Livros Que Invent Aram o Brasil
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L IV R O S Q U E IN V E N T A R A M OB R A S I L
Fernando Henrique Cardoso
RESUMO
Em Au l a M a g n a m i n i s tra d a a o s a l u n o s d o In s t i tu t o R i o B ra n c o (p re p a ra t ri o p a ra a c a r re i ra
d ip lomt ica) , Fernando Henrique Cardoso , en to minis t ro das Relaes Exteriores do Brasi l ,
a n a l i s a a s c o n tr i b u i e s d e Gi l b e r t o Fre y re , S rg i o B u a rq u e d e H o l a n d a e C a i o Pra d o J n i o r
p a ra o c o n h e c i me n t o d a re a l i d a d e b ra s i l e i ra .
Palavras-chave: soc iedade bra si le i ra; Gi lber to Freyre; Srgio Buarqu e de H olanda; Ca io Prado
Jnior .
SUMMARY
In h is Aula M agna lec ture presented to the s tudents of the Rio Branco Inst i tu te (a prepara tory
s c h o o l f o r d i p l o m a t s ) , F e r n a n d o H e n r i q u e C a r d o s o , t h e n M i n i st e r o f F o r e i g n R e l a t i o n s o f
B ra z i l , d i sc u sses t h e s i g n i f i c a n c e o f t h e c o n t r i b u t i o n s o f Gi l b e r t o Fre y re , S rg i o B u a rq u e d e
Ho l a n d a a n d C a i o Pra d o J n i o r t o t h e i n t e rp re ta t i o n o f B ra z i l i a n re a l it y .
Keywords: Brazi l ian soc ie ty ; Gi lber to Freyre; Srgio Buarque de Holanda; Caio Prado Jnior .
Logo que iniciei atividades no acadmicas atividades polticas
uma das maiores dificuldades que tive foi falar nas Cmaras Municipais.
Habitualmente em campanha eleitoral faz-se um priplo pelas Cmaras, eos governos militares dotaram as Cmaras de muito boas condies fsicas.
Na medida em que elas foram esvaziadas de poder, seu aspecto ornamental
ficou melhor servido, como aconteceu tambm com os sindicatos. Mas nas
Cmaras isso notvel. S que a arquitetura das Cmaras brasileiras j
que eu vou falar sobre o Srgio Buarque que sempre gostou muito de
analisar os planos das cidades, e sobre o Gilberto Freyre das casas grandes,
permito-me aqui uma digresso arquitetnica obedece mesma dispo-
sio deste anfiteatro do Itamaraty: uma mesa, onde ficam notveis, como
agora, e de outro lado o "terceiro Estado". Entre os notveis e o terceiro
Estado h um vazio, que come a palavra. Por isso eu tinha muita dificuldade
de falar nas Cmaras; o professor est sempre mais acostumado a falar
prximo, e eu tinha que falar longe do pblico, e isso d a sensao de quea palavra cai no vazio. Venho hoje aqui, e se repete a cena. De modo que
eu me desloquei da mesa principal para este plpito, no para ser
Este texto reproduz a Aula Mag-na do Instituto Rio Branco pro-ferida pelo ento ministro deEstado das Relaes Exterio-res, senador Fernando Henri-que Cardoso em 8 de maro de1993.
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imponente, mas para ficar um pouquinho mais perto da audincia e sentir
menos medo de que a palavra desaparea no vazio, uma vez que a falta de
pensamento original sobre a matria j aumenta esse risco, e ser pior ainda
se a arquitetura ajudar na tarefa de jogar o pensamento rio abaixo.
Dito isto, eu quero lhes dizer que gostaria de conversar nesta tarde
com bastante liberdade sobre os trs autores que so propostos comofundamentais para essa fase do curso de leituras brasileiras, que so o Caio
Prado, o Srgio Buarque e o Gilberto Freyre. Para tanto farei um misto de
evocao e de interpretao. Evocao porque, por circunstncias da vida,
eu conheci aos trs. Conheci menos o Gilberto Freyre, por diferena no s
de gerao mas de regio. Talvez tenha conhecido mais de perto a Srgio
Buarque, de quem fui amigo e que me examinou duas vezes, uma numa tese
de ctedra. Com Caio Prado, trabalhei naRevista Brasiliense, pertencia ao
seu Conselho. Tive, portanto, um contato mais prolongado com o Caio e
com o Srgio. Quando se conhecem os autores de perto, na hora de fazer-
se a interpretao fica-se talvez mais toldado e, ao mesmo tempo, mais
motivado.
