Lopes, A

download Lopes, A

of 204

Transcript of Lopes, A

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE EDUCAO

DISSERTAO DE MESTRADO

A SOCIEDADE BRASILEIRA DE GERIATRIA E GERONTOLOGIA E OS DESAFIOS DA GERONTOLOGIA NO BRASIL

Autora: Andrea Lopes Orientadora: Prof Dr Guita Grin Debert

CAMPINAS, 2000

FICHA CATALOGRFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECADA FACULDADE DE EDUCAO/ UNICAMP

L881s

Lopes, Andrea. A Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia e os desafios da Gerontologia no Brasil / Andrea Lopes. -- Campinas, SP : [s.n.], 2000. Orientador: Guita Grin Debert. Dissertao (mestrado) Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Educao. 1. Velhice. 2. Instituies e sociedades cientficas. 3. Gerontologia Histria. 4. Antropologia. I. Debert, Guita Grin. II. Universidade Estadual de Campinas. Faculdade de Educao. III. Ttulo.

i

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE EDUCAO

DISSERTAO DE MESTRADO

A SOCIEDADE BRASILEIRA DE GERIATRIA E GERONTOLOGIA E OS DESAFIOS DA GERONTOLOGIA NO BRASIL

Autora: Andrea Lopes Orientadora: Prof Dr Guita Grin DebertEste exemplar corresponde redao final da dissertao de mestrado defendida por Andrea Lopes e aprovada pela Comisso Julgadora em Data: ___ /___ / ___ Assinatura:_______________________ Orientadora

Comisso Julgadora: ___________________________ ___________________________ ___________________________

2000

ii

iii

Dissertao apresentada ao Curso de Ps-graduao em Gerontologia da Faculdade de Educao da Universidade Estadual de Campinas, para obteno do ttulo de Mestre em Gerontologia

iv

v

Dedico este trabalho, Aos meus pais, Elcides e Olvia, por abdicarem de suas escolhas pessoais e apostarem incondicionalmente em meus sonhos. s minhas avs, Angelina e Rosa, por inspirarem este trabalho at mesmo quando ele ainda era apenas um sonho. Ao Paulinho, por ser a minha paixo mais intensa no perodo de realizao deste trabalho.

vi

vii

AGRADECIMENTOS MUITO ESPECIAIS Prof Dr Guita Grin Debert, por sua tica e compromisso com a produo do conhecimento cientfico, pela forma crtica, desprendida e ousada com que analisa os temas que investiga e orienta e, em especial, pela contribuio decisiva que deu para os rumos deste trabalho. Prof Dr Anita Liberalesso Neri, pelo exemplo de competncia e compromisso com que se dedica ao desenvolvimento da Gerontologia no Brasil, por seu sorriso iluminado que acolhe a todos ns, alunos do Programa de Ps-graduao em Gerontologia, quando no sabemos ao certo o que fazer. Denise Freschet, minha terapeuta, e sempre minha amiga, pelo profissionalismo e companheirismo, neste perodo de tantas descobertas e conquistas.

todo meu passado, De Boas e ms recordaes Quero viver o meu presente E lembrar tudo depois, Nesta vida passageira Eu sou eu Voc voc Isso o que mais me agrada Isso o que me faz dizer Que vejo FLORES em voc (s) (Edgar Scandurra)

viii

ix

AGRADEO TAMBM: ? Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de So Paulo (Fapesp), por acreditar e financiar a realizao deste trabalho (n processo: 97/02235-0) desde quando era apenas um projeto de iniciao cientfica (n processo: 95/5069-9), e ao parecerista desta instituio que acompanhou meus relatrios cientficos, pela dedicao e entusiasmo com que avaliou e deu sugestes s etapas da pesquisa. ? Aos diretores e funcionrios da Faculdade de Educao da Unicamp, por acolherem e apoiarem o Programa de Ps-graduao em Gerontologia; em especial, Nadir, Fabiana e Sueli, pela disponibilidade sempre presente. ? A todos aqueles que deram apoio tcnico para a realizao deste trabalho, em especial, Vera Caovilla, por deixar-me vontade para investigar os arquivos da SBGG Nacional; Camila, Carlos, Cristiane, Denise, Karina, Rodrigo e Marilene, pelo trabalho de transcrio das entrevistas; Tnia Mano Maeta, pelo trabalho de reviso ortogrfica; ao Carlos Antnio Santiago Pereira, pelo cuidado e competncia ao xerocar os documentos coletados; querida amiga Raquel Calixto Holmes Cato Bastos, pela ajuda na formatao final da dissertao. ? Aos professores do Programa de Ps-graduao em Gerontologia, por acreditarem e propiciarem um espao para o dilogo entre as diferentes disciplinas cientficas e formaes profissionais. ? Prof Dr Maria Aracy de Pdua Lopes da Silva, por semear, ainda nos tempos da graduao e da iniciao cientfica, as primeiras observaes mais atentas que havia realizado sobre a velhice e o envelhecimento. ? Prof Dr Neusa Maria Mendes de Gusmo, pela leitura cuidadosa do relatrio de qualificao e por todas as observaes e sugestes feitas no Exame de Qualificao, que vieram a enriquecer a finalizao do trabalho. ? A todos os scios da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia (SBGG), por terem acreditado e tornado realidade um ideal to nobre. ? A todos os entrevistados, pela recepo gentil e pela confiana entusiasmada com que relataram suas experincias e opinies. ? A todos os idosos que conheo e tambm aos que ainda so annimos, por propiciarem uma sensao prazeirosa de que tenho muito a aprender com a serenidade e a dignidade que esto por trs de um olhar que j viu e experimentou coisas to distintas.

x

xi

E A TODOS OS MEUS QUERIDOS FAMILIARES E AMIGOS, EM ESPECIAL:

? queles da primeira turma do Programa de Ps-graduao em Gerontologia: Andrea Prates, Cludia, D, Edison, Beth, Flack, Fran, Guillermo, Lorde Jaime, D. Joo, Maria Eliane, Maria Lcia, Meives, Ondina, Paulo, Sandra, Serafa, S e Vica. Apesar do mimo por eu ser a caula da turma, sempre respeitaram minhas idias, observaes e posicionamentos a respeito da velhice e do envelhecimento. Obrigada pelas trocas enriquecedoras, pelo carinho e pelos cuidados sempre presentes!

? Aos amigos da Cincias Sociais da USP, ao Alexandre, Bento, Camila e Mrcia, Cida, Dani e Baby, Denizinha, Diva, Flvia e Dudas, Graziela, Hlcio, Izilda, Jonas, Julinho, Junai, ris, Junior, Ktia e Davi, Lina, Luci e Klaus, Mrcio, Marge, Marli, Marta, Meire, Patrcia, Ping, Quel e Z, Sarita, Sol e Tatiane. Foi fundamental para o meu bem estar e tranqilidade saber que tinha vocs to perto de mim, o tempo todo!

xii

xiii

SUMRIOResumo ............................................................................................................... Abstract .............................................................................................................. Introduo ......................................................................................................... xv xvii 01

Captulo 1- Percurso terico e questes que orientam a pesquisa ....... 09 1.1. A construo da velhice como problema social ...................................... 1.2. A constituio da Gerontologia em disciplina cientfica ....................... 1.3. A delimitao de um campo especfico de exerccio profissional ........10 18 33

Captulo 2 - Universo pesquisado e procedimentos metodolgicos .... 47 2.1. Observao de reunies e eventos cientficos ........................................ 2.2. Coleta e anlise dos documentos dos arquivos da SBGG ...................... 2.3. Seleo dos entrevistados ..................................................................................... 2.4. Coleta de depoimentos orais e de documentos em arquivos pessoais .. 2.5. A prtica etnogrfica e a SBGG ..............................................................49 50 52 54 63

Captulo 3 - A constituio da Gerontologia no Brasil: uma etnografia da SBGG ....................................................................................... 69 3.1. Dcadas de 1960 e 1970: entre o charlatanismo e a cincia ................... 71 3.2. Dcada de 1980: a era da multidisciplinaridade ....................................... 105 3.3. Dcada de 1990: as experincias prticas e o rigor cientfico ................ 144 Concluso ......................................................................................................... Referncias bibliografias .............................................................................. Anexo I Diretorias da SBGG Nacional ...................................................... 159 167 173

Anexo II - Ata da assemblia geral da SBG, de 3/4/1965............................. 181 Anexo III - Ata da fundao da SBG, de 16/5/1961 ................................... 183

xiv

xv

LOPES, A. (2000). A Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia e os desafios da Gerontologia no Brasil. Dissertao de Mestrado em Gerontologia: Programa de PsGraduao em Gerontologia da Faculdade de Educao da Unicamp.

RESUMO

Esta dissertao o resultado da pesquisa que teve como objetivo descrever as estratgias e as prticas postas em ao pela Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia (SBGG) a fim de se constituir em uma entidade cientfica e profissional, que possui como alvo de atenes a velhice e o processo de envelhecimento. Visando o perodo de 1961 - data de sua fundao - at o ano de 1999, os dados foram obtidos por meio de uma metodologia qualitativa envolvendo: entrevistas com seus diretores, coleta de documentos em arquivos da entidade e arquivos pessoais, e observao de comportamentos em eventos cientficos e reunies realizadas pela SBGG ao longo do ano de 1997 e 1998. O trabalho mostra que a entidade se props enfrentar trs desafios principais ao longo de sua trajetria: contribuir para o convencimento da sociedade brasileira de que a velhice uma questo que merece ateno pblica; estimular os profissionais e pesquisadores para o estudo cientfico da velhice e do processo de envelhecimento; e, desenvolver um campo de atuao para o exerccio profissional dos especialistas nessa rea. Analisando o carter das dificuldade e dos conflitos enfrentados pela SBGG na consecuo destes desafios, a dissertao oferece elementos para a compreenso do processo de constituio da Gerontologia como saber cientfico e campo profissional no Brasil.

PALAVRAS-CHAVES: Velhice; Gerontologia; Geriatria; Campo Cientfico; Instituies e Sociedades Cientficas.

xvi

xvii

LOPES, A. (2000). The Brazilian Society of Geriatrics and Gerontology and the challenges of Gerontology in Brazil. Dissertao de Mestrado em Gerontologia: Programa de PsGraduao em Gerontologia da Faculdade de Educao da Unicamp.

ABSTRACT

The main target of this dissertation is to describe strategies and practices carried out by the Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia (SBGG) in order to constitute itself as a scientific and professional association for geriatricians and gerontologists. Covering the period from 1961 - date of its foundation - to the year of 1999, the data were obtained through a qualitative methodology comprising: interviews with its directors, collection of documents in the archives of the association and personal files, as well as the participant observation in the meetings promoted by the SBGG through 1997 and 1998. The present work shows that the SBGG had to face three main challenges along its way: to draw the public concern to the ageing process and aged people; to stimulate the interest among professionals and researchers towards the scientific study of the old age and the ageing process; and to develop a specific working field for specialists in Geriatrics and Gerontology. By analysing the nature of the difficulties and conflicts faced by the SBGG as it tries to overcome these challenges, the dissertation offers elements to enlighten the setting of Gerontology as a scientific knowledge and a professional field in Brazil.

