Lombroso Recife 1930

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA ELAINE MARIA GERALDO DOS SANTOS A FACE CRIMINOSA O NEOLOMBROSIANISMO NO RECIFE DA DÉCADA DE 1930 RECIFE 2008

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO

    CENTRO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA

    ELAINE MARIA GERALDO DOS SANTOS

    AAAAAAAA FFFFFFFFAAAAAAAACCCCCCCCEEEEEEEE CCCCCCCCRRRRRRRRIIIIIIIIMMMMMMMMIIIIIIIINNNNNNNNOOOOOOOOSSSSSSSSAAAAAAAA

    O NEOLOMBROSIANISMO NO RECIFE DA DCADA DE 1930

    RECIFE 2008

  • ELAINE MARIA GERALDO DOS SANTOS

    A FACE CRIMINOSA

    O NEOLOMBROSIANISMO NO RECIFE DA DCADA DE 1930

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Histria da Universidade Federal de Pernambuco, como requisito para obteno do ttulo de Mestre em Histria.

    Orientador: Prof. Dr. Carlos Alberto Cunha Miranda.

    RECIFE 2008

  • Santos, Elaine Maria Geraldo dos. A face criminosa: O neolombrosianismo no Recife da dcada de 1930 / Elaine Maria Geraldo dos Santos. Recife : O Autor, 2008. 134 folhas: il., fig., tab.

    Dissertao (mestrado) Universidade Federal de Pernambuco. CFCH. Histria, 2008. Inclui: bibliografia.

    1. Histria 2. Antropologia criminal. 3. Criminologia. 4. Excluso social. 5. Identificao de criminosos. - I. Ttulo.

    981.34 981

    CDU (2. ed.) CDD (22. ed.)

    UFPE BCFCH2008/76

  • AGRADECIMENTOS

    Ofereo meu reconhecimento a todos que, de forma direta ou indireta, contriburam para a consolidao deste trabalho. A meus pais, Jos Ribamar dos Santos e Sueli G. dos Santos, que tornaram meu caminho mais suave. A Flavia que gerou M Luiza, que tanto rabiscou meus textos com suas travessuras infantis. A Diogo Barbosa, por todos os anos de companheirismo e sentimento verdadeiro. A Madrinha Ftima, que me serviu como exemplo de superao e vitria.

    Ao Prof. Carlos Miranda, que antes de ser meu orientador por mais de cinco anos, mostra postura profissional a todos que buscam seu conhecimento: um apaixonado pela pesquisa.

    Ao comportamento tico e sbio da Prof. Ana Maria, que iluminou meu caminho, contribuindo para meu crescimento pessoal e acadmico. conversa agradvel com o Prof. Severino Vicente. Aos dias de estudo concedidos pela Prof. Sylvana Brando.

    Ao amigo e irmo Rivelynno Lins, que leu este trabalho desde que era apenas um projeto de pesquisa at sua edio final, incentivando-me nos momentos de inquietao. Aos companheiros de longas horas de estudo desde a graduao, como Sstenes Portela e Leda Cristina. A Fernanda Encarnao pela traduo e amizade. A Dorilene (Dori), que ofereceu palavras de estmulo.

    A Rmulo, Rose e Amanda, pelas horas de descontrao durante os dois anos de labuta. No posso esquecer: Maria Jos (Mary), Ftima Almeida, Antnio Almeida, Jos Olivan, Fabiana Mendes, Hrica, Solange, Agenor, Marclio, Marielson, Giscard, Wagner e tantos outros que permanecem no meu pensamento. Ao futuro mestre Emanuel, pelas breves e relevantes conversas entre os Arquivos da cidade.

    Aos funcionrios da Biblioteca Pblica de Pernambuco, em especial a funcionria J, que permitiu acesso a obras incomuns. Aos servidores do IITB (Ivan, Ivoneide, Ricardo e Cludio da Silva), que ofereceram informaes preponderantes para arrematao desta pesquisa.

    A todos os membros de minha famlia e aos professores que me ergueram at os dias de hoje. fora divina, que alguns chamam de natureza, outros de Deus. Por fim, ao apoio financeiro do CNPq.

  • Na verdade, preciso que conheamos bem nossos prprios defeitos, antes de apontarmos os de outrem. Uma vez reconhecidos, esses defeitos deixam de ser impedimentos e tornam-se instrumentos do saber.

    Stephen J. Gould

  • RESUMO

    Sob o lema de que no haveria crime, mas apenas criminosos natos, a Antropologia Criminal consolidou-se como corrente cientfica no final do sculo XIX. Elaborada pelo mdico Cesare Lombroso, a teoria defendia a idia da predisposio biolgica do indivduo conduta anti-social, ao qual ele chamou de criminoso nato. Ao estudar os traos faciais e as compleies corporais desses indivduos, Lombroso contribuiu para a elaborao do sistema de identificao forense. O objetivo de nosso trabalho analisar a retomada da Antropologia Criminal, na dcada de 1930, sob a roupagem do conceito de identificao mdico-jurdico, tendo como complemento a Biotipologia Criminal e a Endocrinologia Criminal. Essas correntes deram composio ao chamado neolombrosianismo, as quais ampliaram os mtodos de identificao forense. As categorias seriam determinadas por medies fsico-faciais e exames do organismo humano tido como degenerado pelos peritos. O olhar da sociedade adotou esses mtodos de identificao como forma de delimitar os indivduos que deveriam ser afastados de seu convvio, estigmatizando, principalmente, os pobres, as pessoas portadoras de certas caractersticas fsicas ou doenas, (como a epilepsia) o que indicaria a suposta degenerao moral. Mas, como as tcnicas de identificao criminal foram aplicadas pelo poder judicirio em Pernambuco? Como o neolombrosianismo se desenvolveu nos centros acadmicos e nos institutos ligados ao judicirio pernambucano? Para discutirmos essa problemtica, utilizamos jornais, teses acadmicas da Faculdade de Direito e Medicina do Recife, como tambm as fichas de identificao do GIEC e os laudos do IML, os quais traaram o caminho da excluso social ao procurar enquadrar certos grupos sociais como difusores da delinqncia.

    Palavras-chave: Neolombrosianismo. Identificao Criminal. Criminologia.

  • ABSTRACT

    According to the motto that there would be no crime, but only born criminals, the Criminal Anthropology has consolidated itself as scientific current in the end of the XIX century. Elaborated by the doctor Cesare Lombroso, the theory used to advocate the idea of the human biological pre disposition to the anti-social behavior, which he named as born criminal. When studding the facial features and the body constitution of these individuals, Lombroso has contributed to the elaboration of the forensic identification system. The aim of our work is to analyze the resumption of Criminal Anthology in the 1930s, under the form of medical-juridical identification concept, having as complement the Criminal Biotypology and the Criminal Endocrinology. These currents have composed the neolombrosianism, which have extended the forensic identification methods. The categories would be determined by physical-facial measurements and exams of the human body considered degenerated by the experts. The eye of the society has adopted these identification methods as a way to delimitate the individuals that should be excluded from the society, stigmatizing mainly the poor, and people suffering from specific diseases or physical characteristics (such as epilepsy), that would indicate the alleged moral degeneration. However, how the criminal identification techniques were used by the judiciary in Pernambuco? How has the neolombrosianism developed itself in the academic centers and at the institutes linked to the Pernambucans judiciary? To discuss this problematic, we used journals, academic theses from Recifes College of Law and Medicine (Faculdade de Direito do Recife e Medicina) as well as identification forms from GIEC and the reports of IML (Legal Medical Institution), which have drafted the path of social exclusion when trying to fit specific social groups as broadcasters of delinquency.

    Keywords: Neolombrosianismo. Criminal Identificatio. Criminology.

  • LISTA DE FIGURAS

    Figura 1 O homem da cincia 24 Figura 2 A diferena e a semelhana entre a Biotipologia Criminal e a Antropologia Criminal 46 Figura 3 O estigma do degenerado 49 Figura 4 A identificao datiloscpica que deveria ser aplicada pelas empresas para monitorar seus trabalhadores. 58 Figura 5 Um dos focos da incivilizao na regio central do Recife 60 Figura 6 O corpo disciplinado e vigilante 68 Figura 7 Representao poltica do Recife na exposio da LSCM 68 Figura 8 A face dos ex-degenerados 79 Figura 9 Propaganda do anti-epileptico Barasch 80 Figura 10 Exame antropomtrico realizado em um detento da CDR dcada de 1930 82 Figura 11 O tipo fsico ideal proferido pela fisiologia na tese do Prof. Figueiredo 88 Figura 12 Tipos fsicos biotipolgicos que deveriam ser estudados na disciplina de fisiologia. 89 Figura 13 Leptosmico, Picnico e Atltico. 90 Figura 14 Ficha de identificao do GIEC, proferindo a datiloscopia, foto Sinaltica e exame somtico. 103 Figura 15 Escala antropomtrica e equipamentos fotogrficos 104 Figura 16 Laudo IML 108 Figura 17 Frenologia no IML 108 Figura 18 Esquema anatmico completo do IML. Laudo realizado em 30/05/1930 111

  • LISTA DE TABELAS

    Tabela 1 Relao entre Antropologia Criminal e a Sociologia Criminal 32 Tabela 2 Esquema das reas estudadas pela figura sinaltica utilizada pelo servio de percia forense no IML pernambucano: mesmos traos fisionmicos usados por Cesare Lombroso ao estudar Craniometria 109

  • ABREVIATURAS

    CDR Casa de Deteno do Recife FDR Faculdade de Direito do Recife GIEC Gabinete de Identificao e Estatstica Criminal GP Colgio Ginsio Pernambucano IITB Instituto de Identificao Tavares Buril IML Instituto de Medicina Legal JC Jornal do Commercio LSCM Liga Social Contra o Mocambo MCR Museu da Cidade do Recife DM Dirio da Manh MJ Memorial da Justia de Pernambuco PM Polcia Militar

  • SUMRIO

    INTRODUO 10 1 CAPTULO 1 - A DOUTRINA LOMBROSIANA 18 1.1 A teoria e seu instituidor 18 1.2 A adoo do estudo jurdico-antropolgico num pas tropical 25 1.3 O discurso Neolombrosiano 36 2 CAPTULO 2 - A INFLUNCIA DO BIODETERMINISMO NOS PROJETOS DE MODERNIZAO DA CIDADE 49 2.1 Os anos trinta e as concepes a respeito das raas 50 2.2 As polticas de modernizao do Recife: o estigma da pobreza 60 2.3 Os normais e os anormais no processo educativo moderno 71 2.3.1 Epilepsia: o enigmtico estigma lombrosiano 77 3 CAPTULO 3 - A PROPAGAO DO NEOLOMBROSIANISMO EM PERNAMBUCO 82 3.1 Teor da hereditariedade: os estudos acadmicos 83 Neolombrosianos em Pernambuco 3.1.1 A tese do Dr. Aureliano Corra de Arajo: Criminologia e Psychanalyse e poltica criminal 84 3.1.2 Corpo Aritmtico: tese do Prof. Figueiredo sobre Biotipologia 87 3.1.3 Dr. Amaro Gomes Pedrosa e sua tese sobre a Responsabilidade Criminal dos epilpticos 93 3.1.4 A critica do Dr. Augusto Lins e Silva a Medicina Legal 95 3.2 Percia e Identificao no Inqurito Policial 99 3.2.1 Ficha do GIEC 100 3.2.2 Laudo do IML 105 4 CONSIDERAES FINAIS 113 A Persistncia das idias lombrosianas no sculo XXI REFERNCIAS 119 ANEXOS 126

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    INTRODUO

    No dia 27 de julho de 1932, o jornaleiro R.A. foi preso em flagrante delito pelos policiais que faziam ronda na Rua da Aurora, sob acusao de furto, o encaminhando delegacia para dar procedimento ao inqurito policial.1 Como na ocasio no portava documentos, R.A foi encaminhado da Delegacia de Polcia ao Gabinete de Identificao e Estatstica Criminal (GIEC) para a comprovao de sua identidade e para que fosse levantado seu antecedente criminal, a fim de elaborar a ficha de identificao.

