depoimentos de mediadores. Ver o site: www.bienalmercosul.art.com
31Para maiores informaes sobre o Santander Cultural, ver o site: www.santandercultural.com.br
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Foi nesse espao que os alunos inscritos no curso, e apenas eles inicialmente
pouco mais de 200 pessoas divididas em duas turmas, uma turno manh e outra noite
tiveram apossibilidade de assistir a palestras de diversos especialistas em arte do pas.32
Cabe citar ainda, para o reforo da idia de exclusividade, que o Santander Cultural
um espao muito controlado; h sempre algum segurana ou funcionrio atento spessoas ali presentes, a seus fluxos, seus comportamentos e suas aes. Se existe algum
tipo de requisito ou restrio no acesso a um determinado evento, ele cumprido. O
crach de identificao do mediador era, portanto, um elemento importante; no havia
possibilidade de algum que no estivesse inscrito no curso assistir a alguma das
palestras.
Levando em conta essa restrio do acesso s palestras e o prestgio dos nomes
convidados, entende-se um dos motivos do curso ter sido percebido como um privilgio.
A escolha de pessoas gabaritadas, trazidas cidade pela Fundao Bienal do Mercosulespecialmente para ministrar a palestra exclusiva para o curso, era um forte
demarcador do espao como privilegiado. O curso, ento, era apresentado e vivenciado
como algo que dava acesso a um mundo maravilhoso que se descortinava: mais
reflexivo, mais crtico, habitado por pessoas sensveis, inteligentes e propositivas (os
artistas); um mundo pensado como sem fronteiras, posto que a arte contempornea
cosmopolita e os artistas ouvi dizer algumas vezes vivem nos aeroportos.
Alm desse novo mundo ser maravilhoso, os mediadores teriam um papel
importante nele. o que os profissionais, professores e pesquisadores de renome
afirmavam: com freqncia, diziam que o papel dos mediadores era fundamental, pois
seriam eles quem aproximariam o pblico deste mundo, aproximando-o da arte. Alm
disso, eles tambm eram apontados como aqueles que teriam mais condies de
aproveitar a mostra bienal. Porque tinham a possibilidade de conhecer a fundo o projeto
curatorial, ter contato direto com os curadores e com diversos dos artistas, poderiam
acompanhar as reaes do pblico durante a mostra e, principalmente, conviver
diariamente com as obras. O curso foi, portanto, um momento e um espao de muita
seduo, e de grande fora de cooptao.33
32Para nomes dos especialistas que participaram no Curso de Formao para a 4. Bienal do Mercosul,ver Anexo I.
33O curso de mediadores para a 4. Bienal deixou uma tima impresso entre os alunos e os diversosprofissionais que trabalharam na Ao Educativa dessa Bienal. Em diversas ocasies, mesmo durante aquinta edio do evento, ouvi comentrios e elogios a esse curso, que eram contrapostos a crticas feitasao da 5. Bienal, que parece ter satisfeito menos.
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1.2: A narrativa da arte contempornea
Foi nesse clima de seduo que os distintos palestrantes delinearam um quadro
geral para a arte contempornea. Apesar de os temas abordados serem diferentes, e de
no haver necessariamente homogeneidade no trato de questes especficas, configurou-
se um conjunto de noes, idias e referncias recorrentes. Denominei o conjuntoresultante da convergncia de enunciaes (falas e aes) feitas por sujeitos autorizados
(historiadores, crticos e especialistas em arte em geral) de narrativa da arte
contempornea.
Considero que esta narrativa aponta para uma cosmologia prpria e especfica do
universo aqui estudado e que ela dominante no sistema artstico em questo. A partir
de sua anlise, possvel conhecer como diversos elementos integrantes deste sistema
so concebidos. Por exemplo, possvel saber que atribuda arte contempornea
uma natureza desconstrutora,crtica e reflexiva. Tambm, que o artista contemporneo concebido em oposio figura do gnio criador e, a obra de arte, em oposio ao
objetofechado e sacralizado. Ainda, que a concepo do atual sistema das artes a de
um sistema cosmopolita e unificado, porm no homogeneizado. Ou seja, a partir da
anlise desta narrativa da arte contempornea, possvel conhecer a viso de mundo
especfica ao universo social pesquisado: no apenas noes referentes arte, mas
tambm noes de tempo e espao, que conformam um ethos e um habitus especficos.
o que apresento a seguir.
Porm, antes disso, necessrio fazer algumas consideraes de ordem terico-
metodolgicas a respeito do conceito de campoe da noo de narrativaaqui utilizados.
importante ter em mente que os trabalhos de Pierre Bourdieu sobre o campo artstico
foram apropriados pelas disciplinas da Arte e que, neste sentido, integram a narrativa
contempornea sobre arte. Esta inclui, por exemplo, as idias de que o sistema das artes
resultante de um processo de gnese e consolidao de um campo com autonomia
relativa, de que a consagrao dos valores artsticos se d histrica e socialmente a
partir de dinmicas de legitimao internas que so formas de lutas simblicas etc..