KEY WORDS: Old Age; Gerontology; Geriatrics; Scientific Field; Institutions and Scientific Societies.

1

IntroduoO objetivo deste trabalho oferecer elementos para a compreenso da constituio da Gerontologia no contexto brasileiro, empreendimento esse que fruto de uma srie de iniciativas que vm tecendo um novo campo de saber e de profissionalizao no pas. Com essa finalidade, a pesquisa voltou-se para a Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia (SBGG). Criada no Rio de Janeiro em 1961, a entidade ganha cada vez mais prestgio entre profissionais, pesquisadores e pessoas interessadas na realizao de trabalhos com a populao mais velha e de estudos envolvendo a velhice e o envelhecimento. A SBGG conta atualmente com 661 scios, provenientes das mais diferentes formaes profissionais. Entre eles, os mdicos so denominados de geriatras e os profissionais de outras formaes, que no a Medicina, de gerontlogos. A entidade possui atualmente sees em 18 estados brasileiros; j realizou 11 Congressos Nacionais e dez Jornadas Brasileiras.1 Alm disso, organizou e apoiou cursos e encontros cientficos ligados ao tema em grande parte do Brasil; publica duas revistas cientficas ? Anais Brasileiros de Geriatria e Gerontologia, editada pela seo do estado do Rio de Janeiro, e a revista Gerontologia, pela seo do estado de So Paulo ? , e veicula boletins informativos. Participa de associaes internacionais: International Association of Gerontology (IAG), por meio do Comit Latino-Americano (Comlat) da IAG e, recentemente, da Federao Internacional do Envelhecimento. Em convnio com a Associao Mdica Brasileira (AMB), expede o ttulo de especialista em Geriatria, configurando essa especialidade como categoria profissional. A SBGG confere tambm o ttulo de especialista em Gerontologia, embora sem configur-lo como categoria profissional. At dezembro de 1999, titulou 289 mdicos em Geriatria e 48 profissionais1

Estados e anos de realizao dos Congressos Brasileiros de Geriatria e Gerontologia: I CBGG Rio de Janeiro, 1969; II CBGG Porto Alegre, 1971; III CBGG Rio de Janeiro, 1973; IV CBGG Porto Alegre, 1976; V CBGG Salvador, 1979; VI CBGG Belo Horizonte, 1982; VII CBGG Rio de Janeiro, 1985; VIII CBGG So Paulo, 1991; IX CBGG So Paulo, 1991; X CBGG Belo Horizonte, 1994; XI CBGG Rio de Janeiro, 1997. Estados e anos de realizao das Jornadas Brasileiras de Geriatria e Gerontologia: I JBGG (*); II JBGG (*), 1973; III JBGG Fortaleza, 1977; IV JBGG So Paulo, (*); V JBGG So Paulo, 1984; VI JBGG Porto Alegre, 1987; VII JBGG Rio de Janeiro, 1990; VIII JBGG Curitiba, 1993; IX JBGG Gois, 1996; X JBGG So Paulo, 1997 (* indica: sem informao sobre local e/ou data).

2

de outras reas em Gerontologia, inclusive mdicos interessados, procurando marcar, com isso, um campo de atuao profissional especfica para esses especialistas. Esses dados indicam que pesquisar a SBGG uma oportunidade para entender a constituio da Gerontologia, incluindo a da Geriatria, como um saber especfico e autoridade legtima na orientao de prticas de gesto da velhice no Brasil. Em outras palavras, a oportunidade de poder consultar todos os seus arquivos e de organizar a documentao que a entidade acumulou desde sua origem levou-me a perceber que a SBGG constitua-se em uma entidade singular no contexto gerontolgico brasileiro, merecedora de estudos aprofundados. Assim, a necessidade deste trabalho justifica-se, em primeiro lugar, pelo fato de a SBGG ser uma das primeiras entidades brasileiras a se dedicar exclusivamente ao tema da velhice e do envelhecimento. Logo, acredito que o conhecimento de suas atividades e de sua produo sobre a velhice e o envelhecimento nesses quase 40 anos de existncia seria de importncia fundamental para entendermos como se constitui no pas um saber cientfico e uma rea de profissionalizao sobre o tema. Em segundo lugar, foi possvel perceber, desde o incio da coleta de dados, que a SBGG no um campo de saberes homogneo. Ao longo de sua histria e no presente convivem, algumas vezes de maneira conflitiva, representantes de outras entidades que tambm desenvolvem trabalhos com idosos, como a Associao Nacional de Gerontologia (ANG), o Servio Social do Comrcio (Sesc), as universidades para a terceira idade, o Conselho Municipal do Idoso, os clubes para a terceira idade e os servios de sade, entre outras. Portanto, pesquisar a SBGG permitiria coletar documentos e relatos variados, realizando uma sntese de polmicas e conflitos envolvidos no processo de constituio da Gerontologia no Brasil. Por fim, um material histrico extremamente rico corria o risco de ser perdido, dada a maneira como foi acondicionado jogado em caixotes ou disperso em arquivos pessoais, sem nenhum tipo de classificao. Uma documentao que no foi ainda analisada e que, por representar uma lacuna nos estudos sobre o tema, merecia ser tratada com ateno a fim de ser utilizada como objeto de estudo para futuras pesquisas. Nesses termos, dentre outras coisas, interessava saber: como surge a iniciativa de um empreendimento gerontolgico em um pas que at bem recentemente se considerava

3

jovem? Quais as razes para que se criasse no Brasil um campo de debate multidisciplinar acerca do envelhecimento, fazendo com que os mdicos abrissem um espao a outros profissionais dentro de uma entidade originariamente mdica? E quais as razes que levam diferentes profissionais a se filiarem a uma entidade mdica e at hoje lutarem pela preservao desse espao? A trajetria da SBGG mostra que, para se constituir em entidade cientfica e profissional, foi necessrio atuar em trs frentes:

1) Convencer a sociedade, a mdia e, principalmente, as vrias instncias do Estado de que a velhice uma questo merecedora de ateno pblica. Ou seja, fazer com que um problema que inicialmente parecia dizer respeito apenas aos indivduos, aos familiares e s entidades filantrpicas passasse a ser objeto de uma preocupao social, que requer ateno do Estado e que sejam definidas verbas e polticas pblicas voltadas para um segmento populacional claramente demarcado.

2) Constituir uma disciplina cientfica que tem por objeto de estudo a velhice e o processo de envelhecimento, disputando o saber e a ao sobre um segmento da populao com outras disciplinas que se encontravam plenamente estabelecidas, ao mesmo tempo em que se apropria dos conhecimentos desenvolvidos por cada uma delas, em especial das Cincias Mdicas, da Psicologia e das Cincias Sociais.

3) Congregar e estimular o aperfeioamento de profissionais formados em instituies distintas e em especialidades com graus bastante heterogneos de prestgio social, estabelecendo um vnculo e a formao de uma identidade entre eles, dada pela velhice como objeto de saber e profissionalizao. Esses trs desafios j podem ser observados nos objetivos que a entidade se prope em seu ltimo estatuto, aprovado em 8 de dezembro de 1997: Congregar mdicos e outros profissionais de nvel superior devidamente inscritos nos seus Conselhos Regionais, que no Brasil se interessem pela Geriatria e Gerontologia. B) Estimular e apoiar o desenvolvimento e a divulgao do conhecimento cientfico na rea de Geriatria e Gerontologia, A)

4

C)

D)

E) F)

G)

H)

I)

promovendo o aprimoramento e a capacitao permanente dos seus associados. Estimular iniciativas e obras sociais de amparo velhice e cooperar com outras organizaes interessadas em atividades educacionais, assistenciais e de pesquisas relacionadas com a Geriatria e a Gerontologia. Manter intercmbio com associaes congneres nacionais e estrangeiras, assim como representar os profissionais brasileiros na rea de Geriatria e Gerontologia junto Internacional Association of Gerontology. Colher informaes tcnicas e estatsticas de interesse dos associados. Sugerir e solicitar, dos poderes competentes, as medidas que lhe paream adequadas em benefcio da Sade Pblica e do amparo aos velhos. Realizar, de dois em dois anos, um Congresso Nacional com finalidade de difundir a Geriatria e a Gerontologia nas diversas regies do Pas. Colaborar com o poder pblico e entidades vinculadas aos assuntos de sade na investigao, equacionamento e soluo dos problemas de Sade Pblica relativos s doenas do idoso. Zelar pelo nvel tico, eficincia tcnica e sentido social no exerccio profissional de Geriatria e Gerontologia.

Como foi possvel perceber nessa investigao e que j evidente no estatuto da entidade , a tarefa que a SBGG pretende e sempre pretendeu realizar divulgar o saber gerontolgico e estimular a formao dos profissionais que, de alguma maneira, esto envolvidos com o tema do envelhecimento, procurando congreg-los em uma nica entidade. Porm, importante esclarecer que no lhe compete formar o profissional, pois no se configura como universidade ou centro de pesquisa. Nesse sentido, a SBGG antecede a criao desses centros de produo de saber, os quais so, na maior parte das vezes, os encarregados pela formao dos profissionais. Com isso, ela se diferencia de outras sociedades cientficas e associaes profissionais, como mostrarei neste trabalho, posto que ter, em suma, que criar uma especialidade e seu especialista para ento congreg-lo. Alm dessas tarefas, a entidade se prope ainda a outros objetivos, como: estimular obras sociais de amparo aos velhos e sugerir aos rgos governamentais polticas pblicas voltadas para a velhice.

5

Em suma, o que este trabalho procura mostrar as estratgias adotadas pela SBGG na realizao das seguintes tarefas que contribuiu para o desenvolvimento bem-sucedido: a definio da velhice como problema social; a produo de um saber especfico; a aceitao da legitimidade de uma profisso e de um novo especialista no trato das questes do envelhecimento; a obteno de um mandato para decidir sobre essas reas, obtendo a jurisdio sobre determinados territrios da diviso do trabalho; a constituio de uma identidade capaz de aglutinar diferentes profissionais. Mesmo sendo possvel identificar e apontar essas frentes de atuao, importante esclarecer que elas no foram intencionalmente desenvolvidas por seus scios, nem estabelecidos de antemo os resultados que poderiam alcanar. Um dos fundadores da SBGG relata: A gente esperava que fosse crescer, mas no sabia no que ia dar [...] a gente foi no embalo. Portanto, o que interessa mostrar como os desafios vo sendo tecidos e enfrentados ao longo da trajetria da entidade, por meio da unio de esforos e, principalmente, porque h todo um contexto nacional e internacional favorvel a um dilogo entre a sociedade civil, as entidades, a mdia, o Estado e os profissionais envolvidos com o tema. Um dos ex-presidentes da entidade d um depoimento ilustrativo de como se deu esse movimento gerontolgico no que tange sensibilidade relativa ao tema no interior da Medicina, um dos grandes obstculos nas primeiras dcadas da SBGG:

um comparativo exato. Quando eu era rapaz eu ia a bailes. Naquele tempo se danava grudado. Geralmente o rapaz era mais alto do que a moa. Eu podia danar com 75% das moas. Hoje em dia se eu fosse danar grudado, eu no ia danar com ningum. As meninas espicharam. A mesma coisa na Medicina. As coisas foram se desenvolvendo: as pesquisas, os grandes laboratrios. Hoje voc pode fazer um trabalho [com e sobre pessoas idosas] at numa cidade pequena. O objetivo deste trabalho , portanto, descrever as estratgias e as prticas postas em ao pelos scios da SBGG e os conflitos e as dificuldades presentes ao longo de sua trajetria a fim de se constituir em uma entidade cientfica e profissional, que tem como alvo exclusivo de ateno a velhice e o processo do envelhecimento.