    O jornaleiro permaneceu horas nas instalaes do GIEC para a elaborao da ficha de identificao, que inclua dados fisionmicos, fotografias faciais e recolhimento das impresses digitais. Com esse procedimento policial, ficou comprovado que R.A.: tinha 22 anos, era analfabeto, ctis parda, casado, com histrico de crises epilpticas. A extenso dos antecedentes criminais de R.A. impressionou os peritos, contando trs boletins criminais anteriores: um no ano de 1924, sob a denncia de furto; outro em 1928, por estupro e, em 1929, por furto novamente.

    Aps a inspeo do GIEC, o jornaleiro foi encaminhado ao Instituto de Medicina Legal (IML), onde se realizou o laudo mdico-legal, constante de exames clnicos e fsicos. No IML, o servio foi mais gil, por no carecer de fotografias, apenas de exames de sangue e exame traumatolgico. Depois desses procedimentos, forenses o inqurito policial estava concludo e R.A. pde ser conduzido priso na Casa de Deteno do Recife (CDR), onde da mesma forma, preencheu uma ficha de identificao para controle interno, na qual tambm constavam traos faciais, impresso digital do dedo polegar e fotografia de frente e de perfil.

    Mesmo sem saber, o jornaleiro R.A. foi submetido s tcnicas de identificao forenses em todas essas instituies, desde a delegacia at a CDR. Essas fichas de identificao criminal estavam aliceradas em teorias cientficas de

    1 I Vara Criminal da Capital. N 147. Inqurito com incio em 27/06/1930.

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    identificao, estudadas desde o final do sculo XIX, nos cursos de Direito, na disciplina chamada de Criminologia. 2

    Esse episdio nos remete escola positivista de Criminologia, a qual teve como um de seus fundadores o mdico italiano Cesare Lombroso, no final do sculo XIX. Lombroso (apud SILVA, 1906), defendia a idia de que a tendncia ao crime determinada biologicamente, podendo ser diagnosticada pelos peritos forenses ao estudar as caractersticas fsicas dos delinqentes. Segundo Lombroso, o indivduo era hereditariamente predisposto a aes anti-sociais, possuindo em sua anatomia determinados estigmas atvicos 3, os quais revelariam cientficamente a propenso denominada criminalidade nata.

    Dessa forma, a Criminologia Italiana discutiu a responsabilidade moral do indivduo em relao a seus atos, o que deveria retratar o criminoso nato como um ser subumano, com caractersticas atvicas e que careceria de cuidados preventivos do Estado. A psiquiatria encaixava-se perfeitamente no processo de identificao do louco moral.

    A Antropologia Criminal ofereceu tcnicas de identificao forenses que foram adotadas como metodologia na percia cientfica para averiguao da identidade dos indivduos e elucidao de inquritos judiciais. O crime no era o foco principal dos estudos forenses, mas o corpo dos indivduos envolvidos. Informaes sobre corte do cabelo, tatuagens, ctis, proporo do nariz e da boca, tornava a descrio precisa e percialmente confivel.

    Assim, o sistema de identificao estava influenciado pela doutrina lombrosiana, o que contribuiu para dar percia judicial o arcabouo cientfico necessrio para elaborao dos procedimentos mais corriqueiros do sistema policial, como a ficha de identificao criminal. Essa ficha deveria conter informaes sobre o porte fsico do indivduo e de seu histrico social, modelo este utilizado pelas instituies pernambucanas, a exemplo da ficha de identificao do jornaleiro R.A.. Para complementar as informaes dessa ficha cientfica, uniram-se

    2 A disciplina Criminologia pr-requisito nas grades dos cursos de graduao em Direito. Atualmente, a

    Criminologia procura esclarecer a elaborao dos cdigos de Direito Penal, analisando nomes como Augusto Comte, Beccaria, Paul Broca e, de seu criador, Cesare Lombroso. 3 Lombroso desenvolveu um estudo comparativo entre criminosos e pessoas comuns, nas quais observou

    caracteres que supostamente apareciam freqentemente nesses dois grupos de indivduos. Os traos anatmicos e psicolgicos encontrados nos delinqentes remeteriam ao instinto selvagem do homem primitivo: queixos grandes, narizes aquilinos, orelhas de abano, zigomas salientes, braos compridos, entre outros atavismos, os quais comprovariam que a ao delituosa seria uma determinao biolgica. (LOMBROSO apud SILVA, 1906, p. 153).

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    a fotografia sinaltica (frente e perfil), originada por Alphonse Bertillon, a datiloscopia (impresso digital) catalogada por Juan Vulcetch e, na dcada de 1920, a Biotipologia Criminal de Nicola Pende.

    A primeira fase para elaborao dessa ficha de identificao criminal consistia no conhecimento fentipo lombrosiano, no qual os aspectos fsicos dos indivduos indicavam sua personalidade delinqente. A segunda fase da Antropologia Criminal viria aps a dcada de 1920, por suscitar exames endcrinos e biotipolgicos, uma complementao percial na diagnose do criminoso nato.

    Segundo Pierre Darmon (1991, p.171) o neolombrosianismo pode ser compreendido aps 1921, com a Biotipologia Criminal de Ernest Kretschmer que subdividiu os humanos em trs bitipos: atltico, leptossmico e picnico. Cada grupo possua caractersticas atvicas prprias, as quais facilitariam o processo de classificao e estatstica dos tipos degenerados mais incidentes. O atltico seria o bitipo de compleies quase simtricas (proporcionais), fortes e de musculatura talhada; o leptossmico teria alta estatura, corpo delgado e assimtrico; o picnico obeso, membros atarracados e de assimetria corporal. Para esses estudiosos, mesmo que os sujeitos portadores de tais caractersticas anatmicas no sejam levados delinqncia, seu bitipo deve ser avaliado como indcio da gnese criminosa.

    Em 1931, o termo neolombrosianismo foi pronunciado no Brasil pela primeira vez, pelo mdico-legista Arthur Ramos no traballho Hipergitalismo e Criminalidade, apresentado ao Instituto Mdico Legal da Bahia. Nesse artigo, Ramos discorre sobre a influncia das duas novas teorias que complementavam o lombrosianismo: a Biotipologia Criminal e a Endocrinologia Criminal. (MENEZES, 2002, p.69). Em tais teorias, variaes morfolgicas e psicolgicas dos indivduos estabeleceriam um parmetro de identificao do delinqente, voltada ao funcionamento orgnico/hormonal.

    Meu interesse sobre o tema neolombrosianismo se deu a partir do ano de 2002, quando fui inserida como bolsista do PIBIC/UFPE, na pesquisa do Prof. Dr. Carlos Miranda, sobre a Histria da Medicina em Pernambuco. Com isso, desenvolvi o desejo em aprofundar o estudo, voltando meu olhar tambm para o Poder Judicirio.

    O objetivo desta Dissertao consiste em analisar o discurso neolombrosiano na dcada de 1930 no panorama jurdico-social pernambucano,

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    como tambm sua aplicao no procedimento de identificao criminal. A cidade do Recife serve como cenrio da Criminologia neolombrosiana, tendo, nas reformas urbanas realizadas na dcada de 1930, o cuidado em adequar o espao pblico s normas de segurana social. A teoria lombrosiana, a justia e a medicina-legal entrelaaram-se para formular uma sociedade excludente, que ligava a pobreza e as compleies biolgicas das pessoas ao incivilizado. Segundo o esforo das polticas proferidas pelos governantes da poca, o centro do Recife deveria retirar paulatinamente esses degenerados morais de seus espaos sociais. 4

    Vendo essa readequao do espao social da cidade, utilizamos como embasamento terico s obras de Michel Foucault, onde analisamos as teorias neolombrosianas em conjunto com as idias sobre o processo de enquadramento do corpo humano pelos parmetros do Estado, as quais serviam como arma de dominao, j que fortaleciam o dos esteretipos sociais. Um corpo estigmatizado reproduzia o discurso dominador do sistema judicirio e mdico. (FOUCAULT, 2006, p.39). Esse esteretipo tambm se refletia no olhar da populao, que passava a procurar no outro os estigmas caractersticos da inferioridade biolgica e, por conseguinte, da incivilizao. Segundo Foucault, as pessoas so selecionadas e catalogadas individualmente pelas instituies de poder, no no sentido de valorizar suas particularidades, mas para conhecer suas fraquezas, facilitando seu controle. O intuito dissecar o corpo social, transformando essa massa tida como desorganizada, em micro sees individuais, para identific-la, vigi-la e disciplin-la. (FOUCAULT, 1987, p.118).

    Dessa maneira, o poder praticado de forma celular pelas instituies pblicas. Ainda, analisando as palavras de Foucault: toda forma de saber produz poder, tendo em vista que dividir, classificar e identificar cada clula social seria necessrio para desenvolvimento da administrao do goveno. Tal vigilncia se disseminou em forma de discurso por toda a sociedade, numa trama ramificada para alm da estrutura fsica das instituies. Essa classificao capilar do Poder uma questo fundamental para o controle da sociedade, potencialmente nociva ordem.

    4 O termo degenerado moral foi utilizado pelo francs Benedict August Morel (1809-1873) em sua obra Trait

    des dgnrescences physiques, intellectuelles et morales de lespce humaine et des causes qui produisent ces varits maladives, de 1857, onde avalia o suposto crescimento do nmero de doentes mentais, com a tida decadncia da raa. Os chamados degenerados eram os indivduos que possuam a disposio biolgica ao comportamento anti-social. Lombroso adotou esse termo em seus trabalhos para designar o criminoso nato.

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    Nosso recorte temporal se justifica, uma vez que a dcada de 1930 um perodo de importantes mudanas no Brasil e no mundo, com a emerso dos regimes totalitrios na Europa e o desejo governista em modernizar as cidades e suprimir a delinqncia. 5 Em meio a essa discusso sobre criminalidade, o Recife de 1930 possuia cerda de 500 mil habitantes (BARROSO FILHO, 1985, p.13), os quais conviviam com transformaes scio-estruturais, encorajadas pela idia europia de modernizao, que consistia, inclusive, na retirada dos degenerados do centro da cidade para uma vida marginalizada na periferia.

    Esse processo de retirada dos pobres da rea central das cidades, influenciado pelas teorias neolombrosianas, acabava rotulando-os como pessoas biologicamente portadoras do comportamento anti-social. Assim, seria obrigao das autoridades governamentais control-los e retir-los do convvio dos cidados (tidos como) normais. Entre os degenerados estavam os pobres, epilpticos, deficientes mentais, entre outros indivduos tidos como portadores dos estigmas atvicos.

