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LOBO BRANCO

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DAVID GEMMELL

LOBO BRANCO

Tradução de

Maria Georgina Segurado

EDITORIAL � PRESENÇA

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FICHA TÉCNICA

Título: White Wolf

Autor: David Gemme/1

Copycighr © 2003 by David Gemmell Tradução: © Editorial Presença, Lisboa, 2004

Tradução: Maria Georgina Segurado

Capa: Samuel Santos

Composição, impressão e acabamemo: Multítípo - Artes Gráficas, Lda.

1. • edição, Lisboa, Maio, 2004 Depósito legal 0.0 2 10 089/04

Reservados todos os direitos para Ponugal à

EDITORIAL PRESENÇA Estrada das Palmeiras, 59

Queluz de Baixo 2745-578 BARCARENA Email: info(illeditprt'st'n<·a.pt lmt'rner: hrrp:llwww.presença.pt

Lobo Branco é dedicado com carinho à Linda, ao Karl, à Kate, ao Jade e Andrew, pela alegria proporcionada

pelo churrasco e o privilégio de uma família.

E também a dois homens que nunca conheci,

Ken e Malcolm, os irmãos Gemmell.

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Mar do Norte

Mar do Sul

AGRADECIMENTOS

Os meus agradecimentos a Steve Saffel, cujos conselhos inspiraram a criação de Skilgannon, o Maldito, a Selina Walker, minha editora de texto na Transworld e aos meus primeiros leitores e críticos Jan Dunlop, Tony Evans e Stella Graham.

Estou igualmente muito reconhecido ao autor Alan Fisher por partilhar comigo os conhecimentos do ofício, a Dale Riipke pela sua dedicação na elaboração mapa do mundo dos Drenai, a Dave Barrett e à minha editora de texto, Heather Padgen.

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PRÓLOGO

Caphas, o Mercador, assustou-se quando o desconhecido se aproxi­mou da sua fogueira do acampamento na floresta a norte da capital. Caphas escolhera o local com cuidado, numa depressão longe da es­trada, de modo a que a fogueira não pudesse ser vista. Apesar de a guerra civil já ter terminado, houvera tantas baixas de ambos os lados que eram poucas as tropas que patrulhavam agora as regiões despo­voadas, onde os renegados e desertores saqueavam e roubavam. O mer­cador pensara muito antes de efectuar esta viagem, mas com tantos dos seus colegas demasiado aterrados para entrarem nas terras do Naashan, vira uma oportunidade de obter lucros enormes com as suas mercadorias, sedas de Chiatze e especiarias de Sherak e Gothir. Agora, no momento em que o brilho da lua cheia incidia na depressão, esses lucros pareciam muito distantes.

O cavaleiro surgiu de uma linha de árvores por cima do acampa­mento e virou o cavalo para descer a vertente. O penteado do homem

- a parte inferior da cabeça completamente rapada, o cabelo de cima puxado numa crista agressiva- mostrava que era um mestre de armas naashanita. Caphas começou a relaxar. Era improvável que tal homem fosse um ladrão. Havia formas bem melhores de lutadores experientes fazerem dinheiro neste país dilacerado pela guerra do que emboscar mercadores itinerantes. As roupas do homem reforçaram ainda mais este juízo. Apesar de funcionais no aspecto - um justilho negro de couro, os ombros guarnecidos com cota de malha, calças de couro e botas altas de montar também adornadas com malha-, evidenciavam um fabrico requintado. O seu cavalo preto era um puro-sangue ven­triano. Raramente se viam estes animais à venda nos mercados, mas

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era possível adquiri-los particularmente a um preço que oscilava entre os duzentos e os quatrocentos Raq de ouro. O cavaleiro não era mani­festamente um ladrão. As ideias de roubo desapareceram, apenas para serem substituídas por um medo de outra natureza.

O homem desmontou e aproximou-se da fogueira. Movia-se com a graciosidade comum a todos os esgrimistas, pensou Caphas, que se levantou para o saudar. Visto de perto, o cavaleiro era mais novo do que Caphas a princípio supusera. Vinte e poucos anos. Os seus olhos eram de um azul-safira penetrante, o seu rosto atraente. Caphas fez uma vénia. Bem-vindo à minha fogueira, cavalheiro-disse. - É bom encontrar companhia num local tão ermo. Sou Caphas.

- Skilgannon respondeu o homem, estendendo a mão. Um medo profundo e chocante invadiu Caphas. Subitamente

secou-se-lhe a boca. Consciente de que Skilgannon o fitava, conseguiu articular: -Eu ... ia preparar uma pequena refeição. Teria o maior prazer em que a partilhasse.

Obrigado. - Os olhos azuis de Skilgannon perscrutaram o local do acampamento. Depois levantou a cabeça e cheirou o ar. Como não é a pessoa que usa o perfume, sugiro que convide as mu­lheres a reunirem-se-nos. Há animais selvagens na floresta. Não tan­tos lobos como existiam outrora, mas ainda alguns ursos e uma ou outra pantera. Afastou-se de Caphas e acercou-se da fogueira. Foi então que o mercador viu o estranho ornamento que ele trazia pendurado às costas. Tinha cerca de metro e meio de comprimento, ligeiramente curvo, preto brilhante no centro. Havia em cada extre­midade secções de marfim magnificamente esculpidas. Ornamentado e requintado, ter-se-ia (se não houvesse escutado o nome do homem) afigurado a Caphas sem a menor utilidade.

Retirando o ornamento das costas, o desconhecido colocou-o no solo a seu lado quando se sentou junto à fogueira.

Caphas virou-se na direcção da floresta escura. Sentia um peso no peito. Skilgannon sabia que as raparigas estavam ali, e se tivesse in­tenções de violar ou assassinar, não conseguiriam escapar-lhe.-Vem, Lucresis. Traz Phalia. Está tudo bem chamou, suplicando que fosse verdade.

Uma mulher jovem e esbelta, de cabelo escuro, saiu das árvores, segurando a mão de uma menina dos seus sete anos. A criança soltou­-se da mão da irmã e correu para o pai. Caphas envolveu-a com o braço e puxou-a na direcção da fogueira. As minhas filhas, Phalia e Lucresis -disse. Skilgannon ergueu o olhar e sorriu.

- É sempre bom usar de cautela - referiu. As raparigas são

muito belas. Devem sair à mãe. Caphas pôs um sorriso forçado. -Ah, sim, ela era uma beldade.

Não haja dúvidas. - Ficou descoroçoado ao ver Lucresis olhar audaciosamente para o homem jovem e bem-parecido. Ela inclinou a cabeça e passou os dedos pelo cabelo comprido. Sabia que era bonita. Tantos homens jovens lho haviam dito ...

Lucresis! Vem ajudar-me a trazer os apetrechos da carroça­

ordenou Caphas, a sua voz mostrando aflição. Confusa ante o receio

dele, a jovem seguiu-o. Quando chegou à carroça, disse-lhe entre den­

tes: -Pára de lhe fazer olhinhos.

-Ele é muito atraente, Pai. -Aquele é Skilgannon, o Maldito. Não queiras ter nada a ver com

ele. Será uma sorte se lhe escaparmos com vida - acrescentou, mantendo o tom de voz num murmúrio. Entregou-lhe várias pa­nelas.

Lucresis olhou para o homem junto à fogueira. Estava a conversar com a pequena Phalia, que ria das palavras dele. Ele não nos fará

mal, Pai. -Quem vê caras, não vê corações. Se só os homens feios come­

tessem crimes, não seria nada difícil encontrar os criminosos. Ouvi histórias dos excessos dele. Não apenas no campo de batalha. Dizem que teve uma casa grande, e todas as criadas eram prostitutas expe­rientes. Não é o tipo de homem que queira perto da minha filha ... se eu tivesse uma palavra a dizer sobre o assunto. O que não é o caso

-rematou, infelicíssimo.

-Quem me dera ter -afirmou Lucresis. Regressando para junto da fogueira, Caphas preparou uma sopa.

O seu cheiro pairou no ar, intenso e tentador. De vez em quando, mexia o conteúdo da panela grande, depois provava antes de acres­centar um pouco de pimenta e especiarias. Por fim, deitou sal-gema na panela. Creio que está pronta anunciou.

Após a refeição, Skilgannon pôs de lado o prato. -É um cozi­nheiro verdadeiramente talentoso, Mestre Caphas.

-Obrigado, cavalheiro. É um passatempo meu. -Por que tens uma aranha no braço? perguntou a pequena

Phalia, apontando para a tatuagem preta no antebraço esquerdo de Skilgannon.

Não gostas dela?

- É muito feia.

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-Phalia, que falta de educação! - contrapôs Caphas. - É a

marca de um oficial, minha querida -apressou-se Caphas a explicar,

apercebendo-se de que chocara a criança. - Os combatentes do

Naashan adornam-se desta maneira. É atribuída a Aranha a um ofi­cial que ... derrotou ... oito inimigos num único combate. Os gene­

rais têm panteras tatuadas no peito, ou águias se as suas vitórias são grandes. -Ajoelhou-se ao lado da criança. -Mas não deves fazer esses comentários.

-Desculpa, Pai, mas é feia.

-As crianças dizem o que pensam -referiu Skilgannon, baixi-nho. -Não é uma coisa má. Fique calmo, mercador. Não quero fazer­

-lhes mal. Passarei a noite no vosso acampamento e ir-me-ei embora de manhã. A vossa vida não corre perigo. . . assim como a honra da

vossa família. E, a propósito, a casa de que falou à sua filha não me

pertencia. Pertencia a uma cortesã que era, digamos, amiga. - Não quis ofendê-lo, cavalheiro.

-Tenho o ouvido muito apurado, mercador. E não fiquei ofendido. -Obrigado. Muitíssimo obrigado.

Ouviram o som de cavalos ao longe. Skilgannon levantou-se e ficou

à espera. Instantes depois, surgiu na clareira uma coluna de cavalaria. Caphas,

que viajara pelo Naashan durante os anos da guerra civil, reconheceu­

-os como sendo os Cavaleiros da Rainha, guerreiros vestidos de preto com pesados elmos. Cada um trazia uma lança, um sabre e um pequeno

escudo redondo, decorado com uma cobra sarapintada. À cabeça da co­

luna vinha um civil que reconheceu: Damalon, o favorito da rainha.

Tinha cabelo comprido e louro, o rosto magro. Os cinquenta cavalei­ros permaneceram em silêncio nas suas montadas, enquanto Damalon

saltava com ligeireza para o chão. -Foi uma longa cavalgada, General -disse a Skilgannon.

- Nesse caso, por que a empreendeu? - inquiriu o guerreiro. -A rainha quer de volta as Espadas da Noite e do Dia.

- Elas foram um presente - afirmou Skilgannon. Encolheu os ombros. -No entanto, não seja por isso.

Pegando no curioso ornamento, segurou-o por um momento ... de­pois arremessou-o a Damalon. Naquele instante, Caphas viu um

espasmo de dor percorrer o rosto de Skilgannon.

O belo cortesão olhou para os soldados. - Não precisa de ficar,

Capitão-dirigiu-se a um homem alto montado num cavalo castrado castanho. - A nossa tarefa aqui está concluída.

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O cavaleiro fez avançar o seu cavalo. -Foi bom revê-lo, General -disse a Skilgannon. -Que os deuses estejam consigo.

- E consigo, Askelus - respondeu Skilgannon. A cavalaria virou as suas montadas e abandonou a clareira. Fica­

ram apenas quatro cavaleiros, homens vestidos de negro, que não

traziam espadas. Compridos punhais pendiam-lhes dos cintos.

Desmontaram e vieram colocar-se ao lado de Damalon.

- Por que se veio embora? -perguntou Damalon a Skilgannon. - A rainha admirava-o mais do que a qualquer outro dos seus

generais. - Por razões que só a mim dizem respeito. -Muito estranho. Tinha tudo. Riqueza, poder, um palácio inve-

jável. Podia ter arranjado outra esposa, Skilgannon. - Damalon

rodeou com a mão um dos cabos de marfim, depois fez pressão sobre

ele. Não aconteceu nada. - Carregue no rubi saliente no punho - disse Skilgannon. -

Ele libertará a lâmina. -Assim que Damalon carregou no botão, a

espada deslizou facilmente. O luar incidiu no aço cor de prata e nas runas nele gravadas. Caphas olhou para a espada com indisfarçada avareza. As Espadas da Noite e do Dia eram lendárias. Perguntou-se

desnecessariamente quanto valeriam se oferecidas a um rei. Três mil

Raq? Cinco mil?

-Muito bela- comentou Damalon.-Excitante. -O conselho que lhe dou ... e aos seus seguidores ... seria que vol-

tassem a montar e partissem - disse Skilgannon. - Como referiu,

a sua missão está concluída.

-Ah, não propriamente - referiu Damalon. -A rainha ficou muito furiosa quando se veio embora.

-Ficará ainda mais furiosa se você não voltar - objectou

Skilgannon. - E estou farto da sua companhia. Compreenda-me,

Damalon, não pretendo matá-lo e às suas criaturas. Apenas desejo ir­-me embora desta terra.

-A sua arrogância é impressionante - ripostou Damalon. -

Tenho as suas espadas, e quatro homens hábeis no manejo de armas,

e ameaça-me? Perdeu o juízo?-Olhou para Caphas. -Que pena estares aqui, mercador. É o destino, suponho. Nenhum homem o

consegue evitar. - Damalon carregou numa esmeralda saliente no segundo punho. A bainha negra caiu para o chão quando a segunda

espada ficou à mostra. Brilhou como ouro, intensa e preciosa. Por um momento, o cortesão louro fi<'ou muito quieto, absorvendo mental-

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mente a beleza das espadas. Depois abanou a cabeça, como se saísse de um transe.-Matem o velho e a criança ordenou.-A rapa­riga será uma boa distracção antes de regressarmos à capitaL

Naquele momento, Caphas viu Skilgannon avançar para Damalon. . A sua mão deslizou como uma flecha. Algo brilhante e reluzente

cortou o ar. Atingiu Damalon ao de leve na garganta. O sangue jorrou da jugular cortada. O que se seguiu nunca mais

Caphas esqueceria, nem sequer o mais ínfimo pormenor. Skilgannon caiu sobre Damalon. Quando o oficial moribundo lar­

gou as espadas, Skilgannon apanhou-as. Os quatro assassinos vestidos de preto acorreram. Skilgannon saltou ao encontro deles, as lâminas das espadas brilhando com o clarão da fogueira. Não houve combate, nem choque de aço com aço. Numa questão de segundos jaziam cinco homens por terra, mortos ... um praticamente decapitado, outro ras­gado do ombro ao ventre. Caphas viu Skilgannon limpar as lâminas de ouro e prata antes de as voltar a enfiar na bainha única preta, que colocou às costas.

-É melhor procurar novos mercados, Caphas-disse.-Temo que Naashan seja agora perigoso para si.

O homem nem sequer estava ofegante e não havia vestígios de suor na sua testa. Virando as costas a Caphas, voltou para trás e pesquisou o solo à volta do cadáver de Damalon. Baixando-se, pegou numa pequena peça circular de metal que não tinha mais de cinco centí­metros de diâmetro. Skilgannon limpou-a à camisa de Damalon. Caphas viu então que o metal tinha uma extremidade serrilhada. Estremeceu. Skilgannon enfiou a arma numa bainha escondida por de­baixo do cinto. De seguida, aproximou-se do seu cavalo e selou-o.

Caphas acercou-se dele. -Eles iam matar-nos também -disse. -Obrigado por me salvar a mim e às minhas filhas.

-A criança está assustada, Caphas. Devia ir ter com ela su-

geriu Skilgannon, subindo com facilidade para a sela. Lucresis correu para o cavalo dele. Eu também estou grata-

disse, fitando-o com olhos arregalados. Ele sorriu-lhe, depois debru­çou-se, pegou-lhe na mão e beijou-a.

Que a sorte te acompanhe, Lucresis-disse-lhe.-"-. Teria sido extremamente agradável passar um pouco mais de tempo na tua com­panhia. -Soltando-lhe a mão, olhou para Caphas, que segurava a filha mais nova perto de si. -Não fiquem aqui esta noite. Preparem a vossa caravana e sigam para norte a toda a velocidade.

E com aquelas palavras, foi-se embora.

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Caphas ficou a observá-lo até se perder entre as árvores. Lucresis

suspirou e virou-se para o pai. - Quem me dera que ele tivesse ficado.

O mercador abanou a cabeça, incrédulo. Acabaste de o ver matar

cinco homens. Ele é impiedoso e mortífero, Lucresis . -Talvez, mas tem uns lindos olhos respondeu ela.

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CAPÍTULO 1

O fumo dos edifícios a arder pairava ainda no ar, mas as multidões turbulentas da véspera haviam dispersado agora, no momento em que os dois padres desciam lentamente a colina em direcção à cidade. Nuvens carregadas reuniam-se por cima das montanhas a nascente, prometendo chuva para a tarde, e soprava um vento frio. A caminhada desde os edifícios do velho mosteiro até à pequena cidade costumava agradar ao irmão Braygan, especialmente quando o sol irradiava dos edifícios brancos e cintilava no rio impetuoso. O jovem padre re­chonchudo adorava ver as plantas coloridas no prado, tão pequenas e efémeras, com as eternas montanhas cobertas de neve ao fundo. Mas não naquele dia. Tudo parecia diferente. A beleza continuava lá, mas agora pairava no ar uma sensação subjacente de ameaça e perigo real.

É pecado ter medo, Irmão Lantern? perguntou ao seu com-panheiro, um homem jovem e alto, com olhos de um azul brilhante e frio, em quem as vestes pálidas de acólito pareciam destoar.

-Alguma vez matou um homem, Braygan? A resposta de Lantern foi fria e desinteressada.

- É claro que não. -Ou assaltou, ou violou, ou roubou? Braygan ficou chocado e olhou fixamente para o seu companheiro,

esquecendo momentaneamente os seus receios. -Não. -Nesse caso, por que passa tanto tempo a preocupar-se com o

pecado? Braygan calou-se. Nunca gostara de trabalhar lado a lado com o

Irmão Lantern. O homem falava muito pouco, mas havia algo nele

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que era absolutamente perturbador. Os seus olhos penetrantes cor de safira eram ferozes, o seu rosto magro austero, as suas expressões in­flexíveis. E tinha cicatrizes de golpes de espada nos braços e nas pernas. Braygan vira-as quanto haviam trabalhado nos campos durante o Verão. Interrogara-o sobre elas, mas Lantern ignorara-o. Assim como ignorara as perguntas referentes às tatuagens chocantes e guerreiras nas costas, no peito e nos braços: uma águia com as asas estendidas e as garras abertas entre as omoplatas, uma aranha grande no antebraço esquerdo e uma cabeça de leopardo mostrando os dentes no peito. Quando inquirido sobre elas, Lantern limitara-se a virar os seus olhos frios para o interlocutor e não dissera nada. No entanto, em tudo o mais era um acólito exemplar, trabalhando arduamente e sem nunca se furtar às suas obrigações. Jamais se queixava, ou discutia e estava presente sempre que se reuniam para rezar e estudar. Quando solici­tado, citava textualmente todos os passos da sagrada escritura, e sabia também grande parte da história das nações que constituíam a Terra.

Braygan convergiu de novo a sua atenção para a cidade, e o seu medo regressou. Os soldados da Vigilância nada haviam feito para sus­ter os desordeiros. Havia dois dias, a turba atacara o Irmão Labberan e partira-lhe os braços quando ele fora dar aulas na escola da igreja. Haviam-lhe dado pontapés e socos, depois tinham-o agredido com barras de ferro. Labberan não era novo, e podia muito bem ter mor­rido.

Os dois padres chegaram à pequena ponte sobre o rio. Braygan pisou a bainha das suas vestes azul-claras e tropeçou. Teria caído, mas a mão do Irmão Lantern agarrou-o, endireitando-o.

Obrigado -disse Braygan. Doía-lhe o braço do aperto férreo, e esfregou-o.

Algumas pessoas avançavam pelo cascalho. Braygan tentou não olhar para elas ... nem para os corpos que pendiam dos ramos de uma árvore alta. -Estou assustado, Irmão murmurou. - Por que é que as pessoas fazem estas coisas abomináveis?

- Porque podem - respondeu o padre alto. -Está com medo?

Do quê? A pergunta afigurou-se ridícula a Braygan. O Irmão Labberan fora

espancado quase até à morte, e havia ódio por todo o lado. Tinham sido feitas ameaças contra a igreja e os seus padres, e o terror conti­nuava. Atravessando a ponte, passaram por edifícios fumegantes e che­garam à wa principal. Braygan estava a suar. Havia aqui mais pessoas,

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e viu vários soldados vestidos de escuro formando um grupo junto à porta de uma taberna. Alguns dos habitantes da cidade tinham pa­rado para olhar para os padres enquanto se encaminhavam para a botica. Um homem gritou um insulto.

O suor escorreu para os olhos de Braygan e ele limpou-o. O Irmão Lantern chegara à porta da botica. Estava trancada. O padre alto bateu na estrutura de madeira. Não obteve resposta. Começou a juntar-se uma multidão. Braygan tentou não olhar para os rostos dos homens. -Devíamos ir embora, Irmão Lantern-sugeriu.

Alguém falou com Braygan, em voz irada. Ele virou-se para res­ponder, mas foi atingido por um punho e caiu por terra desajeitada­mente. Um pé com bota atingiu-o no peito e ele gritou e virou-se para a parede da botica.

O Irmão Lantern passou por cima dele e barrou o caminho ao ata-cante de Braygan. Cuidado -disse Lantern, em voz baixa.

- Cuidado com o quê? - perguntou o homem, uma figura de constituição forte e barbuda, ostentando a faixa verde dos Árbitros.

Cuidado com a raiva, irmão advertiu Lantern. Tem por hábito arrastar consigo a dor.

O homem soltou uma gargalhada. -Eu dou-te a dor-disse. O seu punho veio direito ao rosto de Lantern. O padre desviou-se. O soco não lhe acertou. O atacante avançou em peso, desequilibrou-se e tropeçou na perna estendida de Lantern, caindo de joelhos. Com um berro de raiva, levantou-se e atirou-se ao padre ... mas não lhe conseguiu acertar e tor­nou a cair, desta vez batendo com o rosto nas pedras da calçada. Tinha sangue na face. Levantou-se com mais cautela ... e tirou um punhal do cinto.

-Atenção disse Lantern. -Só se vai magoar mais. -Magoar-me? És algum idiota? -Começo a pensar que sim-retorquiu Lantern. Por acaso

sabe quando é que chega o boticário? Temos um irmão ferido e pre­cisamos de ervas para lhe baixar a febre.

-Tu é que vais precisar do boticário não tarda! Eu já disse que preciso do boticário. Quer que fale mais devagar?

O homem praguejou sonoramente, depois avançou de roldão. O punhal veio direito à barriga de Lantern. O padre tornou a esqui­var-se, o seu braço parecendo roçar no ombro do atacante. O Árbitro passou por Lantern e foi embater com a cabeça na parede da botica. Escorregando por ela abaixo, berrou quando o seu punhal se enterrou na própria coxa.

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Lantern aproximou-se e ajoelhou ao lado dele, examinando a fe­rida. Felizmente ... muito embora isso seja discutível ... não acertou na artéria principal -disse -, mas a ferida vai ter de levar pontos. -Levantando-se, virou-se para a turba. Este homem tem aqui amigos?- gritou.-Precisa de ser tratado.

Vários homens avançaram arrastando os pés. Sabe tratar feri-das? -perguntou Lantern ao primeiro.

-Não. -Nesse caso, leve-o para a taberna. Eu próprio fecharei o golpe.

E mande alguém buscar o boticário. Hoje tenho imensas obrigações e não posso demorar-me aqui muito tempo.

Ignorado pela multidão, Braygan pôs-se em pé e ficou a ver o homem ferido, gemendo com dores, a ser levado para a taberna. Lantern trocou um olhar com Braygan. - Espere pelo boticário -disse. - Eu volto já. Com aquilo, avançou em grandes passadas para a taberna, a multidão afastando-se para o deixar passar.

Braygan sentia a cabeça oca e estava vagamente indisposto. Respirou fundo várias vezes.

-Quem era aquele?- perguntou uma voz. Era um dos solda­dos de armadura negra, um homem de rosto magro e olhos escuros penetrantes.

- O Irmão Lantern - respondeu Braygan. Ele é o nosso bi-bliotecário. O soldado soltou uma gargalhada. A multidão come-çou a dispersar.

- Não creio que o voltem a incomodar hoje - referiu o soldado. - Por que nos querem fazer mal? Sempre procurámos amar toda

a gente, e reconheci muitos na multidão. Ajudámo-los quando esti­veram doentes. Durante a fome do ano passado partilhámos os nossos mantimentos com eles.

O soldado encolheu os ombros. - Não me compete julgar. - Por que é que o senhor não nos protege? indagou o padre. -Os soldados obedecem à sua ordem, padre. O código marcial

não per mi te que obedeçamos às ordens que queremos. Se eu fosse a si, abandonava o mosteiro e seguia para norte. Não tardará muito a ser atacado.

- Por que haveriam eles de nos atacar? Pergunte ao seu amigo. Ele parece ser um homem que sabe de

que lado sopra o vento. -Fez uma pausa. - Durante a luta vi que tinha uma tatuagem negra no antebraço esquerdo. De que tipo era?

- É uma aranha.

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- Foi o que me pareceu. Ele não terá por acaso um leão ou algum animal parecido no peito?

-Sim. Um leopardo. O soldado nada mais disse, e afastou-se.

Fazia agora três anos que Skilgannon procurava abarcar aquele mo­mento único e perfeito, aquela sensação de clareza total e propósito. Em raras ocasiões parecia desesperadamente próximo, como uma ima­gem fugaz pairando aos cantos da visão que se dissipava quando ten­tava concentrar-se nela.

Abdicara da riqueza e do poder, e viajara pelas regiões áridas à pro­cura de respostas. Abraçara o sacerdócio aqui no castelo convertido de Cobalsin, suportando três anos mentalmente esgotantes de estudo e análise, absorvendo-e rejeitando na sua maioria filosofias e dou­trinas que não tinham qualquer relação com as realidades de um mundo amaldiçoado pela presença do Homem.

E todas as noites os sonhos vinham atormentá-lo. Deambulava por um bosque escuro, à procura do lobo branco. Captava um vislumbre do seu pêlo claro na densa vegetação rasteira e desembainhava as es­padas. O luar incidia nas lâminas, e o lobo sumia.

Instintivamente, sabia existir uma ligação entre as espadas e o lobo. Assim que tocava nos punhos, o animal desaparecia e, no entanto, era tamanho o medo do lobo, que não conseguia resistir ao fascínio das espadas.

O monge conhecido como Lantern despertou com um sobressalto, de punhos crispados, o peito tenso, e virou-se na sua enxerga estreita. A pe­quena cela, com a sua minúscula janela, pareceu-lhe então um cárcere.

Nesta noite, abatera-se uma tempestade sobre o mosteiro. Skilgannon caminhara descalço pelo corredor e subira as escadas até ao telhado, saindo para a chuva. Os relâmpagos iluminavam o céu, seguidos do profundo ribombar dos trovões.

Começara também a chover naquela noite, depois da última batalha. Recordou o padre do inimigo, de joelhos na lama. Jaziam cadá­

veres à sua volta, milhares deles. O padre erguera o olhar para ele, depois levantara as mãos para a tempestade. A chuva encharcava-lhe as vestes pálidas. - As lágrimas do Céu dissera.

Skilgannon ainda ficava surpreendido por se lembrar tão intensa­mente do momento. Por que haveria um deus de chorar? Recordou que se rira do padre e lhe chamara tolo. - Arranje um deus com verda­deiro poder dissera-lhe. Chorar é para os fracos e os impotentes.

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Agora, no telhado do mosteiro, Skilgannon caminhou à chuva e contemplou a paisagem ondulante, olhando em direcção a leste.

A chuva abrandou, as nuvens dissiparam. Uma lua brilhante e con­vexa iluminou a paisagem cintilante. As casas na cidade lá em baixo

, brilhavam brancas e nítidas. Não havia multidões tumultuosas, nem agitadores. Os incêndios no bairro dos mercadores tinham sido ex­tintos pela tempestade. A turba voltará a reunir-se amanhã, pensou. Ou no dia seguinte.

O que estou a fazer aqui?, interrogou-se. O palerma na cidade questionara-o se era idiota. A pergunta não lhe saía do pensamento. Fitara os olhos do homem enquanto lhe cosia a coxa ferida. O brilho do ódio estava presente ali. - Varreremos a tua espécie das páginas da história - dissera o homem.

A tua espécie.

Skilgannon olhara para ele, estendido na mesa da taberna, o rosto cinzento da dor. Podes matar os padres, homenzinho. Não será di­fíciL Eles não oferecerão resistência. Mas as páginas da História? Não creio. Criaturas como tu não têm esse poder.

Um vento cortante varreu o cimo do telhado. Estremeceu - de­pois sorriu. Abrindo as suas vestes encharcadas, Skilgannon deixou­-as cair para o chão. Ficando nu ao luar, distendeu e retesou os músculos dos braços, depois passou suavemente à pose da Águia, o pé esquerdo colocado por detrás do tornozelo direito, o braço direito le­vantado, o braço esquerdo enrolado à volta do outro, as costas das mãos unidas. Permaneceu imóvel, em perfeito equilíbrio. Neste momento não parecia nada um padre. O seu corpo estava bem musculado e era magro, e havia cicatrizes antigas nos braços e no peito. Depois des­contraiu. O frio não o atingia agora, e começou a executar suavemente os exercícios que o tinham mantido noutra vida: O Arco Retesado, o Gafanhoto, o Pavão e o Corvo.

De músculos distendidos, o seu corpo à vontade, iniciou uma série de movimentos semelhantes a dança, saltando e rodopiando, sempre em perfeito equilíbrio. O suor quente substituiu o brilho frio da chuva sobre a carne nua.

O rosto de Dayan surgiu na sua mente. Não na morte, como a vira da última vez, mas animado e a sorrir enquanto nadavam juntos na piscina de mármore do jardim do palácio. O seu estômago contraiu­-se. O seu rosto não denunciou qualquer emoção, à excepção agora de um retesamento à volta dos olhos. Respirando fundo, avançou até à

beira do parapeito e passou a mão pelo rebordo com a largura de um

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pé. Gotículas de água agarravam-se à pedra lisa, tornando-a gordu­rosa. O homem conhecido como Lantern pulou para o rebordo e ficou cerca de vinte metros acima da rocha dura sobre a qual fora construí­do o mosteiro. A saliência estreita seguia a direito por perto de nove metros, antes de uma curva abrupta em ângulo recto.

Observou o rebordo durante alguns momentos, depois fechou os olhos. Agora sem ver, correu para a frente e saltou alto, contorcendo o corpo numa pirueta cerrada. O seu pé direito aterrou com firmeza no rebordo e não escorregou. O esquerdo ficou na beira do ângulo recto. Oscilou, depois endireitou-se. Abrindo os olhos, observou mais uma vez o solo rochoso lá muito em baixo.

Fizera uma avaliação perfeita. Uma pequena parte da sua mente desejou que isso não tivesse sucedido.

Virando-se, saltou de novo com leveza para o telhado e vestiu as suas roupas. Se é a morte que queres, disse de si para si, ela virá em breve.

Durante dois dias, os trinta e cinco padres permaneceram sobre­tudo dentro dos terrenos do velho Castelo de Cobalsin e seus anexos, arriscando-se apenas a ir aos prados a leste da cidade. Aqui cuidavam dos três rebanhos de carneiros e cabras raros, de cuja lã, e o vestuário com ela fabricado, os padres obtinham o suficiente para se sustenta­rem e à sede da igreja na capital tantriana, Mellicane.

A cidade propriamente dita permanecia sinistramente silenciosa. Os corpos dos estrangeiros enforcados tinham sido removidos e os solda­dos partido. Muitos entre os padres esperavam que o horror fosse ter­minar, e que a vida em breve regressasse à normalidade. A Primavera estava a chegar, e havia imenso que fazer, apanhar as flores silvestres para obter os corantes para capas e túnicas, adquirir e preparar as mis­turas secretas de óleos que impermeabilizariam as roupas fabricadas, que ajudariam a manter a riqueza da cor. O vestuário que produziam era muito apreciado pelos nobres e os ricos das cidades. A época de parir das ovelhas estava também em pleno curso, e a selecção dos animais, efectuada na Primavera, terminara. Em breve chegariam os mercadores para comprar carne e fazer a entrega dos produtos e man­timentos para a estação seguinte.

O estado de espírito no mosteiro estava mais animado do que nas semanas anteriores, e o Irmão Labberan debilitado vencera a febre e - assim se esperava em breve estaria a caminho da recuperação.

Nem todos, porém, acreditavam que o pior passara.

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Na segunda manhã, o Irmão Lantern fora procurar o abade. Devíamos partir e dirigir-nos para oeste - sugeriu o Irmão

Lantern. O Abade Cethelin, um padre idoso com cabelo branco ralo e olhos doces, fez sinal ao Irmão Lantern para que o seguisse até ao

. seu gabinete de trabalho na torre alta. Era uma divisão pequena, par­camente mobilada com duas cadeiras de espaldar, uma escrivaninha comprida e uma única janela estreita, que dava para a cidade.

-Por que deseja que partamos, Irmão? - perguntou o abade, indicando uma cadeira a Lantern.

A morte aproxima-se, Irmão Santo. -Eu sei - respondeu o abade, baixinho.

que partamos? Mas porque deseja

O Irmão Lantern abanou a cabeça. Perdoe-me, mas a sua res-posta não faz sentido. Isto não passa de um adiamento. A tempestade vem aí. Neste momento, a ralé está a acicatar a gente da cidade para vir aqui massacrar-nos. Em breve.. . amanhã ou no dia seguinte ... começarão a formar-se multidões do lado de fora. Somos vistos como o inimigo. Estamos a ser equiparados a demónios. Quando irrompe­rem pelos portões, destruir-nos-ão a todos. Invadirão estes edifícios como um incêndio.

De novo lhe pergunto, Irmão Júnior: Por que quer que nos vamos embora?

- O abade quer morrer aqui? - O que eu quero não interessa. Este é um local de harmonia es-

piritual. Existimos para distribuir amor e compreensão por um mundo com demasiada frequência mergulhado em sangue e ódio. Não con­tribuímos para esse sofrimento. O nosso objectivo é o esclarecimento, Irmão Júnior. Procuramos engrandecer a viagem das nossas almas que anseiam unir-se à Fonte de Todas as Coisas. Não tememos a morte, é meramente outra etapa da viagem.

- Se este edifício fosse incendiado, Irmão Sanro, ficaria sentado dentro dele à espera de que as chamas o devorassem?

Não, Lantern. Iria para um local seguro. Isso, porém, não se compara com a presente situação. O fogo é inanimado e não tem dis­cernimento. Somos ordenados para oferecer amor quando existe ódio, e perdão quando existe dor. Não podemos virar costas quando o pe­rigo ameaça. Isso seria o mesmo que dizermos que não temos fé na nossa própria filosofia. Como podemos obedecer à nossa doutrina se fugirmos do ódio?

Não é filosofia que eu possa partilhar referiu Lantern.

2(Í

-Eu sei. Essa é uma das razões por que não consegue encontrar o que procura.

- O senhor não sabe o que eu procuro- respondeu Lantern, uma pontinha de raiva na sua voz .

- O Lobo Branco- disse o homem mais velho, baixinho. -Mas não sabe o que é, nem por que o procura. Até lá, aquilo que procura ser-lhe-á sempre indiferente. Por que veio para aqui, Irmão Júnior?

- Isso também eu me pergunto. - Os seus olhos azuis pene­trantes aguentaram a fixidez dos do abade. - O que é que sabe a meu respeito?

Sei que é um homem arraigado a este mundo da carne. Tem uma mente viva, Lantern, e uma grande inteligência. Sei que quando vai à cidade as mulheres o admiram, e lhe sorriem. Sei como lhe tem sido difícil obedecer às regras do celibato. O que mais quer ouvir?

- Tentei ser um bom padre argumentou o homem alto, com um suspiro. Mergulhei neste mundo de prece e bondade. Pensei que, com o passar do tempo, acabaria por o compreender. Mas isso não acontece. O Verão passado arriscámos as nossas vidas durante a peste para ajudar os habitantes desta cidade. Dois dos homens cujas vidas salvámos participaram no espancamento do Irmão Labberan. Uma das mulheres cujo filho trouxemos do limiar da morte gritava ao marido para partir a cara a Labberan. São escumalha.

O abade sorriu. - Como o amor seria simples, Irmão Júnior, se só tivéssemos de o conceder àqueles que o mereciam. No entanto, de que valeria? Se desse uma moeda de prata a um pobre, então isso seria uma dádiva. Se esperasse que ele lhe retribuísse, então passaria a ser um empréstimo. Não emprestamos o nosso amor, Lantern. Damo-lo gratuitamente.

-E o que alcançará se os deixar matá-lo? Isso irá acrescentar uma centelha de amor ao mundo?

O abade encolheu os ombros.- Talvez sim. Talvez não. Permaneceram em silêncio durante alguns momentos. Como é

que sabia do Lobo Branco? - inquiriu Lantern. -Ele só aparece nos meus sonhos.

- Como é que você sabe que é um lobo - contrapôs o abade -, se nunca o viu?

- Isso não responde à minha pergunta. Tenho um dom, Lantern. Um pequeno dom. Por exemplo, en­

quanto estamos aqui sentados neste momento, consigo vê-lo, mas tenho também vislumbres dos seus pensamentos e recordações.

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Tremulam à sua volta. Duas mulheres jovens ... muito belas ... uma

com cabelo louro, a outra escuro. São opostas; uma é gentil e cari­

nhosa, a outra cruel e arrebatada. Vejo um homem esbelto, alto, com

o cabelo pintado de amarelo e rosto efeminado. -Cethelin fechou os

. olhos. -Vejo um homem cansado, ajoelhado num jardim, a cuidar

de plantas. Um homem bom. Não é jovem. -Cethelin suspirou e

olhou para Lantern. -Conhecia estas pessoas? -Sim. -E trá-las no seu coração. -Sempre. -Juntam ente com o Lobo Branco.

Pelos vistos. Naquele momento ouviu-se o som de uma campainha, anunciando

as matinas. O abade levantou-se. -Voltaremos a falar, Irmão Lantern. Que a Fonte o abençoe. -E a si, Irmão Sénior - respondeu Lantern, levantando-se da

sua cadeira e fazendo uma vénia.

Havia tanta coisa sobre o mundo que Braygan não conseguia com­preender. As pessoas deixavam-no baralhado. Como podiam os homens olhar para as maravilhas das montanhas, ou as glórias do céu nocturno, e não compreender a mesquinhez da ambição humana? Temendo a morte, como sucedia a todos os homens, como podiam infligi-la tão facilmente aos outros? Braygan não conseguia deixar de pensar nos cor­pos enforcados que vira diante dos edifícios em chamas. Não tinham apenas sido pendurados pelo pescoço. Primeiro haviam sido espanca­dos e torturados. O jovem padre não conseguia conceber como é que alguém podia sentir prazer em semelhantes actos. E, no entanto, isso sucedera, pois dizia-se que houvera muitas gargalhadas entre a multi­dão enquanto as desafortunadas vítimas eram arrastadas para os locais de execução.

O jovem padre estava sentado à cabeceira do Irmão Labberan, dando-lhe sopa de legumes às colheres. De vez em quando, parava e passava um guardanapo pela boca de Labberan. O lado esquerdo do rosto do padre velho estava inchado e dormente, e a sopa escorria-lhe da boca para o queixo.

-Sente-se um pouco mais forte, Irmão? -perguntou Braygan. -Um pouco -respondeu Labberan, as suas palavras pouco cla-

ras. Tinham sido colocadas talas em ambos os antebraços de Labberan, e as suas mãos estavam também inchadas e azuladas das equimoses.

2H

Havia uma tonalidade doentia no rosto magro do homem. Quase com sessenta anos, Labberan não era forte, e o espancamento fora grave. Braygan viu uma lágrima formar-se, e escorrer lentamente pelo rosto do velho padre .

-Ainda sente dores, Irmão? Labberan abanou a cabeça. Braygan pôs de lado a tigela de sopa.

Labberan fechou os olhos e adormeceu. O jovem padre levantou-se silenciosamente da cabeceira e abandonou a pequena cela. Levou a tigela vazia para as cozinhas inferíores e lavou-a. Encontravam-se lá vários outros padres, a preparar a refeição do meio-dia. O Irmão Anager aproximou-se dele.

-Como é que ele está? -perguntou o homenzinho. -Soube--lhe bem a minha sopa? É sempre a preferida dele.

-Ele comeu bem, Anager. Tenho a certeza de que gostou. Anager anuiu e pareceu aliviado. Pequeno e de ombros redondos,

tinha um tique nervoso que fazia com que a sua cabeça se contor­cesse quando falava. Era muito desconcertante para Braygan. -Foram os rapazes, sabe -disse Anager. -Foram eles que mais 0

magoaram. -Os rapazes? -Os rapazes dele. Da escola da igreja. Braygan ficou perplexo. Labberan exercia as funções de professor

das crianças locais. Dois dias por semana, deslocava-se ao salão comunitário, ensinando-lhes a escrita e aritmética. Também lhes contava histórias sobre a Fonte e os Seus prodígios. Labberan ado­rava ensinar as crianças. «Os jovens são o nosso futuro)>, costumava dizer. «São as bases. Só através dos jovens podemos ter esperança de erradicar o ódio.»

-O que têm os rapazes dele? -indagou Braygan. -Depois de ele ter sido espancado pela turba, algumas das

crianças aproximaram-se do sítio onde ele se encontrava estendido e deram-lhe pontapés. Acha que já acabou tudo, Irmão Braygan?

-Sim. Sim, acho que sim. Parece tudo mais calmo. -São estes Árbitros, sabe-referiu Anager. Provocam agita-

ção. É verdade que o Irmão Lantern bateu num deles? -Ele não bateu em ninguém. O homem era desastrado e deu uma

valente queda. -Dizem que tem havido muitas mortes na capital -comentou

Anager, piscando rapidamente os olhos. Baixou a voz. -Dizem até que são capazes de soltar os animais. E se eles vierem para aqui?

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-Por que haveriam de deixar vir os animais para aqui? A guerra é no sul e no leste.

-Sim, sim, tem razão. Está claro que sim. Eles não vão mandar os animais para aqui. Eu vi um, sabe. Fui aos Jogos no princípio deste

' ano. Medonho. Enorme. Quatro homens lutaram contra ele. Matou-os a todos. HorríveL Parte urso, disseram. TerríveL Uma monstruosidade. Está tão errado, Braygan. T ão errado.

Braygan concordou, e achou melhor não referir que os padres estavam proibidos de assistir a desportos sangrentos.

Abandonou as cozinhas e dirigiu-se para o salão inferior e as hor­tas. Vários dos irmãos estavam ali a trabalhar. Quando Braygan chegou, inquiriram sobre o Irmão Labberan. Disse-lhes que lhe pare­cia um pouco melhor hoje, muito embora uma parte da sua mente achasse que esse era o seu desejo. O Irmão Labberan era um homem destroçado de mais de uma maneira. Durante uma hora, Braygan tra­balhou ao lado deles, plantando tubérculos tirados com cuidado de grandes sacas castanhas. Depois, fui chamado ao gabinete do abade.

Braygan estava nervoso quando chegou ao lado de fora da porta. Perguntou-se qual dos seus muitos erros fora relatado ao abade. Era suposto ter-se encarregue da reparação do telhado da capela, mas o novo chumbo para o espigão de suporte não chegara. Depois houvera o engano nas tintas. A culpa não fora sua. O saco abrira-se quando ele estava a deitar o amarelo. Deviam ter sido apenas duas medidas. Provavelmente tinham entrado na tina mais de dez. O resultado fora um cor de laranja horrível e inutilizável, que tivera de ser deitado fora. Não teria acontecido se o Irmão Nasley não tivesse pedido empres­tada a medidora.

Braygan bateu à porta, depois entrou. O abade estava sentado junto a uma pequena lareira. Fez sinal a Braygan para que se sentasse.

-Está bem, Irmão Júnior? - inquiriu. -Estou bem, Irmão Sénior. -Está satisfeito? Braygan não entendeu a pergunta. Satisfeito? Hã ... de que ma-

neira? -Com a sua vida aqui.

Oh, sim, Irmão Sénior. Adoro a vida. -E o que é que adora nela, Braygan? -Servir a Fonte e ... e ajudar as pessoas. -Sim, é para isso que estamos aqui -disse o velho, olhando-o in-

tensamente. -É a resposta que esperam de nós. Mas o que adora nela?

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-Sinto-me seguro aqui, Irmão Sénior. Sinto que é aqui que per­tenço.

E foi por isso que nos procurou? Para se sentir seguro? -Em parte, sim. Está errado? -Sentiu-se seguro quando o homem o atacou na cidade? -Não, Irmão Sénior. Fiquei muito assustado. -O abade des-

viou o olhar, fitando a lareira. Pareceu perdido em pensamentos e Braygan nada disse. Por fim, o abade voltou a falar.

-Como tem passado o Irmão Labberan? Não está a melhorar tão depressa quanto deveria. O seu moral

está muito em baixo. Porém, as feridas estão a cicatrizar. Tenho a cer­teza de que dentro de alguns dias ele começará a recuperar.

O abade voltou a olhar para a lareira. A seguir virou-se para Braygan.-O Irmão Lantern acha que devíamos partir. Ele crê que a multidão se irá reunir novamente e procurar fazer-nos maL

-O senhor acha isso? - murmurou Braygan, o seu coração começando a bater com força. Não pode ser verdade-prosseguiu, antes de o abade ter tempo de responder. -Não, agora está a acal­mar. Acho que o ataque ao Irmão Labberan foi uma aberração. Eles devem ter tido tempo para pensar no mal dos seus actos. Eles com­preenderão que não somos inimigos. Somos seus amigos. Não lhe parece?

-Vem de uma cidade grande, não vem, Braygan? -inquiriu o abade.

Sim, Irmão Sénior.

-Há lá muitas pessoas com cães? -Sim. -Havia carneiros nos campos próximo da cidade? -Sim, Irmão Sénior-respondeu Braygan, confuso.

Eu vim de uma cidade como essa. Os homens deixavam os cães andar ao pé dos carneiros, não havia problema. Esporadicamente, porém, alguns cães reuniam-se e corriam livremente. Se entrassem num campo de carneiros, tornar-se-iam subitamente maus e provoca­riam grandes estragos. Viu isso, não viu?

-Sim, Irmão Sénior. A mentalidade de matilha afirma-se. Esquecem o seu adestramento, a sua domesticidade e transformam­-se ... -Braygan balbuciou, depois calou-se. -Acha que as pessoas na cidade são como estes cães?

- É claro que são, Braygan. Juntaram-se e dedicaram-se àquilo que são levadas a crer tratar-se da cólera justa. Mataram. Sentem-se

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poderosas. Sentem-se grandiosas. Como cães que são, exultam na sua força. Sim, e na sua crueldade. Estes anos têm sido difíceis ... más colheitas, epidemias e secas. A guerra com a Datia esgotou os recur­sos da nação. As pessoas estão assustadas e iradas. Precisam de encontrar alguém a quem culpar pelas suas durezas e as suas perdas. Os chefes da igreja opuseram-se manifestamente a esta guerra. Muitos foram considerados traidores. Alguns chegaram a ser executados. A própria igreja é agora acusada de ajudar o inimigo. De ser o ini­migo. A turba voltará, Braygan. Com o ódio nos seus corações e o crime nas suas mentes.

Então o Irmão Lantern tem razão. Temos de partir. - O irmão ainda não tomou os votos finais. É livre de fazer como

entender. Assim como o Irmão Lantern, na verdade. - Nesse caso, o senhor não partirá, Irmão Sénior? - A Ordem permanecerá aqui, pois esta é a nossa casa e as gen-

tes da cidade são o nosso rebanho. Nós não as abandonaremos na sua hora de necessidade. Pense nestas coisas, Braygan. Tem talvez alguns dias para ponderar a sua posição.

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CAPÍTULO 2

O Abade Cethelin sentiu um peso no peito quando o jovem padre, Braygan, abandonou o seu gabinete. Gostava do rapaz e sabia que tinha bom coração e era generoso. Não havia maldade em Braygan, nem recantos sombrios na sua alma.

Cethelin aproximou-se da janela, abrindo-a e inspirando o ar fresco das montanhas tantrianas.

Não conseguia captar nele nenhum laivo de loucura, nem sentir que contivesse qualquer feitiçaria. No entanto, estava lá. O mundo resvalava para a insanidade, como se alguma epidemia invisível en­trasse em cada casa e castelo, cada pequena quinta e cabana. Há muito tempo, Cethelin recordava-se de ter visto uma hoste de roedores, perto da sua casa, correndo na direcção dos penhascos distantes. Ele e o pai tinham subido ao cimo das escarpas e ficado a ver os roedores atirarem-se ao mar. A cena surpreendera o rapaz que então era. Perguntara ao pai por que é que aquelas criaturinhas se estavam a afogar. O pai não tivera resposta. Acontecia de vinte em vinte anos, dissera. Limitavam-se a fazê-lo.

Havia algo de arrepiante naquela frase. Limitavam-se a fazê-lo. A extinção em massa devia ter uma razão melhor. Agora, aos ses­

senta e sete anos, Cethelin ainda pensava nas razões subjacentes à lou­cura - desta vez não dos roedores, mas dos homens. Teria começado quando a Ventria invadira os Drenai? Ou aquilo fora apenas um sin­toma da loucura? A guerra espalhara-se como um fogo descontrolado através do coração deste continente oriental. A guerra grassava ainda em Ventria, uma consequência da derrota ventriana em Skeln havia cinco anos. As rebeliões tinham-st· t•stt·ndido também à Tantria, para

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serem seguidas da guerra com os vizinhos orientais da nação, Dospilis e Datia guerra essa que ainda se mantinha.

No Naashan, a sueste, as forças da Rainha Bruxa tinham invadido Panthia e Opal, e até os pacíficos Phocianos haviam sido recrutados

, para ajudarem a repelir os invasores. A noroeste, os Nadir invadiram Pelucid, atravessando os vastos desertos de Namib para arrasar e sa­quear as cidades do litoral. Havia guerra em todo o lado, e atrás dela vinham as aves necrófagas do ódio, do terror, da peste e do desespero. Cethelin achou que estas últimas eram as piores de todas. Passar uma vida inteira a dar amor a todos, para depois o ver brutalmente trans­formado e retorcido -obscenamente remodelado num ódio cego e irracional -era duro de suportar. Os seus pensamentos convergiram para o Irmão Labberan. As crianças que educara tinham-se virado con­tra ele, dando-lhe pontapés e soltando gritos.

Cethelin respirou fundo e buscou a calma. Ajoelhando nas tábuas a descoberto do chão do seu gabinete de tra­

balho, Cethelin rezou durante algum tempo. Depois levantou-se e desceu aos níveis inferiores e ficou sentado durante uma hora à cabe­ceira de Labberan. Falou muito calmamente, mas o velho padre não ficou reconfortado.

Cethelin estava cansado quando chegou a altura de voltar a subir aos seus aposentos, e deitou-se na sua cama estreita. Era ainda o prin­cípio da tarde, mas Cethelin achava que uma sesta curta em alturas como esta ajudava a manter o seu vigor. Mas naquele dia não. Não conseguiu dormir; ficou deitado de costas, a sua mente incapaz de relaxar. Cethelin deu consigo a pensar em Lantern e Braygan, dis­sonantes em tanta coisa. Devia ter mandado Lantern atravessar o mar para fundar uma ordem dos trinta, pensou. Ele teria dado um exce­lente padre guerreiro.

Um excelente padre guerreiro. Uma contradição de termos, pensou Cethelin, com tristeza. Não conseguindo sentir qualquer conforto no repouso, levantou-se

da cama e dirigiu-se à ala leste do mosteiro, atravessando as cozinhas e passando pelas salas de tecelagem silenciosas. Subindo a escada de caracol, chegou à Primeira Biblioteca. Doía-lhe o joelho direito quando alcançou o cimo, e sentiu que o coração batia com dificuldade. Encontravam-se ali vários padres, a estudar tomos antigos. Levantaram­-se quando ele entrou e fizeram uma profunda vénia. Ele sorriu-lhes, e mandou-os prosseJ.:uir a leitura. Deslocando-se pelos corredores, pas­sou por baixo do (li ti mo arco e entrou na Sala de Reconstrução. Havia

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também aqui padres, a copiar meticulosamente manuscritos ou rolos de pergaminho decrépitos. Estavam tão embrenhados no seu trabalho, que não deram pela presença dele quando passou à sala de leitura oriental. Aqui encontrou o Irmão Lantern, sentado junto a uma janela. Estava a ler um pergaminho amarelecido.

Levantou a cabeça e Cethelin sentiu o poder do seu olhar de safira. -O que está a ler? -perguntou o abade, sentando-se diante do homem mais novo. Fez um esgar quando se sentou, depois esfregou o joelho dorido. Lantern apercebeu-se da sua dor.

- O boticário disse que teria novamente tisana de zimbro ainda este mês informou-o Lantern, depois sorriu de repente e abanou a cabeça.

Podemos ter ainda outro mês -referiu Cethelin, sentindo a ironia que provocara o sorriso. Se a Fonte o quiser. Apontou para o pergaminho e repetiu a pergunta.

- É uma lista de mitos datianos pouco conhecidos -respondeu Lantern.

-Ah. Os Ressurreccionistas. Lembro-me deles. As histórias não são de origem datiana. Vêm do tempo dos Anciãos, do tempo de Missael. O herói Enshibar foi ressuscitado depois de o seu fiel amigo, Kaodas, levar uma madeixa do seu cabelo e um fragmento de osso para o Reino dos Mortos. Lá, os feiticeiros criaram um novo corpo para Enshibar e invocaram o seu espírito do panteão dos heróis. É uma excelente histó­ria, e tem bastantes ressonâncias através de muitas culturas.

-A maioria dos mitos contém um bocadinho de verdade afir-mou Lantern, cautelosamente.

-Efectivamente assim é, Irmão Júnior. É por isso que traz uma madeixa de cabelo e um fragmento de osso dentro do medalhão ao seu pescoço?

Apenas por um momento, os olhos de safira de Lantern brilharam de raiva. Vê imenso, Irmão Sénior. Vê os sonhos dos homens, e vê através do metal. Talvez devesse ler os sonhos dos habitantes da cidade.

- Eu conheço os sonhos deles, Lantern. Querem comida nas mesas e calor no Inverno. Querem que os filhos tenham vidas melhores e mais seguras do que as que lhes conseguem proporcionar. O mundo é um lugar imenso e aterrador para eles. Estão desesperados por respostas simples para os problemas da vida. Temem que a guerra chegue cá e leve tudo o que têm. Depois dizem-lhes que é tudo culpa nossa. Se estivéssemos mortos e enterrados, tudo voltaria a estar bem.

O sol brilhará nas suas sementeiras, e rodos os perigos cessarão.

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Todavia, neste momento estou mais interessado nos seus sonhos do que nos deles.

Lantern desviou o olhar. - Não acredita neste ... neste templo escondido dos Ressurreccionistas?

Eu não disse que não acreditava. Existem muitos lugares estranhos no mundo, e uma quantidade de feiticeiros e magos talen­tosos. Talvez haja algum que o possa ajudar. Por outro lado, talvez devesse deixar os mortos em paz.

-Não posso. -Dizem que todos os homens precisam de uma causa, Lantern.

Talvez esta estivesse sempre destinada a ser a sua. -Recostou-se na cadeira.-Se eu lhe pedisse um favor, fá-lo-ia?

Claro. -Não seja tão rápido, meu jovem. Podia pedir-lhe que pusesse

de lado a sua busca. Tudo menos isso. Diga-me o que precisa. Neste exacto momento não preciso de nada. Talvez amanhã.

Tem visitado Labberan? -Não. Não sou grande consolador, Irmão Sénior. -Mas vá na mesma, Irmão Júnior. O abade suspirou e levan-

tou-se. -E agora deixo-o entregue à sua leitura. Tente localizar as Crónicas Pelucidianas. Creio que as irá achar interessantes. Se bem me lembro, existe uma descrição de um templo misterioso, e de uma deusa intemporal que dizem habitá-lo.

Era tarde quando Skilgannon entrou na pequena cela onde o Irmão Labberan estava a ser cuidado. Encontrava-se já outro padre à sua ca­beceira. O homem ergueu o olhar e Skilgannon viu que era o Irmão Naslyn. O padre de barba preta tinha o aspecto de um guerreiro. Homem lacónico, a sua conversa foi basicamente monossilábica, o que agradou a Skilgannon. De todos os padres ao lado dos quais tinha de trabalhar, achava Naslyn o mais fácil de suportar. O vigoroso padre levantou-se, acariciou delicadamente a testa de Labberan, depois pas-sou por Skilgannon. Ele está cansado-referiu.

-Não me irei demorar-d.isse-lhe Skilgannon. Avançando para a cabeceira, olhou para o homem maltratado.­

Do que é que se lembra? - inquiriu, sentando-se num escabelo à cabeceira.

-Apenas do ódio e da dor - murmurou Labberan. - Não quero falar disso. -Virou o rosto e Skilgannon sentiu uma certa con-

trariedade. O que fazia ali? Não sentia amizade por Labberan ... nem, na verdade, por qualquer dos padres. E, como dissera a Cethelin, nunca desenvolvera qualquer talento como consolador. Respirou fundo e preparou-se para sair. Quando se levantou, Labberan olhou para ele, e Skilgannon viu lágrimas nos olhos do velho. Eu adorava aquelas crianças confessou.

Skilgannon deixou-se cair no escabelo. A traição é difícil de su-portar -referiu. Fez-se silêncio.

-Constou-me que lutou com um dos Árbitros. -Não foi uma luta. O homem era um tolo desajeitado. -Quem me dera ter lutado. Skilgannon olhou para o rosto do velho e viu derrota e desespero.

Já antes vira aquela expressão, nos campos de batalha do Naashan, havia quatro anos. A proximidade da derrota em Castran quase se assemelhara ao fim do mundo. Os soldados em retirada tinham re­gressado às florestas aos tropeções, os seus rostos cinzentos, os seus corações sobrecarregados de medo e desilusão. Skilgannon tinha então apenas vinte e um anos, estava cheio de ardor e convicção. Contra todas as probabilidades, reagrupara várias centenas de com­batentes e chefiara-os num contra-ataque ao inimigo em avanço, re­pelindo-o. Olhou então para as feições torturadas do padre idoso e viu de novo os rostos dos soldados desmoralizados que reagrupara e conduzira à glória. É um lutador, Labberan -disse, baixinho. - Lutou contra o mal do mundo. Tenta torná-lo um sítio melhor e mais terno.

E fracassei. Até as crianças se viraram contra mim. Nem todas.

-O que quer dizer? -Quando é que perdeu os sentidos? -Na rua, quando me estavam a dar pontapés. -Ah, estou a ver disse Skilgannon. Então não se recorda

de ser arrastado para a sala de aula? -Não. -Foi levado para lá por alguns dos seus alunos. Eles puxaram-

-no para dentro, depois trancaram a porta. Um deles veio a correr até aqui para avisar o abade de que estava ferido. Devido ao tumulto, não pudemos ir buscá-lo imediatamente. Foi tratado por algumas das crianças. Taparam-no com cobertores. Foi muito corajoso da parte delas acrescentou. O Irmão Naslyn e eu fomos buscá-lo antes da alva e trouxemo-lo de volta. Várias das crianças ficaram consigo.

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- Não sabia. - Labberan sorriu. - Sabe o nome de alguns deles?

-O rapaz que nos veio chamar era Rabalyn. Labberan sorriu.-Um rapaz rebelde, respondão e travesso. Bom

coração, porém. Quem mais? -Uma rapariga esbelta com cabelo preto e olhos verdes. Estava

acompanhada de um cão com três patas. -Era Kalia. Ela cuidou do cão até ele ficar bom depois de ter lu­

tado com os lobos. Todos pensámos que ele fosse morrer. - Não me recordo dos nomes dos outros. Eram uns três ou qua­

tro, mas foram-se embora quando chegámos. Mas o rapaz, Rabalyn, tinha um olho inchado. Kalia disse-me que foi por lutar com os ou­tros rapazes que o estavam a atacar. Ele venceu-os. Bem, ele e o cão de três patas.

O velho suspirou, depoÍs relaxou e fechou os olhos. Skilgannon ficou sentado um bocado, até se aperceber de que o velho padre ador­mecera. Em silêncio, abandonou a cela e encaminhou-se para a noite. Quando atravessou o pátio viu o Abade Cethelin de pé, debaixo do arco do portão. Skilgannon fez-lhe uma vénia.

-Ele sente-se melhor agora, não sente? - perguntou o abade. - Creio que sim. - Contou-lhe sobre as crianças que o tinham ajudado? -Sim. -Óptimo. -Por que é que o abade não lhe disse? Ou outra pessoa? -T ê-lo-ia feito, se você não o fizesse. Ainda acredita que todos

estes habitantes da cidade são escumalha, Lantern? Skilgannon sorriu. - Algumas crianças ajudaram-no. Ainda bem

para elas. No entanto, não susterão a turba quando ela aqui vier. Mas, não, não creio que sejam todos escumalha. Vivem duas mil pessoas na cidade. Calcula-se que a turba seja de uns seiscentos. No entanto, não faço grande distinção entre aqueles que praticam o mal e aqueles que assistem sem fazer nada.

-Você era um guerreiro, Lantern. Tais homens não têm fama de compreenderem os infinitos tons de cinzento que regem os actos dos homens. As suas cores são o preto e o branco.

-Os estudiosos tendem a complicar excessivamente as coisas -opinou Skilgannon. - Se um homem corre para si com uma espada, seria absurdo perder tempo a perguntar o que o levou a semelhante acto. Seria a sua infância marcada por um pai cruel? A mulher tro-

cou-o por outro homem? Estaria talvez mal informado a respeito das suas intenções e, por conseguinte, atacou-o por engano?- Skilgannon soltou uma gargalhada. -Os guerreiros precisam do preto e branco, Irmão Sénior. Os tons de cinzento matá-lo-iam.

-É verdade - admitiu o abade -, e, no entanto, uma maior compreensão de que existem tons de cinzento pode impedir que mui­tas guerras se desencadeiem.

-Mas não todas - retorquiu Skilgannon, o seu sorriso desa­parecendo. - Somos o que somos, Irmão Sénior. O homem é um caçador, um assassino. Construímos grandes cidades e, todavia, vive­mos precisamente como o lobo. Os mais fortes de nós dominam os mais fracos. Podemos chamar reis ou generais aos nossos líderes, mas o efeito é o mesmo. Criamos a matilha de lobos, e a própria natureza dessa matilha é caçar e matar. Por conseguinte, a guerra torna-se ine­vitável.

Cethelin suspirou. -É uma analogia lúgubre, Lantern ... apesar de ser verdadeira. Nesse caso, por que decidiu abandonar a matilha?

-Por razões puramente egoístas, Irmão Sénior. - Não de todo, meu rapaz. Só espero que o tempo lho possa vir

a provar.

Aos quinze anos, Rabalyn não queria saber de guerras nem bata­lhas a leste, nem de quem estava certo ou errado no que concernia as causas. Estas eram questões de monta com as quais nada tinha a ver.

Os pensamentos de Rabalyn estavam bem mais concentrados. A ci­dade de Skepthia era tudo o que conhecera, e julgava ter aprendido as regras de comportamento necessárias à sobrevivência em semelhante lugar. É certo que com frequência infringia essas regras, roubando esporadicamente maçãs da loja de Carin, ou se esgueirava pelas propriedades do suserano ausente para caçar furtivamente faisões ou apanhar coelhos. Se abordado mais tarde e interrogado, mentia tam­bém descaradamente, muito embora o Irmão Labberan ensinasse que as mentiras eram um pecado contra o Céu. Porém, de um modo geral, Rabalyn julgara compreender como funcionava a sua pequena socie­dade. No entanto, a semana anterior presenciara cenas aterradoras que não faziam qualquer sentido para ele.

Os adultos tinham-se reunido em turbas, gritando e clamando por sangue. Pessoas que tinham trabalhado e vivido na cidade eram de repente apelidadas de traidoras, arrastadas das suas casas e espancadas.

Os soldados da Vigilância tinham assistido, sem fazer nada. No en-

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tanto, estes mesmos soldados censuravam-no por matar faisões. Agora

ignoravam a matança de pessoas. O Irmão Labberan provavelmente tivera razão ao chamar-lhe idio­

ta. - Rapaz estúpido, és incapaz de aprender! - Achara sempre , muito divertido irritar o Irmão Labberan. Ele nunca levantava uma

mão, nem sequer para esbofetear ao de leve uma criança. Agora, ao recordar-se, não lhe parecia nada divertido.

Rabalyn esfregou o olho inchado. Ainda lhe doía, mas pelo menos agora conseguia voltar a ver, apesar de o sol intenso ainda lhe fazer cho­rar a vista. Todhe atingira-o com um soco traiçoeiro precisamente quando estava a afastar Bron do padre desmaiado. Com uma fúria fruto

da dor, Rabalyn atirara Bron para o chão, depois virara-se e desferira um soco no rosto de Todhe. O golpe fora bom, e esmagara-lhe os lá­bios contra os dentes. Mesmo assim, o vigoroso Todhe tê-lo-ia deixado sem sentidos não fosse o cão correr para ele e ferrar-lhe uma dentada na barriga da perna. Rabalyn sorriu ao recordar-se. Todhe berrara de dor. Kalia chamara o cão e Todhe afastara-se a coxear com os amigos. Virara no arco do beco e gritara uma ameaça a Rabalyn: -Hás-de pagar por isto .. . e tudo farei para que o cão seja também abatido.

Ele e Kalia e vários outros tinham puxado o Irmão Labberan para dentro da pequena sala de aula e trancado a porta. O velho padre en­contrava-se em mísero estado. Kalia começara a chorar, e isso pertur­bara o cão de três patas, que se pusera a uivar.

-O que fazemos quando eles voltarem? - perguntou Arren, um

rapaz rechonchudo do bairro norte. Rabalyn viu o medo nos seus olhos.

-Devias ir para casa-disse.

Arren agitou-se e pareceu constrangido. -Não podemos deixar o Irmão Labberan-referiu.

-Eu vou ao castelo-anunciou Rabalyn.- Os padres hão-de vir buscá-lo.

-Não sou capaz de lutar com Todhe -disse Arren. -Se ele

voltar, virá muito furioso. -Ele não voltará- afirmou Rabalyn, tentando mostrar-se de­

terminado. -Mantenham a porta trancada depois de eu sair. Voltarei assim que puder.

-Achas que ele falou a sério? -inquiriu Kalia -, a respeito de matar Jesper?

-Não - mentiu Rabalyn. -Esperem por mim. E procurem cobertores para taparem o Velho Labbers. Está com arrepios.

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Depois daquelas palavras, Rabalyn atravessou a cidade, seguindo na direcção da ponte velha e da longa subida até ao mosteiro. Ouviu

a turba dirigir-se para oeste e viu as chamas irromperem. Depois cor­reu como o vento.

Tinham-no levado à presença do abade, e contara-lhe do sucedido ao Velho Labbers. O abade mandara trazerem-lhe comida e dissera­

-lhe que esperasse. As horas passaram. Um monge deu-lhe uma cata­plasma fria para colocar sobre o olho, e depois, finalmente, um monge alto e assustador viera sentar-se ao pé dele. De barba negra e olhar duro, o homem apresentara-se como o Irmão Lantern. Interrogara Rabalyn sobre o ataque, a seguir, ele e outro monge tinham acompa­nhado Rabalyn à escola, contornando a multidão tumultuada.

Fora há dois dias, e desde então nunca mais ninguém soubera se o Velho Labbers estava vivo ou morto.

Todhe e os seus amigos tinham tentado emboscar Rabalyn por duas vezes, mas ele fora rápido de mais para eles, enfiando-se a correr por becos e escalando muros.

Agora estava sentado alto na vertente da colina setentrional, próximo das ruínas da torre de vigia. O cão mutilado de Kalia estava sentado ao lado dele. O pai de Todhe, o conselheiro Raseev, emitira uma ordem para que o cão fosse abatido. Kalia levara Jesper a Rabalyn. A rapariga estava desesperada e, com alguma relutância, Rabalyn acedera a escon­der o cão e trouxera-o até à torre de vigia. Não sabia o que iria fazer de seguida. Não era fácil esconder um cão com três patas.

Rabalyn acariciou a cabeçorra do animal, coçando-o atrás das orelhas pontiagudas. O bicho encostou-se a ele, lambendo-lhe o rosto, e assen­tando o coto da pata dianteira direita amputada no colo de Rabalyn. -Devias tê-lo mordido com mais força-disse Rabalyn.-Aquilo foi apenas uma dentadinha. Devias ter-lhe arrancado a perna.

Do seu ponto de vantagem alto, Rabalyn viu um grupo de jovens

sair das casas lá muito em baixo. Um deles apontou na sua direcção. Rabalyn praguejou, depois colocou rapidamente a trela à volta do pescoço de Jesper e conduziu o cão pela vertente distante abaixo.

Se contornasse a cidade, e atravessasse o rio no seu ponto mais es­treito, poderia alcançar o mosteiro ao entardecer. Eles protegeriam Jesper, pensou.

O Abade Cethelin estava sentado no seu gabinete de trabalho e, à

luz da lanterna, observava atentamente o mapa antigo. Era de pele fina, um quadrado com sessenta centÍrnl'tros, os símbolos e as linhas de

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montanhas e rios cuidadosamente gravados no couro e depois preen­chidos com folha de ouro. Tal como sucedia com muitas peças da era ventriana, o que lhe faltava em rigor era mais do que compensado pela beleza. Enquanto olhava para o mapa, apercebeu-se de que desejava ter sido abençoado com o dom do voo espiritual, como o seu velho amigo, Vincar. Poderia então ter saído livre a flutuar do mosteiro erguendo­-se no céu nocturno, para ver as terras que agora apenas conseguia ima­ginar através do delicado traçado a ouro sobre o couro.

Mas não tinha esse dom. O talento de Cethelin era sonhar visões, e ver às vezes traços ténues dentro delas como o ouro no mapa. Conseguia sentir o perverso e o benévolo, a competirem constante­mente pela supremacia. Os assuntos grandes dos homens, com as suas guerras e o seu horror, eram idênticos às batalhas que assolavam os vales de cada alma humana. Todos os homens possuíam uma capacidade para a bondade e a crueldade, o amor e o ódio, a beleza e o horror.

Havia alguns místicos que sustentavam que o homem pouco mais era do que uma marioneta, os seus cordelinhos puxados e manipulados por deuses e demónios. Havia outros que falavam de fado e destino, em que cada acção do homem estava de certa forma predestinada e es­crita. Cethelin esforçava-se por não acreditar em ambas as filosofias do desespero. Não era fácil.

De certa forma, desejava conseguir abraçar o simplismo. As más acções poderiam então recair sobre os homens perversos. Infelizmente, o seu intelecto não lhe permitia acreditar nisso. Na sua longa vida, constatara, com demasiada frequência, que as más acções eram come­tidas por homens que se consideravam bons, que eram efectivamente bons segundo os costumes das suas culturas. O Imperador Gorben construíra a Grande Ventria a fim de trazer paz e estabilidade a uma região amaldiçoada por guerras incessantes. Para tal, invadira todas as terras circundantes, arrasando cidades e destruindo exércitos, sa­queando quintas e tesouros. No fim, conseguira o seu império, e reinava a paz. Tinha igualmente um enorme exército permanente a quem era preciso pagar. E para o fazer, tivera de expandir o império e invadir as terras dos Drenai. Aqui os seus sonhos haviam sido es­magados pela derrota no Desfiladeiro de Skeln. Agora, tudo o que construíra se estava a desmoronar, e a região mergulhava mais uma vez em pequenas guerras infindáveis.

Não admirava que as pessoas na cidade estivessem assustadas. Os exércitos tendiam a saquear as cidades, e a guerra estava cada vez mais próxima.

Cethelin veio até à janela e escancarou-a. A brisa nocturna era fresca, as estrelas brilhavam intensamente num céu sem nuvens. As chamas tremularam de novo no bairro norte da cidade. Mais uma pobre alma que via a sua casa incendiada, pensou com tristeza.

Um cão ladrou no pátio lá em baixo. Cethelin debruçou-se da janela e espreitou. Um jovem de cabelos escuros, com uma camisa de linho clara e calças pretas, estava acocorado junto ao portão, um cão preto ao lado dele. Cethelin pôs a capa pelos ombros magros e deixou o seu ga­binete de trabalho, descendo a longa escadaria até aos níveis inferiores.

Quando chegou cá fora, o cão virou-se para ele e rosnou. Avançava de uma forma algo cómica, desequilibrado e saltando um pouco. Cethelin ajoelhou e estendeu a mão para o animal. Ele inclinou a ca­beça e olhou-o com desconfiança.-O que queres?-perguntou o abade ao jovem, reconhecendo-o como o rapaz que ajudara o Irmão Labberan.

-Preciso de um sítio para o cão, Padre. O Conselheiro Raseev ordenou que o abatessem.

-Porquê? -Ele 'mordeu Todhe quando estava a dar pontapés ao Velho

Labbers ... mil perdões, ao Irmão Labberan. Ele ficou muito ferido?

-Não. Apenas uma dentadita na barriga da perna. -Folgo em sabê-lo. Mas por que pensaste que iríamos receber um

cão com três patas? -Calculei que estivesse em dívida para com ele -justificou-se

o rapaz. -Por salvar o Irmão Labberan? -Sim. -Ele tem utilidade? -Atira-se aos lobos, Padre. Ele não tem medo de nada. -Mas tu tens -observou Cethelin, reparando que o jovem não

parava de deitar olhares nervosos para o portão aberto. -Todhe anda à minha procura. Ele é grande, Padre. E está acom­

panhado dos amigos. -E tu também procuras refúgio? -Não, eu não. Sou demasiado rápido para eles. Quero voltar para

casa da minha tia. Parece que andam outra vez a incendiar casas. -Quem é a tua tia? -A Tia Athyla. Ela vai à igreja. Mulher grande. Canta alto e de-

safinado.

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Cethelin riu-se. - Conheço-a. É lavadeira e, esporadicamente, parteira. Tem uma boa alma.

Sim, tem. E os teus pais? Eles foram procurar trabalho em Mellicane há anos. Disseram

que me mandariam buscar e à minha irmã. Não o fizeram. A minha irmã morreu o ano passado quando houve a peste. Eu e a Tia Athyla julgámos que a tínhamos apanhado, mas não. O Irmão Labberan deu­-nos ervas e isso. Mandou-nos limpar a casa e afastar os ratos.

-Foi um tempo difícil -disse Cethelin. Os Árbitros dizem que os padres é que causaram a peste. Eu sei. Pelos vistos, também provocámos a guerra e a perca das

colheitas. Por que é que não acreditas nas histórias? O jovem encolheu os ombros. - O Velho Labbers, presumo.

Sempre a falar de amor e isso. Não o consigo ver a causar pestes. Não faz sentido. Mesmo assim, ninguém liga ao que eu penso.

Cethelin observou os olhos escuros de Rabalyn. Viu ali força, e compaixão. Naquele momento, vislumbrou também as recordações de Rabalyn: uma mulher a ser espancada por um homem duro, uma criança pequena a partir para a morte enquanto Rabalyn estava sen­tado à sua cabeceira a chorar.-Eu preocupo-me, Rabalyn. O Velho Labbers ... como lhe chamas ... preocupa-se. Cuidarei do cão até poderes vir buscá-lo.

O cão Jesper não é meu. Pertence à Kalia. Ela trouxe-mo e pediu-me que o escondesse. Quando tudo isto passar, dir-lhe-ei que venha visitá-lo.

-Vai com cuidado, jovem. -O senhor também, Padre. Era melhor trancar este portão, não

acha? -Um portão fechado não afastará uma turba. Boa noite para ti,

Rabalyn. És um bom rapaz. Cethelin ficou a ver o rapaz partir a correr. O cão deu um salto estranho como que para o seguir. Cethelin chamou-o baixinho. -Aqui, Jesper! Estás com fome, rapaz? Vamos até à cozinha ver o que conseguimos encontrar.

Rabalyn voltou pelo caminho que trouxera, seguindo pelos baixios do rio, andando por entre as árvores e subindo a colina até à velha torre de vigia. Dali pôde ver os incêndios no bairro norte. Fora lá que a maior parte dos estrangeiros se instalara, incluindo o gordo Arren e a sua família. Havia mercadon·s de Drenan, e algumas lojas exploradas por comerciantes vt·ntrianos. A rurha, porém, estava mais preocupada com

aqueles cujos laços familiares se encontravam no leste, em Dospilis ou Daria. Ambas as nações estavam agora em guerra com a Tantria.

Rabalyn acocorou-se nas ruínas, os seus olhos vivos perscrutando a área na base da colina. Duvidou de que Todhe e os seus amigos esti­vessem à espera dele agora, não com outro tumulto em curso. Andariam por lá a entoar e a gritar àqueles que consideravam agora traidores. Muitas das casas no bairro norte estavam vazias. Dezenas de famílias tinham partido nos últimos dias, dirigindo-se para oeste no sentido de Mellicane. Rabalyn não conseguia compreender por que é que havia estrangeiros que tinham preferido ficar.

Soprava um vento frio no cimo da colina. As calças e os sapatos de Rabalyn estavam encharcados de atravessar o rio e tremia de frio. Estava na hora de ir para casa. A Tia Athyla ficaria preocupada, e não iria dormir enquanto ele não estivesse seguro na sua cama. O abade chamara-lhe uma boa alma. Isto era verdade, mas ela era também imensamente irritante. Ralhava com Rabalyn como se ele tivesse ainda três anos, e a sua conversa era absurdamente repetitiva. De cada vez que ele saía da pequena cabana, ela perguntava: «Vais suficientemente agasalhado?>> Se ele manifestava qualquer preocupação com a vida, a escola ou planos para o futuro, ela dizia: «Olha que não sei. Basta ter comida na mesa hoje.» Passava os dias a lavar os lençóis e a roupa das outras pessoas. Ao serão, desmanchava roupa de lã deitada fora e fazia novelos de lã desbotada. Depois tricotava imensos quadrados, que se­riam mais tarde cosidos para formar cobertores. Alguns vendia. Outros dava para a casa dos pobres. A Tia Athyla nunca estava parada.

Os tumultos tinham-na enervado. Quando haviam tido lugar as pri­meiras mortes, Rabalyn correra para casa a contar-lhe. A princípio não acreditara nele, mas quando se apurara a verdade, Athyla recusara-se a falar do assunto com o rapaz.- Há-de assentar tudo-disse. É melhor não nos metermos.

Naquela noite, sentara-se com os seus velha e grisalha. Rabalyn abeirara-se dela.

Nós não temos sangue estrangeiro problema. Vai correr tudo bem.

novelos de lã, parecendo Está bem, Tia?

afirmou. -Não haverá

O seu rosto estava carrancudo e tenso, tal como ficara quando Lesha morrera um misto de desorientação e pena.

Rabalyn abandonou o cimo da colina e desceu em direcção à cidade.

As ruas estavam desertas. Ouvia a turba ao longe, entoando e ber­rando. O vento mudara e sentiu o d1eiro a fumo no ar. Parando num

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arco de beco enegrecido, espreitou para o curto espaço aberto entre as casas e a pequena cabana da tia. Não se via ninguém, mas Rabalyn re­solveu não arriscar. Acocorando-se nas sombras, perscrutou a área. Havia um muro de pedra seca que seguia pelo lado norte da cabana, e uma fila de arbustos rasteiros junto do portão. Rabalyn aguardou em silêncio. Precisamente quando estava convencido de que não havia pe­rigo, viu alguém erguer-se momentaneamente de trás dos arbustos e avançar sorrateiramente até à carroça do lado de fora da casa do padeiro. Parecia Bron, um amigo de Todhe. Uma pontada de raiva percorreu Rabalyn. Estava com fome e cansado, e tinha ainda as roupas molha­das. Queria tão somente entrar na cabana e aquecer-se junto à lareira.

Recuando para o beco, correu pela Rua do Mercado, atalhando pelo pátio do ferreiro. Procurando à sua volta, encontrou numa pilha de metal descartado uma barra de ferro meio enferrujada, com trinta centímetros de comprimento. Erguendo-a, avançou sorrateiramente, escalando o muro baixo e aparecendo entre duas filas de casas. Daqui, conseguiu ver dois jovens acocorados atrás da carroça do padeiro. Um deles era efectivamente Bron. O outro era Cadras, cujo pai trabalhava para a família de Todhe como criado para todo o serviço. Cadras era um rapaz bastante equilibrado, nem maldoso nem vingativo. Mas era influenciável e seguia o exemplo de Todhe em tudo. Rabalyn aguar­dou. Dali a pouco, Bron curvou-se e avançou até à sebe do lado de fora da casa da Tia Athyla. Rabalyn viu Todhe levantar-se e empurrar Bron para baixo. A barra de ferro pesava na mão de Rabalyn. Era reconfor­tante estar armado e, no entanto, não queria usar a arma. O pai de Todhe, Raseev, mandava praticamente no conselho e qualquer mal feito ao seu filho seria rápida e duramente punido.

Rabalyn resolveu fazer-lhes uma espera. O que poderia ter resultado não fosse um quarto jovem avançar

sorrateiramente por detrás de Rabalyn e saltar sobre ele, prendendo­-lhe os braços.

-Ele está aqui! -gritou o jovem. Rabalyn reconheceu a voz como a de Archas, irmão mais velho de Bron. Rabalyn inclinou-se para a frente, depois atirou a cabeça para trás na direcção do rosto de Archas. A pressão sobre o seu peito afrouxou. Rabalyn desenvenci­lhou-se, depois rodou e atingiu Archas na face com a barra de ferro. O jovem ficou estendido por terra.

Rabalyn ouviu os outros correr para ele. Teria fugido, mas sentia o sangue a fê.·rvl·r naquele momento, e percorria-o uma raiva imensa. Com um grito, precipitou-se ao encontro deles. A barra de ferro acer-

tou no crânio de Bron, fazendo o jovem tropeçar. Rabalyn desviou­-se para a direita e ergueu de novo a barra-desta vez para Todhe. O jovem grande levantou o braço para proteger a cabeça. A barra bateu no braço erguido, fazendo Todhe soltar um grito de dor. Um soco atingiu Rabalyn nas costas. Pôs-se em pé e virou-se para o novo agressor. Era Cadras. Rabalyn atingiu-o na barriga, depois saltou para ele e pregou-lhe uma cabeçada. Cadras soltou um grito e caiu. Rabalyn recuou deles, segurando a barra alto. Todhe afastava-se já em corrida. Bron conseguira sentar-se e parecia atordoado. Subita­mente, inclinou-se para a frente e vomitou. Cadras fez um esforço para se pôr de joelhos e levou uma mão ao nariz espalmado. O san­gue escorria-lhe pela boca e o queixo. Rabalyn ficou a olhar para ambos. Para lá do par ferido, Archas estava estendido, desmaiado. Largando a barra de ferro, Rabalyn avançou para o sítio onde o jovem se encontrava de bruços. Virando-o com cuidado, ficou aliviado ao ouvi-lo gemer.- Fica deitado-aconselhou Rabalyn.- Mantém a calma.-Havia sangue no rosto de Archas, e um alto enorme por cima do olho esquerdo.

Estou agoniado -disse Archas. - É melhor sentares-te -sugeriu Rabalyn, encostando o jovem

à parede. Bron tentou aproximar-se, depois deixou-se cair ao lado do irmão.

Nenhum dos. jovens falou, e Rabalyn deixou-os ali. Enfrentara quatro atacantes e derrotara-os. Devia sentir-se ani­

mado e cheio de poder. Ao invés, sentia um peso no coração, e o medo de vingança não o abandonou.

Skilgannon dirigiu-se para as ameias altas, e sentiu um momento de irritação quando viu que não estava sozinho. O Irmão Naslyn já lá se encontrava, encostado às muralhas fortificadas com ameias. Era um homem grande, de ombros largos e vigoroso. Virando-se, viu Skilgannon e baixou a cabeça numa saudação. -Uma bela noite, Irmão Lantern disse.

- O que o traz à torre velha? - perguntou Skilgannon. -Queria pensar.

Nesse caso, deixo-o entregue aos seus pensamentos. Skil-gannon afastou-se.

-Não, deixe-se ficar, Irmão. Tinha esperança de que viesse. Tenho-o visto exercitar-se. Conheço alguns dos movimentos. Pra­ticámo-los nos Imortais.

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Skilgannon olhou para o homem. Não era difícil imaginá-lo com a armadura negra e prateada do regimento de elite de Gorben. Invencíveis na batalha, tinham levado Gorben a vitória após vitória durante décadas. Haviam sido licenciados após a derrota em Skeln.

, - Esteve lá? - perguntou Skilgannon. Tal não era a medonha re­putação daquela terrível batalha, e suas consequências, que a pergunta não se podia ter referido a mais nada.

-Sim, estive lá. - Abanou a cabeça. - O fim do mundo -disse, por fim.

Naslyn era um homem calado, solitário. Agora precisava de con­versar, mas apenas quando fosse o momento adequado para ele.

Skilgannon começou a espreguiçar-se, aliviando os músculos dos ombros e das costas. Naslyn reuniu-se-lhe e, juntos, efectuaram em silêncio as rotinas familiares do Arco Retesado, do Gafanhoto, do

Pavão e do Corvo. Havia já um pouco que Naslyn não treinava os movimentos, e demorou algum tempo a reencontrar o equilíbrio. Depois, viraram-se um para o outro, fizeram uma vénia, e começa­ram a simbolizar uma luta, rodando e saltando, mãos e pés a desfe­rir golpes, as pancadas atingindo zonas alvo ao de leve. Skilgannon era mais rápido do que o homem pesado, mas Naslyn moveu-se bem durante um certo tempo até a fadiga o vencer. Por fim, recuou, e fez mais uma vénia. O suor cobria-lhe o rosto e pingava da sua barba preta curta. Esticaram-se mais uma vez, depois sentaram-se em si­lêncio nas ameias.

- Ainda sonho com aquilo- afirmou Naslyn, passado um bocado. -Foi um daqueles momentos impossíveis, em que, quando o repro-duzimos na nossa mente, nos convencemos de que o resultado será diferente.

Virou-se para Skilgannon. Não podíamos perder, lantern. Éramos os melhores. Não apenas isso, excedíamos também o inimigo em dez ... talvez vinte ... para um. Era impossível eles fazerem-nos frente. ImpossíveL

Os Drenai são excelentes guerreiros, dizem. -Sim, são- ripostou Naslyn. Mas não foi por isso que ven-

ceram. Três homens foram responsáveis pela nossa ruína naquele dia. E as probabilidades do que aconteceu são tão grandes que se afigu­ram incalculáveis. O primeiro foi Gorben, bendito seja. Adorava aquele homem ... apesar de a loucura o acometer no fim. T ínhamos sofrido baixas nas baralhas a oriente e ele promoveu novos recrutas para as nossas fi ld ras. lJ m desses foi um jovem soldado chamado

Eericetes ... que a sua alma tenha de vaguear para todo o sempre, cobarde. Calou-se e olhou para as montanhas silhuetadas.

- Quem foi o terceiro? - perguntou Skilgannon, muito embora soubesse a resposta.

- O Assassino de Prata. Druss. Agora chamam-lhe Druss, a Lenda. Caramba, mas ele mereceu-o naquele dia. Nós malhámos na linha deles como o martelo do Céu. Ela cedeu e quase se desfez. E depois ... pre­cisamente quando a vitória estava ao nosso alcance ... - Naslyn aba­nou a cabeça em incrédula lembrança-... Druss atacou. Um homem, lantern. Um homem com um machado. Foi o momento fulcraL Ele era imparáveL A lâmina do machado abriu caminho pelas nossas filei­ras e os homens caíram. Ele não podia ter aguentado tanto tempo. Nenhum homem poderia. Mas depois o cobarde Eericetes arremessou o seu escudo e fugiu. À volta dele outros novos recrutas entraram em pânico e fizeram o mesmo. Em menos de nada a linha cedeu e estáva­mos todos em retirada. InacreditáveL Nós éramos os Imortais, Lantern. Não fugíamos. A vergonha disso arde como fogo no meu coração.

Skilgannon estava intrigado. Circulavam muitas histórias em Naashan sobre Druss, a Lenda, desde a morte do paladino Michanek.

-Como é que ele era? É um gigante? - Da minha altura- disse Naslyn -, mas de constituição mais

pesada. Porém, não era o seu tamanho. Era o mero poder que irra­diava. Ele e aquele maldito machado.

Dizem que lutou ao lado dos Imortais há anos - referiu Skilgannon.

Antes do meu tempo, mas havia quem se lembrasse dele. Contaram histórias incríveis sobre a sua perícia. Não acreditei nelas então. Mas acredito agora. A debandada foi horríveL Gorben enlou­queceu por completo e exigiu que os seus generais se matassem por causa da desonra. Mas eles mataram-no antes. A Ventria ficou ar­rumada então. E olhe para nós, a dilacerar-nos.

-Por que se tornou padre? Estava farto de tudo, lantern. A chacina e as batalhas. -

Naslyn riu de forma sinistra. -Julguei que pudesse remediar os males da minha juventude.

Talvez possa. -Podia tê-lo feito. Mas não sobrevivi a Skeln para ser chacinado

por camponeses enfurecidos. Eles virão, sabe. Com mocas, e foices, e punhais. Sei o que faria. Lutaria, pdo Céu. Não quero isso.

-Portanto, o que vai fazer!

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- Estou a pensar em ir-me embora. Quis falar consigo primeiro.

- Porquê eu? Por que não o abade? -Você não fala muito, Lantern, mas reconheço um guerreiro

quando o vejo. Você esteve em batalhas. Aposto que foi um oficial ...

e dos bons. Por isso, resolvi aconselhar-me consigo. -Não sei o que aconselhar. Ainda não me decidi.

- Está a pensar ficar, nesse caso? Skilgannon encolheu os ombros.-Talvez. Sinceramente, não sei.

Quando vim para aqui, entreguei as minhas espadas ao abade para ele

as destruir. Não pretendia continuar a combater. Ontem na cidade, apeteceu-me matar um fanfarrão desbocado que agrediu Braygan. Foi

preciso todo o meu controlo para me conter. Se tivesse as minhas es­padas à mão, a cabeça dele teria ficado em cima do empedrado.

-Não somos grandes padres, pois não? - comentou Naslyn,

com um sornso. - O abade é. Muitos outros são. Não quero vê-los chacinados.

- É por isso que está a pensar ficar, para poder defendê-los?

-Não excluo essa hipótese. - Assim sendo, ficarei também -anunciou Naslyn.

') ( )

CAPÍTULO 3

Cethelin acordou com um sobressalto, as cores da visão enchendo­-lhe a mente. Acendendo uma lanterna, dirigiu-se à sua escrivaninha

pequena, estendeu um pedaço de pergaminho e pegou numa pena.

O mais depressa que pôde, antes que a visão desaparecesse, anotou-a. Depois recostou-se, exausto e a tremer. Tinha a boca seca e encheu um copo com água. Nos seus tempos de juventude, teria retido as visões na cabeça, examinando-as até tudo ser revelado. Agora mal conseguia

descrevê-las nos seus traços mais largos antes de se dissiparem. Olhou para o que escrevera. Um cão manso, marcado pelo fogo, trans­

formara-se num lobo a rosnar, perigoso e mortífero. O animal levantara a

cabeça e saíra-lhe um raio da boca, atingindo o céu com grande força. Isto de­

sencadeara uma tempestade maciça. O mar encapelara-se numa onda gigan­

tesca e avançara em direcção a uma ilha rochosa. No cimo da ilha havia um

santuário. A última palavra que Cethelin rabiscara fora Vela. Lembrou­-se então de que havia uma única vela acesa na praia da ilha, a sua

chama minúscula brilhando na escuridão da onda colossal que avan­

çava. Cethelin não conseguiu perceber o que era o cão-lobo, mas sabia

que a maré representava sempre a humanidade. O mar revolto era a

turba na cidade, e o santuário era a igreja. Lantern tinha razão. A turba

viria com ódio nos seus corações. Poderia uma vela de amor desviá-la das ideias de assassínio? Cethelin tinha dúvidas.

O cão de três patas entrou a coxear vindo do quarto e sentou-se ao

lado do abade. Cethelin acariciou-lhe a cabeça. -Tu não és um lobo, meu rapaz - disse. - E escolheste um mau lugar para procurares

segurança.

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Rabalyn entrou na pequena cabana e fechou a porta de mansinho. Introduzindo a cavilha de madeira que trancava o fecho, percorreu a pequena sala de estar. A Tia Athyla dormitava na cadeira junto à la­reira. Havia no seu colo vários novelos de lã de cores garridas, e junto aos pés cerca de uma dúzia de quadrados tricotados. Rabalyn deslo­cou-se pela cozinha e cortou uma fatia de pão. Voltando para junto da lareira, pegou no garfo de torrar pão em latão, enfiou nele a fatia de pão e segurou-a junto às brasas. Havia já algumas semanas que não tinham manteiga, mas o pão torrado ainda sabia bem a um jovem que não comera nada naquele dia. Olhou para a Tia Athyla enquanto mas­tigava. Uma mulher grande de cinquenta e muitos anos, nunca casara e, no entanto, fora uma mãe para duas gerações da família. Os seus próprios pais haviam morrido tinha ela somente quinze anos - era apenas um pouco mais nova do que Rabalyn neste momento. Athyla trabalhara para criar quatro irmãs e um irmão. Já tinham partido todos entretanto, e só muito raramente recebia notícias de qualquer deles. A própria mãe de Rabalyn abandonara a família havia quatro anos, deixando dois filhos ao cuidado da solteirona com quem o tempo não fora misericordioso.

Olhou carinhosamente para a mulher adormecida. O seu cabelo es­tava quase todo grisalho, e tinha as pernas inchadas do reumatismo. Também os nós dos seus dedos estavam ligeiramente deformados pela artrite, no entanto trabalhava diariamente, sem se queixar. Rabalyn suspirou. Quando era mais novo, sonhava tornar-se rico e retribuir à Tia Athyla pela sua generosidade, comprando-lhe talvez uma bela casa, com criados. Sabia agora que semelhante presente não lhe traria qualquer alegria. Athyla não desejava criados. Perguntou-se se ela de­sejaria verdadeiramente o que quer que fosse. A sua longa vida fora preenchida por deveres e responsabilidades que não pedira e, no en­tanto, aceitara. Só tinha uma jóia, um pequeno pendente de prata que acariciava inconscientemente quando estava aflita. Rabalyn fizera-lhe perguntas sobre ele e ela dissera que alguém lho oferecera há muito tempo. A Tia Athyla não era muito dada a longas conversas e as s�s reminiscências abruptas e oportunas. Tal como as suas críticas. Es igual à tua mãe -dizia, se Rabalyn deixava comida no prato. -Pensa naquelas crian<;as com fome em Panthia.

-Como é qut• sabr que das estão com fome em Panthia? -

perguntava dt·. , - I hi scmprr ttum· t·m Pcmthia -respondia ela. -E um facto

conlwcido.

O Velho Labbers explicara mais tarde que quarenta anos antes uma enorme seca atingira as nações do sudeste. Cadia, Matapesh e Panthia tinham perdido as colheitas e houvera grande privação. Dezenas de milhar de pessoas tinham morrido em Panthia, a mais atingida de todas. Agora, porém, os Panthianos contavam-se entre as nações mais ricas. A Tia Athyla escutara enquanto Rabalyn lhe explicava tudo isto.

- Ah, pois, ainda bem -disse. Passados alguns dias, quando ele se recusou a terminar uma refeição que continha um repugnante legume verde que abominava, ela abanara a cabeça e dissera: - Aquelas criancinhas em Panthia ficariam contentes com ela.

Aquilo irritara-o então, mas sorriu ao pensar nisso agora. Era fácil sorrir e ter pensamentos carinhosos quando Athyla dormia. Assim que ela acordava, a irritação voltava. Rabalyn não a conseguia controlar. Ela dizia algo estúpido e o seu mau génio disparava. Quase todos os dias, prometia a si mesmo não discutir com Athyla. A maior parte das discussões terminava da mesma maneira. A solteirona começava a chorar e chamava-lhe ingrato. Referia que empobrecera para o criar, e ele respondia: -Nunca lhe pedi que o fizesse.

Ainda tinha as calças húmidas, e despiu-as e pendurou-as numa cadeira perto da lareira. Voltando à cozinha, encheu a chaleira velha com água do jarro de pedra e levou-a para o lume. Deitando mais car­vão nas brasas, pendurou então a chaleira por cima das chamas. Assim que a água começou a ferver, preparou duas chávenas de tisana de flor de sabugueiro, adoçando-as com um pouco de mel cristalizado.

Athyla acordou e bocejou. - Olá, querido - disse ela. -Comeste alguma coisa?

Sim, Tia. Fiz-lhe uma tisana. -Como está o teu olho, querido? Melhorou? -Sim, Tia, está óptimo.

-Ainda bem. -Fez uma careta quando se inclinou para pegar na tisana que Rabalyn lhe deixara. Saltando rapidamente da cadeira, estendeu-lhe a chávena. -Não há muito barulho esta noite- co­mentou. -Acho que todo este aborrecimento já passou. Sim, tenho a certeza disso.

- Esperemos que sim-disse Rabalyn, levantando-se da cadeira. -Vou para a cama, Tia. Até amanhã.-Inclinando-se, beijou-a na face, depois dirigiu-se para o seu próprio quarto. Era minúsculo, mal cabendo a cama velha e uma cómoda para as suas roupas.

Demasiado cansado para se despir, estendeu-se na cama e tentou dormir. Mas os seus pensam<:ntos iam todos para Todhe e a vingança

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que não tardaria a ter lugar. Rabalyn sempre evitara sarilhos com o filho do conselheiro. Todhe era maldoso e vingativo quando não con­seguia o que queria, e limitava-se a ser grosseiro e desagradável com aqueles que não considerava suficientemente importantes para incluir no seu círculo de amigos. Rabalyn nada tinha de parvo e mantivera­-se completamente neutral no único espaço onde eram obrigados a conviver - a pequena sala de aula. Quando Todhe falava com ele, o que era uma ocorrência rara, Rabalyn era sempre cortês e cauteloso a fim de evitar atritos. Não o considerava uma cobardia apesar de ter medo de Todhe mas antes puro bom senso. Nas raras ocasiões em que presenciara Todhe e os amigos a provocarem outros rapazes - como o gordo Arren - decidira que o assunto não lhe dizia res­peito e afastara-se.

Contudo, o espancamento do Velho Labbers fora brutal e revoltan­te, e Rabalyn constatou que não lamentava o soco que estivera na origem desta inimizade com Todhe. Só tinha pena de lhe haver faltado a coragem para se atirar aos adultos que começaram o espancamento. Por muito que pensasse no terrível incidente, não o conseguia enten­der. O Velho Labbers nunca fizera nenhum mal a ninguém na cidade. Muito pelo contrário. Durante a peste, fora de casa em casa ajudando os doentes e os moribundos.

O mundo era realmente um local estranho. Enquanto estava dei­tado na sua cama, Rabalyn pensou nas aulas a que assistira. Não lhes dera muita atenção, excepto as histórias sobre batalhas heróicas e guerreiros poderosos. Rabalyn formara a impressão de que as guerras eram travadas por gente boa contra gente má. A gente má era sempre de países estrangeiros. No entanto, não havia mal no facto de um pu­nhado de homens saudáveis espancarem um padre velho quase ao ponto de o matarem. Não havia mal no facto de as mulheres na turba escarnecerem e gritarem-lhes «arreiem-lhe nas ventas», como fizera Marja, a mulher do padeiro?

«Ela sempre foi uma mulher triste e azeda», dissera a Tia Athyla - o que era algo de notável vindo da boca da solteirona. A Tia Athyla nunca falava mal de ninguém.

Era tudo extremamente perturbante. Rabalyn ouvira·os mexericos que os viajantes levavam para a cidade. Constava que na capital, Mellicane, enormes multidões tinham incendiado igrejas e enforcado padres. O conselheiro do rei, Lorde Máscara de Ferro, ordenara a prisão de imensos sacerdotes, que tinham sido executados e as suas terras confiscadas pelo estado. Quando o governo começara a desmo-

ronar-se, Máscara de Ferro nomeara Árbitros, e estes tinham percor­rido toda a Tantria, exterminando os traidores «inspirados pelos estrangeiros».

Quando Rabalyn ouvira pela primeira vez falar destes aconte­cimentos, considerara-os bons de um modo geral. Os traidores deviam

ser exterminados. Agora, porém, vira o Velho Labbers ser rotulado de traidor, e ficara confuso.

Depois, havia as histórias constantes de batalhas travadas entre tro­pas leais e o inimigo vil de Dospilis e os seus aliados malévolos, os Datianos. Estas batalhas eram sempre vencidas pela Tantria, no en­tanto, cada batalha parecia estar cada vez mais próxima. Inquirira o Velho Labbers a este respeito um dia. -Como é possível que quando vencemos nos retiramos, e o inimigo derrotado avança?

Talvez fosse aconselhado um pouco mais de leitura, jovem

Rabalyn -disse Labbers. Sugeria-te, em particular, as obras his­

tóricas de Appalanus. Ele escreveu: «A verdade na guerra é como uma

donzela pura. Deve ser constantemente protegida dentro de uma for­

taleza de mentiras.» Ficaste esclarecido? Rabalyn anuíra e agradecera-lhe, apesar de não fazer ideia do que

é que o velho estava a falar. Enquanto permanecia deitado na sua cama, sentiu o cheiro a fumo

da lareira. Teria de pedir emprestadas as vassouras a Barik e limpar a fuligem da chaminé. Colocando um cobertor sobre os ombros, fechou os olhos e tentou de novo dormir.

Tinha a mente demasiado cheia. Não parava de pensar em Todhe. Talvez, se aceitasse apenas uma tareia de Todhe e dos seus amigos, tudo se resolvesse. Pagar na mesma moeda. Rabalyn tinha dúvidas. Subira a parada quando os atacara com a barra de ferro. Talvez a Vigilância o prendesse por isso. Este pensamento era novo e assusta­dor. Desconfortável agora, e outra vez receoso, sentou-se e abriu os olhos. Começaram imediatamente a arder. Havia fumo por todo o lado. Rabalyn saiu da cama e abriu a porta. A sala estava cheia de fumo oleoso, e viu chamas do lado de fora da janela.

Tossindo e respirando com dificuldade, correu pela sala e escanca­rou a janela do quarto da Tia Athyla, o fogo atacava o caixilho da ja­nela, e conseguia ouvi-lo agora a avançar ruidosamente pelo telhado de colmo. Indo a cambalear até à cabeceira, sacudiu o ombro da tia.

Tia Athyla! -gritou. - A casa está a arder. Os seus joelhos cederam, os pulmões a arder e cheios de fumo. Agarrando uma cadeira, bateu com ela nas persianas em chamas. Não queriam ceder. Puxando

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um cobertor da cama, envolveu com uma ponta as mãos e tentou le­vantar a tranca de madeira. O fogo deformara-a bastante. Puxando todas as roupas de cima da Tia Athyla, agarrou-a pelo braço e arrastou­-a da cama. O seu corpo bateu no chão, e ela soltou um gemido.

-Acorde! -berrou. À beira do pânico, começou a arrastá-la para a sala de estar. As chamas eram também intensas aqui, e uma parte do telhado caíra no canto extremo. O calor era insuportável. Deixando Athyla, correu para a porta, levantou a tranca e empurrou-a. A porta não se queria abrir. Algo fora introduzido à força contra ela pelo lado de fora. Rabalyn mal conseguia respirar. Avançando a cambalear até à única janela na sala de estar, levantou a barra das persianas e escan­carou-as. As chamas lambiam a madeira. Subindo para o parapeito, atirou-se para o caminho do outro lado. Pondo-se em pé, correu para a porta da frente. Fora encostado um banco de madeira a ela. Agarrando-o, arrancou-o de lá, depois abriu a porta.

As chamas estavam agora altas lá dentro e quando tentou entrar sen­tiu a ferocidade do calor. Inspirando fundo, soltou um berro e entrou lá para dentro. O fogo cercava-o quando alcançou a mulher desmaiada. Agarrando-lhe o braço, começou a arrastá-la pelo chão. A camisa de dormir dela pegou fogo, mas não podia parar para o apagar. As cha­mas lamberam-lhe os braços e a parte de trás das pernas, e sentiu as suas roupas chamuscadas. Mesmo assim não a largou. Gritou de dor, mas continuou. Uma vez à porta, ouviu um grande gemido das ma­deiras lá por cima. Cederam de repente e caiu colmo em chamas sobre a Tia Athyla. Rabalyn puxou a mulher para o ar livre.

A camisa de dormir dela estava em chamas; ajoelhou a seu lado, tentando apagar as chamas com as mãos, e arrancando-lhe a peça de roupa do corpo. Com o clarão do incêndio, pôde ver que tinha as pernas todas queimadas. Afastando-a ainda mais do edifício a arder, deixou-a por um momento e correu para o poço, descendo o balde e içando-o depois. Pareceu levar uma eternidade. Levando o balde até junto da Tia Athyla, rasgou a sua camisa e mergulhou-a na água. Depois, nu e acocorado junto a ela, passou delicadamente a camisa en­charcada pelo rosto enfarruscado de Athyla. De repente ela tossiu, e o seu alívio foi total.

Sossegue, Tia. Estamos bem. -Ai de mim - disse. Depois fez-se silêncio. Começaram a chegar pessoas, precipitando-se para junto de Ra­

balyn. O que aconteceu, rapaz?-perguntou uma voz.

-Pegaram fogo à cabana-disse ele.-Bloquearam a porta para nos impedir de sair.

Viste alguém? Rabalyn não respondeu. -Ajudem a minha tia - pediu. -Por

favor, ajudem a minha tia. Um homem ajoelhou ao lado da forma imóvel e levou um dedo à

garganta dela. -Ela foi-se, rapaz. O fumo deve tê-la arrumado. -Ela acabou de falar comigo. Ela vai ficar bem. A sua voz fa-

lhava quando começou a sacudir a Tia Athyla pelos ombros. -Acorde, Tia. Acorde.

-O que aconteceu aqui? - perguntou o Conselheiro Raseev. -Alguém incendiou a cabana -respondeu o homem ao lado de

Rabalyn. -O rapaz disse que bloquearam a porta da frente. Rabalyn ergueu o olhar e viu Raseev. Era um homem alto, com ca­

belo louro a ficar grisalho e um rosto amplo e atraente. A sua voz era calma e cava. O que viste, rapaz?-indagou.

-Acordei com as chamas e o fumo -disse Rabalyn. -Tentei tirar a Tia Athyla, mas alguém pôs um banco contra a porta da frente.

Tive de saltar pela janela para o retirar. Ajudem a minha tia! Uma mulher ajoelhou ao lado de Athyla. Também lhe tomou o

pulso. - Não há nada a fazer - constatou. Athyla morreu, Rabalyn.

-Perguntei o que viste, rapaz-repetiu Raseev.-Conseguirias identificar o patife que fez isto?

Rabalyn pôs-se em pé. Sentia a cabeça oca, como se tudo isto não passasse de um sonho. A dor das queimaduras nas mãos, braços e per­

nas desapareceu. -Não vi ninguém- disse. Olhou para os rostos dos populares reunidos. -Mas sei quem o fez. Só tenho um inimigo.

-Diz o nome, rapaz! ordenou Raseev. Rabalyn localizou Todhe entre a multidão, e não viu medo nos seus

olhos. Se Rabalyn o denunciasse, nada seria feito. Ninguém o vira pegar fogo à cabana. Ele era o filho do homem mais poderoso da cidade. Estava acima da lei. Rabalyn virou-se e caiu de joelhos ao lado da tia. Estendendo a mão, acariciou-lhe o rosto morto. A culpa pesava­-lhe imenso no coração. Se não tivesse feito de Todhe um inimigo, a Tia Athyla ainda poderia estar viva. -Quem é o teu inimigo, rapaz?

-indagou Raseev. Rabalyn beijou o rosto da tia, depois levantou-se. Virou-se para

Raseev.-Não vi ninguém-disse. Virou-se para a multidão.-Mas sei quem o fez. Há-de pagar. ( :om a sua vida degenerada! -Olhou

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directamente para Todhe . .. e desta vez havia medo a sério nos olhos do jovem.

Todhe avançou e agarrou o braço do pai.-Ele está a falar de mim, pai -queixou-se. Ele está a ameaçar-me!

Isto é verdade? -atroou Raseev. Foi ele que incendiou a casa da minha tia? perguntou

Rabalyn. - É claro que não foi ele!

-Nesse caso, não tem nada a temer, pois não? Rabalyn virou costas. Naquele momento, Todhe afastou-se do pai

e tirou uma faca do cinto. Não, filho! - gritou Raseev. O jovem corpulento correu para

Rabalyn. Ouvindo o grito, este voltou-se. A faca de Todhe reluziu di­reita à sua cara. Rabalyn esquivou-se. A lâmina não o atingiu por uma questão de centímetros. Levando o braço acima do ombro, desferiu um soco lateral no maxilar de Todhe. O jovem grandalhão, desequili­brando-se, vacilou. Rabalyn correu para ele e atingiu Todhe no estô­mago com um pontapé. Todhe largou a faca e caiu de joelhos. Sem pensar, Rabalyn pegou no instrumento e cravou-o no pescoço de Todhe. A lâmina tocou em osso, depois cortou a jugular do jovem. Jorrou sangue para a mão de Rabalyn. Todhe soltou um grito estrangulado e tentou levantar-se. Os seus joelhos cederam e ele caiu de bruços no chão. Raseev gritou: Não! e correu para a beira do filho. Rabalyn ficou ali, a faca na mão a escorrer sangue.

Por um momento ninguém disse nada. A multidão ficara ator­doada, em silêncio. Depois Raseev ergueu o olhar. -Crime! -gri­tou. -Vocês todos viram! Esta criatura vil assassinou o meu filho!

Ninguém se mexera ainda. Mas depois, dois soldados da Vigilância abriram caminho por entre a multidão. Rabalyn largou a faca e fugiu, pulando o muro baixo que circundava a cabana em chamas e correndo pelas ruas.

Não fazia ideia para onde ia. Só sabia que tinha de fugir. O cas­tigo por assassínio era o estrangulamento público, e não havia dúvi­das na sua mente de que seria considerado culpado no julgamento. Todhe largara a faca. Estava desarmado quando Rabalyn o matara.

Agora em pânico, a dor das queimaduras esquecida, o jovem nu corria para se salvar.

A imagem que Raseev Kalikan tinha de si mesmo era complexa e distorcida. As pessoas viam nele alguém que agia de forma honesta

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e leal em prol do bem da cidade e da sua gente. Por conseguinte, na

sua própria mente, ele era isso mesmo. O facto de ter desviado fim­dos da cidade para seu próprio benefício, e concedido contratos de construção aos seus amigos que lhe pagavam subornos, não alterava em nada a noção que tinha de si mesmo. Naquelas ocasiões raras em que a consciência o atormentava, pensava: «Mas é assim que o mundo funciona. Se eu não o fizesse, outro faria.» Usava palavras como honra e princípio, fé e patriotismo. Tinha uma voz forte, cava e persuasiva, e quando usava aquelas palavras nos discursos públicos, via com fre­quência lágrimas nos olhos dos cidadãos que o amavam. Era extre­mamente comovente e, aproveitando a ocasião, chegava a deixar-se levar pela emoção. Raseev Kalikan acreditava piamente só no que era bom para Raseev Kalikan. Era deus de si próprio e da sua ambição. Em suma, Raseev Kalikan era um político.

O seu maior talento era uma sensação inata do sítio de onde soprava o vento da política.

Quando os exércitos do rei tinham sofrido derrotas, e o monarca recorrera aos seus conselheiros, despontara o dia dos Árbitros. Até então, os Árbitros tinham sido uma força menor na vida política da Tantria, atacando o que consideravam a influência maligna dos es­trangeiros que viviam dentro das fronteiras da Tantria. Agora tinham preeminência. Todos os males de que a nova nação fora acometida eram atribuídos aos estrangeiros de Dospilis, Naashan ou Ventria. Até os poucos mercadores drenai na capital eram olhados com enorme des­confiança. Por ironia, o próprio novo líder dos Árbitros era um estrangeiro, Shakusan Máscara de Ferro, o capitão dos Cães de Guerra, a guarda pessoal mercenária do rei. Raseev recebera calorosamente os representantes do Árbitro na cidade, e acolhera-os na sua própria casa. Abraçara a causa deles e imaginara-se a subir pelas fileiras, e a ascen­der, quiçá, no futuro, a um cargo de maior responsabilidade em Mellicane.

Quando os Árbitros haviam atacado a igreja, Raseev vira uma oportunidade não só de progredir politicamente, mas também de sal­dar as suas dívidas. A igreja possuía grande parte das propriedades na cidade e fazia também empréstimos para ajudar o comércio local. Raseev contraíra três grandes empréstimos nos últimos quatro anos, a fim de promover e consolidar os seus interesses comerciais. Dois dos seus empreendimentos-abate de árvores e extracção mineira-ti­nham sido um redondo fracasso, deixando-o a braços com prejuízos de monta. De qualquer forma, os homens da igreja estavam conde-

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nados, por isso, por que não sair da sua destruição com compensações financeiras acrescidas?

O problema era que não fora capaz de agitar o suficiente as pes­soas para atacarem directamente a igreja. Muitas delas recordaram-lhe que os padres os tinham ajudado durante a peste e a seca. O ataque ao velho professor por alguns dos homens contratados por Raseev fora também visto com desagrado por muitos apesar de ninguém o ter afirmado directamente. E quando aquele outro padre levara o Árbi­tro a apunhalar-se, alguns tinham-se até rido do seu infortúnio.

Mas agora havia uma saída. As simpatias das pessoas iam para Raseev na sequência da morte

de Todhe, e tinham feito circular que o assassino se refugiara na igreja, e que o abade se recusava a entregá-lo às autoridades para ser julgado. Isto não era verdade, mas acreditava-se que sim, e isso era o que con­tava.

Raseev ficou em casa naquela noite, o corpo do filho estendido numa divisão das traseiras e vestido com as suas melhores roupas. Ouvia a mulher a chorar e a lamentar-se por causa daquele imbecil. Como eram estranhas as mulheres, pensou. Todhe era um inútil em tudo. Era estúpido, mau e uma constante provação para Raseev. Pelo menos sempre podia conseguir algo com a sua morte.

V ários dos apoiantes de maior confiança de Raseev andavam agora lá fora, a agitar a multidão, incitando a um assalto à igreja para leva­rem o assassino.

Antol, o Padeiro, era um homem amargo e vingativo, e conduziria a multidão. Outros que lidavam de perto com Raseev teriam armas escondidas, que seriam sacadas mal estivessem nos edifícios da igreja. Assim que começasse a matança, a turba invadiria as imediações da igreja. Os padres que não fossem mortos fugiriam. Depois, Raseev lo­calizaria o erário da igreja e apossar-se-ia dos seus fundos. Seria tam­bém uma boa ocasião para encontrar e destruir os seus registos.

Respirou fundo e começou a preparar um discurso. Os assassinos dos padres não podiam ser descurados, e seria obrigado a falar abertamente contra os perigos do ódio, ficando o discurso registado e guardado nos arquivos do conselho.

Os ventos políticos tinham por hábito mudar e, a dada altura no futuro, Rasccv sempre: poderia alegar que se opusera à violência.

Pegando numa pt·na, começou a tomar notas. «As mortes de tantos marcam-nos u todos .. , t•suevcu. Depois parou. Ao fundo da divisão, os solw�os illllllt'tllurum.

{,()

Queres parar com essa lamúria! - Estou a tentar trabalhar.

gritou através das paredes.

Para Skilgannon, a noite fora longa e insone, a sua mente atormentada por dolorosas lembranças do passado, e carregada com as culpas da sua vida. Chefiara homens na batalha - e disso pouco se envergonhava -, mas participara também na destruição de cidades e na horrível carnificina de que se fizera acompanhar. Deixara-se levar por uma vaga de ódio e vingança, escorrendo da sua espada o sangue da inocência. Aquelas lembranças não queriam desaparecer.

Quando a rainha se dirigira às suas tropas antes da última batalha o terrível cerco de Perapolis -ordenara que não fosse deixado nin­

guém vivo, nem um só homem, mulher ou criança dentro da cidade rebelde. «São todos traidores», disse ela. «Que o seu destino seja um exemplo para todo o sempre.»

As tropas tinham soltado «vivas». A guerra civil fora longa e san­grenta e a vitória estava próximo. No entanto, uma coisa era dizer as palavras, e outra completamente diferente era participar na chacina. Na qualidade de general, Skilgannon não precisava de manchar a sua espada de sangue. E, no entanto, fizera-o. Percorrera as ruas de Perapolis, retalhando e matando até as suas roupas e armadura esta­rem encharcadas de sangue.

No dia seguinte, tinham percorrido as ruas agora silenciosas. Cadáveres por todo o lado. Tinham sido mortos milhares. Viu os corpos de crianças e bebés, mulheres velhas e raparigas jovens. O seu coração ficara doente para lá do desespero da visão.