6

A seqncia dos captulos que ora apresento permite compreender o caminho percorrido para alcanar os objetivos propostos. No primeiro captulo desenvolvo o percurso terico e aponto as questes que orientaram a pesquisa, que envolveram trs direes: a constituio da velhice como problema social, a constituio da Gerontologia em disciplina cientfica e a delimitao de um campo especfico de exerccio profissional. No segundo apresento o universo pesquisado e caracterizo os procedimentos metodolgicos e as tcnicas de pesquisa adotadas ao longo da investigao realizada. No terceiro e ltimo captulo procuro dividir a trajetria da SBGG, para fins metodolgicos, em trs grandes perodos: as dcadas de 1960 e 1970, mostrando as dificuldades e estratgias dos scios da entidade para conceituar e divulgar a Geriatria, procurando, com isso, fazer uma distino entre os mdicos considerados charlates e os profissionais que desenvolviam trabalhos srios com a velhice; a dcada de 1980, quando a SBGG comea a receber oficialmente profissionais de outras formaes, que no da Medicina, procurando administrar a relao que nasce no interior da entidade a partir desse encontro, com o intuito de participar mais intensamente do debate sobre o envelhecimento no Brasil, reforado pelo que j vinha ocorrendo internacionalmente. Este o momento em que se inicia a redefinio da velhice e de seus problemas, que passaram a requerer uma abordagem multidisciplinar; por fim, a dcada de 1990, perodo em que se intensifica a presena da universidade nos domnios da entidade, iniciando um dilogo, muitas vezes conflituoso, entre os profissionais que esto na prtica e os pesquisadores, no qual o embasamento cientfico passa cada vez mais a ser uma exigncia no interior do grupo. Assim, ainda neste captulo apresento uma perspectiva de anlise baseada em trs geraes de scios da SBGG, que correspondem, respectivamente a cada um dos perodos acima. Ou seja, a percepo de que havia diferenas substanciais na forma como os scios lidaram com o conhecimento gerontolgico, ao longo da trajetria da SBGG, permitiu atentar para suas implicaes, as quais acabaram engendrando prticas, estratgias e acontecimentos que contriburam, at mesmo, na caracterizao dos perodos da entidade.

7

Dessa forma, o que chamo de primeira gerao da SBGG representa um grupo de scios que participou mais intensamente da entidade nas dcadas de 1960 e 1970; de segunda gerao, aqueles que mais trabalharam pela entidade na dcada de 1980; e, nessa mesma lgica, a terceira gerao est relacionada SBGG da dcada de 1990. Porm, dizer que um determinado scio pertenceu primeira gerao, por exemplo, no significa dizer que essa pessoa no tenha continuado a fazer parte da entidade depois, pois muitos atuam at hoje. Acima de tudo, o que se procura apontar que essa pessoa participou mais intensamente de um movimento e de uma forma de conceber o envelhecimento que eram especficas a um determinado perodo pelo qual passou a entidade. Em suma, com este trabalho espero reunir elementos que contribuam para o enriquecimento da reflexo sobre o processo de constituio da Gerontologia no Brasil, pois acredito que a SBGG apenas uma dentre as mltiplas direes desse processo no qual a velhice emerge como categoria etria merecedora de ateno pblica, e como segmento populacional que requer formas de gesto orientadas por profissionais com uma formao e com conhecimentos cientficos especficos.

8

9

Captulo 1Percurso terico e questes que orientam a pesquisa

10

Captulo 1 Percurso terico e questes que orientaram a pesquisaIndicar os principais desafios que a SBGG se prope enfrentar e o carter das estratgias postas em ao com essa finalidade ao longo de sua trajetria foi resultado de um percurso terico que envolveu trs direes que sero desenvolvidas neste captulo: a construo da velhice como problema social; a constituio da Gerontologia em disciplina cientfica; e a delimitao de um campo especfico de exerccio profissional. Aliado a este percurso terico aponto, em cada uma das direes propostas, as questes que nortearam a pesquisa.

1. 1. A Construo da Velhice como Problema SocialA construo da velhice como etapa da vida marcada pela decadncia fsica e pela perda de papis sociais produto do final do sculo XIX, tal qual discutida por Foucault (1995), no esforo de ordenar, classificar e separar as populaes, que marca o surgimento do Estado Moderno. De acordo com Lima (1999, p. 5), ao lado da variabilidade relativa periodizao das fases da vida em diversas sociedades e diferentes culturas, observar a transformao de novas formas de pensar o ciclo da vida atravs da histria revela o quanto esta periodizao se torna significativa nas sociedades ocidentais modernas. Nesse sentido, especialmente interessante o trabalho de Aris (1981) sobre a histria social da criana e da famlia, na medida em que nos aponta como a infncia, praticamente inexistente como categoria durante a Idade Mdia, foi sendo inventada gradualmente. Na Frana medieval, as crianas no eram separadas do mundo adulto; assim que obtivessem capacidade fsica, elas participavam integralmente do mundo do trabalho e da vida social adulta. A sensibilidade em relao infncia e o modo como hoje tratada essa etapa da vida so fruto de um longo processo que s adquire a configurao contempornea no sculo XIX.

11

Outro trabalho importante nessa mesma direo o de Elias (1990), o qual nos mostra que a modernidade teria alargado a distncia entre adultos e crianas, no apenas pela construo da infncia como uma fase de dependncia, mas tambm por meio da construo do adulto como um ser independente, dotado de maturidade psicolgica, direitos e deveres de cidadania. Esses estudos, assim como a literatura antropolgica sobre os grupos e as categorias de idade, mostram que a periodizao da vida implica um investimento simblico especfico em um processo biolgico universal (Debert, 1994, p. 10). Os princpios de classificao do mundo social, mesmo os que parecem mais naturais, remetem sempre aos fundamentos sociais, quando trabalhamos com a perspectiva antropolgica. Ou seja, estigmas fsicos e propriedades biolgicas como gnero e idade geralmente servem de critrios de classificao dos indivduos no espao social. Na maioria das vezes a elaborao desses critrios est associada emergncia de instituies e de agentes especializados que encontram nessas definies o fundamento de sua atividade. Para Foucault (1994; 1995), tais princpios de classificao no tm origem na natureza mas em um trabalho social de produo de populaes em que operam diferentes instituies, segundo critrios juridicamente constitudos, sendo o sistema escolar, o sistema mdico e os sistemas de proteo social os meios comuns e os mais estudados. A prpria noo de idade que se exprime em nmeros e anos produto de uma prtica social determinada: medida abstrata, cujo grau de preciso em algumas sociedades explicado por necessidades da prtica administrativa. No se poderia considerar a idade dos indivduos uma propriedade independente do contexto no qual ela ganha sentido, tanto que a fixao de uma idade produto de uma luta que coloca em conflito as diferentes geraes. As categorias etrias so, assim, um bom exemplo do jogo que envolve toda classificao. Segundo Katz (1996), a construo das classes etrias com base num sistema cronolgico de datao est fortemente relacionada com o que ele chama de curso de vida moderno. A noo de curso da vida refere-se s maneiras como a sociedade atribui significados sociais e pessoais passagem do tempo

12

biogrfico, permitindo a construo social de personalidades e trajetrias de vida, com base numa seqncia de transies demarcadas socialmente e diferenciadas por idade. [Hagestad, 1990, apud Neri, 1995, p. 30] Nesse sentido, a emergncia da velhice como categoria etria relaciona-se fortemente com o nascimento dos Estados modernos. Na Modernidade, a relevncia do prprio curso de vida como instituio social cresceu consideravelmente. O atributo idade cronolgica teria aumentado de importncia em relao a outros atributos considerados tradicionais, como parentesco, posio social ou lugar de origem. Para Katz (1996, p. 61), pode-se localizar a institucionalizao da idade ao longo do curso de vida: por exemplo, [atravs da] idade de se ingressar na escola, do servio militar, do incio das atividades profissionais, do casamento e, finalmente, da aposentadoria. Em outras palavras, a institucionalizao crescente do curso de vida:

[...] envolveu praticamente todas as dimenses do mundo familiar e do trabalho e est presente na organizao do sistema produtivo, nas instituies educativas, no mercado de consumo e nas polticas pblicas, que cada vez mais tm como alvo grupos etrios especficos [...] a regulamentao estatal do curso da vida est presente do nascimento at a morte, passando pelo sistema complexo que engloba as fases de escolarizao, entrada no mercado de trabalho e aposentadoria. [Debert, 1998, p. 59] Portanto, conforme Mercadante (1998, p. 60), no devemos restringir a anlise da velhice a seus aspectos biolgicos, pois pensar a velhice de maneira no total estabelecer uma determinao do biolgico sobre todos os outros aspectos que explicam o envelhecimento, como os aspectos culturais, histricos e psquicos. Ou seja, em vez de apenas considerarmos a velhice da perspectiva biolgica ou legal, devemos procurar entender tambm a relao entre a representao da velhice dominante em nossa sociedade e aquela construda pelas pessoas em seu cotidiano (Barros, 1995). Dessa forma, compreender como so representados os perodos da vida nos remete a outras categorias fundamentais em toda a sociedade: as categorias de tempo, espao e pessoa, ou seja, a prpria sociedade estudada. Assim, uma anlise crtica deve procurar reconectar a construo dos estgios do curso da vida com os processos econmicos, culturais e burocrticos que distriburam as diferenas etrias pela