    Teses acadmicas foram desenvolvidas em diversas faculdades de Direito e Medicina do pas (SCWARCZ, 1993, p. 30), as quais procuravam analisar e explicar esses fenmenos sociais. A Antropologia Criminal ganha fora e legitimidade, continuando a ser oficialmente discutida e aplicada nas tcnicas de identificao das instituies do poder judicirio para impetrar, principalmente, o inqurito policial (como ocorre no GIEC e no IML).

    As teses da FDR ps-30 e as fichas de identificao dos Institutos Judicirios so o ponto central da nossa investigao. Nesse material, analisamos o modo como o discurso neolombrosiano toma forma e procura transmitir ao trabalho tcnico da percia criminal os novos conceitos de identificao propagados na Europa, como na teoria da Biotipologia Criminal e na Endocrinologia Criminal. Era pretenso traar uma face criminosa, a qual poderia ser identificada cientficamente por um profissional da percia forense.

    Seguindo a mesma perspectiva de Foucault, utilizamos a obra de Pierre Darmon (1991, p.274), onde no apenas apresenta a teoria lombrosiana, mas

    5 O incio da dcada de trinta no Brasil foi turbulento, com troca do poder governamental e com os confrontos

    sociais, como a Revoluo de 1930. A Revoluo de 1930 foi unio das oligarquias contra a Repblica dos Coronis no partido poltico intitulado de Aliana Liberal, lanando a candidatura de Getlio Vargas presidncia, contra Julio Prestes do partido PRP. Prestes vence as eleies, ocasionando a unio entre os tenentistas e o partido de Vargas. No dia 24 de outubro de 1930, o presidente Washington Luiz deposto, dando incio chamada Era Vargas. (SKIDMORE, 1975, p. 42).

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    discute a idia de que os delinqentes seriam organicamente inferiores e o crime seria conseqncia do conflito entre meio e bitipo degradado. Dessa forma, havia relao entre raa, a hereditariedade e a espcie de dolo, tendo em vista que morfologia e delito interagem. O corpo refletia a degenerao moral contida nos indivduos. Dessa forma, apresentava-se a Endocrinologia Criminal que, fazendo ligao entre os exames clnicos do organismo e suas oscilaes hormonais, chegariam a uma concluso sobre sua conduta anti-social.

    A premiada obra de Olvia Maria Gomes da Cunha, Inteno de Gesto, faz um mergulho sobre as correntes biodeterministas, entre elas a Antropologia Criminal, tanto no Brasil como no mundo. A autora discute as tcnicas de identificao apresentando-as como mtodos utilizados pelas instituies Estatais para a normalizao do corpo humano, por meio das polticas pblicas. Segundo a autora, o neolombrosianismo difundido no Brasil na dcada de 1930, fortaleceu a Criminologia em nosso pas, promovendo estudos mdico/forense sobre a influncia do sistema endcrino na personalidade humana, bem como o desdobramento dessas discusses nas tcnicas de identificao mdico-legal.

    O autor Stephen Gould, na obra A Falsa Medida do Homem, realiza um apanhado histrico sobre o biodeterminismo, discutindo o trabalho de diversos cientistas, entre eles Paul Broca, Alfred Binet, Cesare Lombroso, os quais realizaram estudos craniomtricos e procuravam encontrar fatores fsicos que explicasse a tendncia de algumas pessoas ao crime. Essa obra de Gould nos ajudou a compreender o desenvolvimento dos estudos de identificao e os estigmas que eles concederam a alguns grupos sociais.

    A autora Maria Tereza Silveira, em seu livro Biometria: antropometria e biotipologia, realizou um preciso trabalho tcnico sobre a aritmtica empregada no corpo humano, com as propores exatas e os clculos relacionados identificao humana. A autora coloca o arqutipo e as frmulas geomtricas que a estrutura morfolgica humana sofre ao passar pela percia forense e em alguns procedimentos mdicos.

    Atravs desse levantamento historiogrfico e, em meio documentao colhida nos arquivos e bibliotecas do Recife, chegamos s seguintes questes: como a campanha modernizadora da cidade do Recife se apropriou do discurso neolombrosiano na retirada dos pobres da rea central? Sob que parmetros as

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    teses da FDR reproduz o neolombrosianismo em meio Criminologia pernambucana?

    Para analisar essas questes sobre o percurso do neolombrosianismo em Pernambuco, dividimos nosso trabalho em trs captulos.

    No primeiro, procuramos apresentar a Antropologia Criminal, realizando um apanhado sobre a vida e o percurso acadmico de Cesare Lombroso, como tambm a difuso de suas idias no Brasil, bem como as particularidades raciais que sua teoria adquiriu ao imiscuir-se num pas miscigenado. Para realizar essa anlise, utilizamos como autores principais: Olvia Maria Gomes da Cunha (1999) sobre a Antropologia Criminal, Stepen Gould (1991) e a reedio do Homem Delinqente de Cesare Lombroso (2001).

    No segundo captulo, propomos a anlise do cotidiano recifense na dcada de 1930, com suas reformas urbansticas e mudanas nas polticas de segurana pblica que influenciaram o sistema judicirio. Essas obras de construo civil procuraram deslocar a maioria dos moradores pobres (estigmatizados como degenerados) do centro da metrpole para a periferia, retirando-os do convvio com os freqentadores considerados normais (sem portar os estigmas atvicos). Procuramos avaliar tambm o papel das instituies educacionais em Pernambuco e a ligao entre epilepsia e responsabilidade criminal, j que supostamente, tratava-se de uma doena degenerada.

    No terceiro captulo deste trabalho, mergulhamos na discusso e aplicao dos processos de identificao neolombrosiana em Pernambuco. Traamos um panorama da produo intelectual da FDR, com as teses de acadmicos neolombrosianos, que realizaram amplas discusses sobre os atavismos e a responsabilidade penal, amparados pelo olhar da Biotipologia Criminal e da Endocrinologia Criminal. Outra fonte utilizada foi o Inqurito Policial, constitudo pela ficha do GIEC e o laudo concedido pelo IML. A partir da ficha e do laudo, analisamos a aplicao dos mtodos de identificao criminal no cotidiano, bem como a aplicao das teorias neolombrosianas no processo de investigao judicial. A proposta mostrar o contraste entre a teoria discutida nas faculdades e a prtica nos procedimentos policiais, isto , a procura da face criminosa.

    Nas consideraes finais, procuramos mostrar a atualidade da discusso lombrosiana, utilizando artigos publicados no ano de 2007 que se baseiam no trabalho de Lombroso, ou seja, mais de um sculo depois da formulao de suas

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    teorias elas ainda so referncia sobre identificao criminal e discusso sobre Criminologia.

    Este trabalho dissertativo tem a pretenso de trazer a lume um trecho da Histria Social de Pernambuco, e mostrar como diferentes institutos de poder uniram-se em torno do discurso excludente do neolombrosiano. Outro ponto que almejamos a ampliao do estudo da Criminologia e das tcnicas de identificao percial, as quais deixariam de ser vistas apenas como ferramenta de identificao, mas como meio utilizado para delimitar padres distorcidos do que deveria ser considerado normal e anormal em nossa sociedade.

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    CAPTULO 1 - A DOUTRINA LOMBROSIANA

    1.1 A teoria e seu instituidor

    O criminoso, qualquer que seja sua habilidade, traz sempre, na execuo de seu crime, a imprevidncia que est no fundo de seu carter. A violncia e a paixo dominante arrojam como que um vu sobre seu critrio. O prazer de cometer uma aco culpvel, de saborear uma execuo, de levar ao conhecimento de outrem a realizao do mal, colocam a justia menos hbil na pista da autoria. (LOMBROSO, 2001, p.437).

    Numa tarde na cidade italiana de Verona, em 6 de novembro de 1835, o casal hebreu Aaron Lombroso e Zerofa Levi Lombroso tornava-se pais duma criana que viria a ser um dos maiores expoentes da Escola Clssica do Direito Penal: Cesare Lombroso. Lombroso passou sua infncia na pequena cidade de Chieri, rodeado por parentes e costumes patriarcais, com reunies familiares semanais e uma vida financeira estvel.

    No incio de sua puberdade, a famlia Lombroso viveu fortes contratempos econmicos tendo, ento, se mudado de um espaoso casaro, onde o menino costumava brincar livremente pelo ptio, para uma modesta casa. Essa fase de dificuldades financeiras marca seus estudos, mas sem diminuir a intensidade de sua dedicao ao conhecimento cientfico. (LOMBROSO, 2001, p. 528).

    Aos 15 anos de idade, o adolescente Lombroso conhece Paulo Marzolo, profundo estudioso que marcaria preponderantemente sua viso analtica. Mazolo era um respeitado mdico, filsofo, historiador e naturalista italiano que se deparou com um artigo sobre seu trabalho e quis conhecer o autor que o havia citado. Mazolo acreditava se tratar dum acadmico, entretanto, para sua surpresa, era do jovem e discpulo Lombroso. (FERRERO, 1940, p.12).

    Com Mazolo, Lombroso aprendeu a disciplinar seu olhar para a natureza da penalogia, da anatomia humana e da moral. A escolha pela faculdade de Medicina tambm foi espelhada pelo mestre, tendendo anlise das raas humanas, dos doentes mentais e da filosofia.

    Aps anos de estudo sobre psiquiatria e alienao, Lombroso apresenta a monografia: Influncia da Civilizao sobre a Loucura e da Loucura sobre a Civilizao. Essa obra d origem aos conceitos biodeterministas que tanto vo movimentar discusses mdico-criminais na Europa no final do sculo XIX.

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    Em 1859, Lombroso adere campanha militar no conflito blico entre a ustria e o Piemonte, onde pde observar as caractersticas fsicas e o histrico mdico dos soldados originrios de localidades variadas da Itlia. Essas informaes aliceraram suas idias antropolgicas, compondo uma mescla entre alienao mental com comportamento scio-cultural. Aps correlacionar as observaes feitas em soldados austracos a seus estudos sobre Histria Natural e Darwinismo, deu partida a sua teoria antropolgica, onde os indivduos teriam sua conduta influenciada por aspectos biolgicos, os quais poderiam ser percebidos anatomicamente. (LOMBROSO, 2001, p.517). Era a teoria do criminoso nato.

    No ano de 1870, ocorre a publicao de sua pesquisa sobre Antropologia Criminal e, nesse mesmo ano, casa com Nina Lombroso, filha de um banqueiro, a qual se tornaria sua secretria. (DARMON, 1991, p.13). A criminalidade e a loucura se tornaram os temas centrais de seu estudo, que o acompanharia por toda vida.

    O ano de 1871 foi preponderante na vida do mdico Lombroso no campo profissional e pessoal. Nesse ano, assume o cargo de diretor do manicmio e do asilo da cidade de Psaro. Em sua vida particular, nasce sua filha primognita que recebe o nome de Paula Marzola, em homenagem pstuma a seu antigo mestre Marzola.

    Na diretoria do Manicmio Judicirio de Psaro, Lombroso procedeu a inmeras necropsias de cadveres de delinqentes da Calbria e Siclia. Nesse perodo, um fato chamou-lhe a ateno, ao examinar o crnio feminino do cadver de Charlotte Corday 6, pois o mesmo possua uma anatomia rica em anomalias patolgicas. (DARMON, 1991, p. 14). Segundo os estudos de Darmon (1991, p.12), os restos mortais de Corday foram exumados diversas vezes e sepultados em locais diferentes, o que colocou em dvida a autenticidade do crnio por alguns cientistas.