No muro alto da torre, Skilgannon olhava para as estrelas que de­sapareciam. Se existisse um ser supremo- do que duvidava então os seus pecados nunca seriam lavados. Era uma alma maldita, num mundo maldito.

- Onde estavas enquanto as crianças eram chacinadas? - per-guntou, olhando para a imensa negrura. Onde estavam as tuas lágrimas naquele dia?

Algo brilhou ao longe e viu outro incêndio na cidade. Alguma pobre alma estava a ser torturada e morta. Uma raiva vazia invadiu Skilgannon. Indolentemente, acariciou o medalhão pendurado na cor­rente ao seu pescoço. Lá dentro encontrava-se o que restava de Dayan.

Tinham estado juntos três dias depois do seu regresso da guerra. Ainda não se começava a notar a sua gravidez, mas tinha mais cor nas faces, e um brilho sedoso no cahc:lo dourado. Os seus olhos tinham

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vida e refulgiam, e a alegria do seu estado tornava-a radiante. Os pri­meiros sinais de problemas começaram numa tarde soalheira, quando estavam sentados no jardim que dava para o lago de mármore e a fonte alta. O suor brilhava nas suas feições pálidas, e Skilgannon sugeriu

, que se mudassem para a sombra. Apoiara-se pesadamente nele, depois gemera. Ele pegara-lhe ao colo e levara-a para dentro, estendendo-a num divã comprido. O rosto dela adquirira a palidez da cera. Ela le­vantara o braço e comprimira com os dedos a axila. - Dói tanto -disse. Abrindo-lhe o vestido, viu a pele da axila esquerda inchada e equimoseada. Parecia que se estava a formar um quisto grande. Pegando-lhe mais uma vez, levara-a escadas acima para o quarto prin­cipal, e ajudara-a a despir-se. Depois mandara chamar o cirurgião.

A febre começara rapidamente. Ao final da tarde, tinham apare­cido grandes inchaços púrpura nas axilas e nas virilhas. O cirurgião chegara pouco antes do crepúsculo. Nunca iria esquecer a reacção do homem quando examinara Dayan. O cirurgião, um homem de tran­quila confiança, arguto e expedito, entrara no quarto e baixara a cabeça a Skilgannon. Depois, aproximara-se da cama e puxara as cobertas para trás. Fora naquele momento que Skilgannon soubera o pior. O cirur­gião empalidecera e recuara um passo, involuntariamente. Toda a confiança desaparecera dele. Continuou a recuar na direcção da porta. Skilgannon agarrou-o. -O que é? O que se passa consigo?

-A Peste Negra. Ela tem a Peste Negra. Libertando-se de Skilgannon, que ficara em choque, o cirurgião fu­

gira do palácio. Tinham-se seguido os criados numa questão de horas. Skilgannon não saiu de ao pé de Dayan, que delirava, colocando toa­lhas com água fria no seu corpo febril. Não sabia o que mais fazer.

Mais para a alva, um dos enormes inchaços púrpura debaixo do braço dela rebentara. Durante algum tempo a febre baixara, e ela acor­dara. Skilgannon limpou o pus e o sangue, e cobriu-a com uma camisa branca de cetim lavada.

-Como te sentes? - perguntou-lhe, afastando-lhe da testa o cabelo louro encharcado de suor.

- Um pouco melhor. Com sede. -Ajudou-a a beber. Depois ela deixou-se cair na almofada. - Estou a morrer, Olek?

-Não. Não o pt•rmitirt:i - respondeu, forçando uma ligeireza de tom que não st·ntiu.

-Amus-mt•t - Qut·m 111lo lt'

encantados ('0111 i ,I( o.

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umuriu, Dayan� Todos os que conheces ficam Era verdade. Nunca conhecera ninguém de

temperamento tão dócil. Não existia maldade em Dayan, nem ódio. Até tratava os criados como amigos e conversava com eles como seus iguais. O seu riso era contagioso, e animava o moral de todos os que O OUVlam.

- Quem me dera que nos tivéssemos conhecido antes de tu a conheceres-disse. O coração de Skilgannon caiu-lhe aos pés. Pegou­-lhe na mão e beijou-a.- Procurei não sentir ciúmes, Olek. Mas não o consigo evitar. É difícil quando amamos alguém do fundo do cora­ção, e no entanto sabemos que esse alguém ama outra pessoa.

Não soube como responder-lhe, e permaneceu em silêncio, segu­rando-lhe a mão. Por fim, disse: - És uma mulher muito melhor do que ela alguma vez poderá ser, Dayan. Em tudo.

- Mas lamentas ter casado comigo. -Não! Tu és minha esposa, Dayan. Tu e eu juntos. - Suspirou.

-Até à morte. -Oh, Olek. Falas a sério? - Do fundo do coração. -Apertou-lhe a mão e fechou os olhos.

Fez-lhe companhia até à alva, e durante o dia. Ela voltou a acordar ao entardecer. A febre voltara e ela gritou de dor. Mais uma vez lhe mo­lhou o rosto e o corpo, tentando reduzir a inflamação. O seu belo rosto assumiu um ar abatido, e os seus olhos estavam orlados de escuro. Um segundo inchaço rebentou na virilha, manchando o lençol. Quando a noite chegou, Skilgannon sentiu uma secura na garganta, e o suor começou a escorrer-lhe da testa para os olhos. Sentiu uma impressão nas axilas. Delicadamente, apalpou a zona. Os inchaços já tinham co­meçado. Dayan gemeu, depois soltou um suspiro profundo. -Acho que está a passar, Olek. A dor está a desaparecer.

-Isso é bom. - Pareces cansado, meu amor. Devias ir repousar. -Estou óptimo. - Tenho boas notícias- anunciou ela, com um sorriso-, muito

embora agora talvez não seja o momento para as partilhar. Esperava estar sentada no jardim contigo, a ver o pôr do Sol.

-Esta é uma excelente ocasião para boas notícias.-Skilgannon tentou beber um pouco de água, mas tinha a garganta inchada e in­flamada, e custava-lhe a engolir.

- Sarai lançou as runas para mim. Será um rapaz. O teu filho. Estás feliz?

Foi como se tivessem cravado um ferro em brasa no seu coração. A tristeza ameaçou sobrepor-se-llw. --- Sim- disse.- Muito feliz.

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-Esperei que ficasses. -Permaneceu em silêncio durante um bocado, e quando voltou a falar, o delírio regressara. Falou de almo­çar com o pai, e do quanto se tinham divertido naquele dia. -Ele trouxe-me um colar do mercado. Pedras verdes. Deixa-me mostrar-te.

- Fez um esforço para se sentar. -Já o vi. É muito bonito. Repousa, Dayan. -Oh, não estou cansada, Olek. Podemos ir dar um passeio pelo

jardim? -Daqui a pouco. Continuou a conversar, e depois, a meio da frase, parou. A princípio,

julgou que tivesse adormecido, mas o rosto dela estava absolutamente imóvel. Estendendo a não, tocou-lhe com cuidado na garganta. Não havia pulsação. Uma dor cauterizante atacou-lhe a barriga e dobrou-se. Dali a pouco, passou. Olhou para Dayan, depois estendeu-se ao lado dela, atraindo-a para um abraço. - Não escolhi apaixonar-me por Jianna-disse.-Se pudesse ter escolhido, seria por ti. És tudo o que um homem podia desejar, Dayan. Merecias alguém melhor do que eu.

Ficou ali deitado algumas horas enquanto a febre aumentava. Por fim, o delírio tomou-o. Tentou combatê-lo, fazendo um esforço para se levantar e caindo no chão. Depois avançou a vacilar até aos jardins, e os prados mais além.

Skilgannon não recordava quase nada do que se seguira, a não ser que rebolara por uma inclinação íngreme, depois se arrastara até um edifício distante. Pareceu recordar vozes, e a seguir mãos delicadas que o levantavam.

Acordara num quarto silencioso num hospital da igreja. A sua cama ficava ao lado de uma janela, e através dela viu um céu sem nu­vens, intenso e azul. Uma ave branca planava no céu. Naquele momento tudo se imobilizou e Skilgannon sentiu ... o quê? Ainda não sabia. Por um breve momento, sentiu algo semelhante a perfeição, como se ele e a ave, e o céu, e o quarto fossem, de certa forma um só e estivessem mergulhados no amor do universo. Depois passou e a dor voltou. Não apenas a dor física dos quistos enormes lancetados e o ter­rível peso que exerciam sobre o seu corpo, mas a agonia da perda ao recordar-se de que Dayan deixara o mundo, já não lhe segurava a mão, nem beijava os lábios. Não se voltaria a deitar a seu lado nas noites calmas de Verão, a mão acariciando-lhe o rosto.

O desespt'ro atacou o st•u coração como um corvo. Um jov<.· rn pudrt· vt•io visitá-lo no primeiro dia e sentou-se à sua

cahec<.' i ra . --- (i urn homrm de sorte, general. Sim, e dos rijos. Noutras

(v1

circunstâncias, teria morrido. Nunca vi um homem combater tanto a peste como o senhor. A dada altura, o seu coração batia tão depressa que estava fora do meu alcance fazer a contagem.

-A peste ficou circunscrita à nossa zona? -Não, senhor. Grassa pelo reino e para lá dele. A mortalidade

será terrível. -A vingança da Fonte pelos nossos pecados - afirmou Skil­

gannon. O padre abanou a cabeça. -Nós não acreditamos num deus de

vingança, senhor. A peste foi espalhada pelo erro e a ganância do homem.

-O que quer dizer? -A nordeste há uma tribo, os Kolear. Ouviu falar deles? -Parentes dos Nadir e dos Chiatze. São nómadas. -Efectivamente, senhor. Uma das nossas convicções é que se eles

vêem uma marmota ... pequenas criaturas peludas que vivem nas pla­nícies ... morta, devem prosseguir. De acordo com os seus costumes, as marmotas contêm as almas dos feiticeiros kolear. É por isso que os Kolear não caçam as criaturas. Um animal morto é considerado um sinal de que os espíritos dos feiticeiros se foram embora e que a tribo deveria procurar novas pastagens. Durante a guerra, muitos dos Kolear aliaram-se aos inimigos da rainha e foram expulsos das suas terras, ou mortos. Vieram outros residentes não Kolear. Viram as marmotas e decidiram armadilhá-las por causa da pele. É uma boa pele. Do que eles não se aperceberam foi que as marmotas eram por­tadoras das sementes de uma epidemia. A princípio, os caçadores e armadilhadores adoeceram. A seguir as suas famílias. Depois os via­jantes que lhes compravam as peles. Posteriormente, atingiu as ci­dades orientais, e as pessoas fugiram, levando com elas a peste. Estranho, não é, que os retrógrados Kolear tivessem, no seio das suas crenças teológicas simplistas, uma forma de evitar a peste, no en­tanto, nós ... mais civilizados e mais bem informados ... apanhámo­-la e disseminámo-la?

Skilgannon estava demasiado cansado para discutir o assunto e deixou-se dormir. No entanto, agora recordava com frequência as pa­lavras do padre. Não era nada estranho. Um dos primeiros profetas escreveu: «A Arvore do Conhecimento produz o fruto da arrogância.»

Skilgannon suspirou, e mais uma vez se tornou o Irmão Lantern. Despiu as roupas e começou a exercitar-se. Lentamente, libertou a mente de toda a tensão, depois pt'rcorreu suavemente o repertório do

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alongamento e do equilíbrio. Por fim, iniciou uma série de movi­mentos rápidos e súbitos, arremessando as mãos, cortando o ar, o seu corpo rodopiando e saltando, os pés pontapeando alto.

Encharcado em suor, vestiu-se e ajoelhou no chão de pedra. Pela primeira vez em muitos dias, pensou nas espadas e pergun­

tou-se que destino lhes dera o abade. T ê-las-ia vendido, ou limitara­-se a atirá-las a um poço? Abdicar das Espadas da Noite e do Dia fora mais difícil do que alguma vez imaginara. O próprio acto de as entregar a Cethelin lhe provocara tremuras nas mãos e fizera com que o seu coração se sobressaltasse em pânico. Semanas depois, comba­tera o desejo de as recuperar, voltar a segurar. Estivera fisicamente doente durante dias, incapaz de aguentar alimentos sólidos. Era o oposto da satisfação que sentira quando a rainha lhas dera. Quando as suas mãos tocaram pela primeira vez nos cabos de marfim, uma sensação de força e finalidade percorrera os seus membros. Parecia in­compreensível que tivessem sido criadas pela bruxa desprezível de vestido vermelho desbotado que estivera ao lado da jovem rainha. Quase careca, tinha farripas de cabelo branco desgrenhado coladas ao crânio como neblina numa rocha. Em tempos fora de constituição forte, mas agora a pele enrugada do seu rosto pendia solta sobre as pregas do pescoço. Tinha olhos remelosos, e um estava desfigurado por uma opacidade cinzenta.

São do teu agrado, Olek? perguntara ela. A sua voz seca provocou-lhe pele de galinha na nuca, e desviou o olhar quando ela sorriu, mostrando dentes podres.

-São muito belas respondeu ele. As minhas espadas são abençoadas- disse-lhe. -Fiz uma

para Gorben há muitos anos. Quase conquistou o mundo com elas. Agora fiz mais. Armas poderosas. Aumentam a força e a velocidade de quem as empunha. As espadas que carregas são dignas de um rei.

-Não desejo ser rei. A Velha soltou uma gargalhada. Por isso é que a rainha tas con-

cede, Olek Skilgannon. És leal ... e trata-se de uma qualidade tão rara que não tem preço. Vencerás muitas batalhas com estas espadas. Irás recuperar as terras do Naashan para a tua rainha.

Mais tarde, quando estava sozinho na companhia da rainha, Skilgannon expressara a sua inquietação. - A Velha é má co-mentou. Não qut·ro usar as suas espadas.

A rainha soltura umu ,L(argalhada. Oh, Olek! És demasiado rígido no rt•u pt'nsur. · "- Sentara-se ao seu lado, e ele sentira o per-

fume do seu cabelo preto brilhante. - Ela é tudo o que dizes ... e provavelmente mais. Mas nós temos de recuperar o Naashan e usarei todas as armas que conseguir reunir. - Tirou uma faca do cinto e ergueu-a para a luz. Era comprida e curva, a lâmina delicadamente gravada com runas antigas. Ela deu-ma. Não é bela?

Sim, é. É a Lâmina do Discernimento. Realça a sabedoria. Quando a

seguro, consigo ver muitas coisas. E com imensa clareza. A Velha é má, mas mostrou-se leal. Sem ela, ru e eu já teríamos sido mortos. Tu sabe-lo. Preciso da força dela, Olek. Preciso de reconstruir o reino. Como estado vassalo de Gorben não nos poderíamos desenvolver. Agora que ele morreu, podemos realizar o nosso destino. Pega nas es­padas. Usa-as. Usa-as para mim.

Baixara a cabeça, depois levara a mão dela aos lábios. - Por vós, faria qualquer coisa, majestade.

- Qualquer coisa, não, Olek disse ela, baixinho. -Não concordou ele. - Ama-la mais do que me amas a mim? -Não. Nunca amarei ninguém assim tanto. Não sabia que era

capaz de amar com tamanha intensidade. Ainda podias vir para a minha cama, Olek - murmurou ela,

aproximando-se dele e beijando-lhe o pescoço. Eu podia voltar a ser Sashan. Só para ti.

Levantou-se do divã com um gemido. -Não - decidiu. -Se o fizesse, perderia todo o meu raciocínio. Destruiríamos tudo aquilo por que temos lutado. Tudo aquilo por que o teu pai morreu. Tens o meu coração, Jianna. Tens a minha alma. Amei-te como Sashan, e amo-te agora. Mas não pode ser! Não te posso dar mais nada. Dayan é minha esposa. Ela é doce, e é bondosa. E em breve irá ser mãe do meu filho. Ser-lhe-ei leal. Devo-lhe isso.

Depois, pegara nas Espadas da Noite e do Dia, e voltara para a guerra.

Sozinho agora na sua pequena cela, Skilgannon colocara a mão sobre a medalhão ao seu pescoço. -Se o templo existir, Dayan -murmurou -, encontrá-lo-ei. Voltarás a viver.

Permaneceu algum tempo ajoelhado no chão, perdido em pen­samentos do passado. Fora cobarde em recusar as exigências do seu coração? O seu amor por Jianna era demasiadamente grande, ou in­suficientemente grande? Poderia ter derrotado os príncipes bem como os suseranos venrrianos e seus apoiantes? A sua mente respondeu-lhe

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que não. Ele e Jianna teriam sido arrastados e traídos. A sua arrogância murmurou o contrário. «Podias tê-los vencido todos, e sido um só com a mulher que amas.,,

Estes pensamentos foram reforçados pelo que acontecera a seguir à

oferta das espadas. Durante os dois anos seguintes, todos os inimigos tinham tombado perante ele. Uma por uma, as cidades nas mãos dos apoiantes ventrianos tinham sido conquistadas, ou haviam-se rendido aos seus exércitos conquistadores sem dar luta. No entanto, à medida que o poder de Jianna aumentava, ela começara a mudar. A relação deles arrefecera. Ela tinha demasiados amantes, homens de poder e ambição, depois sugava-lhes a força antes de os pôr de parte. O pobre Damalon enlouquecido fora o último. Seguira-a como um cachor­rinho, suplicando migalhas.

Jianna mandara Damalon embora naquela noite, depois do mas­sacre de Perapolis, e recebera Skilgannon na sua tenda de campanha. Ele chegara com o sangue dos chacinados nas suas roupas. ] ianna, ves­tida com uma túnica branca brilhante, o seu cabelo preto preso com arame prateado, olhara-o com desdém. - Não podia ter tomado banho antes de vir à minha presença, general?

-Nem uma onda gigantesca conseguiria tirar este sangue de mtm disse. Permanecerá até ao fim dos meus dias.

Estará o poderoso Skilgannon a amolecer? Foi um erro, J ianna. Foi o mal à maior escala. Bebés com os

crânios esmagados contra paredes, crianças com as entranhas arranca­das. Que tipo de vitória foi esta?

-A minha vitória-ripostou.-Os meus inimigos estão mor­tos. Os filhos deles estão mortos. Agora podemos reconstruir e crescer sem receio de vingança.

- Sim, bem, agora não tens necessidade de um soldado. Por isso, com tua licença, regressarei a minha casa e farei o meu melhor para esquecer este dia horrível.

-Sim, vai para casa respondeu ela, a sua voz fria. -Volta para a tua Dayan. Descansa algumas semanas. Depois regressa. Haverá sempre necessidade de bons soldados. Reconquistámos as cidades do Naashan, mas pretendo restabelecer as antigas fronteiras que existiam quando o meu pai era rei.

-Agora vais invadir Matapesh e Cadia? -Não para já ... mas em breve. Depois Datia e Dospilis.

O que te aconteceu, J ianna? Em tempos falámos de justiça, e paz, e prosperidade, e liberdade. São as virtudes por que lutámos. Só

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I

sentíamos desprezo pela vaidade de Gorben e o desejo de conquista­dores para construírem impérios.

-Era pouco mais do que uma criança então -ripostou ela. -Agora cresci. As crianças falam de sonhos disparatados. Agora lido com realidades. Recompenso aqueles que me apoiam. Os que se me opõem, morrem. Já não me amas, Olek?

-Amar-te-ei sempre, Sashan - respondeu, com simplicidade. As feições dela suavizaram-se então, e por um momento foi a rapa­

riga que salvara nas florestas de Delian. Depois o momento passou. Os seus olhos negros semicerraram-se e suportaram o olhar intenso dele.

Não temes deixar-me, Olek. Não poderia permiti-lo. Afastando todos os sonhos do passado, Skilgannon subiu para a sua

cama estreita. Adormeceu. E sonhou com o Lobo Branco.

Era uma bela alva, o sol banhado de ouro, as poucas nuvens mer­gulhadas em cor: vermelho forte na base e carvão incandescente no cimo. Cethelin encontrava-se na torre alta, absorvendo a beleza com todo o seu ser. O ar tinha um sabor doce e fechou os olhos e procurou imobilizar a tremura das suas mãos.

Não lhe faltava fé, mas não queria morrer. A cidade distante es­tava sossegada, apesar de mais uma vez o fumo pairar no ar por cima dos edifícios destruídos. A turba não tardaria a reunir-se, e depois, como o mar encapelado do seu sonho, avançaria em direcção aos edi­fícios da igreja.

Cethelin estava velho, e vira semelhantes acontecimentos com de­

masiada frequência na sua longa vida. Seguiam sempre um padrão.

A maioria da turba Iimitar-se-ia, a princípio, a ficar ali, aguardando

os acontecimentos. Como uma matilha de cães de caça, presa por tre­

las invisíveis. Depois, os maus entre eles-sempre muito poucos

iniciariam o horror. As trelas partir-se-iam, a matilha atacaria.

Cethelin sentiu outra pontada de medo só de pensar. Raseev Kalikan seria o cabecilha do grupo. Cethelin procurara

amar todos aqueles que encontrava, por mais mesquinhos ou cruéis que pudessem parecer. Era difícil amar Raseev -não porque fosse mau, mas porque era oco. Cethelin sentiu pena dele. Não possuía va­lores morais, nem sentido de espiritualidade. Raseev era um homem consumido por pensamentos egocêntricos. Era demasiado astuto, porém, para estar na vanguarda da turba. Mesmo com planos de as­sassínio já prontos, estaria a pt·nsar no futuro - para mostrar que as

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suas mãos estavam limpas. Não, seria o vil Antol e a sua sinistra mulher, Marja. Cethelin estremeceu e admoestou-se por semelhantes pensamentos ajuizatórios. Durante anos, Marja frequentara a igreja, tornando-se responsável pela organização das funções e a recolha dos donativos. Considerava-se santa e sábia. No entanto, as suas conversas conduziam inevitavelmente à crítica dos outros. «Aquela mulher de Mellicane, Padre. Sabe, aquela que tem um caso com o mercador, Callian. Ela não é bem-vinda aos nossos serviços.» «Deve ter ouvido o ruído terrível que a lavadeira, Athyla, faz durante as vésperas. Ela não acerta uma nota. Não lhe podia pedir para se abster de cantar, Padre?>>

«A Fonte ouve o canto do coração, não da garganta», respondera­-lhe Cethelin.

Depois, viera o dia horrível em que após uma recolha de fun-dos para os pobres o Irmão Labberan descobrira que Marja levara dinheiro «emprestado» do fundo. A quantia não fora grande, cerca de quarenta moedas de prata. Cethelin pedira-lhe que devolvesse o di­nheiro. A princípio ela mostrara-se provocadora e negara a acusação. Mais tarde, com a apresentação de provas, afirmara que apenas pedira emprestada a quantia e que fazia tenções de a devolver. Marja prometera que seria reposta na semana seguinte. Nunca mais estivera presente em qualquer serviço. Tão-pouco fora o dinheiro restituído. O Irmão Labberan pedira para o assunto ser levado ao conhecimento da Vigilância, mas Cethelin recusara.

Desde então, tanto Marja como o marido tinham entrado para as fileiras dos Árbitros, e falado contra a igreja.

O ataque ao Irmão Labberan fora orquestrado por Antol, e Marja assistira, incitando-os a darem-lhe pontapés e fazerem-no sangrar.

Estes dois estariam na frente da turba. Seriam eles a clamar por sangue.

A porta da torre escancarou-se. Cethelin virou-se para ver qual dos padres interrompera as suas meditações, mas era o cão, Jesper. Avançou a coxear, depois sentou-se a olhar para ele. O mundo irá continuar, Jesper-disse, fazendo uma festa na cabeçorra do animal.

-Os cães serão alimentados, e nascerão pessoas, que serão amadas. Eu sei-o, no entanto, o meu coração está cheio de terror.

Raseev vinha na primeira fila da multidão quando ela atravessou a velha ponte e começou a subir a vertente diante dos edifícios do velho castelo. Ao lado dele vinha a figura corpulenta e barbuda de Paolin Meltor, o Árbitro de Mellicane. A sua perna ferida estava a ci-

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catrizar bem, mas percorrer qualquer distância ainda lhe causava dor. Raseev insistira para que ficasse para trás, mas o Árbitro recusara.

-Valerá a pena um pouco de dor para ver aqueles traidores morrer. -Não falemos de morte, meu amigo. Viemos apenas vê-los en-

tregar o rapaz que matou o meu filho. Estavam presentes outros durante a conversa e Raseev ignorara a expressão chocada e surpreen­dida no rosto de Paolin Meltor. -Se eles se recusarem a cumprir a sua obrigação honesta, então teremos de entrar no mosteiro e prendê­-los a todos prosseguiu. Pegando no braço de Paolin, afastou-o dos ouvidos da multidão. -Será tudo como desejar -murmurou. Mas temos de pensar no futuro. Não podemos ser vistos a ir até à

igreja como urna turba assassina. Pretendemos justiça. Alguns homens enfurecidos perderão a cabeça e terá lugar um lamentável. . . profun­damente lamentável. .. massacre. Entendido?

-Como queira! - ripostou Paolin. -Não me interessa nada este... este subterfúgio. Eles são traidores e merecem morrer. Para mim isso é suficiente.

Nesse caso, tem de fazer o que a sua consciência ditar-disse Raseev, melifluamente.

Paolin afastou-se para caminhar ao lado de Antol e da mulher, Marja. Raseev distanciou-se apenas um bocado.

Relanceou a multidão. Seriam cerca de trezentos. Pareceu prová­vel a Raseev que os padres trancassem os portões, mas eram de ma­deira e arderiam bastante rapidamente. Antol certificara-se de que alguns dos homens trouxessem recipientes com azeite e havia lenha seca com abundância nas vertentes antes do castelo. Seria conveniente para Raseev que os portões estivessem trancados. Daria tempo à mul­tidão para se enfurecer.

O capitão da Vigilância, Seregas, aproximou-se de Raseev enquanto avançavam. Seregas era um circunspecto nortenho que estivera desta­cado em Skepthia durante os últimos dois anos. Reorganizara a Vigília, aumentando as patrulhas a pé nas zonas mais abastadas e no bairro dos mercadores. Seregas cobrava quantias extra por este serviço aos lojistas e negociantes. Era puramente voluntário. Ninguém era obrigado a pagar ou ameaçado se não o fizesse. Curiosamente, aque­les que não pagavam veriam os seus estabelecimentos ou as suas casas assaltados. As tabernas e casas de pasto cujos proprietários preferis­sem não aderir à cobrança viam ocorrer brigas e escaramuças, e um decréscimo significativo do movimento, na medida em que os clien­tes evitavam os locais a,Llitados.

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Seregas era um homem alto e magro, com olhos escuros e penetran­tes e uma boca fina, parcialmente coberta por uma espessa barba. Antes, naquele dia, estivera em casa de Raseev. Este levara-o para o seu gabinete de trabalho e servira-lhe um copo de vinho. Sabe que as pistas do

. rapaz se afastam da igreja, Raseev -dissera ele. Não era uma pergunta. -A vertente é rochosa. Provavelmente ele voltou para trás. -Duvidoso, no mínimo. -O que está a dizer?

É bastante simples, Conselheiro. Pedir-lhes-á para entregarem um rapaz que não têm. Logicamente, irão recusar. Tenho a certeza de que este equívoco levará ao derramamento de sangue.

Raseev olhou-o com atenção. -É isso que quer, Seregas? - Está um homem procurado na igreja. Existe uma pequena

recompensa por ele. Levarei o seu corpo. -Procurado por quem? -Isso não lhe diz respeito, Conselheiro. Raseev sorrira. Está a enriquecer, Seregas. Uma pequena re-

compensa não teria qualquer interesse para si. Ocorre-me que, se a si­tuação se descontrolar, então todos os corpos serão queimados. Turbas e fogo, Seregas.

Seregas bebeu o seu vinho.-Muito bem, Conselheiro, vou ter de ser mais explicito consigo. Um dos padres vale imenso dinheiro.

-Conforme perguntei antes: Para quem? Para a rainha naashanita. Já enviei um cavaleiro ao Naashan.

Deve levar cerca de cinco dias a chegar à fronteira, e mais duas semanas, talvez, até a minha carta chegar à capital.

-Quem é este padre? -Skilgannon. -0 Maldito?

-Esse mesmo. Teremos de ficar com o corpo dele como prova. Se retirarmos os órgãos internos e depois cobrirmos o cadáver com sal, ele secará e permanecerá na sua maior parte intacto. Bastará verem as tatuagens. Ele tem uma aranha no antebraço, uma pantera no peito e uma águia nas costas. Em tudo o resto corresponde à descrição; cabelo escuro, alto, com olhos de um azul brilhante. Depois de ele chegar aqui, o abade vendeu um cavalo ventriano por mais de três mil Raq. É Skilgannon.

Quanto é que ela está disposta a pagar? Seregas riu entre dentes.- A questão é, Conselheiro, quanto é que

eu tenho de lhe pagar?

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-Metade. -Não creio. Anda a organizar crimes. Os tempos mudaram,

assim como as ideologias políticas. Pode muito bem necessitar de alguém com autoridade para dar provas da sua boa vontade nestes tempos conturbados.

Raseev voltou a encher os copos. Efectivamente, Capitão. Nesse caso, o que sugere?

Um terço. E essa quantia seria? Mil Raq. Céu Santíssimo! O que é que ele lhe fez? Matou o primogé-

nito? -Não sei. Estamos combinados, Conselheiro? -Estamos, Seregas. Mas diga-me, por que não se limitou a detê-

-lo e conservá-lo preso? -Em primeiro lugar, ele não cometeu nenhum crime aqui. Mais

importante do que isso, ele é um assassino mortífero, Raseev ... com ou sem armas. Não duvido de que muitas das histórias sejam exage­radas, mas é sobejamente conhecido que ele entrou nas florestas de Delian sozinho e matou onze guerreiros que tinham capturado a prin­cesa rebelde ... o que era então a rainha. Ouviu também contar como ele lidou com o Árbitro. Eu assisti, Raseev. A perícia foi extraordi­nária.

-Acha que ele irá lutar amanhã? -Não importará se contra trezentos ou quatrocentos. Ele não é

um deus. O mero peso dos números enfraquecê-lo-á. À luz forte da manhã, Raseev caminhava com a multidão, Seregas

a seu lado, três outros soldados da Vigilância próximo. Quando se apro­ximou do velho castelo, Rassev viu que os portões estavam abertos. O abade, Cethelin, encontrava-se de pé por debaixo do arco do entrada, dois padres ao lado dele. Um era alto e magro, o outro de barba preta e constituição forte.

O alto é Skilgannon- murmurou Seregas. Raseev deteve-se, deixando que as pessoas o ultrapassassem.

Muito acertado referiu Seregas.

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CAPÍTUL04

Para Braygan, tratou-se do único momento aterrador da sua vida até ao momento. Tornara-se padre para escapar aos horrores de uma vida ameaçada por guerras e violência, secas e fome. Agora, antes de completar trinta anos, a morte avançava ao seu encontro.

Mais de vinte dos trinta e cinco padres fugiam já pelos portões das traseiras em direcção aos cercados dos carneiros e ao bosque para lá dele. Viu o Irmão Anager sair do edifício principal, um saco de lona ao ombro. Braygan ficou muito calado quando o cozinheiro surgiu a seu lado. -Venha connosco, Braygan. É inútil morrer aqui.

Braygan quis tanto obedecer. Deu vários passos na direcção do cer­cado, depois olhou para o sítio onde o Abade Cethelin se encontrava por baixo do arco do portão.

-Não posso -referiu. Adeus, Anager. O outro padre não disse nada. Pondo o saco ao ombro, correu para

o cercado. Braygan ficou a vê-lo subir a custo a vertente verde. Naquele momento, uma sensação de paz invadiu o jovem acólito.

Respirou fundo e caminhou lentamente para o sítio onde o abade aguardava. Cethelin virou-se quando Braygan chegou. Sorriu e bateu no braço do jovem padre. -Vi uma vela no meu sonho, Braygan. Destacava-se na escuridão que avançava. Nós seremos essa vela.

A multidão estava agora mais perto, e Braygan viu a figura alta e magra de Antol, o Padeiro, o seu cabelo escuro firmado por um pequeno círculo de bronze, os seus olhos salientes arregalados e furio­sos. Ao lado dele estava o Árbitro que atirara Braygan ao chão, e de­pois fora sustido pelo Irmão Lantern. Braygan deitou um olhar a Lantern, que estava de pé muito quieto, o seu rosto impassível.

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-Entreguem o criminoso Rabalyn - gritou Raseev Kalikan. Ou enfrentem as consequências. Cethelin aproximou-se da multidão circundante. - Não sei do

que falam-disse.- Não existem criminosos aqui. O rapaz Rabalyn não se encontra dentro destes muros.

-Mentes!-berrou Antol. Eu nunca minto - disse-lhe Cethelin. O rapaz não está

aqui. Vejo que vem acompanhado de oficiais da Vigilância. Eles são livres de passar busca aos edifícios.

Não precisamos da tua autorização, traidor! gritou o Árbi-tro. A multidão começou a avançar. Cethelin ergueu os seus braços magros.- Meus irmãos, por que querem fazer-nos mal? Nunca ne­nhum dos meus irmãos lhes fez mal! Vivemos para servir ...

- Isto é para os traidores! -gritou Antol, avançando de repente a correr. O sol incidiu na faca comprida na sua mão. Cethelin virou­-se para ele. O Irmão Lantern apareceu subitamente na linha de visão de Braygan. Cethelin vacilou e Braygan viu sangue na lâmina da faca. Uma mulher gritou da multidão. -Espalha-lhe as tripas por terra!

-Braygan reconheceu a voz de Marja, a mulher de Antol. Braygan apanhou Cethelin quando ele caiu. O abade fora apunha­

lado mesmo acima da anca esquerda, e o sangue ensopava as suas ves­tes azuis. Antol tentou atingi-lo com um segundo golpe, mas Lantern agarrou-lhe o braço e torceu-o selvaticamente. Antol berrou e largou a faca. Lantern apanhou-a com a mão direita, depois virou brusca­mente Antol para a multidão.

Então, Lantern falou, a sua voz áspera e vigorosa. -A morte foi o que aqui os trouxe, escumalha peçonhenta, e a morte é o que irão ter. -Olhou para Marja, uma mulher roliça de cara redonda com ca­belo grisalho cortado curto. -Pediste para espalhar as tripas, minha bruxa. Pois elas aqui estão!

Antol estava de costas para ele e Braygan não viu o golpe terrível com a faca. Mas ouviu o grito de Antol, e viu algo sair da barriga e cair para o solo. O som que partiu do homem esventrado foi quase inumano, e enregelou Braygan até às profundezas da sua alma. Depois, o Irmão Lantern puxou a cabeça do homem para trás e fez deslizar a faca pela garganta dele. O sangue jorrou sobre a lâmina.

-Não! gritou Marja, avançando aos tropeções para o sítio onde jazia o corpo do marido. O Irmão Lantern ignorou-a e dirigiu-se para a multidão. Já estão satisfeitos, ou querem mais? Venham, seus vermes sem coragem. Podem morrer mais.

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Recuaram dele -todos excepto dois oficiais vestidos de preto da Vigilância que avançaram, de sabres na mão. Lantern foi ao encontro deles. Desviou-se quando a primeira lâmina veio direita ao seu cora­ção. O soldado desequilibrou-se. Braygan viu que a faca de Antol es­tava então cravada na garganta do homem. E, de alguma forma, Lantern tinha agora o sabre do oficial moribundo na sua mão. Esquivou-se a uma arremetida do segundo soldado, girou a lâmina, a seguir enfiou-a no peito do homem. O soldado gritou e recuou a cam­balear. A lâmina do sabre saiu.

Lantern recuou do homem e rodou. Braygan pensou que ele fosse voltar para onde estava Cethelin, mas de repente girou nos calcanha­res, o sabre brilhando no ar. Apanhou o soldado na lateral do pescoço, cortando pele, tendão e osso. A cabeça do jovem soldado caiu para o chão enquanto o seu corpo ficou de pé durante vários segundos. Braygan viu a perna direita estrebuchar e o corpo sem cabeça cair por terra.

Não se ouviu um som da multidão. Lantern tinha ambos os sabres nas mãos e caminhava junto à fila de homens e mulheres que aguar­davam. Então?-gritou.-Não há mais homens dispostos a lutar entre vocês? Que tal o senhor, Árbitro? Está preparado para morrer? Cosi as suas feridas ... agora deixe que lhe cause outra. Venha cá. Olhe, vou facilitar-lhe a vida. - Dizendo isto, cravou ambos os sabres no solo.

-Não nos pode matar a todos! vociferou o Árbitro. Vá lá, homens, vamos apanhá-lo!

Precipitou-se com um grande berro. Lantern foi ao encontro dele. A sua mão esquerda agarrou o pulso do Árbitro que tinha a faca e tor­ceu-o. O Árbitro gemeu de dor e largou a arma. Lantern enfiou o pé debaixo da arma em queda, arremessando-a ao ar. Apanhou-a com a mão esquerda, depois enfiou-a com força na órbita direita do Árbitro.

Quando o corpo caiu, recuou e apanhou os sabres.- O homem era um idiota -comentou. -Mas ele tinha toda a razão. Não os posso matar a todos. Provavelmente não mais de dez ou doze. Querem tirar à sorte, campónios? Ou vão atacar todos ao mesmo tempo e de­pois verificam os corpos?

Ninguém se mexeu. -E tu? - perguntou Lantern, apontando com o sabre para um homem jovem de ombros largos de pé ali pró­ximo. - Espalho as tuas tripas pelo chão a seguir? Vamos, fala, verme. -Lantern avançou subitamente para o homem. O cidadão gritou de medo e rt·cuou mais empurrando a multidão. -E o senhor,

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Conselheiro? bramou, avançando para Raseev Kalikan. Está preparado para morrer pelos seus queridos cidadãos? Ou acha que já houve espectáculo suficiente por hoje?

Lantern avançou para o desafortunado Raseev, que piscava os olhos pela intensidade da luz do sol. A multidão recuou do político aterrado.

Já houve derramamento de sangue suficiente ... por hoje -

murmurou Raseev, quando o sabre coberto de sangue tocou no seu

peito. -Mais alto! O seu rebanho miserável não o consegue ouvir.

- Não me mate, Skilgannon! -suplicou. -Ah, estou a ver que me conhece. Não importa. Fale com o seu

rebanho, Raseev Kalikan, enquanto ainda tem língua para usar. Sabe o que dizer.

-Já houve derramamento de sangue suficiente!-gritou Rassev. -Agora voltem para as vossas casas. Por favor, meus amigos. Vamos

para casa. Não queria ninguém ferido hoje. Antol não devia ter atacado o abade. Ele pagou por isso com a sua vida. Agora, sejamos civilizados e retiremo-nos daqui.

-Palavras sensatas -disse Skilgannon. Por um momento, a multidão não se mexeu. Skilgannon virou o

seu olhar azul gélido para o homem mais próximo, e ele recuou. Outros seguiram o seu exemplo, e em breve a turba estava a disper­sar. Rassev fez menção de os seguir.

-Ainda não, Conselheiro-advertiu Skilgannon, a lâmina do sabre batendo no ombro de Raseev. - Nem o senhor, Capitão­acrescentou, quando Seregas ia recuar. Há quanto tempo sabe?

Há apenas alguns dias, General - referiu Seregas, timida-mente. Avistei a tatuagem quando bateu no Árbitro.

-E mandou a notícia para leste? -Claro. Oferecem três mil Raq pela sua cabeça.

-Compreensível - afirmou Skilgannon. Depois deu atenção a Raseev. -Não estarei aqui depois de hoje -informou o conselheiro.

-Mas saberei de tudo o que acontece depois de eu partir. Caso acon­teça algum mal aos meus irmãos, voltarei. Matá-lo-ei à velha maneira ... a maneira dos Naashanitas. Um pedaço seu morrerá de cada vez.

Skilgannon virou as costas aos dois homens e avançou para o sítio onde Braygan estava ajoelhado, com o Abade Cethelin no colo. Quando se aproximou deles, Marja levantou-se de junto do corpo do marido. -Patife! -gritou e correu para Skilgannon. Rodando nos calcanhares, desviou-se. Marja tropeçou e caiu de bruços na terra.

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- Pelo Céu, nunca gostei daquela mulher - disse Skilgannon. Apoiando-se num joelho, examinou a ferida no flanco de Cethelin.

A faca de Antol cortara a carne por cima da anca, mas não penetrara fundo. - Vou coser-lhe essa ferida.

- Não, meu filho. Não me tocará. Sinto o ódio e a raiva que ir­radiam de si. Queimam-me a alma. Braygan e Naslyn levar-me-ão para os meus aposentos e cuidarão de mim. Irá ter comigo lá daqui a pouco. Tenho algo para si. Braygan e Naslyn puseram-no em pé. O velho padre olhou para os corpos e abanou a cabeça.

Skilgannon viu lágrimas nos olhos dele.

Skilgannon ficou calado enquanto os dois padres ajudavam Cethelin a transpor o pátio aberto e a dirigir-se para os edifícios do outro lado. Tinha as mãos pegajosas do sangue. Limpando-as às suas vestes, aproximou-se de um banco de pedra no portão de entrada e sentou-se. A mulher, Marja, mexeu-se e pôs-se de joelhos. Skilgannon ignorou-a. Ela olhou à sua volta, viu o marido morto e começou a soluçar. O som era desprezível. Marja acercou-se aos tropeções do ca­dáver e ajoelhou ao lado dele. A sua dor era verdadeira, mas não comoveu Skilgannon. Ela era uma daquelas pessoas que nunca pen­sava nas consequências. Marja clamara por tripas espalhadas. E ali estavam elas.

Mais quatro almas tinham sido mandadas para a longa e escura viagem.

Dois anos de raiva reprimida haviam sido libertados em escassos momentos aterradores. O Irmão Lantern era um papel que tanto se es­forçara por representar. O rosto do pai apareceu-lhe na sua mente, como sempre o via, as feições largas emolduradas por um elmo de bronze, uma pluma transversal de crina branca de cavalo a brilhar ao sol.

«Somos o que somos, meu filho.>> Skilgannon nunca esquecera aquelas palavras. O seu pai, Decado,

não usava a armadura de mercenário quando as proferira. Fora numa das suas raras visitas a casa, para recuperar de um ferimento na parte superior da coxa e um pulso partido. Skilgannon fora mandado para casa da escola, em desgraça, depois de lutar com dois rapazes e deixar ambos sem sentidos. «O sangue corre puro na nossa linha de descen­dência, Olek. Somos guerreiros.» Soltara uma risada abafada. «As pes­soas são como cães, rapaz. Há os pequenos e baixotes a que todos gostam de fazer festas, e os grandes e esguios que vemos correr e em que apos ramos. Há todos os tipos de cães domésticos com as caudas

7H

a abanar. Depois há o lobo. É forte. Possui mandíbulas poderosas e é

feroz quando provocado. Somos o que somos, meu filho. E lobos é o que somos. E é bom que aqueles animaizinhos que abanam a cauda andem com cautela à nossa volta.»

Dois meses depois, o pai morrera. Aprisionado numa cumeada por duas divisões da infantaria panthiana, Decado comandara um último ataque pela vertente abaixo. Os poucos sobreviventes falaram da sua incrível coragem, e da forma como quase alcançara o rei panthiano. Quando o corpo principal do exército chegara ao campo de batalha, encontraram todos os cadáveres menos um empalados em estacas. Decado estava ainda sentado no seu cavalo, que fora amarrado ali perto. A princípio, a tropa de socorro julgara-o vivo. Quando chegaram ao pé dele, viram que fora preso à sela, as costas mantidas direitas por três troncos de madeira. As espadas haviam sido embai­nhadas no seu flanco, os anéis ainda nos dedos. Num punho fechado encontraram uma pequena moeda de ouro, ostentando as armas pan­thianas.

Um cavaleiro trouxe a moeda a Skilgannon. -É a peagem para o Barqueiro - disse ao rapaz. Os Panthianos quiseram certificar-

-se de que ele atravessava o Rio Escuro. Skilgannon ficara horrorizado. E agora, o que é que ele vai fazer?

Tirou-lhe a moeda. - Não te preocupes, rapaz. Enterrei-o com outra moeda ... uma

das nossas. É à mesma de ouro e o Barqueiro aceitá-la-á. Quis que ficasses com esta. Os Panthianos honravam-no, e isto é o símbolo dessa honra.

«Somos o que somos, meu filho. E lobos é o que somos.» Skilgannon, o Maldito, era quem ele era, e quem sempre iria ser. Escutando movimento atrás de si, virou-se e viu que os padres

fugitivos tinham regressado, entrando com ar envergonhado no edifício principal. Isto é tudo um absurdo, pensou. Muito provavelmente, apenas Cethelin acreditava realmente no poder do amor que tudo cura. O resto? Naslyn queria redenção, Braygan segurança. Anager e os outros fugiti­vos tinham provavelmente escolhido o sacerdócio tal como uma pessoa podia escolher ser alfaiate ou sapateiro. Era apenas uma profissão.

Não conseguia sentir ódio de Raseev Kalikan ou do Capitão Seregas. Pelo menos existia uma finalidade nos seus actos.

Skilgannon ficara do lado de Cethelin e quase se convencera de que ele teria uma atitude passiva, deixando a turba fazer o que lhe apete­cesse. O mundo não seria um lugar mais pobre sem mim, pensou. No

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entanto, quando o padeiro malvado apunhalara Cethelin, algo se sol­tara dentro de Skilgannon. A escuridão fora libertada.

O Irmão Anager foi ter com ele, viu os corpos diante dos portões, e fez o sinal do Corno Protector.-O que aconteceu aqui, Irmão?­murmurou.

Não sou seu irmão - ripostou Skilgannon. Voltou para a cela e puxou a pequena arca de baixo da cama. Tirou

de lá uma camisa de linho debruada a cetim branco. Não tinha cola­rinho nem mangas. Estendeu-a em cima da cama e retirou umas cal­ças de couro e um cinturão castanho. Colocou-os ao lado da camisa. Despindo as suas vestes manchadas de sangue, atirou-as para o chão e vestiu as roupas da arca. Calçando um par de botas de montar cas­tanhas pelo joelho, levantou-se e bateu com os pés. As botas estavam apertadas depois de dois anos a usar sandálias abertas. Por fim, tirou um blusão de montar de pele de gamo ensebada. Também este não tinha mangas, mas haviam sido colocadas em ambos os ombros com­pridas franjas de couro, com pontas de prata. Esta apresentava-se baça e preta, tal como as argolas de prata cinco de cada lado -que de­coravam a parte de fora das botas do joelho ao tornozelo.

Envergando o blusão, saiu da cela sem olhar para trás. O Irmão Braygan estava à espera no pátio. - Foi um golpe feio

- disse a Skilgannon. - Naslyn coseu-o. Acho que vai ficar bom. -Ainda bem.

- Vai deixar-nos? -Como posso ficar, Braygan? Mesmo sem as mortes, eles sabem

quem sou. Virão caçadores, assassinos, atrás do prémio. - Portanto, é realmente o Maldito? -Sou. -Custa a crer. As histórias devem ter sido ... exageradas. -Não foram, não. Tudo o que ouviu é verdade. Afastando-se dele, Skilgannon subiu os degraus até aos aposen­

tos do abade. Encontrou-o estendido na cama, Naslyn a seu lado. O padre de barba preta levantou-se quando ele entrou e saiu silen­ciosamente. Skilgannon abeirou-se da cama e olhou para o rosto macilento do abade idoso.

- Lamento, Irmão Sénior. -E eu também, Skilgannon. Julguei que o meu sonho signifi-

cava uma vela de.• amor. Não era. Significava a chama de um guerreiro. Agora, tudo o qut· nos propusemos fazer está maculado. Somos os pa­dres que matarum pum se.· salvur.

HO

Preferia ter morrido ali? -Sim, Skilgannon, preferia. Ou melhor, o padre que sou prefe­

ria. O homem que sou está grato por mais alguns dias, meses ou anos de vida. Vá ao armário além. Encontrará no fundo algo embrulhado num cobertor velho. Traga-o cá.

Skilgannon fez o que lhe mandavam. Quando tocou no embrulho, soube instintivamente o que estava escondido lá dentro. O seu pulso começou a acelerar. -Abra-o ordenou Cethelin.

Não as quero. -Então leve-as daqui e destrua-as. Quando mas deu pela primeira

vez, senti o seu mal. Esperei que se viesse a libertar do poder obscuro. Vi-o sofrer e senti orgulho na força que mostrou. Mas não as podia deitar fora, nem vender, como sugeriu. Teria sido o mesmo que sol­tar uma epidemia num mundo conturbado. Elas são suas, Skilgannon. Fique com elas. Leve-as para bem longe daqui.

Colocando o embrulho numa mesa próximo, Skilgannon soltou as tiras que o prendiam e retirou o cobertor. Estavam ali as Espadas da Noite e do Dia. O sol que entrava pela janela incidiu nas pegas de marfim trabalhado e reluziu no único cabo preto envernizado. Pegando no cinturão debruado a prata que ligava ambas as extremi­dades do cabo, pôs as armas às costas. Havia algo mais no embrulho, uma bolsa de couro volumosa. Tomou-a na mão.

-Estão vinte e oito Raq de ouro nessa bolsa- declarou Cethelin. Tudo o que sobra do dinheiro do garanhão que me pediu para ven­

der. O resto serviu para comprar comida para os pobres durante o ano de seca.

Sabia quem eu era quando aqui cheguei, Irmão Júnior? -Sim. -Nesse caso, por que me deixou ficar?

Nenhum homem é excluído da redenção. Nem sequer o Maldito. É nosso dever amar os que não podem ser amados e, ao fazê­-lo, abrimos os seus corações para a Fonte. Lamento-o? Sim. Voltaria a fazê-lo? Sim. Recorda que lhe perguntei se me fazia um favor? Ainda o faria?

-Claro. -Vou enviar Braygan a Mellicane com uma mensagem para os

anciãos. Vá com ele e zele para que chegue em segurança às mãos deles.

Braygan é uma alma pura. Não acha que ele pode ser corrom­pido pelo meu mal?

HI

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- Talvez. Sim, ele é puro e sem mácula. Mas também é inexpe­riente e compreende pouco a dureza deste mundo. Se ele for consigo para Mellicane e permanecer puro, então isso fará dele um melhor padre. Se não conseguir, deveria procurar um futuro fora da igreja .

. Adeus, Skilgannon. - Preferia quando me tratava por Irmão Lantern. - O Irmão Lantern morreu do lado de fora destas paredes,

Skilgannon. Fugiu quando o sangue correu. Um dia pode voltar. Rezarei por esse dia. Agora vá. Só de vê-lo ofende-me.

Skilgannon nada mais disse. Virando as costas ao velho padre, avançou para a porta e saiu. Naslyn aguardava. Estendendo a mão, agarrou no braço de Skilgannon. Obrigado, Irmão - disse.

- Pela sua vida? - Por me dar coragem para ficar. - Naslyn suspirou. Não sou

filósofo. Talvez Cethelin tenha razão. Talvez devêssemos oferecer o nosso amor ao mundo e deixá-lo arrancar os nossos corações. Não tenho respostas, homem. Mas dada a escolha entre ter Cethelin neste mundo, ou aquele padeiro imundo, Antol, sei qual escolheria. -Olhou Skilgannon nos olhos. - É um homem corajoso, e respeito-o. Para onde vai?

- Primeiro para Mellicane. Depois disso? Não sei. Que a Fonte o acompanhe, para onde quer que vá. Receio que ela e eu estejamos de relações cortadas. Tenha cui­

dado, Naslyn.

H2

CAPÍTULO 5

Rabalyn ficou deitado muito quieto, sabendo que, se se mexesse, o dragão o veria. Sentia o fogo do seu bafo no braço, no peito e do lado esquerdo do rosto. A dor era cauterizante. O jovem não olhou para o dragão. Ficou de olhos fechados, usando toda a sua força para não gritar. O seu corpo começou a tremer. O fogo do dragão cessou, e depois desceu sobre ele um frio terrível. Soube então que o dragão fora substituído por um Demónio do Gelo. A Tia Athyla falara des­sas criaturas no longínquo norte. Acercavam-se dos lares e enregela­vam os ossos dos doentes e dos fracos. No entanto, o frio era pior do que o calor do dragão. Penetrava até à carne.

Rabalyn pôs-se de joelhos e abriu os olhos. Estava numa pequena cavidade, rodeado de árvores e arbustos. O sol fraco infiltrava-se atra­vés dos ramos lá em cima. A sua mão tocou num ramo grosso caído. Agarrou-o e empunhou-o como uma moca, depois olhou à sua volta, procurando o Demónio do Gelo. O suor escorria-lhe para os olhos.

Não havia Demónio. Nem dragão. Tinha a garganta completa­mente seca e sentia picadas de dor nos braços e no rosto.

- Estava a sonhar disse, em voz alta. As tremuras agravaram--se. O seu corpo nu estava encharcado de suor e orvalho e a brisa ligeira que soprava através da floresta dava a sensação de uma tempestade de neve batida pelo vento. Rabalyn apoiou-se nas suas pernas vacilantes e avançou para um arbusto denso. Acocorando-se, gemeu quando uma nova dor lhe percorreu a coxa. Olhou para baixo e viu que a pele es­tava repuxada e em chaga. Deitou-se. Parecia mais quente aqui e, por alguns momentos, sentiu-se quase normal. O calor aumentou. E au­mentou. O suor banhava-lhe as f{·içiit's t• t•scorria do rosto.

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Viu de novo a faca cravar-se no pescoço de Todhe, e o corpo da Tia Athyla estendido diante da casa em chamas.

O dragão voltou. Desta vez, Rabalyn olhou para ele, de forma des­

preocupada e destemida. O seu corpo era dourado e escamoso, a ca­

beça comprida e achatada. O fogo que queimava Rabalyn não vinha

da boca dele, mas dos olhos. Eram tão brilhantes que o jovem tinha

dificuldade em olhar para eles.-Vai-te embora-murmurou.

Deixa-me em paz. -Ele está a delirar disse o dragão.

As queimaduras estão a supurar-referiu outra voz. Rabalyn foi arrastado para sonhos estranhos. Boiava num lago cris­

talino. A água provocava uma sensação fresca na sua pele, à excepção do sítio onde o sol lhe incidia, no rosto e no braço. Procurou imergir mais no líquido frio, mas era impossível. A Tia Athyla estava ali, sen­tada numa cadeira velha. Apercebeu-se então de que afinal não estava

no lago, mas numa banheira baixa. Onde estiveste, filho? per­guntou a Tia Athyla. -É muito tarde.

Desculpe, Tia. Não sei onde estive. Acha que ele vai morrer? - perguntou alguém à Tia Athyla.

Rabalyn não conseguiu ver quem falava. A Tia Athyla não res­pondeu. Estava a desemaranhar um novelo de lã. Só que não era lã. Era fogo. Uma bola de fogo.-Vou fazer-te uma capa-disse ela.

-Agasalhar-re-á no Inverno.

Não a quero respondeu ele. -Que disparate! Vai ficar uma capa bonita. Olha, apalpa a lã. Esfregou o fogo no seu rosto, e ele gritou. A escuridão submergiu-o. Quando voltou a haver luz, apercebeu-se de

que via algo muito estranho. Estava um homem ajoelhado, debruçado sobre ele, mas pairando por cima dos ombros do homem havia dois ros­tos curiosos. Um era escuro, com enormes olhos dourados oblíquos, como um lobo, o outro era pálido, a boca um golpe comprido com dentes afi­ados. Os olhos eram fendidos, como os de um gato. Ambos os rostos bri­lhavam, como se feitos de fumo de madeira. O homem pareceu ignorar as criaturas esfumadas. - Estás a ouvir-me, Rabalyn? - perguntou.

O rosto era familiar, mas não o conseguia situar na sua memória, e mergulhou em mais sonhos.

Quando finalmente acordou, a dor das suas queimaduras era mais su­portável. Estava deitado no solo, um cobertor a cobri-lo. Tinha uma li­gadura no br-c�,ço esquerdo. Rabalyn gemeu. Imediatamente o homem foi ter com dt• e ajoelhou a seu lado. Reconheceu-o como um dos padres.

-Eu conheço-o -disse.

-Sou o Irmão Braygan - respondeu o homem, ajudando Rabalyn a sentar-se e dando-lhe a beber água. Rabalyn pegou na taça de cobre e esvaziou-a. Como é que arranjaste estas queimaduras?

-Todhe pegou fogo à casa da minha tia. Lamento. A tua tia está bem? Não. Ela morreu.

Surgiu outra figura ao lado. A princípio, Rabalyn não o conseguiu reconhecer. Tinha vestido um blusão com franjas, e os braços estavam à mostra. Fora tatuada uma aranha preta no antebraço esquerdo. Rabalyn fitou os olhos pálidos do homem. Apercebeu-se de que era o padre, o Irmão Lantern. - Eles andam a perseguir-te, rapaz -afir-mou Lantern. Não podes voltar para a cidade.

Eu sei. Matei Todhe. Quem me dera não o ter feito. Ele terá de vir connosco -disse o Irmão Braygan.

-E o que fará em Mellicane?-repastou Lantern.-Tornar-se um mendigo nas ruas?

-A minha mãe e o meu pai estão lá- retorquiu Rabalyn.­Hei-de encontrá-los.

Pronto, então está decidido -referiu Braygan. Agora des-cansa. Apliquei cataplasmas de ervas nas queimaduras nas tuas per­nas e nos teus braços. Irão doer durante algum tempo, mas creio que cicatrizarão.

Rabalyn adormeceu-e, aos poucos, afundou-se num lago de so­nhos. Quando acordou, estava escuro. Os sonhos dissiparam-se como uma bruma empurrada pela brisa.

Excepto um. Recordou o terrível machado, e um homem com olhos da cor do céu de Inverno. Rabalyn estremeceu ante a recordação.

De manhã, o Irmão Lantern tirara uma camisa e calças lavadas da sua trouxa e dera-as a Rabal yn. A camisa era de um tecido macio que

Rabalyn nunca vira antes. Brilhava quando a luz incidia nela. Era azul­-clara, e tinha uma pequena cobra no peito, bordada a fio dourado. Estava enrolada e pronta para atacar. -As minhas queimaduras vão manchar o tecido disse Rabalyn. -Não quero estragar uma ca­misa tão boa.

- É apenas uma peça de vestuário redarguiu Lantern, despren-didamente. As calças eram de couro preto e fino, e demasiado com­pridas para o jovem. Braygan ajoelhou-se aos pés dele, fazendo dobras no couro até aos tornozelos. Braygan tirou da sua própria trouxa umas sandálias. Rabalyn calçou-as. St·rviam-lht• quase na perfeição.

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-Pronto, isto deve bastar-disse Braygan. -Pareces um jovem nobre.

Os dias seguintes foram difíceis para Rabalyn. As queimaduras não

sararam rapidamente, a carne repuxando e abrindo. Até a pele nova, quando se formou, estava esticada e rebentava facilmente. A dor era constante. Procurou não se queixar, pois apercebeu-se de que o guer­reiro alto, que fora o Irmão Lantern, não o queria por perto. O homem raramente lhe dirigia a palavra. Por outro lado, também não falava muito com o Irmão Braygan. Ele limitava-se a seguir na frente, por vezes desaparecendo de vista. Sempre que atravessavam zonas de colinas, subia a correr a vertente mais alta e observava o trilho que tinham percorrido.

Na manhã do quarto dia, o guerreiro - como Rabalyn se acos­tumara a considerá-lo -obrigou-os a sair da estrada e embrenhar-se na densa vegetação rasteira. Ali se acocoraram por detrás de uma camada de arbustos quando apareceram cinco cavaleiros, seguindo a

toda a velocidade. Rabalyn reconheceu a figura magra de Seregas, o Capitão da Vigilância.

Depois de os cavaleiros passarem, Rabalyn estava à beira das lá­grimas. Doíam-lhe as feridas. Viajava com desconhecidos, um dos quais não gostava dele, e os oficiais da Vigilância continuavam à sua procura. E se o seguissem até Mellicane, e o denunciassem como as­sassino?

O guerreiro embrenhou-os mais na floresta do lado esquerdo do tri­lho, e durante a maior parte do dia andaram por terreno irregular. Ao entardecer, Rabalyn sentia-se exausto. O guerreiro encontrou uma ca­vidade escondida e acendeu uma pequena fogueira. Rabalyn não se sen­tou demasiado perto dela. As suas feridas podiam não tolerar o calor.

O Irmão Braygan trouxe-lhe uma tigela de sopa.-Sentes-te me-lhor? -perguntou.

-Sim. -Estás triste por causa da tua tia? Vejo-o nos teus olhos. Rabalyn sentiu-se envergonhado. Estivera mais preocupado com a

sua própria situação crítica, e apoderou-se dele a culpa pelo seu egoísmo.-Ela era uma boa mulher -disse, não querendo mentir descaradamente.

O guerreiro desaparecera na noite, e Rabalyn sentiu-se mais con­

fortável com a sua ausência. - Quem me dera que ele se fosse embora - desabafou, em voz

alta.

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- Quem? - inquiriu Braygan. Rabalyn ficou imediatamente embaraçado. Não tencionara dar voz ao pensamento.

-O Irmão Lantern. Ele assusta-me. -Ele não te fará mal, Rabalyn. Lantern é um ... homem bom.

-O que aconteceu lá na igreja? A turba foi até lá? -Sim.

-Eles queimaram tudo?

-Eles não queimaram nada, Rabalyn. Fala-me dos teus pais. Sabes onde vivem agora?

Rabalyn abanou a cabeça. -Não creio que eles me queiram por perto. Eles deixaram-me e à minha irmã com a Tia Athyla, há anos. Nunca enviaram uma mensagem nem nada. Nem sequer sabem que Lesha morreu. A verdade é que eles são desprezíveis.

Foi a vez de Braygan ficar constrangido.-Nunca digas isso, meu amigo. Todos temos defeitos. Ninguém é perfeito. Tens de aprender a perdoar.

Rabalyn não respondeu. A Tia Athyla nunca falara mal dos pais dele, mas à medida que crescia, começou a ouvir histórias. O pai era

um homem preguiçoso, fora despedido duas vezes e estivera preso uma vez, durante um ano, por roubar os patrões. Era também um bêbedo, e a única lembrança nítida de Rabalyn era de o ver a agre­dir a mãe no rosto depois de uma discussão. Ela fora arremessada con­tra uma parede, meio atordoada. Rabalyn tinha seis anos na altura e correra para a mãe, a chorar. Fora então que o pai lhe dera um pon­tapé. «Como é que um homem há-de fazer alguma coisa por si próprio?», berrara o pai. «Já é suficientemente mau tentar ganhar o suficiente para sobreviver, quanto mais ter de alimentar e vestir fe­delhos ingratos.»

Rabalyn detestava a fraqueza. E nunca entendera por que é que a mãe abandonara os filhos para partir com um homem tão destituído

de virtudes. Contara apenas aos padres que os pais estavam em Mellicane para que eles não o deixassem entregue ao seu destino. Não

fazia tenções de os procurar. Deixá-los apodrecer onde quer que esti­vessem, pensou.

Braygan aproximou-se da pequena fogueira e deitou para lá vários ramos secos. - Afinal, o que aconteceu quando a turba foi até à

igreja? - inquiriu Rabalyn.

-Na verdade, não me apetece falar sobre o assunto. -Porquê? - Foi medonho, Rabalyn. Horrível.

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O rosto do padre evidenciou o seu pesar, e Rabalyn viu-o sentar­-se em silêncio e olhar para a fogueira. -Jesper está bem? - per­guntou o rapaz.

-Jesper? -O cão de Kalia. -Ah sim, o cão está bem. O Abade Cethelin está a cuidar dele. -Por que é que o Irmão Lantern não está vestido como um

padre? -Ele deixou a ordem. Tal como eu, ele é ... era ... um acólito. Ele

ainda não tomara os votos finais. Queres comer alguma coisa? -Gostava de saber o que aconteceu na igreja- insistiu Rabalyn.

-Foi assim tão horrível? Braygan suspirou. - Morreram homens, Rabalyn. O abade foi

apunhalado. -O Irmão Lantern impediu-os, não impediu? Braygan olhou para o rapaz. -Como é que sabes?

-Eu não sei. Apenas calculei, na verdade. Vi-o derrubar aquele Árbitro que o atacou. Ele não parecia ter medo. Depois mandou a multidão levar o Árbitro para a taberna. Calculei que faria o mesmo se a turba viesse à igreja. Quem é que ele matou?

-Como referi, não quero falar sobre o assunto. Talvez devesses perguntar a Lantern quando ele voltar.

-Ele não vai falar do assunto. E ele não gosta de mim. Braygan sorriu timidamente. -Ele também não gosta de mim.

-Nesse caso, por que viajam juntos? -O abade pediu-lhe que me levasse em segurança até Mellicane. -E o que vai fazer quando lá chegar? -Entregar cartas aos anciãos da igreja, e depois tomarei os meus

votos perante o bispo. -Fica muito longe? -Cerca de duzentos e cinquenta quilómetros. Lantern acha que

a viagem levará mais doze, talvez quinze dias. -E então a guerra? Veremos soldados? -Espero que não - disse Braygan, subitamente receoso. -

Existem várias povoações daqui até à capital. Compraremos provisões nelas e afastar-nos-emos das estradas principais.

-Já alguma vez foi à capital? -Não. Nunca. - Kalia fói. Ela disst.' que têm lá animais enormes, que lutam

na Arena. E Keil ias, o IJ11jarinheiro contou-nos que alguns deles iam

HH

lutar na guerra. Disse que se chamavam Ambígenos, e que o rei pro­metera um exército deles para combater os nossos inimigos maus.

-Não gosto de falar dessas coisas- referiu Braygan, tentando pôr um tom austero, e falhando redondamente.

-Gostaria de ver um -acrescentou Rabalyn. -Tem cuidado com o que desejas, rapaz - advertiu Lantern,

saindo silenciosamente das árvores. -Os Ambígenos são uma mal­dição, e quem tentar usá-los é tolo.

Na manhã do sexto dia, cansados e famintos, as suas prov1soes quase esgotadas, chegaram a uma estação de muda mesmo à beira de uma pequena aldeia aninhada nas colinas. Skilgannon observou a área. Havia três estruturas de madeira e um curral que não continha quais­quer cavalos. O fumo erguia-se indolentemente da chaminé do edifí­cio maior. Para lá da estação de muda não havia qualquer sinal de movimento na aldeia, a não ser uma raposa que atravessou a correr a rua principal, desaparecendo por um beco.

Skilgannon disse a Rabalyn e Braygan que esperassem junto à linha das árvores, depois avançassem para o curral. Quando se aproximou dele, saiu um homem corpulento do edifício principal. Era alto e de ombros redondos, o cabelo cortado curto, mas a barba castanha era grossa e hirsuta.

-Bom dia para si-saudou ele. -E para si. Onde estão os seus cavalos? -Os soldados levaram-nos. A estação está fechada até nova

ordem. Skilgannon olhou para a aldeia silenciosa. - Foram-se todos

embora - avançou o homem. - Os Datianos estão a menos de um dia daqui. Por isso, as pessoas· pegaram no que puderam e fu­guam.

-Mas o senhor não. O homem encolheu os ombros. -Não tenho para onde ir, filho.

Esta é a minha casa. Ainda ficou comida, por isso se você e os seus amigos quiserem tomar o pequeno-almoço, são bem-vindos.

-É muita bondade sua. -Agrada-me ter companhia, para lhe dizer a verdade. O meu

nome é Seth-anunciou, avançando e estendendo a mão. Skilgannon apertou-a. Seth olhou para a tatuagem da aranha.-Andam homens à sua procura - acrescentou. -Estiveram aqui ontem. Grande re­compensa, disseram.

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Enorme -concordou Skilgannon. Nesse caso, é melhor não ficar muito tempo referiu Seth,

com um sorriso. -Calculo que voltem. -Depois virou-se e enca­minhou-se para a estação de muda.

Skilgannon chamou os outros. A área principal dentro da estação era ocupada por uma zona de armazenagem, agora vazia, mas tinham sido colocadas várias mesas e umas cadeiras junto à parede virada a poente. Seth instalou-os, depois afastou-se para a cozinha. Skilgannon levantou-se e seguiu-o. O homem corpulento pegou numa frigideira e colocou-a em cima de um fogão grande. Enrolando um pano à volta da mão, retirou a tampa de ferro e levou a frigideira às chamas. Depois, foi buscar um grande naco de pernil fumado à despensa, e cortou oito fatias. À medida que as colocou na frigideira, elas come­çaram a crepitar. O estômago de Skilgannon comprimiu-se quando o cheiro a bacon frito encheu o ar.

-Não precisa de se preocupar comigo, filho -disse Seth. -Não estou interessado em recompensas.

-Para onde foram os aldeãos? -Alguns dirigiram-se para Mellicane, outros foram para sul.

Alguns encaminharam-se para as colinas altas. A guerra está perdida. Não tenho dúvidas. Os soldados que roubaram os cavalos eram de­sertores. Disseram-me que só a capital oferece ainda resistência aos Datianos.

Seth virou as fatias de bacon com uma faca comprida. -É naas­hanita?

Não, mas fui criado lá. Disseram-me que a Rainha Bruxa ia enviar um exército para

nos ajudar. Nunca veio. O homem barbudo empurrou o bacon para a borda da frigideira

grande. Trouxe da despensa uma tigela com ovos e, um por um, abriu seis ovos. Três das gemas rebentaram, os centros dourados invadindo a mistura coagulada na frigideira.-Nunca fui grande cozinheiro­disse Seth, fazendo um esgar. -No entanto, vai saber bem. Umas galinhas excelentes. Confie em mim.

Skilgannon descontraiu e sorriu. -Há quanto tempo aqui está? -Faz doze anos este Verão. Não é um sítio mau, sabe?! As pes­

soas são simpáticas, e... antes da guerra.. . a estação tinha bastante movimento. Posrilhõc.•s t• via jant es . Eu próprio construí o dormitório. Numa alrum, rivt• urr dt· n•jc.·irar dientes. Vinte camas, cheias durante

um mês. Pt•IJS('Í qm· fi1ssc.· fkar rico.

<)()

-O que faria se fosse rico? Seth soltou uma gargalhada. -Não faço ideia, homem. Não tenho

gosto por requintes. Veja só que existia um bordel elegante em Mellicane que sempre ansiei experimentar. Havia lá uma mulher que cobrava dez Raq de ouro por uma única noite. É capaz de acreditar? Ela devia ser algo de muito especial.-Olhou para a confusão na fri-gideira. Bem, acho que está pronto.

Servindo a refeição em quatro escudelas de madeira, ele e Skilgannon levaram-nas para a zona de refeições e comeram em silêncio . .. depois de Braygan ter dito uma prece de agradecimento.

Quando terminaram, Seth reclinou-se na cadeira. -Para mim, foi o segundo pequeno-almoço do dia-disse. -Raios me partam se não me soube melhor do que o primeiro.

-Como vai sobreviver aqui sozinho? perguntou Braygan. -Tenho as minhas galinhas e sei caçar. Há também um pouco de

trigo perto. Safar-me-ei bastante bem ... se esta guerra acabar lá para o Verão. Então, as pessoas começarão a voltar. O negócio retomará.

-Não seria mais seguro ir para Mellicane? perguntou Braygan.

Seth olhou para o padre e sorriu. -Nenhum lugar é verdadeira­mente seguro numa guerra, meu jovem. Mellicane é uma cidade si­tiada. Se cair, a chacina será terrível. Veja o que aconteceu em Perapolis quando o Maldito a ocupou. Matou toda a gente, homens, mulheres, bebés de colo. Não, acho que vou ficar aqui na minha casa. Se me matarem, será num sítio que adoro.

Instalou-se um silêncio desconfortável. Braygan desviou o olhar. -Gostaria de lhe comprar algumas provisões, Seth - pediu

Skilgannon.

Durante os cinco dias que se seguiram, os viajantes deslocaram-se para noroeste, descendo sempre até vales luxuriantes e regiões arbo­rizadas baixas. A temperatura subiu bruscamente, e tanto Braygan como Rabalyn tinham cada vez mais dificuldade em avançar. O suor provocava comichão e ardor nas queimaduras de Rabalyn em processo de cicatrização, e Braygan, não acostumado a tanto exercício cons­tante, seguia com dificuldade, as suas pernas doridas. Esporadi­camente, era acometido de fortes cãibras nas barrigas das pernas e via-se obrigado a sentar-se até a dor passar.

Desta vez viram pouca gente, muito embora de onde em onde avis­tassem cavaleiros ao longe.

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Na manhã do sexto dia, chegaram às ruínas fumarentas de uma pequena quinta. Jaziam cinco corpos espalhados no solo. Os corvos banqueteavam-se com a carne morta. Braygan afastou Rabalyn da cena, enquanto Skilgannon se acercou do sítio onde estavam os corpos. Quando se aproximou, os corvos levantaram voo para perto e ficaram a aguardar.

Havia três adultos, um homem e duas mulheres, e duas raparigas pequenas. Skilgannon examinou o terreno à volta deles. A terra fora re­volvida pelos cascos de muitos cavalos, e era impossível saber quantos. Pelo menos vinte, calculou. Os corpos estavam todos próximos, por isso era provável que tivessem sido levados da casa e assassinados. Caso con­trário -se tivessem tentado fugir -haveriam sido mortos uns longe dos outros. Não havia indicação de que as mulheres tivessem sido vio­ladas. Estavam completamente vestidas. Skilgannon levantou-se. Um grupo de cavalaria entrara por ali, saqueara a quinta, depois assassinara a família que lá vivia. A seguir, a quinta fora incendiada. Skilgannon conseguia ver ao longe outras quintas. Não haviam sido incendiadas.

Indo ter com Braygan e Rabalyn, atravessou os campos arados em direcção à próxima casa de habitação. Fora abandonada.

-Por que é que mataram aquela família? -perguntou Braygan. -Um qualquer número de razões-respondeu-lhe Skilgannon.

-A mais provável será por semelhante acto espalhar o terror. Todas as outras famílias nesta zona, ao verem o fumo, e talvez mesmo pre­senciando as mortes, terão fugido. O meu palpite é que estão a obri­gar cada vez mais pessoas a procurar refúgio em Mellicane.

-Não compreendo. -Comida, Braygan. As guerras não se vencem derrotando ini-

migos num campo de batalha. Mellicane é uma cidade fortificada. Toda a gente precisa de comer. Se o número aumentar, então a comida esgotar-se-á mais rapidamente. Sem comida, não podem oferecer re­sistência a um exército. Talvez assim a cidade se renda, evitando-se a necessidade de um cerco prolongado.

Skilgannon deixou Braygan e Rabalyn numa casa de habitação abandonada, depois foi bater o terreno.

Havia poucos animais de quinta onde quer que fosse. Skilgannon viu dois porcos e várias Halinhas, mas os carneiros e o gado tinham sido levados, provavelmente para alimentar os exércitos que conver­giam para Mellicane.

Parando num poço, tirou um balde de água e bebeu abundante­mente.

Seth falara de um exército naashanita que era suposto ter vindo em auxílio do rei tantriano. Acabaria por vir, Skilgannon sabia, mas in­tencionalmente tarde de mais. Séculos antes, a Tantria, a Daria e Dospilis tinham pertencido ao império naashanita. A rainha queria de novo aquelas terras. Era melhor deixar três nações digladiarem-se primeiro, depois avançar e conquistá-las todas.

Sentou-se no muro do poço e desejou poder afastar-se, arranjar um cavalo e dirigir-se para norte em direcção a Sherak. Se o Templo dos Ressurreccionistas existia, encontrá-lo-ia, depois devolveria a vida à mulher com quem casara. -Quem me dera ter podido amar-te mais

-disse, em voz alta. Fechando os olhos, imaginou o rosto de Dayan, o seu cabelo dourado preso com arame de prata entrançado, o seu sor­riso radioso e ofuscante. Depois, sem qualquer aviso, surgiu outro rosto, o cabelo escuro comprido emoldurando feições de uma perfei­ção singular. Olhos negros fitaram os seus, e lábios cheios afastaram­-se num sorriso que lhe cortou o coração.

Skilgannon gemeu e endireitou-se bruscamente. Mesmo naquele momento não era capaz de imaginar Dayan sem invocar a lembrança de Jianna.

-Amas-me, Olek?-perguntara Dayan, na noite do casamento deles.

-Quem seria capaz de não te amar, Dayan? És tudo o que um homem pode desejar.

-Amas-me de todo o teu coração? -Tentarei fazer-te feliz, e não tomarei mais esposas nem concu-

binas. É a promessa que te faço. -O meu pai avisou-me sobre ti, Olek. Disse que estavas apaixo­

nado pela rainha. Que todos os homens o sabiam. Deitaste-te com ela? -Nada de perguntas, Dayan. O passado já lá vai. O futuro é

nosso. Esta é a nossa noite. Os criados saíram, a lua está brilhante e tu és a mulher mais bela em todo o mundo.

Os seus pensamentos foram interrompidos pelo som de cascos de cavalos. Olhando para oeste, viu três cavaleiros que se aproximavam. Eram soldados, ostentando os penachos brancos nos seus elmos. Skilgannon não se mexeu quando se acercaram. Traziam pequenos es­cudos redondos singelos, e não conseguiu identificar a que exército pertenciam.

O cavaleiro da frente, um homem alto com uma barba loura rala, puxou as rédeas. Não disse nada, mas olhou para Skilgannon com olhos azuis frios. Os seus camaradas vieram colocar-se ao lado dele,

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aguardando ordens. -É desta aldeia? -perguntou o líder, após mais alguns momentos de silêncio. A voz era baixa, com uma ligeira gu­turalidade nos erres que sugeria o leste. Provavelmente datiano, pen­sou Skilgannon.

-Estou de passagem. -Nesse caso, um refugiado? -Ainda não.

O que significa isso? -Significa que não vejo motivos para fugir e esconder-me. Pode

dar de beber à vontade aos cavalos. Surgiu uma certa raiva nos olhos do cavaleiro. Sou livre de dar

de beber aos meus cavalos. Não preciso que me dê permissão. -Pertence ao grupo que assassinou o agricultor e a sua família? indagou Skilgannon, indicando a casa de habitação enegrecida.

O homem reclinou-se na sua sela, cruzando as mãos sobre o botão do punho da espada, feito de chifre. Está muito calmo,

forasteiro. -Estou apenas a apreciar o sol e a beber água de um poço. Não

estou em guerra com ninguém. -Todo o mundo está em guerra -ripostou um dos cavaleiros,

um jovem imberbe com cabelo preto comprido, bem preso em duas tranças.

-A Tantria não é o mundo ripostou Skilgannon. É apenas

uma pequena nação. -Quer que o mate, senhor?- perguntou o cavaleiro, olhando

para o guerreiro louro. Os olhos do homem aguentaram a contem­plação de Skilgannon.

Não. Dá de beber aos cavalos disse ele, desmontando e

soltando a correia da sela. Skilgannon afastou-se deles e sentou-se em silêncio no muro de vedação. O líder, deixando o seu cavalo com o ca­valeiro de cabelo preto, avançou para junto dele. De onde é? -inquiriu.

Do suL Para onde vai? Mellicane.

-A cidade cairá. -Espero que tenha razão. Não ficarei lá muito tempo. O cavaleiro sentou-se no muro de vedação e olhou na direcção da

casa fumegante. - Eu não vinha com aquele grupo - disse. Muito embora pudt•sse vir. O que o leva a Mellicane?

-Estou a acompanhar um padre que deseja tomar ali os seus votos, e um rapaz que procura os pais perdidos.

-Nesse caso, não é um mensageiro naashanita? -Não. -Vejo que ostenta a aranha no seu braço. Costume naashanita,

não é?

-Sim. Servi a rainha durante uma série de anos. Agora já não. -Tem consciência de que o devia matar ou levar de volta para o

nosso acampamento? -Não vem acompanhado de homens suficientes para o tentar -

afirmou Skilgannon, calmamente. -Senão era exactamente o que faria. O cavaleiro sorriu. -Pois era. Quer explicar-me como é que um

guerreiro como você se envolveu numa missão tão insignificante? -Foi um homem para com quem estava em dívida que me pediu.

-Ah, estou a ver. Um homem deve honrar sempre as suas dívi-das. Não somos nada sem honra. Fala-se de um exército naashanita que se prepara para nos atacar. Acha que o boato tem fundamento?

Skilgannon olhou para o homem. Sabe que tem. Sim - murmurou o soldado, com pesar. -A Rainha Bruxa

fez de nós todos parvos. Juntos podíamos tê-la enfrentado. Agora, os nossos exércitos estão mais do que dizimados. E para quê? A Datia e Dospilis juntas não são suficientemente fortes para enfrentar a Tantria. Dentro de quanto tempo é que acha que eles virão?

-Assim que Mellicane cair -disse Skilgannon. É apenas um palpite. Agora não tenho contacto com o Naashan.

O soldado espreguiçou-se, depois pôs-se em pé e voltou a colocar o elmo com o penacho de crina de cavalo. Prendeu a tira debaixo do queixo, a seguir estendeu a mão a Skilgannon. Boa sorte na sua missão, Naashanita.

Skilgannon desceu do muro e aceitou o aperto de mão. O cavaleiro agarrou-o com força. Depois a sua mão esquerda saiu repentinamente de trás das costas. Um punhal de lâmina fina veio na direcção da gar­ganta de Skilgannon. Em vez de tentar esquivar-se, Skilgannon ati­rou-se para a frente, a sua testa batendo na cana do nariz do cavaleiro. O punhal que lhe era dirigido não atingiu a garganta de Skilgannon, a lâmina causou um golpe superficial na pele da parte de trás do pes­coço. Agarrando ainda a mão direita do cavaleiro, Skilgannon rodou para a esquerda, levantando o braço preso e torcendo-o. O cavaleiro gritou de dor. Skilgannon libertou-o, pulou para trás e puxou das Espadas da Noite e do Dia.

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Os outros dois soldados acorreram, de espadas desembainhadas. O seu capitão levantou-se.

É um hábil lutador, Naashanita. Apercebe-se de que tive de for­jar a tentativa de o matar? Os meus homens teriam participado de mim se o tivesse simplesmente deixado partir. Sem ressentimentos, hein?

-É um homem estúpido-disse-lhe Skilgannon, a sua voz tre­mendo da raiva reprimida. -Não desejava matá-lo. Podia ter vivido. Os seus homens podiam ter vivido. Mesmo enquanto falava, avan­çou. O primeiro dos soldados (o jovem de cabelo preto entrançado) con­seguiu esquivar-se ao golpe da lâmina dourada, mas a espada de prata abriu-lhe a garganta até ao osso. O segundo soldado atacou ... apenas para que o seu peito fosse espetado por uma única estocada. Skilgannon retirou a lâmina e recuou enquanto o corpo tombava na direcção dele.

O líder pôs-se em pé e recuou. Skilgannon limpou as lâminas e embainhou-as. Depois olhou para o cavaleiro. Lentamente, o homem puxou do seu sabre de cavalaria.

-Lutei durante anos para pôr esta torpeza atrás das costas -afir­mou Skilgannon. - Um homem como você não pode compreender quão difícil foi.

-Tenho mulher e filhos -disse o homem. -Não quero mor­rer. Não aqui. Não tão inutilmente.

Skilgannon suspirou. - Então vá-se embora - disse-lhe. -Ficarei com os seus cavalos. Quando mandar homens atrás de nós, há muito que teremos partido. Dito aquilo, passou pelo cavaleiro, di­rigindo-se para as montadas que aguardavam.

Por um momento, pareceu que o cavaleiro o deixava ir-se embora. Depois, vendo as costas de Skilgannon, ergueu o sabre e precipitou­-se. Skilgannon virou-se. Um círculo brilhante de metal serrilhado rasgou a garganta do cavaleiro. O sangue jorrou da ferida. O cavaleiro engasgou-se e cambaleou, caindo de joelhos.

Tacteando com os dedos, tentou fechar a ferida. Skilgannon pas­sou por ele, apanhou o círculo de aço, depois voltou a ajoelhar-se junto ao homem moribundo. O cavaleiro tombado começou a tremer vio­lentamente, depois arfou pela última vez e morreu.

Skilgannon limpou a arma de aço na manga do morto, depois levantou-se e encaminhou-se para os cavalos.

-Parece-me muito triste-disse Rabalyn, vindo sentar-se diante de Braygan à mesa do jantar. A casa abandonada estava sombria, como se ansiasse pelas pessoas que a tinham abandonado por receio.

- Estou triste, Rabalyn. Custa-me ver tamanha violência. Aquelas pessoas da família lá atrás não eram soldados. Produziam cereais e amavam-se. Não consigo compreender como é que se cometem se­melhantes actos de maldade.

Rabalyn não disse nada. Matara Todhe, e matar era mau. Mesmo assim, sabia agora como começavam tais actos. A raiva, a dor e o medo tinham-no impelido ao assassínio de Todhe. E o próprio Todhe ficara furioso com ele, por isso é que pegara fogo à casa. Perdido em pensa­mentos, Rabalyn ficou sentado em silêncio à mesa.

Braygan relanceou a sala grande. Fora cuidadosamente construí­da, originalmente com toros, mas as paredes interiores tinham sido estucadas. O chão era de barro prensado, mas alguém gravara dese­nhos nele, espirais e círculos que haviam sido salpicados com barro vermelho em pó, criando padrões carmesim. Tudo na sala exsudava carinho e amor. A mobília não fora feita por um carpinteiro habili­doso, mas talhada e adornada por alguém que se esforçara bastante por dominar as técnicas; alguém desejoso de acrescentar pequenos toques individuais às peças. Uma rosa rosca fora esculpida na parte de trás de uma das cadeiras, e o que poderia ter sido uma espiga de milho fora começado noutra. Uma família tentara viver aqui, en­chendo a sala de provas do seu amor. Tinham sido gravadas iniciais na viga por cima da lareira. Acho que iria gostar das pessoas que aqui viviam, Rabalyn disse.-Espero que estejam em segurança.

Rabalyn anuiu, mas permaneceu calado. Não conhecia aquelas pes­soas e, para ser sincero, não lhe interessava muito se estariam seguras ou não. Levantando-se, deambulou pela casa, procurando qualquer comida que pudesse ter sido deixada ficar. Encontrou, numa despensa funda, recipientes de cerâmica com rolhas de cortiça. Tirando uma delas, es­preitou lá para dentro. Estava cheio de meL Rabalyn mergulhou o dedo e lambeu-o gananciosamente. A doçura sedosa na sua língua era mais do que deleitante. A Tia Athyla usava mel no pão, mas o petisco prefe­rido de Rabalyn era torrar pão duro sobre o fogo, a seguir barrá-lo com mel. Encontrando uma colher de pau, Rabalyn sentou-se na cozinha e comeu várias colheradas. Passado um bocado, a doçura começou a enjoar na sua língua. Pondo de lado o pote, veio até ao poço e retirou um balde de água. Bebendo abundantemente, libertou-se do travo açucarado.

Viu então o Irmão Lantern a cavalgar em direcção à casa. Trazia outros dois cavalos.

Foi ao encontro do guerreiro. Os cavalos pareciam enormes, muito diferentes dos póneis peludos que vira lá em Skepthia. Rabalyn afas-

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tou-se quando eles passaram. Erguiam-se muito acima dele e estendeu a mão para acariciar o flanco do mais próximo. O seu pêlo castanho re­luzia e os seus músculos vigorosos agitavam-se debaixo da sua mão.

O Irmão Lantern passou por Rabalyn sem dizer uma palavra e desmontou junto à casa, prendendo os cavalos a um poste. Rabalyn seguiu-o quando entrou lá dentro. Braygan ergueu o olhar. - Des­cobriu mais algumas vítimas? - indagou.

- Não. Temos cavalos. Sabe montar? -Uma vez andei num pónei à volta de um cercado. - Isto não são póneis. São cavalos de guerra, altamente treinados

e inteligentes. Esperam de si igual inteligência. Venha até lá fora. Não será seguro permanecer aqui muito tempo, mas iremos arriscar um curto período de treino.

Acho que preferia caminhar - disse Braygan. - Estão lá atrás três Datianos mortos - afirmou o guerreiro -,

e eles serão descobertos não tardará muito. A marcha deixou de ser uma opção. Siga-me.

Uma vez lá fora, fez sinal a Rabalyn, e ajudou-o a montar o cavalo castanho castrado que acariciara momentos antes. - Tira os pés dos estribos- ordenou o Irmão Lantern. Rabalyn obedeceu, olhando para baixo enquanto o guerreiro ajustava a altura de cada estribo.- Segura as rédeas com cuidado. Lembra-te de que a boca do cavalo é sensível, por isso nada de sacões nem de puxões selvagens. - Afastou o cavalo dos outros, depois olhou para Rabalyn. - Não te agarres com as per­nas. Senta-te à vontade. Agora limita-te a caminhar com ele durante um bocado. - Largando o freio, Skilgannon voltou para o sítio onde Braygan ficara.

- Estes cavalos não gostam de mim - observou Braygan. -Isso é porque está aí de pé a olhar para eles. Venha cá. Faça mo-

vimentos lentos e descontraídos. - Ajudou o padre a montar, depois ajustou-lhe os estribos, repetindo o conselho que dera a Rabalyn.

Por fim, o Irmão Lantern subiu com facilidade para a sela de um cavalo cinzento castrado e veio colocar-se entre os dois aprendizes ner­vosos. - O cavalo tem quatro andaduras - declarou -: passo, trote, meio galope e galope. O passo, como estamos a fazer agora, é simples. Basta sentarem-se ligeiramente na sela. O trote não é tão simples. O ca­valo entrará no que se chama uma andadura a dois tempos.

O que é que isso quer dizer?- perguntou Braygan. O cavalo saltará de um par de patas diagonalmente oposto para

outro. Esquerda dianteira c direita traseira, depois direita dianteira e

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esquerda traseira. Isto criará um efeito de salto e os vossos traseiros baterão repetidamente até aprenderem a deslocar-se segundo o ritmo. Mantenham-se elevados na sela. Não se curvem.

Passaram uma hora nos descampados por detrás da casa de habita­ção. Rabalyn aprendeu rapidamente e, a dada altura, até pôs a sua montada a andar a meio galope por um breve instante. Para Braygan todo o exercício foi um pesadelo.

Se eu amarrasse um morto à sela, ele mostrada mais ritmo do que você - censurou o guerreiro. O que se passa consigo?

Estou assustado. Não quero cair. Tire os pés do estribo. Braygan assim fez. - Agora solte as

rédeas. Mais uma vez Braygan lhe obedeceu. O Irmão Lantern bateu as palmas de repente e soltou um grito. O cavalo de Braygan empinou-se, depois irrompeu numa corrida. O movimento foi tão repentino que o padre caiu para trás, dando um salto mortal antes de embater na terra macia. Trémulo, pôs-se em pé. Pronto - disse o guerreiro.- Agora já caiu. Como sempre, o receio não correspon­deu à realidade.

Podia ter-me partido o pescoço. É verdade. A única certeza quando montamos, Braygan, é que,

a dada altura, iremos cair. É um facto. Outro facto que talvez lhe agrade considerar, na sua vida de perpétuo terror, é que irá morrer. Todos vamos morrer, alguns de nós jovens, alguns de nós velhos, al­guns de nós enquanto dormimos, alguns de nós gritando em agonia. Não o podemos impedir, mas podemos apenas retardá-lo. E agora está na hora de partirmos. Gostaria de chegar àquelas colinas distantes ao final do dia. Podemos procurar um local para acampar debaixo das ár­vores.

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CAPÍTULO 6

Rabalyn apreciou o passeio de cavalo daquele dia mais do que era

capaz de exprimir. Sabia que sempre o recordaria com enorme afecto. Se tivesse a sorte de chegar a velho, iria lembrar-se daquele dia como

um dos grandes dias determinantes da sua vida. Era preciso esforço para não deixar o cavalo tomar o freio nos dentes e partir a uma ve­locidade feroz na direcção das colinas distantes. Enquanto ia sentado

na sela, sentia o poder do animal por debaixo de si. Era amedrontante.

Seguindo as instruções que o Irmão Lantern lhe dera, conversou com

o animal, mantendo a voz baixa e calma. As orelhas do cavalo vira­

vam-se para trás quando ele falava, como se escutasse e compreendesse.

Rabalyn deu-lhe palmadas no pescoço lustroso. A dada altura, puxou

as rédeas e deixou que os outros seguissem por um bocado, depois,

esporeou suavemente o cavalo para uma corrida. Foi tomado de satis­fação quando se acomodou na sela, adaptando o seu ritmo para que não houvesse ressaltos dolorosos. Ele e o cavalo eram um só- e eram

rápidos e fortes. Ninguém os conseguiria apanhar.

Quando se aproximou, os outros tentaram refreá-lo. Mas o cavalo

seguia agora a todo o galope e passou por eles, ignorando as suas

ordens. Mesmo então, com o cavalo disparado, Rabalyn não sentiu

medo. Percorria-o uma excitação selvagem. Puxando as rédeas,

começou a gritar: - Calma, rapaz. Calma! - O cavalo pareceu cor­rer ainda mais depressa.

O cavalo cinzento do Irmão Lantern surgiu a galopar a seu lado. -

Não puxes as rédeas, rapaz - gritou. - Só lhe tolherá a boca. Vira­

-o suavemente para a direita. Quando ele o fizer, continua a aplicar puxões delicados nas rédeas. - Rabalyn seguiu as indicações.

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Lentamente, o cavalo começou a inclinar para a direita. Abrandou para

um meio galope e depois um trote. Por fim, com um puxão extrema­

mente delicado, o animal parou, atento e à espera da instrução seguinte.

-Muito bem- disse o guerreiro, refreando a alguma distância

de Rabalyn. - Darás um excelente cavaleiro. - Por que é que ele disparou? Estava assustado com alguma coisa?

- Sim, mas ele não sabe disso. Tens de compreender, Rabalyn, que

um cavalo à solta usa a sua velocidade para evitar o perigo. Quando o puseste a galope, apoderaram-se dele lembranças ancestrais. Ele es­tava a correr depressa, por conseguinte, estava em perigo. O pânico

pode instalar-se muito rapidamente num cavalo. É por isso que o ca­

valeiro tem de estar sempre controlado. Quando ele irrompeu naquela

corrida, tu relaxaste e deixaste-o à vontade. Assim, entregue aos seus

próprios mecanismos, ele entrou em pânico. - Foi uma sensação maravilhosa. Ele é tão rápido. Aposto que

podia ter sido um cavalo de corrida.

- Ele é um cavalo de batalha - disse o homem, com um sorriso -, assustadiço e um pouco nervoso. Um puro-sangue ventriano ar-

rumá-lo-ia uma corrida plana. Num campo de batalha, o ventriano estaria em desvantagem. Não tem tanta mobilidade e a sua rapidez pode ser um estorvo. Mas, sim, ele é uma excelente montada para um

jovem num descampado. - Deveria dar-lhe um nome, Irmão Lantern? -Trata-me por Skilgannon. E, sim, podes chamar-lhe o que qui-

seres. Se o tiveres por tempo suficiente, ele acabará por reconhecê-lo.

Braygan aproximou-se deles num estranho trote, o jovem padre a

saltar na sela, agitando os braços. -Alguns homens não foram fei­tos para montar- comentou Skilgannon à boca pequena. - Começo

a sentir pena daquele cavalo.

Dito aquilo, virou a sua montada e continuou a avançar na direc­

ção das colinas. Ao final da tarde, subiam cada vez mais pelas colinas arborizadas.

Através de intervalos nas árvores, Rabalyn conseguiu ver uma planí­

cie vasta por debaixo deles a noroeste. Viu igualmente colunas de pes­soas em marcha e, esporadicamente, tropas montadas. Estavam demasiado distantes para serem identificadas como amigas ou inimi­

gas. Rabalyn não estava interessado no que eram. O seu .cavalo era mais veloz do que o vento de Inverno.

Naquela noite , acamparam junto à base de um penhasco. Skilgannon não deixou acender uma fo�ueira, mas a noite estava

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quente e agradável. Após uma inspecção aos alforjes das selas, encon­traram duas escovas com cabo de madeira e Skilgannon mostrou a Braygan e Rabalyn como desselar as montadas e depois escová-las. Por fim, conduziu os cavalos até alguma distância dali, onde a erva era es-

, pessa e verde. Depois, com cordas curtas também dos alforges das selas, peou-os e deixou-os pastar.

Braygan estava a queixar-se das pernas doridas e do traseiro equimoseado, mas Skilgannon não lhe deu atenção, e não tardou a que o jovem padre se embrulhasse num cobertor e instalasse para dormir. O céu nocturno estava limpo, as estrelas brilhando com in­tensidade. Skilgannon afastou-se um pouco do acampamento e sen­tou-se sozinho. Normalmente, Rabalyn não o incomodava, mas o homem falara-pela primeira vez -de forma simpática depois de o cavalo de Rabalyn disparar. Assim, com um certo receio, Rabalyn aproximou-se do sítio onde o guerreiro estava sentado. Quando se acercou, Skilgannon fitou-o. O seu olhar era mais uma vez frio e dis­tante.

-Queres alguma coisa? -Não respondeu Rabalyn, virando costas imediatamente. -Vem fazer-me companhia, rapaz-disse Skilgannon, a sua voz

mais branda. -Não sou o agre que aparento. Parece estar sempre muito zangado. Não deixas de ter razão concordou Skilgannon. Senta-te.

Vou tentar não ser brusco contigo.-Rabalyn sentou-se no solo, mas não lhe ocorreu nada para dizer. O silêncio manteve-se e, no entanto, Rabalyn achou-o confortável. Olhou para o guerreiro. Já não parecia tão atemorizante.

-É difícil ser monge? indagou, passado um bocado. -É difícil ser rapaz? -contrapôs Skilgannon. -Muito. -Temo que essa resposta pudesse ser dada por qualquer homem,

em qualquer posição. A própria vida é difícil. Mas, sim, achei-a par­ticularmente difícil. Os estudos foram bastante fáceis, e relativamente agradáveis. A filosofia, em contrapartida, era estranhamente impene­trável. Fomos instruídos para amar o que não pode ser amado.

Como é que isso se faz? -Estás a perguntar ao homem errado. -Isso no seu pescoço r sangue? -inquiriu Rabalyn. -Um arranhão d<• um idiota. Não é nada. - O que timi quundo chegar a Mellicane?

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Skilgannon olhou para ele, depois sorriu. Partirei o mais de-pressa possível.

-Posso ir consigo? -E os teus pais? -Eles não se preocupam comigo. Nunca se preocuparam, na ver-

dade. Eu só disse que estava à procura deles para não me deixar para trás.

Ah -comentou Skilgannon. Muito sensato ... teria feito o mesmo.

E o que vai fazer agora que deixou de ser monge? És um poço de perguntas, Rabalyn. Não estás cansado depois

de um dia na sela? -Um pouco, mas é muito tranquilo estar aqui. Então, o que vai

fazer? - Dirigir-me para norte, rumo a Sherak. Existe lá um templo ...

ou talvez possa existir. Não sei. Mas irei procurá-lo. E tornar-se novamente monge?

- Não. Algo ainda mais louco. O quê?

- É segredo -disse Skilgannon, baixinho. -Todos os homens devem ter pelo menos um segredo. Talvez um dia te conte. Mas agora, vai dormir. Preciso de pensar.

Rabalyn pôs-se em pé e voltou para junto de Braygan. O jovem padre ressonava baixinho. Rabalyn deitou-se, apoiando a cabeça no braço.

E sonhou que cavalgava pelas nuvens no dorso de um cavalo dou­rado.

Skilgannon viu o rapaz afastar-se e, pela primeira vez em muitas semanas, instalou-se uma sensação de paz na sua alma atormentada. Não fora muito diferente de Rabalyn. Quando jovem, a sua mente es­tivera também cheia de perguntas, e o pai raramente se encontrava em casa para lhes responder. Por que é que os homens travavam guer­ras? Por que é que algumas pessoas eram ricas e outras pobres? Se havia um deus grande a zelar pelo mundo, por que é que surgiam doenças? Porque é que as pessoas morriam tão desnecessariamente? A mãe morrera de parto, ao dar à luz uma filha doente. Skilgannon tinha sete anos. A bebé seguira-a dois dias depois. Estavam enterra­das na mesma sepultura. Então -tal como agora -, Skilgannon não obtivera resposta às suas pt·rguntas.

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Estava cansado e, no entanto, sabia que o sono não viria. Esten­dendo-se na terra macia, ficou deitado de costas, os braços atrás da ca­beça, as mãos a servir de apoio ao pescoço. As estrelas brilhavam com intensidade, e a lua estava em quarto crescente. Fez-lhe lembrar o brinco que Greavas usava. Sorriu ao recordar aquele homem triste e estranho, e relembrou as noites de Inverno em que Greavas se sentava junto à lareira e tocava a sua lira, cantando canções e baladas sobre dias gloriosos já idos. Tinha uma voz suave e aguda, que lhe fora útil nos seus tempos de actor, fazendo o papel da heroína.

-Por que é que eles não põem as mulheres a fazer de homens? -quisera saber Skilgannon, o rapaz.

- É inapropriado as mulheres representarem em público, meu querido. E se o fizessem, o que teria sido da minha carreira?

-E o que foi feito dela? -perguntara o rapaz de onze anos. -Disseram que eu era demasiado velho para representar o papel

principal, Olek. Olha para mim. Quantos anos aparento? -É difícil dizer -respondera o rapaz.

-Eu ainda podia passar por vinte e cinco, não achas? - A excepção dos olhos -dissera o rapaz. -Os teus olhos pa-

recem mais velhos. -Nunca peças a uma criança que te lisonjeie - ripostara

Grcavas. -Seja como for, desisti das casas de espectáculo. Decado contratara Greavas para ensinar Skilgannon a dançar.

O rapaz ficara horrorizado. -Porquê, Pai? Quero ser um guerreiro como tu. -Então aprende a dançar -dissera-lhe Decado, numa rara vi-

sita a casa. Skilgannon ficara furioso. -Todos os meus amigos se riem de

mim. E de ti. Dizem que trouxeste um homem-mulher para viver contigo. As pessoas vêem-:no a andar comigo nas ruas e gritam in­sultos.

-Calma aí, rapaz. Uma coisa de cada vez-disse Decado, o seu semblante carregado. - Primeiro a dança. Se queres ser um esgri­mista, precisarás de equilíbrio e coordenação. Não existe melhor maneira de o conseguir do que aprendendo a dançar. Greavas é um dan,arino brilhante e um excelente professor. Ele é o melhor. Contrato st•mprt· os nwlhores. Quanto ao que dizem os teus amigos, por que huvt•dumos dt' nos preocupar com isso?

Mus t'/1 prt'ocupo-me.

I 0·1

- Isso é por seres jovem, e existe imenso orgulho tolo nos jovens. Greavas é um bom homem, e não toleraremos insultos aos nossos

am1gos. -Por que é que tem amigos tão estranhos? Causa-me embaraço. -Quando falas assim, isso causa-me embaraço. Escuta-me, Olek.

Haverá sempre homens que escolhem os amigos por razões de ascen­são, quer social, militar ou política. Dir-te-ão para evitares a compa­nhia de um certo homem porque ele não é muito apreciado, ou a sua família é pobre. Ou, na verdade, porque a sua vida é vivida de uma maneira que as outras pessoas acham inapropriada. Como soldado, julgo os meus homens pelo que são capazes de fazer. Pela coragem que têm. Quando se trata dos amigos, tudo o que interessa é se gosto deles. Se não o fizeres, será muito mau. Gosto de Greavas. Acho que também irás gostar dele. Não deixarás de aprender a dançar. E espero que tomes o partido dele perante os teus amigos.

-Não me restarão amigos se ele ficar-ripostou o rapaz de onze anos.

- Nesse caso, não terás perdido nada que valha a pena. Os ver­dadeiros amigos ficam contigo, independentemente do escárnio dos

/ outros. Verás. As semanas que se seguiram foram difíceis. Aos onze anos, o res­

peito dos pares era tudo para ele. Respondeu à mofa e à zombaria com os punhos, e em breve apenas Askelus continuava a ser seu amigo. O rapaz que ele mais admirava, Boranius, de treze anos, tentara chamá-lo à razão.

-Um homem é avaliado pelos que o acompanham, Olek -disse, uma tarde, na zona de preparação física. -Agora as pessoas pensam que és um catamito, e que o teu pai é um pervertido. A rea­lidade é irrelevante. Tens de decidir o que importa mais para ti: a ad­miração dos teus amigos, ou a lealdade de um criado.

Com aquela tenra idade, Skilgannon ansiava por ser capaz de om­brear com os seus pares. No entanto, a pessoa mais importante na sua jovem vida era o pai, a quem amava. - Também vou perder a tua amizade, Boranius?

-A amizade tem as suas responsabilidades, Olek. De parte a parte. Um amigo verdadeiro não gostaria de me colocar numa posi­ção susceptível de escárnio. Se me pedes para ficar a teu lado, então é claro que ficarei.

Skilgannon não lhe pedira, e passou a evitar a companhia do jovem

atleta.

10)

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Askelus ficara. De olhos negros e macambúzio, não comentara a situação. Ia a casa de Skilgannon, e seguiam juntos a pé para a escola.

-Não tens vergonha de ser visto comigo? - perguntou Skil-gannon um dia.

- Por que haveria de ter? -Todos os outros têm.

- Também nunca gostei muito deles. - Foi então que Skil-gannon descobriu que (para além da perda de Boranius) sentia o mesmo. Verificou também que o pai tinha razão; começou a apreciar e gostar de Greavas. E isto apesar do tom escarninho do homem du­rante as aulas de dança. Resolvera principiar a chamar «Hipo» a Skilgannon.

-Possuis toda a graciosidade inerente a um hipopótamo, Olek. Ia jurar que tens dois pés esquerdos.

Estou a fazer o melhor que posso. -Infelizmente, acredito que é verdade. Tinha esperanças de que

concluísses os estudos no Verão. Agora vejo que assumi um compro­misso para toda a vida.

Todavia, semana após semana Skilgannon foi melhorando, e os exercícios que Greavas lhe deu fortaleceram-lhe as pernas e a parte su­perior do corpo. Não tardou a conseguir saltar e rodopiar e aterrar em perfeito equilíbrio. A dança aperfeiçoou também a sua velocidade, e venceu duas corridas na escola. A última foi a sua maior alegria, porque o pai estava lá para o ver, e venceu Boranius na corrida dos oitocentos metros. Decado ficara encantado. A alegria de Skilgannon foi atenuada pelo facto de o Boranius, mais velho, ter corrido com o tornozelo todo entrapado, na sequência de uma lesão ocorrida na se­mana anterior.

Naquela noite, Decado partira mais uma vez para as fronteiras de Matapesh, e Skilgannon ficara sentado na companhia de Greavas nos jardins virados a poente. Dois criados tinham-se-lhes reunido: Sperian e a mulher, Molaire, que serviam Decado fazia agora cinco anos. Molaire era uma mulher grande, de meia idade, com olhos brilhan­tes e cabelo castanho avermelhado, apresentando algumas cãs. Constantemente bem-disposta, costumava, em ocasiões como esta, conversar sobre as flores e as aves de cores garridas que nidificavam nas árvores floridas. Sperian, que cuidava dos jardins, sentava-se em silêncio a olhar para us flores e os carreiros, avaliando quais as zonas a podar, t· ondt· dispor as novas plantas. Skilgannon apreciava estes finais dt• dia dt• mmpanhia tranyuila.

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Nesta noite, Sperian teceu comentários à medalha que Skilgannon usava. - Foi uma corrida boa? - perguntou.

O Boranius tinha um pé magoado. Caso contrário, ter-me-ia

vencido. - É uma bela fita-opinou Molaire. -Um azul muito bonito.

Acho que ele não está preocupado com a cor da fita, minha cara

referiu Greavas. - A sua mente está na vitória, e na derrota dos

adversários. O seu nome passará a constar de um escudo pendurado

nos salões da escola. Olek Skilgannon, Vencedor.

Skilgannon ruborizara-se intensamente. Um pouco de orgulho não tem mal - referiu Sperian, de mansinho. - Desde que não te deixes levar por ele.

- Ganhei um prémio uma vez disse Greavas. -Há dez anos. Estava a representar a donzela, Abrurenia, em O Leopardo e a Harpa. Uma peça maravilhosa. Um texto cómico no seu melhor estilo.

Eu vi essa-disse Molaire.-Anos mais tarde, em Perapolis. Muito divertida. No entanto, não me lembro de quem fazia de Abturenia.

Foi Castenpol informou Greavas. -Não estava mal. A pres-

tação foi um pouco hesitante. Eu teria feito melhor. Sperian soltou uma risada abafada. É suposto Abrurenia ter

catorze anos. - E? - ripostou Greavas. -Tu tens quarenta ... no mínimo.

- Homem cruel! Tenho trinta e um. - Como queiras replicou Sperian, com um sorriso afectado. - Alguma vez me viste representar? - perguntou Greavas, vi-

rando-se para Molaire. -Oh, sim. Foi da segunda vez que saímos, não foi, Sperian?

Fomos ver uma peça no Taminus. Algo sobre uma princesa raptada e o filho errante do rei que a salva.

- O Elmo Dourado - disse Greavas. - Um papel difícil de re­presentar. Todos aqueles gritos e prantos. Recordo-me. Eu tinha uma magnífica peruca, mandada fazer propositadamente para mim. Representámos quarenta noites seguidas, sempre com a casa cheia. O velho rei veio cumprimentar-me pessoalmente. Disse que eu era o melhor papel feminino principal que alguma vez vira.

-Nada mau para alguém com dois anos -observou Sperian, pis­cando o olho a Skilgannon. - Já que faz vinte e nove anos esta Primavera.

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Deixa o pobre homem em paz -pediu Molaire. Ele não precisa das tuas provocações.

Sperian olhou para Greavas. -Provoco-o porque gosto dele, Mo -afirmou, e o assunto morreu ali. Greavas sorriu e foi buscar a sua , lira.

Skilgannon recordava com frequência aquela noite. Fazia calor, havia um perfume a jasmim no ar. Trazia a medalha de vencedor ao pescoço, e estava com pessoas que gostavam dele. Ia começar um novo ano, e o futuro parecia risonho e cheio de esperança. As vitórias do pai contra as forças de Matapesh e Panthia tinham trazido paz às ter­ras centrais do Naashan, e tudo estava bem no mundo.

Olhando agora para trás, com os olhos enfraquecidos da idade adulta, estremeceu.

Onde há alegria surgirá sempre o desespero.

Skilgannon deslocava-se numa floresta escura. Sentia as pernas pesadas e cansadas. O perigo espreitava. Sentia-o. Parou. Ouviu um som furtivo de algo

a avançar pela vegetação rasteira. Soube então que era o Lobo Branco. O medo invadiu-o, e o seu coração agitou-se em pânico. As árvores esta­

vam agora silenàosas. Nem um sopro de vento se agitava na floresta. Quis puxar das espadas. Quase as conseguiu sentir a chamá-lo. Cerrando os pu­nhos, procurou reprimir o terror. «Enfrentar-te-ei sem as espadas!» gritou. «Mostra-te!»

Naquele momento, sentiu o seu bafo quente nas costas. Com um grito, virou­-se. Por um momento, captou apenas um vislumbre de pêlo branco. Depois de­sapareceu -e apercebeu-se de que as Espadas da Noite e do Dia estavam mais uma vez nas suas mãos. Não se lembrava de ter puxado delas. Chegou então uma voz até ele -como se de muito longe. Reconheceu-a como o rapaz, Rabalyn.

Skilgannon abriu os olhos. -Está bem? -perguntou Rabalyn. Skilgannon sentou-se e respirou fundo. -Estou óptimo.

Foi um pesadelo?

Mais ou menos. - O céu estava pálido com a alvorada, e Skilgannon sentiu um arrepio. O orvalho passara através das suas rou­pas. Levantou-se e espreguiçou-se.

-Eu tive bons sonhos - disse Rabalyn, todo bem-disposto. -Sonhei que percorria as nuvens num cavalo dourado.

Skilgannon atravessou o terreno aberto até ao sítio onde Braygan estava a prl·parar uma ti:>�ueira. É melhor ir para debaixo daquela

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árvore aconselhou Skilgannon. -Os ramos dispersarão o fumo.

Certifique-se de que a lenha está seca. -Resta muito pouca comida anunciou Braygan. -Talvez de-

vêssemos procurar hoje uma aldeia. O pequeno padre parecia can-sado e preocupado, e as suas vestes azuis estavam agora imundas. Começava a despontar-lhe uma barba no queixo, muito embora as faces estivessem ainda macias e sem pêlos.

-Duvido de que encontremos alguém vivo numa aldeia tão pró­xima da guerra. Aperte o cinto, Braygan.

Skilgannon pegou na sua sela e levou-a para o sítio onde os cava­los estavam amarrados. Limpando o dorso do seu cavalo castrado cin­zento, colocou-lhe o freio e selou-o. Quando montou, o cavalo deu vários coices e saltos precipitados, sacudindo os ossos de Skilgannon. Rabalyn soltou uma gargalhada.

-Eles não fazem todos isso, pois não?-inquiriu Braygan, cheio de nervosismo.

-Não coma demasiado-aconselhou Skilgannon.-Vou bater o terreno e voltarei dentro de uma hora.

Esporeando o cavalo, afastou-se dos outros dois. Na verdade, ficou aliviado por estar sozinho e ansiou pelo momento em que se separaria de vez deles. A quilómetro e meio do acampamento, desmontou mesmo por debaixo do cimo de uma colina alta. Deixando o cavalo a arrastar as rédeas, avançou sorrateiramente até ao cimo e observou os campos lá em baixo. Havia um vale arborizado, mas conseguia ver uma faixa de estrada, com muitos refugiados nela. Alguns puxavam carro­ças, mas a maior parte caminhava, carregando o pouco que conseguiam levar em sacos ou trouxas. Havia poucos homens, sendo a maior parte mulheres com crianças. Estavam ainda a dias de Mellicane.

O céu escureceu. Skilgannon olhou para cima. Pairavam camadas de nuvens negras sobre as montanhas. Um relâmpago atravessou o céu. Seguiu-se quase de imediato o ribombar de um trovão. O cavalo res­folegou e empinou-se ligeiramente. Skilgannon bateu-lhe no pescoço lustroso, depois subiu para a sela.-Tem calma- disse, mantendo a voz baixa e suave. A chuva começou a cair, a princípio com pouca intensidade. Skilgannon retirou uma capa com capuz da traseira da sela e colocou-a, tendo o cuidado de evitar que o pano ondulasse e assus­tasse o cavalo.

Depois virou em direcção ao sul. Passados minutos, teve de seguir por um trilho diferente. A chuva

fustigava agora, encharcando o solo, e tornando traiçoeiras e escor-

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regadias as vertentes simples que percorrera. Levou mais de uma hora a chegar ao local do acampamento. Encontrou Braygan e Rabalyn en­costados à superfície do penhasco, por debaixo de uma parte saliente da rocha. Não havia nada a fazer senão esperar que a tempestade

, passasse. Skilgannon não podia arriscar-se a levar dois cavaleiros inex­perientes pelas vertentes da colina com os trovões a atroarem e os relâmpagos a sucederem-se. Descendo da sela, prendeu o cavalo, de­pois colocou o capuz sobre a cabeça e acocorou-se ao pé dos outros. A conversa era impossível, e Skilgannon encostou-se à superfície da rocha e fechou os olhos. Dormiu um bocado. Uma hora depois a tem­pestade passou, seguindo em direcção a leste. O sol irrompeu através das nuvens, intenso e glorioso. Skilgannon levantou-se e olhou para Braygan. O pequeno padre parecia profundamente infeliz.

O que se passa?

-Estou todo encharcado e agora tenho de montar aquele animal assustador.

Skilgannon sentiu alguma irritação, mas reprimiu-a. -Devíamos chegar aos arredores de Mellicane dentro de dois dias -disse. -Depois pode dizer adeus aos dias de cavaleiro.

Esta ideia pareceu animar Braygan, e pôs-se em pé. Rabalyn estava já a içar a sela em direcção ao cavalo.

Duas horas depois, seguiam por uma cumeada a oitocentos metros de mata funda que ocultava o trilho através das montanhas. Por baixo, uma fila irregular de refugiados continuava a arrastar-se lentamente.

Skilgannon preparava-se para esporear o cavalo pela vertente abaixo quando viu um grupo de soldados de cavalaria que vinha de leste.

São soldados nossos? inquiriu Braygan.

O guerreiro não respondeu. Os cavaleiros que avançavam esporea­ram as suas montadas. Eram cinco, três com lanças e dois carregando sabres. Os refugiados viram-nos e começaram a correr. Uma mulher idosa tropeçou. Quando se tentou levantar, uma lança cravou-se-lhe entre as omoplatas. -Oh venerado Céu! exclamou Braygan. Como podem fazer isto?

Os refugiados corriam agora, aterrorizados, dirigindo-se para a mata. Algumas crianças pequenas, os pais em pânico e desaparecidos, ficaram onde as tinham abandonado.

Skilgannon levou a mão às espadas.

Quando o fez, surgiu uma figura vestida de preto vinda de baixo das árvores. Era de constituição forte, vestindo um justílho de couro preto, com aço prateado reluzente nos ombros. Trazia na cabeça um

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elmo preto, decorado com prata. Nas suas mãos brilhava um machado de lâminas duplas. Correu para o terreno aberto. Os cavaleiros viram­-no e viraram para atacar. O primeiro dos lanceiros avançou ameaça­doramente para o guerreiro. Este não fugiu. Foi antes direito ao cavalo a galope. Levantando as mãos, gritou o mais alto que pôde. Enervado, o cavalo guinou. O guerreiro avançou para ele, e o grande

machado cravou-se no peito do cavaleiro, derrubando-o da sela. Um segundo cavaleiro arremeteu. O homem do machado saltou para a es­querda do cavaleiro, afastando-se da sua lança mortífera. Depois, o machado cravou-se no pescoço do cavalo. Instintivamente, empinou­-se -a seguir caiu. O cavaleiro tentou libertar-se da sela, mas o machado coberto de sangue penetrou-lhe a têmpora, partindo tanto o elmo como o crânio.