Num dos prefcios do Razes do Brasil h um estudo de AntonioCandido de Mello e Souza, um pequeno estudo no qual Candido diz que
esses trs personagens foram bsicos para a sua gerao, porque dois
escreveram seus livros principais nos anos 30 e Caio Prado escreveu em
1945, prximo, portanto, da poca de formao da gerao de Antonio
Candido. Nossos autores influram quase que diretamente nas pessoas da
corte generacional de Antonio Candido. Formaram os trs pilares funda-
mentais do pensamento sobre o Brasil at ento. Se Antonio Candido
pudesse escrever mais recentemente o mesmo prefcio, talvez acrescentasse
um outro autor, que, tenho certeza, muito de seu agrado: Celso Furtado.
O curioso que, se algum for pensar hoje sobre as contribuies
bsicas para a interpretao do Brasil, esses trs autores estaro no Pantheon
dos notveis do mesmo jeito. E no por acaso foram selecionados para servirde marco nessa reflexo sobre o Brasil. Trata-se de autores com contribui-
es muito dspares, muito diferentes umas das outras. Embora seus livros
principais tenham sido escritos proximamente uns dos outros, especialmen-
te o do Srgio Buarque e o do Gilberto Freyre Casa grande e senzala
de 1933 e Razes do Brasil de 1936 e, portanto, estavam reagindo ao
mesmo clima intelectual e poltico , eles analisam o pas de ngulos
bastante diferentes. No obstante surgem numa mesma leva de pensamento
e foram motivados pela mesma matriz que originou esse esforo para
repensar o Brasil.
Nas interpretaes sobre o Brasil dos anos 30, havia um forte
prodomnio de idias antiliberais. Os grandes autores eram Oliveira Viana
e Alberto Torres, e, depois, Azevedo Amaral. Em Azevedo Amaral, a defesado Estado autoritrio aberta; Oliveira Viana mal a esconde; e Alberto
Torres no ficou imune febre autoritria. J os dois livros de Srgio e de
Gilberto Freyre depois eu vou ao Caio tm uma viso bem diferente.
A viso de Gilberto Freyre foi revolucionria, embora mais tarde, na minha
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gerao, custasse a crer que Gilberto Freyre tivesse tido um papel revo-lucionrio.
Foi-me pedido em algum momento que fizesse uma sntese, umacrtica do pensamento de Gilberto Freyre e eu a escrevi. Ao tentar a sntesecrtica, comecei fazendo aluso um pouco perversa sensao que tivequando voltei ao Chile, depois do golpe de Pinochet. Em 1974, regressavaao pas pela primeira vez depois do golpe, eu que tinha vivido no Chile deAlessandri, de Frei e de Allende. Quando voltei, o regime era ditatorial, evrios dos meus amigos ainda estavam presos ou haviam sido desterrados(fui ao Chile para participar de uma reunio na CEPAL). E quando se voltaa um pas muito prximo eu l havia vivido quatro anos seguidos, noexlio as evocaes so inevitveis. Eu tinha muita reserva em voltar,porque havia gostado imensamente do Chile. L vivi numa poca muitofecunda intelectualmente, no s para mim, mas para muita gente, poca emque a CEPAL produzia um pensamento crtico bastante forte, e a Universi-dade chilena pulsava democracia. Por isso, eu tinha um certo medo de voltarao Chile no regime militar. Voltei. A recordao, nas circunstncias, era
inevitvel, porque o cheiro das rvores e das flores o mesmo, os frutos tmo mesmo sabor, a cordilheira dos Andes, com aquela cor esbranquiada desempre, o cu, que s vezes parece o de Braslia, tudo aquilo to grato, toagradvel, to prazeroso. estranho a gente sentir uma sensao agradvelnum pas que politicamente se est odiando. Na ocasio, li num jornal, ElMercurio, que o mais importante do Chile, uma longa conferncia deBorges, de Jorge Lus Borges. Ele tinha ido ao Chile para receber um prmiodos militares. Li e me deliciei, o que me produziu em seguida uma certaindignao: independentemente de minhas convices polticas, eu mesentia feliz com o Chile-fsico e deliciado pela leitura de Borges... Erademais; fiquei indignado comigo. A conferncia de Borges sobre a lnguaespanhola, sobre o "idioma castellano" era admirvel. Mas fazia a defesa
mais reacionria possvel da intangibilidade da lngua, da necessidade de seevitar que a lngua evolusse. Tudo escrito de uma maneira to bela, toconvincente, que eu me empolguei com a conferncia. Fiquei com raiva demim tal era o dio poltico que eu nutria pelo Chile dos militares: nodeveria ser possvel ser to cerebrino e separar a emoo esttica dascircunstncias.