    Mesmo tendo conscincia desses episdios, Lombroso desenvolveu seu estudo sobre a criminalidade feminina com base no suposto crnio de Corday, por consider-lo um crnio precioso para a corroborao do atavismo, tendo em vista que contava inmeros traos intrnsecos aos smios.

    Assim ele o descreve:

    6 A francesa Marie-Anne Charlotte Corday d'Armont (1768-1793) assassinou Jean-Paul Marat, um dos

    defensores da poltica do Terror, implantada durante a Revoluo Francesa, pelos Jacobinos. Em 13 de junho de 1793, Corday adentrou a casa de seu suposto amigo Marat, esfaqueando-o friamente durante seu banho. Quatro dias depois, ela teve sua cabea decepada pela guilhotina da justia imposta pelos jacobinos. (Site: HISTRIA, 2008).

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    O maxilar era exagerado e projetado para frente, platicfalo, caractersticas mais raras em mulheres que em homens. Tem uma apfise jugular muito proeminente, uma capacidade mdia de 1360 em lugar de 1337, que a mdia, uma salincia temporal muito acentuada, uma cavidade orbital enorme e maior direita que esquerda. Tem, enfim, esse crnio anormal, uma fosseta occipital. Trata-se de anomalias patolgicas e no de anomalias individuais. (DARMON, 1991, p. 13).

    A chegada dos estudiosos a esses resultados absolutos do atavismo de Corday fortalecia cada vez mais Lombroso e seu prestgio entre mdicos forenses. Em 1874, Lombroso assume definitivamente a ctedra de especialista em medicina-legal, e a Antropologia Criminal abre caminhos para inmeras pesquisas cientficas. Lombroso combinou seu conhecimento adquirido no asilo e no manicmio de Psaro, com doutrinas acadmicas anteriores, como a Frenologia, a qual realizava um estudo emprico do crnio humano dizendo que poderia determinar o carter, tipo de personalidade e grau de periculosidade do indivduo. Era o auge da carreira de Lombroso e a Antropologia Criminal dava sinais de aceitao entre os intelectuais da poca.

    A Antropologia Criminal procurou embasar-se ideologicamente sob parmetros de estudos interdisciplinares. Dentre os campos de anlise, podemos fazer meno: a frenologia, a biologia, a sociologia, a medicina legal, a estatstica, a penalogia e a psiquiatria. O mosaico da teoria lombrosiana estava sendo montado.

    A data de 15 de abril de 1876 torna-se um marco para a Criminologia. publicada a obra mais clebre de Lombroso, O Homem Delinqente, que abre espao para discusses sobre Criminologia, bioderterminismo e, por conseguinte, formas de possibilitar o controle social.

    Nesse livro, Lombroso discute a teoria da criminalidade congnita, defendendo a idia de que os indivduos seriam biologicamente predispostos ao incivilizado, o criminoso nato. Com essa tese, Lombroso consegue o que tanto ansiava no meio mdico-jurdico: fermentar o desejo de discusso da Antropologia Criminal pelos intelectuais europeus.

    Reeditado inmeras vezes e traduzido para diversos idiomas, O Homem Delinqente tornou-se referncia nos estudos forenses, tendo um sucesso fulminante. Lombroso apresenta como taras degenerativas da fisiologia os estigmas congnitos e os desvios comportamentais como: daltonismo, epilepsia, alcoolismo, promiscuidade sexual, assimetria fisionmica, tatuagens, etc. (SILVA,

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    1906, p.153). Qualquer uma dentre essas caractersticas designaria o louco moral, o qual deveria ser retirado do convvio social e precocemente tratado por uma instituio com capacidade de disciplinar, retardar ou inibir sua herana agressiva.

    A Criminologia alcana patamares de cincia aps a publicao de O Homem Delinqente. Abandona o antigo posto de cincia inexata e, como qualquer cincia, casou o empirismo desenvolvido anteriormente com correntes tericas. A Criminologia dimanou em duas fases: o pr-cientfico e Antropologia Criminal.

    A trajetria pr-cientfica da Criminologia considerada at o ano de 1875, tendo como expoente o jurista italiano Cezare Beccaria (1738- 1794). (BECCARIA, 2007, p.16), Beccaria mostrou-se como um dos defensores da gradativa substituio dos mtodos punitivos de suplcio (torturas fsicas pblicas), pela implantao da penalogia moderna (privao da liberdade e ideais de reeducao do infrator), sendo considerado cone da Escola Clssica de Direito Penal. 7

    Com a contribuio dos estudos sobre Direito Penal desenvolvido por Beccaria e o lanamento do livro O Homem Delinqente de Lombroso, a Criminologia (que at 1876 era vista apenas como pesquisa intelectiva), logrou aceitao cientfica entre juristas e mdicos europeus. 8 A dcada de 1880 foi marcante para a penalogia italiana, com a elaborao do Novo Cdigo Penal e, tambm, com a ascenso da disciplina de Criminologia nos cursos de Direito, na maioria das faculdades europias.

    O inspito do perodo de formulao do novo Cdigo Penal foi apresentao das argies de Lombroso contra as novas diretrizes francesas, entre elas a benignidade das leis com relao aos delinqentes, a falta da priso perptua para criminosos reincidentes e um manicmio para o criminoso-louco. Equivaleu, assim, ao restabelecimento do conceito e semi-responsabilidade estatal sobre a conteno da agressividade de alguns grupos sociais, para isso o cdigo deveria ser severo e punitivamente eficaz.

    7 Atravs do seu livro Dos Delitos e das Penas, Beccaria alterou a conscincia, publicou a respeito dos

    julgamentos secretos, das torturas, da falta de padronizao punitiva e mtodos preventivos da ao criminosa. Alguns dos postulados de Beccaria fazem parte do que constitui o Direito Penal at os dias atuais, como: leis fixas para um determinado tipo de delito; as leis que consideravam que apenas os magistrados teriam o poder de julgar os apenados; qualquer acusado inocente at a sentena, entre outras jurisprudncias. 8 Aps 1905, h um ecletismo de teorias sobre criminalidade e suas causas. A Antropologia Criminal passa por

    um perodo de obscurecimento, ressurgindo apenas na dcada de 1930, com a nova roupagem cientfica, sendo chamada de Neolombrosianismo. Sobre este tema, falaremos a seguir.

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    Para Lombroso, as falhas do novo Cdigo Penal sobre a responsabilidade criminal causariam um afrouxamento do sistema punitivo italiano, tendo como resultado o aumento das aes delituosas. Numa demonstrao de sua influncia terica, Lombroso consegue levar discusso no Congresso Legislativo Italiano. Seus argumentos contra a Nova Legislao Penal conseguem modificar parmetros legais do Cdigo Penal.

    No perodo de 1885 a 1911, ocorrem sete Congressos acadmicos de Antropologia Criminal. O positivismo consolidaria o regulamento cientfico dado s discusses sobre o controle governamental da violncia social. O conceito central das argies que perpassavam ano aps ano em tais eventos acabava fortalecendo a poltica judiciria, edificada pelo estudo da biologia criminal. (DEL OLMO, 2004, p.94).

    Outra preocupao dos palestrantes estava em fornecer um banco de dados composto das caractersticas fisionmicas dos supostos degenerados, o que poderia vir a facilitar o trabalho de identificao da percia mdico-legal. No entanto, s a partir do segundo congresso, a idia de regenerao scio-comportamental desses delinqentes entraria em discusso, resaltando que no havia como recuperar o infrator, apenas conter sua tendncia ao incivilizado.

    Em Roma, no ano de 1885, estava previsto o III Congresso Internacional de Penitenciria, entretanto o calor das discusses lombrosianas acabou modificando o tema do evento para o I Congresso Internacional de Antropologia Criminal. (DEL OLMO, 2004, p.88). Nesse primeiro Congresso, Lombroso defende a idia de que os indivduos portadores de delinqncia nata no teriam cura, por possurem em sua formao biolgica a doena da criminalidade. Essa afirmativa do carter incurvel do criminoso foi rebatida nos inmeros congressos de Antropologia Criminal na Europa. O prprio Lombroso vai argumentar posteriormente que a educao pode conter a manifestao social das pulses atvicas.

    A disseminao das idias discutidas nesses congressos originou condies para a fundao, em 1889, da Unio Internacional de Direito penal, na Alemanha. Esse rgo teria a finalidade de propor mudanas na penalogia sob os parmetros do estudo criminolgico, correlacionando o Direito Penal s aes da poltica criminal e dos mtodos punitivos, pretendendo tornar a reabilitao do delinqente possvel e rpida.(DEL OMO, 2004, p.72).

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    O II Congresso Internacional de Antropologia Criminal ocorre na capital francesa, Paris, no ano de 1889. Por ter ocorrido no mesmo ano da elaborao do novo cdigo penal italiano, os debates estavam mais calorosos entre franceses e italianos. As idias de Lombroso vo ser rebatidas severamente pelos juristas e mdicos. Lombroso retorna Itlia levando consigo a certeza da intriga entre os cientistas italianos contra os estudiosos franceses.

    Aps o Segundo Congresso, Lombroso aumenta sua desmotivao terica com a crise econmica que acometeu a Itlia ainda no ano de 1889. Procurando minorar seus problemas financeiros, Lombroso passou a comercializar sua pesquisa, alcanando uma projeo intelectual ainda mais ampla que a anterior. Passou a escrever e publicar em troca de peclio. Diversos livros e artigos para jornais internacionais, at mesmo na Argentina e nos Estados Unidos da Amrica, so publicados. (LOMBROSO, 2001, p. 543). Durante essa fase, podemos citar as obras: Crime Poltico, Microcefalia e Cretinismo, todas voltadas Criminologia.

    A doutrina lombrosiana ganha carter sociolgico com a contribuio do italiano, nascido em Bolonha, Enrico Ferri, que elabora a Sociologia Criminal em 1890. Ferri foi amigo e discpulo de Lombroso, no entanto ofereceu outro rumo s pesquisas, desenvolvendo um carter sociolgico s teorias do mestre, instituindo o princpio de que a cincia teria o poder de reabilitar o criminoso ao convvio social, atravs de mtodos educacionais. Os estudiosos de Criminologia se dividiriam ainda mais entre os conceitos da criminalidade nata ou da criminalidade destinada pelo meio social; agora, a delinqncia tambm era vista como fenmeno social e no apenas biologicamente predeterminado.

    Certamente que Ferri no havia sido o primeiro terico a tratar da delinqncia como patologia social, mas seu preceito sociodeterminista seria um dos primeiros estudos a procurar padronizar mecanismos educacionais que inibissem a delinqncia. A cincia criminolgica estava formada e consolidada, mesmo sofrendo crticas. As faculdades de Direito europias passaram a disponibilizar em sua grade acadmica a Criminologia como disciplina e fervorosas discusses so realizadas nos congressos de Direito Penal. Devido s crticas sofridas pela Sociologia Criminal francesa, Lombroso publicou o estudo Le Crime, Causes et Remedes, voltado ao olhar sociolgico da delinqncia, onde continuava defendendo sua teoria biodeterminista e apresentou o brasileiro Nina Rodrigues como seu discpulo nos trpicos.

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    Em 1904, Lombroso consegue uma melhora financeira, devido estabilidade poltica interna italiana e melhoria nas relaes comerciais com a Frana. No ano seguinte, Lombroso assume ter-se convertido ao espiritismo, crena na qual passou anos refutando e denominando de charlatanismo. Assumiu que sua credulidade como esprita ocorreu aps ter presenciado a materializao ectopasmtica 9 de sua falecida me em uma reunio, levando-o a reformular seu ceticismo.