Pelo Céu, isto é que é um lutador comentou Skilgannon. Esporeando o seu cavalo, desceu a vertente. Mais dois dos cavalei­

ros se tinham acercado do homem do machado. Ambos traziam sabres. O restante lanceiro escondera-se, esperando pela sua oportunidade. Oportunidade essa que nunca chegaria. Ouvindo o atroar dos cascos do cavalo castrado de Skilgannon, virou a sua montada. A lança subiu. Skilgannon passou pela esquerda do cavaleiro, a Espada dourada do Dia cortando-lhe a garganta. Enquanto a vítima caía da sela, Skilgannon avançou sobre os cavaleiros que rodeavam o homem do machado. Não foi necessária a sua ajuda.

O homem do machado atacou. Um cavalo caiu. Saltando por cima do animal que rebolava, o guerreiro arremessou subitamente o seu ma­chado ao segundo cavaleiro, as pontas superiores das lâminas gémeas penetrando-lhe o peito e esmagando-lhe o esterno. O cavaleiro da mon­tada caída estava estendido por terra, a perna presa debaixo da sela.

Ignorando-o, o homem do machado libertou a sua arma do corpo e olhou para Skilgannon. O guerreiro não era jovem, a sua barba preta carregada de fios de prata. Os seus olhos eram da cor de um céu de Inverno, cinzentos e frios. O guerreiro olhou para o lanceiro que Skilgannon matara, mas não disse nada.

Atrás dele, o último cavaleiro libertara-se e estava agora de pé, uma espada na mão.

-Resta-lhe um inimigo-afirmou Skilgannon. O homem do machado virou-se. O esgrimista empalideceu e recuou um passo.

-Foge, moço - disse o homem do machado, a sua voz cava e fria. -E lembra-te de mim da próxima vez que pensares matar mu­lheres e crianças.

I I I

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O soldado piscou os olhos, incrédulo, mas o homem do machado virara já costas. Olhou em direcção a leste, depois encaminhou-se para o local onde se encontravam quatro crianças, horrorizadas e imóveis. O guerreiro, o seu machado apoiado nos ombros, acercou-se delas.

-Está na hora de partirem-disse-lhes, a sua voz subitamente gentil. Pegando numa rapariguinha, escarranchou-a na anca e avançou para a densa mata. As outras três crianças aguardaram um momento.

-Venham chamou-as. E elas seguiram-no. Skilgannon parou o seu cavalo, observando o homem. O cavaleiro

restante embainhou a sua espada e aproximou-se do cavalo sem cava­leiro. Subindo para a sela, foi-se embora a meio galope.

Braygan e Rabalyn desceram a vertente. -Aquilo foi incrível -disse Rabalyn. -Quatro. Ele matou quatro.

Um grupo de mulheres saiu a correr das árvores, empunhando facas.

-Elas vão atacar-nos! -gritou Braygan. O ruído súbito sobres­saltou o cavalo e empinou-se. Braygan agarrou-se à maçaneta da sela. Skilgannon ajudou-o a estabilizar a montada.

-Elas estão esfomeadas, seu idiota! disse-lhe Skilgannon. -Vieram pela carne.

A carne?

Os cavalos mortos. Agora vamos para a mata. O inimigo pode regressar a qualquer momento.

Acamparam oitocentos metros para o interior da mata. À volta deles, os refugiados começaram a preparar fogueiras. As mulheres ti­nham um ar escanzelado e faminto, as crianças apáticas e silenciosas. Skilgannon procurou um sítio a alguma distância dos refugiados mais próximos. Braygan saltou para o chão e começou a remexer dentro do saco de comida, retirando umas bolachas salgadas. -Meta-as lá den-tro e dê-me o saco ordenou Skílgannon.

-Estou com fome-alegou o padre.

-Mais fome do que eles? perguntou Skilgannon, indicando o local onde várias mulheres estavam sentadas com os filhos.

Não nos resta muito.

Skilgannon olhou para ele e suspirou. -Estamos apenas a quatro dias da igreja, homenzinho. Perdeu a sua fé tão depressa? Dê-me o saco.

Braygan ficou esmorecido. - Peço desculpa, Irmão Lantern disse. -Tem razão. Uma pequena adversidade levou-me a esquecer

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quem sou. Levar-lhes-ei a comida. E de bom grado. - Braygan ergueu-se, enfiou as bolachas salgadas de novo no saco, e encaminhou­-se para os refugiados mais próximos.

-Desselo os cavalos?-perguntou Rabalyn. -Sim. Dá-lhes uma escovadela. Depois disso volta a selá-los.

Podemos ter de sair rapidamente daqui. Braygan é um bom homem afirmou o jovem. Eu sei. Não estou zangado com ele, Rabalyn. Nesse caso, por que está zangado? Eis uma boa pergunta. De repente, sorriu. -Fracassei na

única carreira que desejava, e fui demasiado bem sucedido naquela que abominava. Uma mulher que me amava com todo o seu coração mor­reu. Uma mulher que amo com todo o meu coração quer-me morto. Possuo dois palácios, e terras que nem numa semana conseguirás percorrer. No entanto, estou com fome e cansado e não tardo a ir dor­mir no solo molhado da floresta. Por que estou zangado? -Abanou a cabeça e riu-se.- A resposta escapa-me, Rabalyn.

A claridade começava a diminuir. Skilgannon bateu no ombro do jovem e começou a afastar-se.-Aonde vai?-perguntou Rabalyn.

-Cuida dos cavalos. Vou bater o terreno. Embrenhou-se nas árvores, seguindo pelo caminho que haviam tra­

zido. Dali a pouco, deixou para trás os refugiados, muito embora, se olhasse para trás, ainda pudesse ver o darão tremulante das fogueiras do acampamento deles.

A lua em crescente brilhava num céu sem nuvens quando subiu a

última colina antes do vale. Com o luar forte, era possível ver as car­caças desmanchadas dos cavalos mortos. Não havia sinal de qualquer perseguição.

Sentou-se à beira das árvores e olhou para leste. Não creio que eles venham esta noite, moço disse uma voz

cava. -Move-se silenciosamente para um homem grande -afirmou

Skilgannon, quando o homem do machado saiu das sombras das ár­vores.

O homem soltou uma risada. -Costumava fazer a minha mulher dar um pulo. Ela jurava que eu a apanhava sempre de surpresa. Sentou-se ao lado de Skilgannon, colocando o seu machado grande de lâmina dupla no chão. Tirando o elmo, passou os dedos pelo cabelo espesso negro e prateado. Skilgannon olhou para o elmo. Tivera muito uso. As secções de ferro t•ntrelaçadas apresentavam muitas mossas e

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riscos, e os motivos de prata, duas caveiras ao lado de uma lâmina de machado de prata, estavam gastos. Uma pequena extremidade de uma das caveiras de prata fora arrancada.

-Se o inimigo tivesse aparecido, tencionava matá-los a todos so-, zinho? -perguntou Skilgannon.

-Não, moço. Calculei que aparecesses. -Não está um pouco velho para lidar com soldados de cavalaria? O homem do machado olhou para Skilgannon e fez um esgar. Mas

não respondeu, e ficaram sentados um bocado na companhia do si­lêncio. A sua pronúncia não é tantriana - referiu por fim Skil­gannon.

Não. É um mercenário? Fui. Agora não sou. E tu?

-Apenas um viajante. Quanto tempo tenciona esperar? O homem do machado ponderou a pergunta. - Mais uma hora

ou duas. -Julguei que tivesse dito que achava que eles não vinham. -Não é a primeira vez que me engano.

Ou eles não mandam ninguém, ou então vem um mínimo de trinta homens.

-Porquê trinta? -inquiriu o homem do machado. O sobrevivente provavelmente não irá admitir que foi der­

rotado por um velho com um machado grande. Sem ofensa. Não ofendeste. Ele dirá que havia um grupo de soldados.

-Se isso é verdade, por que escolheriam não mandar ninguém ... que foi a tua primeira previsão?

-Eles estão a empurrar refugiados para Mellicane. Esse é o seu principal objectivo: aumentar os números na cidade e criar falta de alimentos. Eles não precisam de perseguir soldados inimigos aqui.

Faz sentido -admitiu o homem do machado. - Falas como um oficial. Vi também que tens uma tatuagem naashanita. Aposto que há uma pantera ou coisa parecida no teu peito.

Skilgannon sorriu.-Conhece bem os nossos costumes. Nós, os velhos, somos bastante observadores.

O jovem gut'rrciro soltou uma gargalhada franca. Acho que mentiu quando disst• qut· não ficara ofendido.

-Eu nuncn minto, moço. Nem sequer a brincar. Estou velho. De nada vale ficar ahorrt·ddo quando alguém o menciona. Faço cinquenta

I I -1

anos dentro de dois meses. Agora tenho dores nos joelhos e dores nas costas. Fico hirto de dormir no chão duro.

-Nesse caso, o que faz aqui sentado à espera de trinta soldados de cavalaria?

E o que fazes tu aqui? - contrapôs o homem do machado. Talvez tenha vindo à sua procura. É possível. Acho, porém, que vieste porque não gostas de ver

mulheres e crianças perseguidas por cobardes a cavalo. Acho que vi­este aqui para lhes mostrar que os seus modos estão errados.

Skilgannon soltou uma risada. - Teria gostado do meu pai -disse.-Também não havia tons de cinzento para ele. Era tudo preto e branco. Faz-me lembrá-lo.

- Ainda está vivo? - Não. Comandou um ataque suicida contra um regimento pan-

thiano. Este permitiu que alguns dos seus homens fugissem. O meu pai não tentou fugir. Foi direito ao rei panthiano e à sua guarda pes­soal. O seu corpo foi o único que o inimigo não mutilou.

Eles prenderam-no ao cavalo, e deixaram-lhe uma moeda de ouro na mão -rematou o homem do machado, baixinho.

Skilgannon ficou surpreendido.- Como foi que soube? - Vivi a maior parte da minha vida entre guerreiros, moço.

A conversa à roda das fogueiras de acampamento incide principal­mente sobre assuntos do dia-a-dia, um bom cavalo ou cão. Por vezes é sobre as quintas que todos teremos um dia quando os combates acabarem. Quando um herói morre, porém, a notícia chega a essas fogueiras de acampamento. O teu pai foi Decado Punho de Fogo. Conheci homens que serviram sob as ordens dele. Nunca ouvi fala­rem mal dele. Nunca o conheci ... apesar de termos pertencido ambos ao exército de Gorben. Ele era de cavalaria e eu nunca gos­tei muito de cavalos.

Pertenceu aos Imortais? Sim, durante um tempo. Um bom grupo de rapazes. Nada ma-

leáveis. Homens orgulhosos. -Esteve em Skeln? -Estive lá. Instalou-se novo silêncio. Skilgannon viu os olhos do homem do

machado semicerrarem-se. Depois suspirou. É melhor deixar o pas­sado sossegado. A minha mulher morreu enquanto eu estava em Skeln. E o meu amigo mais chegado. Foi o fim de uma era. -Pegou no elmo, passou a mão pela horda t• t:olonm-o. -Acho que vou pro-

II 5

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curar um sítio onde dormir - anunciou. - Começo a ficar senti­mental. E como abomino isso. - Os dois homens levantaram-se. O homem do machado estendeu a mão. -Os meus agradecimentos, jovem, por vires em auxílio de um velho.

Skilgannon apertou a mão. - O prazer foi meu, Homem do Machado.

Após o que o guerreiro pôs o machado ao ombro e se afastou.

Skílgannon ficou onde estava. O encontro com o homem do ma­chado, com a sua camaradagem fácil, animara-o. Havia muito tempo que não se descontraía tanto na presença de outro ser humano. Desejou que o homem tivesse ficado mais tempo.

Sentou-se em silêncio na vertente. Ouvir a alcunha do pai de Punho de Fogo abrira portas havia muito fechadas nos compartimen­tos da sua memória. Os dias imediatamente subsequentes à notícia da morte de Decado tinham sido estranhos. Skilgannon, com catorze anos, primeiro recusara-se a acreditar, convencendo-se de que havia algum engano, e que o pai voltaria para casa a qualquer momento.

Tinham chegado mensagens de condolências da corte, e os soldados visitavam-no, falando da grandeza do pai. Por fim, tivera de aceitar a verdade. Deixara uma ferida aberta no seu coração, e estava certo de que morreria disso. Nunca estivera tão sozinho.

Decado deixara um testamento, instruindo Sperian e Molaire para que partilhassem a custódia do rapaz até atingir a maioridade aos de­zasseis anos. Deixara também dois mil Raq -uma soma colossal à guarda de um mercador ventriano da sua confiança, que a investira para ele. Sperian, que sempre fora pobre, viu-se subitamente com acesso a capital com que nunca sonhara. Homens menos nobres ter­-se-iam sentido tentados a apropriar-se de parte dele. Decado, porém, sempre fora um excelente avaliador do carácter. Sperian revelou-se digno dessa confiança desde o princípio.

Sendo ignorante em economia e não sabendo escrever, pedira a Greavas que o ajudasse a gerir os fundos, e procurara também inte­ressar-se pela educação de Skilgannon. Era difícil para ele, uma vez que não sabia muito bem o que o rapaz tinha de estudar. Skilgannon não facilitou nada de início. O seu coração estava cheio de amargura, e descarregava com frequência a bílis em Sperían ou Greavas, igno­rando as instruções deles. Os seus estudos começaram a ser afectados, e no final do pt•ríodo tt•vc de voltar para a segunda classe. Em vez de aceitar que era uma consequência da sua própria loucura, atirara em

cara a Greavas que estava a ser prejudicado porque um dos seus tu­

tores era uma aberração.

Greavas pegara nas suas coisas e fora-se embora naquela mesma

noite. Skilgannon andara enfurecido pela casa, a sua raiva descontrolada.

Sperian fora encontrá-lo sentado no jardim. O criado estava furioso.

-Devias ter vergonha de ti mesmo -admoestara-o.

Naquele momento, Sperian fez o que nenhum adulto alguma vez

fizera. Avançara e esbofeteara Skilgannon. O rapaz ficara meio ator­

doado. O jardineiro, apesar de magro, era um homem de força. -E

eu tenho vergonha de ti -dissera. Depois virara costas.

De pé no jardim, o rosto a escaldar, Skilgannon sentira uma fúria

terrível invadir-lhe o coração. Primeiro pensou arranjar um punhal e

cravá-lo em Sperian até ele morrer. Mas depois, tão rapidamente como

surgira, a sua fúria desapareceu. Sentou-se junto ao pequeno lago

ornamental que Sperian construíra. O homem tinha razão.

Molaire encontrou-o ali passada uma hora, ainda perdido em pen­

samentos. - Trouxe-te pão de frutas - disse, sentando-se ao lado

dele. -Obrigado. Sabes para onde foi Greavas?

-Presumo que esteja na Taberna dos Portões do Parque. Eles têm

quartos. -Ele deve odiar-me neste momento.

-O que disseste foi odioso, Olek. Magoou-o profundamente.

- Não foi minha intenção.

-Eu sei. Mas que isto te sirva de lição. Nunca, quando sentes

raiva, digas o que não queres. As palavras podem ser mais cortantes

do que punhais, e as feridas às vezes nunca saram.

Uma hora depois, ia a Lua alta, Skilgannon entrou na Taberna dos

Portões do Parque. Greavas estava sentado a um mesa num canto, so­

zinho. Mesmo para o rapaz de catorze anos, afigurou-se estranhamente

deslocado. A maioria da clientela era constituída por trabalhadores ou

artífices, corpulentos e barbudos, endurecidos por anos de labuta.

Com a sua camisa de seda azul com folhos nas mangas, raízes grisa­

lhas a mostrar o seu cabelo pintado de amarelo, o antigo actor magro

destoava imenso.

Skilgannon aproximou-se dele. Viu a tristeza nos olhos de Greavas,

e sentiu o peso da sua culpa a arrastar-se como uma pedra no seu

coração. -Lamento imenso, Greavas - disse-lhe, de lágrimas nos

olhos.

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-Talvez eu seja uma aberração. Não fiques preocupado. Greavas virou-se e olhou pela janela.

-Tu não és uma aberração. És meu amigo e adoro-te. Perdoa-me e volta para casa. Por favor, perdoa-me, Greavas.

O actor ficou menos tenso. Está claro que te perdoo, meu pa-lerma- disse, levantando-se da cadeira.

Foi então que Skilgannon se apercebeu de que se fizera silêncio entre as pessoas na taberna. Olhou à sua volta e viu que um homem magro, de rosto anguloso, o fitava. Os seus olhos brilhavam de malí­cia. Já não bastava ter aqui os da laia dele - disse, dirigindo-se aos presentes -, não era preciso vir exibir os seus rabetas à nossa frente.

Skilgannon ficou estupefacto. Greavas pôs-se ao lado dele. É melhor irmos andando, Olek. Eu venho buscar as minhas coisas mais tarde.

- Precisas é de uma sova -invectivou o homem, avançando de repente para Greavas.

-E tu precisas é de um banho-respondeu Greavas. - Oh, sim, e talvez de comeres menos cebolas. O teu bafo derrubaria um boi.

O punho do homem avançou. Greavas esquivou-se, o soco passando por ele sem o atingir. Desequilibrado, o homem tropeçou na perna estendida de Greavas e caiu pesadamente sobre a mesa, batendo com o queixo, e indo parar ao chão. Tentou pôr-se em pé, e voltou a cair.

Greavas levou o rapaz lá para fora. - Podes ensinar-me a fazer aquilo?- perguntou Skilgannon.

-Evidentemente, meu caro rapaz. Assim que chegaram aos portões de casa, Skilgannon estacou. -

A sério que lamento imenso, Greavas. Molaire diz que às vezes as pa­lavras que ferem não saram. Mas vai sarar, não vai?

Greavas despenteou o cabelo do rapaz. Já sarou, Olek. Como é que arranjaste essa nódoa negra na cara?

Sperian bateu-me. -Então, talvez lhe devas pedir também desculpa. -Ele bateu-me! -Sperian é um homem extremamente bondoso. Deve ter-lhe

doído mais bater-te Jo que te dói essa nódoa negra. Vai ter com ele. Faz as pazes.

Sperian estava na parte ocidental do jardim, a regar as sementes nos tabuleiros, quando SkiiHannon o encontrou.

-- Trouxt•stt·-o dt· volta? - perguntou.

li H

-Sim, Sperian. Pedi-lhe desculpa e ele perdoou-me. - Lindo menino . O teu pai ficaria orgulhoso. -Eu queria dizer ... Sperian abanou a cabeça.- Não precisas de me dizer nada, rapaz.

Olha, dá-me uma ajuda com estes tabuleiros. Quero pô-los num sítio onde o sol da manhã possa aquecer o solo. Vamos colocá-los no muro do poço.

-Nunca mais te vou decepcionar, Sperian. Nunca mais. O jardineiro olhou-o carinhosamente e não disse nada por um mo­

mento. Depois bateu-lhe ao de leve no ombro. - Pega naqueles dois tabuleiros ali. Vê se tens cuidado. Não quero que a terra se entorne.

Passados dez anos, a lembrança daquela noite ainda lhe causou um nó na garganta. Levantando-se da vertente da colina, Skilgannon deitou um último olhar às planícies, depois voltou para onde os seus companheiros aguardavam.

Braygan estava a dormir, mas o rapaz Rabalyn encontrava-se sen­tado perto dos cavalos, agarrando as rédeas com as mãos. -Já podes dormir disse Skilgannon. Alguém tentou roubar os cavalos?

-Não. Estive de vigia. Sempre. Skilgannon suspirou. Fizeste bem, rapaz. Eu sabia que podia

confiar em ti.

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CAPITUL07

Rabalyn dormiu durante um bocado, e depois acordou, a arfar, de­vido a um pesadelo. Tinha o rosto frio. Levou a mão à face. Estava pegajosa e molhada. Chuviscara e tinha as roupas molhadas. A pele a cicatrizar no rosto e na perna começavam a provocar comichão e a arder. Ignorando a dor, pôs-se em pé. Skilgannon estava sentado de costas para uma árvore. O capuz da sua capa estava puxado e baixara a cabeça. Rabalyn não soube dizer se estava a dormir ou não. Cuidadosamente e em silêncio, avançou para o guerreiro. Lantern le­vantou a cabeça. Ao luar, parecia que os seus olhos eram da cor do ferro polido.

-Não consigo dormir afirmou Rabalyn, com pouca convicção. Maus sonhos?

- Sim. Não me lembro deles neste momento, mas foram assus­tadores.

-Vem sentar-te -disse Lantern. Rabalyn afastou as folhas mo­lhadas de uma pedra plana e sentou-se nela. Lantern atirou-lhe um cobertor dobrado e o rapaz, grato, pô-lo à volta dos ombros.

- Aquele homem com o machado foi incrível comentou. - É tão velho e, no entanto, venceu todos aqueles homens.

-Ele é um antigo Imortal. Homens rijos-concordou Skilgannon. -Custa a acreditar que qualquer exército fosse capaz de os derrotar.

- Quem os derrotou? -perguntou Rabalyn.

-Os Drenai ... num sítio chamado Desfiladeiro de Skeln. Há cinco anos. Foi onde morreu Gorben.

-Lembro-me quando o imperador morreu - disse Rabalyn. -Tivemos uma semana de luto lá em Skepthia. Fomos obrígados a

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andar com cinza no cabelo. Fazia imensa comichão. Todos disseram que foi um grande homem. Depois, passado algum tempo, todos diziam que fora um homem terrível. Era realmente confuso. Afinal o que foi ele?

- As duas coisas, creio - referiu Skilgannon. Quando mor-reu, era o imperador de todas as terras do leste. Ninguém sabia então se os seus herdeiros se iriam revelar igualmente capazes. Por isso as pessoas foram cautelosas nas suas opiniões. Elogiaram o imperador morto. Depois, quando eclodiram as guerras civis, e nações como a Tantria e o Naashan se separaram do império, tornaram-se mais ou­sadas, falando dele como um tirano conquistador.

-Chegou a conhecê-lo? -perguntou o rapaz. Era um tirano? - Não, não o conheci. Vi-o uma vez. Ele veio ao Naashan, acom-

panhado de mil Imortais. Houve um enorme desfile militar. Espalharam flores ao longo da Grande Avenida, milhares delas. E de­zenas de milhar de pessoas reuniram-se para o ver passar. Era um homem muito bem-parecido, de ombros largos, olhos penetrantes. Um tirano? Sim. Matava quem se lhe opusesse, e matou até aqueles que julgava poderem vir a opor-se-lhe. E as suas famílias. Os seus se­guidores dedicados sustentavam que ele fora movido por um desejo de ver a paz em todas as terras do império. Durante um tempo, de­pois de as ter conquistado, houve paz. Por isso foi as duas coisas. Grandioso e terrível.

Era soldado nessa altura? - Não. Eu era pouco mais velho do que tu. Fui ao desfile mili­

tar com o meu amigo, Greavas. Por que é que o imperador veio ao Naashan? Para a coroação de um novo rei. O seu rei-fantoche. É uma

longa história, e estou demasiado cansado para a contar toda. Resumindo, ele invadira o Naashan e integrara-o no seu império. O

imperador naashanita falecera, morto numa batalha, e Gorben pusera um homem da sua confiança no trono. Chamava-se Bokram. A prin­cípio, as pessoas ficaram contentes. A guerra acabara e a paz afigu­rava-se extremamente apelativa.

Rabalyn bocejou. Toda esta conversa sobre história era cansativa e confusa. A guerra a trazer paz, a paz a trazer guerra. No entanto, não queria adormecer. Havia algo de tranquilizante, mesmo reconfortante, em estar sentado no silêncio da noite a falar com Skilgannon. -Ele tinha um cavalo grande? inquiriu Rabalyn.

Skilgannon sorriu. -- Sim, falemos de assuntos verdadeiramente importantes. Ele tinha um cavalo maravilhoso. Dezassete mãos de al-

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tura e negro como a noite mais carregada. O freio estava coberto de ouro, tal como a sela. Era um cavalo de baralha como nunca vi outro igual.

Gostava de ter um cavalo assim. Qual o homem que não gostava?

-Os Imortais tinham bons cavalos? -Não. Eram soldados de infantaria, fortemente protegidos.

Marchavam em perfeita sincronia. Usavam uma armadura de cerimó­nia preta e dourada. Homens jeitosos, de olhar intenso e orgulhoso. Vi-os. Fiquei aterrado. O nome que carregavam fazia-lhes jus, pois pareciam-me deuses.

-Por que se chamavam Imortais? -Após cada batalha, os Imortais que morriam eram substituídos

por homens promovidos de outros regimentos. Por conseguinte, eram sempre em número de dez mil. Mas o nome passou a significar outra coisa. Os Imortais eram invencíveis. Tal como os deuses, nunca per­diam.

-Mas eles chegaram a perder.

-Sim, é verdade. Uma vez. E isso foi o fim deles. Rabalyn ajeitou-se na pedra e estendeu-se. O cobertor aquecia-lhe

os ombros. Apoiando a cabeça no braço, fechou os olhos. -Como foi que se tornou soldado? -perguntou, ensonado.

Nasci para isso-disse Skilgannon. O meu pai foi Decado Punho de Ferro. O pai dele foi Olek, o Senhor dos Cavalos. O pai dele foi Decado, o Malhador. Uma linha de guerreiros, Rabalyn. A nossa família travou baralhas ao longo do tempo. Ou pelo menos era o que o meu pai costumava dizer. -Rabalyn ouviu o homem suspirar. Sempre as batalhas de outros homens. Sempre a morrer numa suces­são de causas perdidas.

-O seu filho será guerreiro? -Não tenho filhos. Talvez seja melhor assim. O mundo não

precisa de mais guerreiros. Precisa de homens jovens bons como ru, homens capazes de ser professores, ou agricultores, ou cirurgiões. Ou actores, ou jardineiros, ou poetas.

Lantern calou-se. Rabalyn quis fazer-lhe mais perguntas relativa­mente ao cavalo de Gorben. Mas quando tentou pensar nelas, mer­gulhou num sono sem sonhos.

Skilgannon olhou pura Rabalyn, adormecido. Por um breve ins­tante, sentiu um certo calor emocional em relação ao rapaz. Depois

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f passou. Skilgannon não tinha espaço no seu coração para tais senti­mentos. A amizade enfraquecia um guerreiro. Um homem vem a este mundo sozinho, e vai sozinho quando o deixa. É preferível não con­fiar em ninguém, não amar ninguém. Suspirou. É fácil de dizer. Até conseguia acreditar-até os pensamentos em Jianna se infiltrarem na sua mente.

A Rainha Bruxa. Continuava a ser desconcertante que alguém tão belo se tivesse tornado tão frio e mortífero.

O cansaço venceu-o. Apoiando-se na árvore, fechou os olhos. O desfile militar fora notável para Skilgannon, então com quinze

anos. Vira pela primeira vez elefantes. De pé ao lado de Greavas, fi­cara completamente estupefacto com a majesrosidade e o poder dos seis animais. Tinham sido adaptadas correntes de malha de prata na resta e no peito. Brilhavam com o sol da manhã. E as presas! Com pelo menos um metro e vinte de comprimento, brilhavam como ouro branco. Tinham sido colocadas torres de madeira nos seus dorsos enor­mes, cada uma protegendo quatro besteiros ventrianos.

-Os animais são menos úteis do que parecem -referiu Greavas. Podem entrar em pânico e virar. Então fugirão precipitadamente

pelas suas próprias fileiras. Mas são magníficos.

-Efectivamente. Criaturas incríveis. Depois tinham desfilado os novos Lanceiros naashanitas, leais a

Bokram, o rei que seria em breve coroado. O próprio Bokram vinha à cabeça deles, um homem franzino, de rosto magro e olhar pene­trante. Trazia um elmo alto e curvo e uma couraça de prata, mas a sua cora de malha, ricamente trabalhada, era de ouro branco. -Oh, como os mortos são poderosos -murmurara Greavas.

Todos os Naashanitas conheciam a história de Bokram. Despojado dos seus títulos três anos antes, Bokram fora expulso pelo velho im­perador, fugindo para a Venrria e entrando ao serviço de Gorben. Pouco depois disso, os Ventrianos tinham invadido a parte ocidental do Naashan. Durante dois anos, os Naashaniras tinham resistido, mas depois o próprio imperador tombara na batalha, o seu corpo trespas­sado pelas espadas de ferro dos Imortais. Dizia-se que, estava o im­perador moribundo, Bokram viera a correr para o seu lado e falara com ele, antes de enfiar lentamente um punhal no olho do velho. Com o exército naashanita em fuga, Bokram avançara para a capital. Hoje iria ser coroado rei na presença do verdadeiro monarca, Gorben de Venrria.

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-Não devias falar mal de Bokram - Skilgannon advertiu Greavas. -Ele é um homem duro, e dizem que todos os murmúrios acabam por chegar aos ouvidos dele.

-Espero que estejam certos ... sejam lá eles quem forem - refe­riu Greavas. - Houve muitas detenções entre as classes nobres. Outros fugiram. Existe até uma sentença de morte para a viúva do imperador, e a sua filha, Jianna.

- Por que haveriam de querer matar mulheres? É a prática normal, Olek. Todos os membros da realeza de

sangue antigo devem morrer. Só assim não haverá homens para se sublevarem contra Bokram e a sua nova dinastia ... nem mulheres para dar à luz novos inimigos para o futuro.

-Nesse caso, espero que não as encontrem. -Também eu - murmurou Greavas. -Ela é a criança mais

doce. Bem, quando digo criança, ela tem quase dezasseis anos e pre­para-se para ser de uma beleza ofuscante.

Já a viste? -Oh, sim, muitas vezes. Tenho estado a ensinar-lhe poesia e

dança. Skilgannon ficou surpreendido. No entanto, não disse nada, por­

que, naquele momento, o Imperador Gorben aparecera, montado no seu magnífico cavalo de batalha. Era um homem vigoroso, o cabelo e a barba negros como o azeviche e brilhantes. Ao invés de Bokram, não tinha cota de malha dourada. A sua armadura era da mais alta qualidade, mas concebida para ser usada e não para ornamentar. Atrás dele marchavam dois mil Imortais. -Ora, eis o verdadeiro poder disse Greavas. - Olha-o com atenção, Olek. Ele é... neste mo­mento ... o homem mais poderoso do mundo. Tem tudo. Encanto, força, carisma e uma enorme coragem. É adorado pelos seus homens e tem um objectivo. Só tem um defeito.

-E qual é?

-Não tem filhos. Por conseguinte, o seu império assenta em areia movediça. Ele é a argamassa que une as muralhas do castelo. Se ele morrer, o edifício desmoronar-se-á.

Ficaram a ver passar o desfile militar, depois voltaram para junto da multidão e seguiram pela ampla avenida em direcção a casa.

-Viste Boranius?-perguntou Greavas. -Não. Onde é que ele estava?

- Vinha montado mt•smo atrás de Bokram. Agora é capitão dos Lancciros. Nada mau para um rapaz de dezoito anos ... muito embora

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. 1.''··· .

.

.

I y;

ajude o facto de o novo rei ser tio dele, suponho. Agora é melhor apressarmo-nos, senão chegarás atrasado ao encontro com Malanek.

-Vens assistir? Greavas abanou a cabeça.-Tenho assuntos a tratar. Vemo-nos esta

noite. É melhor correres, Olek. Malanek não é homem para ficar à es­pera.

Greavas disse-lhe adeus e seguiu pela avenida. Skilgannon viu-o afastar-se. O homem andava cheio de mistérios ultimamente, desapa­recendo por vezes durante dias sem dar explicações. Skilgannon ficara a saber que ele andava a ensinar a princesa Jianna. Skilgannon fez um esgar. Greavas passara grande parte da sua vida adulta a representar princesas no palco, por isso, quem melhor para a instruir?

Seguindo o conselho de Greavas, começou a correr pelas ruas, ata­lhando por becos e subindo a íngreme Colina dos Cedros. Padres com túnicas amarelas deixavam o templo com cúpula, e correu entre eles, continuando até aos edifícios da Academia Velha. Tinham sido ven­didos vários anos antes, e a caserna fora remodelada em apartamentos para os visitantes ricos do Naashan. Próximo do palácio tinham feito casas temporárias ideais para os cortesãos e embaixadores de visita.

Um dos guardas ao portão acenou a Skilgannon quando o jovem passou a correr. Há muito que tinham deixado de lhe pedir o salvo­-conduto. O que por um lado agradava e por outro desagradava ao rapaz. Tornava mais rápido o acesso a Malanek, no entanto, era um descuido. Muitos dos residentes da Academia Velha eram homens poderosos. Como explicara uma vez Decado, todos os homens pode­rosos têm inimigos. Era uma lei natural. Se os guardas se tornassem complacentes, então, um dia, a pessoa errada podia ser deixada entrar, e correria sangue.

Todavia, este não era o problema. Skilgannon subiu a correr as escadas de pedra até à antiga sala de jantar. Era agora uma zona inte­rior de exercício, equipada com cordas de escalar, estruturas aboba­dadas, banhos e zonas de massagem. Havia alvos para os besteiros e lançadores do dardo, e um comprido suporte de espadas, algumas de madeira, mas outras de ferro cortante. Um suporte à parte continha armas de arremesso mais pequenas, facas e peças circulares brilhantes com extremidades serrilhadas .

Malanek estava à espera junto ao suporte de espadas mais distante, testando o equilíbrio de um par de sabres iguais. Skilgannon parou para observar o mestre de armas. Era alto e, apesar de parecer magro, tinha uma constituição t(Jrtt·. A pune inferior da sua cabeça fora ra-

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pada até às orelhas e à volta das têmporas. O cabelo escuro da sua coroa fora cortado curto numa crista em forma de cunha à frente, enquanto atrás caía como um rabo de cavalo. Estava despido da cintura para cima. Ostentava no peito uma pantera tatuada e tinha ambos os an­tebraços também tatuados, um com uma aranha, o outro com uma

cobra que se enrolava à volta do braço, a cabeça surgindo no ombro direito. O mestre de armas não acusou a presença do rapaz. Dirigiu­

-se antes ao centro do salão. Agitou suavemente os sabres, depois, com um ritmo crescente,

começou a saltar e rodopiar, descontraindo o corpo. Malanek tinha uma graciosidade incrível. Skilgannon aguardou em antecipada exci­tação o final. Gostava sempre imenso dele. Malanek atirou as armas ao ar, depois lançou-se numa cambalhota para a frente. Quando se fir­

mou nos pés, levantou os braços, os dedos fechando-se nos punhos das espadas a rodar. Skilgannon aplaudiu. Malanek fez uma vénia, mas não sorriu. Sem uma palavra, atirou uma das armas na direcção de Skilgannon. A espada de lâmina cortante como uma navalha girou pelo ar. Skilgannon concentrou-se nela, depois afastou-se rapidamente para o lado, a sua mão serpenteando ao encontro do punho. Esteve quase a agarrá-lo, mas escorregou-lhe dos dedos. A arma caiu ruido­samente, fazendo ricochete na sua perna à mostra. Começou a escor­rer um pouco de sangue.

Malanek aproximou-se e examinou o golpe superficial. Ah, não é nada- disse. Fechará por si. Vai preparar-te.

- Quase a agarrei.

O quase não conta. Tentaste imaginá-la na tua mão. Não podes fazer isso, rapaz.

Durante duas horas, Malanek obrigou Skilgannon a um duro con­junto de exercícios, correndo, escalando, saltando e elevando-se. Mais ou menos de dez em dez minutos, concedia um minuto de descanso, depois recomeçava. Por fim, pegou nos dois sabres, entregou um a Skilgannon, depois lançou-se num ataque súbito. Skilgannon ficou surpreendido. Normalmente, mandavam-no colocar uma armadura de couro acolchoada, e os protectores nos braços. Com frequência, quando o treino era intenso, Malanek insistia para que usasse tam­bém uma protecção para a cabeça. Agora não tinha nada. Defendeu­-se o melhor que pôde. Malanek também não tinha armadura, e Skilgannon não fez qualquer tentativa de penetrar a sua defesa. O mestre de armas recuou. O que pensas que estás a fazer? -perguntou, com frieza.

126

- A defender-me, senhor.

E o melhor método de defesa é?

- O ataque. Mas não tem vestido ...

- Vê se me entendes, rapaz - ripostou Malanek. - Esta sessão

irá acabar em derramamento de sangue. Ou o meu, ou o teu. Agora levanta-me essa arma, ou coloca-a no chão e vai-te embora.

Skilgannon olhou para o homem, depois colocou o seu sabre no chão e dirigiu-se para as escadas.

- Estás com medo? - sibilou Malanek. Skilgannon virou-se.

- Apenas de o magoar, senhor - retorquiu. Vem cá. Skilgannon voltou para junto do mestre de armas.

Olha para o meu corpo. Repara nas cicatrizes. Esta- disse, ba­

tendo no peito- foi uma lança que julguei me tivesse matado. E esta

foi uma punhalada. E esta - prosseguiu, apontando para um corte ir­

regular ao lado da cabeça da cobra no seu ombro foi-me feita pelo

teu amigo Boranius durante um treino. Sangrei e sobrevivi. Podemos

enfrentar-nos nesta sala com as nossas armas durante uma eternidade

e nunca serás um guerreiro. Porque até enfrentares uma ameaça genuí­

na, não podes saber como irás lidar com ela. Vem comigo.- O mes­

tre de armas foi até à parede do fundo. Havia ali uma prateleira.

Colocara nela ligaduras, uma agulha curva e uma porção de fio, um

jarro com vinho e um frasco com mel. Um de nós sangrará hoje.

O mais provável é que sejas tu, Olek. Dor e sofrimento. Se fores hábil

quando lutarmos, a ferida será pequena. Se não, pode ser grave. Podes

inclusivamente morrer. Isto não faz sentido - afirmou Skilgannon.

- E a guerra faz? - contrapôs Malanek. - Faz a tua escolha. Vai-te embora ou luta. Se te fores embora, nunca mais me apareças aqui na sala de treino.

Skilgannon queria ir-se embora, mas aos quinze anos, não teria su­portado a vergonha de semelhante desistência. - Lutarei - decidiu.

- Então vamos a isso. Sentado agora no bosque, Skilgannon recordou a dor dos pontos.

O golpe no seu peito tinha cerca de dezoito centímetros de compri­mento. Sangrara como um porco na matança. A ferida doera-lhe se­manas. O combate fora intenso, e algures no meio dele, esquecera-se de que Malanek era seu mestre. Enquanto as armas rodopiavam e em­batiam, Skilgannon lutara como se a sua vida dependesse do resul­tado. Por fim arriscara a morte para desferir uma estocada fatal na garganta de Malanek. Só a rapidt•z e a perícia inata do mestre de armas

127

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lhe tinham permitido baixar-se e esquivar-se ao golpe mortal. Mesmo assim, a ponta abrira-lhe a face, salpicando o ar de sangue.

Apenas naquele momento Skilgannon se apercebeu de que -mesmo quando evitara a estocada mortal-a arma de Malanek lhe retalhara o peito. Recuou quando o sangue começou a jorrar. Malanek virara a sua própria arma no último segundo possível, fazendo apenas uma incisão na pele. Se desejasse, podia ter enterrado o sabre no coração de Skilgannon.

Os dois combatentes tinham olhado um para o outro. - Espero um dia ter metade da sua perícia -dissera o rapaz.

-Irás melhorar, Olek. Daqui a um ano não terei mais nada para te ensinar. Serás um excelente esgrimista. Um dos melhores.

-Tão bom quanto Boranius? - É difícil dizer, rapaz. Homens como Boranius são raros. Ele é

um assassino natural, com mãos mais rápidas do que qualquer homem que alguma vez conheci.

Seria capaz de o vencer? -Já não. A sua perícia ultrapassa a minha. Ele já é tão bom

quanto Agasarsis, e não é possível melhorarem mais.

A meio da manhã, os viajantes tinham percorrido cerca de dezoito quilómetros, saindo das densas florestas e entrando em terras de la­voura ondulantes. Seguiram ao lado da coluna de refugiados, cente­nas de pessoas cansadas arrastando-se em direcção a um sítio que esperavam lhes fosse oferecer pelo menos uma segurança passageira.

Nuvens carregadas encobriam o sol, e o dia estava cinzento e frio. Braygan conseguira finalmente encontrar o seu ritmo na sela pelo menos para o trote. O meio galope fazia-o saltar de forma estranha e agarrar-se à maçaneta da sela. Skilgannon seguia na dianteira, obser­vando a terra à procura de sinais de cavaleiros hostis. Avistou várias patrulhas de cavalaria, mas nenhuma se aproximou dos refugiados.

A medida que a tarde se encaminhava para o crepúsculo, as nuvens dissiparam e o sol brilhou com intensidade sobre a coluna. Animou o espírito das pessoas em fuga. Lá mais à frente, Skilgannon viu que os refugiados tinham deixado de caminhar. Agitavam-se com impa­ciência. A notícia que fizera parar a coluna avançou mais depressa do que um rastilho.

Mellicane caíra. Ninguém sabia o que fora feito do rei tantriano ou do rt•sto do seu ext"rdro. Todos sabiam era que a sua viagem para a seguranc.-a nilo fitziu agora sentido. Não havia muralhas por detrás

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das quais se abrigarem. As pessoas sentaram-se no solo. Algumas cho­raram. Outras limitaram-se a olhar vagamente para a paisagem. Tinham abandonado os seus lares em terror. Receavam voltar para trás e, no entanto, agora era impossível avançar.

Skilgannon galopou no seu cavalo em direcção a noroeste, des­montando no sítio onde se reunira o maior grupo de refugiados. Viu aqui vários Lanceiros com armadura, envergando as capas amarelas do exército tantriano, tentando dar réplica a uma série de perguntas gri­tadas, à maior parte das quais não podiam responder. Do cimo do seu cavalo castrado, Skilgannon recolheu toda a informação que havia. O rei matara-se -ou fora morto por aqueles que julgava leais. Os portões tinham sido escancarados. Os Datianos haviam entrado por ali dentro incontestados. Falava-se de saques e contavam-se histórias de ataques da populaça, mas a cidade encontrava-se agora sob lei mar­cial. Os piores incidentes tinham ocorrido quando os animais da Arena foram libertados. As criaturas haviam avançado para as zonas povoadas, matando indiscriminadamente até serem apanhadas. Skilgannon voltou para o local onde Braygan e Rabalyn aguardavam.

O que fazemos?-perguntou o pequeno padre. Vamos até à cidade. Foi por isso que viemos.

-Então a guerra acabou? -Não disse-lhe Skilgannon. Apenas a primeira fase. Agora

o exército naashanita irá invadir. -Não compreendo-referiu Braygan.-Os Naashanitas eram

nossos aliados. Por que não vieram mais cedo? -Os carneiros celebraram uma aliança com o lobo, Braygan.

A rainha deseja governar estas terras. E as de Datía e Dospilis. O rei tantriano morreu. Agora a rainha surgirá como uma libertadora vingante, e aceitará os agradecimentos reconhecidos da população as­sustada.

Nesse caso ela não tem honra?-perguntou Rabalyn. Honra? - inquiriu Skilgannon, com uma gargalhada áspera.

Ela é uma governante, rapaz. A honra é uma capa que ela usa quando lhe convém. Lembras-te do velho adágio: «Quanto mais alto proclamavam a sua honra, mais depressa nós contávamos as colheres»? Não procures virtudes vulgares entre os governantes.

-Estaremos seguros na cidade? -inquiriu Braygan. Skilgannon encolheu os ombros. -Não te posso responder. Será

mais segura do que era ontem, muito embora tenhamos de abando­nar os cavalos e entrar a pl-.

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- Porquê? - interveio Rabalyn.

Skilgannon viu o sofrimento no rosto do jovem. - Não temos es­

colha. Eles estão marcados com ferro, Rabalyn. Roubámo-los a Lanceiros datianos mortos. Parece-te sensato entrar numa cidade conquistada com cavalos roubados? Conservá-los-emos até às colinas distantes por cima da cidade. Depois soltamo-los. Não lhes aconte­cerá nenhum mal. Era melhor irmos andando.

Virando o seu cavalo, Skilgannon afastou-se dos refugiados e atra­vessou os campos. A queda da cidade era - pelo menos para Skilgannon - uma bênção. Com esta fase da guerra terminada, a en­trada em - e a saída de - Mellicane acabaria por ser bastante mais simples. Haveria mais mantimentos, e a viagem para norte em di­recção a Sherak e aos desertos do Namib seria menos atribulada. Os exércitos do Naashan entrariam pelo sul. Os exércitos de Datia e Dospilis seriam obrigados a marchar naquela direcção para lhes fa­zerem frente. Por conseguinte, haveria pouca actividade militar no norte.

Seguiram em silêncio durante várias horas. A terra aqui era enga­nadora, aparentemente plana e, no entanto, cheia de declives e depressões escondidos. Skilgannon avançou lenta e cuidadosamente. Os seus olhos treinados perscrutavam a zona. Este seria um local para

emboscar um exército invasor. Um grande número de tropas poderia esconder-se nestas depressões, ou nos canaviais ao longo dos riachos. Skilgannon planeara muitos ataques-surpresa semelhantes durante os primeiros dias da sublevação naashanita.

Encontraram novamente refugiados, cada vez mais fatigados en­quanto se arrastavam em direcção a um futuro incerto. Caminhavam penosamente através de um mar de canas, tentando criar um atalho para as colinas. O solo por baixo dos cascos dos cavalos estava inun­dado e era esponjoso e, com a massa de pessoas a dirigir-se para

noroeste, o progresso era lento. No seu cavalo, Skilgannon apenas conseguia ver a parte de cima das canas. Continuou por mais cerca de oitocentos metros. Levantaram-se grandes quantidades de mosquitos, aglomerando-se à volta dos rostos dos cavaleiros e suas montadas. Os cavalos viraram as cabeças e agitaram as orelhas. O calor aumentou, e Skilgannon sentiu o suor a escorrer-lhe pelas costas.

Chegou de algures lá à frente um grito de puro terror. Skilgannon

refreou a sua montada. Viu acima das canas um corpo subir e torcer­-se no ar. I )e pois houve outro grito - bruscamente interrompido a ffil'IO.

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As pessoas começaram a deslocar-se em sentido contrário, passando por Skilgannon, correndo para se salvar. Este movimento súbito sobressaltou os cavalos. A montada de Skilgannon empinou-se e ele procurou controlá-la. Braygan foi arremessado da sela, o seu cavalo virando-se e galopando em direcção a sul. O cavalo de Rabalyn pas­sou disparado por Skilgannon, o rapaz esforçando-se por o dominar

com as rédeas. Começou a soprar uma brisa ligeira através das canas. O cavalo de

Skilgannon captou o odor. Apesar da perícia do cavaleiro, o animal castrado tremeu subitamente, voltou a empinar-se e virou-se, seguindo atrás da montada sem cavaleiro de Braygan.

Skilgannon não teve outra alternativa senão deixar o seu cavalo cor­rer durante um bocado, mantendo uma pressão ligeira mas constante nas rédeas. Quando alcançou solo mais firme, Skilgannon falou com ele numa voz suave, e sentou-se na sela. - Calma agora, rapaz! -disse. Longe do que se apercebera ser o perigo inicial, o animal acatou as ordens, passou a um trote e parou finalmente, Skilgannon deu-lhe palmadas no pescoço esguio e virou-o de novo rumo a norte.

Observou o canavial, agora a cerca de quatrocentos metros de dis­tância. As pessoas continuavam a correr em todas as direcções.

Então viu o animal. Tinha cerca de dois metros de altura, estava coberto de pêlo preto.

Por um momento, Skilgannon julgou que se tratasse de um urso, mas depois ele voltou-se. O corpo afunilava a partir dos ombros portento­sos e dos braços compridos, para uma cintura mais fina e pernas longas.

A cabeça era enorme e curvada para a frente num pescoço maciço, as

maxilas alongadas como as de um lobo. O sangue manchava-lhe os den­tes e a garganta. A cabeçorra virou-se de um lado para o outro, depois o animal deu uma corrida, a velocidade impressionante para algo tão grande. Aproximando-se rapidamente de uma mulher em fuga, saltou­-lhe para as costas, cravando as presas no crânio dela. A mulher caiu, imediatamente morta. Outro animal, o seu pêlo cinzento sarapintado, saiu do canavial e correu para o primeiro. Empinando-se, atacaram-se. O animal preto cedeu, recuando, e o cinzento recém-chegado avançou para se alimentar.

Skilgannon ouvira falar dos animais da Arena, mas nunca vira nenhum. Diziam que tinham sido criados por xamãs nadir renegados a soldo do rei tantriano. Ouvira falar de ritos bizarros, em que os pri­sioneiros eram arrastados das suas masmorras e fundidos por magia com lobos, ursos ou cães.

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Naquele momento, viu Braygan a caminhar aos tropeções, a cerca de duzentos metros do animal que se alimentava.

Skilgannon praguejou -e incitou o cavalo a uma corrida. A cria­

tura que se alimentava levantou a cabeça, mas ignorou tanto o cavaleiro , como o homem vacilante. Mas não o animal de pêlo preto, que se vira

privado da sua presa. Apoiando-se nas quatro patas, correu para Braygan. O cavalo, em corrida desenfreada, aproximou-se rapidamente do

padre. Skilgannon olhou para trás. Agora não havia margem de erro. Braygan vira a criatura lupina e tentava fugir. Skilgannon debruçou­

-se na sua sela e guiou o cavalo para se colocar ao lado do homem em fuga. Agarrando-o pelas vestes, içou-o no ar, colocando-o sobre a ma­çaneta. Braygan aterrou com um gemido. O cavalo castrado continuou a correr. Skilgannon virou-o, dirigindo-se para as colinas. Olhou por cima do ombro. O animal estava a ganhar terreno.

O cavalo castrado fazia barulho com os cascos. Braygan, com a ma­çaneta da sela a cravar-se-lhe nas costelas, tentou libertar-se dela.

-Fica quieto, idiota! -berrou Skilgannon. O cavalo castrado deu uma guinada e relinchou. Skilgannon olhou

para trás. O animal sentara-se e desistira da perseguição. Mas havia sangue nos quartos traseiros do cavalo castrado, e marcas ensanguen­

tadas de garras no seu dorso. Fora por pouco.

Skilgannon continuou a avançar. O cavalo castrado, aterrado, subiu com esforço a vertente. No cimo, Skilgannon tirou Braygan sem ceri­mónia do dorso dele. A seguir desmontou e inspeccionou os ferimen­tos do seu cavalo. Havia três golpes paralelos, mas não eram fundos.

A criatura preta observou-os de cerca de trezentos metros, depois virou-se e seguiu vagarosamente para o canavial.

Braygan caiu de joelhos, as mãos unidas numa prece. -Agradeço­-te, Grande Senhor no Céu -disse, a sua voz a falhar. -Agradeço-te por esta vida, e por me poupares neste dia.

-O dia ainda não acabou -observou Skilgannon.

Ficaram sentados na vertente da colina durante quase uma hora, até a claridade começar a diminuir. Skilgannon viu então movimento a sul. Surgira outro grupo grande de refugiados, saindo de uma prega no terreno. Encaminhavam-se para o canavial.

-Venerado Céu!-exclamou Braygan.-Vão ser despedaçados.

Rabalyn arwrcdwu-st· dt• uma dor na cabeça. Começou como um suave latt·jar, dt'pois uurnt·ntou de forma alarmante. Invadiu-o uma

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sensação de náusea e gemendo, abriu os olhos. Estava estendido na erva, a pouca distância de uma linha de árvores. Com outro gemido, sentou-se e olhou à sua volta. Conseguia ver, não muito longe, a orla do canavial palustre. A seu lado havia vestígios de sangue na super­fície de uma pedra lisa. Olhou para ela durante algum tempo, depois

levou a mão à cabeça. Veio pegajosa. Limpou os dedos na erva, dei­xando uma mancha vermelha.

Lembrou-se então de que o cavalo disparara, correndo pela linha do canavial. Agarrara-se à ponta da maçaneta, esforçando-se por per­manecer na sela. Fora então que o horror saíra do canavial. Rabalyn captara apenas um vislumbre enquanto o cavalo seguia em corrida, mas o que viu foi suficiente para lhe enregelar o coração. O animal era imenso, com mandíbulas cheias de baba. Erguia-se como um urso, mas a sua cabeça era a de um lobo. O animal começou a correr para o cavalo e atingiu-o. Rabalyn foi arremessado para a esquerda, mas não largou o cavalo quando este tropeçou. Depois endireitou-se e fugiu. Galopou durante alguns minutos, depois tropeçou uma se­gunda vez. Por fim baixou a cabeça e Rabalyn foi atirado pelo ar. Obviamente a sua cabeça embatera na pedra.

O jovem pôs-se em pé e virou-se. O cavalo morto jazia a cerca de cinco metros dali. Rabalyn gritou de angústia e correu para ele. Tinha

uma ferida grande e ensanguentada no flanco. A carne e os tendões pen­diam dela, mergulhando numa poça de sangue funda já a coagular.

Esquecida a dor na cabeça, Rabalyn ajoelhou-se e acariciou o pes­coço do cavalo.-Lamento imenso-disse.

Ouviu-se ao longe um uivo entranho e arrepiante. Rabalyn pôs-se rapidamente em pé.

O cavalo estava morto, mas o cheiro do seu sangue era levado pelo

vento. Tinha de se afastar dele o máximo possível. Virando-se, subiu aos tropeções a colina e enfiou-se entre as árvores. Rabalyn não sabia para onde ia, só que precisava de se distanciar da carcaça. Sentiu a cabeça de novo a latejar. Ajoelhando-se, vomitou. A seguir levantou-se. A vegeta­

ção rasteira era densa, e contornou-a, procurando uma árvore a que pu­desse subir. Mas parecia que os seus membros eram de chumbo, e não sabia se tinha forças suficientes para se içar para os ramos.

Ouviu-se outra vez o uivo medonho. Rabalyn não soube dizer se estaria agora mais próximo, mas no seu terror acreditou que sim. Deparando-se-lhe um carvalho grande, começou a subir. O pé escor­regou-lhe e caiu de costas, aterrando com uma pancada áspera no solo. Ao tentar levantar-se, uma sombra a�o:i�antou-sc por cima dele.

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Foi tomado de pânico. -Calma, moço -disse uma voz cava. -Não te vou fazer mal.

Rabalyn piscou os olhos. Diante dele estava o velho homem do machado que matara os Lanceiros. Visto de perto, parecia ainda mais terrível, com os seus olhos cinzento-claros cintilantes. A sua barba era negra e prateada, e usava um justilho de couro preto, reforçado nos ombros com aço prateado. Trazia na cabeça um elmo redondo preto, orlado de prata. Os olhos de Rabalyn foram atraídos para o machado enorme que transportava. As lâminas faziam lembrar asas de borbo­leta, alargando em duas pontas. O cabo era preto e ostentava runas

gravadas em relevo com aplicação de prata. -O que aconteceu à tua cabeça?- perguntou o homem do machado, ajoelhando e colocando

o machado no solo. -Caí do cavalo.

- Deixa-me ver. -O homem do machado examinou a ferida. - Não parece que tenhas partido o crânio. Parece uma pancada em diagonal. Arrancou um pouco de pele. Onde estão os teus

amigos? -Não sei. O meu cavalo fugiu disparado quando os animais ata­

caram.-O medo voltou e Rabalyn pôs-se em pé.-Temos de subir a uma árvore. Eles vêm aí.

-Fica calmo, moço. O que vem aí?

Rabalyn contou ao homem do machado o que vira, e que o seu ca­valo morrera, metade da barriga rasgada por garras afiadas. -Eles podem ter morto os meus amigos -disse.

O homem do machado encolheu os ombros. - Talvez. Duvido de que o esgrimista esteja morto. Pareceu-me um homem muito astuto.-Olhando para o céu que escurecia, levantou-se.-Vamos

procurar um sítio para acampar. Acendemos uma fogueira e pode­rás descansar um bocado.

-Os animais ...

-Talvez venham, ou talvez não. Não posso fazer nada a esse res-

peito. Vamos lá. - Estendendo a mão, puxou Rabalyn até ele se levantar, pegou no machado e embrenhou-se nas árvores. Rabalyn

seguiu-o. Passado um bocado, o homem do machado chegou a uma clareira natural. Duas árvores velhas tinham tombado, criando uma

barreira parcial a oeste. Com a bota, o homem do machado afastou troncos e ramos, p reparando o local para uma fogueira. Pediu a

Rabalyn que apanhasse lenha e, depois de o rapaz o ter feito, pegou numa pequena cuixu de mechas e pegou fogo.

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A escuridão aumentou. Rabalyn sentou-se ao lado da fogueira. Sentia-se ainda um bocado tonto, mas a dor de cabeça estava a passar.

- O Irmão Lantern disse que pertenceu aos Imortais. - O Irmão Lantern? - O esgrimista que o ajudou. -Ah. Sim, isso foi durante um tempo. - Por que atacou aqueles soldados? -O que queres dizer? -Bem, a princípio, julguei que estivesse a proteger a sua famí-

lia, ou alguns amigos. Mas viaja sozinho. Afinal, por que lutou? -Boa pergunta. Como te chamas? - Rabalyn. -E por que te diriges para Mellicane, Rabalyn?

O jovem contou-lhe do ataque à sua casa, e da morte da Tia Athyla. Acabou também por confessar a morte de Todhe, e a vergonha que sentia.

-Ele é que a provocou - afirmou o homem do machado. -

Escusas de perder o sono por causa disso. Todos os actos têm conse­quências. Eu costumava estar sempre a discutir com um amigo meu. Ele falava constantemente daquilo a que chamava o potencial do homem. Dizia que até o pior era capaz do bem. Depois punha-se a falar prolongadamente de redenção, e coisas do género. Talvez ele estivesse certo. Não me preocupo com essas coisas.

-Matou muitas pessoas?- perguntou Rabalyn. -Muitas -anuiu o homem do machado.

-Eram todas más? -Não. Na sua maior parte eram soldados, a lutar pela sua pró-

pria causa. Assim como eu lutava pela minha. Vivemos num mundo

difícil, Rabalyn. Vai dormir. Sentir-te-ás melhor quando a manhã chegar.

-Não me disse por que atacou aqueles soldados - referiu o JOvem.

- Pois não, não disse. Rabalyn espreguiçou-se e olhou para a figura sinistra sentada junto

à fogueira. Reparou então que o homem do machado não olhava para as chamas, mas para a escuridão que aumentava.

-Acha que eles vão vir? -perguntou o rapaz. -Se o fizerem, arrepender-se-ão. Vê se dormes. Durante um bocado, Rabalyn fez um esforço para se manter acor­

dado. O homem do machado não tidou, f.' o rapaz ficou muito quieto,

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a olhar para a figura sentada. O clarão da fogueira tremulante fazia com que o homem do machado parecesse mais velho. As rugas no seu rosto eram fundas. Rabalyn viu-o pegar no machado. Os músculos do antebraço mexeram-se quando a sua mão enorme envolveu o cabo.

. Alguma vez teve medo? -inquiriu Rabalyn. -Sim, uma ou duas vezes. A minha mulher tinha o coração fraco.

V árias vezes teve um colapso. Soube então o que era o medo. -Mas agora não?

Não há do que ter medo, moço. Vivemos. Morremos. Um homem sábio disse-me uma vez que um dia até o Sol irá desaparecer, e será só escuridão. Tudo morre. A morte não é importante. O que conta é como vivemos.

-O que aconteceu à sua mulher? -Morreu, rapaz. Faz agora dnco anos. -O homem do machado

atirou um pouco de lenha para a fogueira e as chamas lamberam-na. Depois levantou-se e ficou imóvel como uma estátua. -Creio que está na hora de subires à tua árvore-disse, baixinho. Rabalyn pôs­-se em pé. Aquela ali - indicou o homem do machado, apon-tando para um carvalho alto próximo. Imediatamente!

Rabalyn correu para a árvore e saltou para o ramo mais baixo, içando-se. Chegou a uma bifurcação e sentou-se, olhando para a fo­gueira do acampamento. O homem do machado continuava de pé em silêncio, o machado nas suas mãos. Rabalyn perscrutou a zona. Não conseguia ver nada a não ser o luar a incidir na vegetação rasteira e nas árvores. Depois, surgiu uma figura sombria na sua linha de visão. Tentou concentrar-se nela, mas não havia nada que ver. Moveu-se outro vulto à direita. Rabalyn apercebeu-se de que tremia. E se eles conseguissem subir?

Sentiu vergonha de si mesmo. Um velho preparava-se para en­frentar estas criaturas, enquanto ele se escondia numa árvore. Rabalyn apercebeu-se de que desejava ter uma arma, para poder ajudar o homem do machado.

Viu lá em baixo o homem levantar o machado adma da cabeça e esticar-se lentamente de um lado para o outro, distendendo os mús­culos.

Por um instante, nada se moveu. Rabalyn apercebeu-se de que o seu coração batia como um tambor. Sentiu-se um pouco tonto e agar­rou-se com força ao ramo. A Lua desapareceu atrás de uma nuvem, e a escuridão desceu sobre grande parte da clareira. Rabalyn apenas con­seguia distinguir o homem do machado pelo brilho das chamas re-

flectidas no seu machado e no elmo. Ouviu ramos a estalar, depois uma rosnadela feroz. Uma sombra preta incidiu no homem do ma­chado, e Rabalyn não conseguiu ver nada por um momento. Soou um grito estrangulado. Algo caiu sobre a fogueira, espalhando faúlhas. Ficou então ainda mais escuro. Rabalyn ouviu algo a deslocar-se atra­vés da vegetação rasteira, a respiração pesada.

A Lua apareceu, luz brilhante cor de prata inundando a clareira. O homem do machado ainda estava de pé. Do outro lado da fogueira jazia o corpo de um animal enorme. O fumo envolvia-o, e Rabalyn sentiu o cheiro a pêlo e carne queimados. Outro animal pulou uma árvore tombada, atirando-se ao homem do machado. Ele girou nos cal­canhares, o machado cravando-se no pescoço maciço da criatura. Quando o animal tombou parcialmente, o homem do machado liber­tou a arma e desferiu novo golpe. As lâminas do machado abriram caminho através da espádua, penetrando fundo. Avançaram mais dois animais. Arrancando o machado, virou-se para os enfrentar. Eles re­cuaram, andando à volta dele. Um precipitou-se, depois saltou quando o machado se elevou. O segundo avançou, mas guinou também para o lado no último instante. Rabalyn viu um deles olhar para o céu. O rapaz seguiu o olhar dele. Estavam a avançar mais nuvens, e aper­cebeu-se de que as criaturas esperavam pelo escuro.

O homem do machado atacou o primeiro animal. Ele recuou. Rabalyn desejou poder fazer algo para ajudar o homem. Depois ocor­reu-lhe. Podia distraí-los. Respirando fundo, gritou no máximo da sua voz. Sobressaltada, uma das criaturas semivirou-se. O homem do ma­chado atacou, a sua arma cravando-se na caixa torácica do animal. Ele gritou e caiu de costas, arrancando a arma das mãos do homem. A se­gunda criatura saltou pelo ar. O homem do machado desferiu-lhe um soco com a mão direita nas maxilas. O peso do animal arremessou o homem do machado, e caíram os dois juntos, rebolando pela clareira. Rabalyn desceu da árvore e saltou do ramo mais baixo. Correu para o corpo onde o machado ficara cravado e agarrou o cabo com as duas mãos, puxando-o para se soltar.

O animal não estava morro. Os seus olhos dourados abriram-se e rugiu. Rabalyn puxou para trás com rodas as suas forças. O machado libertou-se. O animal soltou um grito estridente. Semiergueu-se, de­pois tombou de costas, o sangue a jorrar-lhe da enorme ferida no peito. O machado era mais pesado do que Rabalyn supusera. Com enorme esforço, colocou-o ao ombro e avançou vacilante para o sítio onde o homem do machado lumva mm a última criatura. O elmo do velho

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fora-lhe arrancado da cabeça, e o sangue brotava de um golpe no couro cabeludo. A sua mão esquerda apertava a garganta da criatura, esfor­çando-se por afastar do rosto as suas presas abocanhadoras. A direita agarrava o pulso esquerdo do monstro.

Segurando o machado com ambas as mãos, Rabalyn ergueu-o alto. Tombou para trás, quase o levando a desequilibrar-se. Endireitando­

-se, fez descer o machado. Embateu no dorso do animal entre as omo­platas. A criatura soltou um grito hediondo. Arqueou-se, arrastando consigo o homem do machado. Largando o pulso do animal, o homem do machado desferiu-lhe um soco na cabeça. Por detrás da criatura, Rabalyn agarrou o cabo do machado, tentando libertá-lo. O animal virou-se. O seu braço com garras atacou, atingindo Rabalyn no peito e arremessando-o pelo ar. Caiu pesadamente. Meio atordoado, tentou ajoelhar-se. O velho guerreiro tinha mais uma vez o seu machado na mão. O animal recuou, depois fugiu para as árvores.

O guerreiro viu-o ir-se embora, depois acercou-se de Rabalyn. -Ena, saíste-me um rapaz corajoso disse ele. Estendendo a mão, puxou Rabalyn para se levantar.

-Matou três animais-disse Rabalyn. Foi incríveL -Estou a ficar velho respondeu o homem do machado, com

um sorriso. -Houve uma altura em que não teria precisado do ma­

chado para lidar com estes cachorrinhos. -A sério?-perguntou Rabalyn, espantado.

Não, moço, estava a brincar. Nunca tive muito jeito para pia­das. Voltando para o sítio onde lutara com o animal, apanhou o elmo, limpou com a mão o rebordo, depois voltou a colocá-lo na ca­beça. Ouviu-se uma rosnadela cava de um dos corpos. O homem do machado aproximou-se da criatura. As suas patas debatiam-se. O ma­chado subiu, depois cortou-lhe o pescoço. Os movimentos cessaram por completo. Voltando para junto de Rabalyn, o homem do machado estendeu-lhe a mão. -Chamo-me Druss. Obrigado pela tua ajuda. Começava a ter um bocadinho de dificuldade com aquele último.

O prazer foi meu, cavalheiro respondeu Rabalyn, sentindo--se orgulhoso quando apertou a mão do velho.

- Agora quero que voltes a subir para a árvore. Ainda há mais?

Não sei. Mas preciso de te deixar aqui por um bocado. Não te preocupes. Voltarei.

Rabalyn subiu para a bifurcação inicial e instalou-se. Os seus re­ceios tornaram assim tllle Druss abandonou a clareira. E se o homem

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o deixasse ali? Afastou imediatamente a ideia. Não conhecia bem o homem do machado, mas soube instintivamente que não iria mentir dizendo que voltaria. O tempo passou, e o céu clareou. Enfiado na bi­furcação nos ramos, Rabalyn dormitou um pouco. Acordou com o cheiro de carne assada.

Lá em baixo no acampamento, o homem do machado retirara os animais da clareira e voltara a alimentar a fogueira. Estava sentado em frente dela, um naco grosso de carne espetado num pau diante das chamas. Rabalyn desceu para se lhe reunir. O aroma da carne inun­dou-lhe os sentidos. Acocorou-se ao lado do homem do machado.

Depois ocorreu-lhe algo. - Isto não é daquelas criaturas, pois não?

- perguntou. - Não. Muito embora, se estivesse bastante esfomeado, tivesse de

as cozinhar. Cheira bem, não cheira? -Sim, cheira.

-Onde a arranjou? - Do cavalo morto.

Do meu cavalo? -perguntou Rabalyn, horrorizado.

- Só há um cavalo morto, rapaz.

-Não consigo comer o meu cavalo. O homem do machado virou-se para olhar para o rapaz. - É ape­

nas carne. Suspirou, depois soltou uma risada. -Sei o que diria Sieben. Diria que o teu cavalo corre agora noutro sítio. Diria que lá o céu é azul, e o cavalo galopa num campo verde. Tudo o que resta é a capa que usava.

- Acredita nisso?

Aquele cavalo afastou-te do perigo ... mesmo depois de ser fe­

rido de morte. Em algumas culturas, acreditam que se comermos a

carne de um grande animal, absorvemos algumas das suas qualidades.

E acredita nisso? O homem do machado encolheu os ombros. -Acredito que tenho

fome, e que aquilo que eu não comer as raposas devorarão, e as larvas desenvolver-se-ão. É contigo, Rabalyn. Come. Ou não comas. Não te vou obrigar.

-Talvez o seu amigo estivesse certo. Talvez ele esteja a correr noutro mundo.

Talvez. - Acho que vou comer- anunciou Rabalyn. - Segura aqui por um instante - pediu Druss, estendendo a

Rabalyn o espeto de assar. Depois levantou-se e foi buscar o machado

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a uma árvore proxtma. Com dois golpes rápidos, cortou porções da casca, que trouxe de volta. Servirão de pratos-disse.

Mais tarde, depois de terem comido, Rabalyn estendeu-se por terra. Sentia a cabeça oca, como se num sonho. Tinha o estômago

. cheio. Ajudara a derrotar os monstros, e estava sentado junto a uma fogueira ao luar, com um guerreiro poderoso. -Como pode ser tão bom quando é tão velho? -perguntou.

O homem do machado soltou uma gargalhada sonora. Sou de boa cepa. A verdade, porém, é que não sou tão bom como era. Nenhum homem consegue resistir ao tempo. Costumava ser capaz de

percorrer cinquenta quilómetros num dia. Agora fico cansado com metade disso, e tenho uma dor no joelho e no ombro quando vem o Inverno e chove.

-Andou a lutar na guerra?

Não respondeu Druss. -A guerra não é minha. Vim aqui à procura de um velho amigo.

Ele é um guerreiro como o senhor?

Druss riu-se. Não. É um sujeito gordo e simpático com medo da violência. Um bom homem, porém.

-Encontrou-o?

-Ainda não. Nem sequer sei por que veio para aqui. Está muito longe de casa. Pode ter voltado para Mellicane. Hei-de encontrá-lo dentro de um dia ou dois.

Saía ainda uma pequena gota de sangue do golpe na têmpora do velho. Rabalyn viu-o limpá-la.

Isso devia ser cosido ou ligado-disse.

Não é suficientemente fundo para tal. Sarará por si. E agora acho que vou dormir um pouco.

-Fico de vigia? -Sim, moço. Faz isso.

-Acha que o animal pode voltar?

-Duvido. Fizeste-lhe um golpe muito fundo. Provavelmente está demasiado ferido para pensar em comer. Mas se o fizer, então dois grandes heróis como nós devem conseguir dar conta dele. Não te pre­ocupes demasiado, Rabalyn. Tenho o sono leve.

Dito aquilo, o homem do machado estendeu-se e fechou os olhos.

Com Braygan agarrado atrás dele, Skilgannon instigou o cavalo cansado a descer a vertente em direcção aos refugiados. O animal cin­zento estava no fim das suas forças e tropeçou duas vezes.

1-10

Enquanto cavalgava, Skilgannon observava a região. Não via quais­quer sinais dos animais. Transferindo o seu olhar para os refugiados,

viu dois esgrimistas que caminhavam à cabeça da coluna. Eram ambos altos, com cabelo preto cortado curto, e ambos tinham compridas bar­bas. Pararam quando ele se aproximou. Saltando da sela, Skilgannon abordou-os.-É o responsável pelo grupo? perguntou ao primeiro guerreiro. O homem inclinou a cabeça e pareceu confuso, depois virou-se para o outro esgrimista.

Somos os responsáveis, Jared? -Não, Nian. Não fiques preocupado. O que quer? pergun-

tou a Skilgannon. As pessoas faziam agora um círculo, ansiosas por escutar quaisquer notícias que os recém-chegados tivessem trazido.

-Há aqui grande perigo -disse Skilgannon a Jared. -Alcan­çar-nos-á a qualquer momento. -Virando-lhe as costas, Skilgannon tirou Braygan da sela e bateu na garupa do cavalo. Surpreendido, ele começou a correr em direcção ao canavial. Não chegara a percorrer cem metros quando guinou para a direita. Erguera-se um Ambígeno da erva comprida e saltara para ele. O cavalo correu para ele. Ouviram­-se gritos de choque dos refugiados.

Silêncio! -bramou Skilgannon, a sua voz atroadora. A força da sua voz intimidou a multidão. Ficaram em silêncio aguardando ins­truções. -Juntem-se. Formem um círculo o mais fechado possível. Já! As vossas vidas dependem disso! Quando a multidão começou a mover-se, Skilgannon gritou de novo: Cada homem aqui que tiver uma arma que venha ter comigo. Os homens começaram a arrastar-se na direcção dele. Alguns tinham espadas, outros facas.

Vários tinham mocas de madeira ou foices. Virando-se para o esgri-mista, Jared, disse: Vá para o outro lado do círculo. Fique de fora dele. Faça-o agora! A atenção de Skilgannon convergiu para os ho-mens reunidos. -Há animais lá adiante ... Ambígenos que fugiram

da Arena em Mellicane. Já mataram muitos refugiados. Espalhem-se à volta do círculo, virados para fora. Quando os animais aparecerem,

façam o máximo de barulho que puderem. Gritem, berrem, batam com as armas. Não se afastem do círculo.

Havia menos de vinte homens armados. Não chegavam para for­mar um círculo protector à volta dos refugiados. Skilgannon gritou às mulheres. Precisamos de mais gente para o círculo de com-bate-disse. Há aqui mulheres que tenham armas? -Cerca de uma dúzia de mulheres avançou. A maioria tinha facas compri­das, mas uma apresentou um pequeno machado. Coloquem-se ao

141

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lado dos homens -disse-lhes Skilgannon. -As restantes sentem­-se. Quando começar o ataque, agarrem a pessoa mais perto de vocês. Mantenham-se junto ao solo. Não deixem as crianças entrar em pâ­nico ou fugir. E não desfaçam o círculo.

Braygan ficou onde estava, olhando ansiosamente na direcção do canavial, a não mais de quatrocentos metros de distância. Skilgannon agarrou-o pelo braço. -Vá sentar-se com as mulheres e as crianças -disse. Não pode fazer nada aqui.

O pequeno padre fez o que lhe mandavam, avançando até junto dos refugiados aglomerados e sentou-se. Relanceou o círculo. Teria uns nove metros de diâmetro. A sua volta estavam os guerreiros, tanto homens como mulheres, que Skilgannon reunira. Braygan continuava em choque. Vira o Irmão Lantern lutar, mas este era um homem que nunca vira. Observou Skilgannon enquanto se deslocava pela parte ex­terior do círculo, dando ordens. As pessoas bebiam cada palavra sua. Irradiava poder e autoridade.

A luz começava a diminuir. Ouviu-se um uivo a toda a volta deles. As crianças gritaram em pânico e algumas pessoas começaram a le­vantar-se, prontas para fugir.

-Fiquem quietos! -vociferou Skilgannon. Braygan viu-o puxar das espadas.

Um enorme Ambígeno empinou-se e correu para o círculo. Skil­gannon saltou ao encontro dele. O animal atacou-o. A espada dourada na mão direita de Skilgannon brilhou, cortando o ventre do Ambígeno. Baixando-se ante um movimento do seu braço com garras, Skilgannon rodou. A espada de prata na sua mão esquerda cravou-se no pescoço do animal. Caiu de quatro, o sangue a jorrar-lhe das feridas. O esgri­mista, Nian, atacou, fazendo descer o sabre que requeria duas mãos sobre o crânio do Ambígeno. A criatura caiu por terra, morta.

-Não desfaçam o círculo!-gritou Skilgannon.-Aguentem a linha.

Os animais começavam agora a reunir-se à volta deles. -Mantenham-se firmes! -ouviu Skilgannon gritar. A sua voz

não chegou a ser abafi1da por um uivo medonho que gelou o sangue. Braygan fechou os olhos com ti.1rça e começou a rezar.

1·12

CAPÍTULO 8

Sentado junto à fogueira, o odor suave a fumo da madeira a pairar no ar nocturno, Rabalyn sentiu-se subitamente liberto do medo. No seu lugar instalou-se uma suave melancolia. Apercebeu-se de que pensava na Tia Athyla, e em tempos mais calmos e mais seguros, quando ela misturava pão duro com leite, frutos secos e mel e prepa­rava um pudim. Depois sentavam-se aos serões junto à lareira e cortavam fatias grossas, saboreando cada bocada. Nessas alturas, Rabalyn sonhava ser um grande herói, percorrer o mundo carregando uma espada mágica. Libertar donzelas em apuros e merecer o seu amor eterno.

Agora lutara com um animal, ao lado de um guerreiro verdadeira­mente grande. Olhou para o homem adormecido. Druss viera à pro­cura de um amigo. Uma espécie de empresa. Precisamente como o Velho Labbers dissera. A maioria andava à procura de jóias mágicas, ou outros artigos de feitiçaria. Ou eram realmente reis disfarçados. Rabalyn adorara as histórias mesmo as estúpidas. Não conseguia compreender porque é que uma sucessão de monarcas de outro modo sensatos enviava sempre o filho mais velho numa empresa. Certamente sabia que o filho mais velho morria sempre ou era capturado. Então, era a vez de o segundo mais velho partir. Caía num poço, ou era co­mido pelos lobos, ou seduzido por bruxas. Por último, o rei mandava o filho mais novo e mais inexperiente. Ele terminava a empresa, en­contrava a princesa e viviam felizes para sempre. Se Rabalyn fosse um rei, mandaria primeiro o filho mais novo. Ria-se com frequência en­quanto a história era contada. Labbers exasperava-se. - Qual é a piada, filho?

14.,

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Rabalyn nunca era capaz de explicar. Limitava-se a responder: -Nenhuma, senhor.

Por vezes, o rei não tinha filhos. Apenas filhas. Estas histórias eram as preferidas das outras crianças. Rabalyn não gostava delas. O rei an-

, dava à procura de um pretendente para a sua filha mais bela. Vinham todos os nobres ricos e atraentes. É claro que estavam condenados ao fracasso. O homem que conquistava a mão da princesa era um ajudante de cozinha, ou um moço de estrebaria, ou um jovem ladrão. Naturalmente, tinha de dar provas da sua bravura matando um dra­gão, ou outra coisa qualquer, e fá-lo-ia de uma forma furtiva tão do agrado das crianças. Rabalyn detestava-as sobretudo pela maneira como terminavam. Acabava-se sempre por descobrir que o moço de estreba­ria era o filho secreto de um grande rei ou feiticeiro. As princesas, ao que parecia, não se apaixonavam simplesmente por gente do povo.

A seu lado, o homem do machado ressonava baixinho. -Realmente tem o sono leve, não haja dúvida - murmurou Rabalyn.

- Não te deixes iludir pelas aparências - respondeu o homem. Rabalyn soltou uma gargalhada e deitou uma acha para a fogueira. O homem do machado sentou-se e bocejou.

-Era o filho mais novo? -perguntou Rabalyn. O velho guerreiro abanou a cabeça e coçou a sua barba negra e pra-

teada. -Era o único filho. -Alguma vez se apaixonou por uma princesa? -Não. O meu amigo Sieben é que era homem para se apaixonar

por princesas. Bem, princesas, duquesas, criadas, cortesãs. Qualquer uma, na verdade. Acabou por casar com uma guerreira nadir. Foi então que começou a ficar sem cabelo.

-Ela lançou-lhe um feitiço? O homem do machado riu-se. -Não, rapaz, ela apenas o esgotou.

-Conversaram durante um bocado. A fogueira libertava calor, a noite estava tranquila. Rabalyn falou ao homem do machado da sua Tia Athyla e da cabana deles, e que sempre sonhara ser um grande guerreiro.

- Todos os rapazes querem ser guerreiros - murmurou Druss. -É por isso que tantos morrem jovens. Nós não alcançamos nada, sabes, Rabalyn. Quando muito lutamos para que outros homens possam conseguir aiRo. Nem sequer somos importantes.

-Eu acho que o St'nhor {: importante -contrapôs Rabalyn. O homem do machado soltou uma gargalhada. - É claro que

achas. És jovt·m. llm a,L:ricultor lavra a terra e faz sementeiras. As

I ,

colheitas alimentam as cidades. Nas cidades, os homens criam leis, para que os mais jovens como tu possam crescer em paz e aprender. As pessoas casam, e têm filhos, e ensinam-nos a respeitar a terra e os seus concidadãos. Os filósofos e os poetas difundem o conhecimento. O mundo desenvolve-se. Depois, vem um guerreiro, com uma espada reluzente e um ferro incandescente. Incendeia a quinta e mata o agri­cultor. Avança pelas cidades e viola esposas e donzelas. Planta o ódio como uma semente. Quando ele chega só há duas hipóteses. Fugir ... ou chamar homens como eu.

-Mas o senhor não é como os assassinos e os violadores. -Sou o que sou, rapaz. Não tento arranjar desculpas para a minha

vida. Não era suficientemente forte para ser agricultor. Rabalyn ficou baralhado, pois nunca vira um homem tão forte.

Nenhum agricultor teria conseguido enfrentar os animais como este homem fizera. Rabalyn atirou uns paus para a fogueira e ficou a vê­-los pegar fogo.

-Como foi que os Imortais perderam em Skeln?-perguntou. -Enfrentaram melhores lutadores nesse dia. -Lutadores melhores do que o senhor? -És um poço sem fundo de perguntas. -Há tanta coisa que eu não sei. -Pois é, pelos vistos nós não somos tão diferentes, Rabalyn. Há

imensa coisa que eu não sei. -Mas o senhor é velho e sábio. O homem do machado olhou intensamente para o rapaz. -Ficaria

mais feliz se parasses de te referir à minha idade. Já é suficientemente mau ter vivido tanto, sem ter de ser constantemente lembrado.

-Peço desculpa. -E não sou sábio, Rabalyn. Se fosse sábio, teria ficado em casa

com a mulher que amava. Teria cultivado a terra e plantado árvores. Teria criado gado e ido vendê-lo ao mercado. Procurei antes guerras e batalhas para travar. Velho e sábio? Conheci homens sábios que eram jovens, e homens estúpidos que eram velhos. Conheci homens bons que fizeram coisas más, e homens maus que tentaram praticar o bem. Escapa tudo à nossa compreensão.

-Teve filhos? -Não. Lamento-o. Apesar de ter de dizer que fico tenso perto

dos muito jovens. Os gritos e os guinchos ferem-me os ouvidos. Não sou grande apreciador do ruído. Ou das pessoas, já agora. Irritam-me.

-Quer que eu me cale�

14'5

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-Moço, tu desceste daquela árvore e provavelmente salvaste-me

a vida. Podes falar o que te apetecer. Cantar e dançar se quiseres. Posso ser rabugento, mas nunca sou ingrato. Estou em dívida para contigo.

Rabalyn sentiu-se todo orgulhoso. Desejou poder agarrar este , momento para sempre. Ficaram em silêncio. Rabalyn escutou o es­

tralejar da lenha a arder, e sentiu a brisa nocturna a roçar-lhe a pele. Olhou de novo para o homem do machado. -Se é verdadeiramente

como aqueles assassinos que atacam as cidades, então por que ajudou aquelas pessoas quando os soldados as estavam a matar?

- Teve de ser, moço. É o código. -Não entendo- disse Rabalyn. - É a única coisa que me separa dos assassinos. Eles vêem o que

querem e aceitam-no. Chegaram como aqueles animais que matámos esta noite. Por fora, parecem-se com os demais. Debaixo da pele são selvagens e cruéis. Não têm misericórdia. Esse animal também existe em mim, Rabalyn. Mantenho-o acorrentado. O código prende-o.

-O que é o código. O homem do machado esboçou um sorriso forçado. - Se eu te

disser, tens de jurar viver segundo ele. Queres realmente ouvi-lo? Pode ser a tua morte.

-Sim. O homem do machado recostou-se e fechou os olhos. Quando

falou, foi como se estivesse a recitar uma prece. As palavras ficaram a pairar no ar. -Nunca violar uma mulher, nem fazer mal a uma criança. Não mentir, enganar ou roubar. Estas coisas são para os homens inferiores. Proteger os fracos do mal forte. E nunca deixar que a ideia do lucro te leve à

prática do mal. -Foi o seu pai que lhe ensinou? - inquiriu Rabalyn. -Não. Foi um amigo. Chamava-se Shadak. Tive sorte com os

amigos, Rabalyn. Espero que também tenhas. -Anda à procura de Shadak? Druss abanou a cabeça. -Não, ele morreu há muito tempo. Tinha

mais de setenta anos. Foi esfaqueado num beco por três assaltantes. -Eles foram apanhados? -Dois foram apanhados e enforcados. Um escapou. Fugiu para

uma colónia nas colinas altas. Um amigo de Shadak seguiu-lhe o rasto e matou-o, e o bando que ele reunira.

-Então anda à procura de quem? -Do jovem Conde de Dros Purdol. Ele veio para Mellicane há

dois meses, e depois desapareceu.

116

- Talvez esteja morto -sugeriu Rabalyn.

- Sim, essa ideia já me tinha ocorrido. Espero que não. É um bom homem, e tem uma filha de oito anos, Elanin, que é uma alegria cons­tante. Sempre que a vejo, ela faz grinaldas de margaridas que tenho

de usar no cabelo. Rabalyn riu-se ao imaginar o guerreiro sinistro com uma coroa de

flores. - Não tinha dito que ficava tenso perto dos jovens? -Fico. Elanin é uma excepção. O ano passado um cão selvagem

atacou-a na minha quinta. A maior parte das crianças teria ficado em pânico. O cão era grande e tê-la-ia maltratado. Mesmo quando corri

para afastar o cão, ela pegou num pau e bateu-lhe com ele no focinho.

O animal latiu e fugiu. -E gosta dela por ser corajosa?

-Admiro a coragem, rapaz. -O velho suspirou. -Espero que ela esteja de novo em Dros Purdol, preocupadíssima com o pai. Ver os dois juntos anima a alma.

-Posso viajar consigo para Mellicane? - perguntou Rabalyn. - Claro. Mas os teus amigos virão buscar-te. -Não creio. Dispersámo-nos quando os animais atacaram. Espero

que eles sigam sem mim.

Druss abanou a cabeça. -À medida que fores ficando mais velho, aprenderás a julgar melhor os homens. O homem das espadas nunca deixaria para trás um amigo. Irá continuar a procurar até te encontrar.

-A menos que os animais o matassem.

-Isso seria uma surpresa para mim - retorquiu o homem do machado.-Confia em mim. Seria muito difícil matá-lo. Devias ten­tar dormir um pouco. Ficarei aqui sentado um bocado e ... com a tua licença ... irei desfrutar de um pouco de silêncio.

-Sim, senhor - disse Rabalyn, com um sorriso. Instalando-se

junto à fogueira, tentou ficar acordado. Queria saborear esta noite, en­cher a mente com ela para que nem sequer o mais pequeno pormenor lhe fosse escapar.

-O seu pai era um rei?- indagou, ensonado. -Não. Era um homem do povo, como eu. -Ainda bem. Rabalyn estava quase a adormecer quando o vento mudou. Ouviu

uivos distantes, e o que pareceu um grito de dor. - Há outros a lutar esta noite -afirmou Druss. - Que a Fonte

esteja com eles. O som da voz do velho reconfortou o jovem.

117

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E adormeceu.

Elanin era uma criança inteligente, e até havia bem pouco tempo, feliz e bem-disposta. Quando a mãe chegara para uma das suas raras visitas a Dros Purdol, ela ficara satisfeita de a ver. Quando a mãe dis­sera que a ia levar numa viagem por mar, para se encontrar com o pai em Mellicane, ela ficara encantada. Esperara, como fazem as crianças, que isso significasse que a Mãe e o Pai iam voltar um para o outro, e seriam novamente amigos.

Mas fora tudo uma mentira. O Pai não estivera em Mellicane. Ao invés, a Mãe levara-a para um

palácio enorme, e lá conhecera o terrível Shakusan Máscara de Ferro. O encontro não fora, de início, assustador. O Máscara de Ferro era um homem grande, de ombros largos e vigoroso. Não usava a máscara que lhe dera o nome. Tinha um rosto atraente, apesar de estranhamente descolorado desde a cana do nariz até ao queixo. Um dos criados em Dros Purdol tinha também um sinal de nascença púrpura, de lado no rosto. Mas este era bem pior.

A Mãe dissera que ele ia ser o novo pai dela. Era simplesmente tão absurdo que Elanin se rira. Para que precisava de um novo pai? Amava o que tinha. A Mãe dissera que o Pai já não a queria e dera instru­ções para que passasse a viver com a mãe. Ao ouvir aquilo, Elanin ficara zangada. Sabia no seu íntimo tratar-se de mais uma mentira e referiu-o à mãe. Fora então que o Máscara de Ferro lhe batera no rosto com a palma da mão. Nunca ninguém lhe batera antes, e Elanin ficara mais chocada do que magoada. A força da pancada atirara-a ao chão. Máscara de Ferro erguera-se sobre ela, ameaçador. Na minha casa, tratarás a tua mãe com respeito-disse. -Senão sofrerás as conse-quências. Depois fora-se embora.

A Mãe ajoelhara junto dela, ajudando-a a levantar-se, e acariciando­-lhe o cabelo louro. Pronto, estás a ver disse. Não o deves fazer zangar. Nunca o deves fazer zangar.-Foi então que Elanin viu que a mãe estava assustada.

Ele é um homem horrível-referiu.-Não quero ficar aqui. Subitamente, a Mãe parecera aterrada e virara-se para ver se o

comentário fora escutado. -Não fales assim! -disse, a sua voz mu­dando. - Promete-me que não o voltarás a fazer.

- Não prometo. Quero o meu pai. As coisas v;lo melhorar. Confia em mim que sim. Oh, por favor,

Elanin. 'li:ma apt•tws st•r simpática com ele. Ele pode ser encantador,

e maravilhoso, e generoso. Vais ver. Só que ele tem um ... tempera­mento terrível. Há uma guerra, percebes, e ele está sob uma enorme tensão.

-Odeio-o -disse Elanin. Ele bateu-me. Escuta-me -afirmou a mãe, atraindo-a a si. Não estamos

em terras dos Drenai. Os costumes aqui são diferentes. Tens de ser educada com Shakusan. Senão ele faz-te mal. Ou a mim. - O medo na voz da mãe conseguiu penetrar através da raiva de Elanin.

Nos dias que se seguiram, tinha cuidado perto do Máscara de Ferro, evitando o contacto sempre que possível, e permanecendo calada e fa­lando baixinho quando era necessário. Não tardou a aperceber-se de quão tímidos eram os criados. Não diziam piadas nem riam, como os seus criados lá em Purdol. Moviam-se em silêncio, fazendo vénias sempre que a viam ou à mãe. Uma das criadas trouxera-lhe o pequeno­-almoço no quinto dia. Elanin viu que a rapariga-que não teria mais de quinze anos -perdera dois dedos da mão direita. O coto de um estava coberto com uma prega de pele mal cosida e havia sangue seco à sua volta. A rapariga não abriu a boca e evitou o contacto visual, por isso Elanin não a inquiriu sobre o ferimento. No mesmo dia, reparou que vários dos criados tinham perdido dedos.

Naquela noite, foi acordada pelo som de gritos vindos lá de baixo. Elanin saltou da cama e correu para o quarto que a Mãe partilhava com o Máscara de Ferro. Ele não se encontrava, e a Mãe estava sen­tada na cama, abraçada aos joelhos e a chorar.

-Está alguém a gritar, Mãe! -exclamou Elanin. A Mãe abra­çara-a e não dissera nada. Mais tarde, quando ouviram o Máscara de Ferro aproximar-se, a Mãe mandara Elanin voltar para o seu quarto.

Ficara deitada na cama, a sonhar que a vinham salvar. Por muito que amasse o pai, sabia que Orastes não era suficientemente forte para a tirar e à Mãe ao Máscara de Ferro. Ele era um homem mara­vilhoso, mas grande parte da sua vida era passada com medo. Os ofi­ciais em Dros Purdol provocavam-no e tratavam-no com desprezo. Até a Mãe, quando estava de visita, falava depreciativamente dele na presença dos outros. Ele ficava sempre magoado, mas não fazia nada para a impedir. Nada disto importava para Elanin, que o amava mais do que conseguia exprimir. Não, quando sonhara com a salva­ção naqueles primeiros tempos, pensara no Tio Druss. Ele era o homem mais forte do mundo. No ano anterior, quando ela e o Pai o tinham visitado na sua quinta nas montanhas, ele endireitara-lhe uma ferradura com as mãos. Fora como um tnlt]Ue de magia, e

149

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quando voltara para Purdol, ninguém acreditara nela. Ninguém era assim tão forte, tinham-lhe garantido.

Esperava que o Pai enviasse o Tio Druss a Mellicane.

Quando Rabalyn acordou, o céu estava brilhante e sem nuvens, de um azul glorioso que lhe animou o coração. Bocejou e espreguiçou­-se. O homem do machado olhou para ele e sorriu. Digo-te uma coisa, moço, se dormir alguma vez pega como desporto, apostarei tudo o que tenho em como serás campeão.

Rabalyn esfregou os olhos para afastar o sono. Dormiu?-per-

guntou. Dormitei um bocadinho. Druss desviou o olhar, na direcção

das árvores, semicerrando os olhos. -Está ali alguma coisa? -perguntou Rabalyn, o medo a crescer. -Não é alguma coisa. Alguém. Já ali está há um bocado-res-

pondeu Druss, falando baixo. Não consigo ver ninguém. Ela está ali.

-Ela? Druss virou-se para o jovem. -Quando ela aparecer, não lhe faças

perguntas. Por vezes é uma rapariga estranha. O homem do machado alimentou a fogueira, depois levantou-se

e estendeu os seus braços enormes por cima da cabeça.-Raios, dói­-me o ombro - disse. - Vem lá chuva. Enquanto falava, uma mulher jovem saiu das árvores. Trazia num ombro uma pequena mo­chila, e na mão, presas pelas orelhas, duas lebres mortas. Rabalyn observou-a. Era alta e magra, os seus movimentos graciosos. O seu cabelo comprido dourado como o mel fora afastado da testa e preso numa trança única, que lhe pendia entre os ombros. As roupas dela eram escuras -uma capa pelo tornozelo por cima de um blusão de couro preto brilhante, os ombros adornados com argolas de malha magnificamente trabalhadas, enegrecidas para evitar que reflectissem a luz. As calças eram também de couro, mas castanho-escuras. Calçava mocassinas com franja pelo joelho, e trazia uma espada curta numa bainha preta. Rabalyn olhou-lhe para o rosto. Era bela, apesar de a sua expressão ser carrancuda e intencional. Avançando para a fo­gueira, largou a mochila e atirou as lebres para o chão. Sem dizer uma palavra, retirou uma pequena faca curva e começou a esfolá-las. Druss embrenhou-se nas árvores, deixando Rabalyn sozinho com a mullwr. Ela i�normt-o, <.' continuou a preparar a comida. Tirou da

J"j()

mochila uma pequena panela, colocando-a perto do fogo. Rabalyn permaneceu sentado em silêncio enquanto ela cortava a carne lá para dentro. Druss aproximou-se, trazendo o elmo virado para cima. Indo até à fogueira, ofereceu-o à mulher. Rabalyn viu que estava cheio de água. Pegando nele, a mulher despejou o conteúdo na panela e colo­cou-a na fogueira.

Depois instalou-se e olhou para os corpos dos animais. O quarto está morto disse ela. Rabalyn estremeceu quando

ela quebrou o estranho silêncio.- Matámo-lo a noite passada. A voz dela era áspera e fria. Tivemos sorte. Ele já estava ferido e fraco.

-O rapaz atingiu-o com o meu machado referiu Druss. Pela primeira vez, o olhar da mulher convergiu para Rabalyn.

Os olhos dela eram de um cinzento fuligem. Inclinou a cabeça quando olhou para ele, a sua expressão inalterada. Rabalyn sentiu­-se ruborizar. Ela olhou então para Druss. Por fim, levantou-se e aproximou-se dos animais mortos, examinando-os, e a seguir o solo à volta do local do acampamento. Por último, voltou para junto da fogueira. - Agora já sabes - referiu Druss.

Sim. Foi o que pensei.

A mulher desapertou a capa e deixou-a cair por terra. A seguir, re­tirou um cinturão estreito de couro do qual pendia uma pequena besta preta de disparo duplo. Rabalyn nunca antes vira uma arma assim. Inclinou-se para a frente. - Posso vê-la? - perguntou. A mulher ignorou-o. -O teu machado alojou-se num dos animais. O rapaz re­tirou-o enquanto lutavas com o último-disse ela a Druss. O rapaz esteve escondido naquela árvore até então.

-Exactamente. Agora mostra-lhe a tua besta, Garianne su-geriu o homem do machado, delicadamente.- É um bom rapaz e não tem maus instintos.

Erguendo a arma, estendeu-a a Rabalyn sem olhar para ele. A besta tinha cerca de trinta centímetros de comprimento, com dois gatilhos de bronze e um cabo de curvatura pronunciada. Virou-a nas mãos, tentando ver como se inseria a flecha de baixo. Era um mecanismo habilidoso. A flecha de cima era colocada apenas numa ranhura no eixo principal, a segunda flecha era carregada por baixo, através de uma abertura na lateral. A arma era mais leve do que parecia. Surgiu-lhe uma imagem na mente, de um homem alto, de olhos escuros e magro. Depois desapareceu. Rabalyn colocou a besta no chão. Garianne apro­ximou-se do recipiente de cozinhar, mt•xemlo o conteúdo com uma

1 5 I

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colher de pau. Retirou da mochila um pequeno saco com sal e deitou várias pitadas. Depois, pegou noutra embalagem de musselina e polvilhou o caldo com ervas secas. Um aroma saboroso espalhou-se pelo ar.

O tempo passou, e Rabalyn sentiu-se constrangido com a falta de diálogo. A mulher não dizia nada. O homem do machado parecia des­preocupado. Por fim, Garianne levantou a panela e assentou-a no solo para arrefecer. De vez em quando mexia-a. -Pagar-re-ei uma refei­ção em Mellicane -disse Druss.

-Nós não vamos para a cidade. Dirigimo-nos para norte. Que­remos ver as terras altas.

-Há umas vistas para ver -concordou o homem do machado. -Se mudares de ideia, estarei na Veado Carmesim, no Cais Oeste. -Ela pareceu não escutar, depois Rabalyn viu-a inclinar a cabeça para um lado e acenar.

-Não gosto de cidades -disse ela, erguendo o olhar. Depois houve uma pausa. -Para ti é fácil de dizer -continuou ela. A se­guir, outra pausa. -Mas eu posso caçar aquilo que precisarmos. -Por fim, encolheu os ombros e disse: -Como desejares.

Agora é que Rabalyn ficara confuso. O homem do machado parecia aceitar com naturalidade toda a conversa unilateral. Aproximando-se da panela, pegou na colher e mexeu o conteúdo. -Cheira bem -disse.

-Come-respondeu Garianne. Druss comeu várias colheradas, depois passou a panela e a colher a Rabalyn. O caldo estava grosso e saboroso, e comeu também. Por fim, empurrou a panela na direcção de Garianne. Ela suspirou. -Agora não tenho fome -anunciou, voltando a pôr o cinturão e colocar a capa. -Nós depois vemos-te em Mellicane, Tio.

-Levarei comigo a tua panela-disse-lhe. Ela encaminhou-se para as árvores sem mais uma palavra. Druss acabou o caldo. -Com quem é que ela estava a falar?­

indagou Rabalyn. O homem do machado encolheu os ombros. -Não sei. Aprendi

que há mais coisas neste mundo do que as que consigo ver. No en­tanto, gosto dela.

-É tio dela? -Posso imaginar sobrinhas piores. Mas não, não sou tio dela.

Começou a tratar-me assim depois de eu cuidar dela durante uma febre o ano passado.

-Acho que ela é louca-comentou Rabalyn.

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-Sim, vejo por que razão pensas assim. -Por que é que ela não esperou que acabasse o caldo? Assim

podia ter levado a panela. -Ela não se sente à vontade na presença de pessoas. Puseste-a

nervosa. -Eu? Como? -Fizeste-lhe uma pergunta. Eu tinha-te avisado, moço. Ela não

vê com bons olhos as perguntas. -Só lhe pedi para ver a besta. Estava a ser educado. -Eu sei. Ela é uma moça estranha. Mas tem bom coração e usa

aquela besta com extrema perícia. -O que pensa a família dela de andar assim vestida como um

homem? -indagou Rabalyn. Druss soltou uma sonora gargalhada. -Esqueço-me de que vens

de uma pequena comunidade, moço. Ela não tem qualquer família ... pelo menos que eu saiba. As vezes viaja com dois gémeos. Bons moços. Um é um simplório. Porém, nunca a ouvi falar da família. A meu ver, provavelmente foi morta. Isso, ou algum outro choque dei­xou-a transtornada. Ela nem sempre foi como a viste hoje. Basta beber um pouco de vinho e canta como a ave canora mais melodiosa. Sim, e dança e ri. Só quando as vozes chegam é que ela ... bem, tu viste­concluiu, desajeitadamente.

-Como a conheceu? -Alguma vez se te acabam as perguntas, moço? -respondeu

Druss, pondo-se em pé. -Vá lá, está na hora de irmos andando. Tenho a impressão de que em breve vamos encontrar os teus amigos.

Com a chegada da alvorada, Braygan estava mais exausto do que em qualquer outro momento da sua vida. O sol intenso feria-lhe os olhos, e sentiu-se como se caminhasse num sonho. Um rapazinho dor­mia a seu lado, a sua mãe aterrorizada acariciando-lhe o cabelo. Havia outras mulheres e crianças amontoadas no centro do círculo. Uma ra­pariga dos seus três anos começou a chorar. Braygan estendeu a mão para a consolar, mas ela esquivou-se. Uma mulher chamou a criança, que foi ter com ela, a soluçar. Braygan pôs-se em pé e deslocou-se até ao exterior do círculo, onde se encontrava Skilgannon, com cerca de uma dúzia de homens que tinham sobrevivido, e o mesmo número de mulheres fortes. Algumas das mulheres no círculo estavam arma­das de facas. As restantes tinham bocados grossos de madeira, que haviam usado como mocas quando os animais atacaram.

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-Eles foram-se embora desta vez? - perguntou Braygan, olhando para o sangue seco nas espadas de Skilgannon.

Skilgannon fitou o padre e encolheu os ombros. Precisamente do outro lado do círculo jazia o corpo gigante de uma criatura hedionda.

, Braygan esforçou-se por não olhar para ela, mas os seus olhos foram atraídos para as suas maxilas imensas. O pequeno padre vira aquelas presas esmagarem o crânio de um homem, arrancando a cabeça dos ombros, antes de Skilgannon intervir, abrindo um buraco na garganta do animal. O corpo sem cabeça do homem já não se via. Outras criaturas haviam-no arrastado para o escuro, juntamente com os cadáveres de outros Ambígenos.

Braygan virou-se para olhar para o aglomerado de pessoas amon­toadas dentro do círculo. Havia ali cinquenta ou mais, metade delas crianças.

-Quantos de nós é que eles apanharam?-perguntou Braygan. -Dez. . . quinze - respondeu Skilgannon, em tom cansado.

-Não tive tempo de contar. Os dois irmãos, Jared e Nian, afastaram-se do círculo exterior e

abeiraram-se de Skilgannon. Carregavam ambos espadas compridas, com punhos de cabo duplo. -Acha que devíamos tentar pôr-nos a caminho, agora qtie há claridade? -perguntou Jared.

-Esperem um pouco -disse Skilgannon. -Eles podem ter-se refugiado no canavial, e estar precisamente à espera disso.

-Eu contei dezoito -referiu o jovem. -Acho que matámos pelo menos cinco, e ferimos mais quatro.

-Eu cortei a cabeça a um -anunciou Nian. -Viste aquilo, Jared? Viste-me cortar-lhe a cabeça?

-Vi. Estiveste bem. Muito corajoso, Nian. -Viu? -perguntou o homem a Skilgannon. -Viu-me cortar-

-lhe a cabeça? -O seu irmão tem razão. É muito corajoso -disse Skilgannon.

Braygan reparou que o simplório esboçara um sorriso de esguelha, de­pois estendera a mão e agarrara a comprida faixa azul que pendia do cinto do irmão. Ficou ali, de espada numa mão, a faixa na outra.

-Não podemos ficar aqui à espera o dia todo -alvitrou Skil­gannon. -Ou eles se foram, ou estão de atalaia. Precisamos de saber qual das hipóteses.

-O que está a pensar?-inquiriu Jared. -Vou dar um passeio até ao canavial. -Eu faço-lhe companhia.

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Skilgannon olhou para lá de Jared, para o irmão dele. -Talvez seja melhor Nian ficar para trás ... para cuidar das mulheres e das crianças. -Jared abanou a cabeça.

-Eu não faria isso, meu amigo. Ele precisa de estar perto de mim. -Nesse caso, ficam ambos aqui - decidiu Skilgannon. Em-

bainhou as espadas e afastou-se em direcção a noroeste. Braygan viu-o afastar-se ... e o coração caiu-lhe aos pés. Começou

um murmúrio entre as outras pessoas no círculo, enquanto obser­vavam Skilgannon a deslocar-se rumo ao canavial. -Mantenham o círculo! -gritou Jared, afastando-se de Braygan. -Ele foi apenas bater o terreno. Voltará. Fiquem atentos!

Uma onda de despeito atingiu Braygan, e sentiu-se imediatamente envergonhado. Quão rapidamente Skilgannon se tornara importante na vida destas pessoas. Ele era o seu salvador e a sua esperança. O que sou eu, perguntou-se Braygan? Não sou nada. Se estas pessoas sobre­viverem, não se recordarão do pequeno padre gorducho aninhado no meio do círculo, a suplicar à Fonte que o mantivesse vivo. Recordarão o guerreiro de cabelo escuro com as espadas gémeas que assumiu o

comando, formando o círculo que os salvou. Lembrar-se-ão dele até ao fim das suas vidas.

-Está ali um! -O grito foi de pleno terror, e as crianças solta­ram um lamento.

Braygan virou-se, os olhos arregalados e receosos. Aparecera uma forma escura na erva alta. Era uma mulher de cabelo dourado com uma capa escura. O alívio de Braygan foi imenso.

-É Garianne! É Garianne! -gritou o simplório, Nian. Agar­rando ainda a faixa do irmão, encaminhou-se para a mulher. Jared agarrou-lhe o braço.

-Não me puxes -disse, baixinho. -Ela vem para aqui. -Nian acenou.

-Aqui, Garianne. Estamos aqui. A mulher era extremamente atraente, os seus olhos de um cinzento

ligeiramente salpicado, o seu cabelo entrançado brilhando com o sol. Aproximou-se dos dois irmãos. Nian foi ter com ela e, largando a es­pada, levantou-a num abraço. Ela beijou-o ao de leve na face.-Põe­-me no chão -pediu -, e acalma-te.

A seguir virou-se para Jared. -É uma satisfação vermos-te vivo -disse ela, a sua voz uniforme e sem emoção. Não sorriu.

-É bom ver-te, Garianne -disse-lhe Jared. -Tu ... ? -pigar-reou.-Estávamos a perguntar-nos st• os animais ainda andam por perto.

155

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-Alguns foram para nordeste durante a noite. Matámos um. O Tio Velho e o seu amigo mataram mais três.

-Eu cortei a cabeça a um-aludiu Nian. Conta-lhe, Jared. -É verdade. Ele foi muito corajoso, Garianne. Seria bom se

, pudesses ficar algum tempo e ajudar-nos a repelir as criaturas. Há aqui muitas crianças.

Nós vamos para Mellicane. O Tio Velho vai pagar-nos uma re-

feição. -Nós vamos todos para Mellicane, Garianne. Nian ficaria muito

feliz se viesses connosco. Sim, sim, vem connosco, Garianne insistiu Nian, avançando

e agarrando a faixa azul no cinto do irmão. Subitamente, a mulher sorriu. Braygan achou o momento arrebatador. Naquele instante ela passou de atraente a extremamente bela. Aproximando-se de Nian, envolveu-lhe o ombro com o braço. Quem me dera ter-te visto a cortar-lhe a cabeça -disse, beijando-lhe a face.

-Foram precisos três golpes. O Tio Velho também vem? O sorriso dela desapareceu e afastou-se de Nian.

Nada de perguntas, Nian - lembrou Jared, delicadamente.

Esqueceste-te? -Desculpa, Garianne-balbuciou Nian. O sorriso dela voltou

fugazmente, e pareceu descontrair. O Tio Velho vem aí. Talvez dentro de uma hora. Talvez menos

disse-lhes. Jared virou-se para Braygan.-O Tio Velho é um guerreiro cha-

mado Druss. Já ouviu o nome dele? Braygan abanou a cabeça. -Ele é drenai e, tal como o seu amigo, é mortífero. Com

Garianne e Druss temos mais hipóteses contra quaisquer animais.

Skilgannon encaminhou-se para a margem oscilante do canavial, os seus movimentos suaves e inapressados, perscrutando qualquer indício de movimento no canavial que não fosse provocado pela brisa. Estava exactamente como se afigurava àqueles que o obser­vavam do círculo, descontraído e deambulando, as suas espadas embainhadas.

Malanek chamara-lhe a i/t;são de outro lugar: em que a mente flutua livre e entrega o rontrolo do corpo aos instintos e aos sentidos. Enquanto caminhava, Skil�annon deixou que os seus pensamentos va­gueassem atC:: lon�t·, nwsmo enquanto os seus olhos se mantinham atl·n tos ao pc:ri�o.

Pensou em Malanek, e no treino tortuoso, nos exercícios infindá­veis e no duro regime de stresse físico. Lembrou-se de Greavas e Sperian, e da crescente tensão dos dias subsequentes à coroação de Bokram. As detenções foram súbitas. Houve casas invadidas, os seus ocupantes arrastados de lá para fora. Ninguém falou dos mortos. Os seguidores conhecidos do imperador falecído desapareceram ou foram executados publicamente na Praça do Leopardo.

O medo desceu sobre a capital. As pessoas olhavam-se com des­confiança, sem nunca saberem quem as poderia denunciar por uma palavra irreflectida, ou o indício de uma crítica. Skilgannon estava pre­ocupado com Greavas e as suas ligações à família real e, na verdade, o antigo actor estava com frequência ausente durante dias antes de re­gressar sem uma palavra quanto ao seu anterior paradeiro. Skilgannon perguntara-lhe uma noite onde estivera. Greavas suspirara. -É me­lhor não saberes, meu amigo -fora tudo o que lhe pudera adiantar.

Uma noite, cerca de três semanas depois da coroação, chegaram a casa soldados armados. Molaire ficara fora de si com o medo, e até Sperian, normalmente decidido, se quedara pálido e amedrontado. Skilgannon estava sentado no jardim quando o oficial aparecera. Era o antigo atleta de cabelo dourado, Boranius. Skilgannon levantara-se da cadeira. É bom ver-te dissera, e fora sincero.

- E eu a ti -respondera Boranius, com frieza. No entanto, o que aqui me traz é um assunto oficial.

-Mandarei servir bebidas disse Skilgannon, fazendo um gesto a Sperian, que estava muito pálido. O homem retirou-se, grato. Skilgannon olhou para os dois soldados de pé à entrada do jardim. -Por favor, estejam à vontade -disse-lhes. -Há cadeiras para todos.

-Os meus homens ficarão de pé-respondeu Boranius, levan­tando a bainha da espada e sentando-se numa cadeira de verga. Parecia ainda em tudo o atleta que Skilgannon tanto admirara.

-Ainda corres, Boranius? -Não, tenho pouco tempo para essas actividades. E tu? Skilgannon riu-se. - Sim, mas já não é tão divertido quanto

antes, pois não tenho ninguém para me pôr à prova. Eras a minha ins­piração. Tu estabelecias o padrão.

-E tu venceste-me. -Tinhas torcido o tornozelo, Boranius. No entanto, gostei de re-

ceber a medalha. Há muito que deixei para trás os tempos das medalhas da es­

cola .. . e, em breve, tu ramb(om dt·ixnrás. Já pensaste no teu futuro?

157

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-Serei soldado, como o meu pai. -É bom ouvir isso. Precisamos de bons soldados. De soldados

leais. - O oficial louro recostou-se na cadeira. -Vivemos tempos difíceis, Olek. Há traidores por todo o lado. Eles devem ser perse­

, guidos e exterminados. Conheces alguns traidores? - Como haveria de os reconhecer, Boranius? Eles usam chapéus

estranhos? - O assunto não é para brincadeiras, Olek. Neste momento

alguém está a dar abrigo à concubina do imperador e à sua filha bas­tarda. Bokram é rei por direito e pelo sangue. Os que falam ou agem contra ele são traidores.

-Não ouvi ninguém falar contra ele - disse Skilgannon. Havia uma tensão à volta dos olhos azuis de Boranius, e o homem parecia estar constantemente irritado.

-E o pervertido que vive aqui? É leal? Skilgannon sentiu uma frialdade instalar-se-lhe na barriga. -És

um convidado em minha casa, Boranius. Não fales mal de nenhum dos meus amigos.

Não sou um convidado, Olek. Sou um oficial do rei. Ouviste Greavas falar contra o rei?

-Não, não ouvi. Nós não discutimos assuntos políticos. -Preciso de o interrogar? Ele está aqui? -Não. Sperian regressou trazendo um tabuleiro com bebidas,

os sumos misturados de maçã e alperce em copos de prata. Skilgannon olhou para ele.- Onde está Greavas?- perguntou-lhe.

- Foi visitar uns amigos, senhor, na parte norte da cidade. - Quando é que ele regressa?

Amanhã, talvez, ou no dia seguinte, senhor. Ele não disse. Skilgannon agradeceu ao homem e dispensou-o. -Dir-lhe-ei que precisas de falar com ele quando regressar -

afirmou Skilgannon -, muito embora não veja em que é que um actor aposentado te possa ajudar.

-Veremos- respondeu Boranius, levantando-se.-Existe tam­bém um mandato para a prisão do teu amigo, Askelus.

Skilgannon ficou então verdadeiramente chocado. -Porquê? -Tal como o pai, também é um traidor. O pai foi estripado esta

manhã na Praça do Leopardo. Askelus não é nenhum traidor - insurgiu-se Skilgannon, le­

vantando-se também.- Temos falado com frequência. Ele é um grande admirador do lmpt•r1tdor Gorben, e ele tem dito, tal como eu, que gos-

l5H

taria de servir no exército de Bokram. Nem uma só vez lhe ouvi uma palavra de crítica contra o rei. Muito pelo contrário, na verdade.

-Então ... infelizmente ... irá morrer pelos pecados do pai -afirmou Boranius, com frieza.

Skilgaonon olhara então para o jovem que fora seu herói. O jovem atleta da sua memória desaparecera. No seu lugar estava um soldado de olhar frio, destituído de emoção, excepto talvez a maldade. As recordações invadiram então Skilgannon, momentos que tinham parecido insignificantes na altura, mas que agora brilhavam com intensidade à luz da compreensão súbita. A renúncia súbita às ami­zades, os comentários sarcásticos, a tacanhez de espírito. Skilgannon vira Boranius através do manto áureo da veneração do herói. Agora ali estava a realidade. Boranius detinha o poder da vida e da morte, e isso agradava-lhe. A raiva brotou no coração de Skilgannon, mas re­primiu-a e sorriu. - Tenho muito que aprender, meu amigo -disse-lhe. - Obrigado por teres vindo visitar-me.

Boranius soltou uma risada abafada e bateu no ombro de Skil­gannon.- Quando fizeres os exames finais ... presumindo que são os

Primeiros ... vem falar comigo. Arranjarei um lugar para tí no meu regimento.

-Será uma grande honra para mim. E, dito aquilo, acompanhou Boranius e os seus homens à porta da

rua, e ficou a vê-los montar e afastar-se. Sperian apareceu e soltou um suspiro de alívio. Julguei que

íamos ser todos presos disse. - O homem é uma víbora comentou Skilgannon. -Sim, o teu pai tinha razão. Nunca gostou da família. -És capaz de levar uma mensagem a Greavas amanhã? -Sim. -Diz-lhe que não venha a casa durante um tempo. Vai pelo mer-

cado. Amanhã é dia de leilão. Haverá ali centenas de pessoas. Deves conseguir passar despercebido.

Sperian não pareceu muito convencido.- Achas que posso ser se­guido?

-É uma possibilidade. - Os meus olhos não são bons, Olek. Não estou preparado para

este tipo de coisa. Não, é claro que não estás. Que parvoíce a minha. Eu próprio irei.

Sperian ficou ainda mais preocupado. Ele não o quer envolver, senhor. Ficaria muito aborrecido Sl' t•u llw dissesse onde estava.

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Skilgannon apoiou a mão no ombro do criado. - Se ele sair à rua, será preso. Provavelmente executado. Pela certa torturado. Não creio que te devas preocupar com o seu aborrecimento ante a revelação do segredo.

Não se trata só disso, senhor. Mas da pessoa com quem ele está.

Conta-me. - Ele tem escondidas a imperatriz e a filha. Anda à procura de

uma maneira de as tirar da cidade. Skilgannon foi sacudido das suas recordações quando as canas se

agitaram e tremeram. As Espadas da Noite e do Dia brilharam fora das bainhas. Um pequeno cão passou por ele a correr, farejando o solo, depois avançou rapidamente para o círculo. Uma rapariguinha gritou um nome e o cão ladrou e correu para ela. Skilgannon respirou fundo e continuou a caminhar.