Comecei a crtica a Gilberto Freyre referindo esse fato. Porque fui relerfaz l uns quinze anos isso, no sei o Casa grande e senzala, eaconteceu a mesma coisa. Uma releitura do Casa grande e senzala, feita nocom o olhar do jovem socilogo militante, que quer, naturalmente, cobrardos outros uma postura de recusa da ordem estabelecida, mas uma releiturade algum mais maduro a idade inevitavelmente acalma , uma releitura
um pouco mais serena do Casa grande e senzala, sem que se fique natorcida para saber qual o mtodo, mas simplesmente tratando de ver o quediz o livro, apaixona. E apaixona, em primeiro lugar, pela literatura, porqueGilberto Freyre faz com as palavras o que quer. Convm pular os prefcios,porque os prefcios so to cabotinos que podem dar uma impresso menos
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altura do que o livro propriamente . Mas o livro apaixona. E, mais ainda, um livro no qual a vida cotidiana aparece. Hoje isso banal. E nasociologia, ento, a sociologia do cotidiano, a antropologia do cotidiano, setornou algo normal, mas o livro de 1933! Gilberto Freyre foi discpulo deFranz Boas, mas nem Boas tinha esse interesse pelo cotidiano. verdade
que os antroplogos so muito mais voltados para a vida comum do que ossocilogos ou mesmo do que os historiadores que geralmente descrevem osgrandes feitos, mesmo na histria social. Mesmo assim, no era comumerigir a vida cotidiana em grande personagem.
O fato que Gilberto Freyre, de alguma maneira, introduz na literaturasobre o Brasil a vida cotidiana, a famlia, a cozinha, a vida sexual, os maushbitos, ou bons, no sei. Enfim, assume uma dimenso que no adimenso usual do intelectual brasileiro. A dimenso usual desconhecerera, e ainda , desconhecer o peso da rotina e sublinhar os fatos queso mais significativos, e portanto, esvazi-los de vivncia. Gilberto Freyreno. Descreve uma histria social, vezes idlica, mas mesmo quandoidlica, quando no corresponde a uma pesquisa ou a dados documentais,
a referncia analtica abrange aspectos antropolgicos do cotidiano. Issonum grande livro em que se est pensando o Brasil.Depois, Gilberto proclama que ns somos mestios e que ser mestio
bom. Ele no est isento de preconceitos, por exemplo, com relao aosndios, que nunca foram de seu maior agrado. Mas com relao culturaafricana e aos negros, Gilberto at os idealiza. E isso tambm absolutamen-te revolucionrio para a poca. Oliveira Viana, que era mulato, tinha horrordisso. Em outros autores, a busca de uma espcie de branqueamento eraconstante, branqueamento no s fsico no se consegue tanto masespiritual. Ento, para que tocar nesses aspectos discutveis de umaformao histrica que est fincada na frica, em grupos tribais? GilbertoFreyre no tem medo disso, vai diretamente a essas questes.
Ao fazer esse tipo de revoluo, quase copernicana, tendo em vista aliteratura da poca, coloca o negro como primazia. Mas, ao mesmo tempo,mostra a contradio fundamental entre a casa grande e a senzala. Euclidesda Cunha j havia feito algo semelhante, mas com o sertanejo, que era "antesde tudo um forte". Mas o sertanejo no um negro; o sertanejo o brancoqueimado, s vezes mestio de ndio, at cafuso, mas no um negro.Gilberto Freyre colocou o negro, junto com o portugus, como partefundamental da plasticidade da cultura que aqui se foi constituindo. E noo faz, apenas eu volto ao tema daqui a pouco de forma, digamos,retrica. Quer dizer, ao mesmo tempo em que enaltece a casa grande, nodeixa de mostrar que a casa grande inseparvel da senzala. E mostra, o queera sabido mas mostra com maestria sociolgica que a sociedade
patriarcal estava fundada num tipo de explorao econmica que supunha,evidentemente, a grande propriedade, o latifndio. Mostra, enfim, que afidalguia da casa grande coexistia com a massa de escravos.