    Ainda no ano de 1905, j debilitado pela idade avanada, Lombroso no pde participar da inauguraro da Seo de Antropologia Criminal, especialmente preparada para receb-lo no Congresso de Psicologia de Roma. Mesmo com a sade abalada, ainda escreve um trabalho sobre percias. Em 1906, uma grandiosa homenagem foi organizada pelos seus discpulos e mestres de vrias partes da Europa, seguidores da doutrina lombrosiana no Congresso de Antropologia Criminal.

    Recebeu vrias homenagens acadmicas at seu falecimento, aos 75 anos, em 1909, onde as correntes anti-lombrosianas ganharam espao e atacam Lombroso veementemente, fato que, segundo a biografia escrita por sua filha Gina Lombroso, pode ter agravado seu estado de sade. (LOMBROSO, 2001, p.546).

    Intelectuais de diversas partes do mundo reconhecem a obra produzida por Cesare Lombroso e sua atuao na penalogia e em outras reas do conhecimento. Entretanto, os anti-lombrosianos embevecidos pela Sociologia Criminal francesa e com as prticas de modernizao social, apresentavam-se contra a antiga idia de que apenas o biodeterminismo causaria a degenerescncia moral.

    Respeitando seu desejo em vida, a cabea e o corao de Lombroso foram devidamente doados para estudos cientficos em universidades europias. Para ele, sua contribuio cincia positivista no deveria limitar-se apenas enquanto estava vivo.

    9 Termo utilizado pela doutrina esprita.

    FIGURA 1- O homem da cincia: a cabea de Lombroso. FONTE: Colombo (2000).

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    1.2 A adoo do estudo jurdico-antropolgico num pas tropical.

    Cinco anos depois da Independncia Nacional e aps a outorgada Constituio brasileira de 1824, nada mais natural do que promover o ensino das cincias jurdicas e sociais, pois que a Nao necessitava de uma ordem legal que viesse do prprio conhecimento e da prtica dessas cincias. O que ento possuamos era, no campo do Direito, o ensimanento castiamente europeu da Universidade de Coimbra, de onde vieram os nossos doutores em Leis para executar, no Brasil, as Leis e Ordenaes do Reino. (PEREIRA, 1977, p.65).

    O processo constitucional brasileiro de 1828 procurava fundamentar-se na concepo de dois centros jurdicos e a produo duma inteligncia local. Dois centros de graduao e ps-graduao estrictu sensu na rea jurdica foram escolhidos para a implementao desses cursos: So Paulo e Pernambuco. O mosteiro de So Bento, em Olinda, torna-se sede da primeira instalao de estudos jurdicos pernambucanos; s em 1854, a Faculdade de Direito seria devidamente transferida para a capital da provncia e batizada como FDR. (SCHWARCZ, 1993, p.142).

    As idias vindas de Portugal, influenciadas pela discusso sobre Antropologia Criminal e Sociologia Criminal, deparam-se com a nova situao social brasileira de mudana poltica de Monarquia para Repblica (1889), em conjunto com abolio da escravido (1888) e com aumento populacional das reas urbanas. A estruturao da classe mdia contribuiu para diminuir a distncia financeira entre os mais abastados e os grupos menos favorecidos, tendendo a estabelecer novas necessidades urbanas.

    Em meio a essas discusses sobre estruturao social e mecanismos judiciais de conteno, a FDR origina o movimento intelectual conhecido como Escola do Recife, demonstrando estar relacionada ao determinismo europeu do sculo XIX. (SCHWARCZ, 1993, p.150).

    A Escola do Recife seria a vanguarda cientfica no Brasil, respirava o Darwinismo Social do ingls Herbet Espencer que estava embasada na teoria evolucionista das espcies, de Charles Darwin. Nessa corrente scio-evolucionista, os membros da sociedade viveriam em constante processo seletivo, culminando com a vitria dos biologicamente bem preparados, em detrimento dos indivduos portadores de deformidades atvicas. A Escola do Recife e sua produo acadmica passaram a ser referncia nacional no estudo spenceriano, propondo tambm

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    debates sobre criminalidade. Esses estudos se apresentavam contra a mestiagem do povo brasileiro, o que seria o problema central de nossas perturbaes urbanas, tal como a criminalidade.

    A Escola do Recife dividiu-se em trs fases: a primeira teve incio em 1862, sendo conhecida como escola condoreira por sua influncia com o teatro e a poesia. Estava composta por nomes como Capristano de Abreu, Castro Alves e Guimares Rosa. Entre 1868 e 1882, d-se conta da segunda fase marcada pela crtica a religiosidade ortodoxa, e abrindo espao estruturao do Direito positivo, sendo o Recife o centro editorial do pas. A terceira fase, a FDR volta-se as discusses jurdicas, como a penalogia e a elaborao de um cdigo penal condizente com as necessidades dum pas mestio. Juristas como Silvio Romero e Tobias Barreto integravam o coro da jurisprudncia pernambucana, autodenominando-se de reformadores da justia. A FDR, apesar de realizar estudos influenciados pelo Darwinismo Social, dividia seus estudos entre Sociologia Criminal e Antropologia Criminal, tendo crticado o lombrosianismo, por limitar a predisposio humana agressividade ao fator biolgico, sem levar em considerao as condies sociais e o histrico de vida de cada indivduo. Mas, produziu inmeros estudos de cunho lombrosiano.

    Impulsionando a Antropologia Criminal brasileira, surge o nome do mdico maranhense Raymundo Nina Rodrigues (1862- 1906). Com seu livro As Raas Humanas e a responsabilidade penal no Brasil (1894). Nina adquire notoriedade no apenas no cenrio brasileiro, mas passa a ser citado por nomes como Lacassagne e Brouardel. Lecionou durante dezessete anos na Faculdade de Direito da Bahia e conquistando discpulos como Afrnio Peixoto e Arthur Ramos (que se auto-intitulava neolombrosiano). (RODRIGUES, 1957, p.10).

    O prprio Lombroso reconhecia Nina Rodrigues como seu discpulo nos trpicos. Nina preocupava-se com os problemas sociais brasileiros propondo uma reformulao do Cdigo Penal, debruando seus estudos sobre a miscigenao da populao brasileira e os incmodos sociais que ela nos delegaria; acreditava que a suposta inferioridade racial africana poderia ser um dos motivos dos nossos problemas com a violncia urbana.

    A autora Mariza Corra descreve Nina Rodrigues como exmio orador e articulador da medicina e da jurisdio brasileiras de identificao. Alguns viam nas

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    idias de Nina um movimento intelectivo, devido a sua credibilidade no meio mdico-jurdico.

    Tanto mdicos como antroplogos se agrupavam sob a denominao de uma escola Nina Rodrigues, mas a sua ala mdica parece ter tido, para a sociedade brasileira como um todo, uma influncia muito maior do que a ala antropolgica. (CORRA, 1998. p. 216).

    A questo racial to abordada por Nina Rodrigues no se encontrava presente no pensamento lombrosiano. Aparentemente no havia ligao entre Antropologia Criminal e as questes raciais, essa caracterstica verificou-se apenas entre os intelectuais brasileiros. (COSTA, 1997, p.53).

    Nina teve atuao direta na elaborao do Cdigo Penal de 1890. Defendeu a apreciao de leis que atendessem s necessidades scio-culturais brasileiras, j que acreditava que cada raa sentia e se manifestava socialmente de maneira diferente, logo deveria haver uma dissociao na aplicao da punitividade. (CUNHA, 1999, p.336). Esse cdigo defendia a implementao dos exames taxolgicos e da interveno mdica, principalmente, nos crimes de homicdio (art. 195). (PEIXOTO,1910, p.496).

    A discusso sobre a temtica da miscigenao de Nina Rodrigues retoma o Brasil aps trinta anos de seu falecimento, em 1906. O ambiente de desestruturao social favoreceu a propagao da teoria neolombrosiana, na dcada de 1930. No pensamento dos juristas brasileiros resistiram traos do positivismo europeu, apresentando a necessidade do poder judicirio em tutelar alguns grupos sociais. (LOPES, 2003, p.109). Com o golpe de Getlio Vargas, em 1937, nosso cenrio poltico ficou confuso e as crescentes migraes das zonas rurais para as urbanas, contriburam para aumentar a populao nas grandes cidades.

    Como o Brasil teve uma histria marcada pela escravido dos africanos, pelo sangue indgena e pela vinda de europeus, relaes inter-raciais impregnaram a nao. Essa mistura racial, segundo Nina, nos condenava a uma herana atvica, entretanto com uma esperana de ser gradativamente solucionada. Por haver sangue europeu nas veias, a populao brasileira tinha chance de se tornar civilizada, bastava que o Estado tutelasse um trabalho srio na rea social, definindo critrios para evitar npcias inter-raciais e a adequao de uma legislao penal rigorosa com crimes cometidos por negros. No trecho abaixo sobre conflito e responsabilidade individual, Nina Rodrigues aponta o cruzamento inter-racial como

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    agente dos males sociais, defendendo aes mdico-jurdicas de esterilizao, para sanar o problema:

    Nesses casos, o cruzamento acaba sempre por dar nascimento a produtos evidentemente anormais, imprprios para a reproduo e representando na esterilidade de que so feridos, estreitas analogias com esterilidade terminal da degenerao psquica. (RODRIGUES, 1957, p.126).

    Essas idias so discutidas dentro das instalaes da FDR pelas turmas de graduao e de ps-graduao, na maioria das vezes sendo publicadas. No perodo republicano do sculo XX, os ecos dessas discusses ocorridos na FDR ressoam, com destaque no cenrio acadmico, na dcada de 1920 com os estudos europeus sobre a Biotipologia Criminal e a Endocrinologia Criminal, teorias chamadas de neolombrosianas.

    O pensamento acadmico pernambucano, na dcada de 1920, passou a retomar o discurso positivista para alicerar suas polticas urbansticas da cidade e possibilitar o controle social. (ANTUNES, 1999, p.117). Teses e dissertaes da FDR e da Faculdade de Medicina do Recife alimentavam-se das teorias europias de modernizao do espao social.

    Na dcada de 1920, a Escola Biotipolgica alem, sofisticada pelo psiquiatra Ernest Kretschmer (1888-1964), associou a psiquiatria ao estudo criminal, afirmando que os indivduos tidos como degenerados apresentavam disfunes antropomtricas. Essas disfunes propiciariam transtornos de personalidade, desencadeando a agressividade humana. (COSTA, 1997, p.157).

    A biotipologia de Ernest Kretschmer propaga-se pelo mundo, defendendo a idia de que haveria um conjunto de caractersticas psicopatolgicas, antropomtricas, antroposcpicas (cor da ctis) e fisiolgicas (funcionamento orgnico), as quais determinariam a agressividade humana. Entre essas caractersticas se poderia enquadrar parte da sociedade, onde a biotipologia teria a funo forense de identificar o comportamento criminal entre os indivduos.

    (BERARDINELLI, 1938, p.25). A Biotipologia desencadeou um processo de discusso entre os juristas

    brasileiros sobre identificao criminal e seus mtodos, na dcada de 1920. Entretanto, na dcada de 1930 a biotipologia ampliou o campo de discusso, saiu

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    das fechadas salas dos laboratrios de medicina legal para invadir espao jurdico-criminal.