Não havia sinal dos animais. Virando as costas aos refugiados, viu a figura maciça do homem

do machado sair da erva alta. A seu lado vinha o rapaz, Rabalyn.

160

CAPÍTULO 9

Skilgannon organizou os cento e tal refugiados numa coluna com­pacta, que se deslocou lentamente através do canavial. Fez questão de seguir na dianteira da coluna, enquanto Druss e Garianne caminha­vam de cada lado ao centro. Os dois irmãos vinham na retaguarda. Os outros lutadores sobreviventes mantinham-se na parte exterior da coluna e arrastavam-se penosamente, as espadas e as facas a postos.

Houve apenas um único momento de ansiedade durante a manhã, quando um touro velho enfiou a cabeça pelas canas, fazendo as crianças gritar e dispersar. Para além disto, atravessaram a região sem qual­quer incidente.

Durante algum tempo, Rabalyn caminhou com Braygan no centro, depois veio colocar-se no sítio onde os irmãos seguiam. Eram um par estranho, pensou, reparando que o barbudo Nian segurava constan­temente a faixa na cintura de Jared. Druss dissera que eles eram luta­dores, e Rabalyn acreditara, não obstante a sua aparência invulgar.

Mais para a tarde, a coluna parara junto à base de uma colina baixa. Havia nas proximidades um riacho, e muitas das mulheres foram bus­car água e prepararam as suas magras rações. Druss afastara-se com Skilgannon, e a rapariga estranha estava sentada sozinha na vertente, a olhar para noroeste.

Rabalyn sentou-se com os irmãos.- Conhecem Druss há muito? - perguntou.

- Há muito tempo - respondeu Nian. Mais de um ano. Machadada para cá, machadada para lá. É assim o Tio Velho. Depois eles fogem todos.

Quem é que foge?

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Todos os homens maus. Nós também matámos alguns, não ma­támos, Jared?

-Sim, matámos. E Garianne atingiu o chefe deles com uma flecha na cabeça.

Cravou-se-lhe na cabeça. Ele parecia realmente muito palerma. Tentou arrancá-la. Depois caiu morto. Foi engraçado.

A história não fez qualquer sentido para Rabalyn. Deitou um olhar zombeteiro a Jared. -Fomos pagos para guardar uma aldeia afir­mouJared.- Éramos cerca de uma dúzia. Fomos informados de que havia uns vinte bandidos. Mas o grupo era bem maior, cerca de ses­senta homens, metade deles proscritos nadir. Safados perversos. Atacaram mesmo antes do anoitecer. Devíamos ter sido arrasados. Não haja dúvida.

- Machadada para cá, machadada para lá- disse Nian, satisfeito. - Druss atacou no meio deles, o seu machado desferindo golpes

à esquerda e à direita. Seria de esperar que eles tivessem vencido pelo peso do número. Nian e eu avançámos. Alguns dos outros fizeram o mesmo ... e alguns dos aldeãos, armados com foices e paus. Garianne estava então deitada com a doença, mas levantou-se e disparou uma seta que acertou na testa do chefe dos bandidos. Aquilo acabou por os dispersar. No fim, Druss não tinha nem uma beliscadura. As facas e as espadas tinham ressaltado nos guantes e na protecção dos ombros dele, até no elmo. Mas nada o atingiu. Espantoso referiu, abanando a cabeça.- Ele estava coberto de sangue. Nenhum dele seu. -Jared sacudiu a cabeça ante a lembrança da cena. Acontece que, numa luta, ele se move sempre, nunca fica parado. Sempre a atacar. Depois de ver isto, já sei o que aconteceu em Skeln.

- Em Skeln? - inquiriu Rabalyn. - Mas nós perdemos em Skeln.

-Sim, perdemos. - Não entendo. Como pudemos perder com Druss do nosso lado? Jared soltou uma gargalhada. - Estás a gozar comigo, rapaz? - Não, senhor. O Irmão Lantern contou-me que Druss esteve em

Skeln, com os Imortais. - Acho que ouviste mal, rapaz. Druss pertenceu aos Imortais em tem­

pos. Em Skeln ele lutou com os Drenai. Foi Druss quem desferiu o úl­timo ataque que mudou o rumo da batalha. Ele arrasou os Imortais, por Deus. Não estamos só a falar de um homem. Aquele é Druss, a Lenda.

Quer dizer que ele (: nosso inimigo? - perguntou Rabalyn, preocupado.

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Jared encolheu os ombros.- Meu não é. Nem Nian nem eu esta­ríamos aqui se não tivesse sido Druss. E de certeza não o quero por ini­migo. Sou muito bom com esta espada comprida, filho. Sou capaz de enfrentar quase qualquer um. Não Druss, porém. T ão-pouco

Skilgannon, já agora. Como foi que acabaste a viajar com ele, Rabalyn? Rabalyn contou-lhes a história do tumulto na igreja, e de como o

Irmão Lantern o subjugara. Os gostos não se discutem comentou Jared. -Quem diria?

O Maldito feito padre. Há sempre uma surpresa que nos está reser­vada nesta vida. - A seu lado, Nian começou a gemer. Rabalyn olhou para o homem. O seu rosto estava cinzento, e o suor fazia-lhe brilhar a pele.

- Dói, Jared lamuriou-se. - Dói muito. - Deita-te. Vamos, deita-te um bocado. Virou-se para

Rabalyn.- Vai buscar um pouco de água. Rabalyn partiu a correr e pediu emprestado um pequeno balde a

uma família. Enchendo-o de água, voltou rapidamente para junto dos irmãos. Jared mergulhou um pano na água e começou a molhar a ca­beça do irmão. Depois abriu uma bolsa no flanco, retirou uma pitada de um pó cinzento-claro, e deitou-o na boca de Nian. Molhando o pano, espremeu algumas gotas de água para os lábios de Nian. Dali a instantes os gemidos cessaram e o homem adormeceu.

-O que é que ele tem?- perguntou Rabalyn. - Está a morrer - referiu Jared. - Vai dizer a Skilgannon que

teremos de esperar aqui pelo menos mais uma hora. Nos minutos seguintes, as pessoas começaram a reunir-se à volta de

Nian, inconsciente. Algumas mulheres da coluna perguntaram o que se passava, mas Jared mandou-as embora. Garianne aproximou-se e sentou-se ao lado de Nian, acariciando-lhe ao de leve a face. Rabalyn manteve-se perto, sem saber o que fazer. Por fim, levantou-se e afas­tou-se, subindo a colina até ao sítio onde o Irmão Lantern e Druss con­versavam.

O velho guerreiro virou-se quando Rabalyn se acercou, e sorriu--lhe. Não estejas tão abatido, rapaz. Ele voltará a si.

-Jared diz que ele vai morrer. -Sim, mas não hoje. -O que é que ele tem? -Há uma doença na cabeça dele- informou Druss.- Um ci-

rurgião disse a Jared que há um cancro a desenvolver-se ali. Está a destruir a mente de Nian.

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-E não lhe podem dar um remédio ou assim? - É por isso que nos dirigimos para Mellicane. Dizem que há lá

um curandeiro. -Já o tinha visto assim antes? -perguntou o Irmão Lantern. -Sim. Ele dormirá uma hora... talvez duas -replicou Druss. -Então já será lusco-fusco. Não faço ideia até aonde foram os

animais, ou se voltarão depois de anoitecer. -Estava precisamente a pensar nisso. Encontramo-nos agora ape­

nas a duas horas de Mellicane. Dê-lhe uma hora. Se ele não acordar, eu carrego-o. O rapaz pode levar o meu machado e caminhar a meu

lado. O Irmão Lantern não levantou objecções. -Vou dar uma volta

para norte, a fim de ver como está o caminho-anunciou.- Se eu não voltar dentro de uma hora, então conduzam-nos na direcção da cidade. Encontrar-me-ei convosco no caminho.

Dito aquilo, desceu a correr a vertente. Rabalyn ficou a vê-lo afas­tar-se. -E se houver ali animais?-perguntou a Druss.

-Bem, Rabalyn, ou ele os mata, ou morre.

A cerca de oitocentos metros da base da colina, Skilgannon abran­dou. A breve corrida aquecera e descontraíra os seus músculos, mas, quando se aproximou das árvores, não teve vontade de se ir enfiar de cabeça num grupo de animais. Ardiam-lhe os olhos, sentia o corpo cansado. Havia mais de vinte e quatro horas que não dormia, e a noite anterior fora longa e sangrenta.

Os ataques haviam sido constantes e ardilosos, os animais correndo e atacando de direcções diferentes, como se obedecessem a um plano. Por diversas vezes durante a noite vira a colossal criatura cinzenta que detectara a sair do canavial na tarde da véspera. Skilgannon tinha a impressão de que este animal é que dirigia os outros. Resolveu ficar atento a ele. Se o avistasse a sul do círculo, então seria dessa direcção que viria o próximo ataque.

Recordando a noite de terror, Skilgannon apercebera-se de que os animais não se dispunham a matar todos os refugiados. Tinham vindo à procura de comida e, mal haviam reunido corpos suficientes, haviam­-se retirado. Como uma matilha de lobos.

Embrenhou-st: nas <Írvorcs c subiu ao topo de uma colina, obser­

vando o tcrrt.·no l'IH.JUanto se deslocava. Viam-se muitas pegadas fundas, mas todas Sl' ufitstavam da cidade. No cimo da colina havia vários ('arvulhos alros. Subiu a um deles e perscrutou o terreno. No

longínquo norte, conseguia apenas divisar os pináculos de Mellicane, e as tendas dos exércitos sitiantes de Daria e Dospilis. Mais para leste,

viu cavaleiros. Não havia sinal de Ambígenos. Desceu sobre ele um

enorme cansaço, firmou-se em dois ramos grossos e apoiou a cabeça no tronco da árvore.

Durante algum tempo passou pelas brasas.

Caminhava por uma floresta enluarada. O Lobo Branco estava próximo. Conseguia ouvir os seus movimentos furtivos na vegetação rasteira. O coração de Skilgannon batia acelerado. Crispou os punhos para não agarrar as espadas. Ouviu uma rosnadela cava atrás de si. Girando nos calcanhares, enfrentou a ameaça.

Não estava lá nada. Depois viu que- mais uma vez- puxara in­conscientemente pelas Espadas da Noite e do Dia, as lâminas a brilharem ao luar. Afastando-as de si, gritou: «Onde estás?»

Então acordou. O Sol mal se deslocara no céu. Não dormira mais de alguns mi­

nutos. Mesmo assim, sentiu-se retemperado e pensou em reunir-se aos refugiados. Mas reinava ali a paz, no cimo da árvore, e apercebeu-se do quanto ansiava pela sua própria companhia. Houvera uma altura em que apreciara a companhia das pessoas - o tempo em que Greavas, Sperian e Molaire tinham cuidado dele, em que Malanek lhe ensinara a dança das espadas. Longos anos dolorosos se tinham seguido desde então. Os dias de Bokram e o terror. Os dias de Jianna.

Vira o horror diante dos olhos na manhã em que partira à procura de Greavas. O sol brilhara com intensidade num céu limpo, sem nuvens, e a força e a arrogância da juventude tinham-no enchido de confiança.

Skilgannon, aos dezasseis anos, começara por uma caminhada até ao Parque Real. Durante o passeio pelas ruas e lojas do centro da

cidade, fizera questão de parar nas bancas e -enquanto parecia ava­

liar a mercadoria -identificara os homens que o seguiam. Eram dois: um alto, magro e de cabelo ruivo; o outro mais baixo, com um comprido bigode escuro que lhe passava do queixo. Ao chegar ao parque, Skilgannon esticara os músculos e começara a correr. Os ca­

minhos do parque eram magnificamente pavimentados com pedra branca, contornando canteiros de flores e passando por lagos artifi­ciais e jardins de estátuas. Muitas pessoas se passeavam ali, ou esta­vam sentadas nos bancos de pedra. Algumas tinham até estendido cobertores e faziam piqueniques. Skilgannon continuou num passo rápido e regular. Nas curvas do caminho, olhara para trás e vira que os dois homens o seguiam a custo. Não sentia perigo. Era como uma

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aventura para o jovem. Obrigara-os a mais de seis quilómetros de cor­

rida lenta, e depois foi aumentando o ritmo. Acabou por dar a volta quase completa, regressando ao edifício do

ginásio e banhos em mármore, situado junto aos portões ocidentais

do parque. Aqui, abrandou e sentou-se finalmente num banco largo. Os dois seguidores, a escorrer suor e cansados, chegaram ao sítio onde estava sentado.

-Bom dia -saudou Skilgannon. O homem com o bigode pendurado baixou-lhe a cabeça. O mais

alto forçou um sorriso.

-Um dia quente para uma corrida- observou o jovem.- Estão a treinar?

- Sempre -respondeu o homem de cabelo ruivo.

-Sou Olek Skilgannon.-Levantando-se, estendeu a mão.

-Marcha. Este é Casensis. -Ambos os homens pareciam cons-trangidos. Skilgannon calculou que lhes tivessem dito para manter a

distância e não serem vistos. -Preparo-me para desfrutar de um banho e uma massagem -

referiu-lhes Skilgannon. -Nada melhor depois de uma corrida de aquecimento.

-Não somos membros-respondeu o corpulento Casensis, se­micerrando os olhos. -Estes lugares são para os ricos.

-E para os filhos de soldados que serviram a nação -acrescen­tou Skilgannon, melifluamente. - Foi concedida ao meu pai a qualidade de membro honorário, e agora passou para mim. Também

estou autorizado a trazer convidados. Querem acompanhar-me? Levou os homens surpreendidos até lá dentro. O salão de mármore

era fresco e fragrante. Skilgannon assinou o registo e os três homens foram conduzidos a um vestiário com painéis de cedro, onde recebe­

ram roupões e toalhas brancos. Depois, tendo-se despido e envergado os roupões, passaram por dois arcos para uma zona ampla com tecto abobadado. Janelas enormes tinham sido rasgadas nas paredes, mui­tas delas com vitrais. Cresciam aqui árvores, e fora criada uma série

de piscinas artificiais. A água quente jorrava sobre rochas, enchendo

quatro piscinas grandes dispostas em diferentes níveis. Pétalas de rosa flutuavam na água, e o ar exalava um perfume forte. Apenas duas das

piscinas estavam a ser usadas. Skilgannon colocou o roupão e a toalha

num banco de pedra e desceu os degraus de mármore, avançando para

a piscina de cima, próximo da água que jorrava. Estendendo-se, boiou à superfíci<.·, fechando os olhos. Os dois espiões seguiram-no.

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Skilgannon nadou até ao centro da piscina, afastando-se da cascata

e apoiou os braços no rebordo de pedra. O homem de cabelo ruivo, Marcha, nadou até junto dele, enquanto Casensis atravessou a piscina.

Duas mulheres de serviço, com os seios à mostra mas usando saias compridas coleantes, saíram das sombras trazendo copos dourados de

água fria de nascente. Ambas as mulheres tinham o tradicional cabelo

pintado de amarelo, com fios vermelhos nas têmporas, que as identi­ficavam como escravas do prazer. Exibiam também colares de ouro ao pescoço, significando que estavam vários níveis acima das prostitutas mais baratas que trabalhavam nas ruas e nos mercados.

Casensis olhou para elas, sem conseguir desviar o olhar dos seios nus. Uma delas sorriu-lhe. Depois foram-se embora.

-Também estão incluídas?-perguntou Casensis.

-Para a massagem, sim -disse Skilgannon. -Todos os outros serviços são negociáveis.

-Quanto é que cobram?

-Dez moedas de prata. -Isso são três meses de soldada! - escandalizou-se Casensis. -E para que é que ganham essa soldada? - perguntou Skil-

gannon.

-Somos soldados do rei-apressou-se Marcha a responder.

-Ah, vejo por que corriam hoje. É importante manterem-se fortes e em forma. Eu também espero entrar em breve para o exército do rei.

Permaneceram sentados em silêncio durante um bocado, sabore­ando as bebidas frescas e a água quente. Marcha virou-se para Skilgannon. -Foi muita gentileza sua, senhor. Será algo a recordar.

-O prazer é todo meu, amigo. Mas tem de experimentar a mas­

sagem antes de ir. As raparigas daqui são muito experientes. Tirar­

-vos-ão todas as dores e os sofrimentos, e vocês poderão dormir e ter

belos sonhos. É a minha parte preferida do dia. Depois talvez possam

reunir-se-me para uma refeição na sala de jantar. - É imensa gentileza sua -disse Marcha.

Terminado o banho, os três homens saíram da piscina. Imedia­tamente avançaram mulheres louras, cada uma conduzindo-os a

gabinetes separados iluminados por velas. Assim que Skilgannon se livrou dos homens, agradeceu à rapariga

e rejeitou uma massagem.-Terei uma gorjeta generosa para ti­

anunciou à massagista surpreendida. -Quando os meus amigos es­tiverem convenientemente relaxados, diz-lhes que fui chamado, mas que tratei de tudo para qu<.' comessem por minha conta.

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-Sim, senhor-assentiu ela. Regressando ao vestiário, trajou-se rapidamente e abandonou o edi­

fício. Deixando o parque, percorreu rapidamente as ruas, parando mais uma vez em lojas e bancas, não fosse haver outros seguidores. Satisfeito por se encontrar finalmente sozinho, Skilgannon seguiu as indicações que Sperian lhe dera e dirigiu-se para a zona norte da cidade.

A casa que procurava era nova, construída nos arredores e próximo da caserna do exército. Era uma pequena propriedade com três divi­sões e telhado de telhas vermelhas revestidas de argamassa. Havia al­guns vinte edifícios semelhantes construídos para as mulheres e os filhos dos trabalhadores da caserna: cozinheiros, carpinteiros e fer­reiros. Sperian descrevera a casa, dizendo que havia uma buganvília na parede ocidental junto à porta da rua. Algo na localização indi­ciava a mão de Greavas. Só um homem com o seu sentido de humor e ironia apurados iria esconder as duas pessoas mais procuradas na capital a uma curta distância de uma das maiores casernas. E, no entanto, mesmo quando o pensamento ocorreu a Skilgannon, aper­cebeu-se de que havia uma imensa inteligência na decisão. Todos os edifícios do bairro mais rico da cidade tinham sido revistados, assim como as propriedades distantes. Ninguém sonharia procurar a impe­ratriz e a filha numa habitação construída à pressa tão perto de um centro para as tropas leais ao novo rei.

Skilgannon bateu à porta, mas não obteve resposta. Indo até às traseiras da casa, experimentou o pequeno portão que dava acesso ao minúsculo jardim. Estava trancado. Olhando à sua volta para ver se alguém o observava de alguma das outras casas, Skilgannon escalou o muro e saltou para o jardim.

Quando aterrou, vislumbrou movimento à sua esquerda. Algo foi direito à sua cabeça. Baixando-se, atirou-se para a direita, caiu sobre o ombro e rebolou, pondo-se em pé. No momento em que se endi­reitava, um pé com sandália bateu-lhe na têmpora. Rolou com o golpe, levantando o braço para evitar que um segundo pontapé alto lhe atingisse a cabeça. O seu atacante era louro e mulher, o seu cabelo pintado e raiado de vermelho nas têmporas. Ela desferiu outro ataque directamente ao seu rosto. Agarrando-lhe o pulso, torceu-o selvatica­mente, tentando virá-la. Em vez de resistir, ela atirou-se para a frente, pretendendo atingi-lo com a cabeça no rosto. Embateu com força na sua clavícula. Irado agora, atirou-a ao chão. Ela rolou habilmente, pôs­-se em pé e avançou de novo sobre ele, o seu belo rosto carregado de fúria, os olhos semicerrados.

l6H

-Basta! Basta! -gritou Greavas, vindo a correr da porta e agar­rando a rapariga pela cintura. - É um amigo . . . muito embora estúpido. O que fazes aqui? -perguntou a Skilgannon.

Não creio tratar-se de um assunto que possamos discutir na pre­sença de uma prostituta -ripostou.

Uma prostituta que não podes pagar-redarguiu ela. E se pudesses, ainda não serias suficientemente homem.

O veneno na voz dela deixou-o estupefacto. Nunca uma rapariga de prazer lhe falara assim. Eram sempre deferentes, nunca olhando nos olhos. Acrescia que esta rapariga usara movimentos que Malanek lhe ensinara. Inaudito para uma mulher. Skilgannon observou-a melhor, de­pois olhou para Greavas. Apareceu uma mulher de meia-idade à porta das traseiras, os seus olhos receosos. - Está tudo bem? - indagou.

-Está tudo óptimo -disse Greavas. A menos que fosses se-guido até aqui acrescentou, virando-se para Skilgannon. -Então estamos todos mortos.

-Não fui seguido ... apesar dos dois homens destacados para a tarefa. Deixei-os nos banhos.

Esperemos que não houvesse outros. Não havia outros informou Skilgannon, o seu mau génio a

aumentar. -Vim avisar-te para não voltares para casa. Boranius anda à tua procura.

-Nada que eu não esperasse. Não fazia tenções de regressar. Se é tudo o que tens para me dizer, Olek, então é melhor ires-te já em­bora.

-Julguei que precisasses de ajuda. -Sim, preciso de ajuda confirmou Greavas.-Mas isto não

é uma brincadeira de rapazes. Não é uma aventura de estudante. É

muito o que está em jogo. A tortura e a morre aguardam o fracasso. Skilgannon nada disse durante um momento, acalmando-se. Olhou

outra vez para a rapariga de cabelo amarelo que tomara por uma prostituta, depois para a mulher receosa à porta. -O disfarce é bom

-afirmou. -Mas ainda tens o problema de levar a mãe e a filha da cidade às escondidas, quando os soldados possuem a tua descrição.

-Tenciono cortar o cabelo e pintá-lo de preto disse Greavas -, mas tens razão. Andam à procura de uma mulher e da filha jovem. Não posso fazer nada quanto a isso.

-Está claro que podes. Podes separá-las. Como prostituta, a prin­cesa pode ir para onde quisl·r sem levantar suspeitas. Sem a filha, a imperatriz pode viajar como HUI mulher.

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- Todas as portas estão guardadas replicou Greavas -, e há

antigos criados desleais postados em todas elas, prontos a trair a fa­mília real a troco de ouro. Não há fuga possível, Olek. Ainda não.

Insisto que devem ser separadas- disse Skilgannon. - E eu

tenho um plano. -Adoraria ouvi-/o- interveio a princesa. Ignorando o desprezo na voz dela, prosseguiu. - Se eu voltar ra­

pidamente para os banhos, os homens que me seguiram ainda lá estarão. Farei o que me propus e pagar-lhes-ei uma refeição. Se a prin­cesa estiver do lado de fora dos banhos daqui a três horas e me abor­dar como prostituta, eles vê-la-ão. Ver-me-ão também contratar os serviços dela e levá-la para casa. Apresentarão o seu relatório. Olek Skilgannon não está associado a traidores. Está mais interessado em brincar com prostitutas. Ela será invisível para eles ... bem, pelo menos invisível como princesa.

Greavas sentou-se numa pequena mesa de madeira e coçou o queixo. - Não sei - disse.

É um bom plano- afirmou a princesa.-Agrada-me. - Tem os seus perigos - advertiu-a Greavas. Primeiro tem

de chegar aos banhos. A estrada até lá está cheia de homens. Será abor­dada no caminho. Em segundo lugar, há já prostitutas nos banhos. Elas defenderão o seu território ... a todo o custo. Não vão querer que desconhecidas lhes venham roubar o negócio. Em terceiro lugar, não fala como uma prostituta. A sua voz é requintada. E por último, pode ainda ser reconhecida, não obstante o disfarce, e isso levará à sua cap­cura e morte, e à morte de Olek.

-A alternativa é ficar nesta casa horrível que mais parece um ar­mário até sermos descobertas, ou morrermos de tédio - disse a prin­cesa. - E não se preocupe com o meu discurso requintado. Passei tempo suficiente com os soldados do meu pai para saber falar com ru­deza. E Malanek preparou-me bastante bem. Sou capaz de enfrentar prostitutas zangadas. Garanto-lhe isso.

Greavas não pareceu muito convencido, mas anuiu.- Muito bem. Olek, tu voltas o mais depressa que puderes. E que a Fonte vos acom­panhe a ambos. Far-te-ei chegar uma mensagem assim que for seguro movimentarem-se. Agora vai.

Skilgannon voltou rapidamente para os banhos. Decorrera menos de uma hora, mas ainda estava preocupado que Morcha e Casensis pudessem ter saído. Localizou a rapariga com quem falara e perguntou­-lhe se dera n st·u recado. Ela disse que não, pois eles ainda se encon-

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travam nas cabinas com as donzelas do corpo. Aliviado, Skilgannon agradeceu-lhe e dispôs-se a esperar. Marcha foi o primeiro a sair, de braço dado com uma rapariga roliça. Inclinando-se, deu-lhe um beijo na face. Ela sorriu-lhe e afastou-se.

Caramba- disse Marcha este é um dia que recordarei com carinho. - Sentou-se e encostou-se à parede, apalpando o tecido grosso e macio do roupão. Como vivem os ricos comentou.

- Envergonho-me de dizer que não tinha pensado no assunto respondeu Skilgannon, com sinceridade.

- Não tem culpa de ser rico, rapaz. Deuses, não o culpo por isso. Casensis saiu de outra cabina. A rapariga fez-lhe uma vénia, mas

ele não sorriu quando se foi embora. Andou por ali, parecendo amargo e infeliz, e perguntou a Morcha se se deitara com a sua rapariga. -Deitei, pois respondeu Marcha, satisfeito.- E ela não me cobrou.

- Casensis praguejou. - Eu sabia que a devia ter escolhido - referiu.

Alguns homens não têm mesmo sorte contrapôs Morcha,

piscando o olho a Skilgannon. Façam-me companhia à refeição- propôs Skilgannon. Ambos

os homens aceitaram e, assim que se vestiram, conduziu-os escadas

acima até à sala de jantar. Uma hora depois, tendo devorado vários

faisões assados com molho de amoras e consumido uma caneca de ex­

celente vinho, os dois soldados estavam bem-dispostos. Casensis até

tinha um sorriso nas suas feições carrancudas. Quando abandonaram o edifício pela entrada principal, Skilgan­

non sentiu-se tenso e, pela primeira vez naquele dia, indeciso. · O plano parecera tão bom quando o concebera. Mas Greavas tinha

razão. Não se tratava de uma brincadeira de estudantes. E se a prin­cesa fosse reconhecida por Morcha ou Casensis? E se ela não conse­guisse representar o papel? Para além do que seria considerado um traidor para a nova ordem. Que futuro haveria para ele agora? Fica calmo. disse de si para si, recordando o conselho do pai. «Um homem deve ficar junto dos amigos- a menos que eles façam mal

e defender sempre aquilo em que acredita.» Poderiam os actos

de Greavas, ao proteger as duas mulheres da morte, serem conside­

rados maus? Skilgannon tinha dúvidas. Por conseguinte, só havia

um caminho a seguir. Encontravam-se cerca de doze prostitutas na praça de mármore.

Uma delas estava sentada, a cuidar de um lábio cortado e um olho in­chado. A outras estavam rt·unidas, a olhar maldosamente para uma

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recém-chegada magra e bela. Quando os três homens saíram, várias das prostitutas avançaram para eles, sorrindo provocadoramente. Casensis parou para meter conversa com elas, enquanto Morcha ficou para trás.

A rapariga magra aproximou-se de Skilgannon. Caminhava com um movimento delicado das ancas. Inclinou a cabeça e sorriu-lhe. Pareceu que tinha sido atingido por um martelo no peito. A rapariga violenta e desdenhosa do jardim desaparecera. Eis ali a mulher mais incrivelmente atraente que alguma vez vira. Pareces-me um homem a precisar de um pouco de companhia - disse ela, dando-lhe o braço. Tinha uma voz áspera e rude, e o seu sorriso era uma pro­messa obscura. Skilgannon ficou com a boca seca, e não lhe ocorreu o que dizer. Morcha riu-se, bem-disposto.

- Eu cá aceitava a sugestão dela, rapaz. Posso não ser a seta mais pontiaguda na aljava, mas ela parece-me bastante especial.

Skilgannon preparava-se para falar quando a rapariga meteu a mão debaixo da túnica dele, acariciando-o. Ele recuou com um salto e quase caiu. Tem cuidado com ele, querida. É jovem e diria que um pouco inexperiente - referiu Morcha.

- A minha casa fica perto - foi tudo o que Skilgannon conse­guiu dizer. Sentia-se um idiota, e sabia que estava a corar.

Podes pagar-me? Não sou barata. - Não creio que possa - disse ele -, mas venderei a casa. - É assim mesmo, rapaz - afirmou Morcha, com uma garga-

lhada atroadora. Raios, para que é que eu me diverti nos banhos? Esta é uma rapariga que de bom grado disputaria contigo. Vamos, põe-te a andar. Diverte-te!

A princesa deu-lhe o braço e levou-o dali. Ele olhou para trás re­parando que Morcha e Casensis o observavam. Morcha acenou. Casensis tinha um ar azedo.

E foi assim que Skilgannon conheceu o amor da sua vida, e o levou para casa.

Sentado na árvore, que dava para a cidade distante de Mellicane, Skilgannon recordou o dia. Apesar do horror e da morte que se tinham seguido àquele encontro, constatou que não o conseguia esquecer. Antes daquela tarde, p;m.·n·ra-lhe que o céu estivera sempre cinzento, e depois ddt· sentira 01 l)(•lt•za do arco-íris.

Jianna brilhava mmo o sol c cintilava como uma jóia. Era dife­renre d<· wdus us qut• mnht·n·ra. Recordava ainda o cheiro do cabelo dda quando 1 inhnm naminhudo juntos de braço dado.

lU

Suspirou ante a lembrança. Então, ela fora uma mulher jovem e bela, praticamente da idade dele. Agora era a Rainha Bruxa e queria­-o morto.

Afastando da mente aqueles pensamentos sombrios, desceu da árvore.

Cadis Patralis era capitão do exército de Dospílis havia apenas qua­tro meses. O pai comprara-lhe a comissão, e ele participara apenas numa acção, a debandada de um pequeno grupo de arqueiros tantrianos numa ponte a cerca de trinta e dois quilómetros de Mellicane. Agora, ao que parecia, a guerra terminara, e para o jovem Cadis a perspectiva de glória e progressão na carreira retrocedia a cada hora.

Em vez de combater o inimigo, e ganhar respeito, admiração e subida de patente, chefiava agora quarenta lanceiros pelas colinas, pro­curando os animais fugidos da Arena. Não havia qualquer glória em ter de ir atrás daquelas abominações, e Cadis estava de péssimo humor. Em nada ajudava o sargento que lhe fora imposto. O homem era in­suportável. O coronel garantira a Cadis que o sargento era um luta­dor de confiança e um veterano de três campanhas. Ele será precioso para si, meu jovem. Aprenda com ele.

Aprender com ele? O homem era um campónio. Não percebia nada de filosofia ou literatura e praguejava constantemente - sempre um sinal de má educação.

Aos dezanove anos, Cadis Patralis fazia boa figura com a sua cou­raça e capa dourada de fino corte. A sua cota de malha brilhava, e o elmo acolchoado encaixava na perfeição. O seu sabre de cavalaria

· fora feito pelo maior fabricante de espadas em Dospilis, e as botas altas pela coxa, reforçadas à volta do joelho, eram do mais fino couro brilhante. Em contraste, o sargento Shialis parecia um vagabundo. A sua couraça estava amolgada, a capa - que em tempos fora dou­rada, mas agora era de um amarelo urina pálido - apresentava-se maltratada e muito remendada. E as suas botas eram hilárias. Até o seu sabre fora fornecido pelo exército, com punho de madeira, todo embrulhado em tiras de couro. Cadis olhou para o rosto do homem. Com a barba por fazer, os olhos orlados de vermelho, parecia velho e esgotado. Como fora possível que semelhante homem tivesse enganado o coronel, eis algo que Cadis Patralis não conseguia en­tender.

Inclinando-se para a frente na sela, Cadis esporeou o seu cavalo cinzento para subir um01 wrtt'llrt', purando no cimo e observando

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o território. Cerca de quatrocentos metros para sul, viu um grupo de refugiados avançando com esforço por um vale.

Aproxima-se um cavaleiro, senhor - informou o Sargento Shialis.- É um dos batedores.

Cadis virou-se na sela. Um homem pequeno subiu a colina mon­tado num pónei malhado e puxou as rédeas diante do oficial. Encontrei-os - disse. -Quem me dera não o ter feito. - Cadis esforçou-se por controlar o mau génio. O homem era um cidadão particular, pago para bater o terreno e, por conseguinte, não era obri­gado a fazer a continência ou a observar o protocolo militar. Mesmo

assim, a falta de respeito nos seus modos era enfurecedora. Onde estão os outros? perguntou ao homem.

-Mortos. E eu também estaria, se não tivesse parado para mijar. -Mortos?- repetiu Cadis. Os três?

- Caíram numa armadilha. Eles vieram de todos os lados. Dilaceraram os cavalos, depois chacinaram os homens. Quase me apa­nharam. Agarrei a maçaneta da minha sela e fiz com que o cavalo me levasse para longe deles.

Como puderam os animais ter montado uma armadilha?-ri­postou Cadis. -É absurdo.

-Concordo consigo, General. Eu próprio não teria acreditado se não visse.

- Não sou general, como muito bem sabe, e não tolerarei com­portamento insubordinado.

-Tolere o que quiser redarguiu o homem. De qualquer forma, vou-me embora. Não há dinheiro que me leve de volta para aquelas criaturas.

Como sabe que foi uma armadilha? - perguntou o Sargento Shialis.

-Confie em mim, Shialis. Quatro deles estavam acocorados na erva comprida. Só apareceram depois de os outros terem passado. É o cinzento. Digo-lhe, aquele é o espertalhaço. Quando os outros ataca­ram, ele deixou-se ficar para trás a observar. Até sinto arrepios só de me lembrar.

-Quantos estavam lá? -inquiriu o sargento. -Se não se importa, t•u conduzo o interrogatório disse Cadis,

fuzilando o soldado mm o olhar. Fez-se silêncio. Olhou com dureza para o batedor. Ent ão �

17·1

Então o (Jtlê·l' Quantos t•stuvnm hir

Quinze -contando com o cinzento.

- E onde foi isto? -Trinta e dois quilómetros para nordeste, precisamente onde a

terra sobe para as montanhas. -Foram dados como desaparecidos mais de vinte referiu Cadis.

Sim. Encontrámos três deles mortos lá na mata a sul. Pareciam ter sido atingidos com um machado, ou uma espada muito grande. Não creio que haja nenhuns vivos por estas bandas.

Trinta e dois quilómetros para nordeste, diz. Isso fica fora da nossa jurisdição -afirmou Cadis. -Irei dar conhecimento ao coro­nel. Fique disponível para ele o interrogar.

Naquele momento, o primeiro dos refugiados começou a aparecer no cimo da colina. Cadis observou-os. Muitas das mulheres e crianças olharam com nervosismo para ele e os seus homens. Uma criança co­meçou a chorar. O som foi agudo e assustou a montada de Cadis. -Calem-me esse fedelho! protestou, dando um puxão nas rédeas. O cavalo empinou-se. Cadis inclinou-se para trás, os seus pés saltando dos estribos. Aterrou no solo com uma pancada de sacudir os ossos. Furioso, pôs-se em pé, o som de gargalhadas rapidamente reprimidas dos seus soldados vindo alimentar as chamas da sua ira. Sua vaca estúpida! berrou à mulher assustada, que tentava consolar a criança.

Apareceu um homem alto entre eles. - Controle-se disse em voz baixa. Estas pessoas já estão suficientemente assustadas.

Cadis pestanejou. O homem envergava um blusão de pele de gamo com franjas, obviamente bem feito e caro, e calças e botas de boa qua­lidade. O oficial olhou o homem nos olhos. Eram surpreendentemente azuis e penetrantes. Cadis recuou um passo. Fez-se silêncio. Cadis apercebeu-se de que os seus homens esperavam que ele dissesse al­guma coisa. Sentiu-se a fazer figura de tolo -e isso trouxe de volta a sua raiva.

Por quem se toma? atroou. -Não me mande controlar. Sou um oficial do exército vitorioso de Dospilis.

É um homem que caiu do seu cavalo - contrapôs o recém­-chegado, a sua voz uniforme.-Estas pessoas foram atacadas por ani­mais, e também por gente que se comportou como animais. Estão cansadas, assustadas e esfomeadas. Procuram apenas a protecção da cidade. -Sem outra palavra, o homem passou por Cadis e aproxi­mou-se do sargento Shialis. -Lembro-me de si -disse. -Chefiou um contra-ataque numa pontt: em Pashturan há cinco ... seis anos. Levou com uma seta na coxa.

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Pois levei -confirmou Shialis. -Apesar de não me recordar de o ver lá.

Foi uma atitude corajosa. Se não tem aguentado aquela ponte, os seus flancos teriam virado costas e o que foi apenas uma derrota .poderia ter sido uma debandada. O que faz aqui?

-Andamos a caçar animais ferozes. -Lutámos com eles a noite passada. Eles dirigiram-se para norte. Por detrás dos dois homens, Cadis Patralis chegara quase ao ponto

de rotura. Caíra do seu cavalo, fora alvo de chacota e agora estava a ser ignorado. Agarrando o punho do seu sabre de cavalaria, fez menção de avançar. Uma mão enorme desceu sobre o seu ombro, cortando-lhe a trajectória.

- É soldado há muito tempo, moço? -Cadis virou-se e fitou olhos da cor de um céu de Inverno. O rosto que os emoldurava era velho, rugas profundas esculpidas nas feições. O homem tinha uma barba negra prateada e usava um elmo preto, brasonado com um machado, ladeado por duas caveiras de prata sorridentes. - Fui sol­dado a maior parte da minha vida - prosseguiu o homem. Tenho carregado este machado por ... bem, não sei ao certo quan­tas terras. O guerreiro levantou a arma e Cadis viu que olhava para o seu próprio reflexo nas lâminas brilhantes.-Nunca aprendi tanto quanto deveria. Uma verdade que descobri, porém, é que é sempre melhor deixar a raiva em casa. Os homens irados são homens estúpidos, percebe, moço. E nas guerras os estúpidos são normalmente sempre os primeiros a morrer. Nem sempre, aten­ção. Às vezes os estúpidos encarregam-se de que os outros morram primeiro. Mas o princípio mantém-se. Portanto, há quanto tempo é soldado?

Cadis sentiu o início de uma tremura no estômago. Havia algo no homem que estava a retirar-lhe a coragem. Fez uma última tentativa de reassumir o controlo da situação. Largue-me-disse.-Faça­-o imediatamente.

Ah, moço, se eu fizer isso-respondeu o homem, em tom ami­gável, a sua voz baixa -, então, daqui a nada estará morro. E nós não queremos isso, pois não? Se insultar aquele excelente jovem a con­versar com o sargento, ele mata-o. Depois as coisas ficarão feias e serei obrigado a usar o velho Snaga nas suas tropas. Parecem-me bons rapazes, e seria uma pt•na ver tanto derramamento de sangue desne­cessariamentt·.

Somos quun·ntu referiu Cadis. -Seria ridículo.

I 76

-No fim não serão quarenta, moço. No entanto, a minha con­versa acaba aqui. O que acontecer agora é da sua responsabilidade.

-A manápula deixou o ombro de Cadis e a figura maciça afastou-se. O jovem ficou ali por um momento, depois respirou fundo. Uma

brisa fria roçou-lhe a pele e ele estremeceu. Cadis olhou para a mu­lher e a criança. Viu o medo nos olhos dela e sentiu a primeira prova pesada da vergonha. Cadis aproximou-se deles, fazendo uma vénia. -As minhas desculpas, senhora -disse. -O meu comportamento foi grosseiro. Lamento se assustei o seu filho. -Depois dirigiu-se para o seu cavalo e subiu para a sela. Virando a sua montada, aproximou­-se do sargento. -Vamos embora -disse.

-Sim, senhor. Cadis conduziu as tropas colina abaixo e seguiu rumo a noroeste e

à cidade que os aguardava. -O que foi que ele disse, senhor? perguntou Shialis, seguindo

a seu lado. Quem? Druss, a Lenda.

Cadis sentiu subitamente a cabeça oca.-Aquele era Druss? O tal Druss? Tem a certeza?

-Eu conheci-o, senhor. Há anos. Não há engano possíveL O que foi que ele disse? Ainda que mal lhe pergunte?

-Pode perguntar, Sargento. Ele deu-me uns conselhos sobre o ofício de soldado. Disse para deixar a raiva em casa.

-Um bom conselho. Posso dizer mais uma coisa, senhor? -Porque não? -Foi um gesto nobre, quando pediu desculpa à mãe. Um homem

inferior não o teria feito.-Shialis sorriu subitamente. Um con­selho de Druss, a Lenda, hein? Algo para contar aos filhos um dia.

Não haveria filhos a que contar. Passados quatro meses, Cadis Patralis morreria, costas com costas,

com Shialis, a lutar contra o exército invasor da Rainha Bruxa.

Rabalyn sentia a falta da companhia dos gémeos. Tinham-se des­pedido às portas da cidade, e partido com Garianne, dirigindo-se ao bairro sul. Gostara de conversar com eles. Jared tratava-o como um adulto, nunca lhe falando com superioridade. E Nian, apesar de sim­ples, era sempre caloroso e simpático.

A sensação de perda não tardou a dissipar-se, substituída pela de maravilha. Nunca tt·ndo visto antt•s uma cidade, R ahalyn mal podia

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acreditar nos seus olhos. Os edifícios eram monstruosamente enormes, altaneiros e imensos. Havia templos, encimados por estátuas maciças, e casas ostentando dezenas de janelas e varandas. Rabalyn sempre acre­ditara que a casa de três andares do Conselheiro Raseev tinha a altura da magnificência. Aqui, pareceria uma choupana minúscula. Rabalyn olhou para um palácio quando passaram, e contou as janelas: sessenta e seis. Custava a acreditar que qualquer família pudesse ter aumen­tado tanto para necessitar de uma casa assim.

Deixando para trás estes edifícios magníficos, chegaram a ruas mais estreitas, as casas unidas umas às outras e altas, as ruas empe­dradas. Rabalyn manteve-se junto de Skilgannon, Druss e Braygan, e perguntou-se como era possível tanta gente viver em semelhante lugar sem se perder. As ruas encontravam-se e cruzavam-se, fluindo à volta dos edifícios como rios. Havia pessoas por todo o lado, e muitos soldados com ferimentos ligados. A maior parte das lojas não tinha produtos à venda e as pessoas amontoavam-se para efectuar trocas ou pedir qualquer comida que pudesse existir.

O homem do machado conduziu-os por uma avenida ampla e fê­-los atravessar um parque extenso. Devia ter sido bonito antes da guerra, pensou Rabalyn, pois havia estátuas e caminhos, e até uma fonte no meio de um lago. Agora, porém, tinham sido montadas ten­

das nas zonas relvadas e centenas de pessoas abatidas e cansadas deslo­cavam-se à volta delas.

- Estão tão tristes comentou Rabalyn. O Irmão Lantern olhou para ele.

- Estariam ainda mais tristes se tivessem tido melhores líderes - retorquiu.

Como pode ser verdade? inquiriu o jovem.

- Reflecte um pouco nisso respondeu o antigo padre. Continuaram a caminhar por mais de um quilómetro e meio, che­

gando finalmente a uma zona com um portão, diante do qual esta­vam dois guardas altos, vestidos com capas vermelhas e elmos prateados. Um deles viu Druss e sorriu. Era alto e magro, e ostentava uma pêra preta em forma de tridente. - Estou surpreendido por ainda não o terem matado, Homem do Machado disse ele.

-O Céu sabe que tentaram - respondeu Druss, com um sorriso forçado. -Já não os fazem rijos. Agora são leiteiras de armadura.

Precisamente como tu, Diagoras. Sim, vocês, os velhos, dizem sempre que as coisas eram me­

lhores no antigamente - redarguiu o homem. -No entanto, não

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creio que seja verdade. Presumo que os jovens guerreiros olhem para si e se recordem dos avôs. Assim sendo, é-lhes impossível lutarem consigo.

-Pode ser concordou o homem do machado.- Na minha idade, aproveitarei todas as oportunidades que puder. Alguma notí­cia de Orastes?

A expressão do guarda mudou, o sorriso desapareceu. -Não pro­priamente. O criado dele foi encontrado. Ele está vivo, mas muito mal. Esteve nas masmorras da Arena. Os Datianos descobriram-no ali quando abriram as prisões.

-Nas masmorras? Isso não faz sentido. Onde é que ele está agora? - A ser cuidado no Palácio Branco disse-lhe Diagoras. Vou

arranjar um salvo-conduto para si amanhã. Onde vai ficar? -Na Veado Carmesim, no Cais Oeste. Eles ainda têm comida?

- Sim, mas a ementa já não é a mesma. As coisas irão melhorar, agora que os Datianos levantaram o bloqueio. Seis navios já descar­regaram. O Velho Shivas deve ter andado pela doca para reabastecer as suas despensas. Passarei por lá quando acabar o meu quarto e ajudo­-o a emborcar um jarro ou dez.

Ah, moço - Druss soltou uma risada -, nem penses. É só cheirarem uma rolha de garrafa de vinho e os jovens como tu escor­regam para debaixo da mesa. No entanto, compra o vinho, e eu ensi­nar-re-ei como deve ser bebido.

- Digamos que o último a ficar de pé pode esquecer a conta propôs Diagoras.

-Nem mais. Rabalyn observou a troca de olhares. Enquanto os dois homens fa­

lavam, viu os olhos do soldado drenai dirigirem-se constantemente para o Irmão Lantern, que se encontrava de pé, a alguma distância, a conversar com Braygan.

Os seus companheiros vão ficar consigo na Veado Carmesim? perguntou Diagoras.

Nem todos. O padreco tem como destino a Rua das Videiras, e os anciãos da igreja. Há algum problema?

-O guerreiro com ele. Já o vi antes, Druss. Estive estacionado em Perapolis dois anos. Viemo-nos embora mesmo antes do fim. Os

Naashanitas concederam à embaixada e ao pessoal a ela afecto segu­rança na travessia das suas linhas. Vi O Maldito quando passámos. Não é um homem que esqueça com facilidade. - Druss olhou para o Irmão Lantern.

I l

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-Talvez estejas errado. -Não creio. Deixá-lo-ei passar se se responsabilizar por ele. -Sim, farei isso. Porém, é melhor informares os teus superiores

da presença dele . . Diagoras anuiu e abriu os portões.-Vemo-nos depois de escure­

cer. Traz dinheiro suficiente para pagares a conta. Levarei também uma almofada, para que possa deitar a cabeça

nela enquanto dorme debaixo da mesa. Druss bateu no ombro do homem e transpôs os portões. O Irmão

Lantern e Braygan seguiram-no, Rabalyn vindo na retaguarda. Começava a escurecer quando chegaram a um segundo conjunto

de portões, que bloqueavam o acesso a uma ponte em arco sobre um rio. Aqui havia mais guardas, homens vigorosos de barbas louras e olhos azuis-claros. Usavam compridas túnicas de malha e elmos com cornos.

Druss falou com eles, e mais uma vez os portões se abriram. A Rua das Videiras fica do outro lado da ponte e na primeira bifurcação à esquerda -disse Druss a Braygan. -O edifício da sua igreja é um pouco mais adiante. -O pequeno padre agradeceu-lhe, depois virou-se para o Irmão Lantern, estendendo-lhe a mão. O guerreiro apertou-a.

-Obrigado por tudo o que fez por mim, Irmão - referiu Braygan. -Que a Fonte o acompanhe nas suas viagens.

- Não creio que Ela goste da minha companhia - respondeu Skilgannon, com um suspiro. Vai tomar os seus votos?

-Acho que vou. Depois regressarei a Skepthia, e tentarei ser útil. Braygan estendeu a mão a Rabalyn. - Se quiseres, podes vir

comigo-disse.-Talvez os anciãos saibam do paradeiro dos teus pais. Se não, podem dar-te abrigo enquanto tentas encontrá-los.

Rabalyn abanou a cabeça. Não os quero encontrar. Se mudares de ideia, ficarei aqui alguns dias. - Dito aquilo,

o pequeno padre transpôs os portões. Parou uma vez na ponte para olhar para trás e acenar. Depois desapareceu de vista.

1110

CAPÍTULO 10

A Taberna Veado Carmesim era um edifício velho, em forma de L e com dois andares, construído próximo do Cais Ocidental, com vista para o porto e o mar do outro lado. Há muito que era um local ha­bitualmente frequentado por oficiais e soldados drenai estacionados no Bairro das Embaixadas da cidade. Era tal a sua reputação de comida, vinho e cerveja que até os oficiais vagrianos a usavam. Normalmente, a antipatia entre os soldados da Vagria e do Drenan teria impossibilitado semelhante território comum. Apesar de nin­guém actualmente vivo conseguir recordar as guerras entre Vagrianos e Drenai, a antiga inimizade entre os povos subsistia. De vez em quando havia até escaramuças fronteiriças.

Todavia, os conflitos ficavam de fora da Veado Carmesim. Nenhum homem de qualquer dos acampamentos se arriscaria a ser impedido de entrar por Shivas, o proprietário com cara de poucos amigos. Os seus cozinhados eram tão sublimes quanto o seu mau génio tenebroso. Acrescia que tinha uma memória mesmo muito comprida, e um homem recusado uma vez como cliente nunca mais seria perdoado.

Druss e Skilgannon estavam sentados a uma mesa que dava para o porto enluarado. Apesar da chegada da noite, os navios ainda esta­vam a ser descarregados no desembarcadouro, e vinham carroças para levar a comida de novo para a cidade faminta.

Skilgannon permanecia sentado em silêncio, observando os traba­lhadores das docas. Sentia o coração pesado. Não esperara sentir a falta do pequeno padre. No entanto, sentia. Braygan era o último elo com uma vida tranquila que SkilJ.:annon tanto se esforçara por abraçar.

<<Somos o que .romo.r, mm filho. li loi)IJJ t! o q11e .wmo.r. »

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A taberna estava a ficar cheia. Ao fundo, junto à parede, um grupo de soldados vagrianos bebia e gargalhava. Skilgannon olhou para os homens. Muitos vestiam ainda as cotas de malha do tamanho de tú­nicas, e um ostentava também o elmo de latão reforçado, com cornos. Noutra zona, soldados e oficiais de outras raças estavam sentados em silêncio, alguns já a comer, outros a saborear um copo de vinho ou uma caneca de cerveja. -Quantas nações estão estacionadas no Bairro das Embaixadas? - perguntou ao homem do machado. Druss enco­lheu os ombros.

-Nunca as contei. - Relanceou a taberna. - Na sua maior parte, apenas conheço os de Lentria e Drenan. Deve haver mais de vinte embaixadas. Até uma de Chiatze.

Druss ergueu o seu copo de vinho e despejou-o. Skilgannon olhou para ele. Sem o elmo e o justilho com reforço de aço prateado, o homem do machado parecia o que era -um homem vigoroso de cin­quenta anos. Podia ter sido um agricultor ou um pedreiro. Excepto os olhos. Havia algo de mortífero naquele olhar férreo. Tratava-se de um homem (corno diriam os Naashanitas) que encarara os olhos do dragão. - És O Maldito, moço? - perguntou subitamente Druss.

Skilgannon respirou fundo e correspondeu ao olhar de Druss. -Sou respondeu.

Eles mentem quando falam de Perapolis? Não. Não há nenhuma mentira que o possa tornar ainda pior.

Druss fez sinal a urna criada. O menu não era variado e o homem do machado pediu ovos e carne de vaca salgada. O que vais comer?

-O mesmo estará bem. Quando a criada se afastou, Druss voltou a encher o seu copo de

um jarro e ficou calado, a olhar pela janela.-No que está a pensar? - Estava a pensar em velhos amigos-respondeu Druss.-Um

em particular. Bodasen. Grande esgrimista. Lutámos lado a lado por toda esta terra. Um homem inflexível. Um excelente soldado e um amigo verdadeiro. Penso nele muitas vezes.

-O que lhe aconteceu? Matei-o em Skeln. Não posso mudar nada. Não posso deixar de

o lamentar. O rapaz diz-me que foste padre durante um tempo. O Irmão Lantern, creio que foi o que ele disse.

Um homem deve experimentar sempre novas coisas - disse Skilgannon.

-Não menosprezes a situação, moço. Foste tocado pela fé, ou per­seguido pela culpa?

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- Provavelmente mais a culpa do que a fé admitiu Skilgannon. -Por acaso não pretende fazer um sermão subtil nesta altura?

Druss soltou urna gargalhada, o som espontâneo e pleno de humor genuíno. Em toda a minha longa vida, nunca ninguém me acusou disso, rapaz. Um homem que usa um machado não cria, de um modo geral, fama de subtileza. Queres que te dê um sermão?

Não. Não há nada que alguém me possa dizer que eu não tivesse já dito a mim mesmo.

Ainda pertences ao exército naashanita? Skílgannon abanou a cabeça. -A rainha quer a minha morte. Sou

um proscrito no Naashan. Disseram-me que há um preço alto pela minha cabeça.

-Nesse caso, não estás aqui corno espião? -Não.

Ainda bem. - Druss encheu o copo até acima. Skilgannon sornu.

Rabalyn disse-me que vai participar mais tarde numa compe­tição de bebida. Não deveria manter-se afastado desse vinho?

Alguns goles para preparar o estômago. Este é Lentriano Tinto. Há dois meses que não provo uma gota. Não costumas beber?

Skílgannon abanou a cabeça. - Tende a tornar-me quezilento. Druss anuiu.- E um homem com a tua perícia não pode permi­

tir-se discussões sem sentido. Compreendo o teu ponto de vista. Ouvi histórias sobre ti e a Rainha Bruxa. Dizem que eras o paladino dela.

-Fui. Chegámos a ser amigos ... quando ela era perseguida. -Dizem que a amaste. Skilgannon abanou a cabeça. - Isso não corresponde à verdade.

Penso nela quando estou acordado e atormenta-me também os sonhos. Ela é uma mulher extraordinária, Druss: corajosa, inteligente, espirituo­sa. Permaneceu calado por um momento. -Elogios corno este ficam tão aquém da realidade que mais parecem insultos. Digo que ela era corajosa, mas isso não corresponde à realidade. Nunca conheci ninguém mais destemido. Na Batalha de Carsis, com a esquerda em debandada e o centro a desmoronar-se, os generais aconselharam-na a fugir do campo. Mas ela colocou a armadura e avançou até ao centro onde todos a podiam ver. Ela venceu, Druss. Contra todas as probabilidades.

- Parece que devias ter casado com ela. Ou será que ela não sen­tia o mesmo em relação a ri?

Skilgannon encolheu os ombros. Ela disst· que sim. Quem pode saber? Mas era uma questão dt· polítit'u, Druss. Naque les tempos pe-

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rigosos, ela precisava de aliados. O único tesouro que possuía era a sua linha de descendência. Se nos tivéssemos casado, ela nunca have­ria conseguido reunir tropas suficientes para recuperar o trono do pai. Os príncipes e condes que lutavam sob a bandeira dela alimentavam esperanças de conquistar o seu coração. Ela serviu-se deles todos.

A refeição chegou e os dois homens comeram em silêncio. Por fim, Druss afastou de si o prato.

-Não mencionaste as tuas acções em Carsis. A história que ouvi foi que reuniste o flanco esquerdo destroçado e comandaste um con­tra-ataque. Foi isso que mudou o rumo da batalha.

-Sim, ouvi essa história-referiu Skilgannon.-Ficou conhe­cida porque os homens escrevem as histórias. Têm dificuldade em elogiar uma mulher num mundo de homens. Sou um soldado, Druss. Está-me no sangue. Se Jianna não tivesse avançado para a frente e dado novo alento aos homens, nenhuma acção minha teria feito a menor diferença. As forças de Bokram haviam destroçado a esquerda. Os ho­mens fugiam pela floresta. Quando a rainha chegou, Bokram viu-a e mandou retirar metade da cavalaria para perseguir o flanco esquerdo. Ele virou-os na direcção do centro. Não foi uma jogada disparatada. Se tivesse conseguido matar Jianna, podia ter perseguido os guerrei­ros desertores quando lhe apetecesse. Assim sendo, dispus de pouco tempo para reagrupar alguns dos homens em fuga. E, sim, foi o con­tra-ataque que destroçou o exército de Bokram. Tivesse o usurpador mostrado mais coragem, mesmo assim haveria conseguido vencer. No entanto, é o que reza a história. O cobarde raramente consegue triunfar.

O mesmo se aplica à vida-disse Druss.-Mas, afinal, por­que é que ela agora te quer morto?

Skilgannon abriu as mãos. Ela é uma mulher dura, Druss. De repente, sorriu e abanou a cabeça. Ela não gosta de ser enga­nada. Abandonei o serviço dela sem a sua autorização. Ela mandou o amante procurar-me, para tentar reaver um presente que me dera. Ele veio com um grupo de assassinos. Não sei se lhe ordenou que me ma­tasse. Talvez não. No entanto, quem acabou por ser morto foi o amante dela. Depois disso, tenha a cabeça a prémio.

Bem, moço, foste soldado e padre. E agora? Já ouviu falar do Templo dos Ressurreccionistas? Não posso dizer que tenha.

-Tenciono encontrá-lo. Dizem que conseguem operar milagres. Preciso de um mila�n: desses.

I Htí

-Onde fica? -Não sei, Druss. Podia ser no Namib, ou nas terras dos Nadir,

ou em Shemak. Pode não ser em lado nenhum. Apenas uma lenda do passado. Tenho de descobrir.

A porta do fundo abriu-se. Skilgannon virou-se. - Ah, o seu adversário de bebida chegou -anunciou, quando o jovem soldado alto com a pêra em forma de tridente se dirigiu para a mesa. -Deixo­-os à conversa. Vou dar um passeio e apanhar o ar do mar.

Diagoras veio ocupar o lugar deixado vago pelo assassino naasha­nita e olhou para o jarro meio vazio de Lentriano Tinto. Creio que começou sem mim, velho companheiro disse ele, pegando-lhe e enchendo um copo.

-Vais precisar de toda a ajuda que puderes, rapaz. Diagoras viu o Naashanita abandonar a taberna. -Anda mistu­

rado com companhia sinistra, Druss. Ele é um carniceiro louco. -Também já me chamaram isso - salientou Druss. - Seja

como for, gosto dele. Veio em meu auxílio há alguns dias. Um homem mau não se teria arriscado. E ajudou um grupo de refugiados a lutar contra os animais da Arena. Skilgannon é muito mais do que histó­rias de carnificina. Participaste da presença dele?

-Sim. Gan Sentrin não ficou preocupado. Parece que O Maldito já não é um oficial do Naashan. A Rainha Bruxa pôs a cabeça dele a prémio. É um fora-da-lei.

-Sim, ele contou-me. -Druss recostou-se na cadeira, depois es­

fregou os olhos. Diagoras achou que ele tinha um ar cansado. Havia

mais fios de prata na sua barba do que quando em Skeln. O tempo,

como dissera o poeta, era um, rio de crueldade sem fim. Diagoras

bebeu goles de vinho. Queria continuar a falar sobre o malvado

Skilgannon. Queria saber como é que um herói como Druss podia en­

contrar nele algo que lhe agradasse, mas conhecia suficientemente

bem Druss para perceber que o homem mais velho dera a conversa

por encerrada. Os seus olhos cinzentos ficaram sem vida, e as suas fei­

ções endureceram. Diagoras conhecia bem aquela faceta dele. Num

mundo de tons cinzentos em mudança, Druss, a Lenda, esforçava-se

por ver tudo preto ou branco. Um homem era bom ou mau aos olhos

de Druss. Todavia, era difícil compreender como podia sustentar essa

opinião neste caso. Druss não era tolo. Diagoras permaneceu sentado

em silêncio. O vinho era bom, e sempre apreciara a companhia do

homem do machado, apesar dt· st·r mais velho. Diagoras podia achar

1H5

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que ele era ingénuo na perspectiva que tinha da vida, mas havia sem­pre uma sensação de certeza a envolvê-lo. Era reconfortante. Dali a pouco, voltou a falar.

-Soube que Manahin está agora ao serviço do governo de Abalayn? - perguntou. -Um dos heróis de Skeln. Anda sempre com a medalha da campanha na sua capa.

-Ele mereceu-a - replicou Druss. -Onde está a tua? -Perdi-a num jogo de dados há dois anos. Para ser sincero,

Druss, perdi lá demasiados amigos para o querer recordar. E estou farto de ouvir as pessoas dizer que gostariam de lá ter estado comigo. Raios, daria um saco de ouro para não ter lá estado.

- Quem sou eu para te contrariar, moço? Perdi amigos de ambos os lados. Seria bom pensar que não foi tudo em vão.

O comentário chocou Diagoras. -Em vão? Manteve-nos livres. -Sim, é verdade. Mas por causa disso, estas terras orientais

mergulharam na guerra. Nunca acaba, pois não? - Druss bebeu abundantemente, depois voltou a encher o copo.

- Ah, não ligues ao que eu digo. Às vezes o vinho traz uma negrura à minha mente. Há notícias do criado de Orastes?

-O cirurgião deu-lhe algo para o ajudar a dormir. Estava bas­tante maltratado, Druss, e muito aterrado. Tanto quanto podemos calcular, ele esteve naquela masmorra cerca de dois meses. É provável que Orastes estivesse com ele.

- Aprisionado? Não faz sentido. Porquê? - Isso não sei dizer. A situação aqui tem estado caótica. Ninguém

sabia o que se passava. Durante as últimas semanas, mantivemos fe­chados todos os portões do Bairro das Embaixadas. Tem havido tumultos, e assassínios, e enforcamentos. O rei enlouqueceu, Druss. Completamente. Corre o boato de que andou pelo palácio a atacar os guardas com uma espada cerimonial, gritando que era o deus da guerra. Foi derrubado pelo seu próprio general, Máscara de Ferro. Foi nessa altura que os Tantrianos se renderam e abriram os portões aos Datianos. No fim, foi uma bênção. Sabe o que teria acontecido se a cidade fosse tomada de assalto?

-Violações, saques e carnificina- disse Druss. -Eu sei. Skil­gannon já o referira antes. Se os Tantrianos tivessem sido mais bem chefiados, haveriam sofrido mais. Assim sendo, porque teriam apri­sionado Orastes(

-Não fàz muito sentido, Druss. Tudo o que consegui apurar é que as razõt·s <.Jlll' o trouxeram a Mellicane foram pessoais e não ofi-

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ciais. Todos os dias vinha à cidade, umas vezes com o criado, outras sozinho. Terá de falar com o homem, mas cuidado, meu amigo, que

Orastes provavelmente está morto. -Se estiver - afirmou Druss, com frieza -, encontrarei os ho­

mens que o fizeram, e os homens que o ordenaram. - Bem, se ainda cá estiver daqui a quatro dias, irei consigo -

referiu Diagoras. - A minha comissão termina nessa data e vou aban­donar o exército. Ajudá-lo-ei a descobrir o que aconteceu, depois voltarei para Drenan. Está na altura de casar e ter alguns filhos para cuidarem de mim quando chegar à velhice.

- Fico feliz com a tua companhia, moço. Põe-me os inimigos à

frente e mostrar-re-ei como se lida com eles. Mas esta busca deso­rientou-me.

- Corre um boato de que Orastes foi visto a dirigir-se para sueste há cerca de um mês- avançou Diagoras.- Deve ter sido espalhado por aqueles que o aprisionaram. Não foi aí que esteve?

-Sim. Dizem que ele montava um corcel branco e estava acom­panhado por um grupo de soldados. Afinal era um mercador que apre­sentava uma ligeira semelhança com Orastes, alto, gordo e de cabelos louros. Os soldados eram a sua guarda pessoal. Encontrei-me com eles no mercado de uma aldeia a cem quilómetros daqui. O corcel per­tencera a Orastes. O mercador tinha um documento comprovativo da venda, assinado pelo conde. Conheço a sua caligrafia. Era autêntica.

- Bem, amanhã ... espero ... poderemos falar com o criado. Agora, está preparado para a tal competição de bebida?

-Não, moço- disse Druss -, esta noite a refeição e as bebi­das são por minha conta. Sentamo-nos e fazemos o que os velhos sol­dados têm fama de fazer. Falamos de dias passados e velhas glórias. Discutiremos os problemas do mundo, e ... enquanto o vinho corre ... surgir-nos-ão cem grandes ideias para pôr tudo em ordem. -Soltou uma risada. -E amanhã, quando acordarmos com dores de cabeça, tê-las-emos esquecido todas.

-Parece-me bem- referiu Diagoras, levantando a mão e cha­mando a criada. - Dois jarros de Lentriano Tinto, minha querida, e uns copos maiores, se fazes favor.

Skilgannon deambulou pela doca, evitando os cais onde homens cansados ainda estavam a descarregar. Os sons do mar a bater nas paredes do porto eram calmantes, assim como o cheiro a algas e ar salgado.

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Mellicane tivera sorte desta vez. Tinham-se rendido cedo. Não hou­vera tempo para as raivas efervescentes se transformarem em ódios cegos entre as tropas sitiantes. Quanto mais tempo durasse um cerco, mais a negrura invadiria os corações dos resistentes. Os homens perderiam os amigos, ou os irmãos. Assim que as muralhas fossem derrubadas, os invasores inundariam a cidade como demónios vinga­dores, destruindo e matando até a insanidade da ira ser expurgada dos seus corações.

Teve um calafrio, ao recordar os horrores de Perapolis. A popula­ção de Mellicane provavelmente sentia-se segura agora, com o fim desta pequena guerra. Skilgannon interrogou-se como se sentiriam quando os exércitos do Naashan descessem sobre eles.

Há muito que terei partido, nessa altura, decidiu. Chegando a um molhe deserto, ficou a observar o reflexo da lua na

água, a ser quebrado pelas ondas. Provavelmente Jianna teria já ho­mens à sua procura. Um dia encontrá-lo-iam. Saltariam de um beco escuro ou sairiam das sombras das árvores. Ou atacá-lo-iam quando es­tivesse tranquilamente numa taberna, a sua mente embrenhada noutros assuntos. Seria improvável que anunciassem a sua presença ou tentas­sem lutar com ele, num corpo a corpo. Mesmo sem as Espadas da Noite e do Dia, Skilgannon era mortífero. Com elas, era quase invencível.

Ouviu passos furtivos nas tábuas atrás de si e virou-se. Dois ho­mens avançavam para ele. Vestiam roupas andrajosas, que estavam encharcadas. Ambos traziam facas nas mãos. Calculou que tivessem entrado na água por debaixo dos portões do Bairro das Embaixadas e nadado até às docas. Eram ambos magros, macilentos e de meia­-idade.

Skilgannon viu-os aproximar-se.- Dê-nos uma moeda- pediu o primeiro -, e não lhe acontecerá nada.

-Não me acontecerá nada de uma maneira ou da outra - re­torquiu Skilgannon. -Agora é melhor porem-se a andar, pois não quero matá-los. - Os ombros do homem descaíram, mas o camarada dele empurrou-o para o lado e precipitou-se para Skilgannon. O guer­reiro cortou a arremetida da faca com o antebraço, prendeu o pé atrás da perna do homem e atirou-o para o passadiço. Enquanto o homem se tentava levantar, Skilgannon pisou-lhe a mão da faca. O atacante gritou de dor, a faca deslizou-lhe dos dedos. Skilgannon apanhou-a.

-Não te mexas- ordenou ao homem caído, depois virou-se para

o companheiro dele. - Isto não é empresa para que estejam prepa­rados - disse. - O que pensam que estão a fazer aqui?

IHH

-Não há comida - queixou-se o homem. - Os meus filhos choram com fome. Tudo isto - acrescentou, indicando com o braço os navios com alimentos que eram descarregados ao longe -, vai para as casas dos ricos. Não quero ver os meus filhos morrerem de fome. Prefiro ser eu a morrer.

-E isso é o que te vai acontecer - respondeu Skilgannon. - Vais morrer. - Suspirando, atirou a faca para o passadiço, depois levou a mão à bolsa do dinheiro, retirando uma pesada moeda de ouro. -Leva isto à taberna e compra comida. Depois vai para casa e esquece esta loucura.

O segundo homem pôs-se em pé, de faca na mão. -Não há ne­cessidade de receber migalhas da mesa de um patife, Garak - disse ele. - Olha para a bolsa do dinheiro dele. Está cheia. Podemos ficar com todo. Ataquemo-lo!

- Tens uma decisão a tomar, Garak- referiu Skilgannon. -Eis aqui uma moeda oferecida honestamente. Com ela, poderás alimen­tar a tua família durante um mês. A alternativa é nunca mais a veres neste mundo. Não sou um homem clemente, e não dou segundas oportunidades.

Os dois faquistas trocaram olhares. Naquele momento, Skil­gannon soube que iriam atacar, e que teria de os matar. Mais duas vidas seriam desperdiçadas. Os filhos de Garak perderiam o pai, e Skilgannon teria mais duas almas a pesar-lhe na consciência. Depois, como sempre, a sua mente desanuviou. Sentiu o peso da bainha nas suas costas, a necessidade de puxar das Espadas da Noite e do Dia, de sentir os seus dedos a agarrarem os cabos de marfim traba­lhado, de ver as lâminas cravar-se na carne, e o sangue jorrar das artérias cortadas. Skilgannon não fez qualquer esforço para reprimir a fome crescente.

-Irmão Lantern! - chegou-lhe a voz de Rabalyn. Skilgannon não se virou e manteve os olhos nos dois homens. Ouviu o jovem a avançar pelo molhe e viu o olhar de Garak desviar-se dele. Quando o momento mortífero passou, a raiva de Skilgannon aumentou.

Esforçou-se por a controlar. -Aceitarei a moeda, cavalheiro- disse Garak, embainhando a

faca. O homem macilento suspirou. - Vivemos tempos terríveis. Sou marceneiro. Apenas um marceneiro.

Skilgannon permaneceu imóvel, depois respirou fundo. Foi preciso todo o esforço da sua vontade para não rachar o homem de alto a baixo.

Em silêncio, Skilgannon etHre�o:ou-lhe a moeda. Garak fez um gesto

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ao camarada, que se deteve um momento, olhando malevolamente para Skilgannon. Depois, ambos os homens seguiram pelo molhe, pas­sando por Rabalyn.

Skilgannon aproximou-se do corrimão do molhe e agarrou-o com mãos trémulas.

-Druss disse-me que tinha ido dar um passeio. Peço desculpa se o incomodei -referiu Rabalyn.

-O incómodo foi uma bênção. -A sede de sangue começou a passar. Skilgannon olhou para o rapaz. -Então, quais são os teus pla­nos, Rabalyn?

O jovem encolheu os ombros. -Não sei. Quem me dera poder ir para casa. Sou capaz de ficar na cidade e procurar trabalho.

Skilgannon viu que o rapaz o olhava e soube que estava à espera de um convite. -Não podes vir comigo, Rabalyn. Não porque não goste da tua companhia. És óptimo e corajoso. Gosto imenso de ti. Mas andam a perseguir-me. Um dia encontrar-me-ão. Já tenho mor­tes suficientes na consciência, e não te quero acrescentar à lista. Por que não segues o conselho de Braygan, e vais ter com ele ao templo?

Foi evidente a decepção do jovem. -Talvez o siga. Posso ficar com a camisa? Não tenho mais roupas.

-É claro que podes. -Skilgannon retirou outra moeda da bolsa. -Toma lá. Pede aos padres para a trocarem por moedas de prata e cobre. Então poderás comprar outra túnica e umas calças que te sirvam melhor. Com o que sobrar podes pagar aos padres o teu alojamento.

Rabalyn pegou na moeda e olhou fixamente para ela.-Isto é ouro -disse.

-Pois é. -Nunca segurei ouro. Um dia retribuir-lhe-ei. Prometo. -

Olhou intensamente para Skilgannon. -Está bem? Tem as mãos a tremer.

-Estou só cansado, Rabalyn. -Julguei que fosse lutar com aqueles homens. -Não teria sido uma luta. A tua chegada salvou as vidas deles. -Quem eram? -Apenas homens, tentando arranjar comida para as famílias.

-Uma brisa fresca fez agitar a água. -Tem família�-inquiriu Rabalyn. -Já tive. A�ora não. - Não st• st•ntt• sozinho� Eu sinto-me, desde que a Tia Athyla

morrl' u.

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Skilgannon respirou fundo para se acalmar. Sentiu o seu corpo re­laxar, e a tremura nas mãos cessou. - Sim, acho que sinto.

Rabalyn colocou-se ao lado de Skilgannon e apoiou os braços no corrimão do molhe. A lua brilhava irregularmente no mar agitado. -Nunca tinha pensado nisto antes. Até ficava bastante aborrecido com a Tia Athyla. Ela ralhava-me constantemente. Assim que ela ... morreu, apercebi-me de que não havia ninguém para voltar a ralhar comigo. Não da mesma maneira, se sabe ao que me refiro ...

-Sei. Depois de o meu pai morrer, fui criado por duas pessoas bondosas, Sperian e Molaire. Molaire estava sempre preocupada se eu comia o suficiente, ou dormia o suficiente, ou vestia roupas suficien­temente quentes no Inverno para me proteger do frio.

-Sim, exactamente -disse Rabalyn, sorrindo ante as recorda­ções. -A Tia Athyla era assim. -O seu sorriso desapareceu. -Ela merecia melhor sorte do que morrer naquele incêndio. Quem me dera ter podido fazer algo mais por ela enquanto estava viva. Comprar-lhe um presente bonito, ou então ... não sei. Uma casa com um jardim a sério. Mesmo um lenço de seda. Ela dizia sempre que gostava de seda.

-Ela parece uma boa mulher -referiu Skilgannon, baixinho, vendo a aflição do jovem. -Aposto que lhe deste mais do que jul­gas.

-Não lhe dei nada - contrapôs Rabalyn, uma pontinha de amargura na sua voz. -Se ao menos eu tivesse matado Todhe mais cedo, talvez ela ainda estivesse viva.

-Até pode ser, Rabalyn, mas não existe frase mais frívola do que se ao menos. Se ao menos pudéssemos voltar atrás e viver de novo as nossas vidas. Se ao menos não tivéssemos dito as palavras desagradá­veis. Se ao menos tivéssemos virado à esquerda em vez de à direita. Se ao menos é inútil. Cometemos os nossos erros e seguimos em frente. Tomei decisões na minha vida que custaram a vida de milhares. Pior do que isso, através das minhas acções, aqueles que me amavam mor­reram de forma horrível. Se me permitisse percorrer o caminho do se

ao menos, enlouqueceria. Tu és um jovem bom e forte. A tua tia educou-te bem, e retribuirás esse amor amando outros. Uma esposa, filhos, amigos. Esse é o maior presente que lhe podes dar.

Permaneceram em silêncio durante algum tempo, ouvindo a água a bater no molhe.

- Por que é que as pessoas o perse�uem? - perguntou Rabalyn, dali a um bocado.

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-Foram enviadas por alguém que me quer ver morto. -Ele deve odiá-lo muito. -Não, ela ama-me. Agora preciso de ficar sozinho, meu amigo.

Tenho muito em que pensar. Volta para a taberna. Irei ter contigo mais tarde.

Ainda se afigurava estranho a Skilgannon que, de todos os momen­tos que partilhara com Jianna, no meio de toda a violência, medo e ex­citação, recordasse tão vivamente o percurso até casa desde os banhos.

Tendo iludido os homens enviados para o espiar, haviam caminhado juntos, o braço dela no seu. Olhara-a, os seus olhos atraídos para a tú­nica amarela fina que vestia. Tinha seios pequenos e firmes, os mami­los fazendo pressão sobre o tecido. Pusera um perfume barato que lhe atordoava os sentidos. Deu consigo a desejar de todo o seu coração que ela pudesse ter sido aquilo por que se fazia passar. Skilgannon des­cobrira os prazeres do sexo nos banhos, no Verão anterior, mas nunca ansiara por ninguém como desejava a rapariga que lhe dera o braço.

-Qual é o teu plano agora? -perguntou ela, enquanto cami­nhavam juntos.

Não conseguiu pensar com clareza, consciente de um aperto des­confortável no ventre. -Então? -insistiu ela.

-Vamos para minha casa. Falamos lá-disse, tentando ganhar tempo.

-O que vais dizer aos teus criados? Eis uma boa pergunta. Sperian era de poucas palavras e quase não

falava com ninguém. Era um homem solitário, merecedor de toda a confiança. Em contrapartida, Molaire era uma fala-barato. - Para onde tencionava Greavas levar-te? - perguntou. - Assim que te tirasse da cidade.

-Para leste, para as montanhas. Há ali tribos que ainda são leais. Queres parar de me olhar para os seios? Está a deixar-me embaraçada.

Desviou o olhar dela. -As minhas desculpas, Princesa. -Talvez fosse melhor não me tratares assim -salientou. Ele parou e virou-se para ela. -Normalmente não sou assim tão

bronco - disse-lhe. - Perdoa-me. És a rapariga mais bonita que alguma vez vi. Isso está a baralhar-me os sentidos.

-O meu nome será Sashan -referiu, ignorando o comentário dele. -Experimenta. Di-lo.

-Sashan .

- Muito lwm. E l'm relação aos teus criados?

11)2

-Direi a ambos que te conheci nos banhos e que o teu nome é Sashan, e que irás ficar comigo uns tempos. Farei com que Sperian te dê uma quantia. Trinta moedas de prata por semana. Sempre ajudará a não levantar suspeitas. Deves aceitar o dinheiro e ir ao mercado. Compra ... o que quiseres.

-Vejo que estás informado sobre o preço corrente das prostitutas, jovem Olek.

-Efectivamente estou, Sashan. E tu também. Ela soltou uma gargalhada, o som profundo e gutural. -Se fosse

uma prostituta, não terias dinheiro para me pagar. -Se fosses uma prostituta, venderia tudo o que tenho por uma

noite contigo. Ela deu-lhe de novo o braço. -E não te arrependerias. Nem de

uma só moeda de cobre. Todavia, não sou prostituta. Que preparati­vos para dormir tens em mente?

-Oh, temos muitos quartos vagos. -E o que irão pensar os teus criados? Levas uma prostituta para

casa e depois não dormes com ela? Não, Olek, temos de partilhar o mesmo quarto. Mas será tudo o que vamos partilhar.

De volta a casa, apresentou Sashan a Sperian e Molaire. O jardi­neiro não disse nada, mas Molaire ficou indignada. Virou-se para Sperian: -Tu vais consentir isto?

-O rapaz está a três semanas da maioridade. A escolha é dele. -Acho isto uma infâmia - insurgiu-se Molaire, ignorando

Jianna e indo-se brusc�mente embora do salão de entrada. Quando a princesa foi até à sala de estar, Sperian olhou Skilgannon com dureza. --- É quem eu penso ser? -segredou.

-Sim. Não digas nada a Molaire. -Ela é muito convincente com aquela túnica amarela. -Sim, é. -Jianna voltou ao salão de entrada e sorriu a Sperian. -Receio que a sua mulher não goste de mim. -O problema é mais meu do que seu, Sashan - disse-lhe

Sperian. - Será o mesmo que ter uma vespa no meu ouvido esta noite. Duvido de que vá conseguir dormir. Porque não vai com Olek até ao jardim? Depois levarei algo que comer e beber.

Quando o criado saiu, Skilgannon conduziu Jianna ao jardim. O Sol punha-se para lá do muro ocidental, e estava fresco à sombra. Ela sentou-se num canapé, as pernas compridas estendidas. Skilgannon desviou o olhar das coxas dela, e olhou intencionalmente para as flores no jardim . -- Elt• sabt', não sabe? -perguntou] ianna.

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Sim. Mas ele também já sabia que Greavas te estava a escon­der ... e ele mandou-me a Greavas. Calculei que não conseguíssemos enganar Sperian. Ele não dirá nada. Nem sequer a Molaire.

Seria sensato não o fazer. Confiar um segredo àquela porca gorda seria o mesmo que tentar transportar água numa rede de pesca.

-Ela é uma boa mulher disse Skilgannon, bruscamente. -Não fales assim dela.

Surgiu uma expressão de surpresa no rosto da rapariga, imediata­mente seguida de um acesso de raiva que fez com que os seus olhos cinzentos adquirissem um brilho frio. Esqueces-te de com quem estás a falar.

-Estou a falar com Sashan, a prostituta, que vai viver em minha casa por trinta moedas de prata.

Ela desviou o olhar, e ele observou o perfil dela. Pareceu-lhe que o rosto dela era belo de qualquer ângulo. Mesmo com o cabelo amarelo mal pintado, e os caracóis vermelhos nas têmporas, era deslumbrante.

-Quanto tempo tenho de ficar aqui? perguntou. Neste momento, os soldados esquadrinham a cidade, e todas as

portas estão guardadas. Daqui a três semanas começa o Festival das Colheitas. Virão até cá agricultores e mercadores de todas as regiões do Naashan. Assim que o festival acabar, regressarão. Haverá um grande número de pessoas a abandonar a cidade. Será nessa altura, creio.

-Nesse caso, um mês? -Pelo m:enos. -Será um longo mês. Skilgannon não se apercebera de quão longo poderia ser o mês.

Começou a dar-se conta naquela primeira noite, quando ele e Jianna se retiraram para o seu quarto por cima do jardim, virado a poente. A cama era ampla e fora construída para dois. Mesmo assim, ficou acordado, sentindo o calor que emanava dela. O cheiro do seu cabelo chegava-lhe sempre que soprava a brisa nocturna. Durante a noite, ela acordou e saiu silenciosamente da cama. Viu o seu corpo nu sílhue­tado na janela. A excitação foi rápida e dolorosa. Ela estendeu os bra­ços por cima da cabeça e passou os dedos pelo cabelo. Skilgannon absorveu mentalmente os contornos dela, as linhas suaves da sua cintura, e a longa perfeição das suas pernas. Atravessou o quarto e ser­viu-se de um copo de água. Skilgannon fechou os olhos e procurou expulsar a imagt·m dda da sua mente. Foi um exercício inútil. Sentiu­-a deítar-st• ma is umu vt•z a seu lado.

-- Esnís unmlado! -perguntou-lhe.

Pensou ignorá-la e fingir que dormia.-Sim-disse.-Estou acordado. A cama é desconfortável? Impede-te de dormir?

-Não. Estava a pensar na minha mãe. Perguntava-me se alguma vez a voltarei a ver.

- Greavas é um homem inteligente. Vai conseguir ser bem suce­dido.

-Ela traz veneno, sabes? Escondido num anel. Se a vierem bus­car, engoli-lo-á.

Tens veneno? Não. Fugirei. Vingarei o meu pai, e assistirei à queda de

Bokram. Não é tarefa fácil, Sashan. Ele tem o apoio do imperador.

Mesmo que reunisses um exército para competir com Bokram, ainda terias de enfrentar os Imortais. Eles nunca foram derrotados.

-Gorben cairá disse ela. - A sua ambição é demasiado grande, o seu orgulho colossal. O meu pai compreendeu isso, mas escolheu a ocasião errada. Gorben não se deterá. Continuará a au­mentar o seu império. Um dia dará um passo a mais. Contra os

Gothir, talvez, ou os Drenai. E se não cair?

Virou-se para ele.-Nesse caso, terei de arranjar uma maneira de o cortejar. Nenhuma das esposas lhe deu filhos. Eu dar-lhe-ei filhos. Depois derrotarei Bokram.

-Confiança não te falta - comentou ele. - Não acredito, porém, que Bokram esteja a tremer de medo neste momento.

-Espero que não-disse Jianna. Ele procura duas mulheres que são, na melhor das hipóteses, um estorvo. O seu único medo é que eu fuja e me case com um príncipe com poder. Nem mesmo isso o preocupará excessivamente, pois não existe um único príncipe com a fortuna ou o exército para o derrubar.

-Nesse caso, como pensas triunfar? -Há pelo menos cinquenta príncipes e chefes militares que gos-

tariam de me desposar. Juntando-os todos, temos um exército que se espalhará pela terra.

Tencionas casar-te com cinquenta príncipes? Acho que fazer de prostituta te subiu à cabeça.

-Malanek disse que eras inteligente e perspicaz. Será que ele se enganou?

-Curiosamente, a minha perspicácia não funciona tão perto de uma mulher nua.

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Ela riu-se. -A história dos homens repete-se. E agora vou dor­mir. -Virou-lhe as costas.

A dada altura durante a noite, conseguiu dormitar um pouco, mas sempre que ela se mexia, acordava e sentia-se agitado. Uma vez, ela virou-se e o seu braço caiu-lhe sobre o peito, a cabeça próximo do ombro dele.

Logo a seguir à alva ele acordou, remeloso e cansado. Jianna dormia ainda. Vestindo uma túnica cinzenta simples e sandálias, desceu as es­cadas. Molaire andava já na cozinha, a lavar legumes para a sopa. Deitou-lhe um olhar que pretendia ser de desprezo. Indo ter com ela, beijou-lhe a face.-O teu pai reprovaria isto-disse, ruborizando-se.

Ele olhou para o rosto redondo e sincero dela. - Talvez não -admitiu.

-E estás com um aspecto medonho esta manhã. Completamente debochado.

Skilgannon soltou uma gargalhada e abandonou a divisão, enca­minhando-se para o jardim. Sperian já lá se encontrava, ajoelhado num dos canteiros, cortando as flores secas e arrancando as ervas daninhas. Durante um bocado, Skilgannon ajudou-o, depois os dois homens vol­taram para casa, retiraram a terra das mãos e sentaram-se para o pe­queno-almoço. Molaire deixou-os e foi para a lavandaria. Skilgannon falou a Sperian das trinta moedas de prata que teriam de ser pagas a Sashan.

- Ah, isso é sensato. Muito embora não tenha tanto a certeza em relação a ela ir ao mercado. Duvido de que alguma vez tenha regateado.

-Acho que se sairá muito bem. Há vigias no exterior da casa? -Sim. Dois homens. Estiveram aqui a maior parte da noite.

Foram rendidos esta manhã. Já pensaste no que vais dizer se Boranius voltar? Ele alguma vez a viu?

A pergunta causou algum aperto no estômago de Skilgannon. -Não sei. Hei-de perguntar-lhe.

Sperian cortou pão fresco e várias fatias grossas de queijo, que colocou numa bandeja. -Queres levar-lhe isto?

Skilgannon voltou para o quarto. J ianna estava acordada, mas ainda deitada na cama. -Trouxe-te o pequeno-almoço - anunciou. Ela sentou-se, os lençóis caindo e expondo-lhe os seios. Skilgannon pra­guejou. -Podias ao menos vestir-te? -disse bruscamente.

-Bom, estás muito irascível esta manhã, Olek. Não dormiste bem? - Estendendo o braço, pegou na bandeja, depois sentou-se e comeu em silêncio. Afastando a bandeja, levantou-se da cama.

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Skilgannon virou as costas e ouviu-a soltar uma gargalhada. -Já podes olhar para mim, meu amigo recatado-disse ela. Vestira a tú­nica amarela e estava sentada numa cadeira de verga junto à janela.

-Alguma vez viste Boranius?-perguntou. Ela encolheu os ombros. -O nome não me diz nada.

-Alto e atraente, com cabelo louro. Foi aluno de Malanek. -Ah, sim, agora me lembro dele. Olhos da cor de esmeraldas e

uma boca arrogante. Por que perguntas? -É capaz de aparecer por cá. O melhor seria ele não te ver. -Ah, Olek, como te preocupas excessivamente. A única vez que

o encontrei, estava vestida com sedas e cetins. Tinha o cabelo escuro e usava uma tiara com setenta brilhantes. O meu rosto estava pintado, e ele limitou-se a baixar a cabeça para me beijar a mão, depois a sua atenção convergiu para o meu pai ... a quem estava desesperado por impressionar.

-Mesmo assim. Boranius não é parvo. Ainda pôs homens a vigiar a casa.

-Nesse caso, deveria deixar que me vissem. Irei ao mercado. Dá--me dinheiro. Vou comprar um colar e um vestido novos.

-Pareces estar a divertir-te -comentou ele. O sorriso dela desapareceu. -O que preferias, Olek? Que sorrisse

afectadamente e tremesse neste quarto, à espera de que homens fortes me viessem salvar? Triunfarei ... ou serei capturada e morta. Nenhum homem nesta terra alguma vez me atemorizará. Não o permitirei. Sim, vou divertir-me com a ida ao mercado. É algo que nunca fiz. Vou ca­minhar ao sol e apreciar a minha liberdade. Sou Sashan, a prostituta. E Sashan, a prostituta não tem medo de Boranius ou seja de quem for.

Ficou a observá-la por um momento. Depois anuiu e fez uma vénia. -És uma mulher excepcional -referiu.

-Sim, sou. Fala-me do mercado. Sentaram-se e conversaram durante algum tempo sobre a arte de

regatear, e que nunca ninguém pagava o primeiro preço mencionado. Avisou-a também dos lugares onde as mulheres não estavam autorizadas a entrar, salas de jogo, tabernas particulares e templos públicos.

-Uma mulher não pode entrar num templo? -inquiriu. -Não pela porta principal. Há entradas laterais que conduzem a

galerias. As mulheres não se podem aproximar do altar, nem sentar­-se no salão do altar.

-Que disparate!- bramou.

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- Nem, uma vez dentro do edifício, estão autorizadas a falar -avisou-a, com um sorriso.

Os seus olhos cinzentos semicerraram-se. Irei mudar isso assim que tiver o meu trono.

Skilgannon recordou com enorme carinho o momento em que a viu sair de casa. O sol brilhava-lhe no cabelo descolorado, e transfor­mava a túnica amarela barata em ouro brilhante. Ela exagerara ligeiramente o menear das ancas e sorrira abertamente aos homens por quem passava. Era uma excelente representação, fruto da arrogância e da coragem.

Sozinho no molhe, Skilgannon olhou para a Lua.- Nunca exis­tiu uma mulher como tu, Jianna - murmurou.

O dia fora longo e tenso para J ianna, Rainha do Naashan. Come­çara pouco depois da alva, com a leitura de extensos relatórios das várias frentes de guerra a sueste em Matapesh, Panthia e Opal. As baixas tinham sido pesadas, especialmente nas selvas de Opal, mas as forças dela haviam capturado as três principais minas de diaman­tes. A expedição destas pedras preciosas permitiria a Jianna comprar mais ferro a Ventria, e armas a fornecedores gothir oficializados. Tomara o pequeno-almoço com quatro príncipes do Norte do Naashan, que tinham prometido homens para as próximas batalhas na Tantria. Depois disso, reunira-se com conselheiros e consultores, verificando os relatórios das receitas dos impostos e a situação do erá­rio público.

Já escurecera, e ela ainda não estava cansada quando atravessara com a sua guarda pessoal os Jardins Reais, agora iluminados por lan­ternas em postes de ferro altos. Atrás dela seguiam o capitão dos

Cavaleiros da Rainha, Askelus, um homem alto e desagradável, e ao lado dele a figura seca e dura de Malanek, o antigo mestre de armas.

Ambos os homens levavam as mãos nos punhos das suas espadas quando chegaram a uma zona aberta. Jianna rira. Dizem que o raio não cai duas vezes no mesmo sítio referiu ela.

-Correis demasiados riscos, Alteza- sugeriu Malanek. O luar projectava sombras no seu rosto, acentuando ainda mais as rugas.

Agora que já não combatia, o esgrimista deixara crescer o cabelo, ape­sar de ainda ostentar a elaborada crista erguida e o rabo de cavalo que o distínguiam como paladino do rei. Pintara o cabelo de preto ... uma pequena vaidade de que a rainha não se importava. Gostava do velho guerreiro.

19H

Não pode evitar todos os riscos, Malanek - disse ela. - E re­pare, não estou a usar a cota de malha que fez para mim?

- Sim, e fica-vos muito bem, Alteza - referiu. - É por isso, . .

cre10, que as usats. Jianna não respondeu, prosseguindo a caminhada. Era claro que ele

tinha razão. A túnica de malha prateada pela coxa, com a sua protec­ção em pele de cordeiro macia, e o cinto largo gravado em relevo, realçavam-lhe a elegância da cintura. Brilhava quando ela se movia. Jianna continuou a andar, sentindo a tensão nos dois homens quando se aproximaram do Lago dos Sonhos, um grande lago de mármore, no qual havia uma estátua de uma mulher fabulosamente atraente. Tinha o braço erguido para o céu. Envolvia-o uma cobra. A estátua era de Jianna. Com frequência, a rainha passeava-se pelos jardins, parando sempre para admirar a sua própria imagem.

Havia dez dias, dois assassinos tinham saltado da vegetação rasteira próximo. Estavam ambos vestidos como criados do palácio. Apenas Malanek a acompanhava nessa noite. Não obstante a sua idade, agira com enorme rapidez. Matara o primeiro, mas o segundo avançara para lá dele e correra para Jianna, de punhal erguido. Saltando alto, ela enfiara-lhe o pé com bota na cara, atirando-o para trás. Malanek apunhalara-o nos rins. O homem gritara e caíra. Infelizmente, a ferida fora funda e mortal, e ele morrera ao ser interrogado, sem revelar quem o mandara.

Era a quarta tentativa de assassínio em dois anos. Jianna olhou para a estátua. Ela será bela quando eu estiver

velha e mirrada disse, com melancolia. Sim - concordou Malanek -, mas ela nunca montará um ca­

valo, nem verá um pôr-do-sol. Tão-pouco conhecerá a adoração de um povo.

-A adoração vai e vem - disse Jianna. As pessoas atiram flores aos Ventrianos e ao cavalo engrinaldado de Bokram. São in­constantes.

Chegaram finalmente aos novos portões e aos muros altos dos apo­sentos privados de Jianna. Dois guardas, ambos escolhidos a dedo por Askelus, fizeram a continência e uma vénia.- Quem está lá dentro? - perguntou Askelus a um deles.

- Quatro dos conselheiros da rainha, cinco criadas leais, o harpista cego, e um cavaleiro de Mellicane. O embaixador ventriano solicitou uma audiência. O seu mensageiro aguarda no exterior da galeria.

Os guardas escancararam os portões e J ianna passou. Mando-os embora? perguntou Malmwk.

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-Peça a Empora que fique. Gostaria de ouvir a sua harpa mais tarde. Receberei o embaixador ventriano amanhã de manhã, antes da reunião do conselho. Ele que venha até aqui. Tomaremos o pequeno­-almoço juntos. - Chegou à porta para os seus aposentos. -Receberei o cavaleiro de Mellicane agora. Askelus, você ficará comtgo.

O guerreiro alto anuiu, e abriu as portas para os apartamentos da rainha. Tinham sido acesas lanternas lá dentro, a luz incidindo em divãs cobertos de seda e cadeiras ricamente trabalhadas. As cinco criadas, todas vestidas de seda branca, avançaram e fizeram uma vénia quando a rainha entrou. -Podem ir deitar-se-disse Jianna. As mulheres fizeram nova vénia, e saíram. Malanek seguiu atrás delas, regressando com um oficial de ombros redondos. J ianna olhou para o homem. Tinha olhos cansados. Fez uma vénia à rainha e aguardou.

-Veio de longe, senhor?-perguntou. -Vim, Majestade. Mil e trezentos quilómetros em quinze dias.

Mellicane está à beira do colapso. -O que mais descobriu? -Trouxe todos os meus documentos, Majestade; relatórios sobre

os que são leais à sua causa, e aqueles que temos de. . . despachar. Entreguei-os todos a Malanek.

-Vou lê-los e voltarei a chamá-lo -·disse ela, incapaz de se recordar do nome do homem. -Mas por que esperou por mim esta noite?

-Notícias de Skilgannon, Majestade. -Está morto?

-Não, Majestade. Ele abandonou a igreja antes de os cavaleiros chegarem. Dirige-se, cremos, para Mellicane.

-Ele tem as espadas? -Ele matou homens numa cidade pequena, que tentavam atacar

uma igreja, Majestade. A nossa informação é que ele enfrentou os ata­cantes.

-Vai ficar com elas-disse Jianna. -Custa a crer que se tornou padre -referiu Askelus. -Porquê?-contrapôs Malanek.-Skilgannon çonferiu paixão

a tudo aquilo em que tocou. E a paixão é uma dádiva da Fonte. Askelus encolheu os ombros. - Ele é um combatente. É difícil

vê-lo a proferir inanidades espirituais. O amor tudo vence. Perdoa àqueles que te atormentam. Absurdo. Os soldados vencem tudo, e se matarem aqueles yue os atormentam, ficarão livres do tormento.

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-Calem-se, os dois-apostrofouJianna, convergindo a sua aten­

ção para o mensageiro.-Quem temos a segui-lo? -Enviei mensagem à nossa embaixada em Mellicane para o pro­

curar, Majestade. Temos também os vinte cavaleiros IniCiais em

Skepthia, e um assassino hábil que podemos contactar. Que ordens devo enviar?

-Vou pensar no assunto esta noite -disse-lhe. - Venha ter comigo de manhã. -E assim dispensou o homem. Quando ele saiu,

Jianna sentou-se num divã coberto de seda, perdida em pensamentos. Askelus e Malanek aguardaram em silêncio. Por fim, olhou para

eles. - Então? - perguntou. - Dêem-me a vossa opinião. -Nenhum dos homens abriu a boca. O coração de Jianna sentiu um baque. -Sou tão aterradora, mesmo para velhos amigos? -inda­gou.-Vamos, Malanek, fale.

O velho mestre de armas suspirou, depois respirou fundo. -Sois bastante dura com aqueles que dizem o que pensam, Majestade.

-Peshel Bar era um traidor. Não o mandei matar por ele dizer o que pensava. Matei-o porque ele tentou virar outros contra mim.

-Sim, dizendo o que pensava -referiu Malanek. -Ele achava que estáveis errada, e disse-va-lo pessoalmente. Agora, ninguém no seu juízo vos dirá o que pensa realmente. Limitar-se-ão a proferir as palavras que julgam que quereis ouvir. Mas talvez eu esteja velho de mais para me preocupar. Por isso, vou responder-vos, Majestade. Eu gostava de Skilgannon. Ainda gosto. Aquele homem, mais do que qualquer outro, lutou para vos conseguir o trono. Acho que o deveis deixar em paz. Deixai-o viver.

-Ele assassinou Damalon. Já se esqueceu disso? Malanek trocou um olhar com Askelus. O guerreiro alto não disse

nada. Malanek soltou uma gargalhada forçada e abanou a cabeça. -Não esqueci, Majestade. Perdoai-me se não choro por ele. Nunca gostei dele.

Jianna levantou-se do divã, a sua expressão tensa, os seus olhos cin­zentos furiosos. No entanto, quando falou, tinha a voz controlada, quase suave.-Skilgannon traiu-me. Partiu sem a autorização da rai­nha. Desertou do meu exército. Roubou um artefacto valiosíssimo. Acha que ele deve ficar impune por esses crimes?

-Dei a minha opinião, Majestade-afirmou Malanek. -E o que tem a dizer-me, Askelus? -perguntou. -Sois a rainha, Majestade. Ayueles que obedecem às vossas or-

dens são leais, aqueles que não o fitzem são traidores. É simples.

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Skilgannon não obedeceu às vossas ordens. Cabe-vos julgá-lo ... ou

perdoá-lo. Não me compete dar-vos conselhos. Sou tão somente um soldado.

-Matá-lo-ia se eu o ordenasse? - Num abrir e fechar de olhos.

- Entristecê-lo-ia? -Sim, Majestade. Entristecer-me-ia profundamente. Dispensando ambos os homens, Jianna recebeu os conselheiros que

tinham estada à espera, escutou os conselhos deles, emitiu juízos, as­sinou decretos reais, depois mandou chamar Empora, o harpista cego.

Era um homem velho, mas se fechasse os olhos e escutasse a mú­

sica dele, e a sua voz suave a cantar, conseguia imaginar como teria sido na sua juventude, de cabelo louro e incrivelmente atraente.

Desejou que ele pudesse ser jovem naquele momento, e pudesse levá­-lo para a cama, e afastar por algum tempo todos os pensamentos sobre

o homem cujo rosto lhe enchia a mente, e cuja forma caminhava pelos seus sonhos.

Deitada no divã, a música suave a encher a sala, recordou o rosto de Skilgannon quando saíra de casa naquele dia para se dirigir ao mercado. Ele era tão jovem então -a poucas semanas de completar

dezasseis anos. O seu belo rosto estava sério, a sua expressão austera. Apetecera-lhe aproximar-se dele e depositar um beijo naquela boca

carrancuda. Ao invés, descera a avenida, sabendo que os seus olhos não a aban­

donariam enquanto não virasse a esquina. Jianna suspirou. Amanhã iria mandá-lo matar. Talvez, quando

estivesse morto, parasse de sonhar com ele.

202

CAPÍTULO 11

Passava da meia-noite quando Skilgannon voltou à Veado Car­mesim. A taberna estava quase vazia. Druss ainda se encontrava sen­tado à mesa, Diagoras estendido no chão ao lado dele, dormindo profundamente. Dois oficiais vagrianos, de cabelo louro entrançado, bebiam em silêncio a alguma distância, e um velho cão de lobo fare­java por debaixo das mesas vazias, procurando bocados de comida.

-Olá, moço -saudou Druss, a fala ligeiramente arrastada.

Skilgannon olhou para Diagoras, inconsciente. -A ruína dos jo­

vens -disse Druss. -Não conseguem aguentar a bebida. Raios, mas eu preciso de apanhar um pouco de ar. -Apoiando as mãos maciças na mesa, soergueu-se, depois deixou-se cair de novo na cadeira.-Por

outro lado, é agradável estar aqui sentado -concluiu. - Deixe-me ajudá-lo - sugeriu Skilgannon. O olhar pálido do

velho incidiu no seu. -Eu consigo-murmurou Druss, pondo-se em pé com esforço

e vacilando. Saindo de trás da mesa, encaminhou-se para a porta da

frente e para o ar nocturno. Skilgannon seguiu-o. Druss esfregou os olhos e gemeu.

-Está bem? - Desde que não pestaneje -replicou o homem do machado. -

Preciso de algo para desanuviar a minha cabeça. - Havia uma ga­mela comprida com água junto à extremidade do molhe. Druss

cambaleou até lá, colidindo com um dos oficiais vagrianos quando

vinha a sair da taberna. O homem caiu pesadamente. - Peço des­culpa - balbuciou Druss, passando por eles. O Vagriano levantou-se e olhou para a sua capa. Ficara suja dt• t•xrn.·mentos de cavalo.

20.)

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Correu atrás de Druss, insultando-o. O homem do machado virou--se e levantou as mãos. Calma aí!-exclamou.-Este barulho está a rebentar-me com a cabeça. Fale baixinho.

-Falar baixinho? - repetiu o Vagriano. Seu velho drenai tonto e bêbedo.

-Bêbedo até posso estar, moço ... mas pelo menos não cheiro a trampa de cavalo. Trata-se de alguma nova moda vagriana?

O oficial praguejou, depois socou Druss em cheio no rosto com um directo com a esquerda. O Vagriano era um homem grande, de om­bros largos, e Skilgannon estremeceu quando o golpe atingiu o alvo. Seguiu-se-lhe um segundo soco, cruzado com a direita. Nunca che­gou a acertar. Druss agarrou o punho do homem e virou-o, atirando o Vagriano para a gamela dos cavalos. -Isto deve tirar as nódoas -referiu Druss. O segundo Vagriano correu para o velho. Druss blo­queou o soco e agarrou o homem pela garganta e pelo gancho das cal­ças. Com um impulso, ergueu o Vagriano acima da cabeça e avançou vacilante para a beira do molhe.

-Druss! gritou Skilgannon.-Ele tem uma cota de malha. É capaz de se afogar.

O homem do machado hesitou, depois desceu o homem até ao solo. -É verdade -disse. -E nós não queremos afogar os nossos alia­dos, pois não, moço? -O primeiro oficial conseguira entretanto sair da gamela. Levava a mão ao punho da espada quando a figura escan­zelada de Shivas, o dono da taberna, saiu da Veado Carmesim.

O que se passa aqui? perguntou.-Andam a lutar no meu estabelecimento?

-Eu não lhe chamaria uma luta, Shivas-respondeu Druss com um sorriso. Uma brincadeirinha sem importância.

-Então levem-na para outro lado .. . ou vão resolver a vossa ques­tão noutro sítio. Não quero arruaceiros na Veado Carmesim. E não abro excepções. Nem sequer para si, Druss. E o que espera que eu faça com aquele oficial a dormir no meu chão? Se ele ali passar a noite, terá de pagar alojamento como todos os demais.

Ponha na minha conta, Shivas disse Druss. Não cuide que não o faço murmurou o proprietário da ta-

berna, lançando um olhar rancoroso aos quatro homens antes de voltar lá para dentro.

Os dois Vagrianos foram-se embora sem trocar uma palavra. O homem do machado aproximou-se de Skilgannon. -Raça estra­

nha, os Vagrianos comentou. -São capazes de lutar até à morte

20-1

pela mais pequena questão de princípio. Nem uma ameaça de dor ou de ferimento os detém. No entanto, a ideia de ficar sem os cozinha­

dos de Shivas pô-los a correr como crianças assustadas. Skilgannon sorriu. -E como está a sua cabeça?

-A desanuviar, moço. Mesmo do que eu precisava. Um pouco de exercício suave. -Druss bocejou e espreguiçou-se. -Agora, do que eu preciso é de dormir um pouco.

Uma figura saiu das sombras. Skilgannon viu que era a mulher es-tranha, Garianne. Vens um pouco tarde para a refeição, moça-observou Druss. Mas podes partilhar o meu quarto e pagar-re-ei

um belo pequeno-almoço. -Estamos muito cansados, Tio disse ela. -Mas ainda não

podemos ir dormir. -Virou-se para Skilgannon. -A Velha gosta­ria de falar com os dois. Posso levá-los até ela.

Não tenho a menor vontade de a ver- redarguiu Skilgannon. Ela disse-me que seria essa a sua resposta. Ela conhece o

templo que procura. E algo mais que é muito importante para si. Ela mandou-me dizer-lhe isto. Olhou para Druss, depois cam­baleou em parte, endireitando-se ao agarrar-se ao corrimão do molhe. Druss avançou para ela. Garianne deu um passo e caiu. Druss apanhou-a, arrebatando-a nos braços. A cabeça dela pendia-lhe no peito.

O homem do machado voltou para a Veado Carmesim. Skilgannon seguiu na frente, abrindo a porta. Passando por Diagoras, que res­sonava, Druss levou Garianne pelas escadas das traseiras até ao quarto que alugara. Tinha três camas. Rabalyn dormia na debaixo da janela.

· Druss estendeu Garianne numa segunda cama estreita. Ela gemeu e tentou levantar-se. -Descansa, mocinha-disse Druss. A Velha pode esperar uma hora ou duas.-Afastou-lhe o cabelo louro da testa.

-Descansa. O Tio Velho está aqui. Dorme. -Pegando num co­bertor, tapou-a. Ela sorriu e fechou os olhos.

Druss sentou-se à cabeceira durante vários minutos, depois levan­tou-se e fez sinal a Skilgannon para que o seguisse. Os dois homens voltaram para a sala de jantar da taberna.

-O que se passa com ela? -perguntou Skilgannon. -Ficará bem depois de descansar. O que sabes sobre a Velha? -Demasiado e pouquíssimo- respondeu Skilgannon. -Nunca

acreditei que o mal estivesse associado à fealdade. Conheci homens belos que eram completamente destituídos de alma. Mas a Velha tem tanto de má quanto de feia.

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Druss ficou calado durante um momento. -Sim, é de esperar que tenha. Mas ela uma vez ajudou-me a trazer a minha mulher dos mortos.

-Aposto que exigiu algo de si em troca. Druss anuiu. - Quis um demónio que fora aprisionado no meu

machado. Descobri mais tarde que planeava transferi-lo para uma es­pada que estava a fazer para Gorben.

-E deu-lho? -T ê-lo-ia dado. Mas o demónio libertou-se de Snaga quando

atravessei o Vazio. -E então, quer ir vê-la? -Tenho essa obrigação. Pago sempre as minhas dívidas. Permaneceram sentados em silêncio durante um bocado. -Como

foi que ela trouxe a sua mulher de volta dos mortos? - perguntou, por fim, Skilgannon.

-Noutra altura, moço. Só de pensar em Rowena fico com um peso no peito. Diz-me, foi a Velha quem forjou essas espadas que carregas?

-Sim. -Foi o que pensei. Cuidado com elas. O trabalho dela não é ape-

nas aço. Sente-las chamar-te? -Não - disse Skilgannon, com brusquidão. -São apenas es­

padas. - Druss manteve-se em silêncio, suportando o olhar de Skilgannon. Por fim, foi o esgrimista quem desviou o seu. -Sim, elas chamam-me - admitiu. - Desejam sangue. Mas consigo controlá-las. Fi-lo esta noite.

-És um homem forte. Elas levarão tempo a corroer-te a alma. Foi uma das espadas da Velha que enlouqueceu Gorben. O rei da Tantria recentemente falecido tinha outra.

-Está a aconselhar-me a livrar-me delas? -Tu não precisas dos meus conselhos, moço. Tu próprio o afir-

maste. A Velha é má. As espadas dela espelham o seu coração. Ela fez uma arma para a Rainha Bruxa?

-Sim. Um punhal. Jianna disse-me que lhe proporcionava dis­cernimento.

- Proporcionar-lhe-á mais do que isso.- Druss levantou-se com esforço. -Vou sentar-me naquela cadeira junto à lareira e passar pelas brasas. Por que não sobes e procuras descansar?

- Privando-o da sua cama?

- Sou um Vl'lho soldado, moç·o. Posso dormir em qualquer lado. Os joVl'llS como tu precisam de almofadas, e cobertores, e colchões.

20ú

Vá, vai deitar-te. Se não consegues dormir, levar-te-ei um copo de leitl'

quente e ler-te-ei uma história. Skilgannon soltou uma gargalhada e sentiu toda a tensão libertar­

-se dele. Avançou para as escadas e olhou para trás. - Ponha um pouco de mel no leite. E quero uma história com um final feliz.

-Nem todas as minhas histórias têm finais felizes-disse Druss, instalando-se num canapé de couro. - Mas verei o que posso fazer.

Skilgannon voltou para o quarto de Druss e entrou. Garianne e Rabalyn continuavam a dormir. Dirigindo-se para a terceira cama, es­tendeu-se. A almofada era macia, o colchão firme.

Passados momentos, mergulhava num sono leve. Caminhava por uma floresta cheia de sombras e chegavam-lhe sons furti­

vos da vegetação rasteira. Girando nos calcanhares, vislumbrou pelo branco.

As suas mãos procuraram as espadas ...

Skilgannon acordou durante a alvorada e levantou-se da cama. Sentia os olhos pegajosos e passou uma mão pela barba por fazer. Despindo a camisa, foi até ao fundo do quarto, onde se encontrava um jarro de água e uma bacia esmaltada. Enchendo-a, passou a água pelo rosto, depois mexeu numa pequena pala no seu cinto e retirou uma navalha de barba fechada. Abrindo-a com um pequeno puxão, barbeou-se lenta e cuida­dosamente. Na sua casa no Naashan, teria mandado um criado prepa­rar toalhas aquecidas para colocar no rosto. Depois, o homem aplicaria óleos quentes na barba antes de a fazer. Aqui, não tinha espelho e barbeou-se apenas pelo tacto. Por fim, satisfeito, limpou e secou a navalha, antes de a fechar e voltar a guardar na bolsa oculta no cinto.

Ao raiar da aurora, viu fumo a leste da cidade. Escancarando a janela, debruçou-se. Conseguia apenas ouvir os sons distantes de tumulto. Calculou a causa. Disputa de comida entre os pobres.

Abandonando a janela, viu que Garianne continuava a dormir. Observou o rosto dela. Parecia muito mais jovem adormecida, apenas uma rapariga. Vestindo a camisa e o justilho, e pondo as Espadas da Noite e do Dia ao ombro, saiu do quarto e desceu as escadas.

As criadas andavam já atarefadas nas cozinhas e Skilgannon sentiu o cheiro a pão acabado de cozer. Não se via Druss em lado nenhum. Skilgannon sentou-se a uma mesa junto à janela com vista para o porto e olhou o mar. Sentiu um anseio de embarcar num navio, viajar rumo a horizontes longínquos, desembarcar onde nunca ninguém tivesse ouvido falar de o Maldito. Mesmo tratando-se de um pensamento, re­conheceu quão absurdo era. Não podemos fugir do que somos.

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Os seus pensamentos voltaram à Velha e sentiu o afluxo familiar de aversão e medo. Jianna usara a bruxa cada vez mais durante a guerra civil. V árias inimigos tinham sido mortos mediante o recurso a fórmulas demoníacas. Eram actos como estes que tinha levado a que ficasse conhecida como a Rainha Bruxa.

Shivas foi ter com ele, sacudindo farinha das mãos. -Chegou cedo de mais para o pequeno-almoço -disse. -No entanto, posso ar­ranjar-lhe uma bebida.

Skilgannon olhou para o dono da taberna de ar duro. - Apenas um pouco de água.

- Estou a fazer uma tisana de ervas. Um boticário local prepara--me os ingredientes. Extremamente refrescante. Camomila e flor de sabugueiro, consigo reconhecer, mas há outros aromas que não sou capaz de identificar. Recomendo-a.

Skílgannon aceitou a oferta. A infusão era uma delícia, e sentiu uma nova energia fluir através do seu corpo cansado. Shivas regres-sou. Está com melhor aspecto, meu jovem. É boa, não é?

-Maravilhosa. Posso tomar outra? -Poder, até podia ... se quiser pôr-se a cantar canções melodio-

sas e a dançar em cima da minha mesa. Confie em mim, uma é sufi­ciente. Tenho peixe fumado para o pequeno-almoço, com pão de cebola a acompanhar. São ambos deliciosos. Especialmente com três ovos, mexidos com manteiga e temperados com um pouco de pi­menta.

O fumo dos tumultos estava agora a estender-se sobre a água. -Seria de pensar que a cidade já tivesse tido derramamento de sangue suficiente -murmurou Shivas.

A fome traz ao de cima o pior nas pessoas -disse Skilgannon. Acho que sim. Vou buscar-lhe o pequeno-almoço.

Depois de Shivas se afastar, os pensamentos de Skilgannon volta­ram à Velha. Se ela conhecia realmente a localização dos Ressurreccio­nistas, seria estúpido ignorar o pedido dela. Acariciou indolentemente o medalhão que trazia ao pescoço. Acreditas realmente, interrogou-se, que Dayan pode ser restituída à vida através de um fragmento de osso e uma madeixa de cabelo? E supondo que pode, o que farás? Instalas­-te com ela numa casita arrendada e crias carneiros? Ela é ... era ... uma aristocrata naashanita, criada num palácio, com um cento de criados para atender a todas as suas necessidades. Viveria feliz numa quinta imunda?

E tu?

20H

Eras um general. O homem mais poderoso no Naashan. Contentar­-re-ias em ser um agricultor, um lavrador?

Skilgannon bebeu o resto da tisana. Shivas regressou com o pequeno-almoço e Skilgannon comeu me­

canicamente, os delicados sabores um desperdício nele, à medida que o seu estado de espírito se ensombrava.

Druss atravessou a taberna e sentou-se defronte dele. Dormiste bem, moço? perguntou.

Bastante bem -respondeu Skilgannon, com brusquidão, sen­tindo a sua irritação crescer.

-Não és uma pessoa madrugadora, pelo que vejo. -O que quer isso dizer?-ripostou.

Cuidado com o tom, rapaz - advertiu Druss, baixinho. Gosto de ti. Mas trata-me com desrespeito e expulso-te deste estabe­lecimento.

-Tropeçará nas suas tripas no momento em que o fizer re-trucou Skilgannon. Os olhos de Druss chisparam. Depois viu a caneca vazia. Levando-a ao nariz, inspirou fundo.

-A bebida torna-te desagradável, segundo me disseste. Como é que os narcóticos te afectam?

Não os tomo. -Acabaste de o fazer. A maioria dos homens que bebe as tisanas

de Shivas limita-se a ficar sentada com sorrisos de felicidade nos ros­tos. Tu, pelos vistos, segues no sentido inverso. Vou mandar trazerem­-te água. Bebe-a. Falaremos quando o efeito dos opiáceos tiver passado.

Druss abandonou a mesa e entrou na cozinha. Uma criada trouxe um jarro com água e um copo grande. Skilgannon bebeu abundan­temente. Uma ligeira dor de cabeça começou a manifestar-se nas têmporas. Viu Druss abandonar a cozinha e subir as escadas.

Subitamente cansado, Skilgannon inclinou-se para a frente, apoian­do a cabeça nos braços.

Dançaram cores diante dos seus olhos. Apercebeu-se de que olhava para o copo azul. A luz da janela reflectia-se na sua superfície vidrada. Skilgannon fechou os olhos. O brilho do azul difuso permaneceu na sua mente, agitando-se como um oceano. Os seus pensamentos voga­ram livres, roçando o azul como uma ave marinha-voltando ao dia em que o sangue e o horror tinham dilacerado a sua vida, mudando­-a para sempre.