Evidentemente, a partir da, na viso do patriciado constitudo pelaclasse senhorial, Gilberto Freyre idealiza muito. Em toda anlise posterior
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sobre a inexistncia do preconceito, de que tudo se assimila em nossacultura, no resiste crtica mais objetiva. Eu prprio escrevi trabalho sobreo negro no Rio Grande do Sul para contrastar com a viso idealizada deGilberto Freyre, do que era at mesmo a relao com as mucamas, o que erao escravo domstico, a distino entre o escravo do eito, da lavoura, e oescravo domstico, a "bondade" na relao com o escravo domstico, e ainfluncia da mucama sobre o senhorzinho. Tudo isso visto de umaperspectiva bastante adulterada, bastante deformada. Mas, dentro dessadeformao, que inegvel a partir de qualquer ngulo mais objetivo deanlise sociolgica, na verdade Gilberto Freyre pintou um mural. E talvezseja essa a primeira razo pela qual um livro como Casa grande e senzalapermanece vivo: tem a capacidade de sintetizar (caracterstica tambm daobra dos outros dois autores que estamos considerando). Na hora da sntesemuito se esfuma, desvanece. Uma poro de aspectos, especialmente arugosidade do real, que sempre desagradvel, podem desaparecer nasntese, sempre purificada de eventuais distores ou imperfeies, luz dateoria que se quer enaltecer.
Gilberto Freyre faz uma sntese com fora intelectual que no fcilencontrar nas anlises sobre outros povos. Sobre os Estados Unidos existepainel vigoroso feito por um francs, Alexis de Tocqueville. EmA democra-cia na Amrica, Tocqueville faz isso. As pginas de Weber tm estaturaintelectual ainda maior. Mas, no caso de Gilberto Freyre, trata-se de algumque est refletindo sobre a sua prpria histria, sua prpria realidade. sempre mais difcil uma sntese crtica (embora, no caso em tela, tambmlaudatria) quando se fala do prprio umbigo.
O outro lado que me parece fazer com que Casa grande e senzalapermanea o da produo de um mito. O encanto do livro de GilbertoFreyre que ele, ao mesmo tempo em que desvenda, oculta e mistifica. MasGilberto faz um mito que o nosso mito. De alguma maneira prope uma
imagem que as pessoas gostariam que fosse verdadeira. Essa imagem, sendomtica, deforma. O mito tem que ter sempre estrutura simples de oposiesbinrias. Quem leu Lvi-Strauss sabe disso. E tem de conter oposiesclaras. A estrutura de Casa grande e senzala uma estrutura simples, aoposio clara tambm. O "ns" que se forma o "ns" que est baseadona casa grande e na senzala, nas raas formadoras, e se ope aos outros, queno so assim. No o holands quem vai plasmar o Brasil: no poderia; o portugus, porque o portugus conseguiu essa amlgama com o negroque permitiu a individualidade da civilizao brasileira, criando umaidentidade redefinida miticamente por Gilberto Freyre. E criou uma identi-dade que fez com que o leitor, ao l-la, no a rejeitasse. No se trata de umespelho horroroso, para mostrar uma cara que ns no gostaramos de ter.
Ser um espelho narcisista, como o prprio autor, alis, sempre foi. Quemo mirar achar que nossa cara bela e gostosa de ser vista.
esse misto de grande escritor, com uma slida formao em cinciassociais, treinado na Columbia University, discpulo de Franz Boas, que sabiadas coisas, que era versado em literatura, especialmente inglesa e america-
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na, que faz de Gilberto Freyre o autor de um livro permanente; esse mistode algum com base acadmica e que capaz de sintetizar sntese queno deixa de ter algum elemento crtico, mas, ao mesmo tempo, abre-separa uma dimenso utpica, mtica, duradoura.