    Sobre a discusso biotipolgica em Pernambuco, podemos citar a tese de doutorado de Nise da Silveira aprovada com distino na Faculdade de Medicina do Recife em 1927, a qual ilustra o processo de ressurgimento da Antropologia Criminal nos estudos acadmicos brasileiros. A medicina mdico-legal e a justia caminhavam unidas na elucidao de crimes e possveis estudos sobre delinqncias. Em seu trabalho, Nise Silveira inicia sua narrativa dissecando a teoria lombrosiana e fazendo as primeiras citaes neolombrosianas sobre endocrinologia, biotipologia e crime.

    Nise assegura que at meados do sculo XIX, o Brasil (como tambm na Europa) os suplcios fsicos (FOUCAULT, 1987, p.11). era a forma mais comum de se aplicar a justia. Torturas fsicas e execues pblicas de supostos infratores ocorriam sem um controle judicial rgido, abrindo brechas para injustia e desorganizao na aplicao das penas. Nise Silveira revela seu discurso lombrosianista ao afirmar constantemente em seu texto que a degenerao moral encontrava-se estampada na fisionomia humana.

    Os estreitos laos de parentesco que criminalidade e degenerecncia, revelam-se claramente pela existncia em delinqentes de caractersticas estigmas somticos e psychicos, como tambm pela coincidncia que tem sido constatada entre criminalidade e degenerao, na mesma famlia. (SILVEIRA, 1926, p.13).

    A mdica discorre tambm sobre o sistema punitivo brasileiro, traando um pequeno perfil histrico para desenvolver seu estudo biotipolgico. Inspirado nos modelos scio-estruturais aplicados pelo velho mundo e seguindo o caminho de seus estudos antropolgicos, o Brasil republicano procurou assemelhar-se aos mtodos punitivos europeus, fugindo dos antigos suplcios e pregando uma penalogia em meio ao discurso da privao de liberdade para reabilitar o delinqente vida social.

    Estava configurando-se, na repblica brasileira a tentativa de organizar seu aparelho institucional republicano com rgos centralizadores de poder governamental. Para isto, deu-se apoio construo de instituies educacionais de pesquisas cientficas, como faculdades de Direito e Medicina. (CORRA, 1998, p.31). Essa preocupao com o sistema educacional teria explicao: a necessidade

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    de implantar as idias europias carecia de pesquisas acadmicas, as quais contribuiriam para formular a base legislativa e penal do pas.

    Esses ensaios acadmicos esforavam-se para apontar meios de modernizao do pensamento brasileiro e das normas jurdicas, com a implantao das tcnicas biotipolgicas nas instituies de identificao forense. Essa normalizao jurdica buscava no apenas controlar e disciplinar a populao, como tambm diminuir gradativamente a incmoda mentalidade colonial e dar espao a parmetros europeus de cidadania. (CARVALHO, 1987, p.136).

    O anseio de tornar o pas moderno e civilizado permeava o desejo poltico da elite brasileira, a qual temia os movimentos agressivos dos grupos sociais economicamente menos favorecidos. Para estabilizar aes agressivas e movimentos de desordem da populao, foram promulgados diversos estudos acadmicos. Esses estudos encontravam-se influenciados pelas doutrinas europias biodeterministas. O lombrosianismo, por ser uma doutrina biodeterminista, foi adotado pelos intelectuais como uma forma de modernizar, no apenas o espao social, mas tambm seus habitantes, diminuindo gradativamente o convvio entre os indivduos normais dos portadores de estigmas atvicos. (DARMON, 1991, p. 35).

    Em particular, a Frana moderna serviu de espelho civilizatrio para o Brasil no que tange as polticas pblicas e a Itlia nos estudos de Criminologia. Da a proposta dos intelectuais brasileiros em modernizar os espaos e excluir de certos ambientes os supostos degenerados, aperfeioando os estudos forenses com finalidade de identificar tais indivduos; perodo comum de reproduo das normas, dos costumes e dos conceitos vigentes entre intelectuais europeus.

    Nesse espao de tempo estabiliza-se na Frana a Sociologia Criminal, consolidada por Enrico Ferri, a qual defendia e apontava como causa da criminalidade a condio scio-econmica. A Sociologia Criminal criou metodologias, as quais utilizavam tcnicas de pesquisa, como a estatstica, para analisar condies ambientais (como clima ou geografia da regio) e os fatores sociais (pobreza, baixa instruo, profisso). (HARRIS, 1993, p.93). Esses itens estariam interligados e seriam responsveis por desencadear a degenerao moral.

    A Sociologia Criminal francesa foi um contraponto com a Antropologia Criminal Italiana. Mesmo com semelhanas ideolgicas, a Escola Francesa e a Escola Italiana entraram em choque nos congressos internacionais de 1885-1906.

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    Os franceses julgavam-se teoricamente moderados, vendo os italianos como extremistas.

    Contra esse ataque, os italianos passaram a se julgar cientificistas, diferente do que seriam os estudiosos franceses, por realizarem medies craniomtricas dos delinqentes e por delimitarem uma metodologia condizente com as exigncias positivistas. Os Italianos passaram a exigir que a sociologia francesa apresentasse estudos mtricos to exatos quanto os seus, comparando crnios de pessoas consideradas normais com pessoas possuidoras de atavismos. Os franceses recusaram-se a fazer, dizendo que tais estudos no comprovariam nada. (HARRIS, 1993, p.98).

    Enquanto as revistas tcnicas de medicina registravam rivalidade entre mdicos e juristas franceses e italianos, inegvel que houve uma contribuio mtua na estruturao das tcnicas de identificao e na medicina-legal. Como veremos no terceiro captulo deste trabalho, os intelectuais neolombrosianos brasileiros costumavam discutir a Biotipologia e a Endocrinologia Criminal, sempre apontando elementos exgenos ao corpo humano (como clima e condio scio-econmica) como um dos fatores que desencadeariam a agressividade.

    No ambiente jurdico, ambas concordavam: a introduo da medicina-legal deveria ocorrer nos procedimentos policiais de leso corporal ou agresses psquicas. Um Estado moderno deveria acolher essas teorias lombrosianas em suas instituies de pesquisa cientfica, como tambm nos rgos identificadores da criminalidade. (HARRIS, 1993, p.93).

    A tabela abaixo ilustra a relao entre essas teorias europias:

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    TABELA 1: Relao entre a Antropologia Criminal e a Sociologia Criminal

    ANTROPOLOGIA CRIMINAL

    SOCIOLOGIA CRIMINAL

    RELAO TERICA ENTRE AMBAS

    Procurava reunificar o poder poltico e civil

    O governo republicano procurava civilizar, com polticas pblicas.

    Identificar as massas para melhor control-las.

    A Criminologia francesa de 1880 procurava identificar e eliminar a selvageria que promovia a instabilidade poltico-social. Os estigmas fsicos e psquicos degenerativos esclareceriam as deformidades em loucos, criminosos e doentes mentais (como epilpticos e pessoas com dficits de inteligncia).

    Criminologista Cesare Lombroso e sua teoria sobre o criminoso-nato, caracterizado pelos estigmas fsicos. Ligada a discusso jurdica e aplicao das tcnicas de identificao.

    O termo degenerao foi utilizado por ambas para referir-se aos indivduos estigmatizados (como os epilpticos). _____________________________

    O estudo da metodologia cientfica da medicina legal deveria ser obrigatrio nos cursos de Direito e Medicina, para formar peritos criminais competentes. Aps essa luta, a graduao desses cursos adotaram tal disciplina em suas grades curriculares. Gradativamente os lombrosianos adotaram alguns posicionamentos poltico-sociais da sociologia francesa, admitindo que o meio pode interferir para que o atavismo seja desencadeado. Vendo nas polticas pblicas uma arma de conteno do Estado.

    Defendia a teoria de que a fisionomia revelava o provvel delinqente, como: assimetria facial, dentes irregulares, maxilares grandes, plos do rosto escuros, insensibilidade dor, epilepsia e impulsos instintivos ao incivilizado.

    Discutiu a aplicao das polticas pblicas de modernizao, as quais contribuam para diminuir a ocorrncia de degenerao. Acreditava que o social interferia no indivduo, revelando sua degenerao. A sociologia Criminal criou metodologias utilizando a estatstica (que deveria estudar os fatores sociais como pobreza, baixa instruo ou profisso, assim revelaria o perfil do individuo).

    Alexandre Lacassagne: influenciou Lombroso com a idia que o meio social a cultura do crime. Utilizou estudos sobre delinqncia juvenil e comportamento anti-social, delimitando os estigmas fsicos dos degenerados.

    FONTE: Tabela elaborada pelo autor (a), a partir de informaes colhidas nas obras de HARRIS (1993) e GOULD (1991).

    Essa rivalidade discursiva entre Sociologia Criminal e Antropologia Criminal estava alicerada na viso de que cada Escola dava as causas do delito. A primeira apresentava o delinqente como vtima do sistema scio-econmico, com poucas oportunidades de ascenso social; enquanto que, para Antropologia Criminal italiana, o carter biolgico em conjunto e o meio em que o indivduo vive seria responsvel pelo seu desvio scio-comportamental. (HARRIS, 1993; GOULD, 1991).

    A escola francesa de Criminologia teria surgido oficialmente em 1880 e tambm possua a inquietao acadmica em criar mtodos para identificar as pessoas portadoras dos supostos estigmas da degenerao moral. Entre as primeiras idias da escola criminolgica francesa estava a diferena entre classes operrias e classes perigosas. Diferente da Escola Italiana, que estudava os

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    delitos das localidades rurais, os franceses possuam os olhos vigilantes quase que unicamente voltados zona urbana.

    Pontos de similitude entre criminalistas franceses e italianos estavam na presena preponderante do positivismo, das medidas excludentes da populao financeiramente menos favorecida e a idia fixa em acreditar que a maioria dos indivduos eram ameaas tranqilidade social. (HARRIS, 1993, p.96).

    Os franceses tornaram-se os principais rebatedores de Lombroso. Mdicos renomados, como A. Lacassagne (1843-1924), colocavam-se contra o modelo de criminoso nato lombrosiano, apelidando-o ironicamente de arlequim ideal. Lacassagne, por ser professor catedrtico de medicina, tornou-se um expoente singular da Escola Sociolgica francesa e, em represlia, no cita Lombroso em seu livro. (LOMBROSO, 2001, p.222).

    Lacassagne comparou a sociedade delinqente vida dos micrbios, os quais s de desenvolvem em meio propcio. Esse catedrtico francs substituiu a nomenclatura nata recorrente na Antropologia Criminal por predisposto a aes delituosas. 10 Lacassagne visualizava a sociedade num caldinho cultural de pura criminalidade, onde o micrbio e o criminoso se assemelham, uma vez que ambos carecem dum ambiente favorvel para germinar. Retomando o Primeiro Congresso de Antropologia Criminal de Roma, Lacassagne (apesar de concordar com a existncia dos estigmas lombrosianos) manifestou-se contrrio a alguns pontos de vista dessas proposies. Defendeu a idia de que tais estigmas criminolgicos no provinham do atavismo, mas produto do ambiente social, hbitos alimentares e possveis enfermidades.

    Com essas afirmativas anti-lombrosianas, Lacassagne almejava reafirmar a Escola da Sociologia Criminal francesa, destacando que antes do Estado intervir nos criminosos, deveria intervir nos problemas urbanos. Para ele, a pobreza era a responsvel pela reproduo dos estigmas atvicos e supostas anomalias anatmicas. (LOMBROSO, 2001, p.223).