Devido a essa situao de algumas idias bourdianas serem, em nveis
distintos, tanto referenciais quanto objetos desta pesquisa importante distinguir entre
o uso conceitual que fao das mesmas e os momentos em que elas correspondem s
apropriaes feitas pelos sujeitos e agentes do sistema artstico estudado. Em especial,
necessrio atentar aos usos diferenciados do termo campo. Esta ateno importante
para evitar uma confuso: a no distino entre o campo enquanto um instrumento
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conceitual, heurstico e analtico e o campo enquanto dado de realidade, com uma
configurao especfica de relaes concretas e objetivas existentes em um dado local e
tempo.
Considero que, no caso da pesquisa aqui proposta, essa confuso equivaleria
naturalizao do discurso nativo, armadilha contra a qual Eunice Durham previne. Aodiscorrer sobre o fazer antropolgico na sociedade brasileira, a autora afirma que,
devido fragmentao existente, o conjunto da sociedade e o movimento que lhe
prprio no podem ser recuperados a partir dos grupos estudados, porque esto fora de
seu horizonte de informao e de sua experincia direta (DURHAM, 1989, 33). No
caso da pesquisa aqui proposta, a totalidade do campo artsticono est disponvel
experincia direta dos sujeitos estudados, o que no impede que eles tenham uma
concepo e uma vivncia especfica dessa suposta totalidade. A noo de narrativa
constitui um recurso analtico para evitar o deslize de tomar a concepo de campoartstico prpria aos sujeitos estudados como dado de realidade. Assumo, portanto, as
menes gnese do campo, ao processo de autonomizao e consolidao do mesmo,
assim como existncia de um campo ou sistema artstico mundial integrado etc. como
elementos da narrativa da arte contempornea.
O uso que fao aqui de narrativa anlogo ao que alguns cientistas sociais
aplicaram nos estudos sobre globalizao. Diversos autores, frente constatao de que
existem respostas locais s foras globais e de que a globalizao no levou, de
fato, a uma homogeneizao do mundo e da forma de vivenci-lo (BOURDIEU, 1998c;
SAHLINS, 1997; APPADURAI, 1999, FEATHERSTONE, 1999; HANNERZ, 1999),
passaram a tratar a globalizao no enquanto processo histrico concreto e, sim,
enquantoperspectiva, mito, grande narrativa ou cosmologia sobre o mundo prpria ao
Ocidente (BOURDIEU, 1998c; SAHLINS, 1997; APPADURAI, 1999; O. VELHO,
1997). Segundo Otvio Velho, por exemplo, a partir do momento em que a globalizao
tomada como um horizonte de entendimento nas narrativas a seu respeito, ela se
reveste dos elementos de exterioridade, superioridade e (posto que tratada como
horizonte) anterioridade. Isto permitiria que ela fosse tratada como um jogo de
linguagem permitido por interconexes concretas, como artefato e ao mesmo tempo
como um mito com muitas verses. Mas verses num sentido forte, que acentua a
inseparabilidade entre o mito e seus usos (O. VELHO, 1997, 57-58).
Ao lanar mo da noo de narrativa nesses termos, portanto, no nego a
existncia de uma configurao concreta do sistema artstico no nvel mundial. Afirmo,
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apenas, que a experincia local deste sistema mundial no corresponde totalidade
concreta do mesmo, e que os entendimentos e apropriaes dele feitas a partir de locais
distintos podem ser diferenciados. Quando falo de uma narrativa da arte
contempornea, refiro-me ento a um entendimento e uma concepo especficos
acerca do estado e da dinmica geral do campo artstico atual que devem ser pensadosenquanto idealizaes.
Feitas essas consideraes, passo agora apresentao das referncias
especficas ao cenrio artstico estudado, a partir dos cursos de formao das 4. e 5.
Bienais. importante salientar que as palestras realizadas traziam uma enormidade de
temas e elementos que necessariamente foram apreendidos em graus e formas muito
diferenciadas pela platia at porque muitas das falas pressupunham conhecimentos
anteriores sobre Histria, Teoria e Crtica de arte que no foram apresentados no curso e
que nem todos possuam. Mas algumas idias centrais foram retomadas pela maioriados palestrantes e constituem o que aqui chamo de narrativa da arte contempornea.
De modo geral, toda a idia do ser contemporneo em arte foi construda em
contraposio a uma idia do que foi o tradicional e o moderno em arte. Um dos
elementos mais recorrentes nos discursos dos palestrantes, e que central nesta
narrativa, foi a idia de desmistificar a arte. Tal atitude de desmistificao e
desconstruo a caracterstica tipicamente atribuda arte contempornea, e foi
apontada como o ponto fundamental de diferenciao entre ela e o que teria sido a arte
tradicionalou moderna.
importante atentar para