fcil, de um ponto de vista objetivo, destruir alguns fundamentos deCasa grande e senzala. No, claro, o mural inteiro; mas muito do queGilberto diz fcil de ser contrastado com uma boa base emprica. smandar fazer dez, vinte teses de mestrado, e se pulverizam muitosargumentos do livro. Mas isso no lhe tira a fora. No tira o que ele tevede inovador para a poca, ao colocar a vida cotidiana como fundamentalpara a compreenso do pas; de assumir uma cara prpria do Brasil, emboramistificada, mas uma cara que no era convencional; de aceitar o que osfranceses chamariam de "negritude", embora um pouco disfarada, amula-tada; de, ao mesmo tempo, no esconder a perversidade e endeusar ossenhores; e de mostrar que, apesar de tudo, esse sistema, esse patriarcadobrasileiro, foi capaz de criar uma civilizao.
Essas so, digamos assim, as caractersticas que tornam Casa grande
e senzala um livro contemporneo. Sua contemporaneidade deriva precisa-mente da sua atemporalidade. Ele criou o mito que, ao mesmo tempo emque deforma, explica. Daqui a quinhentos anos, talvez, os antroplogos dofuturo vo tomar o livro de Gilberto Freyre como os antroplogos hojeestudam certos mitos, que contm formas de explicao da sociedade,embora no "cientficas". Qualquer leitor mais rigoroso, qualquer socilogopositivista ou funcionalista, ou marxista, pega o livro e pode estraalh-lo.No tem muita importncia isso. O que tem importncia que o livrorealmente abriu uma vereda, um caminho. E talvez tenha influenciadomenos do que devesse, porque as posies de Gilberto Freyre, mais tarde,foram posies conservadoras, que afastaram a jovem intelectualidade dapossibilidade de entender o significado de Casa grande e senzala. Gilberto
Freyre no escreveu outro livro com a mesma fora. Tentou fazer algo dognero com Sobrados e mucambos e, at certo ponto, com Ordem eprogresso. Mas eles no tiveram a capacidade de pintar um painel com igualfora.
J nosso outro autor Srgio Buarque de Hollanda , que escreveutrs anos depois de Gilberto Freyre, a quem este agradece no Casa grandee senzala, pela contribuio prestada (pois Srgio traduziu algumas obras doalemo, para que Gilberto Freyre pudesse us-las) , tem uma conotaodistinta. E eu diria que, embora o livro de Gilberto Freyre seja maisvulnervel crtica, uma arquitetura de grande porte, enquanto o de Srgiono assim.Razes do Brasil quase que uma miniatura de pintor, umadessas miniaturas que revelam muito, como se fosse da lavra dos pintores
geniais de Flandres que, ao fazer uma miniatura, s vezes no interior doquadro maior revelam, na mincia, tudo o que pode ser visto em pontomaior na grande obra.
EmRazes do Brasil, do ponto de vista da histria das idias, Srgio Buar-que talvez tenha produzido uma revoluo maior do que a feita por Gilberto
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Freyre. No maior quanto arquitetura da obra sobre o Brasil, quanto com-preenso, nem as categorias do Srgio so categorias de tipo estrutural. Gil-berto Freyre, bem ou mal, faz uma anlise estrutural histrica e estrutural. Odilogo que Srgio mantm um dilogo de uma iluminura, mais sofisticado,talvez v mais fundo, mas no tem as caractersticas de um vasto mural. Mas
Razes do Brasil tem algo de mais palavra ruim moderno. O livro de Gil-berto foi um livro que comoveu pelas razes que eu disse: fez um mito sobrens prprios. O de Srgio no comoveria tanto desse ponto de vista, emboratambm desvende alguns aspectos importantes da cultura brasileira, e at mes-mo do comportamento dos brasileiros; mas creio que a parte mais significativado trabalho do Srgio outra. que Srgio um pensador radicalmente de-mocrata, coisa que Gilberto Freyre no era. O pensamento de Gilberto Freyre docemente conservador; ele concede ao povo ou ao escravo, mas no estinteressado em explicar se as coisas vo mudar ou no vo mudar, por que vomudar, at que ponto a estrutura patriarcal, ao invs de ter o lado positivo res-saltado, tinha tambm lados que obstaculizavam as mudanas e perpetuavamuma ordem injusta.