    10 Iraneidson Santos Costa defende que a Sociologia Criminal teria superado a Antropologia Criminal por estar

    agregada a problemtica social. Na realidade, ao mesmo tempo em que foram escolas rivais, elas se complementavam teoricamente: uma tomava dos conhecimentos da outra para legitimar-se. Pelas Segundo este autor: certo que a Antropologia Criminal, cujo perodo hegemnico situa-se nas dcadas de 70 e 80 do sculo XIX, logo foi superada pela Escola Sociolgica de Lyon. Centrada na figura de Alexandre Lacassagne e negando terminantemente a existncia do criminoso nato lombrosiano, coube a esta escola rival reorientar o estudo da criminalidade, privilegiando agora mais os fatores exgenos (sociais) que endgenos (biolgicos) e lanado nas bases da Sociologia Criminal. (COSTA, 1997, p.27).

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    Os italianos, para defenderem-se dos ataques da sociologia francesa, passam a desenvolver pesquisas craniomtricas estatisticamente precisas, com medies dos crnios de inmeros criminosos. A craniometria convinha como instrumento cabalmente conciso, comparando medidas de crnios de indivduos julgados como criminosos natos com ndices mtricos retirados de pessoas consideradas normais.

    Ao mencionar o estudo da craniometria devemos falar do seu principal expoente, o professor da faculdade de medicina parisiense Paul Broca (1824-1880). Broca foi o fundador da Sociedade Antropolgica de Paris no ano de 1859, antes da teoria lombrosiana ser publicada. Assim Lombroso, para escrever a doutrina da Antropologia Criminal, buscou elementos nos ensinamentos craniomtricos de Pierre Paul Broca. (GOULD, 1991, p.76).

    Broca desenvolveu mtodos precisos de medio dos crnios com a finalidade de confirmar a teoria da inferioridade racial e de gnero entre os humanos. O tamanho e o peso do crebro tambm designariam a superioridade racial, onde indivduos com caractersticas fsicas simiescas possuiriam inclinao natural incivilizao.

    Na realidade, a tcnica de pesquisa de Broca compreendeu o peso dos crebros, afirmando que quanto maior a espessura e a massa maior seria a capacidade intelectiva do indivduo. A tonalidade da pele tambm interferia na classificao intelectiva das pessoas: quanto mais escura fosse tonalidade da ctis, maior seria a ligao com caracteres animais. Para Broca, a cincia deveria desenvolver uma hierarquia cientfica que determinaria a capacidade intelectual das pessoas, como os famosos testes para medir a capacidade intelectual do indivduo, os testes de Quociente de Inteligncia QI. 11

    O objetivo dos postulados de Broca consistia na diminuio gradativa da hibridao racial utilizando mtodos de esterilizao. A evoluo humana dependeria da implementao de tais tcnicas de controle demogrfico das raas consideradas biologicamente inferiores. (SCHWARCZ, 1993, p.55).

    A craniologia de Broca, com os resultados de seu estudo das dimenses cerebrais dos delinqentes influenciou a Antropologia Criminal Italiana, passando a

    11 O teste de QI foi aplicado em Pernambuco na seleo de novos alunos de escolas voltadas para indivduos

    portadores de alguma anomalia mental (como os epilpticos e os esquizofrnicos). A Escola Especial Aires Gama aplicou o teste de QI desde a dcada de 1940, sendo retirado apenas no final do sculo XX. Falaremos sobre o assunto no segundo captulo deste trabalho.

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    fazer parte da metodologia de anlise biolgica. Essa ideologia determinista de Broca, em conjunto com a Antropologia Criminal, abriu margem aos famosos testes de inteligncia, como os testes de QI. (GOULD, 1999, p.113). Com essa metodologia encontra-se em andamento a atuao acadmica mais fervorosa do Darwinismo Social. 12

    O teste de QI pouco se esquiva da analogia de que todo estado intelectual estaria acompanhado por manifestaes fsicas determinadas, as quais caminhariam num fenmeno psquico. O estado intelectual dum indivduo se expressaria em suas manifestaes sociais, numa coreografia de legtima reciprocidade.

    No entanto, no podemos refutar que tanto a Antropologia Criminal quanto a Sociologia Criminal eram modelos ideolgicos do determinismo social, onde o mais capaz sobrepe-se ao menos habilitado, tanto intelectualmente quanto fisicamente. (SCHWARCZ, 1993, p.15).

    Mesmo sendo uma classe de pouco reconhecimento, o mdico-legista possua um poder inegvel perante as investigaes. Havia evidncia de que mdicos e juristas uniam-se para retirar do julgamento os rus comprometidos com os estigmas degenerativos ou para, simplesmente, chegarem ao mesmo consenso num caso policial. A Biotipologia Criminal e a Endocrinologia Criminal, teorias que faziam parte do neolombrosianismo passam a ser propagada em pesquisas acadmicas desde a dcada de 1920, ganhando notoriedade na dcada de 1930, trazendo novos artifcios tcnicos na elaborao das fichas de identificao criminal.

    Mesmo legistas e juristas franceses e italianos, discordando abertamente em congressos internacionais, os olhares tcnicos tanto de uma quanto da outra escola vislumbravam o mesmo sentido: o de procurarem entre a populao os degenerados. (DARMON, 1991, p.174). Minuciosas medies craniomtricas, corporais, antecedentes psicopatolgicos, taras hereditrias e histrico scio-familiar, eram cuidadosamente investigados pelos peritos.

    Os resultados dessa percia psico-social no ficavam guardados em pronturios mdicos, seriam exibidos principalmente em julgamentos de crimes de

    12 Para esclarecer o que foi o Darwinismo Social, utilizaremos palavras da historiadora Lilia Moritz: no so

    poucas as interpretaes de A Origem das Espcies que desviam do perfil originalmente esboado por Charles Darwin, utilizando as propostas e conceitos bsicos da obra para a anlise do comportamento das sociedades humanas. Conceitos como competio, seleo do mais forte, evoluo e hereditariedade passam a ser aplicado aos mais variados ramos do conhecimento (...) (SCHWARCZ. Op. Cit. p. 56)..

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    homicdio, estupro ou, os mais inexplicveis, como por exemplo, em casos de assassinato dos prprios pais. (HARRIS, 1993, p.98).

    Os estudiosos brasileiros misturaram essas teorias e originaram uma poltica pblica preocupada em afastar das reas de modernizao os indivduos tidos como degenerados, tendo em vista que o centro das cidades deveria ser freqentado pelos normais, os cidados que tanto se procurava: sem estigmas e dentro dos padres scio-comportamentais. Dessa maneira procuravam expor sociedade a periculosidade dos sujeitos apontados como degenerados, valorizando a pesquisa cientificista e proporcionando uma popularizao das idias criminolgicas, saindo das academias para os meios de comunicao de massa, como jornais.

    1.3 O discurso Neolombrosiano

    Vemos a psychologia e a endocrinologia de mos dadas, no investigar os mesmos phenomenos neo-lombrosianismo com o contingente precioso que lhe trouxe a psychanalyse. (Grifo nosso) (RAMOS, 1937, p.139).

    Em 1931, o mdico-legista Arthur Ramos escreve o artigo sobre os distrbios das glndulas endcrinas e sua relao com crimes sexuais, pronuncia a palavra neolombrosianismo pela primeira vez no Brasil. Influenciado pela Antropologia Criminal e, aps realizar percias no Servio Mdico Legal do Estado da Bahia, teria chegado concluso de que as oscilaes hormonais provocadas pelas glndulas endcrinas interagiam no comportamento humano. (RAMOS, 1937, p.139). Seria a manifestao da natureza criminal no organismo dos indivduos.

    Em 1937, Ramos publica seu livro sobre medicina forense Loucura e Crime, sob direo e prefcio do professor Josu de Castro, onde discute a questo da raa e os ndices de delinqncia brasileira. 13 Ramos havia sido um jurista republicano respeitado, escrevia constantemente em peridicos como A Provncia 14 defendendo a recluso prvia dos indivduos que possussem os estigmas antropolgicos da delinqncia. Essa recluso prvia encontrava-se ligada ao

    13 Arthur Ramos foi professor de Psicologia Social da Universidade do Distrito Federal, chefe do Servio de

    Higiene Mental do Departamento de Educao do Rio de Janeiro (D.F.), livre docente de Clnica Psiquitrica da Bahia, mdico-legista do Instituto Nina Rodrigues, na Bahia. (MENEZES, 2002). 14

    A Provncia foi um peridico pernambucano publicado durante cerca de 50 anos, at o ano de 1933, o qual promovia um discurso modernizador da cidade, com artigos que discorriam sobre Antropologia Criminal e os projetos de modernizao do centro da cidade do Recife.

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    processo educacional dos pr-degenerados (pessoas com o atavismo ainda no manifestado). Ramos defendia, assim como os lombrosianistas, a criao de escolas especializadas em distrbios de personalidade, a fim de conter previamente a agressividade congnita contida nessas pessoas.

    Esses juristas pareciam no possuir conscincia da fora poltico-social que o conhecimento cientfico possui na formao da mentalidade social. Ignoravam que a cincia pode se tornar uma arma quando no se encontra empregada em meio aos parmetros da dvida (sem almejar resultados acadmicos positivistas, onde se poderia chegar a concluses definitivas). As certezas neo-positivistas de 1930 caminhavam num vis estreito, praticamente retomando o positivismo, desencadeando discusses entre os intelectuais da dcada posterior. (GOMES, 2001).

    O discurso neolombrosiano remontava cincia positivista europia do sculo XIX, julgando percorrer o sinuoso percurso das certezas cientificistas. A psiquiatria j fazia parte dos procedimentos tcnicos para classificar, enclausurar e conter os marcados como loucos morais.

    Fazendo uma breve retrospeco a respeito dos primeiros passos da Antropologia Criminal no final do sculo XIX, juristas e psiquiatras divergiam suas idias em tribunais sobre insanidade mental e as causas da delinqncia. Pouco tempo depois, tanto juristas quanto psiquiatras camuflaram suas divergncias e uniram-se em tribunais e na elucidao de crimes. Essas profisses deram espao ao conceito de administrao criminal; agora, ao invs de responsabilizar o ru, analisava-se sua periculosidade social a qual definiria sua personalidade criminosa. (HARRIS, 1993, p.93).

    O trabalho de Lombroso associado psiquiatria contribuiu para a diviso dos infratores em dois tipos primrios: o criminoso por ocasio e o criminoso por paixo. O criminoso por ocasio possuiria os estigmas hereditrios da delinqncia, entretanto s reagiriam em situaes emocionais extremas, no sendo classificado de criminosos natos.

    O criminoso por paixo teria o emocional exacerbado, geralmente cometem o delito na juventude devido ao temperamento indomesticvel. (ARAGO, 1955, p.48). Possuiriam as mesmas despropores fisionmicas identificadas nos loucos e epilpticos, sem resistncia psquica para dominar suas pulses animalescas. Dificilmente comoviam-se aps cometerem o delito j que o senso de moral lhes

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    estava pouco desenvolvida. Segundo Lombroso, quando um criminoso por paixo arrependia-se de ter cometido a infrao, ocorria o suicdio ou era acometido pela alienao mental.