13

sociedade (Groisman, 1999, p. 15). Como no trabalho desenvolvido por Groisman, a velhice ser aqui considerada como uma etapa que se diferenciou e ganhou contornos prprios em um dado momento histrico no processo de construo do curso de vida moderno. Assim, o estudo antropolgico da velhice no consiste em definir quem velho e quem no , ou em definir a partir de que idade os agentes de diferentes classes sociais transformam-se em idosos, mas em descrever o processo por meio do qual os indivduos so socialmente designados como tal. Ao tratar da diversidade cultural e histrica no modo como a vida periodizada, procuro mostrar que a constituio de um problema social, entendido como as representaes de um objeto, fenmeno ou evento, no o resultado do mau funcionamento da sociedade. Para Debert (1994), a constituio da velhice como problema social no pode ser entendida apenas como resultado mecnico do crescimento do nmero de pessoas idosas, como tende a sugerir a noo de envelhecimento demogrfico usada para justificar o interesse social pela questo. No se pode negar, porm, que a estrutura demogrfica do pas vem sofrendo rearranjos, principalmente nas ltimas cinco dcadas, em virtude das alteraes nas taxas de mortalidade e fecundidade. Anteriormente, definido como um pas jovem, ou de jovens, o Brasil apresentou at 1970 uma constncia na estrutura de sua populao de 0 a 15 anos, de adultos entre 15 e 64 anos e de idosos de 65 anos e mais. A partir de 1980, em conseqncia da queda nos ndices de fecundidade, o grupo de jovens passou a ter, em termos proporcionais, um peso bem menor na populao total. Simultaneamente, o aumento da longevidade vem ocasionando o aumento do peso relativo dos estratos de mais idade. Se o nmero absoluto de pessoas mais idosas aumenta numa populao sinal de que seus indivduos esto envelhecendo cada vez mais e em maior nmero [...]. Essas mudanas, que no tm precedente na histria humana, foram acompanhadas por alteraes significativas nos critrios de categorizao etria e nos parmetros para avaliar os graus de normalidade e de desejabilidade de vrios fenmenos associados ao envelhecimento. [Silva, 1999, pp. ix e 1] Uma vez que o surgimento e a visibilidade da velhice como questo social decorrem tambm de indicadores demogrficos, inicia-se na dcada de 1990 uma

14

mudana gradual de paradigmas sobre o envelhecimento e a vivncia da velhice com menos constrangimentos e mais alternativas, como constata Barros (1995) em pesquisa realizada nessa mesma dcada. Com isso,

as transformaes demogrficas que apontam para a intensificao do processo de envelhecimento brasileiro, sobre tudo a partir do prximo sculo, proporcionaram, em conseqncia, a intensificao das demandas especficas dessa populao, que passar a exercer uma presso crescente sobre o conjunto da sociedade e, em especial, sobre o aparato estatal. O mais grave que tais demandas j comeam a competir com as de outros segmentos etrios2, cujos problemas esto longe de soluo. O que o Brasil poderia oferecer, no futuro, em termos de satisfao das demandas de seus habitantes mais idosos? Onde esto as maiores concentraes de idosos no pas e em que condies vivem? A complexidade que envolve estes questionamentos inviabiliza respostas mais singulares, ainda mais porque elas, obvio, esto vinculadas ao comportamento futuro da economia e das relaes sociais. [Camargo e Saad, 1990, pp. 1-2] Assim, apesar de considerar o relativo aumento do nmero de idosos na sociedade brasileira, procurei investigar e ressaltar algumas das alteraes significativas na forma de lidar com os fenmenos associados ao envelhecimento. Em outras palavras, conforme Debert (1999) e Lenoir (1989), considero que s transformaes objetivas soma-se uma empresa de enunciao e mobilizao que fundamental na construo de um problema social, de um problema que merece ateno pblica. Portanto, o desafio era entender o conjunto de representaes que leva percepo de um fenmeno como problema social e, sobretudo, as estratgias acionadas e as formas adequadas de solucion-lo. Dessa maneira, a construo de um problema social supe um verdadeiro trabalho social, cujas etapas essenciais so o reconhecimento e a legitimao de um problema enquanto tal. Por reconhecimento podemos entender a visibilidade alcanada por uma situao particular, o que supe a ao de grupos socialmente interessados em produzir uma nova categoria de percepo do mundo social a fim de agir sobre ele. J a legitimao no resultado do simples reconhecimento pblico do problema, mas supe uma empresa de promoo para inseri-lo no campo das

2

Como o atual debate existente no Congresso sobre as implicaes que o aumento do salrio mnimo traro para os cofres pblicos com relao manuteno da Previdncia Social.

15

preocupaes sociais do momento. As condies dessa mobilizao, seu mbito e suas dificuldades foram os interesses da anlise empreendida sobre a SBGG. Alm do crescimento do nmero de idosos em comparao com outros segmentos etrios, meu pressuposto que h outros elementos envolvidos no processo de constituio da velhice como um problema de visibilidade pblica: as conseqncias econmicas do envelhecimento e a constituio da velhice como objeto de um discurso cientfico discurso gerontolgico , que se incumbiu da tarefa de gerenciar o envelhecimento. Essa postura corresponde perspectiva defendida por Katz (1996), ao apontar a redefinio do curso de vida - separando a velhice de outras fases - por meio de trs mecanismos, os quais chamou de tecnologias de diferenciao, proporcionando-lhe um status diferenciado daquele que possua at ento. So eles: o saber

geritrico/gerontolgico, a institucionalizao das penses e aposentadorias como um direito social 3 e o surgimento dos asilos de velhos.4 Conforme objetivo anteriormente definido, irei concentrar atenes no primeiro mecanismo, a fim de reunir o maior nmero de elementos que dialoguem com a abordagem adotada por Katz.5 As conseqncias econmicas do envelhecimento populacional passam pelo tema da aposentadoria, ou seja, das mudanas na estrutura financeira das empresas e, posteriormente, do Estado. Com o advento da aposentadoria, a estrutura familiar deixa de arcar sozinha com os custos de seus velhos, pois o Estado tambm torna-se responsvel pela velhice. Contudo, a instituio da aposentaria gerou um problema social quando o nmero de aposentados comeou a crescer. Tendo isso em vista, a Gerontologia passou a oferecer a teraputica adequada para enfrentar esse novo problema por meio de um amplo espectro de aes: Gerontologia Clnica, Psicologia do envelhecimento e at mesmo o planejamento de polticas sociais para os idosos. Portanto, as representaes da velhice devem parte de sua fora ao fato de que ela se encontra garantida tambm pelos agentes do campo cientfico ? mdicos, psiclogos e cientistas sociais ? , e se apia sobre a difuso de uma traduo gerontolgica que est3

Ver Simes (1999) a respeito da histria da Previdncia Social no Brasil, e Debert e Simes (1994) sobre aposentadoria e terceira idade. 4 Sobre o surgimento dos asilos no Brasil, ver Groisman (1999).

16

relacionada com a institucionalizao recente da Gerontologia como disciplina cientfica. Conforme Lenoir (1989), a Gerontologia rene as diversas especialidades que se constituram em torno do tratamento da velhice, mas a consistncia e a fora dessa nova especialidade apiam-se menos nos fundamentos cientficos reconhecidos como tais pelo conjunto dos cientistas do que na necessidade de uma nova crena coletiva relativa constituio da gesto da velhice, para a qual tais especialistas tm contribudo. Dizer que a SBGG tem por objetivo se engajar no processo de constituio da velhice como um problema social, num pas em que a velhice ainda no era plenamente vista como tal na poca de sua fundao, buscar perceber e compreender os caminhos e recursos de que ela se utilizou para convencer a sociedade brasileira de que eram necessrios especialistas nesse campo. Com isso, procurou constituir a Gerontologia em uma especialidade autorizada para gerenciar os assuntos relativos ao envelhecimento e, mais especificamente, velhice. Nesse sentido, o objetivo desta obra no avaliar se a SBGG tem uma viso correta da velhice, se ela fez as solicitaes corretas ao Estado referentes aos temas que envolvem a populao idosa, se colaborou adequadamente com outras entidades ou se zelou para o exerccio profissional da especialidade, mas interessa entender: quem so os agentes envolvidos na constituio da SBGG como entidade cientfica e profissional; como eles definem as relaes de fora que se estabelecem e quais as estratgias colocadas em ao a fim de legitimar a autoridade da SBGG em dizer quem est apto ou no a tratar as questes relacionadas com o envelhecimento e a velhice; quem so seus interlocutores privilegiados e quais as relaes estabelecidas para dar visibilidade ao problema; como a SBGG opera no sentido de contribuir para que a sociedade reconhea e legitime a velhice como um problema que merece ateno pblica; e como a SBGG, por meio de seus associados, responde s propostas formuladas por programas de agncias pblicas ou privadas. O levantamento realizado nos arquivos da entidade mostra as iniciativas empreendidas. Ao analisar as atas das reunies ocorridas logo nos primeiros anos de existncia da SBGG, j notamos uma preocupao no estabelecimento de interlocuo

5

Para o aprofundamento das outras duas tecnologias de diferenciao sugeridas por Katz, ver Groisman (1999).

17

com diversas entidades e instituies, com o objetivo de constituir a velhice em questo pblica: ? discusso da criao de centros geritricos, na ata de 16/9/1967; ? dialogar com rgos do governo e esfera legislativa, em 2/9/1967; ? discutir a criao da Fundao do Bem-estar da Velhice, em 16/9/1967. Dessa maneira, notamos a presena de interlocutores que a SBGG definir como privilegiados e relaes especficas em cada um dos trs perodos sugeridos e analisados no captulo 3. So eles: universidades e centros de pesquisa; reivindicaes apresentadas ao poder executivo e legislativo nos trs nveis; outras associaes de profissionais; relaes com outras entidades que tambm pretendem ter autoridade sobre a gesto da velhice no Brasil; indstrias farmacuticas; hospitais; associaes e entidades cientficas internacionais; a mdia; relaes com a Associao Mdica Brasileira no controle exercido sobre o ttulo de especialista em Geriatria e Gerontologia; e, por fim, relaes da SBGG Nacional com as sees estaduais e seus associados. De acordo com a pesquisa de Groisman (1999) sobre a institucionalizao da velhice no Brasil no comeo do sculo XX, o surgimento dos mecanismos burocrticos, disciplinares e institucionais, apontados nos estudos de Foucault (1994), representavam uma reviravolta to significativa nos rumos da velhice, na virada do sculo XX, quanto a que se deu nos anos que se seguiram fundao da SBGG, em 1961. Mais do que isso, esses mecanismos representavam respostas sociais a um problema que comeava a ser formulado: O entendimento de toda a engrenagem envolvida na problemtica da velhice, acreditamos, deve se dar a partir de uma histria que analise como a velhice se tornou alvo de tantas prticas institucionais ou, melhor dizendo, como foi moldada por estas prticas (Groisman, 1999, p. 6). Dessa forma, ao assumir como pressuposto que a velhice uma construo social, procuro compreender tendo como foco a SBGG a sua constituio como problema social e a constituio do envelhecimento como objeto de saber e de profissionalizao. Nos dois prximos itens apresento as referncias tericas que tm orientado a reflexo sobre a constituio da Gerontologia como objeto de saber cientfico e como rea de atuao profissional, mesmo quando o interesse especfico dos autores no est voltado para a Gerontologia.