Srgio no. Ele est o tempo todo tratando de mostrar que temosrazes at ibricas Gilberto Freyre tambm fala nisso, no em razesportuguesas, mas ibricas, mas, ao mesmo tempo em que est procurandoas razes ibricas, faz distines. Distingue a Amrica criada pelo portugusda Amrica criada pelo espanhol, e, sobretudo, reconhecendo, mostrandoe criticando a formao patrimonialista brasileira (e para isso usa Weber),tentavislumbrar brechas para a emergncia de um possvel comportamentodiferentedo comportamento brasileiro tradicional.
Deixem-me precisar um pouco mais o que quero dizer com isso. Numdos captulos mais bonitos do livro, que "O ladrilhador e o semeador" (equeganhou este ttulo na sexta edio, ou stima), Srgio Buarque comparaa presena espanhola com a presena portuguesa. Diz que a presena
espanhola
se marca por uma vontade frrea e abstrata de criar cidades complanostraados de antemo. A cidade espanhola uma cidade geomtrica,com a praa maior e as ruas paralelas que saem dela, de tal modo que ageografia dominada pelo planejador que a antecipa mentalmente. Oprprioplano vinha da Espanha. Em contraposio a esse esprito, a essavontade mais abstrata, mais racionalizadora, mais impositiva, dos espa-nhis,os portugueses como que se espreguiavam na geografia. A cidadeportuguesa desorganizada, a cidade que sobe e desce em ziguezague,emboraos portugueses preferissem ficar no alto dos morros, com seusfortes.Eles tinham viso estratgica, ocuparam o espao brasileiro de umamaneiraadmirvel, souberam construir fortificaes onde era necessrio,mas notinham a preocupao com a ordem geomtrica, nem talvez com
a disciplina;o esprito improvisador do portugus era muito forte para seconformar a planos. Assim a cidade vai se formar de uma maneira muitomais desordenada.
Mais adiante, Srgio Buarque vai mostrar, em vrios captulos, sendocada umdeles uma obra de arte em si, que h certas condicionantes da vida
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do portugus no Brasil, da nossa formao colonial, da nossa formao
histrica, que levam valorizao de elementos culturais que, digamos
assim, para usar a expresso que Weber utilizava, tomando emprestado de
Goethe, no tm afinidades eletivas com o esprito do capitalismo, com a
modernidade.
Eu me referi h pouco a Tocqueville, que escreveu pginas admirveissobre como foi possvel enraizar nas Amricas uma sociedade mais
igualitria, mais democrtica e mais afim com o esprito do capitalismo
moderno. Pois bem, aqui no h nada disso. No existe na formao
cultural brasileira essa propenso ao abstrato, ou ao racional, nem o amor
s hierarquias. Esse desamor s hierarquias estamentais que vigiam na
Europa, porm no na Amrica , compensado pela disciplina individual
e pela solidariedade grupal de fundo religioso, levou, na Amrica do Norte,
competio capitalista. Entre ns, a inexistncia da racionalidade abstrata
e do gosto pela disciplina levou ao personalismo.
Srgio vai construir sua interpretao uma das suas, pois so tantas
ao redor da idia de que, embora a nossa sociedade seja uma sociedade
de privilgios, esses privilgios e ele diz que essa caracterstica vem domundo ibrico no esto baseados nas distncias estticas das hierarquias
sociais preestabelecidas. De alguma maneira a realizao individual pesa
mais do que, como diriam os socilogos americanos, as virtudes prescritivas
e as posies herdadas, advindas de privilgios de nascena, de posies
preestabelecidas na sociedade. Porque sempre houve alguma possibilidade
de mobilidade. Curiosamente Srgio Buarque contrasta essa situao com
outras nas quais existe um sistema de normas estruturadas que valorizam o
exerccio da motivao individual. Entre ns acontece o oposto: a ao
pessoal, em uma sociedade que no valoriza as regras abstratas, transforma
a realizao individual em dom, acaso e sorte.
No se trata propriamente da mobilidade que a sociedade permite em
funo de um parmetro mais amplo, que contempla a mobilidade como umvalor e lhe aponta caminhos institucionais. Seno que se trata de algo que
se consegue pela desordem, pela vontade pessoal, pela imposio, e que
acaba sempre sendo algo particular. Nossa formao leva-nos a exacerbar
as virtudes pessoais e arbitrrias. No se cria, assim, uma sociedade
verdadeiramente democrtica. A democracia requer regras, requer a
igualdade formal, que assegure chances iguais a todos. O valor que se
preza, entre ns, o oposto: o xito sempre uma proeza nica, pessoal,
a despeito das regras.