Começara tão bem, tão inocentemente. Sashan de mão dada com ele enquanto caminhavam pelo parque ao entardecer. Tinham ido jun-

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tos ao mercado e feito uma refeição numa taberna à beira do rio. Fora um bom dia. Os espiões já não vigiavam a casa, e Skilgannon come­çara a acreditar que o seu plano fora bem sucedido. O festival era já dali a uma semana, e não tardaria a levar Sashan da cidade em busca do seu destino entre as tribos da montanha. Este pensamento era per­

turbador, e fez com que o seu estômago se contraísse. -O que se passa, Olek?-perguntou-lhe ela, quando passaram

por uma fonte a jorrar água. -Nada. -Estás a agarrar a minha mão com mais força.

-Desculpa-disse, afrouxando a pressão. A única altura em que se tocavam era quando estavam no exterior. Skilgannon apreciava aqueles passeios mais do que qualquer outro prazer que alguma vez sentira.

Caía a noite quando se aproximaram dos portões do parque. Dois homens com baldes avançavam pelos carreiras, acendendo as altas lan­ternas de bronze que iluminavam os caminhos. Skilgannon viu uma

velha sentada num banco. - Querem que vos prediga o futuro, jovens apaixonados? -perguntou. A voz dela feriu os ouvidos de Skilgan­non. Era extraordinariamente feia, e as suas roupas estavam esfar­rapadas e imundas. Preparava-se para recusar a oferta dela quando Sashan lhe largou a mão e se veio sentar ao lado da velha.

-Prediga o meu futuro-pediu-lhe. -Há muitos futuros, filha. Nem todos estão escritos na pedra.

Depende muito da coragem, e da sorte, e dos amigos. E depende ainda

mais dos inimigos. -Eu tenho inimigos? - perguntou Sashan, a pergunta pare­

cendo inocente. Skilgannon sentia-se cada vez mais constrangido. -Devíamos ir, Sashan. Molaire zangar-se-á se a comida arrefecer. -Molaire não se zangará, Olek Skilgannon-disse a Velha.-

Prometo-te isso.

-Como é que sabe o meu nome?

-Por que não haveria de saber? O filho do poderoso Punho de Fogo. Sabias que o teu pai é agora um semideus entre os Panthianos?

-Não. -Eles veneram acima de tudo a coragem, Olek. Vais precisar de

toda a coragem que a tua linhagem possa proporcionar. Tens essa coragem?

Skilgannon não respondeu. Havia algo na mulher que lh� causava arrep1os.

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-E então o meu futuro? -perguntou Sashan. - Tu tens coragem, minha querida. E, respondendo à tua per-

gunta, sim, tens inimigos. Inimigos poderosos. Homens impiedosos e cruéis. Um em particular. De momento convém evitá-lo, pois as suas estrelas são fortes, e a sua posição alta. Provocar-re-á grande dor. -

Olhou para Skilgannon. - E ele despedaçará o teu coração, Olek Skilgannon, e sobrecarregar-re-á de culpa.

-Vamos embora -disse Skilgannon. -Não quero ouvir nem mais uma palavra.

-Ainda não fez a previsão do meu futuro -referiu Sashan. -Tenho inimigos, diz. Derrotá-los-ei?

-Eles não te derrotarão. -Basta deste absurdo! -Skilgannon falou com brusquidão. -

Ela não sabe nada, excepto o meu nome. Tudo o resto não tem valor. Inimigos fortes, corações destroçados. Não significa nada. - Re­

tirando uma pequena moeda de prata da bolsa, atirou-a para o colo da mulher. -Isto é tudo o que deseja. Agora já o tem. Deixe-nos em paz.

Ela arrecadou a moeda, depois olhou para Skilgannon. Não havia ninguém por perto quando falou, e as suas palavras cravaram-se nele.

-Os teus inimigos estão mais perto do que pensas, Olek. A impe­ratriz morreu. O teu amigo Greavas sofreu o mais terrível dos desti­nos. E a jovem princesa sentada a meu lado corre perigo de morte. Ainda desejas falar de absurdos?

As palavras queimaram Skilgannon, deixando-o atordoado. Ficou

muito calado, a olhar para ela. Depois, lentamente, virou-se para

observar o parque, esperando a qualquer momento ver surgir homens armados da vegetação rasteira. Não apareceu ninguém. Olhou para

Sashan. Também ela estava chocada, mas não patenteava qualquer dor. -.-Como foi que a minha mãe morreu?-perguntou.

-Ela tomou veneno. Minha querida. Estava escondido num anel

que ela usava. Não sofreu. -E Greavas?-indagou Skilgannon. -Torturaram-no durante horas. Ele era forte, Olek. A sua cora-

gem era enorme. No fim, porém, privado dos olhos, dos dedos, con­tou-lhes tudo. Depois, Boranius prosseguiu a sua carnificina por puro

prazer. Não lhe saciou a fome de infligir dor. Nada o consegue. Está na sua natureza.

Skilgannon esforçou-se por ordenar os pensamentos. -Como foi que Boranius os encontrou� ---·quis saber.

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- Havia um homem em quem Greavas confiava. -A Velha en­colheu os ombros. -A confiança era imerecida ... como sucede nor­malmente. Agora os soldados andam à tua procura, Olek Skilgannon.

E da prostituta de cabelo amarelo que te acompanha. Skilgannon fitou intensamente a velha feia. - Quem é a senhora?

Qual o seu papel no meio disto tudo? -Não serão as perguntas mais importantes que deves fazer neste

momento. Encontras-te aqui de túnica e sandálias com ... o quê? ... algumas moedas de prata na bolsa? A princesa usa um vestido fino e não tem moedas. Quais são os teus planos, Olek Skilgannon? E os teus, Jianna? Mil homens procuram-vos pela cidade.

-E por que se propõe ajudar-nos?- inquiriuJianna, a sua voz fria. Eu não disse que te ajudaria, filha. Limito-me a predizer o teu

futuro. O jovem Olek pagou-me para isso. A minha ajuda tem um preço muito mais elevado. Mil Raq parece-me justo. E a ti, parece-te justo?

-Até podiam ser dez mil - disse a princesa. Neste momento não tenho nada.

-A tua palavra será suficiente, Jianna. Podia lucrar mais traindo-nos interveio Skilgannon.

-Efectivamente. Se isso fosse conveniente para mim, jovem, era exactamente o que teria feito.

-Se eu sobreviver e triunfar, pagar-lhe-ei - prometeu Jianna. - O que aconselha?

A Velha ergueu um dedo descarnado e coçou uma ferida no rosto. -Tenho um lugar próximo. Primeiro iremos até lá. Depois planea­remos.

De repente, Skilgannon soltou um gemido. -Sperian! - excla-mou. E o que aconteceu a Sperian e Molaire?

-Não há nada que possas fazer agora, Olek Skilgannon. Eles se­

guiram Greavas no caminho do cisne. Boranius está a abandonar a tua casa no momento em que falamos. Ele deixou ficar homens à tua espera.

-Quantos? Quatro. Um tu conheces. Um homem baixo, com bigode com­

prido. - Casensis.

- Um sujeito desagradável. Ele também se diverte com a dor. Não é tão naturalmente dotado nas artes da tortura como o teu amigo Boranius. Mas o prazt'r nela é igual.

Skilgannon St'ntiu uma dor forte a atacar-lhe o estômago. A raiva ameaçou subju�o:á-lo, mas procurou acalmar-se. Escurecera entretanto,

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e soprava um vento fresco pelo parque deserto. Não cc�nho JlrciVII

de que nada disto seja verdade disse, por fim. -Sabes onde confirmá-lo, Olek Skilgannon - salientou da.

-Temos de ir para casa disse a Jianna. Isso seria inútil retorquiu a princesa. -Se ela estiver cerm,

haverá homens à espera. Não me deixarei apanhar. -Não te posso deixar com ela. Ela pode parecer útil, mas sinto

o mal nela. Jianna levantou-se do banco, os seus olhos furiosos. -Não tens

o direito de me deixar seja onde for. Nem de me levar seja para onde for. Sou Jianna. A minha vida está nas minhas mãos. Apesar de tudo o que viste de mim, ainda me consideras uma mulher delicada que necessita de protecção. Estarias tão preocupado se eu fosse um jovem príncipe? Não creio. Bem, Jianna é mais forte do que qualquer jo­vem príncipe, Olek. Malanek preparou-me bem. Vai a tua casa se é preciso. Eu irei com ela.

-Tamanha sabedoria numa jovem - comentou a velha. Um deleite para a vista.

Jianna ignorou-a. - Não sejas tolo, Olek. Eles vão levar-te e torturar-te.

-Não é tolice- disse a Velha, subitamente-, pois ele não é um homem tolo. Olhou para Skilgannon. - Precisas de ver a verdade, Olek. E mais. - Olek sentiu os olhos dela em si. Ela virou-se para Jianna. Deixai-o ir, Princesa. O que ele irá ver torná-lo-á mais forte. As acções que empreender só lhe propor­cionarão maturidade. Com um gemido, pôs-se em pé. - Se sobreviveres, Olek Skilgannon, vai à Rua dos Carpinteiros. Sabes onde fica?

Sei. - Mais ou menos a meio, há um beco, que segue ao longo de uma

velha estalagem. Vai por ele e encontrarás uma pequena praça. No centro há um poço público. Espera junto ao poço. Irei buscar-te se for seguro.

- Onde estará? - É preferível não saberes - disse a Velha. - Boranius trans-

porta uma série de instrumentos destinados a obter informações com rapidez. Um é uma tesoura de fabrico excelente ... apesar de pequena.

Apertando com força, consegue cortar um dedo. Skilgannon olhou para o rosto feio dela e viu o brilho de prazer

maldoso nos seus olhos. Cnmn (: (Jllt' sabe da ... tesoura dele?

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Fui eu quem lha fez, Olek Skilgannon. Faço muitas coisas. Fiz o anel que a imperatriz usava, aquele que continha o veneno. Lancei as tunas para o imperador aquando do nascimento da filha dele e avi­sei-o de que a vida dela estaria cheia de perigos. Por isso ela foi trei­nada como um homem, sendo Malanek o seu professor particular. Até fiz uma espada para o Imperador Gorben. -Soltou uma gargalhada, o som áspero e seco, como folhas levadas pelo vento a restolharem num cemlteno. Receio ter feito aquela demasiado poderosa. Subiu-lhe à

cabeça. Mas estou a divagar. . . Se sobreviveres, virei ao teu encontro. -Não me agrada este plano comentou J ianna. -Se ele sobreviver, ser-te-á mais útil alegou a Velha. Skil-

gannon aproximou-se de Jianna, depois levou a mão dela aos lábios e beijou-a. Deteve-se por um momento. Amo-te-disse. Depois virou-se e correu para a escuridão.

Seguiu um percurso sinuoso até casa, aproximando-se dela pelas tra­seiras, rastejando pelo campo cercado por detrás do jardim principal. A noite estava nublada, e sincronizou os seus movimentos para cor­responderem aos momentos em que a Lua ficava encoberta. Alcançando o muro do jardim, parou. Apesar de tudo o que a Velha dissera, havia uma parte de si que não queria acreditar-não ousava acreditar. Uma vez escalado o muro, encontraria Sperian e Molaire sentados em casa à

espera dele. Foi acometido da dúvida. Ficou muito quieto, consciente de que, enquanto ali estivesse, o mundo estava como sempre o conhe­cera. Assim que escalasse o muro, tudo poderia mudar. Com as emo­ções em turbilhão, não soube o que fazer. Pela primeira vez na vida, estava verdadeiramente aterrado. Não podes limitar-te a ficar aqui, admoestou-se. Respirando fundo, deu um impulso alto, enganchando os dedos na beira do muro. Içando-se, rebolou pelo parapeito e desceu para a terra por baixo. Havia lanternas acesas dentro de casa, mas não conseguia ver nenhum movimento. Mantendo-se baixo, avançou sorrateiramente até ao telheiro onde Sperian guardava as ferramentas. Lá dentro encontrou um podão afiado com lâmina curta e curva e cabo de madeira.

Munido dele, atravessou o jardim a correr e entrou no edifício. À porta, estacou e pôs-se à escuta. Não ouvia nenhum som. Em­brenhando-se mais, e evitando as janelas que davam para a fachada, inspeccionou a sala de estar principal. Encontrava-se vazia. Mais adiante, ouviu estranhos sons gorgolejantes. Respirando fundo, abriu a porta da cozinha. Fora colocada uma lanterna em cima da mesa, e viu à luz dela o corpo coberto de sangue e mutilado de Sperian. O san-

211

gue jorrara também para as paredes dos armários e infiltrltrat•l_, no

chão. O homem moribundo emitiu um som, o sangue brotando de um buraco na garganta. Largando o podão, Skilgannon ajoelhou ao

lado dele. Sperian levantou uma mão. Não tinha dedos. O seu rosto fora retalhado com uma faca, a pele pendendo das feridas. Os seus olhos haviam sido arrancados. Oh, meu amigo! - exclamou Skilgannon, a sua voz falhando. Oh, o que te fizeram eles?

Sperian estremeceu ao som da voz dele e tentou falar. Não saiu qualquer som articulado. O sangue jorrava das feridas na garganta. Skilgannon olhou para o homem torturado. Depois apercebeu-se do que ele tentava dizer. Era uma única palavra.

Mo.

No meio de tão terrível dor, estava a perguntar pela mulher. Ela está bem disse Skilgannon, de lágrimas nos olhos. -

Ela está bem, meu amigo. Fica em paz. Sperian relaxou então. Skilgannon agarrou-lhe o pulso. Não havia

mão para segurar. -Vingarei isto, meu amigo. Juro-o pela alma do meu pai.

Sperian jazia imóvel. O sangue cessara de fluir. Skilgannon come-çou a chorar. Obrigado por tudo o que fizeste por mim, Sperian

disse ele, por entre os soluços. -Foste um pai para mim, e um

amigo. Que a tua viagem termine em paz e luz.- Esforçando-se por

controlar a dor, tirou da bolsa uma moeda de prata e colocou-a na boca

do morto. A seguir levantou-se e avançou mais pela casa. Molaire fora assassinada no seu quarto. Apresentava o rosto reta­

lhado, e os olhos haviam igualmente sido arrancados. As mãos não tinham sido mutiladas, e Skilgannon colocou uma moeda na sua mão direita, fechando os dedos mortos à volta dela. Sperian aguarda­-te, Mo-disse, e a sua voz falhou. -Que a tua viagem termine em paz e luz.

Subiu então ao seu quarto. Fora rebuscado. Mastando a arca onde guardava as camisas de reserva, alcançou um esconderijo na parede por detrás e trouxe de lá uma pequena caixa. Retirou doze moedas de ouro e algumas de prata. Introduzindo-as na bolsa, abriu a arca e tirou um

par de calças de couro escuras. Descalçando as sandálias, vestiu as calças e uma túnica castanha com capuz. Por último, calçou um par de botas de montar pelo joelho. Completamente equipado, escolheu outras roupas. Enfiando-as numa mochila de lona, pô-la aos ombros.

Depois dirigiu-se para o antigo quarto do pai. De uma arca ao canto tirou uma espada curta com umn bainha de couro preto.

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Encontrou também uma faca de caça embainhada com cabo de osso. Enfiando um cinto pelas alças de ambas as bainhas, colocou-o à volta das ancas e afivelou-o. Puxando da espada, experimentou o gume. Continuava afiado.

Permaneceu imóvel, pensando no que fazer a seguir. O bom senso disse-lhe que abandonasse a casa pelo caminho que

trouxera e rastejasse pelos campos. Mas o seu coração e a sua alma ar­dentes tinham outro plano.

A Velha dissera que Boranius deixara quatro homens a vigiar a casa. Um deles era Casensis.

Estavam à espera de um jovem inexperiente. Pouco mais do que um fedelho.

Bem, iriam encontrá-lo. Skilgannon foi até à porta da frente e, escancarando-a, saiu para a

rua estreita ladeada de árvores. Ao atravessar em direcção às árvores, dois homens vieram a correr do esconderijo. Ambos empunhavam es­padas. Largando a mochila, Skilgannon puxou da sua arma e correu ao encontro deles, enterrando a espada curta na barriga do primeiro homem. Penetrou fundo, mas a calha para o sangue talhada na lâmina permitiu-lhe retirá-la com facilidade. O sabre do segundo homem veio direito à cabeça de Skilgannon. Passando por baixo da estocada, cra­vou a sua arma na garganta do homem. Antes de o adversário cair, Skilgannon correu em direcção às árvores. Ergueu-se outro homem, levando a mão à espada. Skilgannon matou-o antes que ele pudesse puxar dela. Uma sombra moveu-se à direita de Skilgannon.

Era Casensis. O homem tentou fugir, mas Skilgannon perseguiu-o, batendo-lhe com a parte lateral da lâmina da espada no crânio. Casensis caiu pesadamente. Ao luar intenso, Skilgannon conseguiu ver que a parte da frente da túnica de Casensis estava coberta de sangue. Tinha também salpicas de sangue seco no rosto e na testa. Agarrando-o pela túnica, arrastou o homem semiconsciente de novo para as árvores. Casensis debateu-se. Skilgannon atingiu-o de novo, desta vez com o botão do punho da espada. Casensis vergou até ao chão, gemendo.

Skilgannon debruçou-se sobre ele. Quando Boranius voltar, diz-lhe que hei-de encontrá-lo. Não hoje, ou amanhã. Mas hei-de en­contrá-lo. Consegues lembrar-te disto? -Skilgannon bateu no rosto do homem.-Responde-me!

-Conseguirei. -Estou certo de que sim. - O punho de Skilgannon desferiu

um soco no maxilar do homem, sacudindo-lhe a cabeça. Satisfeito por

2Jú

ele ter ficado inconsciente, Skilgannon olhou à sua volta. Ali perto, havia uma pedra lisa. Arrastando-a até junto de Casensis, assentou nela a mão esquerda do homem, depois abriu os dedos. Ergueu a espada curta, fazendo-a descer com toda a sua força. A lâmina cortou os três primeiros dedos, separando-os. O dedo mindinho encolhera-se, esca­pando ao golpe. Skilgannon deslocou a pedra para o outro lado do homem desmaiado e repetiu a manobra, desta vez cortando os quatro dedos e o polegar.

A dor despertou Casensis, e ele gritou. Skilgannon ajoelhou sobre o peito dele e puxou da faca de caça.

-Também lhe tiraste os olhos a ela, pedaço de escumalha. Agora vive sem os teus!

O grito que se soltou de Casensis foi quase bestial. Ecoava ainda na sua mente quando sentiu uma mão no ombro.

Abriu os olhos e viu Druss e Garianne de pé ao lado da mesa. A ta­berna estava agora quase cheia.

-Sentes-te melhor, moço? Skilgannon anuiu. - Então vamos. Já deixámos a Velha à espera tempo de mais. E tenho outras tarefas a realizar hoje.

217

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CAPÍTULO 12

A cabeça de Skilgannon latejava, e sentia a boca seca ao seguir ao lado de Druss e Garianne. Enquanto se deslocavam pela doca, ouviu alguém a correr atrás deles e virou-se para trás. Era Rabalyn. O rapaz alcançou-o. - Aonde vamos? -perguntou.

-Ver uma feiticeira - informou Druss. -Tem cuidado com o que dizes, rapaz. Não quero levar-te de volta transformado num sapo.

- Tinha razão-replicou Rabalyn -, não tem jeito para piadas. -Um homem não pode ser bom em tudo - disse Druss, com

amabilidade.

Prosseguiram. Skilgannon parou junto a um poço, tirou um balde de água e bebeu longamente. Dançaram cores garridas diante dos seus olhos e sentiu o estômago nauseado. Não conseguia libertar-se da lem­brança daquela noite medonha lá na capital. As imagens de Sperian morto e de Molaire mutilada não lhe saíam da cabeça.

-Sente-se bem? - perguntou Rabalyn, quando prosseguiram. -Estou óptimo. -O seu rosto está pálido.

Chegaram finalmente à porta dos Drenai. Hoje havia ali seis sol­dados, com elmos brilhantes e capas vermelhas. Os guardas saudaram Druss calorosamente e avisaram os viajantes de que os tumultos se tinham espalhado pela cidade durante a noite. -Devia ter trazido o seu machado, Druss- referiu um homem.

Druss abanou a cabt·�··l. -Hoje não, moço. Hoje é apenas um pas­seio tranquilo.

Os homt•ns olharam um para o outro e não disseram mais nada.

21H

Uma vez na cidade, Garianne conduziu-os por uma série de ruas e becos. O cheiro a queimado pairava no ar, e as pessoas que viram olha­ram-nos com indisfarçado ódio. Algumas viraram as costas e entra­ram em casa, outras limitaram-se a deitar um olhar carrancudo.

Rabalyn manteve-se junto de Skilgannon. Passado um bocado, chegaram a uma zona de edifícios mais anti­

gos e ruas estreitas. Aqui, as pessoas usavam roupas muito velhas. Crianças de rostos imundos brincavam no exterior de casas aban­donadas, e cães escanzelados revolviam pilhas de lixo descartado, pro­curando algo que comer.

Garianne indicou o caminho, avançando por uma velha praça do mercado e descendo umas escadas com degraus fendidos e partidos, chegando finalmente a uma taberna abandonada. As janelas estavam tapadas com tábuas, mas a porta principal fora reparada à pressa e re­colocada com dobradiças de couro. Garianne abriu-a e entrou. Parte do telhado cedera, e o sol enchia o interior. V árias ratazanas correram pelos escombros lá dentro. Uma passou por cima do pé de Rabalyn. Ele deu-lhe um pontapé e falhou. Garianne passou por cima do te­lhado caído e dirigiu-se para as traseiras do edifício, batendo com os nós dos dedos na porta que em tempos conduzira às cozinhas da ta­berna.

-Entra, filha - ouviu-se uma voz familiar. Skilgannon sentiu um aperto no estômago, e a sua pele ficou arrepiada.

-Ela é mesmo feiticeira? -murmurou Rabalyn. Skilgannon ignorou-o e seguiu Druss por cima dos escombros. A zona da velha cozinha era lúgubre, as janelas tapadas com tá-

buas. A única luz vinha de duas lanternas, uma colocada em cima da mesa empenada, a outra pendurada num gancho na parede do fundo. A Velha estava sentada numa cadeira ampla, junto aos fornos fer­rugentos, um cobertor imundo a cobrir-lhe os joelhos. O seu rosto estava parcialmente oculto por um véu de gaze preta. Levantou a cabeça quando os homens entraram. - Bem-vindo, Druss, a Lenda

-disse ela, com uma gargalhada seca.-Vejo que os anos começam a pesar sobre ti.

-Pesam sobre todos-respondeu ele. Garianne veio colocar-se ao lado da Velha e acocorou-se aos pés dela.

- Efectivamente pesam. ·- Sacudiu a cabeça e o véu de gaze tre­meu. Depois, transferiu o seu olhar para Rabalyn. -Lembras-te de quando eras jovem, Homem do Machado? O mundo era enorme e cheio de mistério. A vida era C"nnmtadoru, e a imortalidade chamava.

219

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O passar dos anos não tinha qualquer significado. Olhávamos para os velhos com indisfarçado desprezo. Como podiam ter-se permitido ficar tão decrépitos? Como podiam escolher ser tão repulsivos? O tempo é o grande culpado, o dono de escravos que nos rouba a ju­ventude, depois livra-se de nós.

-Eu consigo suportá-lo -disse o homem do machado. -Está claro que consegues. És homem. Com uma mulher é di-

ferente, Druss. O primeiro cabelo branco é como uma traição. Pode ver-se essa traição nos olhos do nosso amante. Diz-me, és um homem diferente agora que tens cabelos brancos?

-Sou o mesmo. Só espero que um pouco mais sábio. -Também eu sou a mesma-retorquiu ela. -Já não me vejo

ao espelho, mas não posso deixar de reparar na pele seca e enrugada nas minhas mãos e nos meus braços. Não posso ignorar as dores nas minhas articulações inchadas. No entanto, no meu íntimo, ainda sou a jovem Hewla, que deslumbrava os homens da sua aldeia e os nobres que por lá passavam.

-Por que nos chamou aqui? - atalhou Skilgannon. - Não tenho tempo para conversas sentimentais.

-Não tens tempo? Ainda és jovem, Olek. Terás todo o tempo do mundo. Eu é que estou a morrer.

-Então morra-disse ele. -Já viveu tempo demasiado. -Sempre gostei de um homem que diz o que pensa. Vivi tempo

demasiado? Sim, vivi. Vinte vezes a tua vida, filho. E paguei com sangue e dor a minha longevidade.

-A maior parte dos quais não era seu, posso garantir - retru­cou Skilgannon, a sua voz irada.

-Paguei a minha parte, Olek. Mas, sim, matei. Tirei a vida a inocentes. Envenenei, apunhalei, estrangulei. Invoquei demónios para arrancarem os corações a homens. Fi-lo por riqueza, ou por vingança. Porém, não levei um exército até uma cidade e chacinei todos os habitantes. Não matei crianças. Não cortei as mãos e os olhos a um homem indefeso. Por isso, poupa a tua indignação. Sou Hewla, a Velha. Tu és o Maldito. Não tens o direito de me julgar.

-E, no entanto, faço-o -afirmou Skilgannon, em voz baixa. -Por conseguinte, diga o que tem a dizer, e liberte-me da sua presença pestilenta.

Permaneceu sentada em silêncio por um momento, depois con­vergiu a sua atenção para Druss. -O homem que procuras já não está na cidudt.·, homt•m do machado. Foi-se embora há alguns dias.

220

-Por que faria ele semelhante coisa? -perguntou Druss. -Para se alimentar, Druss. Apenas isso. -Não faz sentido. -Fará. Ele veio a Mellicane à procura da sua anterior esposa.

Entretanto ela viajara para Dros Purdol, ostensivamente para ver a filha, Elanin. Lembras-te de Elanin, Druss. Orastes levou-a à tua quinta para te visitar. Andaste com ela às cavalitas, e sentaram-se à beira de um riacho. Ela fez uma grinalda de margaridas e colocou-a na tua cabeça.

-Lembro-disse Druss.-Uma criança doce. E um pai carinhoso. Afinal onde está Orastes?

-Sê paciente -respondeu ela. -Enquanto Orastes estava fora da cidade, a antiga esposa roubou a criança e fugiu de Dros Purdol. Veio para Mellicane, onde se reuniu ao amante. Orastes seguiu-os o mais de­pressa que pôde. Uma vez na cidade, procurou saber notícias dela. Desconhecia a identidade do seu amante, e a busca revelou-se infrutí­fera. As notícias da busca, porém, chegaram à esposa. Uma tarde, Orastes e o seu criado foram presos enquanto tentavam obter informações. Foram levados para as Celas Rikar, por baixo da Arena. As Celas Rikar conti­nham os prisioneiros que seriam transformados em Ambígenos. Foi esse o destino de Orastes. Foi fundido com um lobo cinzento, e o animal que se tornou fugiu com os outros quando a cidade caiu.

-Não! -bradou Druss. Skilgannon viu o rosto do homem do ma­chado contorcer-se numa máscara de dor e pesar. -Isso não pode ser!

-Pode e é- disse a Velha. Skilgannon detectou algo na voz dela, um tom de satisfação maldosa. Na sua dor, o homem do machado não se deu conta de tal. A raiva de Skilgannon aumentou, mas permane­ceu em silêncio, observando a cena. O enorme guerreiro drenai virou­-se e ficou de pé, a cabeça descaída, cerrando e descerrando os punhos.

-Como pôde a esposa dele exercer tamanho poder em Mellicane? -indagou Skilgannon.

-Através do amante-respondeu a Velha, continuando a olhar para Druss. -Encontraste-o, homem do machado, depois de chega­res a Mellicane. No banquete realizado em tua honra. Shakusan Máscara de Ferro, o senhor dos Árbitros, o capitão dos Cães de Guerra do rei. Enquanto bebias com ele, o teu amigo estava acorrentado nas masmorras por baixo.

Durante alguns momentos fez-se silêncio. Depois Druss respirou fundo. -Se conseguirmos encontrar Orastes, ele poderá voltar a ser humano?

221

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Não, homem do machado. Quando os Nadir lançam a fórmula de transformação, primeiro cortam as gargantas das vítimas humanas, depois colocam-nas ao lado de cães ou lobos capturados. Mesmo que a fusão pudesse ser invertida ... o que os Nadir dizem ser impossível. .. suponho que apenas o lobo ou o cão sobrevivam. Afinal, o homem já estava morto quando teve lugar a fusão.

-Nesse caso, Orastes está perdido. -Ele pode já estar morto. Tu não mataste vários animais? Talvez

já tenhas matado o teu amigo. Oh, como deve estar a adorar isto, sua bruxa! insurgiu-se

Skilgannon. - A sua maldade não tem fim? - O ambiente na divisão arrefeceu. Garianne estava com um ar chocado, e até Druss parecia inquieto. Por um momento, ninguém se mexeu, depois a Velha falou.

-Os factos são o que são - disse, baixinho. O meu prazer neles não muda nada. Nunca gostei do gordo Orastes. Tão arrogante e pomposo. Um dos heróis de Skeln! Pah! O homem quase se molhou de medo durante a batalha. Tu sabes isso, Druss.

-Sim, sei. No entanto, ele aguentou firme. Não fugiu. Sim, era pomposo. Todos temos os nossos defeitos. Mas ele nunca fez mal a ninguém. Por que o odeia?

São muito poucos os homens que não odeio neste mundo de vi­olência e dor. Por isso, sim, ri-me quando Orastes foi fundido. Assim como rirei quando fores ao encontro do teu destino, Druss. Neste momento, porém, não é a tua morte que pretendo. Temos um inimigo em comum. Shakusan Máscara de Ferro destruiu o teu amigo. Pro­vocou também a morte de alguém que me é chegado.

O rosto de Druss endureceu, e brilhou nos seus olhos um fogo frio. -Onde se encontra agora esse tal Máscara de Ferro? -quis saber.

-Ah, assim está melhor-disse a Velha. -A raiva e a vingança são umas irmãs tão doces. Fico reconfortada só de sentir emoções tão puras. Máscara de Ferro dirige-se para as Montanhas de Pelucid. Existe lá uma fortaleza. Ficas avisado, porém, homem do machado, Máscara de Ferro tem com ele setenta cavaleiros, homens duros e im­piedosos. E na fortaleza estarão mais cem guerreiros nadir.

Os números não me interessam. A que distância fica este sítio? Trezentos e vinte quilómetros para noroeste. Fornecer-re-ei os

mapas. Pelucid é um domínio antigo, contém muitos mistérios, e muitos peri�os. I fá lugarts onde todas as leis naturais são dobradas e torcidas. A t wt viilgt:m não irá decorrer sem incidentes.

222

-Limite-se a dar-me os mapas. Encontrarei Máscara de Ferro. A Velha levantou-se da cadeira e endireitou-se lentamente.

Pegando num bordão comprido, apoiou-se nele. Respirava com difi­culdade, fazendo com que o véu preto ondulasse ligeiramente.-Tu também precisas de viajar para noroeste, Olek Skilgannon. O templo que procuras fica em Pelucid, e próximo da fortaleza. Não é fácil de encontrar. Não o conseguirás ver de dia. Procura a bifurcação mais profunda nas montanhas ocidentais, e espera até a Lua pairar entre as escarpas. Com a sua luz encontrarás o que procuras.

-Eles conseguem realizar o que desejo? - perguntou Skíl­gannon.

-Só lá estive uma vez. Não sei tudo aquilo de que são capazes. A sacerdotisa que precisarás de convencer chama-se Ustarte. Se ela não te puder ajudar, então não conheço mais ninguém que possa.

- Porque está a fazer isto tudo por mim? perguntou. -Qual é a artimanha? Que mal espreita por detrás desta aparente boa von­tade?

-As razões só a mim dizem respeito argumentou a Velha.-Viajarás com Garianne e os gémeos.

E por que faria isso? Porque seria gentil da tua parte -ripostou ela. -Jared tam­

bém precisa de encontrar o templo. O irmão tem um cancro dentro da cabeça. Consegui afastá-lo com ervas e poções, e mesmo uma fór­mula ou duas. Agora está para além das minhas capacidades.

-E porquê Garianne? -inquiriu Skilgannon. -Porque te estou a pedir. Tens razões tanto para me odiar como

para me recear, Olek Skilgannon. Mas também me deves a vida da mulher que tu amas. Se triunfares em Pelucid, dever-me-ás também a vida da mulher que te amou.

Skilgannon suspirou. -Existe verdade nisso. Muito embora eu duvide de que queira que tenha êxito. Mas, seja como for, levarei Garianne.

Acho que ela te vai surpreender -disse a Velha. -E agora deixa-me ir buscar os mapas. -Apoiando-se pesadamente no bor­dão, deu vários passos na direcção de uma porta aberta. Depois virou a cabeça e olhou para Rabalyn, que se mantinha muito calado. -Mas que belo jovem comentou. És capaz de recitar o código, Rabalyn?

-Sim, minha senhora - respondeu. -Acho que sim. Diz lá.

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Rabalyn olhou para Druss, depois levantou-se. Lambeu os lábios e respirou fundo. - Nunca violar uma mulher, nem fazer mal a uma criança. Não mentir, enganar ou roubar. Estas coisas são para os homens inferiores. Proteger os fracos . . . não me recordo exactamente do resto, mas é algo do género não deixar que o dinheiro te torne mau.

A Velha anuiu. Proteger os fracos do mal forte. E nunca deixar que a ideia do lucro te leve a procurar o mal. O código férreo de Shadak. A fi­losofia simplista de Druss, a Lenda. E agora é teu, Rabalyn. Tencionas respeitá-lo?

-Tenciono -disse Rabalyn. -Veremos. Depois afastou-se.

A princípio, Rabalyn ficou satisfeito por sair da taberna em ruínas e voltar para as ruas sob um céu limpo. A atmosfera lá dentro fora si­nistra e mais do que ligeiramente assustadora. Quando o rosto me­donho debaixo do véu de gaze se virara para ele, Rabalyn sentira-se doente com o medo.

Agora, porém, que o pequeno grupo avançava pelas ruas cheias de gente, Rabalyn sentia-se menos feliz por estar cá fora. Deitava olha­res nervosos aos rostos hostis dos cidadãos por quem passavam. Skilgannon e Druss pareciam despreocupados e conversavam em tom baixo. O jovem olhou para Garianne. Murmurava de si para si e ace­nava com a cabeça, abanando-a.

Prosseguiram, agora mais devagar, por entre a massa de gente, chegando finalmente a uma praça maior. Havia vários homens de pé nas traseiras de uma carroça, dirigindo-se à multidão. As palavras eram iradas e, de quando em vez, a multidão soltava vivas, toda ani­mada. O orador atacava as iniquidades infligidas pela populaça e dizia que os ricos eram os culpados da falta de comida e da angústia dos cidadãos.

Ninguém se abeirou do grupo, e seguiram o seu caminho, indo dar a uma avenida mais larga. Rabalyn seguia ao lado de Skílgannon. -Existe tanta raiva comentou o jovem.

-Fome e medo disse Skilgannon. É uma mistura po-derosa.

-Aquele homem lá atrás estava a dizer que os direitos dos cida­dãos tinham sido tirados.

- Eu ouvi-o. Há algumas semanas, aquele mesmo homem teria culpado os estrangeiros pela sua situação. Daqui a uns meses, podem ser as pt•ssoas dt• olhos verdes, ou chapéus vermelhos. É tudo um

22-1

absurdo. Sofrem porque são carneiros num mundo governado por lobos. Essa é que é a verdade.

Skilgannon parecia furioso, e Rabalyn calou-se. Continuaram a ca­minhar, chegando finalmente aos portões do Bairro das Embaixadas. A multidão também se reunira ali, e tiveram de abrir caminho à força até à frente. Os portões estavam trancados, e do outro lado encontra­vam-se cerca de quarenta soldados, alguns com as capas vermelhas dos Drenai, outros com a cota de malha pela coxa e os elmos com cornos da Vagria. Para lá dos soldados estavam arqueiros, as setas a postos. Os portões eram altos, e terminavam com pontas de ferro. De cada lado havia muros altos, mas já alguns populares os haviam escalado e estavam sentados no cimo, gritando aos soldados.

Skilgannon bateu no ombro de Druss. - Eles não vão abrir-nos os portões-disse.-Se o fizerem, a multidão atacá-los-ia.-Druss anuiu em concordância, e o pequeno grupo contornou a multidão, se­guindo pela lateral até um molhe que dava para um canaL Degraus de pedra conduziam à beira da água. Skilgannon levou-os até junto da água. Os gritos irados vindos de cima eram mais abafados aqui, e Rabalyn sentou-se de costas para o muro de pedra e pôs-se a olhar para a água. Avistou mais navios ao longe, ancorados no porto, espe­rando ser descarregados.

-Eles vão deitar os portões abaixo -garantiu Garianne. Não creio que o façam durante o dia -respondeu Skilgannon.

-Podem estar furiosos, mas ninguém quer morrer. Gritarão e pra­guejarão durante um bocado. É tudo. Esta noite pode ser diferente.

Druss manteve-se calado. Skilgannon aproximou-se dele. -Parece perdido em pensamentos, meu amigo.

-Não gosto daquela mulher. -Quem poderia gostar? Ela é uma velha malvada. - O que depreendeste das palavras dela? Os olhos do homem

mais velho cravaram-se na expressão fixa de Skilgannon. Provavelmente o mesmo que você.

-Diz lá. Skilgannon encolheu os ombros. - Ela sabia demasiado sobre o

que o seu amigo procurava. Como? Palpita-me que Orastes a foi pro­curar, pretendendo que o ajudasse, e que ela depois o denunciou a este Máscara de Ferro.

- Sim, essa seria também a minha interpretação afirmou Druss. Muito embora não consiga entender porquê. Se ela odeia Máscara de Ferro, por qm· lhe t•ntn·garia um poren<:ial inimigo?

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-Ela é uma criatura subtil, Druss. Ela quer o Máscara de Ferro morto. Haverá melhor maneira de o conseguir do que transformá-lo num inimigo de Druss, a Lenda?

- Pode haver alguma verdade nisso. Todavia, esta mulher man­dou uma vez um demónio matar um rei. Lutei contra esse demónio e, por Missael, ele quase me apanhou. Por que não se limita ela a man­dar outro atrás do Máscara de Ferro? Ela tem poder.

- A resposta a isso -replicou Skilgannon -está provavelmente no que ela não disse. Fale-me deste Máscara de Ferro. Ela disse que o conhecia.

-Sim, quando aqui cheguei há três meses. Tal como ela referiu, foi num banquete. O rei não esteve presente, e o Máscara de Ferro re­cebeu os convidados. É um homem grande, mas movimenta-se com facilidade. Há uma arrogância nele ... uma arrogância física. Diria que ele é um lutador, e dos bons.

- Qual foi o papel dele aqui? - Ele chefiou a guarda pessoal do rei e supervisionou também a

criação dos Ambígenos. O plano era usá-los na guerra, mas não con­seguiram domá-los o suficiente. O Máscara de Ferro era também o líder de um grupo que se intitula os Árbitros. Um grupo estranho. Cada um que conheci olhava-me como se eufosse um demónio. Eles odeiam os estrangeiros. Diagoras acha-o irónico ... visto que o Máscara de Ferro também é estrangeiro.

-De onde é ele? -Ninguém parece saber. Provavelmente de Pelucid. - Por que lhe chamam Máscara de Ferro? - perguntou Skil-

gannon. -Ele usa uma máscara de metal, que lhe cobre o rosto. Não o

mencionei? -Não. - É uma peça justa e bem-feita, magnificamente trabalhada.

-Nesse caso, ele está desfigurado? -Não propriamente. Vi-o tirá-la no banquete. Estava calor no

salão e ele limpou o rosto com um pano. Não tinha cicatrizes. A pele do nariz e do lado direito do rosto é descolorada, escura, quase púrpura. Como um sinal de nascença grande. A máscara é pura vaidade.

-Diz que ele supervisionou a criação dos Ambígenos. Ele próprio é um feitict'iro� -inquiriu Skilgannon. Druss encolheu os ombros.

22ó

-Ninguém sabe. Diagoras acha que não. Diz qut' o Máscurll dt' Ferro trouxe um xamã nadir para a cidade. Pelo que a Velha referiu, presumo que seja de uma fortaleza em Pelucid.

Skilgannon virou-se e olhou durante algum tempo para o porto. Depois voltou-se.-Eu também sei um pouco de magia, Druss, mas sou levado a pensar que é este xamã que impede a Velha de enviar de­mónios atrás do Máscara de Ferro. Um demónio invocado tem de ser pago com a morte. Se o ataque é repelido, o demónio voltará para quem o enviou e tirar-lhe-á a vida. Se este xamã é poderoso (e, a avaliar pela criação dos Ambígenos, é-o) então a Velha não ousa atacar o Máscara de Ferro directamente com feitiçaria. Se o xamã repelisse a fórmula dela, ela morreria. Por conseguinte, precisa de uma arma mortal.

Lá em cima, os gritos aumentaram. Depois alguém soltou um berro. As pessoas começaram a correr pelos degraus até à beira da água. Outras fugiram pelo cais. Soldados datianos com traje de combate completo, couraças e elmos reluzentes, apareceram no cimo das esca­das, empunhando as espadas. Quando desceram os degraus, os habi­tantes da cidade dispersos lá em baixo entraram em pânico e começaram a atirar-se à água. Um homem ergueu os braços.- Não quero fazer mal-gritou. Uma espada curta atravessou-lhe o ventre. Um segundo soldado desferiu um golpe no pescoço de um homem quando ele caiu.

V árias outros soldados, de espadas desembainhadas, avançaram sobre Druss e Skilgannon. Rabalyn estava apavorado. Então, Skilgannon falou, a sua voz calma, numa atitude descontraída. -O caminho para o portão já está livre?-perguntou. -Estamos retidos aqui há uma eternidade.

Os soldados hesitaram. Os modos tranquilos de Skilgannon con­fundiram-nos. Um deles falou:-São de uma das embaixadas?

-Drenai - disse Skilgannon. -Felicito-o pela eficácia da acção. Julgámos que íamos ficar aqui o dia todo. Venham, meus amigos-cha­mou, virando-se para os outros. -Vamos entrar antes que a turba volte.

Rabalyn avançou a correr e colocou-se ao lado de Garianne. Juntos, seguiram Skilgannon e Druss. Ninguém fez menção de os impedir. Os soldados estavam ainda amontoados nos degraus. - Abram caminho - gritou Skilgannon, subindo os degraus e passando rapi­damente por entre os esgrimistas.

Lá em cima na praça, havia corpos espalhados pela pedra. Um mexeu-se e gemeu. Um soldado aproximou-se dele e passou a espada pela garganta do homt'm fi.·rido.

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Skilgannon e Druss chegaram aos portões, que ainda estavam fe-chados. -Abram, rapazes! exclamou Druss.

E depois entraram. Enquanto caminhavam, Druss bateu no ombro de Skilgannon. -

Agrada-me o teu estilo, moço. Teríamos ficado com algumas nódoas negras se tivéssemos de abrir caminho à força através deles.

-Uma ou duas-concordou Skilgannon.

Mais ao final daquela tarde, Diagoras levou Druss a ver o criado de Orastes, Bajin, mas o pouco que ficaram a saber não foi relevante. Bajin era um homem afável, que servira Orastes durante a maior parte da sua vida adulta. O seu juízo ficara um pouco transtornado pelas experiências vividas nas Celas Rikar. Fortemente sedado, chorara e tre­mera quando Druss tentara interrogá-lo. Um facto ganhara relevo: Orastes procurara efectivamente o auxílio da Velha.

Diagoras levou Druss até aos jardins da embaixada. A cabeça do soldado drenai latejava. - Nunca mais voltarei a beber consigo­afirmou, deixando-se cair num banco. -Sinto a boca como se tivesse engolido um deserto.

-Sim, hoje pareces um pouco frágil - concordou Druss, dis­traidamente.

Diagoras olhou para o homem do machado. - Lamento, meu amigo- disse. Orastes merecia um destino melhor.

-Sim, merecia. Uma coisa que aprendi na minha longa vida é que aquilo que um homem merece raramente corresponde ao que ele recebe. Enquanto percorria esta terra, vi quintas incendiadas e mui­tos cadáveres. Nenhum deles merecia morrer. No entanto, assim acon­tecerá, enquanto homens como o Máscara de Ferro estiverem no poder.

Tenciona ir atrás dele? Por que não haveria de o fazer?

Diagoras levantou-se do banco e encaminhou-se para um poço na sombra de um muro alto. Puxando um balde, mergulhou a concha na água e bebeu abundantemente. A seguir, enfiou as mãos no balde, dei­tando água no rosto. «Por que não haveria de o fazer?» Máscara de Ferro tinha mais de setenta homens com ele e dirigia-se para uma fortaleza que não lhe era hostil. Essa fórtaleza estaria repleta de combatentes

nadir. Não havia inimi�os mais aterradores do que os Nadir. A vida valia pouco nas estepes c os tribalistas eram ensinados a lutar e mor­rer sem questionart.·m. Raramente faziam prisioneiros durante a bata­lha l', st· isso sun·dt•sst.•, ('ta para os torturarem de maneiras demasiado

l2H

horrorosas de se ver. Olhou para Druss. O homem do mudutdu dlrl·

gira-se para uma roseira vermelha e estava a tirar as flores qut: huvillm

murchado. Diagoras foi ter com ele.-O que está a fazer? -A cortar as corolas -respondeu Druss. Se deixarmos, as

flores criarem sementes, a roseira deixará de florir. - Recuou e examinou o arbusto. -Também tem sido mal podado. Precisam de

arranjar um jardineiro melhor. Portanto, qual é o seu plano, cavalo velho? perguntou

Diagoras. Druss aproximou-se de uma segunda roseira e repetiu a operação

de remoção das corolas, arrancando as flores murchas com o polegar e o indicador. -Encontrar o Máscara de Ferro e matá-lo.

Isso não é um plano, isso é uma intenção. Druss encolheu os ombros. Nunca gostei muito de fazer planos.

- Nesse caso, é melhor eu ir consigo. Sou conhecido pela minha capacidade de planificação. Diagoras, o Planeador, era como me cha­mavam na escola.

Druss afastou-se do segundo arbusto. -Não precisas de vir, moço. Já não andamos à procura de Orastes.

-Há ainda a criança, Elanín. Ela precisará de ser levada de volta para Purdol.

Druss cofiou a sua barba negra e prateada. Tens razão. Mas acho uma falta de senso ofereceres-te para semelhante empresa.

-Também sou conhecido pela minha insensatez -retorquiu-lhe Diagoras. Acho que foi por isso que não me nomearam general. Acho que estão errados. Ficaria espectacularmente elegante com a couraça tra­balhada e a capa branca de um Gan. O Maldito vai viajar connosco?

-Uma parte do caminho. Ele tem umas contas a ajustar com o Máscara de Ferro.

- O homem causa-me constrangimento. - É claro que causa assentiu Druss, com um sorriso. -Tu e

ele são guerreiros. Existe algo em ti que anseia medir forças com ele. -Acho que é verdade. Acha que sucede o mesmo com ele? -Não, moço. Ele já não precisa de medir forças com ninguém.

Ele sabe quem é, e do que é capaz. Tu és um lutador excelente e corajoso, Diagoras. Mas Skílgannon é mortífero.

Diagoras sentiu uma pontinha de irritação, mas reprimiu-a. Druss dizia sempre a verdade tal como a via, independentemente das con­sequências. Olhou para o homem mais velho e sorriu quando o seu bom humor natural voltou. Nunca doura a pílula, pois não, Druss?

229

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-Não. -Nem sequer com mentiras piedosas? -Não sei o que são. -Uma mulher pergunta-lhe o que acha do seu vestido novo. Olha

para ela e pensa: «Faz-te gorda e deselegante.» Diz-lho? Ou arranja uma mentira piedosa, como ... «Que cor magnífica», ou «ficas mara­vilhosa»?

-Não mentiria. Dir-lhe-ia que não gosto do vestido. Não que alguma mulher alguma vez me tenha feito perguntas sobre o seu aspecto.

- Aí está uma surpresa. Agora percebo porque não é conhecido por Druss, o Galanteador. Muito bem, deixe que lhe faça uma outra pergunta. Concorda que na guerra é necessário enganar o inimigo? Por exemplo, levá-lo a pensar que é mais fraco do que na realidade é, a fim de o atrair a um ataque inesperado?

- Claro - respondeu Druss. -Nesse caso, é bom mentir a um inimigo? - Ah, moço, fazes-me lembrar Sieben. Ele adorava estes debates,

e era capaz de dar voltas e mais voltas às ideias até tudo aquilo em que eu acreditava parecer o maior absurdo. Ele devia ter sido político. Eu dizia que o mal tinha de ser sempre combatido. Ele respondia: «Ah, mas o que é mal para um homem pode sem bem para outro». Lembro­-me de uma vez termos assistido à execução de um assassino. Ele sus­tentou que, ao matarmos o homem, estávamos a cometer um mal tão grande quanto o dele. Disse que talvez o assassino viesse um dia a gerar um filho, que seria grande e bom, e mudaria o mundo para melhor. Ao matá-lo, poderíamos ter privado o mundo de um salvador.

-Talvez ele tivesse razão- referiu Diagoras. -Talvez tivesse. Mas se seguíssemos essa filosofia em absoluto,

nunca castigaríamos ninguém, fosse por que crime fosse. Podias ar­gumentar que encarcerando o criminoso, em vez de enforcá-lo, talvez evitássemos que ele conhecesse a mulher que daria à luz esse filho. Portanto, o que fazemos? Libertamo-lo? Não. Um homem que tira intencionalmente a vida a outro perde o direito à sua própria vida. Menos do que isso será uma simulação de justiça. Sempre adorei ouvir Sieben arengar e invectivar contra os usos gerais. Ele era capaz de te levar a pensar <Jlll' o preto t•ra branco, a noite o dia, o doce amargo. Era um bom t•ntrC'tl'nimt•nto. Mas não passava disso. Se eu seria capaz de en�anar um inimi�oto! Sim. Se seria capaz de enganar um amigo? Não. Como o justifko� Nilo justifico.

2�0

- Acho que percebo - afirmou Diagoras. - Se uma amiga com um vestido feio lhe pede a opinião, é sincero com ela e destroça-lhe o coração. Mas se uma inimiga com um vestido feio aparece à sua frente, diz-lhe que ela parece uma rainha.

Druss riu entre dentes. - Ah, moço - disse -, começo a ficar ansioso por esta viagem.

- Ainda bem que um de nós está - murmurou Diagoras.

Servaj Das era um homem cuidadoso, meticuloso em tudo o que fazia. Constatara que a atenção ao pormenor era o factor mais importante

para o sucesso de qualquer empresa. Inicialmente construtor de profis­são, aprendera que sem os alicerces adequados até o edifício mais magnificamente construído se desmoronaria. No exército, não tardara a descobrir que este princípio podia ser aplicado à carreira de armas. Os leigos e os românticos acreditavam que as espadas e as setas eram as armas mais vitais para um soldado. Servaj Das sabia que sem boas botas e uma mochila cheia de comida, nenhum exército poderia triunfar.

Encontrava-se sentado, naquele momento, numa sala alta na Embaixada Naashanita, a olhar para o porto e a reflectir sobre as ordens que recebera por pombo-correio para a missão. Tinha de loca­lizar e matar um homem rapidamente.

Como se podia dar atenção ao pormenor quando as ordens especi­ficavam rapidez? A rapidez causava sempre problemas. Em circuns­tâncias normais, Servaj teria seguido o homem durante alguns dias, determinando as suas rotinas, procurando conhecer e compreender como funcionava a mente do homem. Deste modo, estaria apto a decidir como matá-lo. Veneno, ou a faca, ou o arame de estrangula­mento. Servaj preferia o veneno. Às vezes, quando seguia um homem, e observava os seus hábitos, acabava por gostar da vítima. Nunca es­quecera o mercador que parava sempre para acariciar um cão velho na esquina da rua. Para Servaj, um homem que tinha pena de um cão sarnento que ninguém queria devia ter bom coração. O homem dava com frequência a comer à criatura gulodices que trouxera propo­sitadamente. Servaj suspirou. Fora obrigado a estrangulá-lo quando o veneno falhara. Não era uma lembrança agradável. Servaj encheu um copo com vinho baptizado. Bebendo-o em pequenos goles, levantou­-se da cadeira e esticou a sua estrutura magra. As suas costas soltaram um estalido satisfatório. Colocando o copo em cima da mesa, entre­laçou os dedos e fez estalar os nós. Não, o veneno era melhor. Assim ninguém era obr igad o a prt·st'IKÍar a morte.

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Pegando no pequeno pedaço de pergaminho, analisou de novo a mensagem. «Matá-lo. Rapidamente. Recuperar Espadas.»

Não lhe agradava. Não se tratava de um político injurioso, mole, gordo e fraco. Nem

de um mercador inacostumado à violência. Tratava-se de o Maldito.

Servaj estivera no exército durante a época da Insurreição. Um dos momentos que nunca esquecera fora quando Skilgannon lutara com o mestre de armas, Agasarsis. Na qualidade de um vulgar soldado, Servaj não estava a par das razões do duelo, mas os boatos entre os homens diziam que a intimidade de Skilgannon com a rainha enfu­recera o Príncipe Baliel. Ficara a saber-se deste ciúme quando Skilgannon por pouco não morrera na Batalha do Vau. As forças de Baliel tinham-se retirado misteriosamente, deixando Skilgannon e os seus cavaleiros expostos a um contra-ataque do inimigo. Baliel, dizia­-se, afirmara ter interpretado erradamente as suas ordens de batalha. A rainha substituíra-o como marechal de campo no flanco direito. Enfurecido e amargurado, Baliel fizera constar que acreditava que Skilgannon provocara o colapso para o desacreditar. O azedume crescera durante as semanas seguintes, até que, por fim, o lendário es­grimista, Agasarsis - um servidor ajuramentado de Baliel - en­contrara um pretexto para desafiar Skilgannon.

Não fora o primeiro. Durante os dois anos da Insurreição, sete outros haviam cruzado espada com o Maldito. Só um sobrevivera, e perdera o braço direito. Mas Agasarsis era diferente. O homem tra­vara sessenta duelos nos seus trinta e um anos de vida. A sua perícia era lendária e havia uma grande excitação no acampamento quando o dia raiara. Reinava também a inquietação. Desta vez, o exército da rainha totalizava trinta mil homens, e nem todos poderiam testemu­nhar o confronto épico. No fim, tirara-se à sorte. Tinham oferecido vinte moedas de prata a Servaj pelo seu salvo-conduto para a disputa, e ele recusara. Duelos como este eram efectivamente raros, e não que­ria por nada perdê-lo.

Chovera de manhã, e o solo estava ensopado e traiçoeiro, mas o sol brilhava intensamente ao meio-dia. Os mil homens que teriam o pri­vilégio de assistir ao combate haviam formado um grande círculo com cerca de sessenta metros de diâmetro. Skilgannon foi o primeiro dos combatentes a chegar. Avançando em grandes passadas pelas fileiras dos homens que aguardavam, despiu o seu justilho de batalha e efec­tuou sem qualquer esforço uma série de exercícios para descontrair os ml'1sndos.

Já nessa altura Servaj era um observador entusiáscico do compor­tamento humano. Procurou sinais de nervosismo no general, mas nilo detectou nenhum. Agasarsis chegou. Era de constituição mais force do que Skilgannon e, quando despiu a camisa, pareceu terrível. Ambos os homens ostentavam a pluma de cabelo em crista que denotava o seu estatuto de mestres de armas, mas Agasarsis tinha também uma barba em tridente habilidosamente cortada, que lhe conferia um as­pecto mais ameaçador.

Aproximou-se de Skilgannon e fez uma vénia, e depois ambos os homens continuaram os seus exercícios, os movimentos fluidos e sincronizados, como dois dançarinos, cada um reflectindo o outro. Um toque súbito de trombetas anunciou a chegada da rainha. Trazia uma cota de malha prateada até à coxa, botas de cavalaria pelo joelho, re­matadas com argolas de prata. Dois homens transportaram uma cadeira de espaldar até ao círculo e ela sentou-se, o seu cabelo preto a brilhar ao sol.

Servaj estava suficientemente próximo para ouvir as palavras que dirigiu aos lutadores.

-Está determinado nesta loucura, Agasarsis? - Estou, minha rainha.

-Então que comece. -Posso fazer um pedido, Majestade? -pediu Agasarsis. -Não estou com disposição para lhe conceder nada. Mas fale e

considerá-to-ei. -As minhas espadas estão bem feitas, mas não contêm qualquer

encantamento. As de Skilgannon, porém, é do conhecimento que foram engrandecidas por uma fórmula mágica. Solicito que ele não use esta vantagem desleal contra mim.

A rainha virou-se para Skilgannon. -O que tem a dizer, General? -Esta luta já é insana, Majestade. Mas ele tem razão. Usarei

outras espadas. -Assim seja -disse ela. Virando-se para os soldados mais pró­

ximos, um dos quais era Servaj, mandou que seis deles avançassem. -Tirem as vossas espadas-ordenou-lhes. Assim que lhe obedece­ram, fez sinal a Skilgannon.-Escolha uma.-Ele sopesou-as todas, depois escolheu o sabre usado por Servaj.-É a sua vez-disse brus­camente a rainha, apontando com uma mão régia para Agasarsis.

-Eu já tenho espadas, Majestade. -Efectivamente, tem. E usou-as com tanta frequência que são

como uma parte do seu corpo. O st·u pt•dido foi para que não hou-

2.B

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vesse uma vantagem desleal. Por isso escolha. E faça-o rapidamente, pois enfado-me com facilidade.

Depois de Agasarsis ter escolhido uma espada, os dois homens fi­zeram uma vénia à rainha e voltaram para o centro do círculo. Ela fez sinal para que começassem.

O duelo não se iniciou rapidamente. Os dois homens moveram-se cautelosamente um à volta do outro, e o primeiro choque de aço mais pareceu um prolongamento dos exercícios que tinham efectuado antes da chegada da rainha. Servaj sabia que os duelistas se estavam apenas a acostumar à sensação das armas. Nem Skilgannon nem Agasarsis tentaram desferir um golpe mortal. Estavam a medir as forças e as fra­quezas um do outro. A multidão permaneceu silenciosa enquanto os dois mestres continuaram a andar à roda um do outro. O sol incidiu nas lâminas e, a cada ataque súbito, as espadas criavam uma teia de brilho intenso à volta dos combatentes. O solo sob os pés deles estava escorregadio e traiçoeiro, e, no entanto, parecia que se mantinham em perfeito equilíbrio. O tempo passou, a acção acelerou, e a música do choque do aço aumentou de ritmo. Servaj estava transfixo, movendo rapidamente o olhar entre os lutadores. Ambos exsudavam confiança. Ambos esperavam vencer. O primeiro derramamento de sangue coube a Skilgannon, a ponta do seu sabre fazendo um golpe no ombro de Agasarsis. Quase de imediato, o paladino contra-atacou, e apareceu sangue no torso de Skilgannon. Servaj teve a impressão de que o san­gue escorria das presas da cabeça de pantera tatuada no peito dele.

Era extraordinária a rapidez e a perícia dos lutadores. Os soldados tinham feito apostas, mas ninguém na multidão soltou vivas ou gri­tou pelo seu favorito. A assistência era integralmente constituída por combatentes, e sabiam estar a presenciar um encontro clássico. Nada separava os talentos dos duelistas, e Servaj começou a convencer-se de que iriam lutar todo o dia. Esperava em parte que fosse verdade. Era raro ver-se uma competição tão brilhantemente equilibrada, e Servaj queria saboreá-la o máximo de tempo possível.

Todavia, sabia que não podia durar. As espadas estavam muito afi­adas, e brilhavam e atacavam, paravam e contra-atacavam, ficando à espessura de um cabelo da carne fraca.

Estavam a lutar havia já uns vinte minutos quando Agasarsis tro­peçou na lama. O sabre de Skilgannon atravessou com um golpe o ombro esquerdo de Agasarsis quando ele caiu, depois saiu de lá. O pa­ladino tombou por terra e rebolou, levantando-se a tempo de bloquear um golpe traiçoeiro que o teria decapitado. Atirou-se a Skilgannon,

2YI

arremetendo o ombro contra o peito de Skilgannon, cmpurr�tndn-n para trás. Ambos os homens caíram pesadamente.

A uma ordem da rainha, o arauto a seu lado deu um único toque com o seu corno curvo.

Acorreram dois soldados. Os combatentes enfiaram as espadas na terra e pegaram nas toalhas. Agasarsis limpou o suor do rosto, depois comprimiu a toalha sobre a ferida profunda no ombro esquerdo. Skílgannon abeirou-se dele. Servaj não ouviu o que disseram, mas viu

Agasarsis abanar a cabeça furiosamente, e calculou que Skilgannon lhe estivesse a perguntar se a sua honra fora satisfeita.

Passados alguns momentos, a rainha ordenou que tocassem o corno, e os dois lutadores pegaram nas espadas. Mais uma vez andaram de roda. O duelo entrou então na sua última fase. Servaj achou-o fascinante. Ambos os homens estavam cansados, mas era visível o desespero nos olhos de Agasarsis. A dúvida penetrara na mente do paladino e estava a sugar-lhe a confiança. Para a combater, desencadeou uma série de ata­ques imprudentes. Skilgannon defendeu-se uniformemente durante um bocado. Quando o golpe de morte veio, foi tão súbito que muitos na assistência nem se aperceberam. Agasarsis atacou. Skilgannon recebeu o ataque, bloqueando a estocada e rodando a espada no sabre de Agasarsis. Os dois homens saltaram para trás. O sangue jorrou subita­mente da jugular cortada de Agasarsis. O paladino tentou firmar-se, mas as suas pernas cederam, e caiu de joelhos diante do seu assassino. Servaj apercebeu-se então de que, quando parara o golpe, Skilgannon enfiara a ponta do seu sabre na garganta do adversário.

Agasarsis caiu de bruços na terra. Skilgannon largou o sabre e encaminhou-se para a rainha. Fez uma

vénia, e Servaj viu que o rosto dele estava endurecido, os olhos furio­sos. - Agasarsis foi o melhor comandante de cavalaria que tivemos, Majestade disse. Isto foi uma loucura.

- Efectivamente foi concordou ela. - Vejam o homem res-ponsável. Fez sinal ao arauto, que tocou duas vezes seguidas o

corno. Dois dos guardas pessoais de confiança da rainha, Askelus e Malanek,

apareceram, trazendo um homem preso. Tinham-lhe arrancado os olhos, e o seu rosto era uma máscara de sangue. Mesmo assim, Servaj reco­nheceu o Príncipe Baliel. O homem soluçava que era um dó.

Askelus arrastou-o até diante de Agasarsis, caído por terra. A rai­nha levantou-se da sua cadeira e avançou até ao centro do círculo. -A nossa guerra está quase ganha disse, a sua voz soando acima dos

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homens sentados.-E porquê? Por causa da vossa coragem e da vossa lealdade. Jianna não esquece aqueles que a servem fielmente. Mas esta criatura exclamou, apontando para o pobre Baliel pôs em risco toda a vossa coragem. A minha gratidão para com os meus amigos é infinita. Os meus inimigos saberão sempre que a minha vingança

é rápida e mortaL -Askelus puxou da sua espada e enterrou-a no ventre do homem cegado. O seu grito foi medonho. Servaj viu Askelus torcer a espada, depois libertá-la com um movimento brusco. Estripado, Baliel caiu por terra e começou a contorcer-se em nova agonia. A rainha deixou que os sons se ouvissem durante um bocado, depois fez sinal a Askelus. O soldado fez descer a espada sobre o pescoço de Baliel. O silêncio que se seguiu foi absoluto. -Assim morrem todos os traidores disse a rainha. Alguém começou a en-toar: Jianna! Jianna! Servaj viu que era o antigo mestre de armas, Malanek. Outros homens resolveram seguir o seu exemplo, mas os vivas não eram entusiásticos. Jianna ergueu as mãos para impor silêncio. -Quando tivermos tomado Perapolis, cada homem do meu exército receberá três moedas de ouro, como sinal do meu amor e da minha gratidão.

Os vivas ganharam então entusiasmo. Servaj gritou de júbilo, jun­tamente com os outros. Três moedas de ouro era uma fortuna. Mesmo enquanto gritava, olhou para Skilgannon. O general parecia incomo­dado.

Libertando-se das suas lembranças, Servaj voltou ao problema em mãos. O Maldito fora sentenciado à morte, e coubera a Servaj deter­minar a forma da sua execução.

Tinha sob o seu comando uma série de bons esgrimistas, mas ne­nhum com a perícia de Agasarsis. Skilgannon estava hospedado na Veado Carmesim. Não teria oportunidade de lhe envenenar a comida.

Servaj reflectiu no problema. Teria de haver um ataque ao gene­raL Cinco, talvez seis homens. E dois homens com bestas, escondidos próximo. Mesmo assim, o risco era enorme. Teria de fazer uma visita ao alquimista. Se as flechas da besta tivessem sido mergulhadas em veneno, então, mesmo que Skilgannon escapasse da emboscada, aca­baria por morrer.

No entanto, como podia ter a certeza de que Skilgannon viria ao local da sua execução?

l. ó

CAPÍTULO 13

Regressando à Veado Carmesim, Skilgannon ficou satisfeito por ver que dois mercadores haviam vagado uma sala que dava para o porto. Pagou a Shivas uma exorbitância de quatro moedas de prata por duas noites, depois subiu ao quarto e fechou a porta. Não se aper­cebera de que a sua necessidade de solidão era tão grande. Até o ruído abafado que chegava de lá de baixo da taberna era bem-vindo, pois dava ênfase ao facto de agora se encontrar sozinho. Tirando as Espadas da Noite e do Dia dos ombros, arremessou-as para cima da cama, de­pois escancarou a janela e olhou para o oceano.

A visita à Velha fora difícil -trazendo de volta recordações que preferia esquecer. Algo nele morrera naquela noite, juntamente com Molaire e Sperian. Na verdade, não sabia o que fora. A infância, talvez. Ou a inocência. Fosse qual fosse a resposta, o seu coração mur­chara como uma flor com a geada.

O planeamento da fuga da cidade levara dias e noites, enquanto cada ideia que ele avançava era discutida e rejeitada. A Velha ofere­cera-se para os levar para fora de portas no fundo de uma carroça carregada, escondidos debaixo de sacos de cereais. Skilgannon detes­tara esta ideia. Se ele fosse o capitão das Portas, revistaria todos os veí­culos. Falaram em separar-se e encontrar-se mais tarde nas florestas de Delian, mas eram também imensas as hipóteses de se perderem. Por fim, decidiram-se pela simples ilusão. A Velha preparara um colete para Jianna usar por debaixo de um vestido rasgado e sem cor pelo joelho. As tiras de couro desse colete desciam pelas costas. Levan­tando-lhe a perna esquerda, a Velha prendeu uma tira ao pé, depois atou o tornozelo com f(m�a it coxa . .J ianna queixou-se do desconforto.

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A coxa e a barriga da perna foram então ligadas, deixando o joelho à mostra. Com enorme perícia, a Velha aumentou o disfarce, usando pe­quenas tiras de pele de porco raspada, e sangue parcialmente coagu­lado, que aplicou na pele do joelho. Skilgannon observou tudo,

·espantado. Quando terminou, o joelho parecia um coto coberto de fe­ridas húmidas a sangrar. Esta ilusão foi repetida em Skilgannon, desta vez torcendo-lhe o braço esquerdo entre as omoplatas. Acrescentou também, usando uma mistura de cera de vela branca e um bálsamo malcheiroso, três cicatrizes compridas na face e no sobrolho esquer­dos. Depois de lhe fazer uma venda para o olho, Skilgannon viu-se a um espelho partido. O rosto que olhava para ele parecia ter passado pelas garras de um urso.

Por último, a Velha cortou as partes tingidas do cabelo de Jianna, deixando-a com um penteado curto, arrapazado.

Deu-lhes uma hora para se acostumarem às deformidades adqui­ridas. Jianna passou-a a treinar com um par de muletas velhas. Skilgannon limitou-se a esperar, o braço torcido e atado pulsando dolorosamente.

Partiram finalmente na carroça da Velha. Ela parou a cerca de tre­zentos passos do porta de leste. Tinham-se formado já ali filas de su­plicantes, aguardando a autorização para efectuar a caminhada de duas horas até ao Templo de Maphistan e assistir à abertura anual da Arca das Relíquias. Tanto quanto Skilgannon sabia, havia anos que não se ouvia notícia de milagres, mas isso não impedia os doentes e os coxos de efectuarem a viagem anual, para se ajoelharem diante dos ossos do Abençoado Dardalion e das luvas desbotadas da Venerada Senhora. Os suplicantes mais ricos estavam autorizados a beijar a bai­nha da túnica que diziam ter sido usada pelo imortal Mão de Prata, cuja morte dois mil anos atrás fizera com que uma árvore sem vida voltasse a rebentar.

Era quase lusco-fusco quando Skilgannon saltou da carroça, depois ajudou desajeitadamente Jianna. Quase caiu sobre ele e praguejou. A Velha estendeu-lhe as muletas. Jianna pegou nelas e dirigiu-se len­tamente para a bicha. Skilgannon alinhou atrás dela e esperou.

Os guardas detinham toda a gente à porta e interrogavam sobre­tudo as mulheres jovens. Skilgannon avistou três homens de pé nas sombras da casa da porta, observando com atenção a multidão. Colocou-se ao lado d<· .Jianna e bateu-lhe no braço. Estou a vê-los

murmurou.

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L

-Um deles. Continua a avançar. Quando Skilgannon se aproximou dos guardas, desejou ter a mão

no punho da sua espada, mas isso não era possível. Cabisbaixo, arras­tou-se com os outros. Um guarda colocou-se diante dele e olhou intensamente para Jianna. Inclinando-se, levantou-lhe a saia, depois largou-a. - O que te aconteceu? - perguntou, compadecido.

-Uma carroça com vinho passou-lhe por cima-disse, a sua voz rouca.

Não creio que as relíquias te façam crescer uma perna nova, moça.

-Só quero que pare de ficar verde e cheire mal - referiu ela. O homem recuou, tentando disfarçar uma expressão de repugnância.

-Passem lá. E que os deuses os abençoem -disse ele. Jianna apoiou-se nas muletas e seguiu as pessoas da frente. Quando

Skilgannon se preparava para avançar, viu Boranius vir da casa da porta. Percorreu-o uma raiva imensa, mas reprimiu-a. Agora não é o momento, disse de si para si. Rangendo os dentes, passou por debaixo do arco da porta e saiu para o campo do outro lado, mantendo os olhos fixos na linha distante das árvores da floresta de Delian.

As gargalhadas vindas lá de baixo da taberna trouxeram-no de volta ao presente. A música começara, e os homens batiam palmas, mar­cando o ritmo. Obviamente decorria um espectáculo, mas Skilgannon não estava interessado em assistir.

Despindo o justilho, a camisa e as calças estendeu-se em cima da cama. Só então se apercebeu do enorme espelho preso ao tecto. Olhou para a figura tatuada nele reflectida, correspondendo à fixidez fria dos olhos azuis do seu sósia. Não havia vestígios do jovem idealista que fugira para a floresta com a princesa rebelde. Perguntou-se desnecessa­riamente o que lhe teria acontecido se não houvesse encontrado Sashan. Teria sido mais feliz? Greavas, Sperian e Molaire ainda estariam vivos? Perapolis seria agora uma cidade próspera, cheia de gente feliz?

Ouviu-se uma grande ovação vinda lá de baixo da taberna. Depois, uma voz de mulher começou a cantar, o som agudo, cristalino e belo. Era uma balada antiga sobre o regresso de um guerreiro à sua pátria, em busca do seu primeiro amor. Skilgannon pôs-se à escuta. A can­ção era demasiado sentimental, a letra lamechas e, no entanto, a voz da mulher concedeu-lhe um sentido de esplendor que se sobrepôs aos sentimentos piegas. Parecia sugerir uma nova interpretação do amor e do seu poder con feri ndo uma mat.tnificência ao sacrifício derradeiro do homem que dera a sua vida.

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Quando a canção terminou, houve um momento de silêncio, de­pois aplausos ensurdecedores.

Skilgannon respirou fundo e fechou os olhos.

Porque se o amor é o oceano, no qual navegam os corajosos, deveríamos abrir os braços aos ventos da tempestade, e às ondas impelidas pelo vento.

Mesmo agora, ele não sabia verdadeiramente o que era o amor. J ianna enchera-lhe o coração. Ainda o fazia. Era este o amor que os poetas cantavam? Ou apenas um misto de desejo e adoração? As recor­dações dos tempos de harmonia tranquila com Dayan animavam-lhe simultaneamente o espírito e aumentavam-lhe a tristeza. Era isto o amor? Nesse caso, era algo completamente diferente do que sentia por Jianna. Nunca houvera respostas para estas perguntas. Atormentara-se com elas todos os dias lá no mosteiro.

Deitando as pernas de fora da cama, levantou-se e foi até à bacia ao lado da janela que dava para o porto. Enchendo uma raça com água, bebeu-a aos poucos, tentando libertar a mente dos pensamentos do passado.

Ouviu uma tábua chiar do lado de fora do quarto e virou-se. Bateram à porta.

Skilgannon sentiu a sua irritação crescer. A pancada fora dema­siado leve para ser Druss, que teria batido com toda a força e gri­tado. Provavelmente seria o jovem, Rabalyn. Skílgannon esperava que não lhe fosse pedir novamente para viajar com ele.

Encaminhando-se para a porta, escancarou-a. Garianne encontrava-se ali. Trazia na mão um jarro de vinho e dois

copos vazios. Os seus olhos brilhavam, o rosto estava afogueado. Quando lhe abriu a porta, passou por ele e entrou no quarto. Colocando os copos na mesa de cabeceira, encheu-os de vinho tinto. Pegando num, bebeu abundantemente, depois foi até à janela.

-Adoro o mar-disse. -Um dia embarcarei num navio e dei­xarei todos para trás. Eles que discutam entre si. Livrar-me-ei deles.

Skilgannon permanen·u em silêncio, observando-a. Ela despira o justilho e usava uma mmisa fina, colada ao corpo. As suas calças de couro eram rambém jusms, deixando pouca margem à imaginação. Skilgannon tlt•svinu o olhar.

Gariamw vimu-st· pum l'll·, dl·pois levou-lhe um copo de vinho. -Não hd}(l uf'írmou t•lt·.

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-Eu bebo para ficar sozinha - disse-lhe, a sua voz levemente arrastada. É uma sensação maravilhosa estar sozinha. Não há vozes. Não há perguntas. Não há gritos estridentes nem súplicas. Apenas si­lêncio.

Eu também gosto de estar sozinho, Garianne. Agora, deveria perguntar-te o que queres de mim, mas sei que tu não gostas de per­guntas.

Oh, não me importo com as perguntas. Não quando sou eu. Não quando estou sozinha. Quando eles estão comigo, as perguntas põem-nos todos a falar ao mesmo tempo. Não consigo pensar. Depois, a minha cabeça enche-se de dor. É desconfortáveL Compreendes?

Não posso dizer que sim. Quem é que está contigo? Dirigiu-se para a cama e deixou-se cair. O vinho entornou-se dos

copos nas suas mãos. Cuidadosamente, colocou-os na mesa de cabe­ceira. -Não quero falar deles. Só quero desfrutar destes momentos de paz.

Levantou-se, oscilou ligeiramente, depois começou a desapertar o cós das calças. Descendo-as até às ancas, sentou-se na cama e tentou despi-las pelos tornozelos. Skilgannon atravessou o quarto e sentou­-se ao lado dela. -Estás embriagada -disse. -Tu não queres fazer isto. Mete-te na cama e dorme. Vou dar uma volta e deixo-te ... en­tregue à tua privacidade.

Alcançando-o, envolveu-lhe o pescoço com um braço. Não vás -disse, baixinho.- Quero estar sozinha dentro da minha cabeça. Mas não aqui. Aqui preciso de tocar, agarrar. Ser agarrada. Só por um bocado. Depois adormecerei. Então voltarei a ser Garianne, e levá-los­-ei todos comigo. Não estou embriagada, Skilgannon. Ou pelo menos não muito.-Inclinando a cabeça, beijou-o ao de leve nos lábios. Ele não se afastou. Beijou-o novamente, com mais intensidade.

As barreiras que ele erguera durante três anos de abstinência caíram por terra num instante. O cheiro do cabelo dourado dela, a suavidade dos seus lábios, o calor da sua pele subjugaram-no.

Todas as preocupações e mágoas desapareceram. O mundo redu­ziu-se, até tudo o que existia para Skilgannon ser este quarto e esta mulher. A primeira vez que fizeram amor foi com intensidade e pressa, a segunda mais lentamente, o prazer prolongado. A tarde deu lugar ao crepúsculo, e depois à noite. Por fim, esgotado de toda a paixão, permaneceu deitado, a cabeça de Garianne no seu ombro, a sua perna esquerda na coxa dele. Ela adormeceu . Skilgannon acariciou-lhe o ca­belo e beijou-lhe a parre dt· dmu da cabeça. Ela murmurou, depois

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afastou-se dele. Levantando-se silenciosamente da cama, cobriu-a com um lençol, depois vestiu-se. Colocando ao ombro as Espadas da Noite

e do Dia, saiu do quarto.

Mais ao princípio da tarde, Diagoras estava sentado diante de Druss na taberna, planeando o caminho para Pelucid e discutindo os manti­mentos de que necessitariam. Uma das dificuldades era o facto de Druss não montar. A pé, levariam mais de metade do tempo normal para efectuar a viagem e, em termos logísticos, seria necessário que os viajantes levassem mais comida. Diagoras explicou-o pacientemente ao guerreiro, que se limitou a encolher os ombros e sorrir. -Quando monto, é difícil tanto para mim como para o cavalo. Na sela, sou capaz de fazer com que um saco de trigo pareça mais gracioso. Vou a pé,

moço. Foi então que Garianne, que estivera sentada em silêncio com eles,

a sua expressão serena, pousou o copo de vinho e se dirigiu ao estrado no lado nascente da taberna.

-Acho que ela vai cantar - anunciou Druss, com um sorriso largo.

-Ninguém a conseguirá ouvir aqui -replicou Diagoras, re­

lanceando a taberna apinhada, cheia de homens a conversar e às gargalhadas, ou a discutir, ou a lançar dados em várias mesas com­pridas.

-Vai uma aposta?-perguntou o guerreiro mais velho. -Não. Perco sempre que aposto consigo. Garianne levou uma cadeira para o estrado, depois subiu para ela

em silêncio, os braços estendidos para as vigas. Diagoras olhou-a com desejo. O oficial drenai sempre se sentira atraído por mulheres de per­nas compridas - e Garianne era também extraordinariamente atraente. Vários outros homens repararam que ela estava ali de pé, e acotovelaram os seus companheiros. Ouviu-se mandar calar na sala.

E Garianne começou a cantar.

Era uma das baladas preferidas de Diagoras e causava-lhe sempre

um nó na garganta. Mas a prestação desta rapariga tornou-a pungente. Todos os homens na taberna ficaram em transe. Quando terminou a canção, baixou os bra�·os e deixou pender a cabeça. Por um momento reinou o silêncio. Depois aplausos arrebatados. Garianne voltou para

a mesa, pegou no jarro de vinho e em dois copos e saiu da sala, os aplausos seguindo-a.

- Ande (o que ela vai!-perguntou Diagoras.

2/j 2

Druss encolheu os ombros e pareceu constrangido. Levantando a mão, chamou uma criada e pediu-lhe outro jarro de Lentriano Tinto. - Para que é que ela precisa de dois copos? - continuou Diagoras.

-Ela é uma moça invulgar -disse Druss. -Gosto dela. -Eu também gosto dela. Mas por que não responde às minhas

perguntas? -Porque não estou interessado, moço. A vida é dela e vive-a

como muito bem entende. -Eu não disse que não era. E agora começo a ficar baralhado. -

Fez-se luz. -Oh -disse. -Percebo. Ela tem um encontro amo­roso. Sortudo. -Depois o seu rosto ensombrou-se quando adivinhou a identidade do sortudo. Praguejou baixinho. -Diga-me que ela não foi procurar Skilgannon -afirmou.

-Não deixes que isso te irrite-advertiu-o Druss. -Se fosses tu que estivesses naquele quarto, e ele aqui em baixo, ela ter-te-ia pro­curado. O homem não interessa. Se nenhum dos dois estivesse aqui, ela teria escolhido outro qualquer na taberna.

-O senhor? -perguntou Diagoras. -Não - respondeu Druss, com um riso abafado forçado. -

Raios, moço, as minhas botas são mais velhas do que ela. E não está tão embriagada para querer alguém velho e feio. Muito bem, o que estavas a dizer sobre os mantimentos?

Diagoras respirou fundo e tentou (sem êxito) afastar Garianne da sua mente. -E se fosse uma carroça? Com duas rodas. Deslocar-se­-ia com rapidez. Podia conduzi-la.

-Sim. Uma carroça parece excelente-concordou o homem do

machado. Diagoras ia falar quando olhou para lá de Druss e esboçou um

esgar. - Veja o que temos aqui, meu amigo. Um novo guerreiro junta-se à multidão. -O homem do machado virou-se na cadeira. O jovem Rabalyn avançava pela taberna direito a eles. Vestia uma tú­

nica verde nova de lã grossa e calças de pele de gamo. Tinham sido acrescentadas tiras de couro brilhante nos ombros da túnica. Do seu flanco pendia uma faca de caça e uma espada curta velha com uma bainha de couro bastante estragada.

-Vais para a guerra, jovem Rabalyn? - perguntou Diagoras. O rapaz estacou por um momento, parecendo contrafeito e embara­çado. Depois tentou sentar-se. A hainha da espada bateu na cadeira, o punho da arma subindo l' enfiando-se na axila de Rabalyn.

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Compondo a arma, deixou-se cair na cadeira, o seu rosto vermelho que nem um tomate.

-Deixa-me ver as armas-pediu Druss. Rabalyn puxou da faca e colocou-a na mesa. Druss empunhou-a e examinou a lâmina. Era de dois gumes, a ponta com uma curva muito pronunciada, como uma lua em crescente. -Bom aço-comentou o homem do machado. -E a espada?- Rabalyn tirou-a da bainha. O punho era de madeira polida, o botão de latão pesado. A lâmina propriamente dita estava picada e cheia de riscos. -Infantaria gothir. Provavelmente mais velha do que eu -referiu Druss. -Mas servir-re-á perfeitamente até con­seguires arranjar uma melhor. Como foi que as arranjaste?

-O Irmão Lantern deu-me dinheiro. Resolvi não ficar na cidade. -Para onde vais? -indagou Druss. -Não sei. Estava a pensar ir convosco. -Rabalyn tentou mos-

trar-se confiante e seguro, mas o esforço não resultou. -Não seria uma escolha sensata, Rabalyn-disse o homem do

machado. -Mas isso é contigo. -A sério? -Vai descansar um pouco. Voltaremos a falar esta noite. Neste

momento preciso de conversar com Diagoras. - Obrigado, Druss. Muito obrigado! -entusiasmou-se Rabalyn.

Embainhando as suas armas, dirigiu-se para as escadas. -Oh, que bonito seria-escarneceu Diagoras. -Já agora, po­

díamos levar também um cachorrinho e um grupo de menestréis. -Em breve, esta será uma cidade sitiada - afirmou Druss. -

Os Naashanitas virão. Ele não estaria mais seguro aqui. Podia ser outra Perapolis.

-Isso é pouco provável -ripostou Diagoras. -Eles já não têm consigo o Maldito.

Os olhos pálidos de Druss semicerraram-se.-És um homem in­teligente. Sabes que nada do que aconteceu naquela cidade teria tido lugar sem as ordens directas da rainha.

-Acha então que ele está inocente? -Pah! Inocente? Algum de nós está inocente? Estive aqui há

vinte e cinco anos. Participei em ataques a cidades. Matei homens que defendiam as suas terras e os entes queridos. Os guerreiros nunca estão inocentes, moço. Não estou a defender Skilgannon. O que aconteceu em Perapolis foi mau, e cada homem que participou na chacina ficou com uma sombra na sua alma. Rabalyn é um excelente rapaz. Estará tão seguro comigo como aqui. Tem também coragem. Pu-lo numa

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árvore quando os Ambígenos atacaram. Ele desceu e veio em mt•u uu­

xílio. Dá-lhe tempo e será um homem excelente. Diagoras recostou-se na cadeira.-Pelo que me contou, Máscuru

de Ferro tem setenta homens com ele. Por tudo o que soubemos do homem enquanto ele esteve aqui em Mellicane, é duro e impi<.·­doso. Os seus homens são iguais. A fortaleza em Pelucid contém mais um cento, principalmente Nadir. Lutadores aguerridos, como sabe. Gostam também imenso de torturar os prisioneiros. Cento e setenta inimigos, Druss. Quanto tempo acha que Rabalyn terá, para se tornar este homem excelente?

Druss nada disse. Diagoras levantou-se.-Muito bem, Druss. Vou indagar sobre uma carroça e comprar alguns mantimentos. Demorará uns dois dias. Não precisaremos de esperar até a situação na cidade acalmar. Voltaremos a encontrar-nos aqui amanhã à noite.

O jovem oficial drenai saiu para o lusco-fusco que se instalava. O ar era puro e frio, soprava uma ligeira brisa do mar. Encontravam-se vá­rias prostitutas no cais, prontas para a actividade nocturna. Ignorando­-as, caminhou até à beira do cais e pensou na viagem pela frente. Podias estar a caminho de casa, pensou. De volta a Drenan e a uma vida de prazer ocioso. Em vez disso, preparava-se para viajar até uma região inóspita perigosa. Druss dissera que ele era um homem inteli­gente. Havia muito pouco de inteligente nesta aventura. Mas era uma aventura, e Diagoras tivera muito pouca excitação na sua vida durante os últimos quatro anos. O Desfiladeiro de Skeln fora aterrador, e havia uma grande parte dele que desejava nunca lá ter estado. Por outro lado, fora a altura mais excitante da sua vida. A perspectiva de morte pairara sobre ele como uma procelária, fazendo-se acompanhar do conhecimento intenso do encanto da vida. Cada sopro fora jubiloso, cada momento guardado. E quando, no fim, haviam vencido, e ele so­brevivera, sentira um acesso de exaltação e alegria sem paralelo na sua jovem vida. Nada desde então se aproximara d� tal sensação.

Nesse preciso momento, de uma janela por cima dele, ouviu uma mulher jovem soltar um grito de êxtase. Bem, quase nada, pensou, com um sorriso. Este desapareceu quando se apercebeu de que a mu­lher era provavelmente a bela Garianne.

-Eu podia emitir estes sons para ti -disse uma voz. Diagoras virou-se. Uma das prostitutas, uma rapariga de cabelo escuro com­prido, viera até junto dele. Tinha um rosto bonito, muito embora os olhos estivessem cansados e tristes. - Tenho um quarto aqui perto

-acrescentou, com um sorriso adquirido pela prática.

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Diagoras pegou-lhe na mão e beijou-a.-Estou certo de que sim, minha querida. E estou certo de que seria uma experiência mara­vilhosa para guardar na lembrança. Infelizmente, porém, o dever chama. Ficará, talvez, para outra altura.

O sorriso dela tornou-se mais natural. - És muito galante. -Somente na presença da beleza- respondeu ele. No quarto de cima, a mulher voltou a gritar. Subitamente,

Diagoras soltou uma risada e agarrou o braço da jovem prostituta. -

O dever pode esperar-decidiu. - Anseio por algum tempo na tua companhia.

-Não te irás arrepender- prometeu-lhe ela.

CAPÍTULO 14

Havia já uma hora que Rabalyn se sentara num banco por detrás da Veado Carmesim, a ver Druss cortar troncos de árvore. Usando um machado de cabo comprido e lâmina única, Druss trabalhava meto­dicamente, com uma extraordinária economia de esforço. Nenhum movimento era desperdiçado. Toda a acção era suave. Nunca a lâmina do machado ficava presa num segmento de toro. A cada golpe, a ma­deira partia-se e separava-se. Então, Druss atirava os bocados para a esquerda, fazendo-os cair da rodela grande que usava como cepo, de­pois marcava ao de leve com a lâmina do machado um novo segmento, levantando-o do cepo. Com um movimento hábil do pulso, libertava a lâmina do machado e fazia-a descer, partindo o novo segmento. Era rítmico e impressionante de ver. Quando as achas à esquerda de Druss se começaram a amontoar, Rabalyn abandonou o seu poiso e levou-as para o depósito de lenha junto à parede da taberna, empilhando-as cuidadosamente.

Quando a primeira hora chegou ao fim, Druss fez uma pausa. Estava em tronco nu, e o seu corpo reluzia com o suor. Rabalyn conhecera homens fortes lá na aldeia. Normalmente, os seus corpos eram esculturais, os músculos do peito e da barriga em nítido relevo. Não sucedia o mesmo com Druss. Ele era apenas enorme. A sua cin­tura era grossa, os ombros salientes com os músculos. Não havia nada de minimamente estético no homem. Irradiava apenas força.

- Por que está a fazer este trabalho? - perguntou Rabalyn, en­quanto o homem do machado bebia água de uma assentada.

-Não gosto de estar parado. - Shivas paga-lhe!

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-Não. Faço-o por prazer. - Não vejo onde está o prazer de cortar lenha. -Relaxa-me, moço. E mantém-me forte. Ouvirás homens a falar

da sua perícia com a espada ou com a faca, o machado ou a moca. A maioria das pessoas pensa que é essa perícia que engrandece um guerreiro. Não é. Os grandes guerreiros são homens que sabem so­breviver. E para sobreviver, um homem precisa de estar forte. Precisa de capacidade de resistência. Existem por aí homens que são mais rápidos do que eu. Mais habilidosos. Poucos são os que conseguem resistir mais do que eu. - Rabalyn olhou para o homem grande, vendo as velhas cicatrizes no peito e nos braços dele.

-Sempre foi guerreiro?-inquiriu. -Sim. É o meu maior defeito -confessou Druss, com um esgar

pesaroso. -Como pode ser defeito? Não faz sentido. -Nunca te deixes iludir pelas aparências, rapaz. Os homens for-

tes constroem para o futuro: quintas, escolas, vilas e cidades. Criam

filhos e filhas, e trabalham arduamente, dia após dia. Vês aquela lenha

ali? A árvore donde veio tem cerca de duzentos anos. Começou por uma semente, e teve de estender as raízes pelo solo duro. Lutou para sobreviver ... para viver o suficiente até dar a primeira folha. Os ver­

mes e os insectos atacaram-na, os esquilos comeram a sua casca macia. Mas continuou a lutar, ganhando raízes fundas e um coração mais forte. Durante duzentos anos, as suas folhas caídas alimentaram a terra. Os seus ramos tornaram-se o abrigo de muitas aves. Deu som­bra à terra por debaixo de si. Depois, dois homens com um machado e uma serra, derrubaram-na em menos de uma hora. Esses homens são como os guerreiros. A árvore é como o agricultor. Compreendes?

-Não -admitiu Rabalyn. Druss soltou uma gargalhada. - Ah, bem, talvez um dia com­

preendas. Levantando-se do banco, recomeçou a trabalhar. Rabalyn ajudou­

-o durante mais uma hora.

Skilgannon chegou, e Druss pousou o machado. Ainda não pare­cia cansado. Skilgannon colocou as espadas no chão e despiu a camisa, expondo a tatuagem da pantera feroz no peito. Pegando no machado, levou um tronco novo para o cepo e partiu-o habilidosamente. Rabalyn recostou-se, fascinado com a diferença na maneira como os dois homens trabalhavam. Druss era todo força e economia. Skil­gannon conferia um toque artístico ao trabalho. De quando em

2-1H

quando, ao elevar o machado, rodava-o, fazendo com que a luz do sol incidisse na lâmina. Os seus movimentos eram suaves e flexíveis. Apesar de menos forte do que Druss, realizou a tarefa com enorme ra­pidez. Se, no caso de Druss, o segmento ficava logo partido, a lâmina do seu machado por vezes cravava-se no cepo por baixo e era necessá­rio libertá-la, Skilgannon desferia cada golpe com a quantidade exacta de força. Os segmentos separavam-se então, a lâmina do machado vindo assentar suavemente no cepo.

Ambos os homens faziam com que o trabalho parecesse fácil e, no entanto, quando Rabalyn experimentou, o machado em movimento enterrava-se num segmento e era necessário retirá-lo com força, ou a pancada não lhe acertava, a lâmina saltando do cepo e batendo-lhe nos ombros. -Vai continuando, moço - disse Druss, em tom encora­jador. -Chegarás lá.

Quando Rabalyn tinha conseguido cortar já cerca de trinta seg­mentos, os seus ombros e braços doíam de fadiga. Druss mandou-o parar e deslocaram-se até um poço próximo. Druss tirou um balde de água e bebeu.

-Devíamos preparar-nos para partir daqui a um dia ou dois -comunicou a Skilgannon.

Skilgannon vestiu a camisa e pôs as espadas às costas. - Um homem na taberna disse-me que há cavalos à venda no bairro norte da cidade. Disse que devia procurar um homem chamado Borondel.

Druss reflectiu por um momento. -O bairro norte é principal­

mente naashanita. Será seguro para ti?

Skilgannon encolheu os ombros. -Nenhum lugar é seguro. Mas precisamos de cavalos. Diagoras diz que os Drenai não têm a mais.

-Perguntaste a Shivas sobre este Borondel? -Sim. Negoceia em cavalos.

-Mas não estás convencido. Vejo-o nos teus olhos, moço. -Não. Parece demasiado ... conveniente que um homem me pro-

curasse e perguntasse se ando à procura de montadas. -Eu vou contigo.

Skilgannon abanou a cabeça. - Vou inspeccionar a zona. Se for

uma armadilha, tentarei evitá-la.

Que era uma armadilha, não havia dúvidas. Skilgannon soube-o no

momento em que abandonou o complexo na zona das embaixadas. Então por que vais, interrogou-se? O homem na taberna era naasha­nita-muito embora tentasse disfar�·ar a pronúncia. Enquanto falava

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com o homem, Skilgannon reparara na ponta de uma tatuagem debaixo dos punhos compridos da sua camisa vermelha. Vira o sufi­ciente dela para saber que era a cobra enrolada, exibida pelos arquei­ros e lanceiros do Exército Costeiro.

Enquanto caminhava, ia olhando para a esquerda e para a direita. Uma vez, vislumbrara alguém a dar uma corrida entre dois edifícios. O homem vestia uma camisa vermelha.

Isto é uma loucura, disse de si para si. Porquê ir ao encontro do perigo?

Por que não? Foi a resposta. Subitamente, Skilgannon sorriu e o seu humor melhorou. Viu de novo Malanek, a sua sala de treino no com­plexo. -Olhas para um espelho e julgas que te vês. Mas não. Vês um corpo habitado por muitos homens. Há o Skilgannon feliz, e o pesa­roso. Há o orgulhoso e o receoso. Há a criança que foste, e o homem que ainda vais ser. Isto é uma lição importante porque, quando em perigo, precisas de saber-e mais importante, de controlar-qual destes homens se encontra no comando na altura. Há ocasiões em que um guerreiro precisa de ser temerário, e outras -muitas mais -em que precisa de ser cauteloso. Há ocasiões para actos de enorme bravura, e ocasiões para retiradas tácticas, para reagrupar e lutar noutro dia. Há igualmente alturas em que a acção é necessária tão rapidamente que quase não existe tempo para pensar, e, às vezes pior, em que existe demasiado tempo para pensar. Compreende-te, Olek. Agora tenta encontrar o homem certo aí dentro, para a ocasião certa.

-Como é que o faço? -perguntara o rapaz de catorze anos. -Em primeiro lugar, tens de retirar de cena a emoção. Cada acção

é julgada apenas pelo seu mérito, e não pelo coração. Um exemplo: Um homem está diante de ti e desafia-te para lutares com ele com os punhos. O que fazes?

-Luto com ele. Malanek deu-lhe uma palmada no cimo da cabeça. -Queres fazer

o favor de pensar? admoestou.-Não tenho comigo uma ampu-lheta. Tens tempo para reflectir nas minhas perguntas.

-O homem está sozinho? -Sim. - É um inimigo?

Boa pergunta. Pode ser um amigo que está zangado contigo. Nesse caso, tentaria argumentar com ele.

- Excdente - disse Malanek. -Mas ele não é um amigo. - É maior ou mais forte do que eu?

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Ele é, a bem desta discussão, o mesmo que tu. Jovem, forte e confiante.

-Então lutarei com ele. Com relutância. -Sim, fá-lo-ás, pois um homem não poderá continuar a ser um

homem se recusar um desafio. Deprecia-se aos seus próprios olhos, e aos olhos dos seus camaradas. As palavras importantes aqui são com relutância. Lutarás com frieza, usando a tua perícia para acabares com a luta o mais depressa possível. Sim?

Claro. Agora imagina o seguinte: Um homem ... o mesmo homem ...

acaba de agredir Molaire no rosto e atirá-la ao chão. Está a dar-lhe pontapés enquanto ela permanece desmaiada.

-Matá-lo-ia disse o jovem.

-Pois é disso que estou a falar, Olek. Quem comanda agora? Onde está o homem que lutou com frieza e relutância, tentando pôr termo à luta o mais depressa possível?

-Se visse Molaire a ser atacada, reagiria com raiva. -Exactamente ... e isto diminuiria a tua eficácia. Afasta toda a

emoção da tua mente. Só assim chegarás ao teu verdadeiro eu. Quando lutares, deixa o teu corpo relaxar, e a tua mente flutuar livre. Então alcançarás o teu melhor. Travei muitos duelos, Olek. A maior parte dos homens não possuía a minha perícia. Alguns con­segui não matar. Desarmei-os ou feri-os o suficiente para pôr termo ao combate. Outros eram quase tão hábeis. Estes tive de matar. Mas alguns, Olek, eram melhores do que eu. Um era tão bom que eu não teria sobrevivido durante mais de alguns momentos. Estes ho­mens deviam ter vencido. Mas não venceram. E porquê? Um mor­reu devido à arrogância. Estava tão certo da sua capacidade que lutou com complacência. Outro morreu devido à estupidez. Consegui en­furecê-lo. O que era infinitamente melhor do que eu morreu por temer a minha reputação. Já estava a tremer quando as nossas espa­das se tocaram. A emoção não tem lugar no combate, Olek. É por isso que te vou ensinar a IluJão de Outro Lugar. Aprenderás a flutuar livre.

Enquanto caminhava pela cidade, Skilgannon começou a respirar profunda e tranquilamente. Tendo deixado de estar irritado, de estar tenso, analisou o problema.

Os assassinos sabiam onde ele estava alojado e, por conseguinte, podiam encontrá-lo. Se.· tentasse.· c.·swnder-se deles, continuariam a

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procurá-lo, tanto na cidade como em plena estrada. Nesse caso, era melhor encontrá-los. Teriam a vantagem do número, muito embora contassem também surpreendê-lo. O homem na taberna indicara como encontrar os estábulos propriedade de Borondel. Por conse­guinte, o ataque teria lugar no caminho ou nos estábulos. O local mais provável seria nos estábulos, onde, uma vez lá dentro, o assassínio poderia ser cometido sem que mais ninguém visse.

Esta era a hipótese mais forte, apesar de poder haver homens po­sicionados pelo caminho. Talvez um faquista, ou um besteiro. Ambos? Provavelmente. Se fosse ele que estivesse a planear um assassínio -especialmente o de um esgrimista conhecido -teria pelo menos três unidades perto. A primeira estaria armada de espadas ou facas, e tentaria matar o homem enquanto se deslocava por uma zona movi­mentada. Os besteiros estariam posicionados mais adiante no cami­nho, não fosse o homem escapar da primeira tentativa e arrepiar caminho. A terceira unidade teria andado a seguir a vítima, a alguma distância, pronta para lhe cortar qualquer retirada possível.

Skilgannon já não conseguia ver o homem de camisa vermelha, e calculou que tivesse corrido lá para a frente a fim de avisar os ata­cantes da sua chegada.

Continuou a avançar. Quantos poderiam lá estar? Isto era mais difícil de calcular. Dez afigurava-se o mais provável. Dois besteiros, quatro no primeiro ataque com faca, ou espada. Seguir-se-iam mais quatro. Deixando uma avenida larga, atravessou a rua e entrou num pequeno parque. Havia aqui dezenas de pessoas, sentadas na relva, ou de pé junto das fontes. Estavam mais bem vestidas do que as que vira na turba da véspera. Lá adiante encontrava-se uma família, um homem e uma mulher, caminhando com três filhos. Skilgannon observou a área. O parque era principalmente descampado, com pouca protecção de arbustos ou árvores. Não havia sítio onde um besteiro se esconder. Acrescia que os homens estavam vestidos com roupa para o tempo quente, túnicas e calças. Nenhum andava armado. A dada altura do parque, Skilgannon parou numa ponte trabalhada que atravessava um riacho. Olhou para o caminho por onde viera. Três homens passea­vam a alguma distância. Todos vestiam justilhos, por baixo dos quais podiam estar escondidas facas.

Três atrás.

Se o organizador deste atentado estava convencido de que três o conseguiam impedir Je fugir, era possível que não mais de três se en­contrassem à espera lá à frente.

2'>2 J:

De acordo com as orientações que lhe tinham dado, os estábulos de Borondel ficavam depois da saída do parque. Havia um longo beco, tinham-lhe dito, e este conduzia a uma zona de terreno aberto.

Abandonando o parque, atravessou outra rua, depois virou à es­querda, evitando o beco. Caminhando rapidamente, enfiou-se numa segunda rua lateral. Escondido dos homens que o seguiam, desatou a correr. Esta segunda rua estava cheia de bancas de mercado, muito em­bora houvesse poucos géneros expostos nelas. Várias continham roupa, mas as bancas de comida estavam vazias. A meio da rua havia uma taberna, com mesas cá fora. Estavam ali sentados cerca de doze ho­mens, agarrando canecas de cerveja preta. Skilgannon passou por eles e entrou no estabelecimento. O interior estava escuro, e não havia clientes lá dentro. Aproximou-se dele um homem magro. -Hoje não há comida, senhor - disse ele. - Temos cerveja e temos vinho. O vinho não é de grande qualidade.

-Nesse caso, uma caneca de cerveja-pediu Skilgannon, avan­çando pela sala e sentando-se perto de uma janela aberta. Recuando a cadeira para se esconder da vista, sentou-se na taberna obscurecida e observou o mercado ensolarado. Passados momentos, viu os três se­guidores passarem pelas bancas. Pareciam tensos e zangados. Um deles acercou-se do grupo de homens sentados no exterior da taberna.

Skilgannon levantou-se da cadeira e atravessou rapidamente a ta­berna, parando mesmo do outro lado da entrada.

-Quanto é que vale?- ouviu alguém perguntar. Skilgannon escutou o som áspero de metal e calculou que tivesse

sido puxada uma arma.-Não queiras perder os olhos, meu verme! -Não há necessidade disso -contrapôs o homem, a sua voz su­

bitamente receosa. -Ele acabou de entrar ali. Tremularam sombras à entrada. Os dedos tensos de Skilgannon

atingiram o ventre do homem. Ele dobrou-se, um jacto de ar explo­dindo-lhe dos pulmões. Antes que o segundo pudesse reagir, o punho de Skilgannon acertou-lhe no queixo, fazendo-o cair. O terceiro homem avançou com a faca. Skilgannon agarrou o pulso da faca, avan­çou para o interior e desferiu um golpe de cabeça no nariz do homem, partindo-o. Meio cego, o assassino largou a faca e recuou a cambalear. Skilgannon aplicou-lhe um directo com a esquerda e um diagonal com a direita. O homem caiu por terra e não se mexeu.

Apanhando a faca caída, Skilgannon virou-se para o primeiro

homem, agarrando-o pelo cabelo comprido e escuro e arrastando-o para dentro da taberna. O talx·rneiro, segurando a caneca de Skilgannon,

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assistia cheio de ansiedade. bem-humorado.

Ponha-o na mesa

Não o vai matar, pois não? Ainda não decidi. Provavelmente.

disse Skilgannon,

-Importava-se de o fazer lá fora? Os cadáveres costumam deixar os meus clientes transtornados.

O homem que Skilgannon puxara para dentro da taberna arfava, o

seu rosto carmesim. Skilgannon levantou-o pelo cabelo para o sentar.

-Incline-se para a frente e respire devagar - disse o guerreiro.

E enquanto o faz pense nisto. Vou fazer-lhe algumas perguntas. Não repetirei cada uma delas. Se não responder imediatamente, corto-lhe a garganta. Diga o meu nome!

Puxando a cabeça do homem para trás, assentou a lâmina da faca na jugular do assassino. Skilgannon-respondeu o homem, entre

arfadelas. -Excelente. Nesse caso, sabe que aquilo que lhe disse não foi uma

ameaça vã. Portanto, aqui vai a primeira pergunta. Quantos mais estão à minha espera no estábulo?

-Seis. Não me mate. Quantos besteiros? Dois. Tenho mulher e filhos ... Onde estão escondidos os besteiros? No beco, creio. Mas não sei. Servaj é que os terá posicionado.

Mandaram-nos apenas segui-lo e cortar-lhe a retirada. Juro. Skilgannon soltou o cabelo do homem, depois bateu-lhe com força

na nuca. O Naashanita tombou para a frente, inconsciente. Skilgannon cortou a bolsa do homem e abriu-a. Havia lá dentro algumas moedas de prata. Atirou a bolsa ao taberneiro. -Fica por conta do incómodo

-disse-lhe. -Muito generoso -retorquiu o homem, com azedume. Skílgannon levantou-se e foi até à entrada. Um dos outros assas­

sinos começou a mexer-se. O homem gemeu. Skilgannon ajoelhou ao lado dele e atingiu-o no maxilar. Os gemidos cessaram. Inspeccionando o terceiro homem, viu que estava morto, o pescoço partido.

O taberneiro debruçou-se sobre o corpo. -Oh, isto é agradável comentou. -Outro cadáver.

-Pelo menos não está a sangrar -observou Skilgannon. -Todo o mal fosse esse, não acha? - referiu o homem. -Os ca-

dáveres não dão boa reputação a um estabelecimento que serve refeições. -E a falta de comida também não.

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-Tem razão. Ele tem algum dinheiro na bolsa? -Se tiver, é seu afirmou Skilgannon, levantando-se e diri-

gindo-se para o exterior. Tinham-se reunido algumas pessoas. -O que aconteceu lá dentro? -perguntou um homem calvo,

de ombros redondos. Ignorando-o, Skilgannon foi até ao fundo da rua e ficou à esquina,

observando os edifícios próximos. Localizando o estábulo, avançou para lá. O homem de camisa vermelha estava no palheiro, a espreitar pela porta do feno. Assim que viu Skilgannon aproximar-se, baixou­-se e meteu-se para dentro. Skilgannon começou a correr, virando à esquerda e saltando a vedação de um pequeno curral. Quando ater­rou, ouviu um ruído atrás de si. Virando-se, viu uma flecha de besta a sair do madeiramento. Avançando, correu pelo curral, guinando para a esquerda e a direita. Outra flecha bateu no solo e fez-lhe ricochete na perna. Depois tinha chegado às portas do estábulo. Puxando das Espadas da Noite e do Dia, atirou-se pela porra aberra e pôs-se em pé rebolando. Precipitaram-se três homens.

E morreram.

Um quarto permaneceu sentado num fardo de feno. Era um homem magro, de cabelo escuro e calva, e não estava armado. Folgo em voltar a vê-lo, General saudou afavelmente.

Eu conheço-o. Era soldado de infantaria. Efectivamente. Tenho uma medalha para o provar. Foi a rainha

quem ma deu pessoalmente.

Skilgannon atravessou o estábulo, os seus olhos perscrutando as baías vazias. Depois parou, de costas para uma coluna sólida. Usar semelhantes tolos contra mim é quase um insulto.

Não se engana. Rapidez, disseram. Nunca deu bons resultados. Mas será que eles dão ouvidos? Faz isto, faz aquilo, faz imediatamente. Leva-nos a pensar como conseguem chegar a posições tão elevadas, não leva? Presumo que matasse os outros?

Os três que me seguiam? Não. Apenas um. Os outros não tardarão a acordar.

Ah bom, nesse caso, não foi de todo um dia mau.-Servaj en­direitou-se. O seu sabre pendia de um gancho na parede. Enca­minhando-se para lá, desembainhou-o. -Vamos acabar com isto, General?

-Como queira. -Skilgannon embainhou a Espada da Noite. Está extraordinariamente calmo para um homem prestes a morrer. Será devido a alguma cren\a rdit:iosa?

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-Lutou contra Agasarsis com a minha espada. Esta espada aqui. Vi-o. Não é assim tão bom. Deixe-me dar-lhe uma lição.

Skilgannon sorriu, afastou-se um passo da coluna, depois virou-se e apoiou um joelho em terra. O besteiro escondido ao fundo do está­bulo levantou-se. A mão direita de Skilgannon avançou subitamente.

A pequena lâmina circular cortou a garganta do arqueiro no momento em que disparou a flecha. Caiu para trás com um grito gorgolejante.

A flecha passou a zunir por Skilgannon, cravando-se na barriga da perna de Servaj, que praguejou sonoramente, depois largou o sabre.

-Um triste fim para um dia mau- disse. Erguendo o olhar, gri­tou: - Rikas, consegues ouvir-me?

- Sim, Servaj - chegou uma voz abafada. -Esquece a besta e vai para casa.

Porquê? Ainda o posso apanhar. -Ainda podes conseguir que ele te mate. Faz o que te digo.

Retira a flecha, solta a corda e desce. Skilgannon estava a postos quando um besteiro desceu a escada do palheiro. Era um homem jovem, magro e de cabelo louro. Olhou para o seu chefe ferido, de­pois para Skilgannon. - Vai-te embora, Rikas.

O homem passou por Skilgannon e saiu pela porta das traseiras. - Por que fez aquilo? perguntou Skilgannon.

_::. Ah bem, há tarefas que são mais onerosas do que outras. Para ser sincero, sempre gostei de si, General. E agora que estou a morrer, não sinto grande vontade de concluir a minha missão.

-O s homens não costumam morrer de uma flecha na perna. -Costumam se a flecha estiver envenenada. A voz do

homem começou a ficar arrastada e deixou-se cair sobre o fardo de feno. Maldição. Seria divertido se não fosse tão horrivelmente trá­gico. -O seu corpo curvou-se para a frente. Gemeu, depois ficou estendido no chão. Skilgannon recuperou a lâmina circular de ar­remesso, limpou-a e meteu-a dentro do cinto. Depois avançou pelo estábulo e ajoelhou ao lado do assassino. - Que a tua viagem ter­mine em luz- disse a Servaj, moribundo.

-Eu ... não ... contaria com isso. Estendendo a mão, Skilgannon recuperou o sabre caído do homem.

-Era uma boa arma naquela altura - disse. Olhando para baixo, viu que Servaj morrera. Levantando-se, Skilgannon tirou a bainha do gancho na parede e embainhou o sabre, pondo o cinturão da espada ao ombro.

Havia quatro cavalos nas baías na retaguarda do estábulo. Todos magros e subnutridos.

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Skilgannon selou-os. Depois, montando um cavalo baio, J'lt.'}(UU 1111!1

rédeas das outras montadas e levou-as até à claridade.

A medida que entraram mais mantimentos na cidade, as turbas começaram a dispersar. Os Datianos e seus aliados revelaram-se governantes benevolentes, e houve poucas execuções. Alguns desta­cados membros da família do velho rei viram-se perseguidos, e uma vintena dos seus conselheiros foi parar à prisão da cidade para interrogatório. Para a gente do povo, a vida começava a voltar ao normal.

Diagoras levou os cavalos que Skilgannon trouxera para a cerca dos Drenai, onde lhes deram ração e deixaram repousar. Eles precisam de mais tempo do que aquele de que dispomos - referiu Diagoras

-,mas estarão em melhores condições quando partirmos. Skilgannon agradeceu-lhe, mas o oficial mostrou-se reservado.

Era difícil para Diagoras. Havia algo no antigo general naashanita que o atormentava, deixando-o zangado e agitado. Não sendo por norma um homem rancoroso, sentia-se constrangido perto do

Naashanita. O que Druss afirmara a respeito da rivalidade era em parte verdade, mas não a principal razão do comportamento de Diagoras. Tentara racionalizar os seus sentimentos, mas não era fáciL Quando acompanhado, Skilgannon não era nada conflituoso e até se mostrava afável, e Druss gostava dele. No entanto, era também um assassino de massas que ordenara e supervisionara a chacina de mi­lhares em Perapolis. Eram imensas as histórias sobre as suas vitórias em batalhas, assim como os relatos da sua implacabilidade na guerra.

Era impossível conciliar o homem com as histórias sobre o homem. Diagoras sabia que se o tivesse conhecido, e ignorasse o seu passado, haveria gostado dele. Nas presentes circunstâncias, não conseguia manter uma conversa com Skilgannon sem que o invadisse uma raiva latente.

- Por que não gosta do Irmão Lantern? - perguntou Rabalyn, na tarde do terceiro dia.

Tinham feito uma pausa na preparação no manejo da espada ao ar livre nas traseiras da Veado Carmesim. O rapaz prometia, mas preci­sava de fortalecer os braços. - É assim tão óbvio? - perguntou Diagoras.

-Não sei. Para mim é. -Nesse caso, és muito perspicaz, pois não trocámos palavras

iradas.

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-Ele foi bom para mim, e gosto dele-afirmou Rabalyn. -Assim sendo, não tens motivos em contrário - disse-lhe

Dia goras. -Então por que não gosta? -Estamos aqui para aprenderes a manejar a espada. Não para falar

daquilo de que gosto ou não gosto. És rápido, o que é bom, mas precisas de pensar no teu equilíbrio. O jogo de pernas é vital para um esgrimista. O peso deve vir do pé de trás para o da frente. Vá, deixa­-me mostrar-te porquê.

Vindo até ao exterior, Diagoras ofereceu a espada. A de Rabal yn tocou nela. -Agora ataca-me -ordenou o Drenai. Rabalyn avan­çou, agitando a espada no ar. Diagoras parou o golpe, avançou para dentro e bateu com o ombro no peito de Rabalyn. O jovem desequi­librou-se e caiu pesadamente. Diagoras ajudou-o a levantar-se.-Por que caíste? -perguntou ao rapaz.

-O seu ombro atacou-me. -Caíste porque o teu pé de trás se veio colocar ao lado do teu pé

da frente. Quando o peso foi atirado sobre ti, não havia nada que te sustentasse. Junta os pés.-Rabalyn assim fez. Estendendo o braço, Diagoras empurrou com força o peito do jovem. Ele vacilou. -Agora coloca o pé esquerdo a apontar para a frente, o joelho ligeiramente flectido e o pé de trás em ângulo recto com o da frente.

-O que é um ângulo recto? -Aponta o teu pé esquerdo para mim, roda o outro pé para a di-

reita. Isso mesmo. -Mais uma vez, Diagoras empurrou o jovem. Desta feita ele mal se mexeu. -Estás a ver? O peso foi transferido para o pé de trás, por isso mantiveste o equilíbrio. Quando atacas, es­tendes primeiro o pé esquerdo. Quando recuas, é o pé da retaguarda. Nunca se cruzam.

-É muito complicado - queixou-se Rabalyn. -Como vou lembrar-me disto durante um combate?

-Não é uma questão de memória. Trata-se de praticar até ser uma segunda natureza para ti. Com sorte, darás um excelente esgri­mista. Claro está que ajudaria se tivesses uma espada melhor.

-Então talvez esta te sirva - interveio Skilgannon. Diagoras virou-se. Não dera pela aproximação do homem, e isso perturbou-o. O Naashanita passou por Diagoras e ofereceu um sabre de infantaria e a bainha a Rabalyn. -É uma boa arma, bem equilibrada e mag­nificamente executada.

-Obrigado -disse Rabalyn, estendendo a mão para ela.

25H

-Estava a explicar ao rapaz a importância do jogo de pernas­referiu Diagoras. -Seria muito útil se ele pudesse vê-lo exemplifi­cado. Levantaria objecções a praticar? -Apercebeu-se de que olhava directamente para os olhos cor de safira de Skilgannon. O guerreiro suportou o olhar dele durante alguns momentos, e Diagoras sentiu­-se como se o homem lhe estivesse a ler a alma.

-De modo algum, Diagoras -respondeu, recuperando o sabre de Rabalyn.

-Estaria mais à vontade se usasse uma das suas espadas? -in­quiriu Diagoras.

-Não seria seguro para si se o fizesse -respondeu Skilgannon, calmamente.

Tocaram as lâminas enquanto Rabalyn se sentou num banco. Depois, num turbilhão de aço a brilhar, começaram a lutar. Diagoras era hábil. Havia dezoito meses, vencera a final oriental dos Sabres de Prata em Dros Purdol. A sua missão em Mellicane implicara perder a final nacional em Drenan. Estava convencido, porém, de que teria ganho. Por isso, foi com enorme confiança que aceitou bater-se com o Maldito. A confiança, como não tardou a aperceber-se, fora um erro. O sabre de Skilgannon parou cada estocada e golpe. Diagoras aumentou o ritmo, ultrapassando o de uma preparação. Não o fez conscientemente. A sua mente estava agora concentrada no combate. Moveram-se cada vez mais depressa. Subitamente, Diagoras viu a sua oportunidade e saltou. Skilgannon es­quivou-se, avançou para dentro e bateu com o ombro no peito de Diagoras. O oficial drenai caiu por terra com toda a força. Ergueu o olhar e viu Rabalyn a olhá-lo fixamente, com uma expressão de choque e medo. S6 então Diagoras se compenetrou e apercebeu de que estivera a tentar matar Skilgannon. - Vês ao que eu me referia com o equilíbrio, Rabalyn? -disse, tentando manter a voz natural. -Com o entusi­asmo, esqueci-me do jogo de pernas. -O jovem descontraiu.