    Essa distino entre criminosos por ocasio e criminosos por paixo era crticada pela escola francesa por ignorar o livre arbtrio do delinqente para cometer ou no o ato. Para os lombrosianos o sujeito teria suas escolhas atreladas a pulses hereditrias, no a desejos pessoais. Com isso, a Escola Clssica de Direito Penal apregoava que todos os indivduos estariam sob o domnio da punitividade, mesmo encontrando-se sob estado de alienao mental ou qualquer outro tipo de circunstncia emocional, tendo em vista que os valores morais dos transgressores estariam ligados ao atavismo. (LOMBROSO, 2001, p.38). Entretanto, mesmo com essa diviso quanto ao tipo de criminoso, ambos possuam os estigmas da degenerao moral.

    A medicina neolombrosiana vestiu-se dessas analogias psiquitricas e superlotou os hospcios com loucos morais que deveriam ficar sob custdia e serem devidamente tratados base de forte medicao sedativa.

    Esse perodo teria sido seguido por um aumento no ndice de criminalidade nas reas urbanas, o qual ocasionou a necessidade do Estado em reforar o controle das manifestaes incivilizadas da sociedade. A pretenso era apresentar um sistema punitivo eficaz na preveno de delitos, com tcnicas de identificao forense tendo base no conhecimento cientfico para precaver a ao delituosa. O corpo humano passa a ser o material de estudo, o tornando num corpo poltico como conjunto dos elementos materiais e das tcnicas que servem de armas, de reforo, de vias de comunicao e de comunicao e de pontos de apoio para realizaes de poder (...). (FOUCAULT, 2001, p. 27). Para Foucault, era o estabelecimento do biopoder ou do corpo bio-politico, onde o controle sobre a sociedade se operava no apenas pela ideologia, mas o fator biolgico e somtico do indivduo. Podemos observar o desenvolver dessa idia na citao a seguir:

    O controle da conscincia sobre os indivduos no se opera simplismente pela cosncincia ou pela ideologia, mas comea no corpo, com o corpo. Fio o biolgico, no somtico, no corporal que, antes de tudo, investiu a sociedade capitalista. O corpo uma realidade bio-poltica. (FOUCAULT, 2001, p. 80).

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    Em meio a essa necessidade dos dirigentes em controlar a sociedade se utilizando, principalmente, do sistema de controle judicirio, a miscigenao da populao brasileira era vista como negativa pelos neolombrosianistas. Isso devido dificuldade dos estudiosos brasileiros em dividir nossa populao em grupos raciais, por causa do alto ndice de miscigenao, no havendo o corpo humano com traos padronizados, como desejava os especialistas.

    A miscigenao facilitaria a propagao da degenerao moral no Brasil, diferente do que acontecia com o povo Europeu, expondo os brasileiros a diversas falhas biolgicas, herana de grupos sociais populares, como negros e indgenas (pessoas que, para os especialistas, possuiriam explcita ligao atvica). 15 Essa mestiagem teria nos condenado a uma sociedade violenta devido ao fator congenito.

    Em 1933, Gilberto Freyre publicou Casa Grande & Senzala, onde apresentou a miscigenao como um ponto positivo na populao brasileira, que servia como encontro das civilizaes africana, indgena e europia. (FREYRE, 2004, p.380). Freyre faz crticas s idias neolombrosianas, principalmente com relao associao da delinqncia brasileira como a causa da miscigenao.

    Na inferioridade ou superioridade pelo critrio da foema do crnio j no se acredita; e esse descrdito leva atrs de si muito do que pareceu ser cientifico nas pretenes de superioridade mental, inata e hereditria, dos brancos sobre os negros. A teoria da superioridade dos dlico-louros tem recebido golpes profundos nos seus redutos. (...) O que se sabe das diferenas da estrutura entre os crnios de brancos e negros no permite generalizaes. J houve quem observasse que o fato de que alguns homens notveis tm sido indivduos de crnio pequeno, e autnticos idiotas, donos de crnios enormes. Nem merece contradita sria a superstio de ser o negro, pelos seus caractersticos somticos, o tipo de raa mais prximo da incerta forma ancestral do chimpanz. Superstio em que se baseia muito do julgamento desfavorvel que se faz da capacidade mental do negro. Mas os lbios dos macacos so finos como na raa branca e no como na preta. (FREYRE, 2004, p. 377)

    A crtica de Freyre aos estudos antropomtricos fomentaria ao que, para ele, estaria fora da sociedade brasileira: a miscigenao. O autor discute os estudos da Antropologia Criminal em mais de cem pginas desta obra, rebatendo as declaraes dos endocrinologistas e outros cientistas sobre a suposta inferioridade biolgica da populao brasileira, alegando que o problema de nosso povo no

    15 Para Roquette Pinto, a miscigenao gerou o bordo: miscigenao brasileira determina sua sifilizao.

    Atribuindo miscigenao um carter de promiscuidade sexual, a qual propiciaria doenas sexualmente transmissveis, como a sfilis. (ROQUETTE-PINTO, 1925, p. 16).

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    seria uma inferioridade congnita, mas a falta duma alimentao equilibrada. (FREYRE, 2004, p.104).

    Freyre se recebe duras criticas dos estudiosos pernambucanos por se mostrar contra as idias cientificas da poca, num momento que a maioria defendia o trabalho antropomtrico desenvolvindo pelo Instituto de Identificao Criminal. Esse instituto jurdico encontrava-se sob os parmetros de identificao lombrosianos, tendo a funo de investigar aes criminosas como tambm estudar anatomicamente os delinqentes. Esse estudo anatmico com medies craniomtricas e faciais serviria para elaborar um banco de dados antropolgico, que facilitaria a identificao de possveis delinqentes.

    Com esse tipo de estudo de identificao criminal-anatmico, a FDR tornou-se referncia nacional sobre os estudos influenciados pelas teorias lombrosianas. Juristas como Luciano Pereira e Arthur Ramos, bem como a freqente publicao de diversos artigos em jornais pernambucanos, populariza o lombrosianismo e adquire credibilidade, no apenas no meio jurdico, mas em reas intelectuais, tendo uma extensa discusso interdisciplinar. (ADEODATO, 2005, p.18).

    O trabalho do estudante de Direito da FDR, Luciano Pereira Silva, ilustra a confuso dos intelectuais brasileiros em misturar a Antropologia Criminal com a Sociologia Criminal. A obra A Sociologia Criminal, em 1906, foi um dos primeiros estudos biodeterministas realizados em Pernambuco; nele, Luciano concorda com a teoria do criminoso nato, defendendo a idia de que a violncia social estaria ligada ao atavismo. Entretanto, para ele, a criminalidade brasileira estaria intimamente ligada alta miscigenao da populao (com seu atavismo) e aos problemas sociais (como defendia a Escola de Sociologia Francesa). Em mais da metade de seu trabalho de 533 pginas, Luciano relaciona os atavismos Lombrosianos com os cdices apregoados pela Sociologia Criminal, tais como:

    O crime um fenmeno de anormalidade biolgica-psico-social;

    Atavismo, patologia, degenerescncia, e defeito de nutrio do sistema nervoso central;

    Fenmeno de origem social por influncia econmica; Por defeito de adaptao poltico social; Por influncias sociais complexas. (SILVA, 1906, p.94).

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    A explicao de Luciano sobre como ocorreria uma ao criminal seguida pelas teses dos acadmicos neolombrosianos pernanbucanos, tendo continuidade na FDR durante a dcada de 1930. A Endocrinologia Criminal e a Biotipologia Criminal em Pernambuco continuam suas anlises sobre as variaes comportamentais dos criminosos, concordando que certas anomalias j relacionadas por Lombroso, demonstram a suposta degenerao do sujeito, como a epilepsia. Antes mesmo de a endocrinologia ser estudada como preceito forense, o estudante da FDR, Luciano Pereira, ao falar do cientista Eurico Ferri, menciona que certas doenas ou disfunes psquicas estavam diretamente relacionadas predisposio de alguns indivduos vida anti-social os conhecidos Stigmas da Criminalidade. Haveria uma grande variedade de Stigmas: enfermidades, anatmicos, psicolgicos, comportamentais, etc. Nesses casos, caberia a pena de morte, uma forma prtica para eliminar os tidos degenerados. Nesse sentido, vejamos a citao:

    O delinqente ser mais ou menos temvel conforme o perigo que dele decorrer para a sociedade, aplicando-se lhe ento a pena de acordo e na proporo do perigo, podendo ela ir desde a simples medida de policia at mesmo eliminao completa pela morte, exercendo a sociedade contra o criminoso pela morte, exercendo a sociedade contra o criminoso to somente o direito de legitima defesa. (SILVA, 1906, p. 72).

    A pena de morte um ponto defendido pelos lombrosianistas do incio do sculo; j os neolombrosianos, defendem que o Estado deveria tutelar esses anmalos, vigi-los e separ-los do convvio com as pessoas normais. Dentre as enfermidades relacionadas por Luciano Pereira, estavam os estigmas criminais relacionados por Ferri: a epilepsia, o daltonismo e a alienao mental. Tatuagens, a mendicncia e a vagabundagem eram prticas relacionadas ao comportamento dos delinqentes natos. As pessoas que apresentassem esses distrbios, quando no se suicidavam ou tornavam-se mendigos, entregavam-se vida desregrada do crime (o que ocorria com a grande maioria desses doentes biolgicos). (ADEODATO, 2005, p.158).

    No Brasil, a onda de violncia e a presso dos juristas fizeram o governo criar o Gabinete de Estatstica e Identificao, que era relacionado cincia criminal, o qual deveria dar o nmero exato e elaborar aes pblicas na

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    preveno da delinqncia. O GIEC (1909), em conjunto com o Instituto de Criminologia (desde 1910), seria responsvel por servios policiais de identificao antropomtrica. A ideologia desse rgo judicirio estava embasada no estudo lombrosianista, sendo modificado para Instituto Mdico-Legal, em 1933. (COSTA, 1997, p.87).

    O clamor dos chefes de polcia pela inaugurao de Gabinetes de Identificao Criminal no Brasil tinha como pretenso incial realizar estudos craniomtricos e antropomtricos dos delinqentes, com finalidade de formar um banco estatstico de criminosos, o qual ajudaria o trabalho de identificao da polcia. Para utilizar cotidianamente desse conhecimento biodeterminista no GIEC, o perito necessitaria de noes cientficas lombrosianistas. Para isso, o sistema judicirio deveria oferecer aos policiais cursos de aperfeioamento sobre percia forense, tendo a Antropologia Criminal e as tcnicas de identificao anatmica como complemento do curso de Criminologia (que deveria ser obrigatrio). (MAIA, 2001, p.115).

    Em 1930, o estudo da Criminologia brasileira estava focado na atuao repressiva da polcia em conjunto com as novas tcnicas de identificao humana. A Endocrinologia e a Biotipologia Criminal faziam parte das teorias neo-positivistas e estariam disposio, no apenas dos exames biolgicos, mas submetidas, tambm, s decises subjetivas do magistrado:

    A cincia penal logra um estudo completo da confederao orgnica do indivduo. [...] O criminalista, subordinado ao estudo das leis biolgicas no mais o exegeta do antigo direito. O jurista, em misso preventiva e repressiva, tem fatalmente de participar dos atributos do clinico. Por isso mesmo a cincia penal, com investigao profunda, se resume em verdadeira clnica criminalgica. (SILVA, 1930, p.47).

    Nessa associao entre a cincia penal da dcada de 1930 e a anlise do corpo biolgico criminoso como um trabalho de represso psico-social, situava-se um mecanismo interligado com outr