A viso que Srgio Buarque tem a de que, se existe um esprito
irrequieto entre ns, que permite essas exploses pessoais que quebram a
rigidez da sociedade, essa quebra de rigidez no se d pela transformao
da estrutura em benefcio de todos, e sim em termos do aplauso para quemconsegue quebrar as regras, momentaneamente, graas a um percurso com
marca prpria, patenteado, e no generalizvel.
Um dos captulos mais importantes do livro sobre "o homem
cordial". Na verdade, Srgio est fazendo uma crtica, e no o endeusamen-
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to das "virtudes brasileiras", porque o homem cordial, para ele, o homemdo corao, que se ope ao homem da razo. E cordial no quer dizer"bom", quer dizer da "emoo". E a emoo perturba o estabelecimento dasregras gerais, formais, democrticas. A leitura do homem cordial comohomem afvel equivocada. Com o conceito, Srgio Buarque est mostran-do outra coisa, est mostrando que esta "cordialidade", na verdade, umamaneira de reter vantagens individuais. At mesmo nas anlises quaseantropolgicas deste livro admirvel (e Srgio Buarque um excelenteescritor que sempre foi capaz de disfarar a erudio), aparecem ascaractersticas dos modos de comportamento no Brasil que, sendo aparen-temente muito agradveis e parecendo romper com frmulas estabelecidas,na verdade utilizam a displicncia e a falta de ordem em benefcio dos queso capazes do exerccio do poder pessoal.
Em nossa prpria prtica religiosa, muito difcil manter o ritual.Citando Saint-Hilaire, diz que mesmo durante o culto as pessoas conversam,mais interessadas nelas prprias do que na vida em comum. O ritual, quepode parecer alguma coisa de impositivo e, portanto, negativo, tambm
condio da vida democrtica. O no ter regra, aparentemente, o estar vontade que igualiza; mas na verdade no bem assim, propiciar que aspessoas que so formalmente iguais deixem de s-lo, porque sendo uns"mais iguais que os outros", so to superiores que podem ser condescen-dentes, "democratas", como uma concesso pessoal e no em funo dodireito do outro.
Confundimos muito no Brasil essa situao, que de manipulaopela ausncia de regras gerais e conhecidas, com "informalidade democr-tica". Tem-se a impresso que convm quebrar todas as regras para haverdemocracia. Quando se quebram todas as regras, entretanto, no hpossibilidade da generalizao de situaes de igualdade, no h possibili-dade efetiva de se criar uma situao de democracia.
No tenho visto muitas anlises politizando Razes do Brasil, e euestou politizando. Existem muitas anlises que valorizam a contribuio deRazes do Brasil para a histria cultural, que ressaltam a graa do textopara descrever situaes, ao fazer citaes eruditas e usar linguagemcoloquial. O livro, ao mesmo tempo em que exibe enorme simplicidadevocabular e de estilo, de repente faz uma interpretao extremamentesofisticada. Tudo isso verdadeiro, mas acho que pode haver uma outraleitura do Razes do Brasil, que valorize a crtica profunda de nossasociedade no democrtica.
muito significativo que toda a construo intelectual do livro terminecom uma pergunta: o que podemos fazer para construir uma sociedade maisdemocrtica? Uma sociedade que ao invs do personalismo e do caudilhis-
mo permita o acesso de todos s oportunidades existentes, que tenha regrasgerais, como na democracia? A resposta de Srgio Buarque no pessimista.Ele no se limita a descrever uma situao definida por uma "heranahistrica". Especula sobre alternativas democrticas. Escrito em 1936, issoera rarssimo. Srgio se coloca contra a onda dominante, que ou era fascista
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ou comunista. Seu livro radicalmente democrtico. E faz tambm a crticada liberal-democracia cabocla, mostrando que ela era outra forma de poderpessoal disfarada em belas palavras, perfeitamente assimilveis pela elitede poder no Brasil, que aceita, do ponto de vista abstrato e ideolgico, aposiao liberal-democrtica, mas que se esquece dos fundamentos sociais
necessrios para a existncia de uma situao democrtica efetiva.Razes doBrasil faz a crtica da democracia liberal a partir do ponto de vistademocrtico, no a partir do ponto de vista conservador, e muito menosfascista ou comunista, ideologias repelidas pelo autor durante toda sua vidae que estavam na moda quando o livro foi escrito.