-Nunca vi nada assim-afirmou.-São ambos tão rápidos. As vezes nem conseguia ver as espadas. Eram apenas manchas.

Skilgannon inverteu a lâmina, oferecendo o punho do sabre a Rabalyn. O jovem pegou nele, depois sorriu a Skilgannon. -É um presente maravilhoso. Nem sei como agradecer-lhe. Onde o arranjou?

-Era de um homem que já não precisava dele. Usa-o bem, Rabalyn.

Diagoras levantou-se. - As minhas desculpas, Skilgannon -disse. -Estava tão entusiasmado com a competição que quase me esqueci de que estávamos apenas a praticar.

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-Não são necessárias desculpas - referiu Skilgannon. -Não houve perigo.

A raiva subiu no Drenai, mas engoliu-a. -Mesmo assim, fica o pedido de desculpas. Eu devia ter calculado.

Skilgannon correspondeu mais uma vez ao olhar dele, depois en­colheu os ombros. -Nesse caso, aceito-as. Vou deixá-lo entregue à sua preparação.

-Garianne andava à sua procura - disse Rabalyn. -Ela está na taberna com Druss. Acho que ela está um pouco ... hã, embriagada

-concluiu, com pouca convicção. Skilgannon anuiu, depois afastou-se. -Ele é muito bom, não é? -perguntou Rabalyn. -Sim, é. -O senhor parece-me furioso.

-Confundes embaraço com raiva - mentiu Diagoras. -Mas pelo menos viste como era importante manter o equilíbrio.

-Oh, se vi -retorquiu Rabalyn. Na taberna, Skilgannon encontrou Druss sentado sozinho, a

comer uma refeição de dose dupla. Tinham sido colocadas duas enor­mes fatias de pastelão de carne numa travessa de banquete gigante, com uma porção colossal de legumes assados. Skilgannon sentou-se.

-Podia alimentar um exército com isso-comentou ele. -Estava a sentir-me um pouco debilitado - disse Druss.

Cortar lenha abre-me sempre o apetite. -O rapaz disse que Garianne andava à minha procura. -Sim, andava. Mas agora foi-se embora. Skilgannon soltou uma risada abafada. -Druss, a Lenda, está em­

baraçado - afirmou. -Será que detecto um rubor? Druss fuzilou-o com o olhar. -Alguns oficiais datianos têm an­

dado a fazer perguntas sobre uma série de homens encontrados mor­tos num estábulo no bairro naashanita - informou Druss. - É

melhor ficares aqui sossegado até partirmos. -Isso faz sentido -concordou Skilgannon. -Achas que eles vão tentar de novo? -Sim. Mas provavelmente não até estarmos na estrada. Não me

preocupa excessivamente. -E por que será? -perguntou o homem do machado. -Devo presumir que Servaj usou os melhores homens que tinha

no primeiro ataque. Na verdade, não eram muito hábeis. Só a Fonte sabe o que os segundos melhores julgarão ir conseguir.

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-Cuidado com a arrogância, moço. Já vi grandes lutadores der­rubados por um idiota com um arco. Uma vez vi um guerreiro t·xn·­lente ser deitado abaixo por uma pedra arremessada pela fisga dt· umu criança. As vezes, o destino tem um sentido de humor negro. -O homem do machado calou-se e começou a atacar a travessa enormt· dt· comida. Passado um bocado, ergueu o olhar.-Vi a tua competição com Diagoras. Não sejas demasiado duro com ele. É um bom homem ... de confiança, corajoso e leal.

-Não o julguei, Druss. Ele é que me julgou. Muito provavel­mente o juízo dele está certo. Se eu fosse um guerreiro informado sobre os actos de o Maldito, desprezá-lo-ia também. Não se pode mudar o passado, por muito que se queira.

-Sim, existe alguma verdade nisso. Cometemos erros. É escusado repisarmo-los. Desde que aprendamos com eles. Garianne partiu com um oficial vagriano. E não sejas também demasiado duro com ela. Ela precisa do que precisa.

-Eu sei. Soube mais alguma coisa sobre este Máscara de Ferro? -Nada de bom-respondeu Druss.-É severo, astuto e bru-

tal. Os homens dele foram escolhidos a dedo pela sua selvajaria. Um grupo nada bonito.

-E ainda os quer enfrentar sozinho? -No fundo, moço, estamos todos sozinhos. -Qual é o seu plano?

-A própria simplicidade. Entrarei na fortaleza, procurarei o Más-cara de Ferro e matá-lo-ei.

-Os planos simples são normalmente os melhores - concor­dou Skilgannon. -Menos hipóteses de as coisas correrem mal. Já pensou nos cento e setenta guerreiros que dizem estar a controlar a fortaleza?

-Não. No entanto, é bom que não se atravessem no meu cami­nho.

Skilgannon soltou uma sonora gargalhada. - E fala-me de ar­rogância?

Druss riu entre dentes.-Talvez arranje um plano melhor depois de ter visto o local.

- Isso seria sensato -anuiu Skilgannon. - Não sei se serás a pessoa indicada para fazer sermões sobre a sa-

bedoria-observou Druss. -Recordo que eras um general, com um palácio e fortuna. Largaste tudo para te tornares um padre pacifista ... uma ocupação, acrescentaria, lJlll' se revelou completamente inade-

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quada para ti. Agora és um guerreiro pobre, perseguido por assassi­nos. Esqueci-me de alguma coisa?

- Podia ter acrescentado que a pessoa que me quer ver morto é a mulher que amo acima de tudo o mais neste mundo.

Retiro o que disse afirmou Druss. - Fala-me mais da rua sabedoria, moço. Acho-a curiosamente apelativa.

Jianna tinha dez anos quando descobriu pela primeira vez a pas­sagem secreta que havia por baixo do Palácio Real. Fora uma desco­berta acidental. Estivera a brincar nos aposentos do pai, enquanto ele se ausentara com o exército para esmagar uma rebelião. A mãe man­dara os criados à procura dela, para lhe ralharem por algum delito cometido e Jianna refugiara-se no quarto enorme e luxuoso à procura de um esconderijo. Pensara enfiar-se atrás do pesado reposteiro de seda na parede virada a norte, mas quando o puxara, verificara que não se mexia. Um bocadinho dele, ao nível do chão, ficara preso no painel de nogueira da parede por detrás. A princesa de dez anos ficara con­fusa. Retirara-o com cuidado e escondera-se atrás do reposteiro. Os dois criados que a mãe mandara à sua procura acabaram por desistir da busca. Jianna ouviu-os distanciar-se. Uma vez sozinha, afastou o reposteiro e examinou o painel. Fora magnificamente esculpido, e em­belezado com folha de ouro. Por cima da cabeça dela, havia sido embutido na madeira um adorno dourado. Era uma cabeça de leão, a boca aberta, mostrando os dentes. De ambos os lados da cabeça en­contravam-se castiçais de ouro. Jianna voltou ao quarto e arrastou uma cadeira até ao painel. Empoleirando-se nos bicos dos pés, observou a cabeça do leão. Subitamente, a cadeira resvalou. Ao cair, a princesa agarrou-se ao castiçal mais próximo. Este torceu-se sob o peso dela. Largando-o, saltou para o chão. Uma corrente de ar frio varreu-a. O painel abrira-se. Do outro lado estava uma câmara obscura. Pondo­-se em pé, entrou nela. Não teria mais de metro e meio de profundi­dade, terminando numa porta trancada. Fazendo deslizar a tranca, abriu a porta. Do outro lado havia um túnel. Aos dez anos, a princesa era demasiado medrosa para entrar neste lugar assustador. Trancando mais uma vez a porta, regressou ao aposento, fechando o painel e em­purrando o castiçal para a sua posição, voltando a fechar a entrada.

Durante o ano seguinte, pensou muitas vezes no corredor secreto e censurou-se pelos seus medos pueris. Numa tarde quente, enquanto os criados dormitavam ao sol da tarde, esgueirou-se, voltando ao Aposento Real. Agora mais alta- pondo-se em bicos de pés, chegou ao castiçal

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e torceu-o. O painel deslizou. Pegando numa lanterna acesa, entrou na câmara do outro lado, examinando a parede que ficava por detrás do ornamento do leão. Havia aqui uma alavanca simples. Empurrando o painel, puxou a alavanca. Ouviu-se um estalido. O painel ficara agora firmemente fechado.

Chegando à porta de ferro, abriu-a, saindo para o corredor. Estava fresco aqui, e uma corrente de ar fez tremular a chama da lanterna. Avançando com cuidado, chegou a umas escadas que desciam. As pa­redes brilhavam com a humidade, e uma ratazana passou a correr por cima do pé dela. Quase largou a lanterna.

Jianna sentiu o seu coração bater mais depressa quando os seus re­ceios começaram a inundar-lhe a mente. E se centenas de ratazanas a atacassem? Ninguém ouviria os seus gritos e, pior ainda, o seu corpo nunca seria encontrado. Hesitou e ponderou voltar para trás. Mas não o fez. Recordou antes a instrução do seu mestre de esgrima, Malanek: «0 medo é como um cão de guarda. Avisa-nos quando o perigo es­preita. Mas se fugirmos de todos os nossos receios, o cão de guarda transforma-se num lobo selvagem e perseguir-nos-á, mordendo-nos os

calcanhares. O medo, se não se lhe opuser a coragem, corrói-nos oco­ração. Se fugirmos, nunca mais pararemos.»

O túnel parecia continuar indefinidamente. Jianna começou a ficar preocupada não fosse a lanterna apagar-se, deixando-a às escuras. Acabou por chegar a outra porta trancada. O ferrolho fora oleado re­centemente e deslizou com facilidade. Abrindo a porta, viu para lá dela uma escada de ferro cravada numa parede de pedra. Manchas de luz incidiam nas rochas. Escancarando a porta, olhou para cima. Uma grelha de metal bloqueava o poço cerca de seis metros mais acima. O poço continuava para lá da porta e não lhe conseguia ver o fundo, muito embora ouvisse correr água. A grelha no cimo era demasiado pesada para a retirar, mas olhando através dela, conseguia ver as copas das árvores e ouvir as fontes do Parque Real.

O túnel, sabia agora, era uma saída em caso de fuga do palácio. Voltando para trás, Jianna efectuou o longo caminho de regresso

aos aposentos, trancando de novo as portas à medida que avançava. Satisfeita a sua curiosidade, não voltou a percorrer aquele caminho,

até ao segundo ano do seu regresso triunfal à capital. O rosto despo­jado da cor da nobreza, vestindo roupas vulgares, caminhava às vezes pelas ruas ensolaradas, ou fazia compras nos mercados ao lado dos ci­dadãos comuns. Comia c.·m tabernas c escutava as conversas. Caso Askelus ou Malanck fkasst•m u sal)(.·r destas viagens, teriam tido um

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ataque de raiva e frustração. No entanto, fora em aventuras como esta que Jianna ficara a saber o que a populaça realmente pensava da forma como governava as suas vidas. Não lhe importava ser conhecida entre a nobreza como a Rainha Bruxa. Para o povo, era uma figura de re­ceio, respeitada e temida. Não amada, porém, como acreditava Malanek. Nas tabernas e casas de pasto, as pessoas falavam da sua co­ragem, da sua argúcia, das suas técnicas de combate. A sua crueldade, porém, gerava mais polémica.

Os crimes eram agora punidos impiedosamente; aos ladrões, eram cortados três dedos da mão esquerda para um primeiro delito. Um segundo delito levava à morte por decapitação. Os assassinos eram levados de volta às cenas dos seus crimes e executados ali. Os trapa­ceiros e intrujões eram despojados de todos os seus bens. No primeiro ano do seu reinado, mais de oitocentas pessoas tinham sido condena­das à morte só na capital. Askelus não era a favor de práticas tão ex­tremas, muito embora os números de crimes denunciados tivessem caído a pique. Jianna dera ouvidos aos argumentos dele sobre a ne­cessidade de uma sociedade compassiva, sobre a compreensão das complexidades das causas do crime. Jianna não quisera escutar a ar­gumentação dele.

-Um homem entra numa casa e mata o proprietário para roubar alguns valores. Quantas pessoas são afectadas? É possível que o pro­prietário morra, mas pode ter mulher e filhos. Terá certamente paren­tes, vizinhos e amigos. Os parentes têm vizinhos e amigos. Talvez umas cem pessoas ao todo. Como uma pedra que cai na superfície de um lago parado, as ondas deste crime estendem-se. As pessoas ficam pre­ocupadas com as suas casas e as suas vidas. Quando depois o assàssino é arrastado até à casa e morto ali, as pessoas sossegam. Fez-se justiça.

-E se for morto pelo crime o homem errado? -Não faz diferença, Askelus. Foi punido um crime. Cem pessoas

ficam satisfeitas por a sociedade ir vingar o crime. - O homem injustamente morto não tem família, e amigos, e

vizinhos, Majestade? -Essa é a maldição da inteligência, Askelus. As pessoas inteli­

gentes procuram sempre ver o outro lado do problema. Procuram a causa e o efeito, o equilíbrio e a harmonia. Concentram-se no pobre homem que rouba um pão para alimentar a família. Oh infortúnio, exclamam, lJlll' vivemos numa sociedade onde um homem pode ser reduzido a cal t•studo. Vamos, pois, dar comida de graça a todos, para que nin,L:u(om IIIIIKU mais volte a roubar pão.

-Não vejo qualquer problema nisso, Majestade. Há comida su­ficiente.

-Há agora, Askelus. Mas percorra um pouco mais este caminho e o que vê? Homens e mulheres que já não têm de trabalhar para comer. Reproduzem-se e multiplicam-se, gerando cada vez mais pes­soas que não têm de trabalhar para comer. E onde vivem, então, estas pessoas que não trabalham? Ah, então vamos dar-lhes talvez casas de graça, e cavalos para que possam viajar. E as roupas para vestirem? Como podem comprá-las, estas pessoas que não trabalham? E quem paga este caminho para a loucura, Askelus?

Mas ele não ficara convencido e falara em construir mais escolas e preparar os pobres, dotando-os de novas capacidades. Esta ideia cau­sou mesmo agrado. O novo império de J ianna iria necessitar de homens e mulheres mais hábeis. Por isso, atribuíra fundos do tesouro para a criação de mais escolas, professores, e até a construção de uma uni­versidade. Askelus ficara encantado.

Com o passar do tempo, J ianna continuara a usar o túnel secreto, deslocando-se cada vez mais pela cidade. Os lojistas e taberneiros pas­saram a conhecê-la, e criou uma nova identidade. Era Sashan, mulher de um mercador itinerante. Comprou até uma pulseira barata de ca­sada em prata, que usava no pulso direito. Deste modo, evitava que a maior parte dos homens solteiros a incomodasse quando andava pela cidade. Os que não se deixavam intimidar pela pulseira, eram dissua­didos com palavras duras e um olhar fuzilante.

Uma zona a quilómetro e meio para sul do palácio tornou-se o seu local preferido. Existia aqui uma praça e um mercado. As mulheres costumavam reunir-se à volta do poço no centro da praça. Havia ban­cos e assentos e as mulheres conversavam umas com as outras sobre a vida, e o amor, e a educação dos filhos. Muito raramente a política entrava na discussão. Mesmo assim, Jianna achava imensamente agra­dável sentar-se no meio delas.

Foi aqui que conheceu Sarnias, esposa de um construtor local. Com frequência, vinha acompanhada dos três filhos pequenos e ficava a vê­-los correr pela praça, a olhar para os artigos nas bancas. Eles briga­vam amigavelmente, ou brincavam. Sarnias abria a mala e tirava de lá embrulhos com comida, e as crianças sentavam-se aos pés dela, comendo pastéis, ou bolo, ou fruta. Sarnias era uma mulher alta, nu­trida à volta das ancas. Sorria constantemente enquanto vigiava os filhos. Apenas nos dias em l)lH' estava sozinha o seu sorriso desapare­cia, e então Jianna via a tristl'i'.a nos olhos dc.·la.

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Falavam amiúde. Jianna escutava principalmente. Sarnias estava sa­tisfeita com o casamento. O marido era <<Um bom homem, honrado e carinhoso» e os filhos uma alegria constante. -A vida é boa, por isso não me posso queixar-disse, um dia.

-Por que falas em queixar-te? Sarnias pareceu surpreendida. -Falei? Oh, é apenas uma expressão.

-Amas o teu marido? -Claro. Que pergunta disparatada. Um homem maravilhoso.

Muito bom para os filhos. E o teu marido? É gentil? - É bastante agradável-referiu Jianna, subitamente relutante

em criar mais mentiras. -Isso é bom. Espero que sintas a falta dele quando está ausente.

Mercador itinerante, não é? -É. Porém, não o amo. -Ooh, não devias dizer isso. É melhor tentares amá-lo. A vida

torna-se mais suportável se fores capaz de te convencer. O homem que eu amava realmente foi-se embora- aperce­

beu-se Jianna de que dizia. -Eu desejava-o mais do que algum outro que cheguei a conhecer. Ele nunca me sai da cabeça.

-Ah, todas temos alguém assim -disse Sarnias. -Como é que ele era?

Atraente, com olhos azul-safira. Porque se foi embora? Eu não podia casar com ele. Tinha outros planos. Viajámos jun­

tos uma vez, através de uma floresta. Olhando para trás, acho que foj o tempo mais feliz da minha vida. Recordo cada dia. Jianna sol­tou uma gargalhada. - Tínhamos fome e encontrámos um coelho com a pata presa num laço de caçador. Ele aproximou-se do animal e ajoelhou a seu lado. A coisinha tremia, de maneira que o acariciou. Depois cortou cuidadosamente o laço. Olhei para ele e disse: «Então, vais matá-lo e cozinhá-lo?» Ele pegou no coelho e voltou a acariciá­-lo. <<Tem uns olhos tão bonitos», disse, depois pousou o coelho e afas­tou-se dele.

-De coração sensível, hein? Alguns homens são assim. De certa forma, era. Noutras era implacável. Fomos atacados

na mata. -Jianna calou-se. Ah bem, faz agora muito tempo -acabou por dizer, apercebendo-se de que se aproximava perigosamente da verdade.

- Quem os atacou? Salteadores-apressou-se Jianna a responder.

2()()

Que horror! exclamou Sarnias. -O que aconteceu? O teu amante dominou-os?

-Sim, ele lutou. Era um excelente lutador. Agora tenho de ir. O meu ... marido deve estar à minha espera. -Jianna levantou-se do banco.

-Procura não repisar o passado, querida -aconselhou Sarnias. -Não o podemos mudar, sabes? Só podemos viver com o que temos agora. Uma vez amei um homem com todo o meu coração. Ele era o sol e a lua de todos os meus desejos. Era soldado do rei. Tu sabes, o velho rei, Bokram. Foi mandado para a floresta de Delian atrás de um assassino. Era suposto casarmos naquele mês. Foi morto lá. E aca­bou-se tudo para mim. A minha vida quase terminou.

Lamento imenso disse Jianna, surpreendendo-se por estar a ser sincera.

Já foi há muito tempo, Sashan. E o meu marido é um homem bom. Oh sim. Muito bondoso.

-Apanharam o assassino? -Não. Era um homem horrível. Assassinou as pessoas que o tinham

criado depois de o pai morrer. Cortou-as, foi o que ele fez. Torturou-as. Consegues acreditar? Depois fugiu da cidade com uma jovem prostituta. O meu Jeranon e um grupo de soldados quase os apanharam. Foi assim que soube. Houve uma luta e Jeranon foi morto. Alguns outros também. E o par malvado escapou. Nunca os encontraram.

Jianna sentiu um frio súbito chegar-lhe ao coração. - Ele tinha nome, este assassino?

Sim. O nome dele era Skilgannon. Nunca cheguei a saber o

nome da prostituta.-Sarnias encolheu os ombros.-A Fonte há­

-de castigá-los, porém. Se existe justiça. -Talvez a Fonte já o tenha feito disse Jianna.

Quando Jianna empreendeu o caminho de regresso pelo Parque Real, pensou como Askelus teria gostado de escutar a sua conversa com Sarnias. Nunca antes Jianna pensara nas vidas daqueles solda­dos que quase a tinham apanhado na floresta de Delían. Tinham sido apenas homens com espadas, com ordens para a capturar. Tentou recordar os rostos deles, mas só um lhe ocorria, um homem com barba, feições coradas e olhos selvagens. Quisera violá-la, mas fora dominado pelos outros.

Skilgannon e ela tinham-se separado uma hora antes, após palavras duras. Sentia agora dificuldade em recordar qual o tema da discussão.

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Assim que deixaram a cidade, e começaram a viajar juntos, pareciam magoar-se mutuamente. Recordando o momento com toda a sabedoria dos seus vinte e cinco anos, Jianna apercebia-se agora de que a tensão fora sexual. Ansiara manter relações íntimas com o jovem guerreiro. Sorriu. A abstinência nunca fora agradável para ela. Passava-se quase o mesmo com Skilgannon. Por isso altercavam e discutiam. Por fim, dois dias após a fuga da cidade, tinham acordado separar-se, Jianna seguindo para norte rumo a uma colónia tribal onde julgava ir ficar segura.

Uma hora depois, vira-se rodeada e perseguida por soldados. Lesta de pés, quase lhes escapara. Estivera a escalar uma vertente íngreme quando se tentara agarrar à raíz saliente de uma árvore para se apoiar. A raiz partira-se, e ela viera a rebolar pela vertente lamacenta. Tinham­-na então agarrado.

-Tem de ser ela-disse o soldado de rosto corado. -Olha para ela. - Agarrando-a pelo pescoço, puxara-lhe a cabeça para baixo e passara a mão pelo cabelo curto. Vês, ainda há vestígios de tinta loura.

Como te chamas, rapariga?-perguntou outro homem. Jianna não se conseguia lembrar agora do rosto dele, só que era magro. Não lhe respondeu.

Havia cinco soldados no grupo e reuniram-se à volta dela. -O que foi que ela fez? perguntou alguém.

-Sei lá-respondeu o homem corado. -Boranius disse que ela era importante. É tudo o que interessa. Tem umas pernas e um traseiro jeitosos, não tem? continuou ele, passando uma mão ca­losa pelas coxas dela. -Acho que devíamos experimentar esta.

-Não, não o vamos fazer -disse outro alguém. J ianna pergun­tou-se naquele momento se este era o jovem de que Sarnias falara. Vamos apenas levá-la de volta.

-Sou a PrincesaJianna-declarou.-O tirano quer-me morta. Ele já matou a minha mãe e o meu pai. Levem-me para norte e re­compensá-los-ei.

Oh sim, pareces mesmo uma princesa, não haja dúvida afir-mou Rosto Corado. Cabra estúpida! Arranja uma história melhor do que essa.

- É verdade. Por que acham que os mandaram? Qual a prostituta que valia esse trabalho? Aposto que não são as únicas tropas por aqui.

-Suponhamos que ela tem razão-sugeriu mais alguém. -E depois, se tiver� indagou Rosto Corado. -Não temos

nada a ver com isso. Agora há um novo rei. Os novos reis matam

26H

sempre os rivais. E como nos recompensaria ela, heint Nrnhum h1111 é seguro para ela. A única recompensa que nos pode otê.·rt·c:t-r t'llt4 tnrrt

as pernas dela. E podemos recebê-la agora. Nunca antes fui mm um•

princesa. Achas que há diferença? -Nunca irás saber-ouviu-se a voz de Skilgannon. Jianna lem­

brava-se ainda do sobressalto no seu coração. Não por se julgar salva. Naquele instante acreditara que ambos seriam destruídos. Fora ape­nas o som da voz dele, e saber que voltara por causa dela.

Os soldados viraram-se para ver o jovem. Estava de pé a cerca de três metros deles. Segurava na mão direita uma espada curta e penetrante, na esquerda uma faca de caça extremamente afiada. O sol brilhava nas

lâminas. -Olha-me para aquilo? disse Rosto Corado, em tom desde-

nhoso. -Tem cuidado com essas armas, rapaz. Ainda te podes cortar. -Larga-a ou morres - disse Skilgannon, com calma. - Não

tens outra alternativa. Fazem-me o favor de lhe tirar aquelas espadas? -pediu Rosto

Corado. -Ele começa a aborrecer-me. Os dois homens puxaram dos sabres e avançaram sobre Skilgannon.

Ele manteve-se muito quieto por um momento e, quando se moveu, o efeito foi surpreendente. Um homem caiu de costas, a garganta a jor­rar sangue. O segundo gritou quando a faca de caça se lhe enfiou no peito, atravessando-lhe o coração. Antes de os outros soldados conse­guirem reagir, saltou para a frente, a espada curta penetrando o ventre de outro soldado, mesmo enquanto o homem se esforçava por puxar do sabre. Jianna estendeu a mão, tirando uma faca da bainha no flanco de Rosto Corado. Ficou demasiado surpreendido com a violência súbita para se aperceber. Ficou ainda mais surpreendido quando a lâmina se lhe cravou no peito mesmo abaixo do esterno. Entrou fundo. Soltou um gemido e, largando Jianna, vacilou para trás. O quinto soldado correu o mais depressa possível para se salvar. Rosto Corado retirou desajeita­damente o sabre da bainha e tentou atacar Skilgannon. Mas as suas per­nas cederam e caiu de joelhos, o sangue a jorrar do peito. Debilmente, atacou com o sabre, mas Skilgannon recuou do movimento.

-Está na hora de partir-disse a Jianna. Ela olhou-o no rosto. Os seus olhos cor de safira estavam frios, como cristais de gelo. Ela sentiu um arrepio.

-Concordo respondeu-lhe. A história do salvamento na floresta foi crescendo nos anos que se

seguiram. Jianna ouvira muitas versões. Em algumas, tinha vestida

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uma armadura e lutara e matara os três homens pessoalmente. Noutras, o Maldito derrotara seis mestres de armas. A realidade era que a acção fora curta, sangrenta e brutal. Jianna ficara livre, e Sarnias perdera o amor da sua vida.

Era a isto que Askelus se referia quando falara de uma sociedade compassiva. A concentração na perda e na dor individuais, e não o efeito de uma acção sobre a sociedade em geral.

De volta ao parque, Jianna sentou-se num banco próximo da ve­getação rasteira que escondia a entrada para a passagem secreta. Foi obrigada a esperar algum tempo pois as pessoas andavam constante­mente pelos caminhos, ou estavam sentadas junto às fontes.

Por fim levantou-se e voltou para perto da vegetação rasteira, acocorando-se e levantando a grelha.

A lanterna continuava acesa no corredor inferior. Segurando-a alto, trancou a porta e avançou pelo corredor. Deixara instruções para não ser incomodada até às duas da tarde, mas a hora estava quase a chegar.

Quase por um triz. Na câmara escondida por detrás do painel, despiu as roupas vul­

gares, depois entrou nos aposentos, passeando-se nua pelo quarto. Nesse momento entraram duas criadas, fizeram uma vénia e dis­seram-lhe que Malanek estava à espera lá fora. Ordenou-lhes que lhe preparassem um banho, depois colocou uma capa de cetim pelos ombros.

Uma das criadas fez entrar Malanek na sala principal. Parecia can­sado, o rosto macilento. -Ainda bem que tivestes um repouso extra, Majestade-disse.

-Devia seguir os seus conselhos, Malanek. Parece exausto. Ele esboçou um sorriso cansado. -Esqueço-me constantemente de

que já não sou uma criança. -Suspirou. Há notícias de Mellicane, Majestade. Mudastes de opinião relativamente a Skilgannon?

-Não. Por que o faria? Sofreu uma tentativa de assassínio. Chefiada por um Naashanita

chamado Servaj Das. Não foi por ordem minha, Malanek. Skilgannon é livre de ir

para onde quiser. Malanek anuiu. Isso agrada-me, Majestade. Mas fico a pensar

em quem mais pode querer Skilgannon morto. Ela olhou-o com atenção. - Não preciso de lhe mentir, meu

amigo. Quando segui o seu conselho de o deixar partir, fi-lo livre­mente. Se o quisesse morto, tê-lo-ia informado.

270

-Eu sei, Jianna referiu ele, esquecendo-se por um momento. -Importais-vos que me sente?

Indicando-lhe um divã, sentou-se ao lado dele. -O que o preo­cupa?

Tenho estado a analisar os relatórios sobre Mellicane. O homem Máscara de Ferro fez inúmeros contactos no seio da comunidade naashanita. Muitos dos homens dele são também soldados nossos. Na sua maioria rebeldes, muito embora não todos. De acordo com as nos­sas fontes em Mellicane, Servaj Das estava ao serviço dele. Temos

poucas informações sobre o Máscara de Ferro, só que ele não é da Tantria. A sua pronúncia revelou que ele não era ventriano. Também parece não ser conhecido nem na Dada nem em Dospilis. Poderia ser do outro lado da água, do Drenan, do Gothir, da Vagria. Mas, e se ele for naashanita?

Jianna encolheu os ombros. -E o que tenho a ver com isso? -Ele é um líder carismático de homens. Isso já nós sabemos.

Reuniu guerreiros à sua volta, muitos dos quais lutaram contra vós. De onde veio semelhante homem? E há outra coisa. As nossas fontes entre os oficiais datianos referem que quando entraram no palácio que ele usava, encontraram câmaras por baixo com as paredes sujas de san­gue. Encontraram igualmente dedos e mãos cortados.

A rainha permaneceu calada.- O homem cujo nome não profe­rimos foi morto em combate. Skilgannon cortou-lhe metade do rosto, e depois apunhalou-o mesmo no coração. Tenho visto os relatórios deste Máscara de Ferro. O uso da máscara é apenas um logro. O rosto dele não está mutilado, apenas descolorado.

-O corpo dele nunca foi encontrado. Suponhamos que ele foi curado, Majestade? Existem referências a um templo em Pelucid, e a uma sacerdotisa capaz de operar milagres.

Não são referências. São rumores. Mitos. Como lagartos voa­dores e cavalos alados.

O homem cujo nome não proferimos quase nos derrotou. Se ainda se encontra vivo, constitui uma ameaça para tudo o que está a tentar construir. É bem possível que ele esteja por detrás destes aten­tados recentes à sua vida.

-Agora está a deixar-me preocupada! -ripostou ela. - Não acredito que os mortos possam voltar para me atormentar.

-Não, Majestade. Tão-pouco eu ... se tivesse conseguido encon­trar o corpo dele. Mas se não instruísu·s St•rvaj Das para assassinar Skilgannon, e ninguém na nossa t•mhuixuda o ti:z, mrão o Máscara de

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Ferro é o único outro elo. Assim sendo, a questão é: por que haveria o Máscara de Ferro de pretender a morte de Skilgannon, um homem que não conhece, e que não constitui uma ameaça para ele?

-Onde está Skilgannon neste momento? -Ainda em Mellicane, mas prepara-se para seguir para norte.

Tenho informação de contactos na embaixada dos Drenai que ele tenciona viajar com o guerreiro, Druss. Vão para Pelucid. Druss pre­tende matar o Máscara de Ferro. Porque viaja Skilgannon com ele, eis um mistério. Os Datianos vão enviar também uma força para Pelucid. Querem ser eles a capturar o Máscara de Ferro. Aparentemente, vá­rias das suas vítimas foram destacados nobres datianos.

-Nesse caso, desconfio de que o mistério estará resolvido não tarda muito-afirmou Jianna.

-Até estar, Majestade, precisamos de ter cuidado com a vossa se­gurança. Nada de riscos desnecessários. Se o homem cujo nome não proferimos ainda está vivo, então o perigo é bem real para vós.

-Eu não corro riscos desnecessários, Malanek. E um monarca está constantemente em perigo.

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CAPÍTULO 15

Diagoras traçara o percurso com cuidado, e levava cópias dos mapas que mostravam as montanhas, os rios, e os desfiladeiros a norte de Mellicane. No terceiro dia de viagem, começara a divertir-se. No alforge da sua sela abundavam os apontamentos sobre a localização das aldeias onde poderiam obter mantimentos, os nomes dos chefes a quem ofere­cer presentes, e pormenores sobre zonas de provável perigo. Estas fica­vam principalmente nas regiões montanhosas próximo de Pelucid onde se sabia que os bandos de salteadores possuíam esconderijos. Diagoras aproveitara bem a sua preparação militar. Recolhera também toda a in­formação conhecida sobre o homem chamado Shakusan Máscara de Ferro. Esta não se resumia a muito, conquanto uma referência em parti­cular interessasse Skilgannon. Três anos antes, quando Máscara de Ferro aparecera pela primeira vez em Mellicane, travara um duelo. De acordo com a informação, ele usava espadas curvas, que estavam guardadas numa única bainha. A fonte referia também que era homem de força prodigiosa, pois um golpe conseguira atravessar a couraça e a cota de malha por baixo. Uma segunda cutilada decapitara a vítima.

O primeiro dia de viagem decorrera ociosamente. Os cavalos adquiridos por Skilgannon estavam subnutridos e, apesar de serem de boa raça, mostravam-se fracos. Precisavam de descansar com frequên­cia. Nos escassos dias que haviam permanecido na cerca dos Drenai, Diagoras mandara alimentá-los com cereais e exercitá-los suavemente, mas ainda estavam longe de se encontrarem em condições. Ao terceiro dia de viagem começavam já a ficar mais fortes.

Os gémeos, JareJ e N ian, tinham-se-lhes reunido na estrada na manhã do segundo dia. Vinham 11111hos montados em póneis serranos

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peludos, animais resistentes e geniosos. Dariam uma dentada nas montadas mais altas da cavalaria se algum soldado fosse suficiente­mente tolo para se aproximar deles. Os irmãos escolheram seguir pró­ximo da carroça de duas rodas com os mantimentos, conduzida por Druss.

Enquanto cavalgava, Diagoras olhava com frequência para Garianne. Ela vinha montada numa égua cinzenta e mantinha-se um pouco dis­tanciada do grupo, mesmo à noite, quando acampavam. Sentava-se isolada e, esporadicamente, viam-na a falar sozinha. Muitas vezes, o jovem Rabalyn seguia ao lado de Diagoras, fazendo constantemente perguntas. A sua alegria por ter sido convidado para a viagem não era afectada em nada por qualquer receio das consequências. Adorava mon­tar, e nos finais de tarde passava uma hora a cuidar do seu cavalo, escovando-lhe o dorso ou acariciando-lhe o pescoço. Rabalyn era um cavaleiro nato e um dia seria um excelente esgrimista. Tinha bom equi­líbrio e mãos rápidas. Aprendia também depressa.

No quarto dia, a terra começou a elevar-se ao aproximarem-se do sopé de uma cadeia de montanhas a poente. Estas eram as Montanhas de Sangue, ricas em ferro. A paisagem era acidentada e bela, de cores intensas em constante mudança. O sol matinal incidia nas montanhas vermelhas, fazendo com que brilhassem como ouro velho. Por volta do meio-dia, apareceram nuvens negras nas vertentes denteadas e pronunciadas. Ao anoitecer, com o Sol a pôr-se por detrás delas, as mon­tanhas perderam a sua magnificência, tornando-se cinzentas e sinistras.

Quando acamparam naquela noite, Druss deixou a fogueira e vol­tou para a carroça, estendendo-se no chão e adormecendo. Diagoras sen­tou-se ao pé de Skilgannon e dos outros. Há um chefe tribal que controla os desfiladeiros - disse. Chama-se Khalid. Parece que é meio nadir, e tem um bando de cerca de cinquenta homens. Parece que cobra urna taxa pequena. No entanto, isso foi no tempo em que o rei e os seus soldados eram uma ameaça constante à sua autoridade. É impossível saber como irá reagir agora.

-Quando é que vamos chegar ao desfiladeiro? - perguntou Skilgannon.

- Pelos meus cálculos, amanhã ao meio-dia-disse� lhe Diagoras. -Eu vou na frente e negoceio com ele - afirmou Skilgannon. -Tenha cuidado - avisou-o Diagoras -, as pessoas daqui são

muito pobres, mas muito orgulhosas. Um bom conselho- referiu Skilgannon. Obrigado. O que

mais se sabe sobre Khalid?

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Diagoras consultou os seus apontamentos. Muito pouco. Anda pelos sessenta anos, e já não tem filhos vivos. Ultrapassou-os a rodos. Não paga impostos. Ao que parece, há cerca de vinte anos, ele e os seus homens juntaram-se às forças do rei e derrotaram um exército in­vasor de Sherak, no norte. Por esse motivo, foram-lhe atribuídas estas terras, livres de tributo. Não passou de um gesto, pois estas monta­nhas proporcionariam pouquíssimas receitas fiscais.

-Quanto é a peagern? -Duas moedas de cobre por cabeça, e urna de cobre por todos os

animais de carga ou cavalos. Conversaram durante um bocado. Os gémeos pouco disseram, e

Garianne não abriu sequer a boca. Diagoras deixou a fogueira do acampamento e foi até ao cimo de

uma colina, onde se sentou a olhar para as montanhas. Rabalyn reu­niu-se-lhe. Gostaria de esgrimir um bocado? perguntou o rapaz.

- Não, está demasiado escuro. Haveria o risco de ferimentos aci­dentais. Amanhã de manhã, antes de partirmos, treinaremos um pouco.

Como foi na Batalha de Skeln? Brutal, Rabalyn. Não quero falar disso. Muitos dos meus ami­

gos morreram nela. -Foi recebido com honras quando regressou a casa?

Sim, fornos recebidos com honras. Éramos os heróis do mo­mento. É uma expressão que tem realmente significado, Rabalyn. Durante alguns dias, fornos as celebridades da capital. Depois a vida voltou ao normal e as pessoas encontraram outras coisas que as diver­tissem. Àqueles soldados que sobreviveram a Skeln, mas ficaram estropiados, foram prometidos vinte Raq de ouro cada, e uma gene­rosa pensão vitalícia. Nunca receberam o ouro. Agora, têm dificul­dade em sobreviver com seis moedas de cobre por mês. Alguns tornaram-se mesmo mendigos. Druss ajudou muitos deles. Entregou terras que lhe pertenciam para abrigar alguns deles, e os lucros das suas quintas servem para alimentar os veteranos.

- Nesse caso ele é rico? Não parece. Diagoras soltou urna gargalhada. -A esposa dele, Rowena, era

uma mulher astuta. Quando Druss voltava das guerras, vinha nor­malmente carregado de presentes dos príncipes gratos. Ela usou o ouro para comprar propriedades e investir em iniciativas comerciais. Se qui­sesse, o nosso amigo Druss podia construir um palácio e viver luxuo-samente.

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- Por que não o faz? -Não te posso responder, rapaz. Apenas dizer que ele não faz uso

da riqueza. No entanto, é um solitário. Até aí consigo ver. -Gosto dele disse Rabalyn. - Ele deu-me o seu código.

Viverei segundo ele. Dei a minha palavra. Eu conheço esse código. É bom. No entanto, é perigoso,

Rabalyn. Um homem como Druss consegue viver segundo ele, porque é como uma tempestade, brutal, impiedoso, imparáveL Nós, mortais, porém, podemos necessitar de ser mais circunspectos. Atermo-nos com firmeza ao código de Druss poderá ser a nossa morte.

Khalid Khan estava sentado à sombra de uma rocha saliente e observava o cavaleiro lá em baixo na estrada. O sol estava alto e quente, o céu sem nuvens e azuL Todavia, não era um bom dia. Naquela manhã, Khalid vira duas águias a nidificar nos picos altos. Há muito tempo que não se viam águias nas Montanhas de Sangue. Normalmente teria sido um bom presságio. Não hoje. Hoje sabia que eram apenas aves, e que não significavam nada.

Khalid deixou-se ficar onde estava. Houvera poucos mercadores nas estradas desde o começo da estú­

pida guerra, e o povo de Khalid vira-se obrigado a apertar o cinto por causa da fome. Isto não era bom, e deixara-os taciturnos e queixosos. Como líder, Khalid só sobreviveria enquanto acreditassem na sua capacidade de lhes trazer dinheiro. Na semana anterior, o jovem guer­reiro, Vishinas, chefiara um ataque a uma ladeia do norte, capturando cinco cabeças de gado escanzeladas e alguns carneiros. Fora deplorável. Mas o povo de Khalid, faminto e descontente, cantara vitória, e Vishinas era agora mais popular entre os jovens guerreiros. Khalid suspirou e coçou a barba preta rala. Ultimamente, a velha ferida no seu ombro di­reito andava a atormentá-lo. Se Vishinas desafiasse a sua autoridade, não tinha maneira de o conseguir derrotar, espada com espada. Felizmente, Vishinas desconhecia este ponto fraco. A reputação de Khalid assentava na sua intrepidez com a espada, e o jovem usava de prudência com ele. Não por muito tempo mais, pensou Khalid, com azedume.

Só esta ameaça, apesar de preocupante, tê-lo-ia feito perder noites de sono. Mas havia algo no ar que não batia certo. A mãe de Khalid fora abençoada com a Visão. Era uma excelente vidente. Khalid não herdara por completo t.•sse dom, mas os seus instintos eram mais apurados do qut• os da m<lioria dos homens. Durante as últimas duas noites, acorduru encharcado em suor e assustado. Não sendo dado à

sonhos, tivera pesadelos que o deixaram a tremer. Vira animais que caminhavam como homens, imensos e poderosos, movendo-se vaga­rosa e silenciosamente na escuridão da vertente da montanha. Desorientado, destapara-se, pegara na espada e saíra a correr da tenda, ficando ao luar, a respiração ofegante e entrecortada. Lá fora reinava o silêncio. Não havia ameaça. Nem demónios.

Fora apenas um sonho, nesse caso? Khalid tinha dúvidas. Vinha aí algo. Algo terríveL

Mastando aqueles pensamentos obscuros, olhou para o sítio onde Vishinas estava acocorado numa rocha. O guerreiro olhava também com atenção o cavaleiro que se aproximava.

O homem montava bem, observando o trilho e as superfícies da rocha de cada lado. Vishinas fez sinal a Khalid, depois tirou o arco do ombro. Indo buscar uma seta à aljava, lançou um olhar inquiridor a Khalid. O chefe abanou a cabeça. Vishinas pareceu desapontado quando voltou a guardar a seta na aljava. Levantando-se do seu esconderijo, Khalid veio até campo aberto e desceu a vertente ao en­contro do cavaleiro que avançava. Vishinas correu ao lado dele, e mais outros sete tribalistas abandonaram os seus esconderijos.

O cavaleiro abeirou-se deles e desmontou. Deixando as rédeas a ar­rastar, avançou e fez uma vénia a Khalid.

-Sou Skilgannon. Os meus amigos e eu pretendemos atravessar o território do famoso Khalid Khan. Pode levar-me até ele?

Não és tantriano - afirmou Khalid. - Nem tão-pouco, creio, da Datia. A tua pronúncia é do SuL

-Sou naashanita. Nesse caso, como ouviste falar do famoso Khalid Khan?

-Viajo com um oficial drenai que lhe teceu rasgados elogios. Ele disse que era conveniente oferecer um tributo ao Khan quando atra­vessássemos as suas terras.

Um homem sensato, o seu amigo. Sou Khalid Khan. Skilgannon curvou-se de novo. Quando o fez, Khalid viu os punhos

de marfim das suas espadas. -Duas armas numa única bainha-disse Khalid. -Muito invulgar. Quantos homens fazem parte do seu grupo?

-Cinco homens e uma mulher. - Vivemos tempos difíceis, Skilgannon. Há guerra e morte por

todo o lado. Está preparado para a guerra e para a morte? O guerreiro sorriu, e os sc:us olhos azuis frios brilharam ao soL -

Tão preparado quanto quallJlll'r homem pode estar, Khalid Khan. Que tributo considera justo para 111 rnvt·ssur us suas tt'rr<ls�

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- Tudo o que tiver - interveio Vishinas, avançando. Vários jo­vens colocaram-se ao lado dele. Khalid esforçou-se por permanecer calmo. Não contara com um desafio à sua autoridade tão cedo.

Skilgannon virou-se para Vishinas. -Estava a falar com o lobo, rapaz. Quando eu quiser ouvir os latidos de um cachorrinho, far-te-ei sinal para avançares. -As palavras foram proferidas com brandura. Vishinas ruborizou-se, depois levou a mão à espada. - Se essa arma sair da bainha - prosseguiu Skilgannon -, morrerás aqui. -Apro­ximou-se de Vishinas.- Olha-me nos olhos e diz-me se pensas que não é verdade.- Vishinas recuou um passo, mas Skilgannon seguiu-o. Tentando criar distância suficiente para puxar da espada, Vishinas tropeçou numa rocha saliente e caiu. Com um grito de raiva e humi­lhação, levantou-se e avançou. Curiosamente, a investida falhou e ele ficou mais uma vez estendido nas rochas, batendo com a cabeça numa pedra ao cair. Meio atordoado, procurou levantar-se, depois deixou-se cair. Skilgannon encaminhou-se de novo para Khalid. -As minhas desculpas, senhor disse. -Estávamos a falar do tributo.

-Efectivamente - disse Khalid Khan. Tem de desculpar o rapaz. É imberbe e inexperiente. Parece-me que já ouvi antes o nome Skilgannon.

- É possível, senhor. - Creio recordar um chefe militar com esse nome. O Destruidor

de Exércitos. O vencedor de cinco grandes batalhas. São muitas as his­tórias do guerreiro Skilgannon. Nem todas elas boas.

As boas estão exageradas - respondeu Skilgannon, calma-mente.

-E as más também? -Infelizmente, não. Khalid olhou por um momento para o jovem. -A culpa é um

peso como não há outro igual. Arrasta-se pela alma. Sei-o. Pode atra­vessar as minhas terras, Skilgannon. O tributo é o que quiser.

Skilgannon abriu a bolsa no flanco e retirou três moedas de ouro, que deitou na mão estendida de Khalid Khan.

Khalid não mostrou qualquer emoção ao receber uma quantia tão vultuosa, mas deixou ficar a mão aberta para que os homens à sua volta pudessem ver o brilho intenso do metal amarelo.

Nesse preciso momento, o resto do grupo apareceu. Um dos tribalistas gritou, depois os outros avançaram, deixando para trás a fi­gura atordoada de Vishinas. Khalid semicerrou os olhos por causa do sol, a seguir virou-se para Skilgannon. - Por que não me disse que

27H

viajava com o Assassino de Prata?- inquiriu. Engoliu ruidosamente, e devolveu as moedas de ouro a Skilgannon. - Não pode haver pea­gem para Druss, a Lenda.

Honrar-me-ia se aceitasse o tributo - insistiu Skilgannon. Khalid ficou aliviado. Receara que o homem aceitasse a sua recusa.

Ah bem - disse -, se é uma questão de cortesia, então aceito. Mas têm de vir à minha aldeia. Faremos urna festa.

O chefe afastou-se de Skilgannon e dirigiu-se para a carroça. Druss olhou-o de cima e sorriu. - Que bom ver-te, Khalid. Como é que um patife corno tu ainda está vivo?

- Sou querido pelos deuses, Druss. Por isso é que eles me aben­çoaram com estas pastagens verdejantes e enorme riqueza. Ah, como é bom ver-te. Onde está o Poeta?

-Morreu. -Ah, isso é triste. As mulheres mais velhas vão ficar tristes

quando o souberem. Demasiados amigos seguiram o caminho do cisne nestes últimos anos. Faz com que me sinta velho.

Khalid subiu para a carroça. Esta noite vamos festejar, meu amigo. Vamos conversar e beber. Depois iremos aborrecer toda a gente com as histórias da nossa grandiosidade.

Para Rabalyn, a noite trouxe um misto curioso de emoções. Ficara enfeitiçado com as montanhas vermelho e ouro e os ocasos ardentes nesta região alta. Tudo aqui era diferente do que conhecera no seu país.

A terra era agreste, o calor implacável. E, no entanto, sentiu o seu co­ração elevar-se ao contemplar a magnífica paisagem. Os nómadas que seguiam Khalid Khan eram também interessantes: muito magros e duros, a sua pele escura, o seu olhar intenso. Noutra altura qualquer, Rabalyn tê-los-ia achado assustadores, mas fora tamanha a sua alegria ao verem Druss, que pareciam quase despreocupados.

O acampamento de Khalid Khan fora uma decepção para Rabalyn. Partira do princípio de que haveria tendas de seda, tal como nas histórias. Na realidade, eram urna mistura de peles velhas, linhos e tecido grosseiro, mal remendados e puídos. Toda a colónia estava es­palhada de forma desorganizada pela vertente da montanha. O lugar transpirava pobreza. Crianças nuas corriam pela colónia, seguidas de cães escanzelados, latindo e ladrando. Via-se pouca vegetação, e ne­nhumas árvores. Rabalyn avistou urna fila de mulheres que descia a montanha, carregando sacos dt· •Í�uu. Cakulou que existisse um poço escondido ali perto.

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A tenda de Khalid Khan, apesar de maior do que as outras, era igualmente decrépita. Remendos cobriam a pele exterior, e Rabalyn viu um rasgão mesmo por baixo do primeiro dos três postes altos que a sustentavam.

Relanceou o acampamento. Viam-se por ali umas trinta mulheres e cerca de vinte crianças. Reuniram-se à volta do grupo enquanto Khalid os acompanhava à colónia. Umas quantas mulheres velhas saí­ram das suas tendas e ficaram a ver. Algumas saudaram Druss, que lhes acenou em resposta. Apareceram então homens mais velhos, e estes não observaram Druss. Olharam com indisfarçado desejo para a loura Garianne, que os ignorou. Rabalyn desceu da carroça. A sua espada curta bateu na madeira do banco do condutor e ele ia caindo. Os gémeos, Jared e Nian, deslocavam-se ao lado dele. Nian sorriu às crianças mais próximas. Uma abeirou-se dele com cautela. Nian apoiou um joelho em terra e estendeu-lhe a mão. Ela irrompeu numa correria. Khalid Khan gritou uma ordem e várias mulheres avança­ram para cuidar das montadas.

Skilgannon, Druss e Diagoras seguiram Khalid Khan até à sua tenda. Garianne começou a subir a vertente da montanha, acompa­nhada dos gémeos. Rabalyn partiu atrás deles.

Aonde vamos? perguntou a Jared. Foi Nian quem res-pondeu.

- Vamos nadar no lago secreto, não vamos, Jared? Jared anuiu. O irmão estendeu o braço, agarrando a fita azul que

pendia do cinto de Jared. Nian suspirou. - Nós gostamos de nadar - anunciou, satisfeito.

Rabalyn reparara com frequência que Nian se agarrava à fita, mas não o mencionara por receio de ser indelicado. Parecia estranho que os irmãos nunca estivessem a mais de alguns passos um do outro. Uma vez, quando montavam, Rabalyn vira Nian conduzir a sua montada até junto de Jared, depois esticar-se e agarrar a fita. O movimento assustara o cavalo de Jared, fazendo-o empinar-se e irromper numa cor­rida. Nian gritara e esporeara o seu cavalo para um galope, desespe­rado por alcançar Jared. Assim que Jared controlou o seu cavalo, parou-o e saltou da sela. Nian quase caiu da sua montada e correu para o irmão, abraçando-o e soluçando. Fora uma cena desconcertante. Depois disso, Jared cortara uma porção de corda para que, quando montassem, ele pudesse agarrar uma ponta e Nian a outra.

Os irmãos escalaram a superfície da rocha, seguindo Garianne. Chegaram a uma saliência larga, e uma fissura alta na rocha verme-

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lha. Garianne entrou nela, descendo uma vertente íngreme lá dentro. A luz infiltrava-se lá do alto e reflectia-se na superfície de um lago subterrâneo fundo. Nian gritou, a sua voz ecoando dentro da monta­nha . . A frente deles, Garianne ia despindo a roupa e dobrando-a com cuidado, colocando a camisa, as calças e as botas numa saliência. Pousando a besta e a aljava em cima das roupas, virou-se e mergu­lhou na água brilhante.

Nian e Jared despiram-se também, depois, de mãos dadas, salta­ram para o lago. Rabalyn sentou-se na rocha a vê-los nadar. Apetecia­-lhe reunir-se-lhes, mas não se sentia à vontade com a ideia de nadar nu. Só o facto de ver Garianne despir-se causara-lhe uma embaraçosa turgescência na virilha, e não tinha a menor vontade de a exibir. Preferiu ficar sentado e observar sub-repticiamente a mulher a nadar, ansiando pelo momento em que ela se virasse na água, mostrando os seios. Nian gritou-lhe que fosse ter com eles. -Daqui a pouco _

respondeu. Viu Garianne olhá-lo fixamente, e ruborizou-se intensa­mente.

Então chegou Diagoras. Aproximou-se de Rabalyn e começou a despir-se. -Não sabes nadar? perguntou o oficial Drenai.

-Sim, sei. Vou daqui a pouco.

Diagoras mergulhou por completo na água, veio à superfície e nadou suavemente até ao outro extremo do lago. Enfiando-se debaixo da superfície, virou-se, bateu com os pés e voltou ao sítio onde Rabalyn estava sentado. Sorriu ao rapaz. -A água está muito fria­disse. Confia em mim. Arrefecerá o teu ardor.- Rabalyn rubo­rizou-se de novo. Despiu-se rapidamente e saltou para o lago escon­dido. As queimaduras que sofrera durante o incêndio em casa da tia estavam quase cicatrizadas, excepto uma parte arrepanhada na coxa direita. A pele abria com frequência, deitando pus e sangue. _Fez-lhe bem a água fria. Rabalyn nadou até ao centro do pequeno lago, de­pois olhou para cima. Seis metros acima dele, através de uma aber­tura em forma de foice na superfície da rocha, via-se céu aberto. Causou uma sensação muito estranha. Como uma luz em crescente azul forte a brilhar por cima dele.

A sua esquerda, Garianne saiu da água. Rabalyn apercebeu-se de que olhava embasbacado para a curva das ancas dela. Apesar das garantias de Diagoras, a água fria revelou não estar à altura da sua excitação. Virando-se, nadou até ao sítio onde deixara as roupas. Diagoras estava sentado numa saliência ali perto. - Druss e Skilgannon também virão! pt'r�untou Rubalyn, sem sair da água.

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-Espero que sim, mal concluam a conversa com Khalid Khan. Parece que o Máscara de Ferro passou por aqui há dez dias. De acordo com Khalid Khan, estariam cerca de sessenta homens com ele. E mais na fortaleza. - Diagoras carregou o cenho, depois estendeu a mão para as roupas, tirando da bolsa da cintura uma navalha com cabo de osso. Abrindo-a, começou a raspar os pelos à volta da sua barba em forma de tridente.

-O que fará Druss? -perguntou Rabalyn. Diagoras mergulhou a navalha na água. -Irá à fortaleza. Há uma

mulher e uma criança que viajam com o Máscara de Ferro. A criança é Elanin, a filha do Conde Orastes.

-O amigo de Druss. -Sim. A questão é complicada. A mulher que está com a criança

é a mãe de Elanin. Ela agora é amante do Máscara de Ferro. Druss tenciona matar o Máscara de Ferro para vingar Orastes. Druss está pre­ocupado com o facto de a mãe não deixar a filha voltar para Drenan.

-Ele não a pode levar? Diagoras soltou uma gargalhada. - Estamos a falar de Druss,

a Lenda, rapaz. Roubar uma filha à mãe? Nem por sombras. De qual­quer forma, há a considerar a questão dos cento e cinquenta guer­reiros antes de chegarmos a esse problema. Depois há o xamã nadir que viaja com o Máscara de Ferro. O homem domina a magia e pode invocar demónios, tanto quanto sei. E há também o próprio Máscara de Ferro. Ele transporta duas espadas, tal como Skilgannon, e dizem que é exímio. Não, para já não me vou preocupar com o destino da criança.

-Irá à fortaleza com Druss? -Sim, irei. O homem é meu amigo. -Eu também vou -anunciou Rabalyn. -Veremos, rapaz. Aprecio a tua coragem, mas falta-te perícia de

momento. Garianne, agora vestida, a besta na mão, passou por eles sem dizer

uma palavra. Mais confortável agora, Rabalyn saiu da água e sentou-se ao lado

de Diagoras. -Ela é muito bela, não é? -comentou. -É isso. E muito mais - concordou Diagoras. Os gémeos ti­

nham aparecido no outro extremo do lago e conversavam baixinho. Rabalyn olhou para eles. Nian levantou-se e Rabalyn reparou numa cicatriz longa e denteada sobre a anca direita, a pele à volta dela re­puxada e franzida. Jared ficou de pé. Tinha também a mesma cicatriz

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horrível, mas na anca esquerda. Depois os gémeos deram as mãos e saltaram juntos para a água.

Druss e Skilgannon chegaram. O homem do machado sentou-se ao lado de Diagoras, enquanto Skilgannon se despia e mergulhava no lago. Druss descalçou as botas e enfiou os pés na água. Rabalyn saiu do lago, depois olhou para os gémeos na outra saliência. Nian dor­mia, Jared estava sentado, perdido em pensamentos.

-Reparou nas cicatrizes deles? -perguntou Rabalyn a Druss. O homem do machado anuiu. -Estás ansioso com a festa? - in­

quiriu, ignorando a pergunta. -Não creio que vá ser uma grande festa-respondeu Rabalyn.

- Eles não parecem ter muito. -É verdade. Têm sido uns anos maus para Khalid. Dei-lhes al-

guns dos nossos mantimentos. O que quer que preparem, mostra-te bastante reconhecido. Mas não comas muito. O que deixarmos será partilhado depois pelo acampamento.

Diagoras soltou uma risada. -Está a sugerir que o rapaz finja, Druss?-perguntou.

Druss coçou a barba negra e prateada, depois esboçou um esgar. - És como um cão de volta de um osso velho - comentou. -Nunca largas?

-Não-retorquiu Diagoras, animado.-Nem uma só vez. E também tenho estado a interrogar-me sobre as cicatrizes que os irmãos têm. São quase idênticas.

-Então pergunta-lhes-sugeriu Druss. -É algum segredo obscuro?-insistiu Diagoras. Druss abanou a cabeça, depois despiu o justilho, as botas e as calças.

Sem outra palavra, saltou para a água, causando uma enorme pancada. Diagoras inclinou-se para Rabalyn.-Nadas até lá e perguntas-lhes?

-disse. Rabalyn abanou a cabeça. - Acho que seria falta de educação.

-Tens razão -concordou Diagoras. -Raios, acho que vou ficar acordado toda a noite a pensar no assunto.

Agora seco, Rabalyn vestiu-se e abandonou a caverna. O Sol estava a pôr-se, a temperatura tornando-se mais suportável. Passeou-se pelo acampamento e sentou-se à sombra de uma rocha saliente, olhando para a terra vermelha. Quando a escuridão começou a instalar-se, le­vantou-se. Quando o fez, viu algo mover-se no cimo de uma colina distante. Ao tentar focalizar, desapareceu por detrás de uma rocha muito alta. Depois, outra fi�uru rorrt•u pelo cimo Ja colina. O movi-

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mento foi tão rápido, que Rabalyn não teve hipótese de identificar a criatura. Poderia ter sido um homem a correr, ou mesmo um veado. Permaneceu imóvel por um momento, procurando movimento.

O que quer que fosse, era grande. Rabalyn perguntou-se se have­. ria ursos nestas terras altas e secas.

Soou então um corno. Olhando para a colónia lá em baixo, viu pessoas reunidas à volta da tenda grande aos remendos de Khalid Khan.

Agora com fome, Rabalyn afastou da mente os seus pensamentos sobre as figuras na colina e desceu a correr em direcção à tenda do chefe.

A festa foi muito fraca. Duas cabeças de gado escanzelado assadas numa cavidade, pão salgado, um barril de cerveja aguada e um bolo espalmado que, como descobriu Rabalyn, parecia ter sido adoçado mais com pedra moída do que açúcar. Khalid Khan estava envergo­nhado e pediu desculpa a Druss, que se encontrava sentado ao lado dele num tapete ao fundo da tenda.

Druss assentou a sua mão enorme no ombro do nómada. -Os tempos são difíceis, meu amigo. Mas quando um homem me dá o me­lhor que tem, sinto-me honrado. Nenhum rei me teria oferecido mais do que tu esta noite.

- Guardámos o melhor para o fim - disse Khalid, batendo as palmas. Duas mulheres jovens deslocaram-se entre o grupo de homens sentados juntos no centro da tenda e voltaram trazendo uma pipa de madeira. Colocando-a numa mesa, fizeram uma vénia respeitosa a Khalid, depois retiraram-se. Khalid Khan pegou num copo vazio e torceu o espiche da pipa. À luz da lanterna, a bebida saiu como ouro pálido. Khalid entregou o copo cheio a Druss. Ele provou-o, depois bebeu abundantemente.-Por Missael, isto é Fogo Lentriano ... e ex­celente, meu amigo.

-Vinte e cinco anos- anunciou Khalid, satisfeito.-Guardei--o para uma ocasião especial.

Os jovens do clã aproximaram-se e Khalid encheu-lhes as taças, as canecas e os copos. O estado de espírito dentro da tenda animou-se consideravelmente, e dois dos guerreiros do Khan exibiram instru­mentos de corda toscos, e começaram a produzir música.

Passado pouco tempo, os cinquenta homens reunidos na tenda de Khalid Khan cantavam e batiam palmas, todos animados. Rabalyn ex­perimentou um gole e compreendeu logo por que lhe chamavam

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Fogo Lentriano. Sufocou e engasgou-se, e entregou o copo a um homem do clã próximo. - É o mesmo que engolir um gato com as garras de fora - queixou-se a Diagoras.

-Os Lentrianos chamam-lhe Água Imortal -afirmou o Drenai. -Bebê-la é o mesmo que saber o que sentem os deuses. -Despejou a sua taça, depois afastou-se, procurando outra. Rabalyn viu Skil­gannon circular por entre os indivíduos animados e sair para a noite. Cansado do ruído, e da quantidade de gente apinhada dentro da tenda, Rabalyn seguiu-o.

-Vejo que não gosta da infusão - disse. Skilgannon encolheu os ombros.

- Gostei dela noutra vida. Quais são os teus planos agora, Ra­balyn?

- Irei com Druss e Diagoras salvar a princesa. -Na cultura drenai, a filha de um conde é uma dama.- Sorriu.

- Porém, o momento não é para pedantismos. Acho que devias escolher outro caminho.

-Não estou com medo. Quero viver segundo o código. -Não existe nada de errado no medo, Rabalyn. No entanto, não

é o medo de ti próprio que te deveria levar a reconsiderar. Druss é um grande guerreiro, e Diagoras um soldado que travou muitas ba­talhas. São homens duros, decididos. As suas hipóteses de sucesso nesta empresa são escassas. Serão ainda menores se tiverem de se preocupar em manter vivo um jovem corajoso que ainda não sabe sobreviver.

- Podia ajudar-nos. Também é um grande guerreiro. -A rapariga não é princesa minha, e não tenho motivos para en-

trar em guerra com o Máscara de Ferro. Tudo o que quero é encon­trar o templo.

-Mas Druss é seu amigo, não é? -Não tenho amigos, Rabalyn. Só tenho uma causa, que ainda se

pode vir a revelar impossível. Druss fez as suas escolhas. Pretende vin­gar a morte de um amigo. Ele não era meu amigo. Por conseguinte, a sua causa não me diz respeito.

-Isso não é verdade -objectou Rabalyn. -Não de acordo com o código. Proteger os fracos do mal forte. A princesa ... dama, ou lá o que lhe chamam. . . é uma criança, e portanto fraca. O Máscara de Ferro é mau.

- Podia discordar de quase tudo isso - contrapôs Skilgannon. -A criança está com a mã<:, que é amante do Máscara de Ferro. Tanto quanto sabemos, o Mólscara d<· Fl'rro �osta dela como se fosse

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sua filha. Em segundo lugar, o mal é muitas vezes uma questão de perspectiva. E, mais importante ainda, mesmo que ambos os crité­rios que apresentas sejam verdadeiros, o código não é meu. Não sou um cavaleiro em algum romance infantil. Não ando pelo mundo à

procura de serpentes para matar. Sou apenas um homem que pro­cura um milagre.

O barulho que vinha da tenda diminuiu subitamente e, passados momentos, uma voz de uma doçura quase insuportável começou a can­tar. Skilgannon estremeceu. É Garianne disse Rabalyn. Já ouviu algo mais belo?

-Não - admitiu Skilgannon. - Acho que vou nadar ao luar. Por que não entras e escutas?

- É o que farei afirmou Rabalyn. Ficou a ver o guerreiro alto subir a vertente da montanha em grandes passadas, a seguir voltou para a tenda. Todos os homens lá dentro estavam sentados em silên­cio, fascinados com a magia. Garianne estava de pé numa cadeira, de braços estendidos, os olhos fechados. A canção falava de um caçador, que encontrara por acaso uma deusa dourada a tomar banho num ri­acho. A deusa apaixonara-se pelo caçador, e tinham-se deitado juntos sob as estrelas. Mas de manhã, o caçador quisera partir. Furiosa por ser rejeitada, a deusa transformara-o num veado branco, depois pegara num arco para o matar. O caçador afastara-se aos saltos, passando por cima das copas das árvores e desaparecendo entre as estrelas. A deusa perseguira-o. Fora o começo do dia e da noite na terra. O veado branco tornou-se a Lua, a deusa o Sol. E ela perseguia constantemente o amante, ao longo do tempo.

Quando a canção terminou, o silêncio era total. A seguir, irrom­peram aplausos atroadores. Garianne desceu da cadeira e contemplou a tenda.

Deu alguns passos e vacilou ligeiramente. Rabalyn apercebeu-se de que ela estava embriagada e avançou para a ajudar. Ela repeliu a sua mão.

- Onde é que ele está? - perguntou, a sua voz arrastada. -Quem?

O Maldito?

- Foi nadar no lago escondido. -Vou à procura dele - disse. Rabalyn ficou a vê-la subir a vertente íngreme, depois virou-se.

Quando o fez, os irmãos Jared e Nian saíram da tenda. Nian viu-o e aproximou-se. - E quem é este? - perguntou ao irmão. - Acho que o conheço.

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É Rabalyn- disse Jared.

- Rabalyn repetiu Nian, acenando com a cabeça. Rabalyn ficou chocado. O simplório boquiaberto de sorriso inocente desaparecera. Este homem tinha um olhar penetrante e levemente intimidatório. Olhou para Rabalyn. -Tens de me perdoar, jovem. Não estou bem. A minha memória vai e volta. Aquela que vi a subir a vertente era Garianne?

-Sim ... senhor- referiu Rabalyn. Olhou paraJared, que estava de pé junto do irmão.

Caramba, homem! -Nian falou com ele bruscamente. -Dá­-me espaço para respirar.

- Peço desculpa, irmão. Talvez devesses descansar um pouco. Dói-te a cabeça?

-Não, não dói mesmo nada. -Sentou-se, depois olhou para o irmão e sorriu, atrapalhado. Desculpa, Jared. É assustador quando não nos lembramos de nada. Estou a ficar louco?

-Não, Nian. Nós vamos a caminho do templo. Eles saberão o que fazer. Tenho a certeza de que te devolverão a memória.

Quem era aquele homem grande e velho na tenda? O seu rosto também me pareceu familiar.

- Aquele era Druss. É um amigo. - Graças à Fonte que agora estou bem. Está uma noite magní-

fica, não está?

Realmente está - concordou Jared. - Apetecia-me água. Há um poço aqui perto?

-Vou buscar-te um pouco. Deixa-te ficar aqui sentado. -Jared voltou à tenda de K.halid Khan.

Nian olhou para Rabalyn.-Somos amigos, meu jovem? -Sim. - Estás interessado nas estrelas? -Nunca tinha pensado no assunto.

- Ah, devias. Olha para além. V ês três estrelas numa linha? Chamam-se o Cinturão. Estão tão longe de nós que a luz que vemos leva um milhão de anos a chegar até nós. Até poderiam já nem exis­tir, e tudo o que vemos é luz antiga.

- Como as poderíamos ver se não existissem? - inquiriu Rabalyn. -Tem a ver com a distância. Quando o Sol nasce, o céu ainda

está escuro. Sabias isso? -Não faz sentido.

Ah, mas faz. O Sol está a mais de cento e quarenta e quatro milhões de quilómetros da 'li:rm. É uma distância colossal. A luz que

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irradia dele tem de percorrer cento e quarenta e quatro milhões de quilómetros antes de chegar aos nossos olhos. Só quando alcança os nossos olhos é que nos apercebemos dela. Um erudito antigo calcu­lou que leva alguns minutos até a luz percorrer essa distância. Durante esses minutos, o céu parecerá escuro aos teus olhos.

Rabalyn não acreditou numa só palavra, mas sorriu e anuiu. -Oh, estou a ver-disse, confuso e mesmo um pouco assustado com este novo homem estranho que habitava o corpo de Nian.

Nian riu-se e bateu-lhe no ombro. -Achas que sou maluco. Talvez seja. No entanto, sempre tive uma certa curiosidade em relação ao fun­cionamento das coisas. O que faz o vento soprar, e as marés subir? Como é que a água da chuva entra numa nuvem? Por que volta a cair?

-Por que é que volta? -perguntou Rabalyn. -Vês? Agora também começas a ficar curioso. Uma excelente ca-

racterística nos jovens. - Esboçou subitamente um esgar. - A minha cabeça está a começar a doer -disse.

Jared voltou com um copo de água. Nian bebeu-a rapidamente, depois esfregou os olhos.-Acho que vou dormir-disse.-Vemo­-nos pela manhã, Rabalyn.

Os dois irmãos afastaram-se. Rabalyn permaneceu sentado durante um bocado, a olhar para o Cinturão e as estrelas que brilhavam à sua volta. Depois ouviu Nian gritar e viu Jared sentado ao lado dele, o braço à volta do ombro do irmão. Nian deitou-se, e Jared tapou-o com um cobertor. Rabalyn foi ter com eles.

-Ele está bem? -perguntou. -Não, está a morrer-respondeu Jared, com um suspiro. Nian

dormia agora, deitado de costas, o braço por cima do rosto. -Ele falou das estrelas e das nuvens. -Sim. Ele é . .. era ... um homem de grande inteligência. Chegou

a ser arquitecto. Há muito tempo. Quando acordar, voltará a ser o Nian que conheces. Obtuso.

-Não compreendo. -E eu tão-pouco- respondeu Jared, com tristeza.- A Velha

diz que tem a ver com a pressão dentro da cabeça dele. Às vezes ela muda ou diminui, e durante uns minutos ele é o Nian que sempre foi. O Nian que devia ser. Não dura muito. E os momentos de cla­reza são agora cada vez menos. Da última vez que voltou foi há um ano. O templo curá-lo-á, porém. Tenho a certeza.

Nian gemeu durante o sono. Jared debruçou-se e acariciou-lhe a testa.

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- Acho que também vou dormir-anunciou Rabalyn. Jared es­tava a olhar para o rosto do irmão e não o ouviu.

Enquanto a noite decorria, muitos dos homens de Khalid volta­ram para as suas tendas. Outros, demasiado embriagados para se mexerem, adormeceram em cima das carpetes puídas. Druss levantou­-se de onde estava, olhou para Khalid adormecido, depois quase tropeçou enquanto se dirigia lá para fora. Diagoras, com a boca seca, a cabeça a latejar, seguiu-o saindo para a noite.

Druss endireitou-se e esticou os braços. -Raios, como estou can­sado-disse, quando Diagoras surgiu ao lado dele.

-Soube alguma coisa que valesse a pena? -perguntou o oficial drenai.

-Nada que não soubéssemos já sobre o Máscara de Ferro. Khalid nunca viu a fortaleza. Fica a mais de cento e sessenta quilómetros daqui. Ouviu falar do templo que Skilgannon procura. Ao que parece, houve um guerreiro que foi até lá quando Khalid era criança. Ele disse que o homem perdera a mão direita numa batalha. Foi pro­curar o templo e quando voltou a mão dele tornara a crescer.

-Impossível-contrapôs Diagoras.-Não passa de um mito. -Talvez-referiu Druss.-No entanto, há um pormenor in-

teressante. Ele disse que a mão do homem tinha uma cor diferente. Era de um vermelho mais carregado, como se tivesse sido escaldada. Khalid diz que a chegou a ver, e nunca mais se esqueceu.

-E o que o leva a acreditar na história? -Ela diz-me que existe pelo menos um fundo de verdade. Talvez

o homem não tivesse perdido a mão, mas ela tivesse sido mutilada. Não sei, moço. Mas Khalid diz que o templo não pode ser encontrado, a menos que a sacerdotisa queira que ele seja encontrado. Contou-me que ele próprio percorreu a zona e não viu nenhum sinal de um edi­fício. Não até se vir embora. Tinha subido em direcção a um desfila­deiro alto que conduzia a casa, e olhou para trás. E lá estava ele, brilhando ao luar. Ele jura ter palmilhado cada centímetro do fundo do vale. Não era possível ter-lhe escapado.

-E depois, ele voltou para trás? -perguntou Diagoras. -Não. Decidiu que não queria arriscar entrar num edifício que

aparecia e desaparecia. Uma figura esbelta desceu a montanha vinda da direcção do lago

escondido. Diagoras viu que c.·ra Garianne. Quando passou por eles, acenou-lhes. -Boa noite, Tio"-- saudou.

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-Boa noite, rapariga disse ele. -Dorme bem. -Será que me tornei invisível?-comentou Diagoras. Druss riu

à socapa. -Deve ser difícil para um mulherengo como ru, rapaz, ser igno­

rado desta maneira. Tenho de o admitir. Ela nunca me dirige a palavra. Isso é porque sabe que estás interessado nela. E não quer

am1gos. -Aposto que acabou de estar com Skilgannon - afirmou

Diagoras, com azedume. -Espero que sim, moço. Isso é porque ele não está minimamente

interessado nela. O que querem um do outro é simples e primitivo. Não cria laços e, por conseguinte, não existem perigos.

Diagoras olhou para o homem mais velho. Tenha cuidado, Druss. A sua imagem de simples soldado ficará arruinada se conti­nuar a revelar semelhantes conhecimentos.

Druss ficou calado, e Diagoras viu que ele olhava para as colinas cheias de sombras. -V ê alguma coisa? -Druss ignorou a pergunta e avançou para a carroça. Remexendo lá dentro, retirou Snaga.

-Onde está o rapaz? Diagoras encolheu os ombros.-Acho que se fartou da patuscada

e foi procurar um sítio onde dormir. -Encontra-o. Vou dar uma olhada àquela vertente. -O que foi que viu? insistiu Diagoras.

Apenas uma sombra. Mas tenho uma sensação inquietante. Dito aquilo, Druss afastou-se. Diagoras observou o acampamento,

e as silhuetas negras denteadas das colinas rochosas. A noite estava si­lenciosa e calma. Não soprava qualquer brisa pelo acampamento. Estrelas brilhantes decoravam o céu, como diamantes na areia. Diagoras não se sentira inquieto antes de Druss falar. Mas agora sim. O velho passara a maior parte da sua vida em situações de perigo. Adquirira um sexto sentido dele.

Diagoras soltou o sabre, depois começou a procurar Rabalyn.

Na vertente da montanha a oeste, Skílgannon saiu do túnel do lago e ficou ao luar. Respirou fundo. O seu corpo, liberto das tensões pelo facto de ter feito amor com Garianne, estava descontraído, os seus pen­samentos tranquilos. A mulher era um enigma, louca e distante quando sóbria, apaixonada e vulnerável quando ébria. Não haviam fa­lado quando ela chegara ao lago subterrâneo. Encaminhara-se vaci-

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lance para ele, depois lançara-lhe os braços à volta do pescoço. O beijo incendiara-lhe o sangue. Garianne não era Jianna, mas a sensação de lábios macios nos seus trouxera de volta as lembranças daquela noite inesquecível no bosque, depois de a ter salvo. Fora a única altura em que Jianna cedera à paixão. Recordava cada pormenor- o murmú­rio da brisa nocturna nos ramos por cima deles, o cheiro a erva-ci­dreira no ar, a sensação da pele dela a pressionar a sua. E depois, a forma como se aninhara junto de si, colocando a coxa direita por cima dele, a mão acariciando-lhe a face. A lembrança era quase insuporta­velmente terna. Encheu-o simultaneamente de desejo e tristeza.

Com Garianne não existia afecto. Ela não lhe acariciara o rosto, nem se aninhara junto a ele. Esgotada a sua paixão, retirara-se, ves­tira-se rapidamente e fora-se embora sem dizer uma palavra. Ele não fizera nada para a impedir. Haviam ambos tirado tudo o que precisa­vam um do outro. Era desnecessário prolongar o momento.

Skilgannon abandonou a entrada da gruta e olhou para a colónia. Preparava-se para descer em direcção às tendas quando estacou. A des­contracção evaporou-se. A noite estava silenciosa, e não se vislumbrava qualquer ameaça. Mesmo assim, deixou-se ficar onde estava, perscru­tando as vertentes. Viu Druss encaminhar-se premeditadamente para leste, de machado na mão. Mais abaixo, avistou Diagoras, que se deslocava por entre as tendas. Chegou-lhe um sopro de brisa. Fez-se acompanhar de um leve odor, almiscarado e fétido. Erguendo a mão di­reita, Skilgannon puxou de uma das espadas. Olhando para a esquerda, viu um aglomerado de pedregulhos, o maior com mais de três metros de altura. Fechou os olhos, concentrando-se no ouvido. Não havia nada. No entanto, não descontraiu. Levando a mão atrás, puxou da segunda espada, e manteve-se imóvel como uma estátua. A brisa voltou a soprar, acariciando-lhe a nuca. Desta vez, o cheiro era mais forte.

Skilgannon virou-se. Um animal enorme ergueu-se por detrás dele e saltou. Os seus

olhos vermelhos brilharam, e as suas mandíbulas abriram-se, mos­trando filas de presas reluzentes.

As Espadas da Noite e do Dia dardejaram, a primeira golpeando ·o pescoço imenso, a segunda penetrando o peito peludo e cravando­

•le no coração. O peso do ataque do animal atirou-o para trás, e caí­ram juntos na vertente, rebolando. Largando a Espada da Noite, Skilgannon libertou-se com um pontapé do animal que se agitava e levantou-se. Começaram a ouvir-se gritos lá em baixo na colónia. Skilgannon ignorou-os, cravundo o nlhur na entrada da caverna.

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Não apareceram outras criaturas. Olhou para o animal que apu­nhalara. Já não se mexia. Cautelosamente, aproximou-se dele. O Ambígeno estava deitado de costas, os olhos mortos abertos para o céu. Agarrando o punho da espada que lhe saía do peito, Skilgannon retirou-a.

Chegou lá de baixo do acampamento o som de gritos. Skilgannon conseguiu ver três animais. Um rasgara a superfície de uma tenda e aparecera do outro lado da colónia, o tecido da tenda preso ao dorso como se arrastasse um manto. Acocorou-se sobre um tribalista que caíra. As presas esmagaram o crânio do homem. Um pouco para a es­querda, Diagoras tentava em vão combater um imenso Ambígeno cor­cunda. O sabre de cavalaria era de pouca utilidade. Skilgannon começou a correr vertente abaixo em direcção à luta. Entretanto, viu Rabalyn aparecer por detrás do Ambígeno, cravando a espada curta no dorso do animal.

Surgiram outras criaturas. Jared e Nian apareceram e atacaram-nas. As suas espadas compridas foram mais eficazes do que o sabre de Diagoras, e repeliram os Ambígenos. Khalid Khan apareceu e começou a gritar ordens aos seus homens. Teve por efeito vencer o pânico, e al­guns dos guerreiros correram a buscar os arcos e as lanças. Skilgannon viu Diagoras tentar estocar no peito um Ambígeno que avançava. A lâ­mina fez ricochete no vigoroso esterno. Diagoras foi arremessado ao ar por um golpe inesperado da criatura. Skilgannon acorreu. O animal çon­vergiu para ele, as presas direitas à sua garganta. Skilgannon apoiou-se num joelho e arremessou a Espada dourada do Dia para cortar o pes­coço do animal. O sangue jorrou e a criatura cambaleou para a direita. Nian saltou para ela, fazendo descer a sua espada comprida num golpe com ambas as mãos que rachou o crânio do Ambígeno.

Outro animal atirou-se a Skilgannon. Apareceu uma flecha de besta no seu olho direito. A cabeçorra deu um esticão, e saiu-lhe da garganta um rugido aterrador. Uma segunda flecha atingiu-o no peito, mas não penetrou fundo. Skilgannon correu para ele, enterrando a lâmina no ventre do animal e fazendo-a subir. Diagoras estava novamente de pé. Skilgannon viu-o debruçado sobre a forma inerte de Rabalyn.

Garianne, recarregando a besta, passou acelerada por Skilgannon, disparando uma flecha no dorso de outra criatura. O Ambígeno em­pinou-se, depois atacou a mulher. Garianne não arredou pé. Quando o animal estava quase sobre ela, levantou o braço, disparando a se­gunda flecha na sua boca feroz. A ponta de ferro atravessou cartila­gem e osso, furando o cérebro. Na agonia da morte, atacou. Garianne

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foi projectada. Então, a criatura tombou. Skilgannon saltou por cima do corpo em queda e correu para o Ambígeno ainda enredado na tenda destruída. O animal levantou-se do corpo mutilado sobre o qual se alimentava e afastou-se.

Outro Ambígeno saltou da carroça e emitiu um rugido. Três outros acorreram. Skilgannon virou-se para os enfrentar.

Então, com um grito de guerra retumbante, Druss, a Lenda, saiu da escuridão, Snaga esmigalhando o crânio da criatura. Skilgannon veio em auxílio do homem do machado. Jared e Nian seguiram-no. Druss matou um segundo, e Skilgannon um terceiro, antes de o Ambígeno sobrevivente se virar e fugir, embrenhando-se na noite. Relanceando a colónia, Skilgannon viu o Ambígeno com a tenda-manto ser cercado por tribalistas com arcos. Tinha o pêlo cravado de flechas. Tentou ata­car, mas prendeu a pata dianteira no resto da tenda e tombou. Khalid Khan saltou para ele, cravando a sua espada curva no pescoço da cria­tura. Empinou-se, arremessando o velho líder ao ar. Mais flechas se enterraram nele. O Ambígeno vacilou, depois caiu por terra. Os tri­balistas rodearam o animal, cravando facas e espadas na sua carne.

Por um instante reinou o silêncio. Depois, algumas das mulheres, ao identificarem os entes queridos mortos, começaram a lamentar-se, o som ecoando pelas colinas.

Skilgannon limpou as suas espadas e embainhou-as. Druss voltou ao local onde Diagoras estava ajoelhado ao lado de Rabalyn, que continuava desmaiado. -Ele está vivo? -perguntou o homem do machado.

-Sim. Tem o nariz partido. Teve sorte. As garras não lhe acerta­ram. Acho que foi o antebraço do animal que lhe bateu.

- Isso foi porque ele estava a atacar o Ambígeno -disse Druss. -Avançando. Se tivesse recuado, as garras rasgar-lhe-iam a garganta. A coragem manteve-o vivo.

-Ele é um rapaz corajoso- concordou Diagoras. -No en­tanto, é demasiado jovem e inexperiente, Druss. Ele não devia estar connosco.

- Há-de aprender -contrapôs Druss. -Tem um ferimento nas costas - referiu Skilgannon, aproxi-

mando-se do homem do machado. -Não é profundo. - Druss bateu nas protecções de aço prate­

ado nos ombros do seu justilho preto. -Estas receberam a maior parte do golpe. -Os i rmãos Jared t.' Nian acorreram.

-Acha que eles vol tarãot ---- pt.•r�otuntou Jarcd.

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Druss abanou a cabeça e olhou para as colinas. - Agora já são muito poucos. Matei dois antes de voltar para aqui. Acho que vão se­guir, em busca de presas mais fáceis. - Parecia abstracto.

- O que se passa? - perguntou Diagoras, levantando-se de ao pé de Rabalyn, ainda sem sentidos.

-Uma coisa muito estranha- afirmou Druss. -Subi às coli­nas. Depois três deles atacaram-me. Matei o primeiro depressa, mas o segundo atirou-me ao chão. - Calou-se, recordando a cena. -Apanharam-me. Sem dúvida. Depois um quarto animal atacou-os. Grande e cinzento. Avançou apenas, dispersando-os. Consegui pôr-me em pé. Matei um segundo. O cinzento dilacerou a garganta do ter­ceiro. Depois deixou-se ficar ali. Soube que não me ia atacar. Não faço ideia de como o percebi. Olhámos um para o outro, depois ele soltou um grito de pura angústia e fugiu. Ouvi então o ataque ao acampa­mento, por isso voltei.

- Acha que era Orastes? - perguntou Diagoras. -Não sei. Não me ocorre outra razão para me ter salvo. Vou pro-

curá-lo. - Procurá-lo? - repetiu Diagoras. -Está louco? Não pode ter

a certeza de que ele tencionava salvá-lo. Estas criaturas não são ra­cionais, Druss. Atacarão e matarão à menor provocação. Talvez estivessem apenas a lutar para ver quem lhe ia comer o fígado.

-Talvez- admitiu o homem do machado.- Preciso de saber. Diagoras praguejou. Depois respirou fundo. - Oiça-me, meu

amigo. Se é Orastes não podemos fazer nada por ele. Disse que a Velha o deixou bem claro. Assim que estes pobres diabos são fundidos, não é possível voltar atrás. Por isso, o que vai fazer? Mantê-lo como ani­mal de estimação? Por Shemak, Druss! Não é bicho com que vá dar um passeio e lhe atire um pau.

-Vou levá-lo ao templo. Talvez eles possam . . . trazer Orastes de volta.

- Oh, entendo. Nesse caso está bem - concordou Diagoras, a sua voz irada. - Portanto, deixe-me ver se entendi. O nosso plano é capturar uma fera-homem, encontrar um templo, que pode ou não existir, depois pedir aos sacerdotes que curem um tumor e separem um lobo e um homem? E tudo isto antes de nós os dois atacarmos uma fortaleza e matarmos duas centenas de guerreiros e salvarmos uma criança? Esqueci-me de alguma coisa?

-Tenho esperança de que consigam ressuscitar os mortos acrescentou Skilgannon. Diagoras olhou para ele e pestanejou.

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'

-Trata-se de alguma brincadeira, não? -Não para mim. _,

- Ah, bem, nesse caso . .. pedirei um cavalo alado e um elmo dou-rado que me torne invisível. Voarei por cima da fortaleza e salvarei a criança sem que ninguém me veja.

-Eles conseguem fazer coisas extraordinárias- interveio Jared, avançando. Nian seguiu ao lado dele, agarrando a faixa no cinto de Jared. -Eu sei. Já lá estivemos antes.

- Já alguma vez viram o templo?- indagou Skilgannon. -Não me recordo muito bem- referiuJared.- O nosso pai levou-

-nos lá quando éramos muito pequenos. Não teríamos mais de três anos. -Estavam doentes? - inquiriu Diagoras. -Não, éramos bastante saudáveis. Mas estávamos unidos pela

cintura. Nascemos assim. A nossa mãe morreu do parto. O cirurgião tirou-nos do corpo morto dela. Éramos aberrações. Não me recordo muito bem daqueles primeiros anos. Mas lembro-me de nos olharem, de se rirem, de apontarem. Tudo o que recordo do templo era uma mulher com o crânio rapado. Tinha um rosto bondoso. O seu nome era Ustarte. Uma manhã acordei, e Nian já não estava ligado a mim. Estava deitado a meu lado, e tinham-nos envolvido em ligaduras. Recordo a dor da ferida.

Por um momento reinou o silêncio, depois Diagoras falou: -Vi as vossas cicatrizes, e percebi que os sacerdotes do templo devem ter cortado a vossa carne a fim de os separarem. Deve ter sido um feito incrível. - Virou-se para Druss. - Mas não conseguirão separar Orastes do lobo. Eles tornaram-se um só. Se pudessem separar um do outro sem cortar a carne, tê-lo-iam feito aos irmãos.

- Por outro lado - interveio Skilgannon -, Orastes e o lobo foram unidos por magia. Talvez seja possível inverter essa magia. Só o saberemos quando levarmos o animal para o templo.

Diagoras olhou para o grupo. Viu Garianne sentada numa pedra ali próximo. -Não sugeriste nada - disse-lhe, tendo o cuidado de não formular uma pergunta.

-Nós gostaríamos de voltar a ver Ustarte- disse ela. Naquele momento, Rabalyn gemeu. Druss ajoelhou ao lado dele.

- Como te sentes, moço? -Não consigo respirar pelo nariz, e dói-me. -Está partido. Consegues levantar-te? - Druss ajudou o rapaz a

pôr-se em pé. Rabalyn cambaleou ligeiramente, depois endireitou-se. Olhou à sua volta. - Demos cabo dt·lt-s�

29')

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-Sim, demos-disse Druss. -Fica quieto e inclina a cabeça para trás. -Estendendo a mão, Druss prendeu o nariz deformado do rapaz entre os dedos, depois torceu com força. Ouviu-se um estalido forte. Rabalyn gritou. - Pronto, agora já está direito - declarou Druss, batendo nas costas de Rabalyn. Este gemeu e afastou-se vaci­lante, caindo de joelhos e vomitando.

- É sempre bom ver o toque de mestre-observou Diagoras. -Então, como capturamos Orastes?

-Vou procurá-lo - anunciou Druss. -Os restantes esperem . .

por m1m aqlll. -Seria uma loucura ir sozinho, Homem do Machado - disse

Skilgannon. -Pode ser, mas se formos em grupo, Orastes evitar-nos-á. Acho

que uma parte dele me reconhece como amigo. Talvez eu consiga chegar até ele.

-Isso faz um certo sentido. No entanto, ainda andam por aí mais animais, Druss. O grupo pode ficar para trás, mas eu vou consigo.

Druss permaneceu em silêncio, pensando. Depois anuiu. -Quer que lhe cosa esse golpe nas costas antes de ir? - ofere­

ceu-se Diagoras. -Não, o sangue ajudará a atrair Orastes até mim. -Oh, excelente plano -afirmou Diagoras.

CAPÍTULO 16

A Lua estava alta e brilhante quando os dois guerreiros subiram a vertente da colina. Skilgannon olhou para o homem do machado. Parecia cansado e abatido, os olhos encovados. O próprio Skilgannon estava esgotado, e tinha metade da idade de Druss. Caminharam em silêncio durante um bocado, chegando finalmente a um afloramento de rocha próximo de uma superfície alta, cheia de cavernas.

-Palpita-me que estão lá dentro -afirmou Druss. -Quer entrar? -Vejamos o que acontece. -Druss deixou-se cair num pedre-

gulho e esfregou os olhos. Skilgannon olhou para ele. -Este Orastes significa imenso para si? -Não - respondeu Druss. -Ele era apenas um rapaz gordo

que conheci lá em Skeln. No entanto, gostava dele. Ele nunca devia ter sido soldado. Fiquei espantado por ter sobrevivido. A guerra é um animal curioso. As vezes leva os melhores e deixa ficar os piores. Houve alguns grandes combatentes em Skeln. Ceifados na flor da vida. Contudo, serei justo com Orastes. Ele cumpriu o seu dever.

-Não se pode exigir mais -disse Skilgannon. -Quem sou eu para o contestar? Vi-o poucas vezes depois disso.

O pai morreu e ele tornou-se Conde de Dros Purdol. Outra função para a qual não fora talhado. Pobre Orastes. Um fracasso em quase tudo o que fazia.

-Todos são bons em alguma coisa-referiu Skilgannon. -Sim, é verdade. Orastes foi um excelente pai. Adorava Elanin.

Era um regalo vê-los juntos. -E a mulher?

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Deixou-o. Gostaria de dizer que era uma mulher má, mas pre­sumo que Orastes fosse um marido fraco. Suponho que ela se tenha arrependido de abandonar a filha. Então, roubou-a enquanto Orastes estava fora de Purdol. Isso deve tê-lo dilacerado.

Uma brisa ligeira murmurou por entre as rochas. Skilgannon captou nela o odor rançoso de pêlo. Druss tinha razão. Os animais estavam próximo.

Constantemente alerta, os seus olhos perscrutando as rochas, sen­tou-se ao lado do homem do machado. Por conseguinte, Orastes veio a Tantria e pediu ajuda à Velha. E ela traiu-o. Diga-me, por que não se vingou dela?

-Não entro em guerra com mulheres, moço. -E, no entanto, elas possuem uma capacidade igualmente grande

para o mal. - É verdade, mas já estou demasiado velho para mudar. O Máscara

de Ferro destruiu Orastes. É o Máscara de Ferro quem terá de pagar. -Nesse caso, acha que Orastes continua a seguir a filha? -Sim, acho. Não sei quanto de Orastes sobrevive no animal.

Provavelmente nem sequer sabe por que se dirige para Pelucid. Mas é por isso que aqui está. A criança significava tudo para ele.

Os dois homens calaram-se, cada um perdido nos seus próprios pensamentos. O céu estava limpo, a lua alta e brilhante. Algo se moveu nas rochas. A Espada do Dia apareceu na mão de Skilgannon. Relaxou quando viu um pequeno lagarto correr para as sombras.

- Por que estás aqui, moço? - perguntou subitamente Druss. -Sabe porquê. Tenho esperança de conseguir trazer a minha mu-

lher de volta dos mortos. -O que quero dizer é por que estás aqui? Comigo, agora. Neste

lugar. Posso ter-me enganado a respeito de Orastes. Pode haver mais criaturas do que aquelas de que conseguimos dar conta. Esta luta não é tua. -Skilgannon preparava-se para dizer algo ligeiro quando Druss voltou a falar. -E não sejas irreverente, moço. O assunto é sério.

Skilgannon suspirou. - Você faz-me lembrar o meu pai. Eu era demasiado jovem para estar ao lado dele quando precisou de mim.

A morte traz sempre culpa-disse Druss. Levantou-se. Sou um bom juiz dos homens, Skilgannon. Acreditas nisso?

Acredito. -Então acredita em mim quando te digo que és melhor pessoa

do que pensas. Não podes remediar o mal que fizeste. Tudo o que podes fazer é assegurar que ele nunca mais se repita.

29H

-E como é que o faço? -Procura um código, moço. - Druss levantou Snaga. - E

agora chegou o momento de entrar naquelas cavernas. Não creio que Orastes venha ao nosso encontro.

Skilgannon olhou para a entrada mais próxima. Pareceu-lhe então que se assemelhava a uma boca escancarada. O medo afectou-o, mas puxou da segunda espada e seguiu o homem do machado em direc­ção à superfície do penhasco.

Para lá da entrada da caverna ficava um túnel tortuoso. O luar não penetrava no escuro mais do que alguns,.metros. Druss deu vários pas­sos em direcção ao escuro. Haverá claridade mais à frente-disse. -Toda a superfície do penhasco está cheia de cavernas e aberturas.

-Esperemos que sim - disse Skilgannon, seguindo-o pelo escuro. Progredindo mais um bocado, deixaram de ver o que quer que fosse, e Druss avançou com cautela, tacteando antes de cada passo. O fedor a pêlo de animal era agora mais forte, e um pouco lá à frente ouviram uma rosnadela cava.

Skilgannon embainhara uma das espadas e caminhava às cegas com uma mão no ombro de Druss. Viram lá adiante um ténue raio de luar, entrando por uma abertura num ângulo de quarenta e cinco graus. Lentamente, aproximaram-se dele. Contornaram uma cnrva li­geira. Podiam ver-se agora vários poços de luar, entrando por fissuras na superfície da rocha.

O túnel desembocou numa caverna. Pendiam estalactites do tecto abobadado. Podia tentar gritar o nome dele-sugeriu Skilgannon. -Talvez uma parte da sua mente ainda se lembre.

-Orastes! chamou Druss, a sua voz atroando e ecoando. É

Druss. Aparece meu amigo. Não te queremos fazer mal. Houve um movimento à direita. Skilgannon virou-se para lá. Saiu

das sombras uma criatura maciça, de mandíbulas abertas. Skilgannon saltou para o lado, a Espada dourada do Dia descrevendo um arco amplo e brilhante. A lâmina cortou o ombro da criatura e desceu pela clavícula vigorosa, saindo no peito. Não susteve o ataque, e o seu corpo possante colidiu com Skilgannon, atirando-o ao chão. Snaga subiu e desceu, enterrando-se no crânio do Ambígeno, que caiu no chão da caverna. Skilgannon rebolou, levantando-se e, nesse entretanto, puxou da Espada da Noite. O animal morto estava coberto de pêlo prero espesso. Skilgannon não soube se sentiu alívio por não ser Orastes, se ficou decepcionado. Se tivesse sido Orastes, poderiam abandonar este túmulo medonho.

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Orastes! gritou Druss. -Aparece. Sou eu, Druss. Moveu-se outra sombra. Skilgannon preparou-se para um ataque.

O luar incidiu num enorme animal cinzento, com ombros grandes curvados. Estava de pé junto a uma estalactite e fitava os dois homens, os seus olhos dourados brilhando ao luar.

-Viemos ajudar-te, Orastes disse Druss, pousando o machado e avançando. A criatura soltou uma rosnadela cava, e Skilgannon viu­-o preparar-se para atacar.

-Druss, tenha cuidado -avisou Skilgannon. -Sabemos que procuras Elanin referiu Druss. Ao som do

nome da raparíga, o animal pareceu estremecer. A sua cabeça maciça virou-se e soltou um uivo lancinante. - Ela está próximo - disse Druss. -Foi levada para uma cidadela. -A criatura recuou então alguns passos. Semicerrou os olhos. Preparava-se para atacar.

Diga outra vez o nome da rapariga, Druss - aconselhou Skilgannon.

-Elanin. A tua filha Elanin. Escuta-me, Orastes. Precisamos de salvar Elanin. O animal voltou a rugir, e Skilgannon quase julgou detectar angústia no som. Depois desferiu um soco numa estalactite, desfazendo-a. O animal refugiou-se nas sombras.

Druss afastou-se outro passo do seu machado. -Confia em mim, Orastes. Conhecemos um templo onde eles talvez te consigam trazer

de volta. Depois poderás vir connosco quando formos salvar Elanin. O animal cinzento rugiu e atacou. O ombro dele bateu em Druss,

levantando-o do chão. Depois caiu sobre Skilgannon, que se atirou para a direita, tombando sobre o ombro, rebolando e levantando-se. As espadas apareceram. Orastes ou não, matá-lo-ia se o atacasse. Mas isso não sucedeu. O Ambígeno refugiou-se no escuro. Druss fez men­ção de o seguir, mas Skilgannon atravessou-se-lhe no caminho.

-Não, Druss - disse. Até um herói devia saber quando

perdeu. Druss ficou parado por um momento, depois soltou um suspiro

profundo. -Era Orastes. Agora tenho a certeza absoluta.

-Fez tudo o que podia. -Não foi suficiente. Druss voltou para o sítio onde deixara

Snaga e apanhou-o. Voltemos para onde o ar é puro decidiu.

Durante os dois dias seguintes, Druss continuou a percorrer as montanhas à procura de Orastes. Desta vez foi sozinho. O grupo ficou na colónia com Khalid Khan. Diagoras, que possuía um cerro jeito

.)00

para lidar com feridas, ajudou a tratar os que tinham sido atacados. Os animais haviam morto sete homens e três mulheres, e outros oito apresentavam ferimentos, cinco dentadas e golpes, e três ossos frac­turados. Os nómadas não tentaram esfolar os animais mortos. Arrastaram-nos antes para fora do acampamento, cobriram-nos de matagal e pegaram-lhes fogo. Na manhã do terceiro dia, os homens de Khalid Khan começaram a desmontar as tendas.

Vamos avançar mais para as montanhas-disse Khalid Khan a Skilgannon. -Este passou a ser um local de mau agoiro.

Garianne chegou à colónia, trazendo um carneiro das montanhas aos ombros. Deixou-o com várias das mulheres nómadas, depois diri­giu-se a um sítio à sombra e sentou-se ao lado de Skilgannon.

-Precisamos de partir - disse. A Velha falou connosco. Disse-nos num sonho que se aproximam inimigos.

Skilgannon observou a jovem. Olhava para a frente, o rosto car­rancudo. Aprendera a não lhe fazer perguntas, por isso limitou-se a aguardar. -O xamã nadir com o Máscara de Ferro já sabe do Tio

Velho. Ele mandou cavaleiros para lhe prepararem uma cilada. Muitos cavaleiros. Chegarão aqui amanhã de manhã. A Velha diz para irmos para noroeste. Para deixarmos o Tio Velho entregue ao seu destino.

Ela disse a Druss que queria o Máscara de Ferro morto con-trapôs Skilgannon, escolhendo as palavras com cuidado. Esta é ... a causa ... do Tio Velho. No entanto, agora, ela quer vê-lo morto, para que possamos sobreviver. Acho isso muito estranho.

-Nós não sabemos o que ela pretende-disse Garianne. Só sabemos o que ela nos disse.

-Talvez fosse apenas um sonho, e a Velha não te aparecesse. -Era a Velha insistiu Garianne. -É assim que ela fala con-

nosco quando estamos longe.

Skilgannon acreditou nela, mas o conselho da Velha fazia pouco sentido. Se ela queria o Máscara de Ferro morto, conforme indicara, nesse caso por que encorajava o grupo a separar-se? Recostando-se na superfície da rocha, Skilgannon fechou os olhos. A Velha era um mis­tério obscuro. Viera em auxílio de Jianna, garantindo-lhe a fuga da capital. No entanto, que Skilgannon tivesse conhecimento, nunca viera reclamar o ouro que exigira pelo serviço. Talvez Jianna lhe hou­vesse pago em segredo. Em todas as histórias da Velha que conhecia, existia um factor em comum. A traição. Todavia, Jianna não sofrera semelhante destino. E por tJllt' motivo queria a bruxa o Máscara de Ferro morto? O que fizera de para mc·rcn·r o seu ódio? Não existiam

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respostas. Não dispunha de informações suficientes. O pedido dela para o grupo deixar Druss entregue ao seu destino significava que que­ria que eles sobrevivessem. Porquê? Agora irritado, abriu os olhos e observou o acampamento. A maioria das tendas fora desmanchada e enrolada. Os poucos animais de carga propriedade dos nómadas es­tavam a ser carregados.

-Nós não vamos abandonar Druss-disse ele. -Ainda bem-respondeu-lhe Garianne.-Nós gostamos do

Tio Velho. Continuando a ser cuidadoso com as palavras, Skilgannon falou de

novo. -No entanto, se eu partisse, terias vindo comigo. -Sim.

- Não, creio, por me amares. -Não. Nós não te amamos. Nós odiamos-te. - As palavras

foram proferidas sem paixão ou tristeza. Foram meramente ditas. Pareceu a Skilgannon que ela podia perfeitamente ter estado a falar de uma mudança no vento.

-Tu ficas porque a Velha te mandou. -Nós não desejamos continuar a falar-disse Garianne, levan-

tando-se delicadamente e afastando-se. Ele deixou-se ficar onde estava. O ódio dela não era surpresa. Sendo o Maldito, semeara o ódio por três nações. Cada homem, mulher ou criança que fora morto pelas suas tropas teria parentes ou amigos. Era bem mais fácil odiar um único general do que todo um exército sem rosto. Já o ouvira antes. Uma vez, nas suas viagens, sentara-se em silêncio numa taberna. Os homens perto de si falavam da guerra. «0 Maldito matou o meu filho», ouviu um homem dizer. Skilgannon escutara com atenção. Com o desenro­lar da conversa, ficara a saber que o rapaz fora morto numa escara­muça, a cerca de trinta quilómetros do campo de batalha onde Skilgannon combatera. Onde quer que fosse, ouvia as pessoas falar dos malefícios de o Maldito. Algumas das histórias estavam hedion­damente distorcidas, outras eram simplesmente ridículas. O Maldito

limara os dentes para ficarem aguçados e alimentava-se de carne hu­mana. Os seus olhos tinham ficado vermelhos como o sangue depois de vender a sua alma a um demónio. Eram cada vez mais as histórias, tornando-se míticas. Eis uma das razões por que podia viajar sem ser reconhecido. Quem suspeitaria do jovem bem-parecido de olhos azul­safira? Ficara a saber que as pessoas precisavam do mal para terem um rosto feio.

Skilgannon suspirou, o seu moral em baixo.

)02

Há um mês era um padre noviço numa comunidade tranquila, tendo deixado para trás os dias de guerra e morte. Apercebeu-se de que já não sentia saudades desses dias e, no entanto, havia um certo pesar por terem passado. Distraidamente, acariciou o medalhão à volta do seu pescoço. Mudaria alguma coisa se conseguisse restituir Dayan à vida? As suas culpas seriam menores? Skilgannon não sabia. -Tu mereces viver, Dayan -disse, em voz alta. Como sempre, os pensa­mentos sobre Dayan misturavam-se com as recordações de Jianna. Pôs-se em pé.

O conselho da Velha era bom. Devia deixar Druss entregue ao seu destino.

Skilgannon subiu a vertente da montanha e entrou na caverna do lago escondido. Estava fresco aqui, e nadou durante um bocado. Içando-se da água, sentou-se numa rocha. Depois daquela noite em que fizera amor comJianna na floresta, a sua vida mudara. Vivera ape­nas para o dia em que conseguisse restituir-lhe o trono. Olhando para o passado, sentiu-se simultaneamente tolo e ingénuo. Acreditara que, assim que ela estivesse segura, e o reino fosse dela, ficariam juntos mais uma vez. Skilgannon não se importava que ela não pudesse casar consigo. Permitira-se sonhar ser seu consorte, e seu amante. E não era mais do que isso. Um sonho ardente.

A verdade era que -se por acaso ela o amava -amava ainda mais o poder. Jianna nunca se daria por satisfeita. Se se tornasse rainha do mundo inteiro, ambicionaria as estrelas e sonharia em conquistar o céu.

Apercebera-se da dura realidade no dia em que tinham derrotado Bokram. Skilgannon conseguia ainda recordar o medo que sentira na noite anterior à última batalha. Mais uma vez, fora a Velha que estivera na sua origem. Aparecera no campo de batalha, passara os

guardas e as sentinelas, e entrara na tenda da rainha. Skilgannon estivera com Jianna, Askelus e Malanek, a discutir o rumo proposto para a batalha. Malanek levantara-se subitamente, puxando de um punhal. Jianna mandara-o sentar-se. Então, ela erguera-se e enca­minhara-se para a Velha, tomando-lhe a mão e beijando-a. A ideia ainda fazia Skilgannon estremecer. Que aqueles lábios belos pudessem ter tocado na pele de algo tão vil. -Bem-vinda- disse Jianna. -Venha, junte-se a nós.

-Não é preciso, minha querida. Não tenho cabeça para planos de batalha.

-Nesse caso, por que está aqui?- perguntara Skilgannon, a sua voz mais dura do que pretendl'ra.

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-Para te desejar sorte, claro. Li as runas. Amanhã será um dia

mau para Bokram. Pode até ser um dia mau para ti, Olek. Sabias que Boranius contratou um vidente? Lançou os ossos para ele. De acordo

com a sua previsão, Boranius matar-te-á amanhã. Mesmo assim, es­pero que estejas disposto a morrer pela tua rainha, Olek.

-Efectivamente estou. -Boranius tem também espadas de poder. Armas antigas que lhe

foram dadas por Bokram. Chamam-se as Espadas do Sangue e do Fogo. Gostaria de as ter adquirido. Grande parte da magia que usei para criar

as tuas próprias espadas baseou-se em fórmulas urdidas com Sangue e Fogo. Irás conhecê-las no campo de batalha. Até aí consegui ver.

-E o vidente estava certo? -perguntou Jianna. -Boranius

vai .. . conquistar?-acrescentou, não desejando falar abertamente da morte de Skilgannon.

A Velha encolheu os ombros. -O vidente já acertou antes. Talvez se engane desta.

-Nesse caso, tens de ficar de fora amanhã -referiu Jianna, virando-se para Skilgannon. -Não te quero perder, Olek.

A Velha sorriu. -Que comovente, minha querida. Mas se Olek não lutar, receio que a batalha seja uma derrota.

Fora naquele momento que Skilgannon ficara a saber que Jianna amava mais o poder do que o amava a ele. Viu o rosto dela mudar de

expressão. Olhou-o, à espera de que dissesse alguma coisa. -Lutarei -limitou-se a dizer. ] ianna protestou, apenas ligeira­

mente, e viu o alívio nos olhos dela. -E que combate será! -referiu a Velha, satisfeita. Depois fez

uma vénia a J ianna e abandonou a tenda. -Derrotá-lo-ás, Olek-disse Jianna. -Ninguém é tão bom

quanto tu. Skilgannon olhou para Malanek, que treinara Boranius. -Viu­

-nos aos dois. O que lhe parece? Malanek ficou constrangido. -Num combate, tudo pode acon­

tecer, Olek. Um homem pode tropeçar, ou estar mais fatigado do que

o adversário. A sua espada pode partir-se. A diferença é muito pouca. -Não tem respeito por mim, velho amigo? Malanek pareceu chocado. -É claro que tenho.

-Então não use palavras ambíguas. Diga o que pensa.

Malanek respirou fundo.-Não creio que o consiga vencer, Olek. Existe algo de inumano no homem. A sua imensa força, o peso dos seus músculos, dt·vcriam limitar-lhe a velocidade. No entanto, isso não

acontece. Ele é tremendamente rápido e absolutamente destemido. Deveria seguir o conselho da rainha e não participar amanhã. A Velha

está errada. Nós podemos vencer sem si.

O medo atacara-o em força na manhã seguinte. Estava prestes a concretizar o seu sonho. A rainha recuperaria o trono do pai, e ele, Skilgannon, tomá-la-ia mais uma vez nos braços. No entanto, um

vidente profetizara que Boranius o mataria. A ideia fê-lo estremecer.

Com a batalha no auge, Skilgannon vira Boranius. Lutava a pé, des­ferindo golpes com as espadas à esquerda e à direita, os homens a cair

diante dele. O tempo parou naquele momento. Cada instinto lhe dizia

para evitar o homem. Estava rodeado de soldados que acabariam por o derrubar. Eles que o façam. Depois ficarás livre!

O cobarde nunca fica livre, dissera de si para si, esporeando o cavalo

e dirigindo-se para o inimigo. Saltara da sela e gritara aos soldados para se afastarem. Eles obedeceram, e ele olhara nos olhos de Boranius. O guerreiro de cabelo louro sorrira-lhe. -Vieste competir outra vez

comigo, Olek? Tem cuidado. Desta vez não tenho o tornozelo mago­

ado. -Skilgannon puxara das espadas. Boranius dera uma gargalhada.

-Bonitas. São cópias, sabes. As originais estão nas minhas mãos. -Ergueu as Espadas do Sangue e do Fogo.-Vem até mim, Olek. Matar­

-te-ei um pouco de cada vez. Como matei os teus amigos. Oh, devias tê-los ouvido guinchar e suplicar.

-Não me contes. Mostra-me -disse Skilgannon. Boranius atacara com uma velocidade alucinante. Mesmo com o

aviso de Malanek sobre a velocidade incrível, o homem fora uma sur­

presa. Skilgannon esquivara-se desesperadamente, serpenteando e mo­vendo-se. Soube naqueles primeiros momentos que Boranius era melhor esgrimista, e que o vidente estava certo. Continuou a lutar,

parando os golpes e movendo-se, as Espadas do Sangue e do Fogo bri­

lhando ao procurarem a sua carne. Muitos dos soldados que assistiam viram que o seu general estava

condenado. Um deles levantou uma lança e arremessou-a. Atingiu

Boranius no cimo do ombro direito, surpreendendo-o. Skilgannon lançou um ataque, a Espada da Noite brilhando numa trajectória insensível até à garganta de Boranius. O guerreiro rebelde atirou-se para trás. A lâmina bateu no osso malar, cortando-lhe os lábios e o nariz.

A Espada do Dia mergulhou no peito de Boranius, e o rebelde caiu. O alívio sentido por Skilgannon foi colossal. A cavalaria inimiga

desencadeou um contra-ataque. Skilgannon ordenou aos soldados que aguardavam que reagrupassem l' rorrt·u para o seu cavalo. Passada uma

305

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hora, a batalha terminara. Bokram estava morto, a sua cabeça espe­tada numa lança, os seus soldados sobreviventes em fuga através dos vales.

Deveria ter sido o dia da sua maior vitória. Vingara Greavas, e ·Sperian, e Molaire. Devolvera a Jianna o seu lugar por direito.

E, no entanto, não comparecera no banquete de comemoração naquela noite. A rainha mandara-o antes partir em perseguição das tropas em fuga. Naquela noite, como veio mais tarde a saber, ela levara outro general para a sua cama, o príncipe Peshel Bar, cuja cavalaria aguentara o flanco direito, e cujo poder permitira a Jianna organizar o seu exército.

O mesmo Peshel Bar que ela mais tarde mandara matar. Levantando-se da beira do lago, Skilgannon vestiu-se e voltou para

o ar livre. Um comboio de nómadas embrenhava-se cada vez mais nas montanhas. Khalid Khan ficara para trás e conversava com Druss. Skilgannon desceu ao encontro deles.

Khalid Khan abraçou o homem do machado, depois virou-se e afas­tou-se. Diagoras, Rabalyn, Garianne e os gémeos estavam perto. Skilgannon aproximou-se de Druss.- Falou com Garianne?- per­guntou.

Druss anuiu. O seu rosto estava pálido da exaustão. Não dormia havia dias.- Aproximam-se guerreiros nadir. Ela diz que a Velha te aconselhou a seguires. Um bom conselho, moço.

- Não rejo a minha vida pelos conselhos dela. Sabemos de que direcção vêm. Irei bater o terreno. Encontrarei um campo de batalha que nos convenha.

Druss esboçou um esgar. - Ela diz que são cerca de trinta.

Tencionas atacar? - Tenciono vencer - disse Skilgannon. E partiu atrás de Khalid

Khan, indo interrogar o velho nómada sobre as estradas e os desfila­deiros a noroeste, e os poços e locais de acampamento que os Nadir procurariam no caminho até ali. Conversaram durante algum tempo, depois Skilgannon selou o seu cavalo e disse ao grupo que seguisse Khalid Khan até um acampamento cerca de treze quilómetros para noroeste. - Encontrar-me-ei lá convosco mais ao fim do dia - de­clarou.

Depois cavalgou até às colinas.

Seguindo o mnst·lho de Khalid Khan, Skilgannon tomou os ca­minhos dt• montanha em direcção ao norte, o percurso sempre a subir.

Fazia um calor insuportável ao sol, o ar pesado e soporífico à sombra. Era difícil a concentração. Skilgannon fez um esforço para se manter atento. Continuou a cavalgar, escolhendo um caminho em direcção a um cimo agudo que se erguia para lá das montanhas circundantes. Daqui, a terra descia abruptamente em direcção a noroeste, a estrada de montanha - que não era famosa - serpenteando numa série de semicírculos à volta dos flancos dos picos. Skilgannon desmontou e observou o relevo, recordando as descrições que Khalid Khan lhe fizera, fixando o terreno na mente.

Lá mais em baixo, pôde ver o sítio onde a estrada ia desembocar em terra plana antes de voltar a elevar-se, serpenteando e curvando­-se em colinas acidentadas e poeirentas. Aqui e ali havia pequenos grupos de árvores deformadas, demasiado poucas para proporcionarem cobertura ou uma linha de retirada segura. Voltando a montar, pros­seguiu, procurando locais que dessem cobertura ou permitissem um perímetro de defesa: algures de onde pudesse organizar um ataque­-surpresa. Contava apenas com os talentos de combate dele próprio, de Druss, Diagoras, Garianne e os gémeos. Talvez Khalid Khan es­colhesse lutar ao lado deles. Depois se veria. O rapaz Rabalyn era demasiado jovem e inexperiente. Qualquer guerreiro nadir o der­rubaria numa questão de segundos. Por conseguinte, seis contra trinta. Cinco adversários cada. Depois, havia outras complicações. Druss e os gémeos lutariam a pé, os Nadir montados, e provavelmente armados de arcos. Garianne bem podia ser mortífera com a pequena besta, mas só daria para matar dois inimigos, e não seis, nos primeiros momen­tos do conflito. Seria necessário Garianne retirar-se para um local seguro a fim de recarregar.

Considerando todos estes aspectos, Skilgannon continuou a caval­gar, perscrutando não só os campos mais próximos, mas também a estrada distante, procurando sinais dos Nadir. Se eles iam chegar ao local de acampamento pela manhã, provavelmente justificar-se-ia um acampamento nocturno e algum repouso. Era improvável que caval­gassem todo o dia e toda a noite antes de enfrentarem um homem como Druss. Muito embora não de todo impossível, admitiu.

Skilgannon nunca lutara contra os Nadir, mas, tal como a maioria dos soldados profissionais, debruçara-se sobre a raça deles. Um ramo do povo Chiatze, eram nómadas, vivendo nas vastas estepes do Gothir Setentrional. Perversos e belicosos, não se tinham revelado um perigo para civilizações como os Gorhir t' as nações mais ricas a sul deles. Isto devia-se ao facto de estarem ('OIISillntt·nwntt' t'm guerra umas com as

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outras, travando rixas sangrentas que enfraqueciam as tribos geração após geração. Lutavam principalmente a cavalo, sendo as suas mon­tadas os pequenos póneis resistentes das estepes. A sua arma preferida era o arco. Num espaço restrito usavam espadas curtas ou facas com­pridas. Ligeiramente armados - um escudo de couro endurecido e um elmo orlado de pele, por vezes de ferro, mas, novamente, sobre­tudo de couro ou madeira - moviam-se com rapidez e lutavam com uma fúria inigualada. Dizia-se que não temiam a morte, acreditando que os deuses recompensariam um guerreiro com grande riqueza e muitas mulheres na próxima vida.