18

1. 2. A Constituio da Gerontologia como Disciplina CientficaA constituio da Gerontologia como rea de saber e de atuao profissional no o resultado automtico da existncia de um problema social, embora a trajetria da SBGG demonstre que a formao dessa entidade implicou a realizao simultnea de duas tarefas: por um lado, o trabalho de legitimao e presso para o reconhecimento de um problema que iria fazer parte do cenrio nacional e, por outro, a formao de um campo de conhecimento e profissionalizao. Pode-se dizer que a reflexo sobre a velhice e o envelhecimento e o interesse em prolongar a vida humana e descobrir formas de rejuvenescimento so preocupaes que vm mobilizando indivduos ao longo da histria das sociedades ocidentais. Porm, importante reconhecer que o modo como seus problemas so definidos e a forma de solucion-los so variveis. Na Antigidade, conforme Gomes (1985), Ptah-Hotep, no Egito de 2500 a.C., a primeira referncia conhecida a escrever uma obra dedicada velhice. Em 1600 a.C. encontramos um papiro relativo a temas cirrgicos traduzido por Edwin Smith contendo recomendaes teis ainda hoje, alm de diversas formulaes como: O livro para a transformao de um homem velho em um jovem de 20 anos, o qual contm a prescrio e a formulao de um ungento especial feito a partir de uma pasta, mantida em um recipiente de pedras semipreciosas e usado em frico para a eliminao de rugas e manchas (Leme, 1996, p. 14). Ainda de acordo com Leme, a civilizao hebria nos deixou exemplos de uma cultura que valorizava a velhice tanto do ponto de vista religioso como do poltico e legal; no livro do eclesistico Ben Sirak, escrito aproximadamente em 200 a.C., podemos ler conselhos sobre o cuidado com idosos. J entre os gregos, os registros mostram que havia posies contraditrias quanto ao envelhecimento, como o desdm em relao velhice, presente nos textos de Minervo, de 630 a.C., em oposio aos textos de Homero e Slon que associam velhice sabedoria, ou ainda nos dilogos de Scrates e Plato, em A Repblica, no qual Plato menciona: a velhice faz surgir em ns um imenso sentimento de paz e libertao (apud Gomes, 1985, p. 3). Por fim, dentre os romanos, no primeiro sculo antes da era crist, o filsofo Marco Tlio Ccero escreveu a obra De

19

Senectude, na qual faz preciosas consideraes sobre os diversos problemas do envelhecimento como a memria, a perda da capacidade funcional, as alteraes de rgos e tecidos, a perda da capacidade do trabalho etc. (Leme, 1996, p. 17). Na era crist os mdicos romanos Galeno e Celsus fazem numerosas referncias ao tratamento de doenas que so comuns na velhice, alm de apresentarem recomendaes no trato de idosos que ainda so utilizadas pelos geriatras (Leme, 1996). Na Idade Mdia merece destaque o nome de Arnold de Villanova e seu livro Da conservao da juventude e da proteo da velhice, de 1290, e os trabalhos de Roger Bacon, ambos preocupados em desenvolver formas de controle e hbitos de higiene a fim de prolongar a vida. No Renascimento observa-se um progressivo aumento da expectativa de vida. Na segunda metade do sculo XV, Gabriele Zerbi escreve o livro Gerontocomia, um manual de higiene para idosos que, segundo Leme (1996), representa o primeiro livro impresso na rea da Geriatria. Logo em seguida, Luigi Cornaro escreve, aos 88 anos, o Tratado sobre a sade e vida longa e sobre os meios seguros para consegui-la, contendo tambm recomendaes sobre higiene e estilo de vida. A partir do sculo XV, o envelhecimento foi alvo de teorias mdicas desenvolvidas nas obras de Andr Laurens, Francis Bacon, John Floyer e George Cheyne, alm de perpassar os questionamentos de Vauvenargues e Descartes (Gomes, 1985; Leme, 1996). Na Era Moderna, menes velhice so feitas nos trabalhos de Goethe, e Johann Bernard von Fischer escreve o que considerado o primeiro tratado cientfico em Geriatria, rompendo com a tradio medieval ao atacar o pessimismo existente no meio mdico sobre a ateno aos idosos. Esse argumento reforado no livro de Christoph Hufeland a respeito do prolongamento da vida, e na obra de Benjamin Rush, que lana o conceito de que as doenas, e no o envelhecimento em si, so as responsveis pela morte e de que o envelhecimento no doena (Gomes, 1985; Leme, 1996). No final do sculo XVIII e por todo o sculo XIX cresce o nmero de obras sobre o assunto, das quais destaco, entre outros, os seguintes autores: J.A. Salgus, B. Seiler, C. Canstatt , R. Parise, D. Fardel, T. Geil, B. Tessier e C. Prus. Gomes (1985) e Leme (1996) consideram ainda que, na segunda metade do sculo XIX, o Hospital Salptrire, em Paris, foi o primeiro estabelecimento geritrico, pois acomodava de dois a trs mil

20

idosos. Nesse hospital, Jean-Martin Charcot deu aulas sobre o tema do envelhecimento, publicando em 1881 um trabalho intitulado Lies sobre o envelhecimento, rico em observaes clnicas e discusses a respeito do estilo de vida dos pacientes. Portanto, a forma como a Medicina percebia a doena e o corpo envelhecido constituram um saber pr-geritrico, embora Katz (1996) mostre que, apesar de todas essas iniciativas, a Gerontologia e a Geriatria s vo surgir como especialidades no incio do sculo XX. Esse movimento pr-geritrico, denominado por Katz (1996) de discurso sobre a senescncia, iniciou-se na Antigidade e intensificou-se nos sculos XVIII e XIX. Esse discurso germinou particularmente na Frana, por meio dos trabalhos de Bichat, Charcot e Broussais, formando a base sobre a qual emergiriam as modernas prticas sobre a velhice. Pesquisas feitas por fisiologistas, bilogos e patologistas iniciaram a formao de um campo especfico de saber a respeito do envelhecimento, como conta Achenbaum (1995). O principal desafio desses cientistas foi desvendar os efeitos cumulativos do envelhecimento, das doenas e das agresses ambientais nas capacidades humanas durante o curso de vida. Eles tambm procuravam determinar se as funes corporais declinantes estavam associadas s modificaes gerais ou especficas que ocorriam com o avano da idade; resolver esses problemas requeria uma abordagem multidisciplinar. De acordo com Achenbaum (1995, p. 43), trs pesquisadores foram os mais conhecidos proponentes, por volta da virada para o sculo XX, de uma filosofia otimista da velhice, no sentido de procurar reunir esforos para criar uma cincia que pudesse aliviar, se no erradicar, as devastaes da idade [...], produzindo trabalhos profticos construdos para persuadir seus contemporneos de que a velhice poderia ser salva. O primeiro deles foi Elie Metchnikoff, que em 1903 cunhou o termo Gerontologia ? o radical grego geron significa homem velho, e logo, o estudo de ? para designar um campo de investigao dedicado ao estudo exclusivo do envelhecimento e da velhice. De qualquer forma, antes mesmo do mrito por ter cunhado um termo que oficializasse o interesse cientfico pelo envelhecimento, o diretor do Instituto Pasteur de Paris e seguidor de Charcot deve ser reconhecido, na opinio de Achenbaum (1995), por sua ousadia em cruzar vrias fronteiras cientficas durante o curso de sua carreira, bem

21

como por combinar observaes casuais e noes eclticas em hipteses testveis. Nascido na Rssia mas radicado na Europa desde 1882, lanou-se primeiramente Zoologia. Graas aos conhecimentos adquiridos pelos estudos de embriologia, parasitologia e digesto, ele acabou atravessando as fronteiras da Patologia comparativa e da Medicina. Metchnikoff era um pesquisador bastante interessado na relao entre a teoria e a prtica e, por isso, dedicou-se viabilizao dos resultados encontrados em suas pesquisas. Porm, [...] no escondeu seu desprezo por remdios promovidos por jornalistas, curandeiros e charlates [...] ele rejeitava trabalhos que iam alm das evidncias de que tecidos e rgos invariavelmente degeneram-se na velhice. Na base de seus prprios estudos, ele demoliu vrios estudos de longevidade comparativa e morte natural em rpteis, aves, mamferos e humanos. Ele desafiou a teoria de August Weismann que dizia que a proliferao de certas clulas culminariam na morte dos organismos. Em vez de aceitar a inevitabilidade da decadncia e da degenerao com o avano dos anos, Metchnikoff pensava que algum dia uma velhice fisiolgica normal idealmente poderia ser alcanada pelos homens. A devastao da idade, ele certamente sentiu, poderia ser revertida. [Achenbaum, 1995, pp. 30-31] Contudo, sua postura rgida e o compromisso com a pesquisa no foram suficientes para ganhar a ateno e o apoio de toda a comunidade cientfica para o assunto que vinha investigando. Tanto em The nature of man (1903) quanto em The prolongation of life (1908), ele ofereceu evidncias bioqumicas e multiculturais para corroborar suas pretenses sobre os poderes do iogurte para o prolongamento da vida. Como conta Achenbaum (1995, p. 31), isso fez com que alguns mdicos e cientistas zombassem do velho homem como moderno Ponce de Leon buscando a fonte da o juventude imortal e encontrando isso no leite . As pesquisas a respeito da fisiologia do envelhecimento na primeira metade do sculo XX no avanaram o suficiente para garantir o sucesso do esforo das pessoas interessadas em prolongar a vida, mas reuniram subsdios para que uma especialidade mdica fosse fundada a fim de tratar das doenas dos velhos, e at mesmo da prpria velhice como doena, pois com o avano da Medicina e o conhecimento mais

22

aprofundado do organismo humano e das doenas, os mdicos passaram a exercer um controle maior sobre a morte (Machado,1992). O fundador dessa especialidade mdica teria sido Ignatz Leo Nascher, mdico americano, mas nascido em Viena. Foi ele quem introduziu o termo Geriatria na comunidade mdica em um artigo escrito em 1909 para o New York Medical Journal intitulado Geriatrics. Entretanto, considera-se como incio da Geriatria a publicao, em 1914, de seu livro Geriatrics: The diseases of old age and their treatment, including physiological old age, home and institutional care, and medico-legal relations. O subttulo era extenso, mas marcava claramente a extenso da viso multidisciplinar de Nascher (Katz, 1996; Achenbaum, 1995). O terceiro pesquisador destacado por Achenbaum foi G. Stanley Hall, psiclogo que publicou, em 1922, o livro Senescence: The last half of life, aos 78 anos. Por meio de evidncias histricas, mdicas, literrias, biolgicas, fisiolgicas e comportamentais, ele procurou comprovar que as pessoas idosas tinham recursos at ento no apreciados. Ou seja, ele contradiz a crena de que a velhice simplesmente o reverso da adolescncia, e contra-argumenta que, alm das peculiaridades existentes no modo de pensar, sentir e querer dos jovens e dos idosos, havia variaes individuais independentemente das diferenas etrias (Goldstein, 1999, p. 1). Os trabalhos de Nascher e de Hall partilhavam do entusiasmo de Metchnikoff em relao s perspectivas da pesquisa sobre o envelhecimento no futuro. Porm, Nascher procurou enfatizar o contraste entre a velhice e a patologia em si. Ou seja, a velhice, na sua opinio, no era um estgio patolgico da maturidade, mas um estado distinto e fisiologicamente normal da vida (Achenbaum, 1995, p. 45). Por isso ele acreditava que uma nova especialidade mdica precisava ser organizada junto a linhas que tinham provado sucessos no lanamento de outras especialidades j conceituadas. Atento aos paralelos especficos da idade, sua primeira iniciativa foi convidar A. Jacobi, considerado o fundador da Pediatria americana, para escrever a introduo de seu livro de 1914 e, um ano depois, fundar a Sociedade de Geriatria de Nova York. Em 1917, The Medical Review of Reviews decidiu ter uma seo de Geriatria e convidou Nascher para ser seu editor. Alm de recorrer Medicina, esse pesquisador tambm investigou aspectos sociais do envelhecimento. Nessa iniciativa, sondou tpicos que pertenciam

23

mais ao campo da Gerontologia que da Geriatria, pois em virtude das polmicas teorias monocausais do envelhecimento, Nascher relutou em limitar sua ateno a estudos clnicos dos idosos. Assim como Metchnikoff, Nascher passou por dificuldades para agregar parceiros a seus projetos e investigaes sobre o envelhecimento. Alguns colegas aceitaram a distino que ele fez entre causas patolgicas e fisiolgicas da morte na velhice, mas poucos foram os clnicos que partilharam suas preocupaes em integrar cincia bsica, pesquisa social e direito, pois nenhum combinou esses interesses em suas prprias carreiras.

A cultura dominante do profissionalismo mdico e cientfico dificultou os esforos de Nascher em disseminar suas idias e criar um novo campo de saber em formas paradoxais. A maioria dos especialistas esperava que as suas fronteiras fossem impenetrveis. Nascher deve ter minado sua prpria campanha ao sugerir que os mdicos interessados em doenas da velhice prestassem ateno s Cincias Sociais. Para tornar a Geriatria atraente aos mdicos, Nascher teve que enfatizar os aspectos biomdicos da velhice a custo de seus componentes sociais. Inversamente, muita nfase nas cincias bsicas agradariam os mdicos e os cientistas que Nascher precisava atrair, mas no reuniria a comunidade das Cincias Socais [...] Trabalhando sozinho, Nascher simplesmente no poderia prover as teorias bsicas, dados ou reviso de parceiros necessrias para lanar uma especialidade mdica [...] pois admitia ser o nico geriatra com dedicao exclusiva at 1926. As coisas no ficaram mais fceis com o passar do tempo. Como muitos outros profetas, a mensagem de Nascher caiu basicamente em orelhas surdas. [Achenbaum, 1995, p. 47-48] Por mais que os trs pesquisadores procurassem divulgar uma abordagem multidisciplinar do envelhecimento, acreditando que os avanos cientficos

pavimentariam o caminho para concepes positivas sobre o tema, na poca a maioria dos escritos cientficos e populares enfocava as debilidades consideradas produto dos mecanismos e processos bsicos do prprio envelhecimento, assim como as vicissitudes associadas com a finitude humana. Nesse sentido, interessante ressaltar que os investimentos no estudo sistemtico do envelhecimento no comeo do sculo XX partiram basicamente de empreendimentos individuais. Metchnikoff contou com o suporte de uma equipe de assistentes e colegas do

24

Instituto Pasteur, mas foi ele mesmo quem conduziu seu prprio curso no laboratrio. Nascher e Hall eram figuras solitrias. Ao longo do tempo, pesquisas foram sendo disseminadas mais largamente, mas a Gerontologia no era ainda um empreendimento coletivo (Achenbaum, 1995). Portanto, no comeo do sculo XX, a Gerontologia, como campo de investigao cientfica, concentrou suas atenes na observao dos processos fisiolgicos do envelhecimento e no potencial prolongamento da vida por meio de intervenes e tratamentos mdicos. A pesquisa sobre a velhice e o envelhecimento, por mais que procurasse se tornar multifacetada, permanecia fragmentada e continuou investindo e fortalecendo pressupostos estabelecidos desde o sculo XIX, que diziam respeito estagnao do desenvolvimento nesse perodo e ao carter involutivo da velhice (Goldstein, 1999, p. 1). Dentre a comunidade cientfica americana [por exemplo], haviam poucas alianas entre pesquisadores clnicos e praticantes por outro lado; pesquisas bsicas e aplicadas raramente interagiam em Cincias Sociais (Achenbaum, 1995, p. 50). Hayflick (1996) e Papalo Netto e Ponte (1996) apontam que o atraso no avano e na aceitao desse saber especfico esteve ligado: 1) ao fato de os modernos cientistas relutarem para entrar num campo dominado por charlates. Os jovens cientistas, por sua vez, temiam tentar carreira que possua tal marca e os pesquisadores de renome no pretendiam arriscar sua reputao em uma rea vista com desdm; 2) falta de fundamento terico que pudesse levar a um planejamento experimental adequado, o que indispunha as iniciativas dos cientistas nesse campo; 3) ao pouco investimento destinado pesquisa; 4) incapacidade de mensurar o envelhecimento, ou seja, dificuldade em afirmar quando as alteraes so decorrentes do avano da idade e quando so conseqentes de enfermidades associadas ou decorrentes do envelhecimento, pois fatores genticos, ambientais e culturais podem tambm estar presentes; 5) aos idosos como grupo politicamente frgil, que no tiveram voz no atendimento a suas reivindicaes mais elementares, pois o maior interesse das polticas pblicas est voltado para as demandas materno-infantis e dos grupos etrios mais jovens. Com isso, os aspectos sociais do envelhecimento humano atraram menos o interesse de cientistas que seus aspectos fisiolgicos, patolgicos e biolgicos, o que

25

acaba por reforar o antigo interesse secular de usar a cincia para restaurar a vitalidade da velhice ou prolongar a vida. Portanto, se a velhice esteve sempre presente no rol de interesses das sociedades ocidentais preciso reconhecer que o modo como seus problemas so definidos e a forma de solucion-los so muito variveis. Apenas a partir dos anos 40, principalmente aps o perodo do ps-guerra, a Gerontologia efetivaria seu empreendimento multidisciplinar e extrapolaria os limites do corpo envelhecido, comeando a assumir uma identidade coletiva, tratando tambm dos aspectos psicolgicos e sociais da velhice. Graas aos investimentos multidisciplinares da Gerontologia, a partir da segunda metade do sculo XX, sua definio atual mais abrangente, tendo em vista o mbito de suas pretenses no comeo do sculo: A Gerontologia, como campo de saber especfico, aborda cientificamente mltiplas dimenses [do processo de envelhecimento e da velhice] que vo desde a Geriatria como especialidade mdica, passando pelas iniciativas da Psicologia e das Cincias Socais voltadas para a discusso de formas de bem-estar que acompanham o avano das idades, at empreendimentos voltados para o clculo dos custos financeiros que o envelhecimento da populao trar para a contabilidade nacional. [Debert, 1997, p. 40] Esse tipo de conhecimento multidisciplinar requer uma concepo da velhice como um perodo da vida demarcado cronologicamente e do velho como um portador de direitos como, por exemplo, a aposentadoria , os quais so a contrapartida das perdas que caracterizam sua situao social. Nas palavras de Groisman a respeito da Gerontologia moderna:

O surgimento da Gerontologia refletiu o reconhecimento de um novo tipo de problema, envolvendo o interesse de uma variedade de cientistas, como mdicos, psiclogos, socilogos etc. Mais do que isso, representou a descoberta dos velhos como uma entidade demogrfica, uma populao [Groisman, 1999, p. 19]. S (1999) observa que o atual estatuto cientfico da Gerontologia, de carter multidisciplinar, possui uma integrao de elementos tanto exgenos quanto endgenos. Isso ocorre porque:

26

[...] o seu objeto de estudo e de ao engendra dimenses biolgicas, psquicas, socais, culturais, estticas. A Gerontologia, em sua constituio, incorpora subsdios cientficos e tcnicos de outros ramos que lhe so afins (cincias factuais e cincias tcnicas), transcendendo-os. Aqui est sua maior contradio, que corresponde a sua maior riqueza: ao mesmo tempo em que se colocar como especializao, ela ultrapassa, de imediato, as caractersticas de atomizao e da unilateralidade. No pode fragmentar o objeto porque a parte que ela isola ou arranca do contexto originrio do real - o velho e o processo de envelhecimento - s pode ser explicada efetivamente na integridade de suas caractersticas. Ao responder essa necessidade intrnseca, a Gerontologia desenvolve um trabalho interdisciplinar em sua prpria gnese e no fundamento da prpria produo do saber e da prpria ao interventiva [S, 1999, p. 227]. Portanto, alm de recente, a constituio da Gerontologia como disciplina cientfica e especialidade profissional no Brasil contribuiu para o prprio processo de constituio da velhice como um problema social merecedor de ateno pblica e, assim, na sensibilizao da sociedade brasileira para as demandas da velhice e do envelhecimento de modo geral. Entender a efetivao desses dois movimentos acompanhar o processo que acompanhou a construo da velhice como categoria social, desenhada por significados especficos, ao longo de todo o sculo XX. Nesse raciocnio, pensar no desenvolvimento da Gerontologia brasileira em uma abordagem multidisciplinar deparar com o modo como diferentes disciplinas acadmicas e espaos de atuao profissional transformam o processo de envelhecimento e a velhice em objeto de saber e em especialidade. Exemplificando os argumentos apresentados at agora, ao analisar a formao da Gerontologia na Frana, Lenoir (1989) mostra-nos que os primeiros discursos pertenciam ao campo mdico e tratavam do envelhecimento orgnico, visto como desgaste fsico. Esse discurso aparece em obras e revistas especializadas e prope medidas de higiene corporal relacionadas com o retardamento do envelhecimento. Mais tarde, com as polticas de aposentadoria, as problemticas econmica e financeira, de base demogrfica, impem-se no campo poltico-administrativo. Trata-se de analisar o custo financeiro do envelhecimento, estabelecendo a relao entre a populao ativa e aquela que est fora do mercado de trabalho. Dessa relao demogrfica se servem os experts

27

em administrao pblica e em gesto das caixas de aposentadoria para calcular o montante dos impostos ou das cotizaes de seus associados e dos gastos em penses. Da mesma forma, e para responder s demandas dos mais velhos, especialistas em Psicologia e Sociologia emprestam seu saber para definir as necessidades dos aposentados e as formas de resolv-las. Alm disso, a Gerontologia tende, inclusive no Brasil, e cada vez mais, a abarcar o problema do envelhecimento populacional que se constitui como problema nacional. J no se trata apenas de melhorar as condies de vida do velho pobre, ou de propor formas de bem-estar que deveriam acompanhar o avano da idade, ou ainda de empreender clculos de contribuies adequadas s despesas com aposentadoria. Trata-se agora de apontar os problemas que o crescimento da populao idosa traz para a continuao da vida social, contrapondo-os diminuio das taxas de natalidade. Para Lenoir (1989), a transformao do envelhecimento em objeto de saber cientfico pe em jogo mltiplas dimenses: do desgaste fisiolgico e do prolongamento da vida ao desequilbrio demogrfico e custo financeiro das polticas sociais. A pluralidade de especialistas e abordagens da Gerontologia no impede a constituio de um saber claramente delimitado, em que as disciplinas, cada uma sua maneira, contribuem para definir a ltima etapa da vida como uma categoria de idade autnoma, com propriedades especficas, dadas naturalmente pelo avano da idade, a qual exige tratamentos especializados como, por exemplo, o desgaste fsico pelos mdicos; a ausncia de papis sociais pelos socilogos; a solido pelos psiclogos; a idade cronolgica pelos demgrafos; os custos financeiros e as ameaas reproduo das sociedades pelos economistas e especialistas na administrao pblica. Portanto, voltando-se para a proposta desta obra, quais so as polmicas e as dificuldades existentes no Brasil em torno da constituio da velhice como um problema social e do reconhecimento e da constituio de um saber especfico e rea de atuao profissional tal qual proposto pela Gerontologia? Procurando ilustrar a eficcia do uso do material que foi coletado na SBGG em relao s indagaes levantadas, apresento alguns exemplos de iniciativas da entidade em institucionalizar o saber gerontolgico e propiciar seu desenvolvimento logo nos primeiros anos de sua fundao:

28

? o Ministro da Educao foi convidado para participar de reunies da entidade, sendo que na reunio de 8/9/1965 j contavam com um representante desse ministrio; ? o interesse em criar uma revista de Geriatria, desde 5/1/1967; ? o estmulo organizao de eventos cientficos e congressos, percebido claramente no ano de 1968. Em suma, ao olharmos para os documentos coletados, h sempre duas direes principais que marcam a trajetria da SBGG: por um lado, uma preocupao com o saber ? sua institucionalizao, profissionalizao e divulgao; por outro, uma demanda por polticas pblicas voltadas ao bem-estar do idoso, envolvendo os vrios rgos do executivo e tambm envolvendo a classe poltica, como as assemblias legislativas, cmaras, constituinte etc. As estratgias que a SBGG utilizou em sua trajetria perante os desafios com que travou contato podem ser identificadas ? dentre outros elementos que so apresentados no captulo 3 ? por meio de outro fator importante, apontado por Cohen (1994), que a constituio da Gerontologia como uma cincia de mbito internacional. O ano de 1982 pode ser considerado o marco internacional da legitimao da Gerontologia como campo de saber multidisciplinar autorizado para tratar das questes do envelhecimento. A Organizao das Naes Unidas (ONU) recomendou que os pases membros declarassem este como o Ano Nacional do Idoso. Representantes de todo o mundo reuniram-se nesse mesmo ano, em Viena, na Assemblia Mundial do Envelhecimento (AME). Apesar de considerar a importncia desse evento para o prprio desenvolvimento da Gerontologia, acredito ser importante atentar para a crtica desenvolvida por Cohen (1994) a respeito da AME, a fim de entendermos os caminhos que a Gerontologia tem trilhado mais recentemente. Cohen faz uma anlise crtica das intenes desse evento e do alcance das recomendaes derivadas dos debates, argumentando que a estrutura da AME foi mais didtica do que interativa, e sua mensagem ? a velhice um problema global ? no permitiu interpretaes diferentes. Esse evento constituiu-se numa extenso do arqutipo da conferncia gerontolgica americana dos anos 50, com as mesmas duas funes:

29

nomear a velhice como um problema e doutrinar os ignorantes para estabelecer a uniformidade de solues (Cohen, 1994, p. 82). A crtica desse antroplogo americano ao carter assumido pela Gerontologia internacional, disseminada por meio da Assemblia Mundial do Envelhecimento, referese ao esforo realizado para universalizar uma epistemologia cultural especfica, por meio de uma comunicao unidirecional. Assim, qualifica de internacionalista o procedimento de invocar uma comunidade global de saber, a fim de difundir as pretenses de verdade de uma viso de mundo particular. A epistemologia subjacente Assemblia Mundial [defende o autor], com sua especialidade coletiva , internacionalista, no internacional (1994, p. 82). Em suma, o autor chama a ateno para o carter internacionalista da AME, uma vez que esta desconsidera as diferentes formas de abordar culturalmente a velhice e o processo de envelhecimento e procura estabelecer definies e solues que no necessariamente contemplam as diferenas culturais, dadas sobretudo pela maneira de cada sociedade conceber o critrio idade cronolgica. Cohen representa a epistemologia inerente AME pelo conjunto dos seguintes pressupostos: a) Universalidade: o velho e o corpo envelhecido so fundamentos legtimos de uma cincia cujas proposies so universais, sendo que os objetos universais da Gerontologia no so localizveis em discursos culturais ou histricos especficos. b) Problematicidade: o velho e o corpo envelhecido ? no a velhice ? so conceituados e representados a priori como problemas que no podem ser desviados para outras estruturas, como a famlia. c) Imperativo moral: falar a respeito dos velhos e corpos envelhecidos como problemas um ato moral necessrio. d) Ameaa: o problema do velho e do corpo envelhecido no apenas digno de anlise, mas tambm ameaador. e) Possibilidade de coero: a ambigidade gerada pelas sucessivas camadas de problematicidade e normalidade possibilita a expresso simultnea, no discurso e na prtica gerontolgica, de autonomia e coero, militncia e discriminao etria. f) Reificao da ambigidade: essa ambigidade reificada e apresentada como a essncia natural da velhice, fechando-se as possibilidades de sua crtica.

30

O pesquisador constri sua crtica ao referido carter internacionalista assumido pela Gerontologia propagada pela AME pela anlise do impacto causado por esse evento e das proposies relativas ao envelhecimento apresentadas pelas autoridades indianas participantes. Cohen aponta que o principal documento produzido em Viena, ao qual o Ministrio do Bem-estar Social indiano devotou considervel ateno, foi o Plano de Ao Internacional, 6 documento que representou

[...] um conjunto de recomendaes (todas comeando com O governo deve ...) acompanhado de questionrios destinados a examinar o grau de adequao das aes governamentais. Esses questionrios ? consistindo de perguntas na seguinte forma: o governo executa polticas ...?, o governo adotou alguma poltica ...? etc. ? exigiam a adeso a uma nica ideologia de prtica gerontolgica. [1994, p. 80] Os representantes do Ministrio indiano do Bem-estar Social interpretaram sua incapacidade de responder s propostas do Plano Internacional como um fracasso em Gerontologia por parte da ndia. Cohen defende que esse plano e o questionrio so representativos de um discurso internacional que postula uma ordem gerontolgica universal: os pases devem ... e o governo faz ... ?. A Gerontologia internacional constituiu-se na Assemblia Mundial sobre a Velhice como um fluxo de informao dos pases que produzem discurso aos pases que, embora resistam, devem responder (Cohen, 1994, p. 81). Retornando trajetria da SBGG, torna-se interessante refletir em que medida essa entidade conta com a Gerontologia internacional, tal como entendida por Cohen ? como um importante aliado, por meio de sua epistemologia e suas proposies. O projeto da Gerontologia internacional de buscar, por meio de uma perspectiva evolucionista, legitimar sua misso civilizadora no processo de transformao da velhice em uma questo pblica fica claro, conforme Cohen, nas colocaes de um de seus primeiros expoentes, Donald Cowgill.

6

Plan de Accin Internacional de Viena sobre el Envejecimiento, Asemblea Mundial sobre el Envejecimiento, 26 de julho a 6 de agosto de 1982, Viena, ustria.

31

Cowgill (1979, apud Cohen, 1994) postula cinco estgios de pensamento gerontolgico: a) a ausncia de Gerontologia em sociedades em desenvolvimento (Brasil e Ir); b) sociedades com um interesse inicial, estimulado pelo contato externo com a Gerontologia (Tailndia e Taiwan); c) sociedades em estgio intermedirio de pesquisa subterrnea, nas quais poucos se apresentam como gerontlogos (Austrlia e Japo); d) sociedades com uma vasta lista de programas de Gerontologia (pases da Europa Ocidental); e) sociedade com pesquisa gerontolgica formal patrocinada pelo Estado (Estados Unidos). O esquema de evoluo do conhecimento gerontolgico de Cowgill caminha junto com seu esquema evolucionista da dcada de 1970. A teoria da modernizao usada para prognosticar o declnio no status das pessoas idosas medida que suas sociedades progridem. As mudanas ocorridas nesse sentido como reduo no contato com a famlia, menor capacidade de gerar renda etc. so entendidas como efeitos colaterais inerentes a um processo que, em termos gerais, benfico; e a Gerontologia o tratamento prescrito para esse mal-estar previsvel.

O declnio no status dos velhos, provocado pela modernizao, compensado pelo aumento do saber gerontolgico formal. Por isso, como argumenta Cohen, o modelo evolucionista de Cowgill vago a respeito das origens da Gerontologia: a disciplina aparece como uma funo natural da proporo de velhos numa sociedade, todavia requer uma semente externa [...] a Gerontologia vem de cima para baixo, encarnandose aqui na pessoa do erudito americano que se encontra no quinto (e mais elevado) estgio, enviando seus discpulos pelo mundo a fim de difundirem a Palavra. [Cohen, 1994, p. 86] Acredito que o principal interesse na crtica de Cohen Gerontologia internacional est em observarmos que a velhice no uma categoria universal, na qual se pressupe que a simples formulao unilateral de recomendaes fechadas ir ajudar os diferentes pases a obter solues para as questes envolvidas com o envelhecimento de sua populao.

32

Vemos, portanto, que a anlise do caso indiano desenvolvida por Cohen (1994) instrumentaliza sua crtica ao carter internacionalista da Gerontologia. De acordo com esse pesquisador, o tema central da Gerontologia indiana, a exploso demogrfica e social de uma populao de velhos que ir devastar os recursos do pas, distorce os dados disponveis sobre a populao e no d conta do significado especfico da experincia da maioria dos velhos indianos. Para um ativista idoso de Nova Dlhi entrevistado por Cohen, a maior dificuldade despertar o interesse para a velhice como questo social na ndia. Nas sociedades ocidentais a velhice isolada e normatizada, principalmente pelo mecanismo de institucionalizao da idade cronolgica, advindo com o Estado moderno. Pelos dados obtidos em sua investigao, Cohen considera que, como a sociedade indiana dotada de uma organizao social baseada no regime de castas,

ambos os movimentos, de negao da morte (do qual se segue a periferizao dos corpos envelhecidos implicitamente doentes) e de equivalncia dos corpos (do qual se segue a negao da velhice como doena ou um fato fundamentalmente diferente), so transportados com dificuldade para a ndia. A velhice pode compartilhar parte de seu espao semntico com a doena, precisamente porque o debilitamento fsico e a proximidade da morte no so imorais. [Cohen, 1994, p. 110] A luta do gerontlogo ativista entrevistado na pesquisa de Cohen refere-se ausncia da velhice como um campo de saber na ndia. Mas ele se expressa como um lamento pela ausncia de categorias. Na ndia faltavam cidados idosos e - coisa singular - a ndia precisava de velhice. Na verdade, a primeira tarefa da gerontologia indiana no foi estudar a velhice, mas cri-la (Cohen, 1994, p. 74). Assim como Cohen fez uma anlise da prtica gerontolgica na ndia, chamando a ateno para as particularidades locais e para os perigos do uso indiscriminado da Gerontologia internacional e de sua viso de mundo, tornou-se fundamental, neste estudo, atentar para o modo como a SBGG se apropria desses pressupostos e suas proposies e os redefine de acordo com as situaes que precisa enfrentar para dar visibilidade velhice no Brasil e a necessidade de um especialista no trato com as questes do envelhecimento.