Encontrando um esconderijo para a sua montada, Skilgannon ras­tejou até à extremidade de um cume alto e observou a estrada. O Sol estava agora a pôr-se, e continuava a não haver sinal do inimigo. Esperou, permitindo que a sua mente relaxasse. Ainda há não muito tempo tivera vinte mil soldados sob o seu comando, arqueiros, lan­ceiros, cavalaria, infantaria. Agora tinha cinco lutadores. Druss não constituía motivo de preocupação. Se se conseguisse aproximar o su­ficiente do inimigo, espalharia a carnificina entre ele. Diagoras? Duro, hábil e corajoso. Mas conseguiria enfrentar cinco guerreiros nadir endurecidos? Skilgannon tinha dúvidas. Depois havia os gémeos. Bons homens, mas, na verdade, nada de especial em termos de combate. Lutariam intensamente, e talvez pudessem responder por dois cada. Mais uma vez, se se aproximassem o suficiente. Garianne era mais difícil de avaliar, mas o instinto de Skilgannon dizia-lhe que ela seria suficientemente devastadora.

Viu poeira a noroeste. Protegendo os olhos do Sol poente à sua es­querda, concentrou-se na faixa distante. Uma coluna de cavaleiros descia a vertente da montanha. Olhando para a esquerda, localizou as rochas salientes, dentro das quais Khalid Khan dissera que havia água. Teriam os Nadir conhecimento disso? A coluna abrandou ao aproximar-se das rochas. Dois cavaleiros afastaram-se da coluna e desapareceram da vista de Skilgannon. Passados alguns momentos regressaram, e os homens na coluna desmontaram, levando os seus póneis até às rochas.

Skilgannon contou vinte e sete homens no grupo.

Recuando do cume, levantou-se e encaminhou-se para o local onde deixara o cavalo amarrado.

A escuridão estava agora a aumentar. Skilgannon sentou-se com as costas apoiadas numa rocha e descansou meia hora. A seguir montou o cavalo castrado t' partiu vertente abaixo até ao solo deserto, diri­gindo-se: lt·ntamt·ntt· para o oásis distante e o acampamento dos Nadir.

Com uma força de combate de seis, as suas opções eram poucas. Podiam recuar e tentar evitar o inimigo. O que só adiaria o inevitá­veL Ou podiam lutar. A dura realidade, porém, era que uma força nadir de quase trinta, uma vez em acção, venceria. Skilgannon ficara célebre como general não só pela sua intrepidez com a espada. Tinha uma mente arguta e uma percepção instintiva da táctica. A sua capa­cidade de detectar um ponto fraco nas formações inimigas tornara-se lendária. A presente situação, porém, proporcionava poucas oportu­nidades de usar essa perícia.

Prosseguiu. Teriam os Nadir enviado batedores para estarem de sentinela a inimigos? Afigurava-se improvável, mas mesmo assim manteve-se no solo baixo, cavalgando por entre vegetação alta sem­pre que possível. Parando num pequeno aglomerado de pinheiros a cerca de duzentos metros da entrada para as rochas, desmontou, amar­rando o cavalo. Pairava no ar o cheiro a fumo de madeira. Os Nadir tinham acendido uma fogueira. Skilgannon acocorou-se e fechou os olhos, apurando os sentidos. Passado um bocado, captou o aroma a carne cozinhada.

Seguindo a pé, acercou-se das rochas, subindo silenciosamente até mais acima do acampamento nadir. Havia duas fogueiras, uma dúzia de homens à volta de cada uma. Sobravam três. Skilgannon esperou. Apareceu outro homem vindo das sombras. Dali a instantes, surgiu um segundo. Este vinha nu, trazendo as roupas enroladas. Skilgannon calculou que tivesse ido nadar.

Afinal onde se encontrava o último homem? Estaria neste momento a avançar sorrateiramente para a posição de

Skilgannon? A resposta não demorou a chegar. Saiu um segundo homem nu do

lago nas rochas. Houve comentários grosseiros dos amigos. O homem vestiu-se rapidamente e aproximou-se das fogueiras.

Estavam à vista todos os vinte e sete Nadir. Skilgannon preparou-

-se para esperar. Passou uma hora. Alguns dos guerreiros, tendo comido, estende­

ram-se no solo e dormiram. Vários outros acocoraram-se num círculo e começaram a jogar com ossos das articulações dos dedos. Skilgannon ficou bastante informado a respeito deles. Não tinham colocado sen­tinelas e, por conseguinte, estavam confiantes de que nenhum perigo ameaçava. Por que haveria isso dt• suceder? Perseguiam- na pior das hipóteses - alguns nómadas t•, na mt·lhor, um único homem velho com um machado e o st·u compunht•íru. Por que haveriam de estar

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preocupados? Era vital, sabia Skilgannon, que os guerreiros mantives­sem a confiança. Só os homens confiantes alcançavam a vitória. O bom líder, porém, ficava atento ao movimento subtil entre a confiança e a arrogância. Um exército arrogante carregava as sementes da sua própria destruição. O segredo para os derrotar residia na capacidade de o ini­migo alimentar essas sementes, introduzir a dúvida e o medo.

Soube então o que tinha a fazer. Mas incomodava-o. Seria de alto risco, e poucas as hipóteses de so­

breviver. Durante mais uma hora delineou outras estratégias, mas nenhuma traria tão altas recompensas. Esgotadas todas as outras pos­sibilidades, começou a preparar-se, sentando-se em silêncio, de olhos fechados, instalando-se na ilusão de outro lugar. O medo e o stresse dissiparam-se. Levantando-se, puxou de ambas as espadas e desceu as rochas em silêncio.

Os Nadir tinham colocado uma sentinela à entrada do oásis. O homem estava sentado de costas para uma árvore, a cabeça pendu­rada. Skilgannon ajoelhou nas sombras, observando o homem durante alguns minutos. O Nadir não se mexeu. Dormia profundamente. Levantando-se do seu esconderijo, Skilgannon avançou sorrateira­mente. Tapou a boca do homem com a mão esquerda. A Espada da Noite cortou a garganta do Nadir. O sangue jorrou. O homem deu um esticão -e morreu.

Avançando até ao centro do acampamento, Skilgannon ficou pa­rado por um momento, depois respirou fundo. -Acordem! -gri­tou. Os homens atiraram os cobertores para trás, pondo-se em pé, os olhos ensonados. Skilgannon avançou para o primeiro. A Espada do Dia atravessou-lhe o pescoço, decapitando-o. Um segundo homem foi esventrado quando Skilgannon rodou e arremessou a Espada da Noite direita à barriga dele. Os guerreiros nadir procuraram as armas. Vários agarraram em espadas e precipitaram-se para o recém-chegado. Skilgannon saltou ao encontro deles, bloqueando e esquivando-se. A Espada da Noite cortou a jugular de um homem, e ele caiu sobre os seus camaradas. Depois Skilgannon estava no meio deles, as espa­das cravando-se na carne e cortando o osso.

Tombaram mercê da sua fúria. Girando nos calcanhares, Skilgannon correu para o local onde os Nadir tinham amarrado os póneis. Um guer­reiro precipitou-st· para o decapitar. Skilgannon passou por baixo de um golpe feroz, rodou sohr{· o ombro e apareceu a correr. Os póneis esta­vam em duas filas, ntda uma delas sustentada por uma corda que os prt·ndin. llnflumlo a h1mina na primeira corda, virou-se a tempo de parar

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uma estocada. A sua riposta enterrou a Espada do Dia no peito do homem. Os póneis dos Nadir relincharam e empinaram-se, soltando­-se. Recuando, Skilgannon enfiou a espada na segunda corda de pren­der, depois meteu-se no meio das montadas nervosas.

Embainhando uma das espadas, soltou um uivo de lobo estri­dente. Isto foi de mais para os póneis. O movimento súbito à volta deles e o cheiro a sangue deixou-os enervados. O uivo bestial bas­tou para os pôr em debandada. Os guerreiros nadir, tentando ainda alcançar Skilgannon, fizeram um esforço para impedir a fuga dos pó­neis. Skilgannon agarrou a crina de uma montada quando passou por ele e saltou para o seu dorso. Uma seta zuniu rente ao seu rosto. Soltando outro uivo, bateu com a parte plana da espada na garupa do pónei e galopou pelo acampamento. Mais duas setas passaram por ele a silvar. Uma terceira cravou-se na espádua do pónei, fazendo-o vacilar. Não chegou a cair, mas seguiu o resto da manada até solo deserto.

Skilgannon cavalgou até onde deixara o seu cavalo amarrado e saltou do pónei. Montando o seu cavalo castrado, virou-se e viu guer­reiros nadir a sair das rochas.

-Venham ter comigo amanhã, meus filhos-gritou. -Vol­taremos a dançar!

Fustigando o seu cavalo para um galope, afastou-se dos Nadir furiosos.

Tivera sorte, mas ainda se sentia desapontado. Acalentara a espe­rança de matar pelo menos sete inimigos, reduzindo as probabilida­des para o dia seguinte. Ao invés, matara apenas cinco, talvez seis. Vários outros ficaram feridos, mas os seus golpes podiam ser cosidos com rapidez suficiente. Duvidou de que as feridas constituíssem um óbice para eles. Seguindo para sueste, alcançou cerca de uma dúzia de póneis nadir e continuou a afastá-los das rochas, obrigando-os a dis­tanciar-se cada vez mais dos seus cavaleiros. Vários deles estavam ainda selados, e das suas selas pendiam arcos de corno e aljavas de setas. Skilgannon colocou-se ao lado das montadas, retirando as armas e enfiando-as na maçaneta da sua sela. Depois deixou os póneis e partiu para a estrada serpenteante da montanha, até ao local onde os outros o aguardariam.

Os Nadir tinham sido duros e rápidos. Haviam despertado do sono mais como animais do que homens, imediatamente alerta. Aquilo sur­preendera-o. Esperara consl·�uir murar mais deles enquanto passavam do sono ao estado vigil.

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Skilgannon continuou a cavalgar, observando a terra e planeando o próximo ataque.

Subsistia apenas uma questão importante. Que tipo de perdas teriam os Nadir de sofrer antes de se retirarem do combate? Restavam, de mo­mento, vinte e dois com que lutar. Quantos teriam os companheiros necessidade de matar? Mais dez? Quinze?

Viu Druss e os outros à espera num troço amplo da estrada. Saltando da sela, aproximou-se do homem do machado.

-Estás a sangrar, moço-disse ele.

Abrigado numa depressão côncava na superfície do penhasco, Diagoras ajoelhou atrás de Skilgannon, de pé, cosendo-lhe o golpe na região lombar. O luar incidia na tatuagem azul e dourada da águia, as suas asas fulgorosas estendendo-se pelas omoplatas de Skilgannon. Havia cicatrizes antigas no corpo do homem jovem, algumas dente­adas, outras lisas e direitas. Havia velhas feridas da perfuração de flechas ou setas. Diagoras puxou o último ponto, deu-lhe um nó, de­pois cortou o fio com o punhal. Skilgannon agradeceu-lhe e vestiu a camisa e o justilho sem mangas.

Diagoras colocou a agulha em forma de crescente e o restante fio na bolsa e sentou-se, escutando enquanto Skilgannon delineava o plano para a manhã. Referira pouco sobre a luta com os Nadir, limitando-se a dizer-lhes que entrara no acampamento e matara cinco. Fez com que parecesse pouco dramático, quase natural. Diagoras ficou impres­sionado. Nunca lutara com os Nadir, mas conhecia homens que o ti­nham feito. Ferozes e brutais, eram inimigos a temer. Skilgannon perguntou a Druss se tinha alguma ideia de quantos homens os Nadir teriam de perder antes de se retirarem. O velho guerreiro encolheu os ombros. - Depende - disse. Se o líder deles for destemido, podemos ter de os matar a todos. Se não for ... mais dez, talvez doze, mortos o convençam a retirar. É difícil de dizer no que se refere aos combatentes nadir. O chefe deles lá na fortaleza pode ser o tipo de homem que matará quaisquer sobreviventes que o decepcionem.

-Nesse caso, temos de planear matá-los todos - afirmou Skilgannon.

Diagoras engol iu um comentário sarcástico e permaneceu calado. Olhou para os outros. Os gémeos escutavam com atenção, muito em­bora o simplório tiwssc uma expressão perplexa no rosto. Não fazia ideia do (Jllt' rt•,dnwntt• se passava. Garianne parecia despreocupada com a pt·rspc:n ÍVil de.· dt•rrotar vinte guerreiros nadir, mas, por outro

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lado, sempre era uma criatura visionária, e mais do que um pouco louca. O rapaz, Rabalyn, sentado de costas para a superfície distante, parecia assustado mas decidido.

Skilgannon delineou a sua estratégia. Afigurou-se, a princípio, ex­traordinariamente simples e, no entanto, Diagoras, que se orgulhava da sua perícia táctica, não se lembrara de tal. Poucos homens o teriam feito. Skilgannon quis saber se alguém tinha perguntas a fazer. Houve algumas de Druss e uma de Jared. Estavam todos preocupados com a escolha do momento oportuno. Skilgannon olhou para Diagoras, que abanou a cabeça.

Não era a ocasião de salientar que não havia um plano alternativo, nem uma via de fuga. Evidentemente residia aí o perigo de uma es­tratégia com tamanha simplicidade. Era vencer ou morrer. Não havia meio termo. Nem factores de segurança.

Skilgannon deslocou-se até ao sítio onde fora colocado o saco de pele com a água. Pegando nele, bebeu abundantemente. Depois fez sinal a Diagoras e encaminhou-se para a estrada. Diagoras foi ter com ele.

-Agradeço o seu silêncio há pouco -disse Skilgannon. É um bom plano. -Olhou para a queda vertiginosa até ao

fundo do vale lá em baixo, depois recuou. -Mas sabe o que disse uma vez o General Egel sobre os planos?

- Só duram até começar a batalha -respondeu Skilgannon. Diagoras sorriu. Dedica-se ao estudo da história dos Drenai?

-Dedico-me ao estudo da guerra corrigiu Skilgannon. Sim, há muita coisa que pode correr mal e, mesmo que corra bem, é provável que soframos baixas.

Diagoras soltou de repente uma gargalhada. Skilgannon olhou-o com curiosidade. Onde está a piada?

-Não é óbvio? Uma mulher louca, um simplório e um rapaz de­sajeitado constituem metade da nossa força de combate. E estamos para aqui a falar do que poderia correr mal. -Skilgannon preparava­-se para responder, mas depois riu-se também.

Druss veio reunir-se-lhes. -O que estão os dois a discutir aqui? - perguntou.

-A estupidez que acompanha a guerra-referiu Diagoras. - Diagoras está convencido de que a nossa força não é tão boa

quanto deveria ser avançou Skilgannon. - É verdade disse Druss -, mas também só podemos lutar

com aquilo que temos. Já vi Gariunne e os gémeos em acção. Não nos deixarão ficar mal. E o rapu:t. rt·m mrugt•m. Não se pode pedir mais.

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-É tudo muito verdade - argumentou Diagoras, com um sor­riso irónico. -Mas nós não estamos preocupados com eles. É consigo.

Sejamos sinceros, Druss, você está um pouco velho e gordo para ter grande utilidade para guerreiros jovens e vigorosos como nós.

Druss aproximou-se e Diagoras foi levantado do chão. Quando se preparou para começar a debater-se, já tinha sido içado acima da cabeça do homem do machado. Druss agarrou-lhe o tornozelo, depois virou-o de pernas para o ar. Diagoras viu-se pendurado pela cabeça sobre uma queda de cento e oitenta metros. Virando a cabeça, olhou para cima.

Druss estava de pé, com os braços esticados, segurando-o pelos torno­zelos. - Pronto, pronto, Druss - disse -, não precisa de se zangar.

- Oh, eu não estou zangado, moço - retorquiu Druss, em tom amistoso.-Nós, os velhos, às vezes somos um pouco duros de ou­vido, e contigo a falar pelo rabo, não consegui perceber o que estavas a dizer. Agora, com o rabo no sítio onde estava a boca, deveria ser bem mais fácil. Diz lá.

-Estava a dizer a Skilgannon que é um privilégio poder viajar com um homem do seu prestígio.

Druss recuou e depositou Diagoras na rocha. O Drenai soltou um suspiro de alívio, depois levantou-se. - Acho que não tem grande sentido de humor, Cavalo Velho - disse-lhe.

-Não sou da mesma opinião - avançou Druss. -Ri-me tanto que quase te deixei cair.

Diagoras preparava-se para dizer algo mais quando olhou para o rosto do homem do machado. Ao luar, via-se-lhe uma película de suor na testa, e respirava com dificuldade. -Sente-se bem, meu amigo?

- indagou. - Apenas cansado- referiu Druss. -És mais pesado do que pa-

reces. - Com aquelas palavras, afastou-se dos dois guerreiros e vol­tou para onde os outros aguardavam. Diagoras viu-o massajar o antebraço esquerdo. Skilgannon veio colocar-se ao lado dele.

- O que o preocupa?- perguntou o Naashanita. -Druss não parece o mesmo. Em Skeln, tinha uma compleição

corada. Nestes últimos dias parece que envelheceu dez anos. A sua pele está macilenta.

-Ele é um homem velho - disse Skilgannon. - Pode ser forte, mas já conta meio século. Percorrer estas colinas e lutar com feras-ho­mens tira a fim�a a qualquer um.

- Provavl'imentc rem razão. Nenhum homem consegue lutar con­tra o tl'mpo. Quando precisamos de nos posicionar?

-Daqui a uma hora. Não mais do que isso. -Druss estendera--se na saliência e parecia dormir. Diagoras e Skilgannon avançaram mais pela estrada. Aqui e ali havia fissuras na superfície da rocha, algumas superficiais, outras profundas. A dado ponto, a estrada estreitava, depois alargava. A esquerda ficava a superfície de rocha vermelha alcantilada, à direita uma queda medonha. Diagoras obser­vou a zona e estremeceu.

-Fico sempre nervoso com as alturas- disse. -Eu também não gosto muito delas - concordou Skilgannon.

-Mas nesta situação, o terreno joga a nosso favor. E precisamos de todas as vantagens possíveis.

-Dizem que os Nadir são cavaleiros exímios. - Precisam de o ser - observou Skilgannon, carrancudo. Discutiram o plano durante algum tempo, e depois, como fazem

os guerreiros, falaram de dias melhores. Diagoras mencionou uma tia que dirigia um bordel. -Ela era maravilhosa - referiu. -Nada me agradava mais em criança do que esgueirar-me para a cidade e passar um dia com ela. A minha família nunca falava dela ... excepto o meu pai. Ficava absolutamente furioso quando descobria que eu a tinha ido visitar. Não sei o que o aborrecia mais, se o facto de ela ser prostituta, ou de ser mais rica do que o resto da família toda junta.

- Por que foi que ela se tornou prostituta? - indagou Skil­gannon. - Palpita-me que você vem de uma família de estirpe.

-Realmente não sei. Houve um escândalo quando ela era jovem. Foi mandada para Drenan em desgraça, e depois fugiu. Foi antes de eu nascer. Só alguns anos mais tarde é que ela apareceu.

Fizera fortuna, entretanto, e comprou uma casa enorme nos arredo­res da cidade. Era magnífica. Contratou arquitectos e jardineiros e transformou-a num palácio. Os jardins eram dignos de se ver. Lagos e fontes, e criaram-se salas a partir de arbustos e árvores. E ela tinha as raparigas mais maravilhosas. -Diagoras suspirou. -Vieram de todo o lado, Ventria, Mashrapur, Panthia. Havia até duas raparigas chiatze, de olhos negros e pele da cor do marfim. Digo-lhe que aquele sítio era como um paraíso. As vezes ainda sonho com ele.

- A sua tia ainda o possui? -Não. Ela morreu de uma febre há alguns anos. Logo depois de

Skeln. Até na morte houve escândalo. A amiga mais chegada da minha tia era uma mulher chamada Magatha. Era ventriana e, tal como a minha tia, fora prostituta. Matou-se no mesmo dia em que a minha tia morreu. Venerado Céu, aquilo musou agiração na sociedade elegante.

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- Por conseguinte, o bordel agora está fechado? Oh não. Ela deixou-mo, juntamente com toda a sua fortuna.

Promovi uma das mulheres de lá, e ela gere-o para mim. O seu pai deve estar muito satisfeito.

Diagoras soltou uma gargalhada. - Agrada a quase todos os homens da comunidade. É ... e afirmo-o com grande orgulho ... o melhor bordel do sul.

Não tardava muito para a alva. gannon.

H6

Está na hora anunciou Skil-

CAPÍTULO 17

Para Rabalyn, a noite foi passada num estado de pamco. Per­maneceu sentado enquanto os outros discutiam o combate que iria ter lugar no dia seguinte. As suas mãos tremiam, e entrelaçou-as com força, para que Druss não percebesse que estava assustado. O ataque dos animais ao acampamento fora súbito, e ele reagira bem. Druss elo­giara-o pela sua coragem. Mas agora, sentado à espera de ser atacado, sentia o estômago às voltas. Avistou Diagoras e Skilgannon a grace­jarem junto à saliência, e depois reparou que Druss pegara no oficial drenai, que se debatia, e suspendera-o da borda. Estes homens não tinham medo.

Rabalyn nada sabia de tácticas militares, mas ouvira o Irmão Lantern delinear o plano de ataque e parecera-lhe muito perigoso. No entanto, mais ninguém o referira, e achou que talvez a sua falta de conhecimentos o impedisse de ver que afinal era um plano excelente. Por isso ficou calado.

Os Nadir subiriam a estrada da montanha, passando pelo sítio onde Diagoras e os irmãos estavam escondidos numa fissura baixa. Depois, o Irmão Lantern e Druss atacá-los-iam pela frente. Ele e Garianne dis­parariam flechas contra os cavaleiros abrigados num aglomerado de pedregulhos por cima da estrada. Assim que o Irmão Lantern e Druss estivessem ocupados, Diagoras e os gémeos atacariam pela retaguarda .

. Ao que parecia, estes cinco lutadores dominariam então os vinte e tal tribalistas selvagens. Não fazia sentido para Rabalyn. Não consegui­riam os Nadir vencer os homens que os atacavam a pé? Não os espe­zinhariam até à morte?

Rabalyn tivera medo de: f(}rmular <."stas per�untas.

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Tudo o que sabia era que esta podia ser a sua última noite de vida, e apercebeu-se de que olhava ansiosamente para a beleza do céu noc­turno, desejando que lhe pudessem nascer asas e afastar-se a voar dos seus recews.

Druss regressara à superfície de rocha, estendera-se e adormecera. Rabalyn não compreendia como é que um homem que ia enfrentar uma batalha conseguia dormir. Deu consigo a pensar na Tia Athyla, e na casinha lá na aldeia. De bom grado teria dado dez anos da sua vida para regressar a casa, apenas preocupado com os possíveis raspa­netes do Velho Labbers por não fazer os trabalhos de casa. Ao invés, trazia uma espada à cinta e um arco curvo com uma aljava de setas de penas pretas.

O tempo passou, e o medo não diminuiu. Cresceu na sua barriga, fazendo com que as tremuras se agravassem. O Irmão Lantern voltou com Diagoras, e acordaram Druss. O velho sentou-se e esboçou um esgar. Rabalyn viu-o esfregar o braço esquerdo. O seu rosto estava ca­vado e pálido. Depois os irmãos aproximaram-se. Mais uma vez Nian segurava a faixa no cinto de Jared.

-Vamos lutar agora? -perguntou Nian. - Em breve. Mas não podemos fazer barulho-respondeu Jared,

batendo ao de leve no ombro do irmão. Diagoras e os gémeos deixaram então o grupo, regressando à es­

trada e desaparecendo de vista. O Irmão Lantern aproximou-se e ajoelhou ao lado de Rabalyn. -Como te sentes? -perguntou.

-Bem-mentiu Rabalyn, não querendo cobrir-se de vergonha ao admitir o seu terror. O Irmão Lantern olhou-o com atenção.

-Vem comigo. Vou mostrar-te de onde quero que dispares. Rabalyn pôs-se em pé. As suas pernas vacilaram. Enquanto seguia

o Irmão Lantern, Druss chamou-o. - Esqueceste-te do arco, moço. -Corando de embaraço, Rabalyn apanhou o arco e a aljava e correu para alcançar o Irmão Lantern. Caminharam até ao sítio de um desli­zamento de terras recente. Vários pedregulhos enormes tinham caído sobre a estrada. O Irmão Lantern escalou o primeiro, estendendo a mão a Rabalyn para o puxar. -Aqui tens boa cobertura, Rabalyn. Não te mostres demasiadas vezes. Dispara quando puderes, depois volta a baixar-te.

-Onde estará Garianne? -Ela estará no solo por baixo de ti. Ela dispara melhor. -Sorriu.

- Tem menos probabilidades de atirar uma seta a um de nós. Mantém as tuas setas apontadas ao centro dos cavaleiros.

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-Ao centro. Sim. -Estás assustado? -Não. Estou óptimo. - Não é crime estar assustado, Rabalyn. Eu estou assustado.

Diagoras está assustado. Qualquer um com inteligência estaria as­sustado. O medo é necessário. Serve para nos manter vivos, para nos avisar de que devemos evitar o perigo. O maior instinto que temos é a conservação da própria vida. Cada bocadinho desse instinto diz-nos que seria mais seguro fugir do que ficar.

-Então porque não fugimos? -perguntou Rabalyn, com maior ênfase do que pretendia.

-Porque isso só nos salvaria hoje. Amanhã o inimigo viria de novo, e o terreno seria mais adequado para eles do que para nós. Por isso aqui estamos. Aqui lutamos.

-Podíamos morrer aqui - referiu Rabalyn, cheio de infeli­cidade.

- Sim, podíamos morrer. Alguns de nós podem mesmo. Mantém--te a salvo aqui. Não te arrisques a descer seja por que motivo f(Jr. Entendeste?

-Sim. -Óptimo. -Druss está bem? O Irmão Lantern olhou para lá. -Estou apreensivo com ele. Algo

o preocupa. Agora não me posso debruçar sobre o assunto. Os Nadir estarão aqui não tarda, e tenho de ir ao encontro deles.

-Julguei que fosse ficar com Druss. -E vou. Procura não me atingires quando eu regressar. O Irmão Lantern desceu os pedregulhos, saltando os últimos me­

tros para o chão. Garianne estava à espera ao fundo, a besta pendendo­-lhe do cinto, um arco nadir nas mãos. Rabalyn ouviu o Irmão Lantern falar com ela.-Protege o Tio Velho-disse-lhe.

Depois foi-se embora. Passados momentos passou por eles a cavalo. O dia estava a raiar.

Skilgannon voltou a percorrer a estrada rochosa, passando pela fis-. sura onde Diagoras, Jared e Nian estavam escondidos. Quando isso

sucedeu Nian gritou: -Está ali Skilgannon! Olá! -Quando passou, Skilgannon ouviu Jared mandar o irmão ficar calado. A raiva acen­deu-se transitoriamente no coração dele, e depois o humor negro da situação relaxou-o. Dia�oras tinha razão . Um simplório, uma louca e

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um rapaz assustado constituíam metade do exército de Skilgannon. Depois havia Druss. Algures, os velhos deuses estariam a rir-se.

Abrandou o cavalo num pedaço íngreme a descer, depois fê-lo parar quando a estrada alargou. Espreitando por cima da saliência, pôde ver os Nadir numa curva da estrada lá ao fundo. Eram apenas dezanove. Foi um pequeno alívio. Os homens que ferira deviam ter ficado pior do que supusera.

Tirando o arco roubado aos Nadir da maçaneta da sela, colocou uma seta. Era pouco provável que fosse causar danos a esta distância, mas queria que soubessem que estava ali. Retesando a corda, disparou-a. A seta partiu direita, mas falhou a pontaria. Bateu na estrada antes do cavaleiro da frente. O Nadir puxou as rédeas e olhou para cima no mo­mento em que Skilgannon disparou uma segunda seta. Falhou também.

Bom dia, meus filhos gritou-lhes. Vários dos cavaleiros retesa-ram os seus arcos, enviando setas pretas a sibilar direitas a ele. A ele­vação aumentava demasiado o alcance, as setas não chegando ao ponto pretendido. -Têm de se aproximar mais -gritou. -Venham cá.

-Mandou-lhes outra seta a zunir pelo ar. Esta atravessou o antebraço de um guerreiro. Os Nadir esporearam as suas montadas e galoparam em direcção à curva pronunciada na estrada que os levaria até ele.

Esperou calmamente, outra seta a postos. Começava a acostumar­-se ao arco. Era mais forte do que a princípio supusera. Quando os Nadir contornaram a curva, disparou contra o guerreiro da frente. O homem tentou desviar a sua montada, mas só conseguiu fazer com que ela se empinasse. A seta atravessou a garganta do pónei e ele caiu.

Volteando o cavalo castrado, Skilgannon subiu a estrada, os Nadir seguindo-o próximo. Passaram por ele flechas. Lá em cima, viu Druss de pé, o machado na mão. Depois Garianne mostrou-se. Disparou uma flecha que passou por Skilgannon. A seguir outra. Colocando-se ao lado de Druss, saltou da sela, batendo na garupa do cavalo e mandando-o em corrida de volta pelo trilho. Puxando de ambas as espadas, virou-se e correu para os tribal is tas que se aproximavam. Uma seta cravou-se na gola do seu justilho, rasgando a pele. Druss soltou um grito de guerra e atacou os Nadir, o seu machado fendendo o peito de um homem, ca­tapultando-o da sela. Skilgannon enterrou a espada no ventre de outro. Os Nadir deitaram fora os arcos e pegaram nas espadas. Skilgannon cortou e trespassou. Um pónei virou-se para ele, arremessando-o ao chão, mas ele levantou-se rapidamente. Druss atingiu outro guerreiro com o seu machado. Skilgannon ouviu gritos sonoros vindos de trás dos cavaleiros nadir aglomerados e soube que Diagoras e os outros haviam

atacado pela retaguarda. Os Nadir tentaram voltar a formar, mas o novo ataque enervou alguns dos póneis que, ao tentarem fugir, se aproxima­ram demasiado do rebordo. Quatro cavaleiros nadir foram projectados pela borda. Alguns dos tribalistas saltaram das suas selas e começaram a lutar a pé. Skilgannon matou um com um golpe de revés na garganta. Um segundo atacou. Apareceu uma flecha no seu peito, e ele estacou, antes de cair de joelhos. Três cavaleiros avançaram para Druss. Skilgannon viu o velho guerreiro vacilar enquanto esperava que eles vi­essem. Depois os seus joelhos vergaram. Os cavaleiros passaram por ele, atroadores, direitos a Garianne.

Ela atingiu o primeiro. Depois os outros dois estavam sobre ela. Um atirou-se da sua montada. Ele e Garianne caíram juntos. Skilgannon quis ir em auxílio dela, mas estava também a ser atacado. Parando gol­pes e cutiladas de dois tribalistas, recuou -depois saltou para a frente e para a direita. A Espada do Dia cortou o esterno do primeiro Nadir, enquanto a Espada da Noite parou, com o braço lançado acima do ombro, um golpe do segundo guerreiro. O primeiro Nadir caiu, as suas mãos agarrando a espada que o empalava, tentando arrastar consigo Skilgannon. Largando o punho, Skilgannon parou um novo ataque do segundo homem, depois matou-o com uma riposta que lhe abriu a garganta. Druss fez um esforço para se levantar e voltou para junto de Garianne, a vacilar.

Skilgannon matou outro guerreiro, depois virou-se para seguir o homem do machado. Garianne estava caída por terra. A seu lado jazia a forma inerte de Rabalyn, a sua túnica coberta de sangue. Perto es­tavam três Nadir mortos.

Skilgannon praguejou, depois virou-se para a luta. Só que não havia luta. Diagoras e os irmãos encaminhavam-se para ele, passando pelos

corpos de doze guerreiros nadir. Escorria sangue de um golpe na testa de Diagoras. Jared ficara ferido no braço. Nian estava ileso.

Skilgannon correu para o sítio onde Druss estava ajoelhado ao pé do rapaz. O rosto do homem do machado estava pálido, os seus olhos encovados. Parecia ter dores e a sua respiração saía entrecortada. -Não os ... consegui ... alcançar- disse. Skilgannon ajoelhou ao lado

. de Garianne. Tinha um alto na têmpora, mas o pulso estava forte. Rabalyn fora ferido no peito. Embainhando a espada, Skilgannon abriu a túnica de Rabalyn. A ferida era profunda, e o sangue saía dela aos borbotões. Diagoras abeirou-se.

Perfurou-lhe o pulmão disst•. --- Vamos tirá-lo do sol.

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Jared e Diagoras pegaram no rapaz, enquanto Nian ajoelhava ao lado de Garianne. Acariciando-lhe o rosto, o simplório chamou-a pelo nome.-Está a dormir?-perguntou.

- Sim - respondeu Skilgannon. - Leve-a para a caverna. Acordamo-la depois. - Mas Nian viu o irmão afastar-se levando Rabalyn. Gritou.

-Espera por mim, Jared! -gritou, a sua voz em pânico. Largando

a espada, correu para Jared e agarrou a faixa no cinto do irmão. Skil­gannon olhou para Druss, que se sentara entretanto na beira da estrada.

� O que aconteceu? -indagou Skilgannon. -Dor . . . no peito. Parece que tenho um touro sentado em cima.

Ficarei bem. Só preciso de descansar um pouco. - Sente dor no braço esquerdo?

-Tem estado dormente ultimamente. Já me sinto melhor. Dá-

-me só um momento. Skilgannon pegou em Garianne e levou-a para a caverna pouco pro­

funda, deitando-a na sombra. Apesar do sangue que jorrava ainda do golpe na testa, Diagoras cuidava do ferimento no peito do rapaz. Ele e Jared tinham colocado Rabalyn na posição sentada. O rapaz continuava inconsciente, o seu rosto muito macilento. Jared mantinha-o direito.

Skilgannon voltou para o sol, retirando a Espada do Dia do peito do Nadir morto. Vários dos póneis encontravam-se ainda junto à

beira da estrada. Dois deles tinham alforges de sela. Skilgannon abei­rou-se dos póneis, falando baixinho. Ainda estavam assustados. Inspeccionando as selas, encontrou uma que continha um frasco de prata gravada. Desrolhando-o, cheirou o conteúdo. Depois bebeu um gole. Ardeu e queimou. Uma bebida alcoólica qualquer. Voltou para o local onde Druss continuava sentado. -Talvez isto ajude-disse, oferecendo o frasco. Druss bebeu abundantemente.

- Há muito tempo que não saboreava disto -disse. -Chama--se Lyrrd.-Bebeu mais.-Não consegui alcançar o rapaz a tempo

-referiu.-Vi-o saltar para ajudar Garianne. Ele matou o primeiro Nadir. Apanhou-o de surpresa. O segundo apunhalou-o. Cheguei tarde de mais. Irá sobreviver?

-Não sei. O ferimento é grave. -Druss fez um esgar e gemeu.

-A dor no peito está a aumentar. -É um ataque cardíaco- disse Skilgannon. -Já os vi antes.

-Eu sei o que é!-respondeu Druss bruscamente.-Há sema-nas que acontece. Só não o queria aceitar.

-Deixe-me ajudá-lo a ir para a caverna.

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Druss sacudiu bruscamente a mão de Skilgannon e pôs-se em pé. - Vou descansar um bocado - disse. Deu dois passos, depois

vacilou. Skilgannon colocou-se ao lado dele. Com relutância, Druss aceitou a sua ajuda e juntos entraram na caverna.

Diagoras aproximou-se de Skilgannon. -Estanquei a ferida do rapaz, mas ele continua a sangrar por dentro. Não tenho capacidade para o curar.

- Vamos tratar de si - disse Skilgannon. O sangue ensopava a túnica de Diagoras do lado direito e continuava a fluir do golpe pro­fundo na testa. - Uma perda de sangue sem importância. A maio­ria das feridas superficiais parece pior do que é.

Skilgannon sorriu-lhe. Diagoras pareceu subitamente tímido. -Mas acho que já sabe isso, General.

Diagoras abriu a bolsa e retirou a sua agulha em forma de cres­cente e uma porção de fio, entregando-os a Skilgannon. Depois sentou-se, deixando que Skilgannon examinasse o golpe.- Vai até à

linha do cabelo. É daí que vem a maior parte do sangue. Vou ter dt•

rapar a zona à volta. - Diagoras retirou a faca de caça da bainha. Skilgannon pegou nela. Primeiro cortou o cabelo escuro comprido,

deixando uma zona de cabelo curto com sete centímetros e meio de comprimento e cinco de largura. A pele abrira aqui, e havia algum inchaço. Skilgannon tratou da ferida, precisando de puxar a pele com firmeza para a unir. Não era fácil.

- Se puxar com mais força, ficarei com a orelha no cimo da cabeça - queixou-se Diagoras.

Jared foi ter com eles.-Garianne está acordada-anunciou.­Acho que ela está bem. - Depois pegou na espada do irmão e vol­tou para a caverna.

- O que se passa com Druss? - perguntou Diagoras, quando Skilgannon acabou de dar o último ponto.

-Um ataque. O coração dele está cansado. Já padece há algumas semanas, segundo me disse.

Diagoras levantou-se e caminhou por entre os mortos. Skilgannon seguiu-o. - Mesmo com o coração doente, conseguiu matar cinco Nadir. Raios, ele é mesmo um fenómeno.

-Seis - corrigiu Skilgannon. -Ele voltou atrás para matar o homem que ferira Rabalyn.

-Aquilo é que é um velho rijo. -Será um ve lho morto st• não encontrarmos o templo. Já antes vi

estes ataques. O cora�·ão mui sr u�ucntu. Aqul'lt• corpo maciço precisa

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de um coração saudável para o alimentar. No seu estado, terá outro ataque não tardará muito. Não irá resistir.

O templo fica muito longe? - Khalid Khan falou em dois dias. Mas referia-se a um homem

a atravessar terreno difícil a pé. Com uma carroça? Não sei. Talvez três.

-O rapaz não durará três dias disse Diagoras. Ouviram o ruído de uma carroça a descer a estrada. Skilgannon er­

gueu o olhar e viu que era Khalid Khan que a conduzia. Vários dos seus homens e duas mulheres seguiam atrás. Skilgannon caminhou ao encontro dele. -Estas mulheres percebem de ferimentos anun­ciou Khalid Khan.

-Fico-lhe muito agradecido. -O Assassino de Prata está vivo? -Está. -É bom sabê-lo disse o velho. Tive um mau pressenti-

mento quando ele me mandou embora. Está doente? -Sim. Khalid Khan anuiu. -Guiá-los-ei até ao local onde vi o templo.

Temos de pedir à Fonte de Todas as Coisas que ele lá esteja desta vez. Há muito que Elanin perdera a esperança de a virem salvar. Mesmo

que o Tio Druss encontrasse esta fortaleza no meio das regiões desér­ticas, os homens ali eram de uma selvajaria terrível, guerreiros nadir com roupas fedorentas de pele de bode, e soldados de ar severo que a fitavam com fria indiferença, as suas vozes ásperas, os seus olhos cruéis. O Tio Druss não a conseguiria tirar deles. Um homem que era capaz de dobrar ferraduras não poderia competir com estes guerreiros terríveis.

E depois havia o Máscara de Ferro. Não lhe voltara a bater, pois tinha cuidado na presença dele. No

entanto, agredira a Mãe. Pusera-lhe os olhos negros e rasgara-lhe o lábio. Havia nódoas negras no corpo dela. E gritara com ela, cha­mando-lhe «porca inútil» e «rameira estúpida».

Elanin estava sentada no seu quarto, no alto da cidadela. Já não via a mãe havia cinco dias, nem fora autorizada a sair do quarto. Uma mulher nadir sem compaixão trazia-lhe duas refeições por dia e levava os bacios, despejando-os e substituindo-os. Elanin já não sonhava ser livre. Nas duas últimas semanas desenvolvera uma tremura nas mãos e nos braços, e passava grande parte do tempo à procura de sítios onde se esconder. Havia armários e espaços atrás de arcas altas. Uma vez

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até dera com o caminho para uma adega e escondera-se atrás dos to­néis. De cada vez a haviam encontrado, e agora estava trancada num pequeno quarto no cimo da cidadela. O quarto não era suficiente­mente grande para haver um bom esconderijo. Mas descobrira que, se se metesse no armário e fechasse a porta, a escuridão era bem-vinda e proporcionava-lhe uma sensação de protecção. Ficava aninhada horas neste pequeno espaço. Depois começou a fingir que tudo não passava de um sonho terrível, e que se se esforçasse o suficiente, acordaria no seu quarto soalheiro em Purdol. E o Pai estaria sentado ao pé da cama. Os dias passavam, e as suas fantasias aumentavam. Comia mecanica­mente, depois voltava para o seu refúgio.

Hoje o Máscara de Ferro viera ao quarto dela, escancarara a porta do armário e arrastara-a para a claridade. Enrolando as mãos no ca­belo louro dela agora oleoso, puxara-lhe a cabeça para trás e olhara­-a no rosto. Não estamos tão arrogantes agora, pois não? -perguntou. -Vais dizer-me que me odeias?

Elanin começou a tremer, contraindo a cabeça. O Máscara de Ferro riu-se dela. -Quero a minha mãe-conseguiu articular, as lágri­mas escorrendo-lhe pelo rosto.

-Está claro que queres, pequenina - disse, a sua voz subita­mente gentil. -Isso é perfeitamente natural. E hoje apetece-me ser generoso. Por isso deixei um presentinho na tua cama. Algo com que brincares. Algo da tua mãe.

Foi-se então embora, fechando a porta atrás de si. Ela ouviu o ruído da fechadura a correr.

Ainda a tremer, Elanin aproximou-se da cama. Estava lá uma bolsa. Pegou nela e puxou os cordões, despejando o conteúdo em cima da cama. Depois gritou e correu a esconder-se no armário.

Em cima da cama, o sangue dos dedos cortados da mãe começou a ensopar os lençóis sujos.

A floresta estava escura e sombria, mas Skilgannon conseguiu ver lá em cima um feixe de luar inclinado. Lentamente, encaminhou-se para ele, o co­ração a bater acelerado, o medo a crescer. Um movimento à sua esquerda fê­-lo girar, e captou um vislumbre de pêlo branco. As suas mãos buscaram as espadas, mas parou. O anseio de agarrar as armas de marfim era quase avas­salador. Continuou a caminhar.

E ali, iluminado pelo feixe de luar estava sentado um lobo enorme, o seu pêlo a brilhar, branco como d nwe pura. O animal olhava-o. Os seus olhos eram enormes e dourado.\. J>rpfliJ ltt'flflfOII-J'f! e fiVanplli para ele. O medo bro-

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tou de novo em si, passando a pânico. As espadas estavam agora nas suas mãos, e ergueu-as. Uma exultação selvagem inflamou-lhe o sangue. Soltou um grito de guerra - e as espadas desceram ...

Uma mão sacudiu-lhe o ombro, e endireitou-se, repelindo Diagoras. -O que está a fazer?-gritou.

-Acalme-se, homem. Estava a gritar enquanto dormia.

- Quase o apanhei - disse Skilgannon. - Podia ter dado cabo dele.

- Do que está a falar? Skilgannon piscou os olhos e passou a mão pelo rosto. -Não in­

teressa. Era apenas um sonho. Desculpe tê-lo incomodado. -Olhou à sua volta. Druss continuava a dormir junto a Rabalyn. Garianne es­tava acordava e olhava para ele, o seu rosto inexpressivo. Do outro lado do acampamento, os gémeos estavam sentados juntos e conversavam em voz baixa. Khalid Khan foi ter com Skilgannon, estendendo-lhe uma tigela com água fresca.

- São sonhos ou visões, guerreiro? inqumu. -Apenas sonhos - disse Skilgannon. Bebeu a água toda e res-

pirou fundo para se acalmar. Depois levantou-se e dirigiu-se para uma superfície plana nas rochas, onde se começou a espreguiçar. Então, com Diagoras e Khalid Khan a observá-lo, passou a efectuar uma série de movimentos lentos, como uma dança. Sentiu os pulmões expandir e o seu corpo relaxar.

Khalid Khan voltou para o seu cobertor, mas Diagoras foi até lá e sentou-se próximo.

O que é isso que está a fazer? - perguntou. É uma disciplina antiga. Traz o corpo de volta à harmonia.­

Skilgannon continuou durante um bocado, mas o facto de estar a ser observado impedia-o de alcançar a harmonia completa. Mesmo assim, estava mais relaxado quando se reuniu a Diagoras. -O rapaz está a aguentar-se bem observou.

- Estou mais optimista esta noite referiu Diagoras. Ele é jovem, e parece que a hemorragia está a diminuir.

O dia fora longo. Diagoras conduzira a carroça, enquanto Druss ia sentado lá atrás, conversando com Rabalyn, que estava debilitado, en­corajando-o, e contando-lhe histórias. Skilgannon cavalgara ao lado durante um bocado, escutando a conversa do velho guerreiro. As suas histórias não versavam guerras, mas terras e culturas diferentes. Falou

da mulher, Rowena, e do seu talento para curar. Bastava-lhe colocar as mãos nos doentes, e passados dias eles levantavam-se e iam traba ..

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lhar nos campos. Skilgannon olhou para o homem do machado, re­parando no rosto macilento e nos olhos negros e encovados, e desejou que a sua mulher pudesse estar ali naquele momento. Passado pouco tempo, Druss deitou-se e adormeceu, enquanto a carroça rolava len­tamente, embrenhando-se cada vez mais nas montanhas.

De acordo com Khalid Khan, tinham mais um dia de viagem. Chegariam ao local do templo no dia seguinte ao amanhecer.

Skilgannon afastou-se do sítio do acampamento, subindo uma rampa de rochas e olhando para os trilhos rochosos que haviam per­corrido naquele dia.-Acha que estamos a ser seguidos? -pergun­tou Diagoras, colocando-se ao lado dele. Skilgannon olhou à sua volta.

- Não sei. Havia menos Nadir no ataque do que estava à espera. -É uma pena o rapaz, mas o seu plano funcionou bem. -Sim. Muito embora não devesse disse Skilgannon. -

Qualquer plano que depende da estupidez do inimigo é imperfeito. Eles podiam ter-nos atacado em dois grupos. Podiam ter desmontado e avançado a pé. Podiam ter mandado um batedor na frente. Melhor ainda, podiam ter esperado até sermos obrigados a abandonar a estrada de montanha e entrar em terreno aberto.

Diagoras encolheu os ombros. - Mas não fizeram nenhuma des-sas coisas, e sobrevivemos.

-É verdade.

-O que tentava apanhar no seu sonho? Disse que estava quase. -Um lobo. Não é importante.

Diagoras levou a mão à parte do crânio rapada, passando cautelo­samente os dedos pelos pontos irregulares. Esta porcaria dá comi­chão que se farta afirmou. -Espero que o cabelo volte a crescer. Conheci um guerreiro que tinha uma longa cicatriz no crânio. O ca­belo embranqueceu à volta dela. Raios, ele era mesmo feio.

-A cicatriz tornou-o feio? Não de todo. Ele já não era muito atraente antes. A cicatriz con­

feriu-lhe de imediato a fealdade. Diagoras soltou uma gargalhada. - Era um sujeito muito infeliz. Sempre a queixar-se de que o des­tino lhe era adverso. Era capaz de citar um rol de azares que o tinham perseguido desde a infância. Uma noite, quando estava bastante de­primido, consegui que falasse comigo. Fiz-lhe ver que era importante ter uma perspectiva positiva da vida. Em vez de estar constantemente a repisar nas coisas más, um homem devia olhar para as bênçãos. Por exemplo, regressávamos dt· combater os Sathuli. Esses é que eram uma raça lutadora. Tínhamos pt·rdido vinrt· homens. No entanto, con-

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forme lhe fiz ver, ele não se incluía no número deles. Sobrevivera. E que isso era sorte. Digo-lhe que me esforcei durante aquela cami­nhada, e quando regressámos ao acampamento, ele estava mais animado. Agradeceu-me profusamente e disse que, a partir daquele momento, encararia a vida de modo diferente.

-E fê-lo? -Não. Voltámos para a nossa tenda para dormir e ele foi mor-

dido por uma cobra que se lhe enfiara nos cobertores enquanto está­vamos a conversar.

Uma cobra venenosa. Não. Acho que ele desejou que tivesse sido. Mordeu-o nos to­

mates. Agonizou durante semanas. Alguns homens são mesmo azarados -comentou Skilgannon. Lá isso é verdade! concordou Diagoras. Ficaram sentados em

silêncio durante algum tempo. Depois Diagoras voltou a falar. -Como foi que ganhou a inimizade da Rainha Bruxa?

- Deixei de a servir. É tão simples quanto isso, Diagoras. Vim--me embora. Os homens não viram as costas a Jianna. Tudo menos isso. Andam à volta dela, disputando a sua atenção. Se lhes sorri é como se tivessem tomado um narcótico.

-Ela enfeitiça-os? Skilgannon soltou uma gargalhada. - Claro. O maior feitiço de

todos. Ela é bela, Diagoras. E não me refiro a bonita ou atraente, ou sensuaL Ela é deslumbrante. Afirmo-o no sentido mais pleno. Um homem que olha para aquela beleza fica com os sentidos atordoados. Não consegue absorver tudo. Quando a vi pela primeira vez, estava a ser perseguida. Disfarçara-se de prostituta, o cabelo pintado de ama­relo e raiado de carmesim. Trazia um vestido barato, e nenhuma pin­tura no rosto. Mesmo assim fazia virar as cabeças. Respirou fundo. - Deu a volta à minha. Nunca mais fui o mesmo desde então. Quando estamos com ela, não temos olhos para mais nada. Quando nos afastamos dela, em pouco mais conseguimos pensar. Nos meus primeiros anos de padre, pensava nela quase todas as horas. Tentei dis­secar mentalmente onde residia a atracção dela. Eram os olhos ou a boca? Era a beleza dos seios dela, ou a curva das suas ancas? Eram as pernas dela, tão compridas e voluptuosas? No fim, apercebi-me de que era algo bem mais simples. Não é possível tê-la. Nenhum homem pode. Oh, podemos dormir com ela. Podemos tocar e beijar aqueles seios. Podt'mos abm<."á-la muito, pele com pele. Mas não a podemos ter. Ela (- irmlnmç;ível.

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-Conheço essa sensação - disse Diagoras. - Deparou-se-lhe uma mulher assim? -Não. Foi um cavalo. Tinha ido a um leilão, para comprar um

garanhão. Havia lá alguns animais magníficos. Não sabia muito bem como escolher para licitar. Dispunha de cerca de oitenta Raq para gas­tar, e isso daria para comprar quase qualquer cavalo em Drenan. Depois trouxeram um puro-sangue ventriano. Era magnífico. A mul­tidão silenciou-se. Era cinzento, com um pescoço arqueado e espáduas vigorosas. Era perfeito em cada linha. A licitação começou em cin­quenta Raq, mas parecia uma brincadeira. Em minutos chegara aos duzentos Raq, e continuava a subir. Fui licitando, apesar de saber que nunca arranjaria o dinheiro. Consegui subir até aos trezentos Raq. Foi arrematado por quatrocentos e trinta. Nunca esqueci aquele garanhão. Nunca esquecerei. Assim que o vi, soube que nunca poderia ser meu.

Skilgannon olhou para o oficial drenai. - Vocês, os Drenai, são um povo interessante. Refiro-me a uma mulher fabulosa, e você fala­-me de um cavalo. Agora percebo porque é que todas as vossas fábu­las e histórias são sobre guerras, e não sobre grandes amores.

Somos uma raça mais pragmática - concordou Diagoras. -Mas também nunca nenhum garanhão mandou assassinos matar alguém que fugiu dele. Nunca nenhum garanhão alguma vez se trans­formou de amante angelical em bruxa. E com um bom cavalo pode­mos dar um belo passeio de cada vez que o montamos. O cavalo não nos diz que tem uma dor de cabeça, ou que está zangado connosco porque chegámos tarde a casa.

Skilgannon soltou uma gargalhada. Você não tem alma, Drenai. -Tendo sido criado principalmente num bordel, não me deixo

cativar facilmente pela mera beleza. Muito embora tenha de admitir que acho Garianne mais do que um bocadinho apropriada, e sinto um certo ciúme quando ela o procura.

-Não chega a ser um elogio quando uma mulher precisa de estar embriagada para procurar a nossa atenção - observou Skilgannon, levantando-se da rocha. Diagoras reuniu-se-lhe enquanto voltavam juntos para o acampamento. Estavam já todos a dormir.

-Ficarei de vigia - afirmou Skilgannon. Vá dormir. - De bom grado - respondeu o Drenai, avançando para a es-

curidão. Para Rabalyn, a viagem pelas montanhas foi difícil. Só conseguia

respirar quando soerguido, t· havia uma pressão dolorosa e constante no peito e alto-ventre. Porl-m, niio t•ru insuportável. Uma vez, tivera

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uma dor de dentes que fora bem mais dolorosa. Contudo, ao pros­seguirem, surgiam constantemente rostos por cima dele, perguntando­-lhe como estava, e com ar circunspecto e preocupado. Diagoras, Jared e Skilgannon vinham inspeccioná-lo. Até Nian aparecera quando

· Rabalyn fora descido da carroça para uma paragem ao princípio da tarde à sombra de umas rochas altas.

-Imenso sangue-disse Nian.-A tua túnica está ensopada nele.

Lembra ... -se ... das estrelas? -perguntou Rabalyn, tendo de respirar depressa e superficialmente a fim de falar. Nian ficou atrapa­lhado. Sentou-se ao lado de Rabalyn, a cabeça inclinada para um dos lados.

- Não há estrelas de dia -referiu Nian. -A noite é das estrelas. Rabalyn fechou os olhos, e o simplório barbudo afastou-se. A maior

parte da conversa partiu de Druss. Rabalyn ficou satisfeito quando o homem do machado se sentou a seu lado na parte de trás da carroça. Era relaxante fechar os olhos e ouvir Druss falar-lhe de países longín­quos e viagens perigosas por mar. Nesta ocasião, quando Rabalyn abriu os olhos e contemplou o Drenai, viu que o rosto dele estava pá­lido e coberto de uma película de suor.

Sen ... te ... do ... res? -perguntou. -Já antes senti dores. Normalmente desaparecem, creio.

É o seu coração? -Sim. Tenho estado a pensar nele. Há dois meses, atravessei uma

aldeia que fora afectada por uma doença qualquer. Normalmente, não costumo adoecer. Mas dessa vez, sim. Dores de cabeça, dor no peito e uma incapacidade de conservar os alimentos cá dentro. Nunca mais fui o mesmo.

Rabalyn esboçou um sorriso fraco. - Onde está a piada, moço?

-Eu vi-o ... matar aquelas ... feras-homens. Julguei ... que fosse o ... homem mais forte ... de sempre.

-E sou -disse-lhe Druss. -Não te esqueças disso. -Eu ... vou ... morrer ... disto? -Não sei, Rabalyn. Já vi homens morrerem de fétidas minús-

culas, e outros sobreviver quando não de�eriam. Muitas vezes é um mistério. Mas uma coisa sei, é que tens de ter vontade de viver.

Não a tem ... toda a gente? -Sim, claro. Essa vontade, porém, tem de estar concentrada.

Alguns homens gritam e suplicam pela vida. Esgotam-se ... e mor-

rem na mesma. Outros, apesar de quererem viver, olham para as suas feridas ou as suas doenças, e desistem simplesmente. O se­gredo ... se existe realmente algum segredo ... é agarrarmo-nos à

vida, como se a segurássemos com força na palma da nossa mão. Diz ao teu corpo, baixinho, com firmeza, que aguente. Que se cure. Fica calmo.

-Fi ... carei. -Foi uma atitude corajosa, moço, saltares para vires ajudar

Garianne daquela maneira. Estou orgulhoso de ti. Por tua causa ela ainda está viva. Estavas a pensar no código, não estavas?

-Sim. Druss apoiou a sua manápula no braço de Rabalyn. -Há quem

diga que o que fizeste foi uma loucura. Muitos dir-te-iam que era preferível teres ficado naquela rocha, mantendo-te em segurança. Que é preferível viver muito tempo como um cobarde, do que pouco como um herói. Estão errados. O cobarde morre todos os dias. D<: cada vez que foge do perigo, e deixa os outros a sofrer no s<:u lugar. De cada vez que presencia uma injustiça e diz de si pata si: "Não tenho nada a ver com isso.» De cada vez que um homem se arrisca por outro, e sobrevive, torna-se mais do que era antes. Já te vi fazer isso três vezes. Uma, lá na mata, quando pegaste no meu machado. Outra no acampamento, quando os animais atacaram. Mas, a melhor de todas, foi quando saltaste daquela rocha para ajudar Garianne. Nenhum de nós vive para sempre, Rabalyn. Então, é mil vezes pre­ferível viver bem.

O sangue fluía mais uma vez da compressa presa ao peito de Rabalyn. Os dedos de Druss eram grossos de mais para desatar a li­gadura. Diagoras acercou-se e, enquanto desenrolava a ligadura, Druss fez pressão na ferida. Cheira-me ... a queijo afirmou Rabalyn.

Viu Diagoras trocar um olhar com Druss, mas nenhum deles falou. Sentando-o, aplicaram uma nova compressa, e apertaram as ligaduras com força. Diagoras deu-lhe água a beber. Depois voltaram a colocá­-lo na carroça.

-Temos de nos apressar -disse Diagoras. Os outros estavam a montar os cavalos. Diagoras saltou para o banco do condutor. Druss gemeu ao içar-se para o lado dele.

Rabalyn deixou-se dormir. Foi um sono caloroso e confortável. Viu a sua tia Athyla chamá-lo. Sorria. Correu para ela, e ela abraçou-o. Foi a sensação mais maravilhosa qu<: alguma vez tivera. Mergulhou no abraço dela com a alt'�ria do n·�n·ssu ao lar.

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-Maldito seja, Druss! exclamou Diagoras. Nunca deveria ter permitido que ele viesse!

Druss, a Lenda, encontrava-se junto à carroça, com o semblante carregado, a olhar para o corpo de Rabalyn. O rapaz parecia mais pe­queno na morte, curvado sobre a roda da carroça, um cobertor à volta dos seus ombros magros. Jared abeirou-se de Diagoras, tentando acalmá-lo, mas o oficial drenai perdera o controlo. Sacudindo a mão que o restringia, veio colocar-se diante do homem do machado. Foi o seu código que o matou. Valeu a pena?

Skilgannon interveio. -Deixe-o em paz, Diagoras! O oficial virou-se bruscamente, o seu rosto pálido, os olhos chispando. Deixe-o em paz? Porquê? Por que diz isso? Um rapaz morto pode

não significar muito para o homem que aniquilou homens e rapazes, mulheres e bebés de uma cidade inteira. Mas significa algo para mim.

Pelos vistos, demonstra que você é capaz de se comportar como um idiota ripostou Skilgannon. -Druss não o matou. Foi uma espada nadir que o matou. Sim, ele podia ter ficado para trás. Mellicane será uma cidade sitiada não tarda. A comida escasseará. Como iria so­breviver? E mesmo que conseguisse ganhar o indispensável para viver, quem nos garante que isso sucederia quando o exército naashanita entrasse lá dentro? Talvez a rainha fosse ordenar mais uma vez o mas­sacre de todos os seus habitantes. Você não sabe. Nenhum de nós sabe. De uma coisa temos a certeza, o rapaz era corajoso e apoiou os amigos, apesar de estar apavorado. Isso faz dele um herói.

Um herói morto! ripostou Diagoras. Sim, um herói morto. E nem todos os lamentos nem todas as

recriminações mudarão nada. Garianne aproximou-se de Druss, que estava encostado à carroça,

a sua respiração entrecortada. -O senhor está bem, Tio? -Sim, moça. Não te preocupes. O velho guerreiro olhou mais

uma vez para o rapaz, depois virou costas. Afastou-se lentamente até às rochas e sentou-se a alguma distância do grupo, perdido em pen­samentos.

Khalid Khan aproximou-se de Skilgannon. Era aqui que estava o templo-disse. Juro solenemente.

Skilgannon olhou à sua volta para os penhascos alcantilados. Não havia sinal de qualquer edifício. - Eu vinha daquela cumeada além

afirmou KhaliJ Khan, apontando para o caminho que tinham tra-zido. Quando olhei para trás, vi o templo, brilhando ao luar. Estava aninhado na montanha. Eu não minto, guerreiro.

-Vamos esperar pela Lua- decidiu Skilgannon. Garianne foi sentar-se ao pé de Druss, envolvendo-o com o braço, a cabeça no ombro dele. Jared e Nian aproximaram-se do corpo de Rabalyn. Nian ajoelhou e acariciou o cabelo do rapaz. Diagoras suspirou.

-Peço desculpa, Skilgannon -disse. -A raiva e a dor apode­raram-se de mim.

A raiva faz isso, se lhe dermos oportunidade Skilgannon.

Nunca se enraivece? -Às vezes. -Como é que a controla?

contrapôs

- Mato pessoas -respondeu Skilgannon, passando pelo oficial. Afastando-se, olhou para o céu, recordando as palavras da Velha. «0 templo que procuras fica em Pelucid, e perto da fortaleza. Não é fácil de encontrar. Não o conseguirás ver de dia. Procura a bifurcação mais profunda nas montanhas ocidentais, e espera até a Lua pairar entre as e.r­carpa.r. »

Conseguia ver a bifurcação nas montanhas, mas a Lua ainda não aparecera. Nesse momento, algo se moveu ao canto da sua visão. Skilgannon não reagiu com qualquer movimento súbito. Lentamente, virou-se e observou as rochas denteadas.

Soprou uma brisa suave. Fez-se acompanhar de um cheiro. Skilgannon voltou para o sítio onde Druss estava sentado. Conse-gue lutar? perguntou-lhe.

-Estou vivo, não estou? -resmungou o homem do machado. -Vai buscar o machado dele-disse Skilgannon a Garianne. Por

um momento, ela deitou-lhe um olhar furioso, depois correu para a carroça. Não foi capaz de erguer a arma maciça até à borda. Jared aju­dou-a. Garianne regressou com o machado. Druss tirou-lho. No mo­mento da passagem entre eles, o machado pareceu perder todo o seu peso. Druss pô-lo ao ombro, depois levantou-se.

- Nadir? -indagou o homem do machado. Não. Os animais voltaram.

Skilgannon puxou das espadas. Garianne colocou duas flechas na besta.

Cerca de vinte passos para sul uma forma cinzenta enorme saiu de­trás de um aglomerado de pedregulhos. Ficou de pé, a sua cabeçorra oscilando de um lado para o outro. Garianne levantou a besta.

- Não, rapariga interveio Druss. - É Orastes. -Pousando o machado, respirou fundo, dt•Jmis t•nnlminhou-se lentamente para a

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criatura. Skilgannon foi atrás do homem do machado, mas Druss fez­-lhe sinal para que parasse. - Desta vez não, moço. Ele não te conhece.

E se ele o atacar? Ignorando-o, Druss continuou a caminhar em direcção à criatura.

Soltou um rugido feroz, mas permaneceu onde estava. Druss come­çou a falar com ele, a sua voz baixa e calmante. -Há muito tempo que não te via, Orastes. Lembras-te daquele dia junto ao lago, quando Elanin me fez a coroa de flores? Hein? Alguma vez na vida tive um ar tão tolo? Julguei que fosses rebentar de tanto rir. Elanin está perto daqui. Tu sabes isso, não sabes? Nós vamos buscá-la, tu e eu. Encontraremos Elanin.

O animal empinou-se e uivou, o som ecoando misteriosamente pelas montanhas.

Sei que estás assustado, Orastes. Tudo parece estranho e dis­torcido. Não sabes onde estás. Não sabes o que és. Mas sabes quem é Elanin, não sabes? Sabes que tens de a encontrar. E tu conheces-me, Orastes. Tu conheces-me. Sou Druss. Sou teu amigo. Vou ajudar-te. Confias em mim, Orastes?

Os viajantes que assistiam permaneceram imóveis enquanto o homem do machado tocava no animaL Viram-no erguer a mão lenta­mente e apoiá-la no ombro da criatura, fazendo-lhe festas. O animal dei­xou-se escorregar lentamente pela superfície de um pedregulho, a sua cabeça grande apoiada na rocha. Druss coçou o pêlo, continuando a falar.

-Precisaste de ter fé para vires ter comigo, Orastes afirmou Druss.-Existe um templo mágico, dizem. Talvez eles possam ... tra­zer-te de volta. Depois procuraremos Elanin. Vem comigo. Confia em mim.

Druss afastou-se do animal e começou a caminhar na direcção de Skilgannon. O Ambígeno empinou-se, soltando um grito lancinante. Druss não olhou para trás, mas levantou a mão. -Vamos, Orastes. Volta para o mundo dos homens.

O animal ficou estático por um momento, depois saiu de trás das rochas e seguiu atrás do homem do machado, mantendo-se junto dele e rosnando quando se aproximaram dos outros. Visto de perto era ainda maior do que parecera. Garianne abeirou-se, e ele levantou-se nas patas traseiras e rugiu. Erguia-se acima de Druss, que estendeu a mão e lhe fez festas. -Fica calmo, Orastes -disse. São amigos.

Depois olhou para Garianne e os outros. -É melhor afastarem­-se dele.

-Não precisa de me dizer duas vezes referiu Dia�uras. Quando a Lua iluminou as escarpas ocidentais, o feitiço desapa­

receu. Skilgannon olhou surpreendido para o edifício maciço, com as suas

janelas, e colunatas, e torreões. Os portões abriram-se, e cinco sacerdotes vestidos de dourado

começaram a correr pelo solo rochoso.

Meia hora antes, a sacerdotisa Ustarte estivera à janela da torre alta, a olhar para o vale sombrio envolto pelo crepúsculo. O seu coração ficou triste quando viu as pessoas ali, reunidas à volta da carroça.

-Eles ainda não nos vêem - disse o auxiliar dela, o esbelto Weldi, com a sua túnica branca. Olhou-o, reparando nas rugas no seu rosto cheio de preocupação.

-Não-respondeu ela. -Só quando a Lua estiver mais alta. Estais cansada, Ustarte. Descansai um pouco.

Ela soltou então uma gargalhada, e os anos desapareceram do seu rosto.-Não estou cansada, Weldi. Estou velha.

Estamos todos a envelhecer, Sacerdotisa. Ustarte anuiu e, segurando as suas vestes de seda vermelha e

dourada com as suas mãos enluvadas para afastar a bainha do chão, des­locou-se lentamente até à estranha cadeira trabalhada junto à mesa de leitura. Não tinha um assento plano, apenas duas plataformas inclina­das, numa das quais ela se podia ajoelhar, enquanto a outra sustentava a região lombar. Os seus ossos velhos já não dobravam bem, e as pernas estavam rígidas e artríticas. Nem toda a imensa variedade de mezinhas que conhecia, ou aperfeiçoara, conseguia manter a marca dos anos com­pletamente afastada do seu corpo. Tê-lo-iam conseguido, não fosse a sua carne haver sido corrompida e alterada, geneticamente distorcida e fundida durante aqueles tempos terríveis de um passado remoto. Suspirou. Nem todo o seu azedume fora abandonado. Alguns vestígios tinham escapado dos recantos da memória.

-Lembras-te do Homem Cinzento, Weldi?-perguntou, quando o criado lhe trouxe um copo com água.

-Não, Ustarte. Ele pertenceu à época de Três Espadas. Eu vim depois.

-Claro. A minha memória já não é o que era. -Tendes estado à espera destes viajantes há já algum tempo,

Sacerdotisa. Por que os fitzt•is t'sJwrar pelo luar(

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-Eles ainda não estão todos, Weldi. Vem aí outro. Um Ambí­geno. Sabes, sinto a falta de Três Espadas. Ele fazia-me rir.

-Só o conheci já velho. Então era caprichoso, e não me fez rir.

Para ser sincero, ele assustou-me. -Sim, ele conseguia ser assustador. Passámos por muita coisa jun­

tos, ele e eu. Durante um tempo julgámos que fôssemos capazes de mudar o mundo. Tamanha não é a arrogância dos jovens, presumo.

-Mudastes o mundo, Sacerdotisa. É um lugar melhor com a vossa presença nele. -Desajeitadamente, tomou a mão enluvada dela e beijou-a.

-Fizemos algum bem. Apenas isso. No entanto, é suficiente. Relanceou a sala, os pergaminhos e livros nas prateleiras, e os pe­

quenos ornamentos e recordações que reunira durante os seus trezen­tos e setenta anos. Esta divisão na torre era a sua preferida. Nunca soubera realmente porquê. Talvez por ser a sala mais alta do templo. Mais perto do céu e das estrelas. - Lembrar-te-ás pelo menos de dois dos viajantes -disse a Weldi. -Os gémeos unidos?

-Ah sim. Umas crianças adoráveis. Que dia maravilhoso, aquele em que caminharam pelo jardim, separados mas de mão dada. Nunca o esquecerei.

- É difícil imaginar aqueles bebés de espadas nas mãos. -Tenho dificuldade em imaginar alguém que pudesse preferir ter

uma espada nas mãos -aludiu Weldi. -Garianne também vem com eles. Disseste que ela voltaria um

dia. -Nunca respondestes à minha pergunta sobre o padecimento dela. -Que pergunta era essa? Esqueci-me. -Não esquecestes, não. Estais a provocar-me. As vozes são reais,

ou imaginárias? -São reais para ela. Não poderiam ser mais reais. -Sim, sim! Mas são reais? São os espíritos dos mortos? -A verdade é -disse a sacerdotisa-que não sei. Garianne so-

breviveu a um terrível massacre. Ficou escondida e ouviu os gritos dos moribundos. Todos os que amava. Todos os que a amavam. Quando saiu do buraco onde estivera escondida, sentiu uma terrível culpa por ter sobrevivido. Foi essa culpa que lhe perturbou a mente? Ou será que abriu uma janela na alma dela, permitindo que os espíritos dos mortos entrassem?

-Por que a deixastes roubar a besta do Homem Cinzento? Passastes por muitos perigos para a trazerdes até aqui.

-Hoje estás cheio de perguntas. Tenho uma para ti. Por que é que a sacerdotisa ainda tem fome, quando o criado dela prometeu trazer-lhe uma refeição há algum tempo?

Weldi esboçou uma careta e fez uma vénia prolongada. -Já aí vem, Ustarte. Vou a correr à cozinha.

O sorriso de Ustarte desapareceu assim que ele saiu da sala. Sentia­-se incrivelmente cansada. A magia necessária para manter o manto de confusão sobre o templo era um grande esforço para a sacerdotisa envelhecida. Fora uma fórmula tão simples havia duzentos anos, usando meramente uma fracção do seu poder. Era apenas uma ques­tão de remodelar e ofuscar a luz refractada de modo a que a pedra ver­melha do templo parecesse misturar-se com a montanha de rocha escarpada de que fora esculpido. Somente com o luar mais intenso o feitiço desaparecia o suficiente para os homens poderem observar o imenso edifício. Mesmo assim os portões foram reforçados por fór­mulas que-quando activadas-faziam com que forças imensas se acumulassem no metal. As espadas colavam-se aos escudos, os aríetes não conseguiam ser arremessados. Os homens de armadura sentiam­-se como se caminhassem pela lama mais espessa. Ustarte sabia que nenhum castelo na terra era completamente inexpugnável. No en­tanto, o Templo de Kuan podia estar próximo. Ninguém conseguia entrar sem ser convidado.

Repousadas as pernas, pôs-se em pé e voltou para a janela. Ustarte suspirou. Fechando os olhos, concentrou o seu poder, es­

tendendo-se até onde conseguia sentir as forças vitais dos viajantes a agitar-se à sua volta, borboletas atraídas pela luz. Delicadamente, examinou cada uma delas, chegando por fim ao jovem. O coração dele parara. O veneno entrara na corrente sanguínea, levado até lá pela lâ­mina suja da espada e pequenos pedaços do tecido da sua túnica, que haviam penetrado no seu corpo. Mantendo-se calma e concentrada, Ustarte enviou um raio de energia ao coração imóvel. Ele agitou-se, depois voltou a falhar. Por mais duas vezes pulsou energia para o músculo paralisado. Começou a bater -mas de forma irregular. O es­pírito de Ustarte fluiu através do sistema linfático de Rabalyn, im­pulsionando-o com a sua própria força vital. As glândulas supra-renais, esgotadas e subnutridas, haviam também parado. Também estas ela in­fluenciou. O uivo arrepiante de um lobo interrompeu momentanea­mente a sua concentração. Ignorando-o, continuou a repor a energia de Rabalyn. O jovem morto l'Stava novamente vivo e iria sobreviver até ela conseguir continuar a trabalhar nele dl·ntro do templo.

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A Lua começou a erguer-se. Ustarte retirou-se de Rabalyn e pulsou uma mensagem a Weldi.

Este vinha a subir as escadas de baixo, trazendo-lhe uma bandeja de comida. Colocando a bandeja num degrau, voltou a correr para o Salão Interior, chamando quatro sacerdotes, vestidos com túnicas amarelas, que estavam ali a jantar.

Juntos, atravessaram rapidamente os corredores e salões do tem­plo, abrindo os portões e correndo pelo campo aberto em direcção aos viajantes.

Os viajantes-todos à excepção de Druss e Khalid Khan -foram levados para uma antecâmara no primeiro piso do templo. Havia aqui cadeiras e bancos de couro almofadados, e uma mesa incrivelmente requintada de metal retorcido, sobre a qual tinham sido colocados fru­tos e copos de sumos doces. Nian sentou-se no chão, passando as mãos pelo metal ondulado da mesa. Jared ajoelhou perto dele. Garianne deitou-se num divã. Diagoras aproximou-se de uma janela alta e de­bruçou-se, olhando para o vale lá em baixo.

Druss e Khalid ainda ali estão -disse a Skilgannon. -Parece que Orastes adormeceu aos pés do homem do machado.

Skilgannon foi ter com ele. Os sacerdotes tinham-se reunido à volta do animal gigante e faziam um esforço para o levantar. A porta atrás deles abriu-se com um murmúrio. Skilgannon virou-se. Um homem idoso, de olhos redondos, fez uma vénia ao grupo. Avançou arrastando os pés, a sua túnica branca a roçagar no soalho de terracota.

-A dama Ustarte reunir-se-vos-á de seguida-anunciou.-De momento está ocupada com o vosso companheiro, Rabalyn.

- Ele está morto-disse Diagoras. Ela consegue devolver-lhe a vida?

Ele estava morto, sim, mas ainda não passara os portais do não retorno. A magia de Ustarte é muito forte. - Garianne levantou-se do divã, um largo sorriso no seu rosto.

-Olá, Weldi! É bom ver-te. - E a ti, Querida. Disse à sacerdotisa que haverias de voltar para

nós. O sacerdote idoso aproximou-se da mesa onde Jared e Nian

aguardavam. - Não se devem lembrar de mim referiu. -Brincámos nos jardins interiores quando eram jovens. Jared pa-receu constranRido e limitou-se a encolher os ombros. Nian olhou para o velho.

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- Não tem começo - disse, passando os dedos por uma porção de metal no centro da mesa.

-É uma peça única, interligada sucessivamente. Muito inteli­gente.

- Sim -afirmou Nian. -Muito inteligente.

Weldi virou-se para Skilgannon. - Por favor, aguarde aqui um pouco. Serão atribuídos mais tarde quartos a cada um de vós, depois de Ustarte ter falado convosco individualmente.

E o homem do machado? -perguntou Diagoras. Weldi esboçou um sorriso de esguelha. - O animal não o quis

deixar. Por isso sedámo-lo. Permanecerá adormecido enquanto aqui estiverem hospedados. Druss vem já ter consigo. Khalid Khan recusou o nosso convite. Voltou para junto da sua gente. Entretanto, desejam alguma coisa? Skilgannon abanou a cabeça. Muito bem, nesse caso, deixá-los-ei. A porra ao fundo da câmara conduz à zona de ablu­ções. O seu funcionamento não é complicado. A porta principal dá para o templo. Os corredores e túneis são muito semelhantes a um labirinto para aqueles que não conhecem os caminhos. Por conse­guinte, peço-vos que permaneçam aqui até Ustarte os chamar. É capaz de demorar uma hora ... talvez um pouco mais.

-Desejamos ir aos jardins -solicitou Garianne. Lá é muito tranquilo.

-Lamento, Querida. Tens de ficar aqui. Não guardo lembranças felizes da última vez que por lá andaste em liberdade. Garianne ficou esmorecida. Continuo a gostar imenso de ti, Garianne. Todos nós gostamos disse-lhe.

Depois de ele se ir embora, Garianne voltou para o divã e deitou­-se mais uma vez. - Descobri! - exclamou Nian, satisfeito. Enfiara-se debaixo da mesa e tinha a mão numa secção de ferro do-brado. Olha, Jared! Descobri a ligação.

Druss foi ter com eles. Pareceu de melhor humor quando avançou até um canapé e se estendeu nele.-Rabalyn está vivo!-anunciou.

Já sabemos disse-lhe Diagoras. - Este é verdadeiramente um lugar encantado.

-Tudo aqui é bom -afirmou Garíanne. -Não há mal -ex­cepto o que vem do exterior acrescentou, olhando para Skilgannon. - Ustarte pode ler o futuro aqui. Muitos futuros. Muitos passados. Levá-los-á ao Muro do Desaparecimento. Ali verão. Nós vimos. Tantas COISaS.

-O que foi que vistt·!' IWrRuntou Nian.

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Os olhos cinzentos de Garianne ensombraram-se, e o seu rosto endureceu. Fechando de novo os olhos, deitou-se.

-Não ligo muito à magia - disse Druss. Mas se ela salvar o rapaz, porei de lado as minhas dúvidas.

- Está com melhor aspecto, Cavalo Velho aludiu Diagoras. Tem novamente cor nas faces.

-Sinto-me mais como dantes admitiu Druss. - A dor no meu peito diminuiu, e noto que a força está a voltar aos meus mem­bros. Eles deram-me a beber qualquer coisa quando aqui entrei. Fresco e espesso, como as natas no Inverno. Sabia bem, digo-lhes. De bom grado beberia outra.

Diagoras voltou para a janela. A Lua ia alta e incidia nas mon­tanhas. Skilgannon reuniu-se-lhe. - Havia algo de estranho em re-lação àquele Weldi referiu Diagoras.

Skilgannon nada disse, mas anuiu. -Também reparou? - insis-tiu Diagoras.

-Sim. -Não sei dizer muito bem o que estava errado nele. -Não vi nada ameaçador - disse Skilgannon. -Ele move-se

de forma estranha. Mas também é velho e pode ter cristais nas arti­culações.

Para mim foram os olhos, creio afirmou Diagoras. Não é muito frequente ver aquela cor de ouro vermelho. Na verdade, nunca a vi ... a não ser num cão ou num lobo. As vezes num cavalo.

Ele é um homem de aspecto estranho -concordou Skilgannon. -Boas notícias as de Rabalyn, hein? -Esperemos que se sigam mais boas notícias -disse Skilgannon,

acariciando distraidamente o medalhão à volta do seu pescoço.

CAPÍTULO 18

Passadas cerca de duas horas, Skilgannon foi conduzido a uma sala no nível superior. Enquanto seguia os movimentos lentos de Weldi, viu vários outros sacerdotes a deslocarem-se pelos corredores. Passaram por uma sala de jantar. Skilgannon viu, através da porta aberta, um grande grupo de pessoas sentadas a comer.- Quantos estão ali?­perguntou a Weldi.

- Mais de cem neste momento. -E o que fazem vocês aqui? -Estudamos. Vivemos. Subindo outro lance de escadas, chegaram a uma porta em forma

de folha. A madeira era escura, e havia nela inscrições douradas que Skilgannon não conseguiu ler. A porta abriu-se quando se aproxi­maram. Weldi afastou-se. - Voltarei a buscá-lo quando a sua visita terminar disse.

Skilgannon entrou. A divisão era grande, o tecto abobadado. As paredes estucadas tinham sido adornadas com pinturas, principal­mente de plantas, árvores e flores, num fundo de céu azul. Havia também aqui plantas verdadeiras, em recipientes de barro. A luz das lanternas, era difícil ver onde terminava a folhagem verdadeira e co­meçavam as pinturas. Chegou-lhe o som de água a correr. Penetrando mais na sala, viu uma minúscula cascata a jorrar sobre pedras brancas para um lago pouco fundo. Eram muitos os cheiros no ar, jasmim e cedro e sândalo. E outros mais capitosos. Sentiu-se relaxar.

Para lá da cascata, a sala estreitava, depois voltava a alargar, con­duzindo a uma varanda por cima do vale. Aqui, ao luar, encontrou Ustarte. A sacerdotisa de.· mht'\'il rupnda c.·stava apoiada num bordão

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de ébano, com punho de marfim. Ficou estático por um momento, transfixo pela beleza dela. As suas feições eram chiatze, de ossos finos e delicadas. Os seus grandes olhos oblíquos, porém, não eram do cas­tanho-dourado carregado daquela raça. Ao luar, brilhavam como prata, apesar de Skilgannon calcular que fossem azuis. Fez-lhe uma vénia pronunciada. -Bem-vindo ao Templo de Kuan-disse ela. Era ex­traordinária a musicalidade da sua voz. De repente, apercebeu-se de que ficara sem fala na presença dela. O silêncio aumentou. Furioso consigo mesmo, Skilgannon respirou fundo.

-Obrigado, dama- disse, por fim. -Como está Rabalyn? -O rapaz sobreviverá, mas terás de o deixar aqui connosco du-

rante algum tempo. Coloquei-o num sono protector. Havia imensa sépsis e a gangrena começara. Vai precisar de uma semana ou mais antes de se poder levantar da cama.

Fico grato. É um rapaz corajoso. E trouxeste-lo de volta dos mortos.

Ustarte olhou para ele e suspirou. Sim, trouxe. Mas não posso realizar o que pretendes de mim, Olek Skilgannon. Este não é o Templo dos Ressurreccionistas.

Ficou em silêncio por um momento, combatendo a decepção. Na realidade, não acreditei que pudésseis. Aquela que me mandou até vós é má. Não ia querer que eu fosse bem sucedido.

Receio que seja verdade, guerreiro - afirmou Ustarte, delica­damente. Indicou-lhe a mesa. Serve-te de um copo de água. Vais ver que é muito refrescante. A água possui propriedades enaltecedoras. -Skilgannon pegou num jarro de cristal e encheu um copo a condizer.

- Sirvo-vos também, dama? -Não. Bebe, Olek. Levando o copo aos lábios, depois fez uma pausa. A gargalhada dela

ecoou. Não contém veneno. Gostarias que eu a provasse primeiro? Embaraçado, abanou a cabeça, depois esvaziou o copo. A água era

extraordinariamente fresca. Naquele momento, sentiu-se como um homem que se arrastara por um deserto escaldante e encontrara um oásis.-Nunca provei água assim disse.-É como se a sen­tisse correr por cada músculo.

- Efectivamente sentes confirmou ela. -Vamos para dentro. As minhas velhas pernas estão doridas e cansadas. Dá-me o teu braço.

Regressaram juntos à sala do jardim. À luz das muitas lanternas, viu que os olhos dda eram de um azul deslumbrante, salpicado de ouro. Ajudou-;1 u alcançar uma peça de mobiliário estranhamente

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esculpida. Parecia um cruzamento entre uma cadeira e um escabelo. Ela ajoelhou-se lentamente nela, depois entregou-lhe o bordão. Ele pousou-o perto dela, depois, tirando a bainha das espadas das costas e colocando-a a seu lado no chão, sentou-se numa cadeira de espaldar defronte dela.

Muito bem, por que te mandou a Velha aqui? -perguntou ela. Tenho pensado imenso nisso -respondeu ele. Quase desde

o momento em que ela nos mandou nesta empresa. Acho que sei a resposta ... só espero não estar errado.

-Diz-me. - Primeiro, tenho uma pergunta a fazer-vos, dama. Se me é

permitido? - É-te permitido.

-É verdade que fizestes crescer uma mão nova num dos triba-listas de Khalid Khan?

O corpo é um mecanismo bem mais complexo e maravilhoso do que a maior parte das pessoas imagina. Cada célula contém por­menores do seu plano original. Mas para responder à rua pergunta de uma forma simples: sim. Ajudámo-lo a obter uma mão nova.

Há alguns anos foi-vos trazido um homem cujo rosto fora cortado?-No momento em que formulou a pergunta, Skilgannon sentiu o medo a apertar-lhe a barriga.

- Estás a falar de Boranius. Sim, trouxeram-no aqui. -Foi uma pena que o tivésseis curado referiu com azedume.

-O homem é mau. -Nós não fazemos juízos aqui, Olek. Se o fizéssemos, ter-te-ía-

-mos deixado entrar? Não admitiu ele. Quando é que suspeitaste que o Máscara de Ferro era Boranius? Algo dentro de mim dizia-me que ele estava vivo. Quando não

conseguimos encontrar o corpo dele após a batalha, soube. Lá no fundo, soube. Então, quando ouvi falar do Máscara de Ferro, estra­nhei. Mas depois Druss disse-me que ele não fora mutilado, tinha apenas um sinal de nascença feio. Só quando soube do tribalista com a mão descolorada é que a ideia me ocorreu. O meu receio tem au­mentado desde então.

-Foi por isso que a Velha não te contou. Ela sabia que temias este homem e, no entanto, queria que fosses atrás dele. Ela adivinhou que ... enveredando por estt.· mminho ... não deixarias Druss enfren­tar sozinho o mal. Será que elu st• t·n�•mou�

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-Não, ela não se enganou. Muito embora duvide de que Druss consiga enfrentá-lo com o coração afectado.

Ustarte sorriu. - Não há nenhum problema com o coração de Druss ... muito embora só o Céu saiba porquê, considerando o seu

· gosto pelo álcool e carne vermelha. Ele contraiu uma doença numa aldeia a sul de Mellicane. Atacou-lhe os pulmões e provoca-lhe um esforço enorme no coração. Um homem normal teria ficado algum tempo de cama e dado ao seu corpo a oportunidade de repousar para combater o vírus. Ao invés, Druss percorreu o país à procura do amigo. Esgotou-se e obrigou o coração a um esforço enorme. Foi-lhe dada uma poção que erradicará a ... doença. Amanhã de manhã vol­tará a estar forte.

-E os gémeos? O sorriso de Ustarte desapareceu.-Não podemos curar Nian. Há

um ano, talvez. Mesmo há seis meses. Os tumores estão agora a sur­gir em todo o corpo. Não podemos tratar deles todos. Tem menos de um mês de vida. Iremos reduzir a pressão no cérebro dele, e durante uns tempos ele voltará a ser o que era. Não por muito tempo, receio. Talvez dias. Talvez horas. Depois a pressão voltará a aumentar. A dor intensificar-se-á. Ele entrará em coma e morrerá. Seria preferível ele ficar aqui, onde lhe podemos administrar poções para reduzir a dor.

-Isto irá destroçar o coração de Jared-disse ele.-Nunca vi dois irmãos tão chegados.

-Eles estiveram unidos durante os primeiros três anos de vida. Isso cria um elo especial-referiu ela. -Realizei a operação que os separou. Em parte conhecimento, em parte magia. É a magia que o está a matar neste momento. A fim de que sobrevivessem ambos, tive de fabricar os códigos vitais de Nian. Eles partilhavam um único coração. Manipulei as suas bases genéticas, fazendo com que o seu corpo criasse um coração novo. Esta manipulação acabou por resultar na massa de cancros que o está a matar agora. Causa-me imenso pesar.

Skilgannon não entendeu grande parte do que ela lhe disse, mas pôde ver a angústia estampada no seu rosto. - Destes-lhes uma oportunidade de vida-afirmou ele.-Uma vida de que não teriam desfrutado sem a vossa ajuda.

- Eu sei, e agradeço as tuas palavras. O que mais desejas per­guntar-me?

-E Garianne? -Não a posso ajudar. Ou ela está possuída ou louca. Sabes, claro,

que ela é dominada pela Velha.

-Eu sei.

-Nesse caso, sabes também qual a finalidade desta empresa? -Ela está aqui para me matar. -E sabes porquê? Ele encolheu os ombros. -É o que a Velha quer, fundamental­

mente. Isso é motivo suficiente. Duvido de que ela tente assassinar­-me até Boranius estar morto. Resolverei isso quando acontecer.

-Vais matá-la. -Para me salvar? Evidentemente.

-Ah, sim, claro. É o que os guerreiros fazem. Lutam. Matam. Morrem. Sabes onde nasceu Garianne?-perguntou ela subitamente.

-Não. Ela não reage bem a perguntas. -É porque foi torturada e violada durante algumas semanas por

homens vis. Queriam informações. Queriam prazer. Queriam dor. Mas isso foi depois. Garianne era uma jovem normal e saudável. Vivia com a família e os amigos. Sonhava com um futuro em que seria feliz. Como todos os jovens, criara fantasias em que a sua vida seria enri­quecida pelo amor e o sucesso, a fama e a alegria. A sua tragédia foi ter esses sonhos em Perapolis. -Skilgannon estremeceu e não con­seguiu continuar a fitar os olhos azuis e dourados de Ustarte. -Quando os soldados naashanitas derrubaram as muralhas, o pai de Garianne, um pedreiro, escondeu-a debaixo de umas pedras nas tra­seiras da sua oficina. Ela ficou ali, aterrada, o dia todo, escutando os gritos dos moribundos. Ouviu as pessoas que amava suplicarem pelas suas vidas. Velhos, mulheres, crianças, maridos, pais, filhos e filhas. Padres, mercadores, enfermeiras e parteiras, médicos e professores. Os sem amor e os amados. Quando a noite caiu, ela ainda lá estava. Só que agora não estava sozinha. Tinha a cabeça cheia de vozes que não queriam desaparecer. Continuavam a gritar.

Permaneceram em silêncio por alguns momentos.-Deveis odiar­-me-disse ele, por fim.

-Não odeio ninguém, Olek. Há muito que o ódio se extinguiu em mim. Mas ainda não terminei a história de Garianne. Não te con­tarei os horrores que ela sofreu mais tarde, quando foi capturada pelas tropas naashanitas. Quando a trouxeram para aqui, parecia não exis­tir esperança para ela. Fizemos tudo o que podíamos para lhe resti­tuir a normalidade. O que vês agora é o resultado dos nossos melhores esforços. Ela fugiu, e a dada altura ficou sob a influência da Velha. Ela conseguiu dar-lhe uma finalidade. Deu-lhe um objectivo. Pode muito bem ser que este objectivo llw Vl'nha a devolver a vida. Sabes,

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Garianne acredita que os fantasmas encontrarão a paz quando tiveram sido vingados. Os fantasmas adormecerão quando o Maldito morrer.

- E adormecerão mesmo? - indagou. - Gostava de te poder dizer que sim. Se os fantasmas são reais,

, então, talvez encontrem a paz através da vingança. Nunca acreditei que a vingança trouxesse paz, mas também nunca fui um fantasma. Se a mente dela está transtornada, pode ser que a conclusão da sua missão a liberte. É duvidoso ... mas possível. Por isso, estás a ver, se a matares irás apenas completar o horror pelo qual tão conveniente­mente és designado.

- Uma bela série de escolhas comentou ele, levantando-se da cadeira e pegando nas espadas da Noite e do Dia. Colocando a bainha ao ombro, fez-lhe uma vénia. Agradeço o vosso tempo, dama.

- Essas espadas são de mau desígnio, Olek. Acabarão por cor­romper a tua alma. Carregam tanta responsabilidade por Perapolis quanto tu próprio.

-As minhas hipóteses de derrotar Boranius não são boas. Sem as Espadas da Noite e do Dia, elas seriam nulas.

- Então não lutes com ele. Não tenho a capacidade de trazer de volta Dayan. Outros terão. O código da vida dela está contido no cabelo e no osso que trazes contigo. Há quem consiga activar esse có­digo. Poderão ter também a capacidade de trazer a sua alma do Mundo dos Mortos para reabitar um novo corpo.

-Onde poderia encontrar essas pessoas? -Para lá das terras antigas de Kydor, talvez. Ou no coração das

estepes dos Nadir. O Templo dos Ressurreccionistas existe. Acredito nisso. São demasiadas as provas para o ignorar. Esquece Boranius. Esquece Garianne. Pelo menos a tua causa será completamente al­truísta.

- Isso implicaria também esquecer Druss e Diagoras. Não o posso fazer. E o amigo de Druss, Orastes? Consegue retirá-lo do animal?

Ustarte levantou a mão e descalçou a luva. Depois arregaçou a manga da sua túnica de seda. Skilgannon olhou para o pêlo cinzento macio que lhe cobria o braço, e as garras que brilhavam na extremi­dade dos seus dedos. Se eu o pudesse fazer por Orastes, não o faria por mim mesma? - perguntou-lhe. -Agora vai, guerreiro. Quero falar com a Lenda.

Havia trinta e três janelas e três portas na cidadela. O xamã nadir, Nygor, verificou cada uma delas antes de se retirar para a sua enxerga

346

no quarto nível. As fórmulas de protecção nas portas principais eram as mais simples de reenergizar, pois pendurara aqui uma antiga relí­quia, a mão mirrada de Khitain Shak. Os ossos secos conservavam grande parte do poder que o sacerdote lendário dominara em vida. As janelas eram mais cansativas e requeriam mais tempo. Algumas eram largas, outras meras seteiras fendas através das quais os arqueiros podiam abater os inimigos lá em baixo. Cada uma destas necessitava de uma nova fórmula todos os dias, alimentada por uma gota de san­gue de Nygor. As feridas nas palmas das suas mãos incomodavam-no naquele momento, com um prurido irritante. E isso aborrecia-o.

Durante alguns dias conseguira usar o sangue da mulher estúpida que o Máscara de Ferro trouxera para a cidadela. Mas depois o Naashanita perdera a cabeça e matara-a. Um desperdício. Sempre podia tê-la deixado sobreviver até as mãos de Nygor sararem. A crian­ça serviria. O Máscara de Ferro não estava minimamente interessado. Queria a rapariga viva até Druss, o Homem do Machado, estar em seu poder. Depois matá-la-ia diante de a Lenda.- És capaz de ima­ginar - perguntou o Máscara de Ferro -, quão agradável será? Druss, o Invencível. O Capitão do Machado. O Vencedor de Skeln.

Preso e acorrentado, e a assistir à morre lenta da criança que veio até tão longe para salvar? Deixá-lo-á louco.

-Acho que o deveríeis apenas matar, lorde- advertiu Nygor. Não tens sensibilidade para o requinte - retorquira-lhe o

Máscara de Ferro. Era obviamente verdade. Nygor não sentia qualquer prazer no so­

frimento dos outros. As vezes, a morte era necessária a bem do conhecimento. Agora, com sessenta e um anos, Nygor estava à beira de compreender os segredos que ansiara desvendar durante décadas. Dominara a Junção, uma das maiores fórmulas antigas. A concentra­ção necessária à criação dos Ambígenos era prodigiosa. Em breve des­vendaria os mistérios do rejuvenescimento. T ê-lo-ia já conseguido não fosse a Velha, e a sua procura constante de maneiras de o matar. Conseguia sentir o poder dela naquele momento, a empurrar as fór­mulas de protecção, a puxar por elas, sempre à procura de uma lacuna nas suas defesas.

Sabia que ela não o odiava pessoalmente. O seu verdadeiro alvo era o Máscara de Ferro. Nygor constituía apenas um obstáculo no cami­nho dela. Era um problema espinhoso. Se abandonasse o Máscara de Ferro, provavelmente ela deixá-lo-ia em paz. Todavia, se deixasse de servir o guerreiro, não disporia de riqueza, nem teria como perseguir

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os seus sonhos. Não podia voltar para as estepes. O xamã de Ulric, Nosta Khan, mandá-lo-ia matar assim que pusesse o pé em terras nadir.

Por isso -de momento-estava preso entre a espada do ódio dela e a parede da ambição do Máscara de Ferro. Não por muito mais tempo, porém. O Máscara de Ferro tinha esperança de transformar a nação tantriana numa força suficientemente forte para se opor à Rainha Bruxa. Sonhara em voltar a chefiar um exército para invadir o Naashan. Esses sonhos haviam murchado agora. Tinham começado a falhar no momento em que a Velha dera aquela maldita espada ao rei tantriano. Corrompera-lhe a mente, enchendo-o de ilusões de grandeza. Nygor via agora que esta fora sempre a intenção dela. Quando a Tantria de­clarara guerra a Daria ou Dospilis, isso só aproveitara à Rainha Bruxa. O Máscara de Ferro ficara arruinado. Nygor suspirou. Devia tê-lo dei­xado quando a guerra se complicara e os Datianos estavam às portas de Mellicane. Mas o Máscara de Ferro fugira com uma grande parte do erário de Mellicane, e essa riqueza ainda poderia ser útil a Nygor

-se conseguisse descobrir uma forma de a roubar.

O xamã passou ao nível seguinte e reavivou a fórmula existente nas janelas. Agora doía-lhe a mão direita.

Deteve-se na seteira e olhou para as estrelas. Naquele momento sus­pirou, enquanto pensava na sua escrava, Raesha. Só quando morrera é que se apercebera do enorme afecto que sentia por ela. O Máscara de Ferro exigira a morte da Rainha Bruxa, e Nygor invocara um demó­nio para a matar. Não era um grande feito. Nem sequer dos difíceis. Usara Raesha como canal de invocação. Isso aumentara o poder de Nygor. O demónio partira rapidamente em busca da sua presa. Correra tudo bem. O que ele não podia saber era que a Velha colocara fórmulas de protecção poderosas à volta da rainha. Repelido, o demónio

regressara, em busca de sangue. O coração de Raesha fora arrancado do corpo. Nygor estremeceu ao recordar-se.

Havia igualmente fórmulas de protecção à volta de Druss, o Homem do Machado e dos seus companheiros. O que impossibilitava Nygor de

localizá-los. Ora, o atentado mais tradicional contra a vida de Druss falhara também. Nygor sentia uma animosidade em relação a Druss. Era certamente impossível o velho homem do machado atacar uma fortaleza controlada por guerreiros ferozes. E, no entanto, havia algo de indómito no homem, uma força que não era de todo humana.

Nygor subiu as escadas até às ameias circulares e acrescentou novas fórmulas de protecção em ambas as portas. Durariam três dias, mas renová-las-ia ao cabo de dois.

34H

Voltando ao edifício principal, pisou uma ratazana preta enorme, que passou por ele a correr. Nygor praguejou, depois dirigiu-se ao seu

quarto. A ratazana preta enfiou-se por um buraco e apareceu nas ameias.

Daqui, correu pela beira da muralha fortificada e enfiou-se noutro bu­raco que a levou a uma das vigas do telhado abobadado. A sua forma preta esguia correu pela madeira, chegando por fim a uma porção ras­gada do forro revestido de alcatrão. A ratazana começou a roer o forro, criando uma abertura suficiente para se enfiar lá por baixo. Havia aqui pranchas interligadas, e várias ratazanas mortas.

Afastando um dos corpos, a ratazana começou a roer a extremidade lascada de um dos encaixes, os seus incisivos afiados mordiscando as extremidades da madeira, separando-os.

Trabalhou incansavelmente, arrancando e roendo, até o seu cora­ção ceder e tombar morta ao lado da madeira. Minutos depois, apa­receu outra ratazana preta. Começou também a roer a madeira.

Por fim, uma nesga de luz penetrou a escuridão por debaixo do forro do telhado. A ratazana pestanejou e sacudiu a cabeça.

Farejou durante um bocado, confusa. Recuando da luz, desatou a fugir.

Jared regressou à antecâmara onde os outros aguardavam. Deixou­

-se cair numa cadeira, ignorando-os. Garianne foi ter com ele, envolvendo-o com o braço e beijando-lhe a face. Diagoras coçou a sua pêra em forma de tridente e estremeceu.

-O que se passa contigo, moço? -perguntou Druss. -Estou bem, Homem do Machado. Nunca estive melhor. -Pareces um homem com um escorpião na bota.

- Bem, isso é uma surpresa - contrapôs Diagoras. - Estou sentado num templo místico que, segundo fiquei a saber, é total­mente governado por Ambígenos. É curioso eu achar isso pertur­bador.

Druss soltou uma gargalhada.-Eles não nos fizeram mal. Muito pelo contrário.

-Até agora-referiu Diagoras. -São animais, Druss. Não têm alma.

-Nunca tive jeito para discussões-disse Druss.-Por isso não vou discutir contigo.

-Por favor, discuta!-insistiu Diagoras.-Adoraria poder des­contrair a mente.

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- É um assunto demasiado complexo para uma só discussão -in­terveio Skilgannon. - Se os homens possuem almas, segue-se que o Máscara de Ferro tem uma. A sua vida foi passada a torturar e muti­lar pessoas inocentes. Um amigo meu teve um cão. Quando a sua casa pegou fogo, o cão correu pelas escadas acima, atravessando o fumo e as chamas, e acordou o meu amigo e a família. Escaparam todos. A porta lá de baixo estava aberta. O cão podia ter fugido para a segurança da rua. Não o fez. Por isso, se o cão foi heróico e altruísta sem possuir alma, e o Máscara de Ferro é torpe e mau, então, de que serve tê-la?

Druss soltou uma gargalhada. - Gosto disso - disse. - Na minha perspectiva, o Céu seria um lugar melhor se só lá houvesse cães.

-Eles não podem curá-lo-disse Jared, subitamente.- Podem aliviar a pressão no cérebro dele. Ficará como foi em tempos. Não sabem sequer dizer por quanto tempo. Horas. Dias. E ele continua a morrer. U starte diz que ele tem menos de um mês de vida.

-Lamento, moço -afirmou Druss. -Compreenderá, Homem do Machado, por que não vamos con-

sigo até à cidadela. Quero passar algum tempo com o meu irmão. Ficaremos aqui. Quando chegar o momento, eles terão remédios para aliviar a dor.

-Ah, também não era a vossa luta, Jared. Não te preocupes. -Nós gostaríamos de ir consigo, Tio -disse Garianne. -Nós

queremos ver a menina segura. -Skilgannon reparou que Garianne olhava directamente para ele enquanto falava, os seus olhos cinzentos impassíveis. Druss também viu, e não disse nada.

-Presumo que desejes a minha companhia nesta viagem -alu­diu Skilgannon.

-Agora tens de vir -disse ela. -Tens de enfrentar Boranius. É o teu destino.

Skilgannon sentiu a raiva agitar-se nele, mas engoliu-a.-A Velha não conhece o meu destino, Garianne. Assim como não conhece o teu. Contudo, viajarei contigo por razões só minhas.

-Ainda bem que vens, moço-afirmou Druss.-Existe algo entre vocês os dois que gostassem de partilhar? -prosseguiu.

Skilgannon abanou a cabeça. A porta abriu-se e o criado Weldi en­trou. - Vou levá-los aos vossos quartos - disse. - Encontrarão camas lavadas, um pouco de comida e água, e uma brisa fresca a en­trar pelas janelas.

Mais tarde, quando Skilgannon estava deitado na cama a olhar para as estrelas do lado de fora da janela, a porta do quarto a_briu-se

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de mansinho, e Garianne entrou. Dirigiu-se aos pés da cama sem dizer uma palavra. Trazia na mão a besta, uma única flecha colocada.

-Gostarias de o fazer agora-disse ele. Estendendo o braço, apontou-lhe a arma. -Nós gostaríamos de

o fazer agora-concordou ela. Com um som agudo, a flecha cravou­-se na cabeceira da cama a menos de dois centímetros e meio do crâ­nio dele. Ela baixou a besta e colocou-a numa mesa de cabeceira. -Ainda não podemos-disse.-O Tio precisa de ti.

Tirando a camisa pela cabeça, atirou-a para o chão, depois despiu as calças. Puxando para trás o lençol, enfiou-se na cama ao lado de Skilgannon, a cabeça no ombro dele. Sentiu os dedos dela acaricia­rem-lhe a face de lado, depois os lábios dela procuraram os seus.

Boranius encontrava-se sentado numa cadeira de verga, vendo a mulher nadir dar banho à criança, Elanin. A rapariguinha estava sen­tada dentro de uma banheira de cobre, olhando para a frente, sem qualquer expressão, enquanto a Nadir retirava a sujidade da sua pele pálida. Havia feridas nos ombros e nas costas, mas nem estremeceu quando o pano áspero passou por cima delas.

-Sabes quem te vem buscar, princesinha? - perguntou Bo­ranius. -O velho Druss. Ele vem aqui buscar-te. Temos de te pôr limpa e bonita para quando ele cá chegar.

Não houve alteração na expressão. A irritação agitou-se em Boranius. O espectáculo teria pouco mérito se a criança não reagisse.

-Bate-lhe-ordenou à mulher nadir. A mão dela estalou no rosto da criança. Elanin não gritou. A sua cabeça pendeu um pouco, depois voltou a olhar para a frente. -Por que é que ela não sente dor? -perguntou ele.

-Ela não está aqui -retorquiu a mulher nadir. -Então trá-la de volta. A mulher soltou uma gargalhada. -Não sei onde ela está. Boranius levantou-se da cadeira e saiu do quarto em busca de

Nygor. O pequeno xamã saberia o que fazer com a criança. Seria um enorme desperdício se ela não berrasse pelo Tio Druss. Caminhou com grandes passadas até ao depósito de armas e subiu ao Salão do Telhado. Aqui encontrou Nygor, sentado num banco de janela, a observar uns pergaminhos antigos. - A mente da criança fechou-se - referiu Boranius.

-Destes-lhe os dedos da mãl' para brincar - respondeu Nygor. -O que mais queríeis�

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-Pensei que fosse divertido. Como podemos trazer a criança de volta?

Nygor encolheu os ombros. - Opiáceos, talvez. Descobriremos uma maneira quando chegar o momento.

A rapariga é branda como o pai. A mulher dele disse-me que foi um dos heróis de Skeln. Tu viste-o, Nygor, a balbuciar sobre a filha. Como poderia semelhante homem ter participado na derrota dos Imortais?

O xamã suspirou e pôs de lado o pergaminho. -Conheci uma vez um guerreiro que enfrentou um leão com uma faca. No entanto, tinha medo de ratos. Todos os homens têm os seus medos, os seus pontos fortes e as suas fraquezas. Orastes tinha pavor do escuro. A masmorra era escura. Dissestes-lhe que iríeis matar a filha, cortá-la aos pedaços. A rapariga era tudo para ele. Amava-a.

Não tenho fraquezas, xamã-afirmou Boranius, aproximando--se de uma cadeira e sentando-se.

-Se o dizeis. -Digo, pois. Desejas discordar? -Necessito dos meus dedos, Máscara de Ferro, por isso, não, não

irei discordar. Sois um homem forte. Porém, amaldiçoado pelas es­trelas.

-Isso é bem verdade - respondeu Boranius, com emoção. Nunca conheci um homem tão azarado. Bokram devia ter vencido, tu sabes. Nós fizemos tudo certo. Ele entrou em pânico naquela última batalha. Se não tivesse sido um cobarde, estaria agora a governar todo o Naashan. E quanto ao rei tantriano .. . a sua estupidez foi inimagi­nável. Quem me dera ter demorado mais tempo a matá-lo.

-Se bem me lembro, ele gritou durante várias horas. Deveriam ter sido dias. Eu avisei-o para não invadir a Daria.

Não estávamos preparados. Se ao menos ele tivesse esperado. -A Velha levou-lhe aquela espada maldita. Não o podíamos ter

adivinhado. Corrompeu-lhe a mente. Boranius praguejou. -Por que me persegue a bruxa? Mas o que

é que eu lhe fiz? Calculo que matastes alguém que teria utilidade para ela.

-Ah, bem, não importa. Se o melhor que ela consegue fazer é enviar um velho com um machado, então vejo pouco que temer.

O rosto de Nygor ensombrou-se. Sinto permanentemente a pre-sença dela. Ela testa constantemente as minhas defesas. Não a deve­ríeis menosprezar, Máscara de Ferro. Ela tem poder para nos matar.

352

Uma brisa fria percorreu o Salão do Telhado. Duas das lanter­nas apagaram-se. Boranius pôs-se em pé de um salto. Nygor gri­tou e correu para a porta aberta. Ela fechou-se com toda a força na sua cara.

Uma figura translúcida encapuçada apareceu nas sombras junto à

porta.-É tão agradável sermos estimados-disse a Velha. Boranius tirou um punhal do cinto e arremessou-o pelo salão. Atravessou a fi­gura e embateu com ruído na parede.

-Como foi que violou as minhas fórmulas? -inquiriu Nygor, a sua voz fazendo eco do seu desespero.

-Encontrei outra abertura, Nadir. Lá em cima no telhado. E agora é tempo de te reunires à tua amiga, Raesha. Arde, homenzinho. A figura encapuçada apontou para Nygor. O xamã tentou correr para a janela, atirar-se para as pedras lá em baixo, mas envolveu-o uma fór­mula aprisionadora. As chamas subiram-lhe pelas calças, incendiando­-lhe a camisa. Ele gritou e tornou a gritar. Boranius viu o cabelo de Nygor pegar fogo, o couro cabeludo e o rosto a ficarem negros, a pele a empolar. Os gritos continuaram a encher o salão. Homens começaram aos socos à porta. Por fim, os gritos cessaram. O cadáver enegrecido de Nygor caiu por terra. Continuava a arder, enchendo o salão de um fumo preto acre. Por fim, não restava nada no chão que fosse remotamente humano.

As pancadas prosseguiram. -Silêncio -ordenou a Velha, agi­tando a mão na direcção da entrada. As pancadas terminaram.

Queres ver-me arder, rameira? gritou Boranius. -Vamos lá! Aplica a tua magia! Desprezo-te!

-Oh, hei-de ver-te morrer, Boranius. Isso dar-me-á enorme pra­zer. Primeiro, porém, prestar-me-ás um serviço.

-Nunca! -Oh, acho que sim. Druss, a Lenda, vem matar-te. E acompanha-

-o um homem que não vês há algum tempo. Um velho amigo. Vai ser um encontro tão agradável. .. Lembras-te de Skílgannon? Como podias não te lembrar? Ele cortou-te o rosto, se bem me lembro.

Matarei ambos e mijarei em cima dos cadáveres deles. A gargalhada da Velha ressoou. Ah, mas eu podia gostar de ti,

Boranius. A sério que sim. Que pena sermos inimigos. -Não precisamos de o ser. -Ah, mas precisamos. Nem sempre fui como me vês agora.

Alguns séculos atrás fui jovem e os homens achavam-me agradável. Naquele tempo arrebatado da juwnrude, tive uma filha. Entreguei-a

353

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a outros, para a criarem. Nunca fui maternal. Com o passar do tempo, vigiei essa filha e os filhos que ela teve. Não foram muitos. Fáceis de

localizar. A princípio, até foi divertido para mim. A minha dádiva ao futuro. O fruto do meu ventre. Silenciosamente ... muito silenciosa­mente... manobrei as suas vidas, dando-lhes um pouco de sorte

quando dela necessitavam. Não foi possível vigiá-los constantemente,

porém. Envelheceram e morreram. Não obstante os meus melhores esforços, a descendência ficou reduzida. Até só restar um. Uma rapa­riga. Uma criança doce. Casou com o Imperador do Naashan depois de eu lhe ministrar um filtro amoroso. Era impossível ele traí-la.

Depois tiveram uma filha. A última da minha descendência. E tu, Boranius, mataste a mãe e perseguiste a filha. Acaso julgas, nas tuas fantasias mais loucas, que alguma vez te perdoarei?

-Não quero saber do teu perdão. Matarei Skilgannon só pelo

mero prazer. Matarei Druss para vingar os Imortais. Se viver o sufi­ciente, matarei Jianna ... e livrarei o mundo da tua descendência.

- Mas não viverás o suficiente, Boranius. E eu irei lá estar, em

carne e osso, para ver a tua alma ser arrancada violentamente do teu

corpo. Até isso acontecer, algo para te lembrares de mim.

O fogo estendeu-se pelo rosto de Boranius, crestando os lábios, o nariz e as faces. Soltando um grito estrangulado, ele caiu de costas.

-Um homem com uma alma tão feia como a tua não tem direito

a um segundo rosto - disse a Velha. -Por isso, retiremos a carne que Ustarte te deu.

Quando Skilgannon acordou, estava sozinho. Bocejou e espre­guiçou-se. O seu braço roçou na madeira lascada da cabeceira da cama. A flecha desaparecera - tal como Garianne. Levantando-se

da cama, vestiu as calças e as botas, depois a camisa de cor creme e o justilho com franjas. Por último, colocou a bainha de ébano ao

ombro. O dia estava a raiar, a terra do lado de fora da janela banhada de ouro.

Indo até à porta, saiu para o corredor, percorrendo o caminho de

regresso à antecâmara. Passou por um sacerdote de vestes amarelas e deteve-o, perguntando-lhe onde poderia encontrar o rapaz, Rabalyn.

O sacerdote de cabeça rapada nada disse, mas fez sinal a Skilgannon

para que o seguisse. Passaram por uma série complicada de túneis,

desceram escadas de caracol e percorreram corredores, até que, por fim,

chegaram a um salão mais amplo. Ao fundo do salão, o sacerdote abriu uma porta e indicou a Skilgannon que entrasse.

Druss estava sentado à cabeceira de Rabalyn. O rapaz dormia.

Skilgannon debruçou-se sobre ele. O rosto de Rabalyn estava pálido,

mas respirava bem. Puxando uma cadeira, Skilgannon sentou-se ao

lado do homem do machado. -Ele dorme profundamente - disse Druss. -Fico feliz por vê-

-lo bem. -Ele é um excelente rapaz.

- É, sim. Há demasiados mandriões e cobardes neste mundo -afirmou Druss. - Demasiadas pessoas que vivem a vida de forma egoísta e não se preocupam nada com os outros. Fiquei muito triste

quando julguei que o rapaz estava morto. Disse-te que ele saltou de uma árvore e pegou no meu machado para lutar com um Ambígeno?

- Apenas umas dez ou doze vezes. -Esse tipo de coragem é raro. Acho que este rapaz vai longe na

vida. Raios, espero bem que sim. -Espero que ele vá mais longe do que nós - disse Skilgannon.

-E eu idem. -O homem do machado fitou Skilgannon, os seus olhos cinzentos penetrantes cravando-se nos azul-safira do guerreiro naashanita.-Nesse caso, por que vens comigo, moço?

- Talvez aprecie apenas a sua companhia.

- Quem não apreciaria? Vamos, diz-me a verdade. - Boranius matou os meus amigos. Ameaçou a vida da mulher

que amo. -E que mais? -Por que precisa de haver algo mais? Vai atrás de Boranius por-

que ele ... -Skilgannon procurou encontrar uma descrição adequada

do horror que acontecera a Orastes -, ... porque ele destruiu o seu amigo. Ele matou também todos os que me amavam.

-Sim, são razões suficientemente boas. Não as contesto. No en­tanto, existe algo mais. Algo mais profundo, creio.

Skilgannon calou-se. Depois, respirou fundo. - Por que se faz passar por um simplório, Druss? É um homem muito mais

subtil e intuitivo do que geralmente demonstra. Muito bem, então.

Toda a verdade. Ele assusta-me, Druss. Pronto, já disse. Skilgannon, o Maldito, tem medo.

-Não tens medo de morrer- referiu Druss. -Já vi isso. Assim sendo, por que é que este ... este Boranius te causa tamanho terror?

Em voz baixa, Skilgannon contou ao homem do machado das

mutilações sofridas por Spl'rian l' M ola ire, do desmembramento e das cegagens. -Os homl'I I S mais lc>rtl'S ficariam desmoralizados e a

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choramingar como um bebé ante os actos dele, Druss. Ele devia acabar a sua vida como um pedaço de carne miserável, destruído e a sangrar. Tudo em mim me diz que fuja. Que deixe Boranius entregue ao seu próprio destino.

-Todo o homem tem um ponto de rotura. Não duvido disso -alegou Druss. -Com sorte, acabarás por o defrontar com a espada. És talvez o melhor esgrimista que jamais vi.

-Boranius é melhor. Mais forte e mais rápido ... ou pelo menos era da última vez que nos encontrámos. Ter-me-ia morto, mas um dos meus homens atirou-lhe uma lança. Não lhe atravessou a armadura, mas afectou-lhe a concentração. Mesmo assim, conseguiu evitar o pri­meiro golpe de morte.

-Talvez devesses apenas deixá-lo comigo, moço. Snaga cortá-lo-á à medida.

Skilgannon anuiu.-Talvez deixe. Ficaram sentados à beira de Rabalyn durante um bocado, mas o

rapaz não acordou. A porta abriu-se e Weldi entrou, fazendo uma vénia. -Bom dia -cumprimentou -Espero que tenham dormido bem. -Antes de poderem responder, ele voltou a falar, desta vez dirigindo-se a Skilgannon. -A sacerdotisa, Ustarte, solicitou a sua presença, senhor. Venha, vou levá-lo até ela.

Druss ergueu o olhar quando Skilgannon se levantou. -Vou ficar mais um pouco com o rapaz. Pode acordar.

Skilgannon estendeu a mão. -Obrigado, Druss. Sabe, teria dado um excelente pai.

-Duvido muito, moço - retorquiu Druss, tomando a mão estendida no aperto do guerreiro, pulso com pulso. - O mais im­portante para um pai é estar presente quando o filho necessita dele. Nunca estou muito tempo em lado nenhum.