33

Sem esquecer as diferenas entre o Brasil e a ndia, analisar a SBGG ver que lutar para a constituio de uma rea de saber cientfico, foi tambm delimitar um novo espao de atuao profissional. No prximo item, apresento o percurso terico realizado a fim de refletir o processo de profissionalizao da Gerontologia no Brasil, assim como aponto as questes levantadas por meio do percurso que levou a perceber a atuao da SBGG com a finalidade de profissionalizar um saber especfico que gerencie as questes que envolvem o envelhecimento e que interessa investigar.

1. 3. A Delimitao de um Campo Especfico de Exerccio ProfissionalPara refletir sobre a criao e o desenvolvimento da Gerontologia como disciplina cientfica e rea de atuao profissional no Brasil, ou ainda, para captar a lgica que caracteriza seu funcionamento, tendo em vista o estudo da SBGG, procurei refletir as propostas do campo da Sociologia das Profisses. Dentre elas, privilegiei as que buscam relacionar, no caso da SBGG, uma viso interna com uma viso externa da entidade. A primeira envolve a anlise do conjunto de idias e polmicas acionadas na definio, no desenvolvimento e na divulgao de um saber do que velhice e o envelhecimento. A segunda envolve o estudo das estratgias colocadas em ao por essa entidade para se tornar detentora legtima de um conhecimento especfico e, ao profissionaliz-lo, determinar quem pode ou no exerc-lo. Com o intuito de levar em conta essas duas dimenses, baseio-me ainda no pressuposto de que no se pode analisar uma profisso fora de seu contexto, do conjunto do sistema profissional. No basta fazer uma anlise interna da Gerontologia, com base apenas nas idias postas em ao para definir a velhice e o envelhecimento, seus problemas e formas de solucion-los. preciso no perder de vista a dimenso dos condicionantes e a percepo das oportunidades reais de desenvolvimento dessas idias dentro do sistema de profisses de nvel superior. Analisar essas questes detectar histrica e estruturalmente como a profisso vem se movimentando nas situaes reais que teve e tem de enfrentar, concorrendo com outras profisses, conquistando e perdendo espaos de atuao no mercado de trabalho. Ou seja, o interesse situar a Gerontologia nas interaes que estabelece com o sistema mais amplo das profisses superiores,

34

mostrando como se do, na prtica, as competies intra e interprofissionais que movimentam e modificam esse sistema. Com isso, procuro apontar e compreender, pelo estudo das diferentes dcadas da vida da SBGG, os condicionantes que fazem parte da trajetria da Gerontologia no Brasil. Bonelli (1993a), em resenha sobre os trabalhos realizados em Sociologia das Profisses, mostra que os estudos nessa rea iniciaram-se na Inglaterra em 1933. A proposta inicial era realizar um levantamento histrico dos grupos que poderiam ser considerados como profisses naquele pas. A base da classificao era a existncia de um corpo organizado que dominasse um conhecimento baseado em um sistema de ensino e treinamento, com seleo prvia por meio de exame, e possusse cdigos de tica e conduta. Esse raciocnio, segundo Bonelli, deu rumo s discusses por algumas dcadas, revelando preocupaes analticas, como a de identificar os grupos que tm e os que no tm esse ou aquele pr-requisito para ser uma profisso realmente genuna. Segundo essa autora, esse modelo de pesquisa desenvolveu-se nos anos 1960, especialmente na perspectiva de Parson (1959 e 1968, apud Bonelli 1993a), em que as profisses adquirem uma verso altrusta. Ou seja, elas so concebidas como o reinado da preocupao pela qualidade do servio prestado ao cliente, pela autoridade adquirida com base no conhecimento. As motivaes para o trabalho vo alm da obteno de rendimentos; nele, o cliente deve confiar no saber do profissional e este, por sua vez, deve respeitar seus colegas e clientes, legitimando o altrusmo nessa ordem social. A profisso assume sua posio no mundo dos servios dignos, morais, das relaes de igualdade entre os pares (Bonelli, 1993b, p. 22). O ideal de servio seria, assim, a caracterstica que levaria a sociedade a dar autonomia s profisses, pois elas sempre se voltariam para o atendimento das necessidades sociais. Porm, segundo Barbosa, pesquisadores como Howard Becker ou Everett Hughes passaram a analisar a prtica cotidiana dos profissionais e descobriram que o ideal de servio ou o universalismo atribudo a esses grupos no funcionava exatamente assim na vida real: profissionais envolvem-se em disputas econmicas e ? isto uma crtica fundamental ? atendem sua clientela de forma diferenciada segundo sua origem social (1999, p. 187).

35

O estudo das profisses altera-se, tambm e principalmente, com o impacto da obra de Bourdieu (1983a; 1983b) sobre o campo cientfico. Ao assumir o campo cientfico como um lugar de luta concorrencial, Bourdieu rompe com a idia de uma cincia pura, ou de comunidade cientfica como reino dos fins. Para o autor, nesta abordagem o prprio funcionamento do campo produz e supe uma forma especfica de interesse, representado pelo que tem chance de ser reconhecido como interessante pelos outros, fazendo com que, aos olhos dos outros, seja tambm importante e interessante aquele que o produz. Concentrar-se nos problemas considerados mais importantes traz, no momento de uma descoberta ou contribuio, um lucro simblico igualmente importante. Nesse sentido, deve-se compreender, na mesma lgica, as transferncias de capital de um campo determinado para um campo socialmente inferior, no qual uma competio menos intensa promete lucro maior ao detentor de um determinado capital cientfico. Esta , por exemplo, a situao atual da Geriatria em relao s outras especialidades mdicas. Dessa maneira, esta pode ser uma forma de investigarmos a relao que a Gerontologia vem estabelecendo com outras disciplinas, principalmente com as Cincias Mdicas, a Psicologia e a Sociologia, alm de possibilitar tambm verificarmos a forma como seus agentes vm se apropriando de mtodos e teorias desenvolvidas por essas outras cincias mais tradicionais, a fim de fortalecer o campo gerontolgico. Portando, Bourdieu parte do postulado de que a verdade do produto ? mesmo no caso da verdade cientfica ? determinada pelas condies sociais de sua produo, num estado determinado da estrutura e do funcionamento do campo que se forma ao redor dessa produo. No caso da Gerontologia, o universo cientfico considerado como outro campo qualquer, com suas relaes de foras e monoplios, suas lutas e estratgias, seus interesses e lucros, mas onde todas estas invariantes revestem formas especficas (Bourdieu, 1983a, p. 122), como pude perceber ao realizar a pesquisa na SBGG. A reflexo desenvolvida por Bourdieu, de carter poltico, baseia-se numa concepo sistmica do social. Para Bourdieu, a estrutura social vista como um sistema hierarquizado de poder e privilgio, determinado tanto pelas relaes materiais como pelas relaes simblicas (Setton, 1996, p. 87). O poder simblico , com efeito, esse

36

poder invisvel no qual s pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que no querem saber que lhe esto sujeitos ou mesmo que o exercem (Bourdieu, 1989, pp. 7-8). Do ponto de vista desse autor, a relao entre o profissional e o cliente d lugar concepo das profisses como formas de controle e poder. O cerne da questo no mais o atendimento s necessidades sociais, mas a imposio dessas necessidades e dos formatos dos servios prestados. O lado egosta das profisses passa a ser enfatizado, caracterizando os grupos profissionais pelos interesses estratgicos utilizados na disputa do domnio de reas de conhecimento e de mercados. Essa viso ganha destaque por meio dos conceitos de habitus e campo, que organizam a reflexo de Bourdieu, sobretudo no que se refere produo cientfica. Bourdieu recupera a velha idia escolstica de habitus que enfatiza a dimenso de um aprendizado passado, reinterpreta a noo no interior do embate

objetivismo/fenomenologia e acaba por definir a idia como:

[...] sistema de disposies durveis, estruturas predispostas a funcionar como estruturas estruturantes, isto , como princpio gerador e estruturador das prticas e das representaes que podem ser objetivamente reguladas e regulares sem ser o produto da obedincia a regras, objetivamente adaptadas a seu fim sem supor a inteno consciente dos fins e o domnio expresso das operaes necessrias para atingi-los e coletivamente orquestradas, sem ser o produto da ao organizadora de um regente. [Bourdieu, 1983a, pp. 60-61] Dessa forma, segundo Ortiz (1983), o habitus tende a conformar e a orientar a ao, mas, na medida em que produto das relaes sociais, tende a assegurar a reproduo dessas mesmas relaes objetivas que o engendram. A interiorizao, pelos atores, dos valores, normas e princpios sociais assegura, portanto, a adequao entre as aes do sujeito e a realidade objetiva do conjunto da sociedade como um todo. A possibilidade da ao se exercer se encontra, assim, objetivamente estruturada sem que disto decorra uma obedincia s regras (Durkheim), ou uma previso consciente das metas a serem atingidas (Weber) [...] ele [Bourdieu] prope uma teoria da prtica na qual as aes sociais so concretamente realizadas pelos indivduos, mas as chances de efetiv-las se encontram objetivamente estruturadas no interior da sociedade global. [Ortiz, 1983, p. 15]

37

A relativa homogeneidade dos habitus subjetivos (de classe, de grupo) encontrase assegurada na medida em que os indivduos internalizam as representaes objetivas segundo as posies sociais de que efetivamente desfrutam. Por isso, Bourdieu fala em habitus como princpios geradores de prticas distintas e distintivas, pois o que o operrio come, e sobretudo sua maneira de comer, o esporte que pratica e sua maneira de pratic-lo, suas opinies polticas e sua maneira de express-las diferem sistematicamente do consumo ou das atividades correspondentes do empresrio industrial (Bourdieu, 1996, p. 22). Com isso, apesar de um aparente estado passivo do habitus, Bourdieu (1989) no deixa de pr em evidncia as capacidades criadoras, ativas e inventivas tanto do habitus e do agente, embora chame a ateno de que esse poder gerador no o de um esprito ao7. Por campo podemos entender o espao em que as posies dos agentes se encontram a priori fixadas, porm, estruturado por uma ao dinmica por parte do habitus de seus agentes. A diferente localizao dos agentes no campo deriva da desigual distribuio de recursos e poderes de cada um deles. Bourdieu entende por recursos o capital econmico, o cultural, o social e o simblico. Capital econmico refere-se ao conjunto de posses de bens materiais ou renda. O capital cultural constitui-se de trs formas: o estado incorporado, sob a forma de disposies durveis do organismo; o estado objetivado, sob a forma de bens culturais; e o estado institucionalizado, sob a forma de diplomas e titulao.