Skilgannon seguiu Weldi até à câmara superior da estufa, onde Ustarte aguardava junto ao peitoril. Sob o sol intenso da manhã, Skilgannon pôde ver, para lá da beleza dela, o cansaço e a idade que carregava. As rugas finas mais ínfimas sulcavam as suas frágeis feições de Chiatze. Ela sorriu-lhe enquanto se aproximava do peitoril.

-Mandastes-me chamar, dama? -Julguei que te agradasse viajar comigo, guerreiro. Até à cidadela. -Agora? -Se desejares. -Viajareis connosco? - Não. Só tu e eu, Olek. Será uma questão de momentos.

Skilgannon ficou atrapalhado. -E como o vamos fazer? -Senta-te apenas na cadeira ali e relaxa. Levarei o teu espírito até

lá. Confuso, retirou a bainha e sentou-se, apoiando a cabeça numa al­

mofada. Ouviu o roçagar das vestes dela, depois sentiu o calor da sua mão na testa. Adormeceu instantaneamente.

Ele ergueu-se da escuridão acolhedora, em direcção a uma luz in­tensa e brilhante. Apercebeu-se de que alguém lhe segurava a mão. Por algum motivo, pensou que fosse Molaire, e perguntou-se para onde iam. Depois recordou-se de que Molaire morrera. Foi acometido de um pânico momentâneo quando a luz se aproximou.

-Não tenhas medo-murmurou a voz de Ustarte dentro da sua cabeça. - Não lutes, senão acordarás demasiado cedo. Confia em mlm.

Subitamente estava acima das nuvens, e a luz forte era a do sol, bri­lhando num céu de um azul incrível. Por debaixo dele estavam as montanhas vermelhas que atravessara, e um longo rio serpenteante que brilhava intensamente enquanto ondulava em direcção ao mar. Sentiu puxarem-lhe pela mão e o espírito elevou-se em direcção a noroeste, afastando-se do Sol nascente. Viu lá em baixo aldeias e comunidades agrícolas, e duas pequenas vilas, a maior das quais se desenvolvera à volta do ponto de cruzamento das quatro estradas principais. Logo a se­guir havia uma fortaleza antiga. A muralha exterior estava a desmoro­nar-se, a superfície exterior rectangular cobrindo uma área de cerca de quilómetro e meio. Lá dentro encontravam-se armazéns e edifícios altos. No centro da fortaleza existia um fosso circular, da altura de quatro an­dares. Fora acrescentado um telhado de madeira abobadado.

-Foi construída há centenas de anos para proteger as rotas co­merciais-afirmou Ustarte.-Mas quando o reino de Pelucid caiu, a fortaleza esteve abandonada durante décadas. Ultimamente tem sido usada por bandos de salteadores, que controlam as rotas comerciais. Cobram impostos às caravanas terrestres que vêm das cidades costei­ras. As sedas do Gothir, as especiarias do Namib, ouro e prata das minas a oeste. Tudo isto está sob a jurisdição daqueles que controlam a cidadela. O Máscara de Ferro capturou-a há cerca de um ano, os­tensivamente para permitir que o comércio livre chegasse à Tantria.

A cidadela ficou mais próxima. - Como podes ver, é ainda um castelo formidável. Conseguiria resistir a um cerco inimigo durante algum tempo. No entanto, seria possível alguns lutadores voluntários penetrarem a muralha exterior passando quase despercebidos.

357

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-E o xamã nadir? Não nos veria aproximar? - A Velha matou-o ontem à noite. Queimou-o vivo. Ele tentou

saltar para a morte a fim de evitar a dor, mas ela reteve-o com uma

fórmula aprisionadora. Ela é como Boranius. Vive para se deliciar com o sofrimento dos outros. Agora vamos ver o interior.

Durante algum tempo, os seus espíritos percorreram a cidadela, e

Skilgannon registou mentalmente os quartos e os salões, os corredo­res e as saídas. Por fim, chegaram a uma divisão superior, pequena e estreita. - O que se encontra ali? - indagou, vendo apenas uma

cama velha e um armário de madeira antigo. - Aqui encontram-se a tristeza e a dor da pior espécie - disse-

-lhe ela. Atravessaram a porta fina do armário e Skilgannon viu uma

criança pequena de cabelo louro, sentada no fundo do armário.

Abraçava os joelhos e baloiçava-se para trás e para a frente. -Esta é

a criança que Druss quer salvar. Recuando da escuridão do armário, flutuaram dentro do quarto.

-Olha ali- referiu Ustarte -,junto à cama.

Viu os dedos enegrecidos, em decomposição, e os vermes a raste­jarem sobre eles. -Os dedos da mãe dela. Ele deu-os à criança como brinquedos.

-Ela nunca irá conseguir recuperar disto - disse Skilgannon.

-Ele destruiu o futuro dela. -Podes ter razão, mas é preferível não fazeres juízos precipita-

dos. A criança fugiu, aterrorizada. Precisa de ser encontrada e conso­lada antes de ser salva. Precisa de saber que a ajuda vem a caminho.

Precisa de sentir que é amada.

-E como seria possível isso? -Posso levar-te até ela, Olek.

-Não sou grande consolador, Ustarte. Preferia que fôsseis vós. -Se eu o fizer, sabes o que ela veria? Uma mulher-lobo, com

olhos dourados brilhantes e garras afiadas. Ela precisa de alguém da sua própria espécie, Olek.

-Ela conhece Druss. Voltemos para trás. Podeis trazer Druss até

ela.

- Quem me dera poder. O que dizes é verdade. cA mera visão de Druss aminá-la-ia. Isso não é possível. Druss não pode ser alcançado desta forma. A noite passada, enquanto todos dormiam, entrei nos vossos sonhos. Jared está cheio de dor e, apesar de bondoso, não po­

deria levar à criança aquilo de que necessita. A mente de Druss é como um castelo. Ele guarda com grande determinação a sua privacidade

.1'5H

interior. Quando tentei comunicar, deparou-se-me um súbito muro de raiva. Retirei-me imediatamente. Diagoras poderia ser a próxima

escolha. Ele teme-me demasiado, e o que vê como a minha natureza. Não teria confiado em mim como tu fizeste. A dada altura, teria en­

trado em pânico e tentado fugir. Talvez conseguisse mesmo, e a sua

alma ter-se-ia perdido. Depois havia Garianne. Não tentaria sequer entrar nos labirintos cheios de gritos da mente dela. Perder-me-ia lá

dentro. Por isso, só restas tu. -O que devo fazer?

- Levar-te-ei até ela. Ela deve ter criado um mundo à volta de si mesma que é familiar. Tens de a alcançar, e encontrar um caminho

através do lugar complexo ... mesmo perigoso ... que ela habita. -Perigoso para ela ... ou para mim?

-Para ambos. Não lhe dês falsas esperanças. Parecerá útil na al-

tura, mas tornarás impossível o regresso. Não lhe digas que Orastes está vivo. Sê sincero, mas carinhoso com ela. É tudo o que te posso

aconselhar. -Não sou a pessoa indicada para esta tarefa, Ustarte.

-Não, não és. E podes fracassar. Mas és o único que posso usar. - Levai-me até ela - pediu.

Skilgannon encontrou-se de pé diante de uma imensa mata de espinhei­ros. Sentiu-se desorientado. O céu lá por cima mudara e enchera-se de um turbilhão de cores, nuvens roxas e verdes, raiadas de veios amarelos e carme­sins. O solo por debaixo dos seus pés contorcia-se em longas raízes, saindo da terra como cobras à procura de presas.

Afastando-se dos espinheiros, procurou terreno mais firme. Ustarte dissera-lhe que o mundo que habitava agora era inteiramente uma criação da rapariga de oito anos, Elanin. Só existia nas profundezas do subcons­ciente dela. «É a sua última defesa contra os horrores do mundo real», dissera a sacerdotisa.

«0 que podemos fazer ali?» «Não tens a capacidade de mudar o mundo dela. Tudo o que fizeres tem

de ser compatível com o mundo que ela criou. Se for um rio, podes beber dele e banhar-te nele. Se for um leão, podes fugir dele ou lutar com ele. Não te posso ajudar lá, Olek. Se não a conseguires encontrar, ou correres perigo, grita ape­nas o meu nome e retirar-te-ei de lá. »

Recuando das raízes retorcidas, olhou para a floresta de espinheiros. Sentia o peso das espadas nas co.rtaJ e pen.rou 11.rá-la.r para abrir caminho. Pareceu­-lhe a atitude mais lógica. No mt,mlo, não 11 .fez.

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Olhou antes ao seu redor, e viu uma zona de pedra plana. Encaminhou­-se para lá e sentou-se, olhando para os espinheiros. Algumas das pernadas da floresta eram da grossura da coxa de um homem, os espinhos saindo delas como punhais panthianos compridos e curvos. Observou melhor. Na verdade, eram punhais.

Estava perante um dilema. A criança criara uma barreira de espinhos como defesa. Se os cortasse e partisse, estaria a atacá-la, provocando-lhe ainda mais medo. Ela precisava de acreditar na sua própria força. Tirando a bainha das costas, depositou-a na pedra. A seguir despiu o justilho franjado e a camisa. Deixando para trás as armas, escolheu cuidadosamente o caminho através das

raízes enroladas até chegar à primeira pernada dos espinheiros. Também estes se moviam.

«Sou um amigo, Elanin», anunciou, em voz alta. «Preciso de falar contigo.» Levantou-se um vento. Os espinheiros oscilaram e cortaram. «Vou atra­

vessar os espinheiros», disse. Com enorme cuidado, transpôs a primeira pernada. Um espinho-punhal

cortou-lhe a parte de cima do ombro, a ferida ardendo como fogo. «Estás a magoar-me, Elanin», disse, mantendo a voz suave. «O meu nome é Irmão Lantern. Sou um padre de Skephtia. Não te quero fazer mal.»

Embrenhando-se mais nos espinheiros, procurou manter a calma. Um punhal espetou-se-lhe na coxa. Outro enterrou-se-lhe no antebraço. <<Vim ajudar-te. Por favor não me faças mal.»

Agarrando o espinho-punhal no seu braço, libertou-o e prosseguiu. A dor percorreu-o, inflamando-lhe a raiva. Esforçando-se por a reprimir, passou por cima de uma pernada baixa. Uma agonia cauterizante percorreu-lhe as costas. Olhando para baixo, viu um comprido espinho-punhal a sair-lhe da barriga. O pânico afectou-o. Era uma ferida mortal. Preparava-se para proferir o nome de V starte quando viu que o golpe profundo no seu braço desaparecera entre­tanto. «Por favor, tira este espinho de mim, Elanin », pediu. «Dói imenso.»

O punhal foi arrancado dele. Gritou de dor e caiu de joelhos. Levando os dedos à barriga, não viu sangue nem sinal de qualquer ferida. Levantando­-se, continuou a descer o caminho serpenteante. Um rugido selvagem fez estre­mecer o solo debaixo dos seus pés. Continuou a andar.

A parede de espinhos terminara. Diante dele estava uma clareira. No seu centro encontrava-se um urso enorme com as presas de fora. Skilgannon foi ao encontro dele - e viu que mais uma vez segurava as espadas nas mãos.

<<Não!», gritou, atirando-as para longe de si. «Não as quero!» O animal atacou. Instintivamente, Skilgannon atirou-se de cabeça para a

direita, rolando sobre o ombro e levantando-se suavemente. <<Não te farei mal, Elanin », gritou. «Estou aqui para ajudar. »

360

I

O animal empinou-se e avançou para ele. Skilgannon ficou muito quieto. <<Vim com o Tio Druss à tua procura», disse, tentando encontrar indícios da

criança na vegetação rasteira. O urso erguia-se por cima dele, e fitou os seus enormes olhos castanhos. <<Onde está o Tio Druss?», perguntou ele, com a voz de uma rapariga pe-

quena. «Está a chegar à cidadela. » <<Ele tem um exército?» <<Não. Estou com ele. E Diagoras e Garianne. Dois amigos do Tio

Druss. O urso sentou-se. A sua forma brilhou e modificou-se. O solo alterou-se.

Surgiram paredes à volta da clareira. Passados momentos, Skilgannon en­controu-se sentado num quarto alto, com uma janela ampla com vista para o mar. Era um quarto de criança, cheio de brinquedos e livros. Em cima da cama, junto à janela, estava sentada uma rapariga loura, de olhos azuis grandes. «Olá, Elanin», disse-lhe.

«Onde está o meu pai?», perguntou ela. <<Não o consigo encontrar.» Skilgannon suspirou. «Posso sentar-me contigo?», perguntou-lhe. «Podes sentar-te na cadeira.» Fez o que ela lhe mandou. «Sou o Irmão Lantern», anunciou. <<Sou ...

fui ... padre. Também me chamo Skilgannon. Não conheço o teu pai. Nunca o vi. O Tio Druss diz-me que ele é um excelente homem. »

«Eles mataram-no, não mataram? Eles mataram o Pai. O Máscara de Ferro contou-me. Ele disse que o transformaram num lobo e que foi morto na Arena.»

«O Máscara de Ferro é um homem mau. Mas tens de ser forte. Nós viemos buscar-te. »

«Ele também me quer matar. Mas não me encontrará aqui.» <<Pois não. »

A rapariga fitou os olhos de Skilgannon. «Se não tiveres um exército, não conseguirás vencer. Há imensos soldados com o Máscara de Ferro. Homens grandes com espadas grandes. Mais de cem. Vi-os da minha janela. »

«Eu também os vi. Vai ser difícil. Diz-me, pequenina, conheces o caminho de regresso para a cidadela?»

«Não volto para lá! Não me podes obrigar!» O quarto brilhou, perna­das de espinheiro a saírem das paredes.

<<Ninguém te vai obrigar a fazer nada», disse-lhe, rapidamente. «Aquilo lá fora é o porto? Tens ali um barco? Sempre gostei de barcos.» Os espinhos recuaram. Elanin levantou-se da cama e abeirou-se da janela.

<<O Pai não gosta de barm.r. fidzem-rw mjoar. »

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«As vezes enjoo nos barcos. Mas continuo a gostar deles.» Ajoelhou-se di­ante dela. «Quando te viermos salvar da cidadela, precisamos de te levar de volta para casa. Precisamos de . . . uma senha secreta para saberes que é seguro.»

«Não vou voltar para casa. O Pai não está lá. Ficarei aqui.» «Esse é um plano», concordou. «Acho que deixará o Tio Druss triste.» «Então ele pode vir aqui.» «E os teus amigos lá em Dros Purdol? Eles não podem vir aqui. Este é o

teu lugar especial. Só vim porque tenho uma amiga fantástica que me mos­trou o caminho. »

«0 Máscara de Ferro também matou a Mãe. Cortou-a aos bocados.» As lágrimas brotaram nos olhos da criança. Instintivamente, Skilgannon esten­deu a mão para um abraço. Acariciou-lhe o cabelo e deu-lhe palmadinhas nas costas.

«Não a posso trazer de volta», redarguiu Skilgannon. «Não te posso tirar o sofrimento. Mas tu és forte. És uma rapariga muito corajosa. Vamos com­binar uma senha. Podes decidir se ficas aqui, ou se voltas para o Tio Druss e para mim.»

«Acho que te devias ir embora», disse ela. «Está a fazer-se tarde.» O quarto andou à roda. Skilgannon foi arremessado pelo ar, na mais total

escuridão. Caiu pesadamente por terra- mesmo diante da floresta de espi­nheiros.

« Vêmo-nos em breve, Elanin», gritou. Depois murmurou o nome de Ustarte.

Skilgannon abriu os olhos. Ustarte estava de pé à beira da varanda,

olhando-o com atenção. -Como te sentes?-inquiriu.

-Cansado. -Bebe um pouco da nossa água. Reanimar-te-á. -O sol brilhava

com intensidade, e uma brisa fresca varreu a varanda. Skilgannon en­

cheu um copo de cristal e bebeu-o todo. Os seus membros pareciam de chumbo, como se tivesse percorrido uma enorme distância.

-Sofreste muito-afirmou Ustarte.-Vou ser sincera, surpre­endeste-me, guerreiro. Quase morreste ali.

-Avisastes-me de que seria perigoso.-A força voltava a penetrar-

-lhe nos membros.

-Não é isso que me surpreende. Mesmo Druss, creio, teria levado o machado para aquela mata de espinheiros. Teria certamente lutado

com o urso. -Não importa. Fracassei. Ela está demasiado aterrada para sair. - Plantaste uma semente. Não podias fazer mais. Devias descan-

sar um bocado.

-Ainda não - afirmou Skilgannon. - Podeis levar-me mais uma vez à cidadela? Preciso de ver exactamente quantos soldados lá

estão, e quais são as suas obrigações. -Posso indicar-te o número.

-Com todo o respeito, dama, preciso de ver com os meus pró-prios olhos. Quatro guerreiros não conseguem atacar a cidadela. Se

necessitássemos apenas de entrar e matar o Máscara de Ferro, pode­ríamos fazê-lo. No entanto, agora já vi a criança, e o dever mais

importante que tenho é salvá-la, trazê-la de volta com segurança. Se isso for nem que remotamente possível, preciso de conhecer os mo­

vimentos das tropas, os seus métodos e as suas obrigações. Preciso de entender as suas lealdades. Lutam por amor a Boranius, ou para saquear? Está tudo contra nós neste momento. Se tivéssemos che­gado secretamente, poderíamos ter levado a criança misteriosamente e regressado depois para tratar de Boranius. Ele sabe que viremos. E eu conheço Boranius. Não é tolo. Pelo que vi na cidadela, há ape­

nas quatro abordagens. Ele terá batedores no exterior, a vigiar-nos. Assim que formos vistos na estrada aberta, enviará cavaleiros para

nos interceptar. Mesmo com vinte Druss, a Lenda, seríamos venci­dos, por flechas e lanças, se não pelas espadas .. -Olhou para ela.

-Por isso, peço que me leveis de novo até lá.

-Alteraria os teus planos se te dissesse que não podes vencer, Olek?

-Não -limitou-se a responder. -E porquê?

-Não é uma pergunta de resposta fácil, dama, e estou demasiado cansado para a discutir.

-Nesse caso, levar-te-ei de volta à cidadela, Olek. Fecha os olhos.

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CAPÍTULO 19

Marcha encontrava-se sentado do lado de fora do quarto. Os ge­midos de dor estavam a abrandar, agora que o cirurgião aplicara bál­samos narcóticos no rosto destruído de Boranius. As queimaduras eram graves e, no entanto, curiosamente, haviam afectado somente a pele descolorada. O resto do rosto e os olhos estavam absolutamente intactos. Passado um bocado, o cirurgião que Marcha trouxera da pe­quena vila com mercado saiu do quarto. - Agora está a dormir -anunciou.-Nunca vi uma ferida assim.

-Nem eu - respondeu Marcha. O oficial de cabelo ruivo levan­tou-se. - Obrigado por ter vindo - disse-lhe. O cirurgião, um homem de rosto magro com ombros redondos, olhou-o com curiosi­dade. Marcha ficou subitamente embaraçado. O homem não tivera es­colha. Quando o Máscara de Ferro dava uma ordem, era obedecer ou morrer. Às vezes sucediam ambas as coisas.

- Vou necessitar de um quarto próximo. Quando ele acordar, a dor voltará. Preciso de estar aqui.

-Evidentemente -referiu Marcha. -Surpreende-me que a visão não fosse afectada. Não existem

queimaduras na pele à volta dos olhos. Como ocorreu este acidente? - Eu não estava presente, senhor. O Nadir foi reduzido a cinzas.

Não restou nem um osso. O meu amo ficou mutilado como viu. Alguns homens ouviram gritos vindos do Salão do Telhado e correram para lá. A porra estava trancada. Escutaram vozes lá de dentro ... uma delas de mulher. Quando conseguiram arrombar a porta, a mulher tinha desaparecido.

llavia outras saídas�

-Não. O cirurgião estremeceu. -Não preciso de saber mais nada sobre

o assunto-disse ele, fazendo o sinal do Corno Protector.- Mostre­-me onde posso dormir.

Marcha conduziu-o a um pequeno quarto no rés-do-chão. -Vou mandar trazer-lhe algo que comer e beber-disse. -Espero que fique confortável. -Mais uma vez o cirurgião o olhou de forma estranha.

-Se não leva a mal que lhe pergunte, meu jovem, como é que ainda aqui está?

-Levo a mal que me pergunte-retorquiu Marcha, fazendo uma curta vénia e deixando o cirurgião.

Enquanto saía para a noite, a pergunta continuava a martelar-lhe no cérebro. Deslocou-se por terreno aberto, depois passou pelos ar­mazéns e depósitos, chegando finalmente ao edifício baixo da caserna que abrigava os soldados que ainda seguiam Boranius. Ao lado da ca­serna ficava a Taberna Comprida, onde os homens descontraíam ao final do dia. Os sons lá de dentro eram roufenhos. Não apeteceu a Marcha reunir-se-lhes. Prosseguiu, chegando à zona dos Nadir, agora quase deserta. A morte de Nygor fora vista pela maior parte dos guer­reiros como um mau presságio -especialmente ocorrendo num tão curto prazo após a matança dos homens enviados atrás do Caminheiro da Morte. Dos sessenta guerreiros nadir que tinham ocupado esta sec­ção apenas restavam agora quatro batedores. Os demais haviam selado os seus póneis e partido rumo ao Norte.

Marcha dirigiu-se para o muro exterior de defesa e subiu às muralhas. Encontrou as duas sentinelas nesta secção em animada con­versa. Uma delas viu-o e pôs-se imediatamente em pé. A outra limi­tou-se a olhar para Marcha e deixar-se ficar onde estava. - Ainda há inimigos lá fora - referiu Marcha. - Precisamos de estar alerta.

-Peço desculpa, senhor - afirmou o soldado de pé. -Estávamos apenas a falar do ataque ao Máscara de Ferro.

-E ao facto de a sorte não nos ter abandonado - interveio o se­gundo. - Devíamos deixar este lugar, Marcha. Se não o fizermos morreremos aqui.

- Eles são apenas um punhado de guerreiros lá fora, Codis. Druss pode ser uma lenda, mas nem ele nos conseguirá derrotar a todos.

- Não, não pode - concordou o homem, pondo-se em pé. -E depois? Há alguns anos, éramos soldados do rei. Por Shemak, homem, éramos a elite. Depo is perdemos t' l'Scapámos por um triz. O que temos sido de então para d� Para st·r sinn·ro, Morcha, quem me dera

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que não me tivesse vindo procurar e dizer que Boranius ainda estava vivo. Estou muito arrependido de não ter ficado sossegado em Dospilis. Nenhuma das promessas foi cumprida.

Morcha sentou-se no parapeito da ameia. - Não disseste isso, Codis, enquanto amontoávamos riquezas em Mellicane.

-E isto parece-lhe Mellicane?-escarneceu Codis. Isto é uma ruína a desmoronar-se. De que serve ter sentinelas nas muralhas, quando existem pelo menos dez brechas enormes, e outras zonas onde um homem conseguiria entrar sem que ninguém desse por isso? Temos árvores que vêm quase até à beira das muralhas. Quando o inimigo aqui chegar, limitar-se-á a entrar. Só os veremos quando se iniciar o derramamento de sangue. Sugiro que partamos e nos dirija­mos para as colinas. Podemos saquear algumas caravanas, fazer algum dinheiro, e depois partir para leste, em direcção a Sherak. Estão a con­tratar mercenários. Podíamos safar-nos por lá.

-Sim, podíamos. Não gostarias, talvez, de dizer isso a Boranius? -Talvez o devêssemos dizer todos - afirmou Codis. Talvez

devêssemos ir ter com ele agora e acabar com o seu sofrimento.

Codis calou-se, e as palavras pairaram no ar. Fitou os olhos de Morcha.

Ele nunca mais vai recuperar o poder, Morcha. Ele teve uma opor­

tunidade em Mellicane, mas agora não. O que somos? Um bando de

salteadores. Mais cedo do que pensamos, os Datianos virão atacar-nos.

Pertencíamos a um exército de milhares. Agora somos só setenta.

Esgotaram-se-nos o ouro, as oportunidades e a sorte.

A sorte pode mudar alegou Morcha. Sim, pode. Para nós, porém, o mais provável é irmos de mal a

pior. Falei com os três Nadir que sobreviveram ao ataque a Druss. Já

soube? Constou-me que foram massacrados.

Codis riu subitamente entre dentes.-Ah, sim, esteve no Norte. Nesse caso, não soube a notícia melhor?

Então conta-me. -Bem, os Nadir acamparam na noite anterior ao ataque.

Apareceu um único esgrimista, matou uma data deles, depois foi-se embora num dos seus póneis. O esgrimista tinha duas espadas curvas, com os punhos de marfim. Um dos Nadir recorda-se de lhe ver a tatuagem de uma aranha no antebraço.

E daí? -E daí? -repetiu Codis.- Quem acha que seria muito pro­

vavelmente! Não enfrentamos apenas Druss, a Lenda. Skilgannon

também vem. - Olhou atentamente para Morcha, depois a sua ex­pressão endureceu. - O senhor sabia. Sabia e não nos disse nada!

-Ele é um homem. Como disseste, nós somos setenta. -Oh, sim, um homem! Se ele entrasse agora aqui, quantos de

nós derrubaria antes de o conseguirmos deter? Cinco? Dez? Não quero ser um desses dez.

Não serás, Codis - afirmou Morcha, com um sorriso. Descendo das ameias, soltou subitamente uma gargalhada. - Posso garantir-to.

-Oh sim, e exact... Codis resfolegou. Os seus joelhos cede-ram. Morcha enfiou mais o punhal no peito de Codis. O soldado tom­bou sobre o assassino. Morcha recuou. Codis caiu de bruços sobre a pedra. O outro soldado permaneceu em silêncio. Morcha virou o corpo de costas e libertou o punhal.

-Fica de vigia -ordenou Morcha. Vou mandar outra senti-nela fazer-te companhia. É melhor não te pores de novo a conversar.

-Não o farei, senhor. Acredito em ti.

Morcha limpou o punhal na túnica do morto, depois embainhou­-o. Descendo os degraus da muralha, voltou para a taberna, onde lo­calizou um oficial e ordenou-lhe que mandasse alguns homens buscar o corpo de Codis.

Depois voltou para a cidadela. Lembrando-se do cirurgião, orde­nou a um dos cozinheiros que levasse comida ao homem e sentou-se sozinho na sala de jantar deserta. O cozinheiro voltou passado um bo­cado e trouxe a Morcha uma caneca de cerveja fria. Morcha agrade­ceu-lhe.

A sua mente refluiu nos anos, recordando o dia em que ele e Casensis tinham seguido o jovem, Skilgannon. Lembrava-se ainda com carinho do tempo passado nos banhos. A facilidade com que o rapaz os enganara, e quão impagável fora o disfarce que a princesa adoptara. Toda a cidade andara à procura de Jianna, e ei-la ali, vestida de pros­tituta, e diante dos dois homens encarregues de a capturar. Morcha sorriu ante a evocação.

A descontracção que o jovem Skilgannon mostrara. Morcha admi­rara-o. Mais do que isso, gostara dele. No seu íntimo, ficara satisfeito quando o rapaz fugira da cidade com a rapariga. Com sorte, teriam prosseguido e andado ao sabor das páginas da história. Mas não. A re­belião começara. Boranius ficara encantado. A perspectiva de batalhas e glória entusiasmara-o. ( )s p(·nsanwntos de derrota não haviam

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entrado na cabeça de ninguém. As forças da princesa tinham sido pe­quenas, causando apenas contrariedades e irritação a Bokram. Alguns fortes mais remotos estavam ocupados, umas quantas caravanas tinham sido apreendidas. Os ataques eram rápidos e em pequena es-

. cala. No primeiro ano, não tinham passado de meras ferroadas no corpo do exército de Bokram. O segundo ano fora praticamente idên­tico. Depois, mais dois chefes tribais se tinham juntado ao exército de Jianna. Haviam bloqueado os altos desfiladeiros a oeste do Naashan, libertando efectivamente uma região contendo duas cidades e uma vintena de minas de prata. Em retrospectiva, fora o princípio do fim de Bokram. Muito embora nenhum de nós se apercebesse na altura, recordou Morcha.

Acreditámos que iríamos vencer mesmo até à última batalha. Percorreu-o um arrepio súbito. O dia, iniciado de bom humor, ter­minara com Morcha e mais cinco a levarem Boranius, mutilado, para fora do campo.

Agora, passados anos, Boranius estava novamente mutilado, e mais uma vez Skilgannon vinha aí.

Codis tivera razão. A única atitude sensata era partir dali já. E, no entanto, não podia fazê-lo. Num mundo de valores em mudança, Morcha acreditava na leal­

dade. Comprometera-se com Boranius e não o iria abandonar.

-Viste o suficiente? perguntou U starte. Skilgannon fez um esforço para abrir os olhos. Parecia que o seu corpo não dormia havia um mês. Doía-lhe cada músculo. Não se conseguiu levantar da ca­deira. A mão enluvada de Ustarte acariciou-lhe o rosto. -Os hu­manos sem preparação acham a viagem do espírito esgotante -declarou ela.- Bebe um pouco da nossa água. Ajudará.-Tudo o que Skilgannon conseguiu fazer foi levar o copo aos lábios. A sua mão tremia. Bebeu, depois recostou-se na cadeira e fechou os olhos.

-Sinto que envelheci vinte anos-referiu. Passará depois de descansares. Dorme um bocado. Voltarei

daqui a pouco. Não foi preciso insistir. Adormeceu imediata e profundamente, e

não sonhou. Quando acordou, raiava um novo dia. Ustarte estava de pé à beira da varanda, o sol a brilhar na sua túnica vermelha e ouro.

Sentes-rt· m t' lhor� Sinro, duma. Foi o melhor sono que tive em anos. N;in visrt• o Lobo Brancot

Ele sorriu. -Parece ser minha maldição encontrar pessoas que co­nhecem os meus sonhos. Mas não, não me apareceu lobo nenhum. Quase o matei da última vez.

-Ainda bem que não o fizeste. Sentou-se e bebeu mais um pouco de água. Acho que deixaria

de me perturbar o sono. -Efectivamente deixaria. Por isso é que não o deves fazer. -Cuidais que necessito de sonhos agitados? -Acho que necessitas de compreender a natureza do lobo.

Alguma vez te atacou? Não.

-És tu quem persegue o lobo, sim? Isso é verdade. Sempre que o vejo, puxo das espadas. Nor­

malmente ele desaparece. Da última vez, porém, avançou para mim. -Não atacou? Não mostrava os dentes? -Não. Avançou apenas para mim. Ergui as espadas para o matar,

mas Diagoras acordou-me. -Outra vez as espadas. Sabias que a Velha invocou demónios e

os aprisionou dentro das armas?-Skilgannon abanou a cabeça.­Os demónios dão-lhes podei. No entanto, é um acordo. Lentamente, os demónios exercerão influência sobre ti. Corromper-re-ão, au­mentando as tuas raivas e os teus ódios. São eles que querem que mates

• o Lobo Branco. É por isso que, nos teus sonhos, as vês salta­

rem-te para as mãos. -Por que é que elas precisam de matar o lobo?

Cabe-te responder, Olek. O Lobo Branco é normalmente ex­pulso da matilha. Ele é diferente, e os outros lobos temem-no. Por isso este lobo anda sozinho. Não tem companheira, nem matilha para seguir ou liderar. Ele faz-te lembrar alguém?

-O lobo sou eu. -Sim ... ou melhor, a tua alma. Ele representa tudo o que é bom

em ti. As espadas precisam de o matar antes de te dominarem. A vi­agem até à cidadela ajudou-te?

-Acredito que sim. As tropas ali estão desmoralizadas. Os Nadir fugiram. Mais irão desertar com o decorrer do dia. Temem Druss. Só o facto de saberem que ele vem aí está a encher os soldados de terror.

E tu, Olek. Eles temem-te imenso. -Sim, isso é verdade. -Sinto que já conhen·s um dos qut' viste. Até tinhas um certo

afecto por ele.

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Conheci-o há anos. E, sim, gostei dele nessa altura. É estranho ver um homem como ele seguir um monstro como Boranius.

Ela soltou então uma gargalhada.- Vocês, humanos, divertem-me. Ele é um monstro, dizes. Não, Olek, ele é apenas um homem que cedeu aos males da sua natureza. Todos vocês têm um potencial para o mal, e para o bem. Muito depende dos estímulos aplicados. Os soldados que comandaste até Perapolis chacinaram e violaram, mutilaram e destruí­ram outros seres humanos. Depois voltaram para casa para as mulhe­res e as namoradas, e criaram filhos e amaram-nos. Vocês são monstros, Olek. Maciçamente complexos e loucos como não há outros. Ensinam aos vossos filhos que mentir está errado. Mas as vossas vidas são regi­das por pequenas mentiras. O camponês não diz ao suserano o que re­almente pensa dele. A mulher não conta ao marído que viu um homem no mercado que a deixou em brasa. O marido não conta à mulher que foi ao bordel. Seguem um deus de amor e perdão e, no entanto, lan­çam-se na guerra aos gritos de «A Fonte está connosco.» Preciso dizer mais? Boranius é mau. Isso é verdade. No entanto, em toda a sua vida, ele não mandou matar tantos inocentes quanto tu.

-Não posso discutir convosco, dama- afirmou Skilgannon, com pesar. -Não posso anular o passado. Não posso trazê-los de volta.

-Mas podes dar-lhes paz- disse ela, em voz baixa. Olhou para ela, correspondendo à sua fixidez. Deixando

Garianne matar-me? Vós mesma dissestes que provavelmente ela está perturbada, e que não existem fantasmas dentro da sua cabeça.

- Posso ter-me enganado. Ele soltou uma risada. Um problema de cada vez, dama.

Primeiro temos de salvar a criança. Depois disso pensarei no problema de Garianne. Onde está Druss?

Ele encontra-se com Rabalyn. O rapaz está a recuperar bem. E Diagoras?

-Ele e os gémeos estão nos jardins de baixo com Garianne. Diagoras descobriu muita coisa em comum com Nian. Discutem ma­ravilhosamente sobre a natureza das estrelas. - Ustarte virou-se e olhou para as montanhas vermelhas. Há algo mais que deverias saber, Olek. A Velha lançou uma fórmula de ocultação sobre as ter­ras a nordeste da cidadela. Não a consigo penetrar.

-A nordeste?- repetiu. -As terras de Sherak? -Não a totalidade de Sherak. Nem mesmo ela é tão poderosa.

Não, trata-se apenas de uma . .. bruma, se quiseres ... sobre uma pe­quena área .

. HO

Os desígnios dela são um mistério para mim - admitiu ele -, só sei que quer ver Boranius morto.

- Há algo mais revelou Ustarte. - Sei que ela odeia Druss. Ele atravessou-se duas vezes no caminho dela.

-Ela também não gosta lá muito de mim - frisou Skilgannon -, apesar de, tanto quanto sei, não ter feito nada para a prejudicar.

Ela mandou Garianne para te matar. Disso não tenho dúvida. Por isso, no mínimo, ela exige três mortes. Boranius é obviamente a mais importante. Caso contrárío, Garianne já teria tentado matar-te. Os actos da Velha são mesmo muito estranhos. Matou o xamã nadir com uma fórmula de fogo. O seu corpo tornou-se uma vela viva. Trata­-se de magia poderosa, Olek. Consegui-la, enquanto na forma espiri­tual, é efectivamente terrível. O que significa, porém, se ela o desejasse, que te poderia matar e a Druss precisamente da mesma maneira. Ou, na verdade, Boranius. Nesse caso, a questão é: Por que não o faz? Porquê esta complicada missão?

-As nossas mortes, por si sós, não são suficientes - afirmou Skilgannon.

Não entendo. Vede Boranius, por exemplo. Poderíeis perguntar-lhe por que

razão, quando mata, o faz tão lentamente. Ele sente prazer na tortura e na dor. A Velha não é diferente. Matar-nos apenas não tem qualquer atractivo para ela. Druss é um homem orgulhoso. Quer salvar a rapa­riga. Imaginai como se sentiria se essa salvação fracassasse. Pior, se ele chegasse e a visse morrer.

Ustarte teve um calafrio. - Não quero entender semelhantes profundezas do mal. Se o que afi�mas é verdade, nesse caso, o que pre­tende ela de ti?

- Isso é mais simples, creio. Temo Boranius, mais do que temo a morte. Seria um prazer para ela ver Boranius cortar-me aos pedaços.

-E a fórmula de ocultação que ela lançou? Permaneceu silencioso por um momento, reflectindo no problema. Vem mais alguém- referiu por fim. Se ela quer que Boranius

mate Druss e me mate a mim, nesse caso, necessitará de outra arma para se livrar de Boranius. Mais guerreiros atraídos para a sua teia.

-E sabendo disto, estás decidido a atacar a cidadela? -A criança é a chave de tudo disse. - Reside aí a beleza do

plano dela. Não podemos virar costas agora. Ela deve sabê-lo. Mesmo que sobrevivêssemos . . . o que é duvidoso . . . a criança será morta diante dos nossos olhos.

.�71

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Ustarte respirou fundo. -Não costumamos participar nos as­suntos deste mundo - referiu. - Abrirei uma excepção agora. Vou

ajudar-te, Olek.

Diagoras estava a gostar da conversa com Nian. Tinham passado da

natureza das estrelas e dos planetas para as complexidades fundamen­tais do universo. O oficial drenai ficou tão absorto que se esqueceu por momentos de que Nian estava condenado a morrer. Entretanto, Jared, mantinha-se sentado, participando pouco no debate. Observava o irmão, a sua expressão evidenciando um misto de admiração e tristeza. Garianne estava sentada junto às margens de um riacho que fluía pelo jardim interior. Olhava para a água que rumorejava sobre um leito de pedras brancas brilhantes.

Nian acercou-se e beijou-lhe os cabelos louros.-É bom ver-te de

novo, minha amiga- disse.

-Estamos satisfeitos por teres voltado- respondeu-lhe ela. Nian olhou por cima do ombro dela para o riacho, depois foi até à beira da água, acocorando-se e introduzindo a mão no pequeno lago na base do riacho. Depois ergueu-se e examinou a cascata de metro e meio que se precipitava das rochas junto à parede norte.

-O que acha tão fascinante?-inquiriu Diagoras, vindo ter com ele.

-Não vê? Repare na cascata.- Diagoras assim fez. -O que é suposto estar a ver? - As pétalas cor-de-rosa a rodopiar na superfície da água. -O que têm? Vêm das roseiras do outro lado do riacho -afir-

mou Diagoras, indicando os pequenos arbustos floridos. -Sim, vêm. Nesse caso, como é que caem também da cascata,

que parece vir da superfície da rocha? -Obviamente há mais roseiras algures por cima de nós.

Nian abanou a cabeça. -Acho que a água desce apenas a cas­cata, e depois é retirada do lago para andar sempre às voltas.

Intrigante. - A água não sobe a colina, Mestre Nian - salientou Diagoras.

- É impossível. Nian soltou uma risada abafada. - Mestre Diagoras, está sentado

num templo que a ma�ia tornou invisível, que é governado por cria­turas semi-humanas t• semiani mais, que trouxeram Rabalyn de volta dos mortos, t' mt' trouxeram de volta aos vivos. E fala-me na impos­sibilidadt· dt• a â�ua subir a colina?

Diagoras soltou uma gargalhada embaraçada. -Exposto dessa ma­neira, não posso deixar de concordar consigo.

Garianne levantou-se com agilidade. - Olá, Tio - saudou. Diagoras viu Druss atravessar o jardim. O Drenai sorriu.

- Ah, assim está melhor, Druss. Agora parece o homem que conheci. -Era verdade. Os olhos cinzentos de Druss brilhavam e a

sua pele tinha um aspecto saudável. -E sinto-me, moço. A água aqui é quase tão boa quanto o

Lentriano Tinto . . . e estou a ser sincero. Viste Skilgannon? -Não. Ele partiu com a sacerdotisa a noite passada. Não o vejo

desde então.

-Eles estão a fazer uma viagem do espírito- anunciou Nian. - Há quem lhe chame Elevação. É uma proeza que dizem ter sido dominada primeiro pelos Chiatze há milhares de anos. O espírito li­

berta-se do corpo e pode percorrer longas distâncias. Acredito que Ustarte esteja a usar os seus poderes para permitir que o seu amigo Skilgannon examine a cidadela.

Diagoras não pareceu muito convencido. Nian soltou uma garga­lhada.- É verdade, meu amigo. Eu não lhe ia mentir.

- Acredito em ti, moço - afirmou Druss. - A minha mulher

tinha esse talento. É bom ver-te com excelente aspecto. -Não imagina como é bom voltar a ser como era. Tudo o que

tive nestes últimos anos foram fragmentos de coerência, e estranhas lembranças de loucura, ou completa estupidez. Fico embaraçado de pensar no que me tornei.

-Não devias ficar embaraçado- contrapôs Druss.- Foste uma boa companhia, e um amigo fiel. Isso conta muito.

Nian sorriu e estendeu-se para apertar a mão de Druss. -

Agradeço-lhe as suas palavras- disse-, muito embora, para dizer a verdade, preferisse estar morto a viver como vivia. E, apesar de Jared

não o ter admitido até aqui, receio que a morte esteja à minha espera mais depressa do que gostaria. - Trocou um olhar com o gémeo. -

Não é assim, irmão?

Jared nada disse e desviou o olhar. Nian virou-se novamente para Druss.- Vai dizer-me a verdade, homem do machado. Sou um bom juiz dos homens e não o tenho na conta de mentiroso.

Druss anuiu. -Não puderam remover os teus cancros. Essa é que

é a verdade. - Quanto tempo me dão?

-Um mês, talvez mt'nos.

.173

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Foi o que pensei. A expressão carrancuda de Jared era prova so­beja. Compreenderá, espero, por que motivo não o acompanharei na sua missão? Gostaria de ficar aqui. Há livros na biblioteca que estão cheios de maravilhas. Gostaria de ler o máximo que puder antes de morrer.

-Com certeza -retorquiu Druss. -Gostava que te pudessem ter ajudado, Nian. És um bom homem. Merecias melhor.

-Sempre acreditei que esta fase da nossa existência é apenas o começo de uma grande viagem. Fico triste, e um pouco assustado, por ir enfrentar a segunda fase tão cedo. Mas estou também entusiasmado com a perspectiva. Desejo-lhe felicidades, Druss. Espero que salve a criança.

-Normalmente faço o que me proponho fazer. -Não o duvido.-Nian virou-se para Diagoras e Garianne.

Desculpem-me, meus amigos, tenho de ir pôr a leitura em dia. Quando se afastou, Jared levantou-se para o seguir. Nian colocou

a mão no ombro do irmão. Não, irmão. Fica aqui com os teus ami­gos. Preciso de um pouco de solidão. E, dito aquilo, abandonou os jardins.

Na manhã seguinte, os viajantes reuniram-se no exterior do tem­plo. O animal que era Orastes estava agora acordado, e subiu para a traseira da carroça, mantendo-se perto de Druss, que ia no banco do condutor. Skilgannon, Diagoras e Garianne seguiam montados, e a sacerdotisa Ustarte estava de pé ao lado do cavalo castrado de Skilgannon.

-Estarei atenta a todos vocês -disse. -Quando o inimigo es­tiver próximo, lançarei uma fórmula sobre vocês. Confundirá aqueles que os olharem, da mesma maneira que o templo engana a vista. Não conseguirei aguentar a fórmula mais do que alguns minutos. Mas de­verá ser suficiente. Quando vos detiverem, digam que são viajantes que se dirigem ao mercado da vila. Digam que andam à procura de trabalho.

-Obrigado, dama, por tudo o que fez por nós - disse Skil­gannon.

Foi muito pouco. Voltaremos a encontrar-nos, creio, Olek. Talvez então possa fazer mais.

Quando Skilgannon ia virar o cavalo, o portão do templo abriu-se. Apareceu Jared, conduzindo o seu cavalo, seguido de perto por Nian. Diagoras foi ter com eles.

Ainda bem que mudou de ideias, Nian -disse. Teria sen-tido a sua falta.

371

Vamos para a cidadela anunciou Nian, satisfeito. Cortar os maus aos bocados. Vendo que Jared montara, Nian subiu para o seu próprio animaL

Estendendo a mão, agarrou a faixa no cinto do irmão.

Morcha não dormira mais de três horas nas últimas quarenta e oito. Estava tudo a desmoronar-se. Dezoito homens tinham deser­tado, e o moral entre os restantes estava em baixo. O próprio Boranius não parecia preocupado. Passara a maior parte do tempo no Salão do Telhado, no alto da cidadela, o seu rosto envolto em liga­duras agora permanentemente coberto pela máscara preta ornamen­tada. Morcha tentara interessá-lo nos relatórios dos batedores e na

lenta erosão da força de combate deles. Boranius limitara-se a enco­lher os ombros.

- Eles que se vão todos. Não me interessa-disse, a sua voz aba­fada pela máscara.

Naquela manhã, encontrara Boranius despido até à cintura, a praticar com as espadas. Morcha ficara a ver. O homem era extraor­dinariamente ágil, os seus movimentos rápidos como um relâmpago. Na retaguarda do salão estava sentada a mulher nadir. No chão, di­ante dela, encontrava-se a criança drenai, Elanin. Estava acocorada, abraçando os joelhos e baloiçando-se ligeiramente, a cabeça inclinada para um lado, os seus olhos azuis fitando longe, sem verem.

Morcha e o resto dos homens tinham sido informados de que a criança era mantida refém. Morcha começava a duvidar. Não fora en­viada qualquer mensagçm de resgate ao Conde Orastes em Dros Purdol. Era intrigante.

Boranius viu Morcha e parou, embainhando as Espadas do Sangue e do Fogo. Eram armas perfeitas, os punhos de marfim magnifica­mente trabalhados.

-Então? indagou Boranius, colocando uma toalha sobre o peito encharcado em suor. -Os nossos hóspedes estão próximo?

Morcha avançou em grandes passadas, depois começou a consultar o molho de apontamentos que trazia. - É muito estranho, lorde. O inimigo foi avistado em vários lugares, alguns deles com uma distância de cinquenta quilómetros. O nosso melhor batedor nadir in­formou que viu Druss nas montanhas, no acampamento de Khalid Khan. Mandei vinte homens preparar uma emboscada. Morcha folheou os apontamentos. - Agora soube que ele e os outros foram avistados mais para oeste. Envid dois cuvulciros para baterem o des-

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filadeiro, e tenho outros dez arqueiros posicionados na única entrada para as planícies. Há uma hora, chegou um cavaleiro dizendo que os vira ir para o Templo de Ustarte.

Eles virão, independentemente dos teus esforços, Morcha. -Sinto-o na alma.

-Com todo o respeito, lorde, existem apenas quatro estradas para a cidadela. Todas elas estão agora vigiadas. Saberemos quando eles se aproximarem.

Eles virão meu destino.

repetiu Boranius. - Matarei Skilgannon. É o

E os ferimentos ainda vos atormentam? -O cirurgião trabalhou bem. O meu rosto está adormecido para

a dor. Manda retirar o corpo dele dos meus aposentos. Não quero que comece a cheirar mal.

Mataste-lo? Porquê? Por que não? Não precisava mais dele. - Boranius dirigiu-se

à janela e olhou para a terra lá em baixo. Quando escurecer, traz vinte dos nossos melhores esgrimistas para a cidadela. Os restantes podem controlar as muralhas. Os seus gritos alertar-nos-ão quando o inimigo atacar. Agora vai. Preciso de treinar.

Morcha fez uma vénia e deixou-o. No seu gabinete próprio no rés­-do-chão, sentou-se junto a uma janela e analisou os relatórios. Registava--se um aumento de movimento para as vilas com mercado, mas isso era normal nesta época do ano. Muitas das pessoas mais pobres das colinas desciam à procura de trabalho. Não tinham sido referidos homens armados a percorrer as estradas. Não chegara qualquer informação de leste. O que não surpreendia, uma vez que era a única direcção que o inimigo não poderia ter tomado. Tendo sido vistos com Khalid Khan, seria impossível atravessarem os picos altos. Primeiro teriam de passar pela cidadela. Mesmo assim, Morcha registou mentalmente o envio de um cavaleiro para saber por que motivo o relatório diário não fora efec­tuado. Talvez os batedores a leste tivessem também desertado, pensou. Morcha praguejou baixinho e retomou a análise dos relatórios.

Fora vista uma carroça na estrada por cima da vila. Era conduzida por uma velha grande. Os cinco filhos seguiam ao lado dela. As suas montadas eram descritas como póneis peludos das colinas. Na carroça havia um grande fardo de peles. Morcha folheou os relatórios. Deveriam tt•r sido mencionados duas vezes, uma na Estrada Nacional, e outra quando s<.• aproximassem da vila por baixo da cidadela. No en­tanto, a {mku outra carroça anotada era conduzida por um velho alei-

jado, que viajava com quatro mulheres e um simplório. Na parte de trás da carroça havia três cães de lobo.

Fixando os nomes em ambos os relatórios, Morcha saiu do gabi­nete e voltou aos edifícios que eram usados como caserna. Encontrou o primeiro dos homens a fazer uma refeição na taberna, e perguntou­-lhe se se recordava da carroça com as peles.

Sim, senhor. Um grupo estranho. Não tinham armas. Apenas as peles.

-O que queres dizer com estranho? -É difícil dizer. Apenas estranho, na verdade. O sol estava muito

forte. Feria os olhos. Depois passou esta família. Nenhum problema. Mandei-os parar, e eles obedeceram. Não disseram nada. Inspeccionei a carroça, vi que não estavam armados e deixei-os passar.

Afinal o que havia de estranho? Sinto-me tolo ao dizê-lo, senhor. Um dos filhos disse algo

quando passaram. E por um momento ficou tudo confuso. Acho que foi apenas da intensidade do sol. Pareceu-me ver dois olhos a fitar-me das peles. Corri para a carroça, mas não havia olhos nenhuns. Percebe o que quero dizer? Apenas esquisito. Um momento estranho.

Mas não viste outras carroças? -Apenas aquela, senhor, durante a minha vigia. Foi ontem por

volta do meio-dia. O segundo dos homens referidos no relatório chegara uma hora

antes do crepúsculo. Morcha deixara recado para se apresentar no seu gabinete. Ele entrou na divisão e fez a continência. Morcha inter­rogou-o sobre aquele relatório.

Nada de especial, senhor. Um velho aleijado e quatro mulhe­res. Oh sim, e um simplório. A princípio julguei que fosse uma mulher, e quando ele falou, foi um grande choque. Não sei como me pode ter passado despercebida a barba.

O que disse ele para te apercebes de que era um simplório? O soldado encolheu os ombros. -Apenas a sua maneira de falar,

senhor. Sabe como eles são. Não me recordo do que disse. -E havia cães na parte de trás da carroça? -Sim, senhor. A princípio julguei que fossem peles. Toquei-lhes

e um dos cães rosnou-me. Saltei que nem um coelho assustado. - E isto foi quando? -Ontem, um pouco depois do meio-dia. Morcha folheou os relatórios, che�ando finalmente à anotação res­

peitante à chegada de Skil�unnon t' dos outros ao templo. O batedor

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nadir dissera ter visto um grande animal da Arena, um Ambígeno. Estava acocorado ao lado de um homem velho com um machado.

-Já não precisa de mim, senhor? Apetecia-me uma refeição. -Viste os três cães na carroça? -Claro. - Pensa por um momento. Ouviste uma rosnadela e sobressal-

taste-te. O que aconteceu depois? -Vi o primeiro cão rosnar. Os outros estavam atrás dele. -Viste as cabeças deles todos? -Sim. - O homem hesitou. - Bem ... não. Mas deviam ser

pelo menos três. -Esquece a refeição -disse Marcha, levantando-se.-Sela um

cavalo rápido e leva outro de reserva. Procura Naklian. Ele está com vinte homens, a guardar a estrada dos nómadas. Diz-lhe que traga os homens para aqui o mais depressa possível. O que viste não eram três cães. T ão-pouco era um fardo de peles, como referia o outro relatório. Era um Ambígeno. Viaja com Druss e Skilgannon. O inimigo está aqui.

-Com todo o respeito, está errado, senhor. Não havia quaisquer lutadores. Apenas o velho aleijado.

-Eles vinham do templo. Lançaram-te uma fórmula. Por isso o sol parecia tão intenso. Confia em mim. O inimigo está próximo.

O soldado mostrou estupefacção. Era um dos recrutas mais re­centes, da comunidade naashanita em Mellicane. -Estou errado, senhor?-perguntou.-Só vem um punhado de homens atrás de nós, não vem?

-Sim. Apesar de dois deles serem mais mortíferos do que te con­seguiria fazer entender.

-Agradecia, senhor. Tenho ouvido os homens falar de Skil­gannon e Druss. Mesmo assim, eles não podem atacar a cidadela, pois não? Se eles perseguem Lorde Máscara de Ferro, terão de esperar até que ele saia da fortaleza. Estarão a preparar uma emboscada, certa­mente?

-Não posso antever o que farão-admitiu Marcha. -Lutei con­tra Skilgannon há anos. O que aprendi foi que ele sempre encontrou uma maneira de atacar. Em cada batalha estávamos sempre, de alguma forma, a reagir a ele. Compreendes? Acção e Reacção. A Acção é aquilo que normalmente vence as batalhas e as guerras. A Reacção é quase sempre defensiva. Achas que seis homens não conseguem atacar uma fortaleza? Concordo contigo. Mas aquilo que eu penso não interessa. A questão é esta: Skilgannon acha que consegue atacar a cidadela?

37H

-Seria uma loucura. Não sobreviveriam. -Talvez a sobrevivência não prevaleça nas mentes deles. Não há

tempo para mais discussões, soldado. Procura Naklian, e diz que volte o mais depressa possível para aqui com os seus homens.

A sobrevivência prevalecia acima de tudo na mente de Diagoras, en­quanto esperava que o Sol se escondesse por detrás das montanhas. O oficial drenai encontrava-se numa mata de árvores, a não mais de quatrocen�os metros da cidadela. Vista daqui, a fortaleza parecia im­ponente. E certo que as muralhas à sua volta se estavam a desmoro­nar e em ruínas, mas a própria cidadela alta e redonda, com as suas seteiras, através das quais os arqueiros podiam disparar as suas setas farpadas sobre os atacantes, e as suas muralhas, de onde os defensores podiam arremessar pedras e azeite a ferver, parecia particularmente as­sustadora.

Diagoras ouvira Skilgannon delinear o plano. Era um bom plano - se se falasse dele em termos teóricos. Era um plano horrível se chegasse a ser posto em prática. Era impossível realizarem o que se pretendia e escaparem ilesos. Diagoras olhou para os outros. Jared e Nian estavam sentados à parte. A cabeça de Nian causava-lhe dores, e Jared dera-lhe um pouco de pó, e estava sentado ao lado do irmão, o braço por cima do ombro dele. Garianne encontrava-se deitada

'

aparentemente a dormir, e Druss e Skilgannon falavam em voz baixa. Diagoras olhou para o enorme animal cinzento, acocorado ao lado de Druss. Tentava convencer-se de que era Orastes, mas parecia quase impossível sustentar esta ideia. O gordo Orastes era um sujeito alegre e tímido, o alvo de muitas piadas quando tinham servido juntos no exército. Nunca parecia ficar ofendido. Este ani­mal imenso, com as suas mandíbulas viscosas, e os seus olhos dourados de brilho frio, deixava o sangue de Diagoras enregelado. Surpreendia-o que Druss pudesse estar tão calmo perto dele. Diagoras acreditava que a qualquer momento poderia atacar e dila­cerá-los.

Voltando a olhar para a cidadela, estremeceu. Naturalmente estou a olhar para a minha tumba, pensou. Apareceu um cavaleiro ao portão. Diagoras encolheu-se mais debaixo das árvores. O cavaleiro passou a galope pelo conjunto de árvores, dirigindo-se para as montanhas de Khalid Khan.

Menos um, pensou Dia�oras, fazendo um esforço para não desani­mar. Sobreviveste a Skdn, lt·mhrou a si mt'smo. Certamente isto não

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pode ser pior. Não, está claro que não pode. Tudo o que tens a fazer é entrar numa fortaleza inimiga e defender a entrada da cidadela contra

cerca de quarenta esgrimistas. Diagoras olhou para os irmãos. Nian dissera que preferia morrer a viver como um simplório. Agora Jared estava disposto a fazer-lhe a vontade. Não tinham vindo salvar Elanin.

Estavam ali para morrer juntos.

Faltava menos de uma hora para o crepúsculo. Diagoras dirigiu-se ao local onde Skilgannon e Druss conversavam.

Teve o cuidado de evitar o animal. -Não seria melhor esperar que

anoitecesse por completo? - perguntou a Skilgannon. - Pelo menos alguns deles sempre estarão a dormir.

- O lusco-fusco será melhor - afiançou Druss. -Porquê? -Menos tradicional - retorquiu o homem do machado.

- O que quer isso dizer? Skilgannon interveio. - Os ataques nocturnos são normais. Eles

sabem que vimos. Como somos muito poucos, contarão que fiquemos

perto da cidadela e lhes preparemos uma emboscada, ou que ataque­mos de noite e procuremos surpreendê-los. Por conseguinte, a noite

é a altura em que estarão à nossa espera. -Não quero parecer crítico em relação a esta última conjuntura

- proferiu Diagoras -, mas quantos de nós espera que sobrevivam

a este plano? -Ficaria surpreendido se algum de nós o conseguisse - disse

Skilgannon.

- Foi o que pensei. - Eu tenciono sobreviver - anunciou Druss. - Aquela menina

precisa de ser levada para casa. Acho que é um bom plano. -Se amanhã ainda estivermos a discutir os seus méritos, concordo

consigo - afirmou Diagoras.

- Anima-te, moço. Ninguém vive para sempre. - Oh, conto que você sobreviva, Druss, Cavalo Velho. São os mor-

tais que o rodeiam que parecem sempre ir fazer tijolo. - Assim que Boranius estiver morto, será menos provável que os

seus homens queiram continuar a lutar- contrapôs Druss. -Um simples facto da vida entre os mercenários. Não há quem lhes pague, logo, não lutam. Só precisamos de o apanhar rapidamente. De qual­

quer forma, não estarão setenta homens lá dentro. Eles têm homens

nas colinas à nossa procura. Eu diria que haverá cerca de quarenta lá dentro. 1àlvez menos.

jHO

-Fico muito mais tranquilo - murmurou Diagoras, com sar­

casmo.

Druss esboçou-lhe um sorriso cínico. - Podes sempre esperar aqm, moço.

-Não me provoque! - Olhou para o Sol poente. Faltava menos de uma hora. Diagoras calculou que o tempo fosse passar a correr.

3HI

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CAPÍTULO 20

Ippelius tinha dezanove anos. O pai fora um capitão no exército do rei, morto na última batalha, quando Bokram caíra. Os meses seguintes à vitória da Rainha Bruxa tinham sido difíceis para as fa­mílias daqueles cujos homens haviam servido o rei. A mãe de Ippelius fora expulsa da casa onde vivia, os seus bens e riquezas confiscados pela coroa. Reunira-se uma multidão no exterior, atirando lixo e ex­crementos à família enquanto eram levados dali. Ippelius tinha então treze anos e estava terrivelmente assustado. Muitas das viúvas haviam abandonado a capital, procurando abrigo junto de familiares em vilas e aldeias longínquas. Outras tinham seguido para as comunidades

naashanitas noutras paragens. A mãe dele viera para Mellicane. Fora ali que Ippelius terminara os estudos. Era uma excelente ci­

dade, e os horrores do passado, apesar de marcarem fortemente os seus pesadelos, pareciam insubstanciais à luz do sol na cidade. Quando o Máscara de Ferro chegara ao poder, prometera uma oportunidade de vingança. Um dia os proscritos voltariam ao Naashan. A Rainha Bruxa seria derrubada. Afigurou-se a Ippelius uma oportunidade áurea de vingar a morte do pai, e a vergonha da mãe.

Agora, sentado na taberna miserável, com cerca de vinte soldados ou mais, apercebeu-se de que o sonho morrera. Tal como o pobre Codis ali nas muralhas. Ficara atordoado quando Marcha apunhalara o amigo. O acto fora súbito e assassino. Codis morrera sem se dar conta.

Ippelius sorveu a sua cerveja. Era amarga e não lhe agradou o gosto. No entanto, todos os homens a bebiam, e Ippelius não queria pare­cer menos do que os homens ao seu redor. De igual modo, se se abri-

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gasse a beber o suficiente, talvez os seus receios, pelo menos, dimi­

nuíssem. Codis fora como um irmão para o jovem soldado, ajudando­-o nos primeiros tempos, quando se cobrira de ridículo durante o treino. Ippelius tropeçava constantemente na espada e estatelava-se. A sua arte de cavalaria não era da melhor qualidade, e saltava na sela como um saco de batatas. Em tudo isso pudera contar com os conse­lhos e o apoio de Codis. E também de Marcha, que parecera sempre bem-disposto e compreensivo. Ippelius sentiu um aperto no estômago. Codis gostara do homem e respeitara-o. Quão terrível devia ter sido morrer às mãos de um homem de quem se gostava.

Depois havia Boranius. Ippelius ficara bastante impressionado da primeira vez que fora apresentado ao general. Um homem de poder e coragem, que irradiava determinação. Quando este homem dissera que derrubariam a Rainha Bruxa, parecera uma certeza.

Ippelius estremeceu. Ainda há pouco ele e Codis tinham recebido ordens para removeram um corpo da cidadela. Estava embrulhado em lona, que fora cosida à pressa. O sangue passava através do pano. A meio das escadas, a lona rasgara. O que caíra dela fora o corpo he­diondamente mutilado de uma mulher. Ippelius vomitara ao vê-lo. Não pudera ajudar Codis, que voltara a enfiar os restos na lona.

Mais tarde, depois de a terem enterrado, Ippelius caíra por terra em lágrimas. - Como pode qualquer homem fazer isto a uma mu­lher? -perguntara a Codis.

-Boranius não é um homem qualquer. - Isso não é resposta. - Pelos deuses, homem, o que esperas que eu diga? Não tenho

respostas. Ele sempre foi um torturador. É melhor tentares esquecer. Ippelius olhara para a sepultura.-Não tem sequer uma placa­

comentou. -Julguei que eram amantes. -Eles eram amantes. Depois ele matou-a. Fim da história. Agora

controla-me essas emoções, rapaz. Não vamos falar disto a ninguém. Entendeste? Boranius também tortura os homens. Não quero os meus dedos cortados ou os olhos arrancados.

-Achas que ele também matou a rapariguita? -Não sei e não me interessa. Nem te devia interessar. Vamos

esperar pela nossa hora e depois saímos daqui. - Por que não podemos ir já? -O quê, com as patrulhas à procura de Druss? Até aonde

iríamos? Não. Quando Druss morrl'r, l' as coisas acalmarem. Então

escapulimo-nos para leste. Em dirt'l<,"ilo �s ridadt·s costeiras.

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Ippelius bebeu mais cerveja. O travo amargo estava agora a passar. Olhou à sua volta para os outros soldados. Havia poucas gargalhadas na taberna naquele final de tarde. O assassínio de Codis afectara-os, assim como a notícia de que Skilgannon vinha aí. Alguns deles ti­nham lutado contra o homem no passado. Todos tinham histórias a contar.

V m soldado corpulento chamado Rankar entrou na taberna. Atravessou a sala de jantar e aproximou-se do local onde Ippelius es­tava sentado. Instalando-se, fez sinal ao empregado do bar, pedindo um jarro de cerveja.

-Como vai isso? perguntou a Ippelius. -Óptimo. E tu? - Óptimo. A caserna está vazia. Deslocaram uma quantidade de

homens para a cidadela. Vou para lá depois de comer. Ippelius olhou para o homem. O seu rosto pesado estava salpicado

das bexigas e tinha uma cicatriz denteada que ia desde a testa ao malar. A pálpebra esquerda pendia sobre um olho verde-vivo. Ippelius deu consigo a olhar para a cicatriz. Tiveste realmente muita sorte disse.

Rankar esfregou a pálpebra descaída. Não me senti com sorte na altura. Mas acho que tens razão. Já comeste?

-Não. Não tenho fome. Rankar anuiu. Codis era um homem bom. Combatemos jun-

tos pelo Naashan ... e depois saímos de lá à força. Não mudou nada. -Não acredito que Marcha o tenha morto. -Nem eu. Só demonstra que não se pode confiar em ninguém. Naquele momento, a porta do fundo da taberna abriu-se, e entrou

uma figura imponente. Ippelius ficou a olhar para ela. Envergava um elmo redondo orlado de prata, decorado com machados de prata a la­dear uma caveira. A sua barba, em tempos preta, apresentava-se sal­picada de fios de prata. O seu torso enorme estava coberto por um justilho preto, os ombros reforçados com aço prateado. E trazia na mão direita um machado de lâmina dupla, brilhante. O homem avançou até ao meio da sala e deteve-se junto a uma mesa onde estavam sen­tados quatro soldados. Erguendo o machado, cravou-o no tampo da mesa. Vamos lá a ter uma conversinha, rapazes!-gritou. Não lhes roubarei muito tempo.

Fez-se silêncio, enquanto os vinte e tal homens fitavam o recém­-chegado. -Sou Druss anunciou, apoiando a sua mão enluvada no cabo prt·to do machado -, e este é a Morte. - O seu olhar percorreu

a sala. Ippelius estremeceu quando os olhos cinzento-escuros se crava­ram nos seus.-Saibam que vim aqui para matar Boranius. É o que farei de seguida. Mas sempre tive respeito pelos soldados. Bons ho­mens, de um modo geral. Por isso, vou dar-vos uma oportunidade de viverem um pouco mais. Sugiro que terminem as vossas refeições, de­pois reunam todos os bens que possuírem nesta fortaleza que mais pa­rece um pulguedo, e partam. Algumas perguntas?

O silêncio continuou, enquanto os homens se entreolhavam. Nesse caso, deixá-los-ei comer em paz disse o homem, sol-

tando o machado. Quando se virou para sair, dois soldados puxaram de facas nos cintos e correram para ele. O machado de prata enterrou­-se no peito do primeiro, e um gancho com o cotovelo esquerdo em­bateu no rosto do segundo. Voou por cima da mesa, embateu no chão e não se mexeu.

-Mais alguém? - inquiriu o homem do machado. Ninguém se moveu, apesar de Ippelius poder ver que uma série de homens levara sub-repticiamente as mãos às armas.

O homem do machado encaminhou-se para a porta. Naquele momento ela escancarou-se e uma criatura do Inferno bloqueou a entrada. Era um animal da Arena, um dos maiores que Ippelius al­guma vez vira. Tinha as mandíbulas abertas e soltou um longo uivo arrepiante. Os soldados saltaram das cadeiras, derrubando as mesas ao recuarem da abominação à porta.

O homem do machado aproximou-se dele e fez-lhe festas no ombro. O animal caiu de quatro e olhou maldosamente para os sol­dados. Depois Druss deixou a taberna.

Ippelius ficou imóvel. Rankar praguejou em voz baixa. -O que vamos fazer? - perguntou Ippelius. -Tu ouviste o homem. Acaba de comer e depois vai-te embora.

Diagoras e os gémeos transpuseram o portão. O oficial drenai olhou para o corpo da sentinela morta nos degraus da trincheira. Garianne estava ajoelhada sobre ele, arrancando-lhe a flecha preta do peito. Rapidamente, Diagoras atravessou o terreno aberto até ao local onde Skilgannon aguardava à entrada da cidadela. Druss avançou em passos largos na direcção deles, o Ambígeno ao lado.

-Agora é que vai começar -anunciou Skilgannon. De repente, o Ambígeno soltou um uivo. Passando a correr por

Druss, saltou pelas portas t•sniiKitr�Ldas da entrada da cidadela e subiu o primeiro lanço de escadas. I )russ duunou-o, mas o animal sumira.

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Ele sentiu o cheiro da criança - disse Skilgannon. Levantando o machado, Druss transpôs a porta a correr. Skilgannon

virou-se para Diagoras. Aguente as portas o máximo que puder. - Esteja descansado - afirmou o Drenai, puxando do sabre e de

. uma faca de caça de gume muito afiado. Depois Skilgannon seguiu Druss até ao interior do edifício. Havia dois lances de escadas. Druss subia já o da direita. Skilgannon tomou o da esquerda.

Diagoras voltou para a entrada, observando os edifícios e becos que seguiam para lá dos armazéns em direcção à taberna. Jared e Nian ti­nham-se postado ao lado dele, as espadas compridas nas mãos. Garianne permanecia nos degraus da muralha, a cerca de nove metros, a besta de disparo duplo nas mãos. O uivo do Ambígeno chegou lá de cima, seguido de gritos.

Não saíram quaisquer soldados da taberna. Diagoras ficou sur­preendido. Quando Druss dissera que ia falar com eles, não quisera acreditar. - Está louco? Eles irão atacar como lobos raivosos.

- Provavelmente não - fora tudo o que Druss dissera. Diagoras aguardava com Skilgannon. Concorda com esta lou-

cura?- perguntou ao Naashanita. - Tem boas hipóteses de resultar. Imagine a situação. Está a tomar

uma refeição e o inimigo entra por ali dentro. Não tem medo nenhum de si. Esperamos medo dos nossos inimigos em certas situações. Quando é muito menos numeroso, por exemplo. Ou está encurralado. Em contraste, há sítios em que o nosso próprio medo é muito menor. Como dentro da nossa própria fortaleza. Agora, tem um único guer­reiro, que entra por ali dentro, grandemente ultrapassado no número e, no entanto, sem medo. Eles pararão para pensar. Não esqueça de que o moral deles também está em baixo.

- Portanto, acha que vai mandá-los embora e eles obedecerão? inquiriu Diagoras.

Skilgannon pensou na pergunta. Eu diria que ele pode ter de matar alguns. Os restantes não interferirão.

Diagoras abanou a cabeça. Vocês os dois não existem co-mentou.

Agora que se encontrava nas sombras da entrada, começou a sentir­-se mais descontraído. Druss e Skilgannon estavam dentro da cida­dela, e o seu próprio papel parecia bem menos perigoso. Não havia soldados a atacá-lo. Nem lâminas a brilhar, ou a penetrar-lhe a carne. Obviamente Jan:d pensava o mesmo. Sorriu a Diagoras. - Até aqui, tudo bem - referiu.

Diagoras preparava-se para responder, quando Garianne lhes ace­nou subitamente, e apontou para lá dos portões.

Foi então que Diagoras ouviu o bater de cascos. O primeiro dos vinte cavaleiros passou a galopar pelos portões. Foi derrubado da sela, uma flecha de besta espetada no seu pescoço. O cavalo empinou-se. Uma segunda flecha cravou-se no peito do homem. Depois Garianne corria pelas muralhas por cima deles.

Um grupo de cavaleiros viu Diagoras e os gémeos, e esporeou as suas montadas.

O oficial drenai praguejou e levantou o sabre. Outros Naashanitas saltaram das suas montadas e subiram a correr os degraus das muralhas direitos a Garianne, que estava a recarregar a besta. Diagoras galgou os degraus até às portas da cidadela. Um cavaleiro avançou para ele. Diagoras passou por baixo do pescoço da montada, enterrando o sabre no flanco esquerdo desprotegido do cavaleiro. O homem caiu para trás. O cavalo empinou-se, arremessando-o da sela.

Jared e Nian atacaram o grupo de cavaleiros. Nas muralhas, Garianne disparou sobre o primeiro homem que

corria para ela, depois virou-se e avançou célere pelo telhado do por­tão. Vários dos cavaleiros na retaguarda do grupo tiraram arcos das selas. Uma seta passou a zunir por Diagoras. Outros cavaleiros haviam desmontado e corriam para a cidadela. Diagoras aproveitou para os interceptar. Garianne subiu até ao telhado do portão, depois virou-se e atingiu um homem na cabeça. Dois outros escalavam na direcção dela. Avançando a correr, deu um pontapé na cabeça do primeiro, arremessando-o para as muralhas. O segundo atacou com a espada. A lâmina torceu-se na mão do homem, a parte plana do aço batendo com força no tornozelo de Garianne. Ela caiu pesadamente. O homem agarrou-a. Selvaticamente, ela bateu-lhe com a besta no rosto.

Largando-a, o homem escorregou pelas muralhas. Diagoras estava a ser atacado por três homens e recuava, esqui­

vando-se impetuosamente. Nian veio em seu auxílio, a espada com­prida penetrando a nuca do Naashanita. Vendo a sua oportunidade de atacar, Diagoras avançou rapidamente. O seu sabre fez ricochete numa couraça, mas a sua faca de caça enterrou-se entre a clavícula e o pes­coço do homem. Uma espada golpeou-o no ombro. Com um gemido de dor, Diagoras largou a faca de caça e virou-se para enfrentar este novo ataque. Parando um segundo golpe selvático, torceu o pulso, enviando a sua arma numa riposta mortal que abriu a garganta do ata­cante.

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Os cavalos relinchavam e empinavam-se, e os gritos dos homens feridos enchiam o ar. Diagoras estava novamente sob ataque. Uma lâ­mina rasgou-lhe o flanco. Diagoras cambaleou. Antes de o golpe de morte poder ser desferido, o Naashanita gemeu e recuou vacilando, torcendo-se ao cair. Diagoras viu uma flecha de besta nas costas dele.

Então, os arqueiros naashanitas viraram-se para Garianne. Vieram embater setas na superfície da muralha onde ela estava acocorada. Erguendo-se, fez cair com frieza um cavaleiro da sela, depois correu pela muralha.

Diagoras tentou levantar-se com esforço. Sentia a cabeça oca. Viu Jared tombar, uma lança cravada nas suas costas. Depois, Nian ar­rancou o lanceiro da sela e, largando a espada, correu para o irmão. Diagoras atacou, avançando na direcção deles, golpeando com a faca o rosto de um homem e mergulhando a espada no peito de outro. Nian puxouJared para o pôr de pé.- Pega na espada!- ouviuJared gri­tar. Nian correu na direcção da arma. Surgiu uma seta preta nas cos­tas dele. Cambaleou e caiu. Os seus dedos envolveram o punho da espada e soergueu-se. Cravou-se nele outra seta. Com um berro de dor, Nian conseguiu levantar-se. Virando-se, correu para o arqueiro no cavalo. O homem tentou disparar outra seta, mas a sua montada em­pinou-se. Depois Nian estava sobre ele. A espada comprida abriu o flanco do homem. Quando ele tombou da sela, Nian fez descer a es­pada sobre o crânio dele. Jared enfrentava dois homens. Já não tinha forças para os aguentar. Um precipitou-se para ele. Jared rodou frou­xamente a lâmina para o homem. O golpe foi parado. O segundo atacou, enterrando um punhal comprido no ventre de Jared. Nian, vendo o irmão em dificuldade, gritou no máximo da sua voz. Atacou os homens, que caíram. Em vez de os perseguir, Nian largou mais uma vez a espada e ajoelhou ao lado do irmão caído. Continuou a gritar o nome dele, sucessivamente.

Diagoras viu que Jared estava morto. Os dois homens que Nian combatera precipitaram-se. Um estocou Nian no pescoço, o outro enfiou a espada no crânio dele. Diagoras atacou-os. Um procurou de­fender-se, e morreu com o sabre de Diagoras atravessado no pescoço.

O outro recuou, e reuniram-se-lhe mais quatro homens. Avançaram sobre Diagoras.

-Vamos lá, então!- gritou o Drenai.- Qual de vocês, seus fi­lhos de rameiras, quer morrer primeiro?

Eles estacaram por um momento, as espadas a postos. Depois, como um só, recuaram alguns passos, antes de se virarem e fugirem

na direcção da taberna. Diagoras afastou o suor dos olhos, tentando entender a fuga deles.

Depois ouviu sons atrás de si. Virou-se lentamente. Um grupo grande de cavaleiros fortemente armados estava sentado

nas suas montadas. A sua armadura era negra, os elmos cobriam por completo o rosto, ostentando plumas altas de crina de cavalo. Cada um trazia uma lança, e uma espada, e um pequeno escudo redondo, com o símbolo da cobra sarapintada.

A fila de cavaleiros afastou-se e avançou uma mulher. Diagoras apercebeu-se de que esquecera a dor ao contemplá-la. O seu cabelo era muito preto e estava apanhado numa única trança, através da qual fora entrelaçado arame de prata. Envergava um manto branco solto, e cota de malha em prata. Viam-se-lhe as pernas acima das botas de montar de couro preto pelo joelho, com aplicações de prata. Saltou com ligeireza para o solo e aproximou-se de Diagoras.

Estupidamente, ele tentou fazer uma vénia, mas as suas pernas cederam. Avançando, ela apanhou-o.

- Se isto é um sonho - referiu ele -, nunca mais quero acor­dar.

-Onde está Skilgannon?- indagou ela.

Skilgannon passou por cima dos corpos dos dois soldados e avan­çou com cautela. Havia uma série de portas no patamar, todas elas abertas. Chegando à primeira divisão, ficou cá fora, à escuta. Não ou­vindo nada, respirou fundo e transpôs rapidamente a ombreira. O pri­meiro homem correu para ele, vindo lá de dentro, de espada em riste. Naquele momento, Skilgannon ouviu um murmúrio de movimento à retaguarda. Apoiando-se num joelho, virou a Espada do Dia ao con­trário, arremessando-a para trás. A lâmina curva rasgou o ventre do atacante e abriu-lhe o coração. A Espada da Noite desceu, cortando parcialmente a perna do segundo atacante. O homem gritou e caiu no chão. Apareceu outro soldado à porta, empunhando uma besta. Skilgannon rolou para a direita quando a corda vibrou. A flecha cra­vou-se no chão coberto com carpete. Levantando-se rapidamente, Skilgannon saltou sobre o besteiro, que largou a arma e se pôs a salvo. Tinham chegado mais soldados lá fora ao patamar. Skilgannon correu para eles, girando e saltando, as espadas a brilhar. Salpicado de san­gue, correu para as segundas escadas.

Os uivos do Ambígeno haviam cessado agora, e Skilgannon cal­culou que tivesse sido aba! ido.

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Subiu as escadas a correr. Outra flecha de besta passou a silvar pela sua cabeça. Dois esgrimistas bloquearam-lhe o caminho. Morreram. O besteiro tentou outro disparo. Skilgannon atirou-se para a frente, rolou sobre o ombro e pôs-se em pé num movimento suave. O bes-

. teiro gemeu quando a Espada do Dia mergulhou no seu coração. Um corredor comprido ligava o terceiro patamar às escadas que

Druss tomara. Skilgannon ouviu os sons de combate. Não perdendo tempo a verificar as divisões ao passar, correu pelo corredor. Chegou a duas portas duplas abertas, que davam para uma sala de jantar grande. Druss combatia furiosamente com uma dúzia de adversários. Havia já vários corpos estendidos no soalho de madeira. Os sobrevi­ventes procuravam rodeá-lo, mas o homem do machado girava e ro­dopiava, o enorme machado brilhando à luz das lanternas. O sangue jorrava de uma incisão no rosto de Druss, e o seu justilho sofrera vários golpes. Também as calças estavam humedecidas de sangue. Um soldado mais destemido do que os restantes precipitou-se para ele. A sua cabeça saltou para o chão, um jorro de sangue a sair do pescoço cortado.

Skilgannon correu em auxílio de Druss. Vendo este novo inimigo, os soldados tentaram formar de novo. Dois tombaram rapidamente sob as Espadas cortantes da Noite e do Dia. Outro morreu, a sua espinha esmagada pelo machado de Druss. Os res­tantes dispersaram e fugiram em direcção às portas duplas.

Skilgannon avançou para Druss. Está muito ferido? per-guntou-lhe.

-Ferido? -respondeu Druss. Pah! São só uns arranhões. respirava com dificuldade e parecia de novo cansado e macilento. Ainda há dias estivera perto da morte. Skilgannon olhou para ele e abanou a cabeça. Não te preocupes comigo, moço - afirmou Druss. Ainda sou capaz de subir a montanha.

-Não duvido, homem do machado. Nesse caso, vamos procurar Boranius.

Druss içou mais uma vez o machado, mas Skilgannon estacou. A criança deve estar com ele, Druss-referiu.

-Eu sei. -Ele procurará fazê-lo sofrer. É provável que a mate diante de si. -Eu também sei isso.-Os olhos do velho estavam agora mais

frios, como aço polido. Vamos encontrar o filho de uma rameira e acabar com isto.

Juntos, os dois gm.·rreiros dirigiram-se para as últimas escadas.

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CAPÍTULO 21

No Salão do Telhado, Morcha aguardava com cinco esgrimistas. Boranius, em tronco nu, e com a sua máscara de ferro preto orna­mentada, estava sentado numa cadeira de espaldar, a criança catató­nica �lanin no seu colo. Havia sangue no peito de Boranius, que escorna de quatro marcas de garras que lhe rasgavam a pele do ombro ao ventre. O enorme Ambígeno cinzento jazia no chão diante dele, o seu corpo perfurado por uma vintena de feridas. Ainda respirava, os seus olhos dourados abertos e fixos em Boranius. Tinha a espinha par­tida e não se conseguia mexer.

-Vês o ódio ali?-perguntou Boranius, com uma gargalhada seca.-Como gostaria de me voltar a atacar. -Uma grande poça de sangue estendia-se por baixo do animal moribundo. Boranius agar­rou o cabelo louro da criança e virou-lhe a cabeça para o Ambígeno.

-Vês ali, pequenina. O Papá veio buscar-te. Não é querido? Morcha desviou o olhar. Portanto, pensou, acaba tudo aqui. Todos os sonhos, rodas as es­

peranças, todas as ambições. Olhou para o decadente Salão do 1Hhado, depois para o homem sujo de sangue com a máscara preta. Boranius acariciava o cabelo da criança, mas não havia reacção. Os seus olhos estavam abertos, sem pestanejar. Morcha puxou do seu sabre de cava­laria. Era uma arma bela, com um guarda-mão em filigrana e um botão do punho de esmeralda. Fora-lhe oferecido por Bokram, como recompensa pela sua lealdade e bravura. Olhou para os cinco esgri­mistas e viu o medo nos rostos deles todos. Tinham acorrido do salão �e baixo, onde haviam enfrt'ntado Druss e Skilgannon. Sabiam que tam morrer.

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Marcha virou-se para Boranius. -Lorde, se fizerdes o favor de lar­gar a criança. Vamos precisar de vós para lutar.

Oh, eu vou lutar, Marcha. Vou matá-los todos. Primeiro,

porém, podes cansá-los para mim. -Cansá-los? Ensandecestes? Não sabeis o que está a acontecer

aqui? -Skilgannon vem aí, e o homem do machado. Está claro que sei.

Como é que dois guerreiros transpuseram as nossas defesas e estão neste momento a subir as minhas escadas? Eu digo-te, Marcha. É por­que estou rodeado de tolos e cobardes. Depois de hoje, reunirei uma nova força. Só que desta vez serei eu a escolher os lutadores. Infelizmente, o teu juízo revelou-se deficiente.

Marcha permaneceu em silêncio por um momento. - Tendes razão, meu lorde. Há anos que o meu juízo é deficiente.-Antes de poder prosseguir, chegou até eles o som de cascos de cavalos do pátio lá em baixo. Marcha correu para a janela e espreitou. Quando se virou, tinha um sorriso sinistro no rosto.

- Parece, Boranius, que não ides reunir um novo exército

mesmo que mateis Skilgannon e Druss. A Rainha Bruxa está aqui,

com uma companhia dos guardas dela. -Matá-los-ei também - referiu Boranius. - Arrancarei o co­

ração da cabra. Skilgannon entrou no salão, seguido do homem do machado ves­

tido de preto. Os cinco esgrimistas naashanitas recuaram, largando as armas. Marcha suspirou, depois olhou para Skilgannon.

Foi longe desde aqueles primeiros tempos disse ele. -Ainda guardo boas recordações dos banhos.

-Embainha a espada, Marcha. Não há necessidade de morreres

aqm. Marcha encolheu os ombros. Há toda a necessidade. Defenda-se!

- Deu um salto, o seu sabre cortando o ar. Skilgannon desviou-se. Marcha sentiu uma dor penetrante no peito. Cambaleou e largou o sabre, vendo-o cair no chão com ruído. Depois encostou-se à parede, e deslizou por ela abaixo.

Oh, mas que limpeza! - exclamou Boranius. Levantando-se da cadeira e agarrando ainda a criança, puxou de uma das suas pró­prias espadas. Apoiando a lâmina no peito de Elanin, afastou-se da cadeira.

É bom ver-te, Homem do Machado- dirigiu-se a Druss. -Ouvi filiar muito de ti.

Druss avançou lentamente para a figura de máscara. O sangue en­sopava o vestido azul fino da criança. - Mais um passo e esventro-a, e poderás ver as entranhas dela caírem para o chão.

Druss estacou. Excelente escolha afirmou Boranius. -Agora faz o favor de pousares o teu machado.

- Ele matá-la-á na mesma, Druss - referiu Skilgannon. - Ele só está a prolongar o momento.

Eu sei o que ele está a fazer - replicou Druss, a sua voz fria. antes defrontei outros como ele. Homens fracos. São todos iguais.

Mesmo enquanto falava, Druss deixou Snaga cair no soalho. Agora avança para que eu possa saborear este momento or-

denou Boranius. Druss obedeceu, vindo colocar-se ao alcance da espada que Boranius segurava junto à criança. -Sabes o que vai acon­tecer agora, homem do machado?

- É claro que sei. Vais morrer. Eu vou matar-te. -Se te moveres, matarei a criança.

É disso que estou à espera - afirmou Druss, com frieza. -Assim que a espada deslizar nela, não a poderás usar contra mim. E nessa altura, meu filho de uma rameira, cortarei todos os ossos do teu corpo. Por isso não vamos perder mais tempo. Fá-lo! preferiu em tom ameaçador, avançando. Chocado, Boranius recuou instintiva­mente. O Ambígeno moribundo rosnou, as suas mandíbulas tentando abocanhar a perna do Máscara de Ferro. A espada na mão de Boranius desceu, atingindo o Ambígeno no focinho. O sangue jorrou. Naquele momento, Druss atirou-se, arrancando Elanin das mãos de Boranius. A lâmina de prata avançou. Druss virou as costas, protegendo a criança, e atirou-se para o chão. A espada cortou a parte de trás do seu justilho, raspando na carne. Boranius gritou de raiva e foi direito ao homem do machado.

A Espada do Fogo lançou um golpe na direcção do corpo despro­tegido de Druss.

A Espada do Dia parou-a. Boranius saltou para trás, puxando a segunda espada da bainha que

lhe pendia entre os ombros. Depois enfrentou Skilgannon. Oh, tenho esperado muito por este momento, Olek disse, a sua voz abafada pela máscara de ferro. - Vou trinchar-te como um cisne num banquete.

As Espadas do Sangue e do Fogo brilharam à luz das lanternas quando os dois homens andaram à roda. Boranius avançou com um salto e as espadas de ambos chocaram. A música do aço ouviu-se su­cessivamente.

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Marcha observava-os, a sua dor esquecida. Os dois guerreiros pa­

reciam deslizar pelo soalho de madeira, as suas espadas criando arcos

de luz brilhantes. As lâminas mortíferas ressoaram e chocaram, sibi­

laram e cantaram, o aço afiadíssimo procurando enterrar-se na carne tenra. Os dois homens lutaram, andando de um lado para o outro pelo

salão sem pararem para respirar.

Marcha apercebeu-se de que tinham entrado outras pessoas no

salão. Olhando para cima, viu Jianna, a Rainha Bruxa. A seu lado es­tava o velho mestre de armas, Malanek. Guardas vestidos de preto en­chiam o salão, e para lá deles estava uma velha, apoiada num bordão

cheio de nós. Marcha sabia que estava a morrer, mas só pediu que lhe

fosse permitido assistir a esta competição incrível. Ambos os homens tinham sofrido ferimentos. Skilgannon sangrava

de um golpe superficial no rosto, Boranius fora cortado no bicípite

esquerdo, a pele pendendo, o sangue escorrendo.

Continuaram a lutar. Inevitavelmente, estavam a abrandar, e mais uma vez a andar um

à roda do outro. Depois Boranius falou. -Lembras-te de Greavas,

Olek? Ah, devias tê-lo ouvido guinchar. Ele foi suficientemente co­rajoso quando lhe cortei os dedos. Mas quando lhe serrei o braço, a

sua cobardia veio ao de cima. Suplicou-me que o matasse.

-Não deixes que ele te acicate, moço! -exclamou Druss. -

Mantém a calma e arranca-lhe o coração. Boranius passou ao ataque. Skilgannon esquivou-se desesperada­

mente, depois rodou. Boranius seguiu-o. A Espada do Sangue avan­

çou direita à garganta de Skilgannon. Esquivou-se, depois parou um

golpe da Espada do Fogo. Agora em desequilíbrio, Skilgannon apoiou­-se num joelho. Boranius lançou um novo ataque. Skilgannon

atirou-se para a direita, rolou e levantou-se, no momento em que

Boranius fez girar a arma na mão direita num arco assassino. A Espada

da Noite subiu, as lâminas cortando os dedos de Boranius. Ele caiu para trás com um grito, a Espada do Fogo saltando da sua mão mu­

tilada. Boranius recuou.

Skilgannon seguiu-o. - Fala-me agora de Greavas! -disse. -

Fala-me das súplicas dele! Boranius gritou de dor e fúria e atacou de roldão. Skilgannon des­

viou-se, saltou para o lado e desferiu um golpe fustigante nas costas de Boranius enquanto ele avançava às cegas. A Espada da Noite cravou­

-se funJo, corranJo a espinha de Boranius. As suas pernas cederam e caJU de joelhos, a espada que lhe restava escorregando-lhe da mão.

Skilgannon andou à volta do homem. A Espada do Dia cortou as

tiras de couro que mantinham a máscara de ferro no lugar. Ela caiu,

revelando o horror do rosto mutilado de Boranius. Os olhos azuis do homem chisparam com indisfarçado rancor e ódio. - Não és nada,

Boranius - disse Skilgannon, a sua voz destituída de emoção. -

Nunca foste. Greavas era dez vezes melhor homem do que tu.

E virou costas. Boranius gritou insultos atrás dele. O seu corpo estrebuchou ao tentar obrigar as pernas a obedecerem-lhe, mas a sua

espinha fracturada já não enviava mensagens aos músculos. Procurou

alcançar a espada, mas o seu braço teve um espasmo e contorceu-se.

Ergueu o olhar e viu a Rainha Bruxa encaminhar-se para ele, um punhal esguio na mão.

Ajoelhou diante dele, e ele fitou-a. -Mataste a minha mãe -

disse-lhe ela.

O punhal subiu lentamente, a sua ponta avançando na direcção do olho dele.

Boranius gritou quando o aço frio se lhe enterrou lentamente,

muito lentamente, no cérebro.

Skilgannon não assistiu ao fim supliciante da vida de Boranius. Dirigiu-se antes ao local onde Marcha estava sentado junto à parede,

as suas mãos tentando estancar o fluxo de sangue da ferida no baixo

tórax.

-Foste um homem bom de mais para seguires aquele miserável -disse-lhe Skilgannon. -Por que o fizeste?

-Quem me dera poder responder -referiu Marcha. -Ainda

bem que o derrotou. Julguei que não fosse conseguir. Não pensei que

alguém conseguisse. -Há sempre alguém melhor -contrapôs Skilgannon. Fatigado,

levantou-se e encaminhou-se para o sítio onde Druss estava sentado

com a criança.

-Saíste-te bem, moço - afirmou o velho guerreiro. - Achas que Elanin alguma vez vai recuperar?

Skilgannon tirou-a dos braços de Druss e levou-a até junto do

Ambígeno. Os seus olhos dourados ainda estavam abertos, mas agora respirava com dificuldade e de forma entrecortada. Ajoelhando, colo­cou a criança ao lado da sua cabeça enorme. Partiu um gemido baixo

do animal, que encostou o focinho ao rosto dela.

-Não sei se me consegue ouvir, Orastes -disse Skilgannon. -Mas a sua filha agora está segura. - Druss veio acocorar-se ao lado

do animal. Colocou a sua mão ,�.:rande na testa dele, acariciando-a

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como se fosse um cão. Os olhos dourados mantiveram-se fixos nas fei­ções delicadas da criança durante um bocado. Depois fecharam-se, e a respiração cessou.

Durante algum tempo ninguém se mexeu. Depois os olhos da 'criança brilharam, e ela soltou um suspiro profundo e entrecortado. Pestanejou e sentou-se. Druss estendeu os braços para ela, atraindo-a a s1.

É bom ver-te, minha linda -referiu. -O Papá veio buscar-me respondeu-lhe ela.-Ele disse-me

que estarias aqui. Jianna afastou-se, olhando para o homem que atormentara os seus

sonhos durante o que parecia ter sido quase metade de uma vida. Os seus pensamentos voltaram àqueles primeiros tempos perigosos em que se fizera passar por uma prostituta e vivera com o jovem Skilgannon. As recordações eram nítidas e vivas, impregnadas de muitas tristezas. No entanto, eram também áureas e brilhantes. Então os seus sonhos haviam sido simples. Primeiro viera a sobrevivência, depois a vingança. Nada de complicado. E a seu lado estivera sempre o esgrimista Skilgannon.

Agora estava ajoelhado ao pé de uma criança de cabelos louros, a sua mão afastando delicadamente a comprida franja dela. Lembrou­-se da altura em que tinha a mão dele no seu rosto. Sentiu os primeiros sinais de aviso de lágrimas e, furiosa, expulsou as lem­branças. Virando costas à cena, viu a Velha apoiada no seu bordão junto à parede do fundo. Usava um pesado véu preto, e era impos­sível ler a sua expressão.

Ela aparecera junto ao cais quando Jianna encabeçava a sua guarda pessoal até ao navio que os levaria costa acima até Sherak, na primeira etapa da viagem até à cidadela.

-Vais viajar para matar Boranius ou salvar Skilgannon? per-guntara-lhe, quando estavam no convés da popa.

-Talvez ambas as coisas respondera ela. Ele não te convém, Jianna. Destruir-ce-á.

Jianna soltara então uma gargalhada. -Ele ama-me. Não faria nada para me prejudicar.

O amor é que é perigoso, minha rainha. O amor cega-nos para o perigo. O amor leva à loucura e à tristeza.

- E se eu o amar( Tu ama-lo, Jianna. Sei-o desde a primeira vez que nos vimos.

E é a esse pt•ri�o que me refiro. Agora és sensata e implacável como

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um líder deve ser. És amada e és temida. Podes alcançar grandeza. Ela está lá ... mesmo à frente ... a chamar-te.

-Por que o odeias tanto? -Eu não o odeio. Ele é um homem excelente, corajoso. Quero vê-

-lo morto porque constitui uma ameaça para ti. Não mais do que isso. Não tentaste já mandá-lo matar? Não compreendes porquê? O teu eu secreto, o teu verdadeiro eu, o centro da tua alma, sabe que ele tem de ser morto. A tua mente atormenta-se de pensares tanto nele.

Jianna viu as velas do navio serem desfraldadas, e os marinheiros correrem pelo cais, soltando as amarras. -Talvez seja o meu verda­deiro eu que me diz que necessito dele -contrapôs.

Pah! Tu não precisas de ninguém. Já vivi muito, Jianna. Sei pelo que estás a passar. Isso também já me aconteceu uma vez. Ama­-lo muitíssimo e pouquíssimo. Muitíssimo para alguém amar outra pessoa, e pouquíssimo para mudares por causa dele. Ele quer uma es­posa e uma mãe para os seus filhos. Tu queres um império e um lugar na História. Acreditas que estas ambições possam conciliar-se? Ele sente o mesmo, minha rainha. Não pode amar outra, e a tua imagem está constantemente na cabeça dele. No entanto, também não irá mudar. Ele não voltará a ser o teu general. .. mesmo que isso signifi­que partilhar a tua cama e a tua vida. Enquanto ele for vivo, será uma pedra no teu coração.

-Vou reflectir no que disseste respondeu-lhe Jianna. Agora, nesta cidadela desmoronada, apercebeu-se mais do que

nunca antes do quanto sentira a falta deste homem alto, e da alegria da sua companhia. Ansiou ir ter com ele, e apoiar a mão no ombro dele. Pegar num pano e limpar o sangue que escorria do �olpl' no Sl'tt rosto.

Houve um movimento atrás dela. Virou-se e viu o guerreiro dn·nai em que reparara pela primeira vez lá em baixo no pátio. O sl'u rosto estava macilento e o sangue ensopava-lhe a túnica e as calças. Estacou

diante dela. Para que subiste os degraus, idiota?-perguntou-lhe. Disse-te que esperasses até o nosso cirurgião tratar de ti.

Julguei que fosse morrer antes de vos voltar a ver respon-deu-lhe ele.

-Tolo. Podias ter morrido ao subires as escadas. -No entanto, valeu a pena. -O homem vacilou. Malanek avan-

çou, agarrando-lhe o braço. Certifique-se de que lhe tratam dos ferimentos-ordenou ela.

O soldado apoiou-se em Malanek e esboçou um sorriso pueril, forçado.

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-Oh, agora não morrerei-disse ele. Enquanto Malanek o le-vava, ele virou a cabeça. -Sois casada? perguntou em voz alta. Jianna ignorou-o.

Uma mulher jovem de cabelos louros entrou no salão e falou em 'voz baixa com a Velha. Trazia uma pequena besta trabalhada de dis­paro duplo. A Velha fez-lhe sinal com o braço, indicando uma porta do outro lado do salão. A jovem encaminhou-se para lá, olhando uma vez para trás. Depois desapareceu.

Skilgannon levantou-se e virou-se. Os seus olhos azul-safira crava­ram-se nos dela. Jianna não permitiu que surgisse qualquer expressão neles. Limitou-se a esperar. Avançou para ela, e fez uma vénia pro­funda. Depois ergueu o olhar, sem dizer nada.

-Não tens palavras para mim, Olek? perguntou-lhe ela. Nenhumas fariam justiça - retorquiu. - Neste momento,

aqui de pé, sinto-me pleno. -Então volta comigo.

Um espasmo de dor percorreu-lhe as feições. Para mais guerras e morte? Para mais cidades destruídas e crianças órfãs? Não, Jianna. Não posso.

-Sou rainha, Olek. Não te posso prometer que não haja mais guerras.

Eu sei. -Desejas nunca me teres conhecido? Ele sorriu então. -Às vezes. Nas profundezas do desespero. Se eu

pudesse voltar a trás, mudava muitas coisas. Mas conhecer-te? Nunca o mudaria. Podias também perguntar a um homem com uma insola­ção se por acaso estaria arrependido de ter visto o sol.

Nesse caso, o que vais fazer? Tocou no medalhão que trazia ao pescoço. Seguirei viagem.

-Ainda pensas que a podes trazer de volta? Ele encolheu os ombros. - Só saberei se tentar.

-E depois o que farás? Vais viver com ela nalguma quinta árida? Ele abanou a cabeça. Ainda não pensei nisso.

Semelhante causa é um desperdício de vida, Olek. -A minha vida já é um deserto. Pelo menos isto sempre me dá

uma finalidade. Apareceu um soldado ao lado de Jianna. Fez uma vénia.-Os re­

beldes reuniram-se no pátio, Majestade. Saquearam os armazéns e estão a tt·ntar sair. Dizt·m que o tal Druss lhes prometeu as vidas. Dcwríamos mani-lost

Deixa-os partir. Sim, Majestade. Os nossos batedores referiram também que há

um grande contingente de cavalaria datiana a menos de duas horas daqui. Deveríamos sair antes de eles chegarem. Malanek avançou, e começou também a falar com ela. Jianna viu Skilgannon avançar na direcção da Velha, que lhe fizera sinal. Malanek insistiu também numa partida rápida.

Muito bem. Não há mais nada a fazer aqui. Olhando na direcção de Skilgannon, viu-o transpor a pequena

porta ao fundo do salão, seguido da Velha. Antes de a porta se fechar, reparou que havia umas escadas que conduziam às ameias.

Ele vem connosco, Majestade? inquiriu Malanek, ofere-cendo-lhe as Espadas embainhadas do Sangue e do Fogo. Jianna sacudiu a cabeça e viu que o velho esgrimista ficara desapontado. Suspirou. - Ele é lfm bom homem. Não acreditei que conseguisse derrotar Boranius. E bom saber que a vida ainda me consegue sur­preender.

-Não há ninguém que ele não consiga derrotar. Ele é Skilgannon. Olhou novamente na direcção da pequena porta. A seu lado jazia

o corpo de um homem que lhe pareceu familiar. -Reconhecei-lo? -perguntou-lhe Malanek.

Sim, Majestade. É Morcha, um dos oficiais de Boranius. -Não o consigo situar. Ah, bem, não importa. -Colocando a

mão à volta do cabo de marfim de uma das espadas, puxou-a lenta­mente da bainha de ébano. A lâmina tinha gravadas espirais de chamas vermelhas, o punho magnificamente talhado, mostrando figuras de­moníacas interligadas. A espada não pesava nas suas mãos, e sentiu um frémito percorrê-la. Jianna estremeceu. Acredita que essas es­padas possam estar possuídas?

Malanek olhou para ela e sorriu. O tempo o dirá, Majestade respondeu, encolhendo os ombros.

Quando a Velha chegou ao cimo das escadas, virou-se para Skilgannon. -Não estás curioso quanto à razão por que te pedi para vires ter comigo aqui? perguntou-lhe.

-Já a conheço redarguiu. -Ah, vejo que falaste com a mulher-besta, Ustarte. Agora dei-

xas-me intrigada, Olek. Vieste matar-me? -Acho que a sua morte há muito que devia ter acontecido, bruxa.

Mas, não, vim ajudar Garianne.

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As gargalhadas da Velha ecoaram. - Oh, que querido! Tinha es­peranças de que tentasses matar-me com uma das minhas próprias espadas. Teria gostado de ver a tua reacção quando as lâminas não con­seguissem penetrar-me a carne. Posso ser velha, mas não sou estúpida. Não faço armas que possam ser usadas contra mim. Por isso disse, apoiando-se no bordão -, como vais ajudar a pobre Garianne? Prometeste-lhe amor e afecto?

Skilgannon passou por ela e foi até às ameias circulares. Garianne es­tava de pé na muralha alta, equilibrada num parapeito e a olhar para a terra. Tinha a besta na mão, e Skilgannon reparou que estava carregada.

Garianne olhou para ele, o seu rosto inexpressivo. Skilgannon saltou com ligeireza para se colocar noutro parapeito a cerca de três metros dela. - Nunca gostei de alturas comentou.

- Também não me sinto confortável com elas - retorquiu Garianna. Reparou que ela falava na primeira pessoa. Era algo que nunca fazia, a menos que embriagada. Decidiu arriscar uma pergunta.

- Por que vieste até aqui, Garianne? - É aqui que acaba - respondeu ela. - É aqui que as vozes me

deixam. Serei livre. O luar intenso na pele dela fê-la parecer quase pueril. Olhou para

a besta na sua mão. - Se ela te libertar, então fá-lo sugeriu Skilgannon, virando-

-se para ela. - A criança está de novo bem?

Sim. T ão bem como pode estar alguém que sofreu tanto. A mãe foi assassinada, o pai está morto. Ela vai ter de viver com essas recor­dações toda a vida. Assim como tu viveste, Garianne. O que aconte­ceu em Perapolis foi mau. Foi monstruoso. Sou conhecido pelos meus actos ... serei sempre conhecido ... como o Maldito. A minha culpa é certa. Faz o que tens a fazer.

Nós ... eu ... não posso continuar a viver assim. Então não vivas - respondeu ele. - Aponta a tua besta.

Encontra a tua liberdade. A besta subiu. Skilgannon respirou fundo e preparou-se para rece­

ber o golpe da flecha. No entanto, não a disparou. Não sei o que fazer. Há uma voz que nunca ouvi antes. - Virando-lhe as costas, olhou para o pátio de pedra lá muito em baixo. Skilgannon adivinhou a intenção dela.

Não! - gritou, a sua voz autoritária. - Olha para mim, Garianne. Olha para mim! -Ela ergueu a cabeça, mas continuava

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empoleirada mesmo na beira das ameias. - A tua morte so tra concluir o horror de Perapolis. Tu sobreviveste. Os teus pais teriam rejubilado com a ideia de continuares viva. As suas vidas, o seu san­gue, estão em ti. És a dádiva deles ao futuro. Se saltares daqui, a descendência deles acaba. O teu pai não te escondeu para que pu­desses acabar desta maneira. Ele amava-te, e queria que tivesses a tua vida. Que encontrasses o amor tal como ele o encontrou. Que tivesses filhos teus. Desse modo, ele permanece vivo. Preferiria que disparasses uma seta no meu coração, do que ver-te fazer isto a ti própria.

Ele tem razão, filha - disse a Velha. Mata-o e liberta-te. Chama-lhe castigo, chama-lhe justiça, chama-lhe o que quiseres. Mas faz o que aqui te trouxe.

- Não posso - disse ela. - Sua cobarde estúpida! gritou a Velha. - Tenho de ser eu a

fazer tudo? -Estendeu uma mão ossuda na direcção de Garianne. A rapariga gritou de dor e endireitou-se bruscamente. O seu braço contraiu-se e a besta subiu mais uma vez.

Skilgannon virou-se para a Velha. Ela proferia um cântico, as pa­lavras numa língua que nunca ouvira.

Subitamente, apareceu uma figura à porta por detrás dela. Uma lâ­mina de prata irrompeu do peito da Velha, depois retirou-se. A bruxa avançou a cambalear e caiu de joelhos, o bordão fazendo barulho na pedra. Efectuou um esforço para ajoelhar, uma grande mancha de san­gue a estender-se-lhe sobre o peito. Virou-se lentamente e viu Jianna de pé, à porta, a Espada do Fogo na mão. A cabeça da Velha pendeu e ela puxou o véu preto do rosto. Skilgannon viu sangue nos lábios dela. Depois falou. - O amor ... cega-nos ... para o perigo - disst• ela. A Velha caiu morta no chão da torre.

Nas muralhas, Garianne soltou um grito e começou u cnír. Skilgannon virou-se, deu dois passos em corrida e atirou-se a ela. A sua

mão esquerda agarrou-lhe a túnica, a direita bateu numa ameia de pedra. Os seus dedos escorregaram e ele começou a cair. Deses­peradamente, raspou na pedra, arrancando a pele dos dedos. A sua mão prendeu-se numa saliência mínima cerca de um metro abaixo da torre. Garianne era um peso morto, e os músculos dos seus braços estavam esticados até ao ponto da rotura.

Jianna surgiu acima dele. - Larga a rapariga. Içar-te-ei. Não posso. Maldito sejas, Olt·k! Vão morrer os dois!

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Ela é ... a última sobrevivente ... de Perapolis. A sua mão co-berta de sangue começava a ceder. Gemeu e tentou manter-se agarrado.

Jianna subiu para as muralhas, descendo-se até à saliência estreita. Agarrando-se a um parapeito, debruçou-se, deitando a mão ao pulso ·dele. -Agora vamos todos, idiota! afirmou. A força acrescida dela permitiu-lhe aguentar, mas sentia a sua força a desaparecer. Tudo o que Jianna conseguira dar-lhe eram mais alguns momentos.

Subitamente, sentiu o peso de Garianne diminuir. Olhando para baixo, viu que Druss saíra da janela do Salão do Telhado e estava de pé na saliência, suportando a rapariga desmaiada. - Larga-a, moço! Já a agarrei. -Grato, soltou-a. Garianne deslizou para os braços de Druss. Liberto do peso, Skilgannon passou o braço esquerdo por cima da beira da pedra e, enquanto J ianna lhe dava espaço, voltou a subir para as ameias.

Jianna agarrou-lhe a mão e limpou o sangue. Os dedos dele tinham golpes profundos, e saía mais sangue das suas feridas. - Quase mor­remos. Ela valeu a pena isto? - perguntou, baixinho.

- Se valeu mais do que a Rainha Bruxa e o Maldito? Diria que Slm.

Nesse caso, continuas a ser rolo, Olek - ripostou ela. -Não renho tempo para tolos.-No entanto, não se afastou.

-Precisamos de nos despedir - murmurou ele. -Não o quero fazer- respondeu-lhe ela. Inclinando-se, beijou-

-o nos lábios. Malanek e vários soldados chegaram à torre. Por res-peito, mantiveram a distância enquanto Jianna envolvia o pescoço de Skilgannon com os braços.

- Somos ambos rolos - murmurou ela. E, dito isto, afastou-se dele e, seguida dos seus homens, regressou

ao Salão do Telhado. Passado um bocado, viu os Naashaniras monta­rem os seus cavalos e deixarem a cidadela.

Druss reuniu-se-lhe, a pequenira, Elanin, ao lado dele, segurando­-lhe a mão. - Bem, moço, fizemos o que nos tínhamos proposto.

-Como está Diagoras? Uma perfuração na anca e um golpe no ombro. Conseguirá vol­

tar para o templo. -E Garianne? -Está a dormir. Diagoras encontra-se com ela. Os gémeos não

resistiram. Mnrrt'ram juntos no pátio. É uma tremenda pena, mas penso ser o qm· .Jurt·d pretendia. Eram bons rapazes. -O homem do machado suspirou.·- Virás connosco?

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Não. Seguirei para norte.

Druss estendeu-lhe a mão, depois reparou nos golpes nos dedos de Skilgannon. Apertando antes o ombro de Skilgannon, disse: Espero que encontres aquilo que procuras.

-E você, meu amigo?

Eu?- Druss abanou a cabeça. Eu vou para a minha cabana. Senrar-me-ei no alpendre a ver o Sol pôr-se. Estou demasiado velho para este tipo de vida.

Skilgannon soltou uma gargalhada. Druss deitou-lhe um olhar carrancudo. - Falo a sério, moço. Vou pendurar Snaga na parede e guardar o elmo, o jusrilho e as luvas numa arca. Pelo Céu, até lhe vou pôr um cadeado e deitar fora a chave.

-Portanto disse Skilgannon -, presenciei a última batalha de Druss, a Lenda?

Druss, a Lenda? Sabes, sempre detestei que me chamassem isso. -Estou com fome, Tio Druss anunciou Elanin, puxando-lhe

o braço.

-Ora, isso é um título que me agrada - retorquiu o velho guer­reiro, pegando na criança ao colo. - É quem vou passar a ser. Druss, o Tio. Druss, o Agricultor. E que se dane a profecia!

- Qual profecia?

Druss sorriu de forma forçada. - Há muito tempo, uma vidente disse-me que morreria numa batalha em Dros Delnoch. Sempre foi um absurdo. Delnoch é a maior fortaleza jamais construída, seis mu­ralhas maciças e um fosso. Não há exército no mundo capaz de a tomar ... nem um líder suficientemente louco para o arriscar.

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EPÍLOGO

Ustarte encontrava-se numa varanda saliente, a olhar para os jar­dins interiores. A pequena Elanin entrançava pequenas flores brancas numa coroa para o vigoroso homem barbudo sentado a seu lado à beira do lago. Diagoras também estava sentado, em silêncio, num banco de mármore, observando-os.

O criado, Weldi, surgiu ao lado dela. -Garianne devolveu a besta do Homem Cinzento ao museu, Sacerdotisa - anunciou. Ela anuiu e continuou a olhar para a criança e o guerreiro. Elanin esticou os bra­ços e Druss baixou a cabeça, aceitando a coroa de flores. Porque a deixaram as vozes? inquiriu Weldi.

Ustarte abandonou a varanda.-Nem todos os mistérios podem ser desvendados, Weldi. É isso que torna a vida tão fascinante. Talvez a proposta de sacrifício de Skilgannon fosse suficiente para elas. Talvez Garianne se tivesse apaixonado por ele, e esse amor lhe desse paz. Talvez a alma da criança que carrega agora mitigasse a sua necessidade de vingança. Não interessa. Ela já não é atormentada.

E Skilgannon não sabe que vai ser pai. Não. Um dia, talvez ... Olha para a criança, Weldi. Ela não é

uma beleza?

-É, Sacerdotisa. Um encanto raro. Irá ser alguém importante no mundo?

Já o é. Sabeis ao que me refiro. Os dois maiores guerreiros do mundo

unidos numa causa- para a salvar. Arriscaram as suas vidas. Lutaram contra uma feiticeira e um vilão com espadas mágicas. O resultado deveria conseguir mudar o mundo.

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Ah, sim concordou ela. -Também gosto desses romances. O regresso de uma época áurea, a eliminação do mal, a princesinha que um dia será grandiosa.

-Precisamente. Algum dos futuros o mostra? Eles mostram que Elanin será feliz e terá filhos felizes. Isso não

é suficiente? Não sei admitiu Weldi.

-Dentro de alguns anos, Druss, a Lenda, erguer-se-á nas mura­lhas de Dros Delnoch e desafiará o maior exército que o mundo ja­mais viu. Fá-lo-á para salvar o povo drenai da chacina e manter vivos os sonhos da civilização. Já é mais do teu agrado?

-Ah, efectivamente é, Sacerdotisa. Ela sorriu-lhe carinhosamente. -E pensas que Druss irá achar que

é isso mais importante do que salvar esta criança de um lugar de tre­vas e horror?

Weldi olhou para o guerreiro lá em baixo, a coroa ridícula de flo­res no seu cabelo grisalho. - Suponho que não - admitiu. -Por que será?

Deixa-me perguntar-te o seguinte -respondeu Ustarte -, se um herói vê uma criança em perigo de se afogar, será que precisa de saber que o destino dos mundos fica por resolver antes de se atirar à

água e tentar salvá-la? -Não-retorquiu Weldi.- Mas já que estamos a jogar este

jogo, e se alguém disser ao herói que a criança está predestinada a ser má?

Boa pergunta. O que faria então Druss? Weldi soltou de repente uma gargalhada.- Saltaria para a água

e salvaria a criança. -E porquê? -Porque é o que fazem os heróis.

Excelente, meu amigo. Portanto, o que acontecerá em Dros Delnoch?

Ustarte riu-se. A tua curiosidade é insaciáveL Por que não me perguntas realmente o que queres?

Ele sorriu-lhe. - Gostaria de ver um dos muitos futuros. Um bom, porém. Nada triste ou deprimente. Sei que os investigastes, Sacerdotisa, porque a vossa curiosidade não é menor do que a minha.

- Dá-me o braço -pediu ela, e caminharam juntos pelos cor­redores interiores do templo, chegando finalmente a uma pequena sala. Envolveu-os uma luz dourada suave quando Ustarte entrou.

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A sala estava fresca e silenciosa, e pairava no ar o aroma a madeira de cedro. Não havia janelas nem mobília de qualquer espécie. Três das quatro paredes eram de rocha vermelha rugosa, a quarta de vidro liso. Ustarte ficou parada por um momento, olhando para os seus reflexos.

-Vou mostrar-te um futuro possível -anunciou. -Não mais do ·que isso. É um que me agrada. Apesar de só te ir deixar mais curi­

oso. Estás preparado? -Estou, Sacerdotisa-respondeu Weldi, todo satisfeito. U starte levantou o braço e o vidro brilhou e escureceu. Apareceram

estrelas cintilantes num céu distante, e encontraram-se a olhar para uma fortaleza colossal banhada pelo luar. Um imenso exército estava acampado diante da fortaleza. Weldi espreitou o acampamento.-O que estão a fazer? -inquiriu.

-A preparar uma pira fúnebre. -Quem morreu? -Druss, a Lenda.

-Não! -gemeu Weldi. - Não quero ver um futuro infeliz. -Espera! -O vidro brilhou mais uma vez, e agora era como se

Weldi e a sacerdotisa estivessem dentro de uma tenda grande. Encontrava-se ali uma figura vigorosa, rodeada de guerreiros nadir. A figura virou-se e Weldi viu que tinha olhos cor de violeta de ex­traordinário poder. Entrou outro homem na tenda.

-É Skilgannon -disse Weldi. -Está mais velho. -Dez anos mais velho-referiu Ustarte.-Agora escuta! -Por que estás aqui, meu amigo? -perguntou o homem com

olhos cor de violeta. -Sei que não é para lutares pela minha causa. -Vim buscar a recompensa que me prometestes, Grande Khan. -Isto é um campo de batalha, Skilgannon. As minhas riquezas

não estão aqui. -Não pretendo riquezas. -Devo-te a minha vida. Podes pedir-me tudo o que tenho e con-

ceder-to-ei. -Druss era-me querido, Ulric. Éramos amigos. Quero apenas

uma recordação, uma madeixa do seu cabelo, e um pequeno fragmento de osso. Pediria também o seu machado.

O Grande Khan permaneceu em silêncio por um momento. -Ele também era querido para mim. O que farás com o cabelo e o osso dele?

-Colocá-los-ei num medalhão, meu senhor, e usá-lo-ei ao pes­coço.

-Então assim será-concordou Ulric.

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Mais uma vez o vidro brilhou. Weldi viu Skilgannon afastar-se do acampamento nadir, o grande machado, Snaga, preso aos ombros. Depois a imagem sumiu. Weldi ficou por um momento a olhar para o seu reflexo.

-O que aconteceu depois? -perguntou. -Eu disse-te que aguçaria ainda mais a tua curiosidade. -Oh, isto é injusto, Sacerdotisa! Dizei-me, imploro-vos. -Não sei, Weldi. Não vi mais. Ao contrário de ti, gosto de mis-

térios. As lendas também me encantam. E sabes que, tal como em todas as grandes lendas, a mesma história circula. Quando o reino está ameaçado, o maior herói regressará. Portanto, vamos ficar por aqui.

-Acho-vos muito cruel -protestou Weldi. Ustarte riu-se.-E esperarias outra coisa de alguém que é metade

lobo?