Na parte final deRazes do Brasil, Srgio Buarque deixa transpareceros fundamentos de seu otimismo, de sua esperana: a de que vir umarevoluo "de baixo". No fala em revoluo, pois primava em no usarpalavras to amedrontadoras. Mas tem a firmeza de, no usando as palavras,discutir as condies para uma mudana mais radical. Em suma, o livrodiscute as possibilidades de se mudarem as razes, as heranas culturais, aordem vigente. E a mudana que ele antev a de que, com a urbanizao,
o peso da herana rural ceder presena das massas populares que ele viacom bons olhos, posto que possibilitaria um movimento "de baixo paracima". A urbanizao traria cena novos protagonistas da poltica, dessa vezrealmente democrticos.
Diferentemente de Gilberto Freyre, que no superou Casa grande esenzala, Srgio Buarque escreveu outro livro que a meu ver maior do que Razes do Brasil (e ele achava isso tambm, embora Srgio no fossepresunoso, pois era, nesse aspecto de vaidade pessoal, o oposto deGilberto Freyre). Trata-se daHistria geral da civilizao brasileira, que eledirigiu. O volume sobre a Monarquia foi todo escrito diretamente por SrgioBuarque. um livro admirvel, j de ps-maturidade, com a mesma visopenetrante do Razes do Brasil, mas fazendo uma histria fatual que
reinterpreta todo o Imprio brasileiro. um livro difcil de ser lido, porqueSrgio Buarque conhecia como ningum as minciais do Imprio, e uma dasdesvantagens da monarquia que, se para o historiador j terrvel, para oleitor pior ainda: as pessoas tm vrios nomes o prprio, o de famlia, ottulo nobilirquico e suas variaes no tempo. E Srgio conhecia aquilocomo a palma da mo. Ora ele se refere ao personagem pelo nome defamlia, ora pelo nome prprio, ora pelo ttulo, e s vezes o ttulo era baroe passa a ser conde, e assim vai. No fcil, para quem no est atento sminudncias da histria, acompanhar o texto. Mas quando se penetra naleitura e se deixa levar pelo gnio de Srgio, v-se que, ao mesmo tempoem que ele est fazendo uma histria fatual, est descrevendo o funciona-mento de um sistema com a competncia dos grandes mestres.
Dessa anlise da Monarquia brota um painel to importante quanto ode Gilberto Freyre em Casa grande e senzala, mais profundo e mais objetivodo que nosso clssico da escravido, embora no to sugestivo, pois falta-lhe e nem seria o caso o carter mtico e at certo ponto apologticoque Gilberto deu sua obra. Da anlise do jogo poltico do Imprio
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depreende-se que se vivia em uma situao de faz-de-conta. Na verdade, o
imperador, dotado de certa sensibilidade e de luzes iluministas e sabedor de
que os nossos partidos no tinham fora, fazia, ele prprio, a alternncia no
poder. Dissolvia as Cmaras e constitua novo gabinete que nomeava os
presidentes de provncia. Os novos presidentes de provncia "faziam" a
eleio. Ao fazer a eleio, o partido do gabinete que tinha sido constitudo
ganhava a eleio. No se aferiam maiorias na Cmara, s muito raramente,
at porque as Cmaras eram quase unnimes. A derrubada de uma situao
conservadora, ou a derrubada de uma situao liberal, dependia de um jogo
feito pelo que se chamava na poca de "opinio pblica", na verdade a
opinio dos homens influentes junto ao pao imperial de So Cristvo. Essa
opinio atuava at que o imperador se sensibilizasse para derrubar o
ministrio. Derrubado o antigo ministrio, o novo ministrio escolhia os
presidentes de provncias que faziam a eleio, e depois desta a Cmara
vinha com a bandeira poltica oposta: se era conservadora a dissolvida, seria
liberal a recm-constituda; se era liberal, vinha conservadora.
As mudanas da lei partidria ou do sistema eleitoral nunca chegaram
a ter efeito maior sobre o entrosamente entre o poder monrquico e a baseda sociedade escravocrata. Como Nabuco j mostrara, o esgotamento do
Imprio no se deveu s crises polticas, mas grande crise social e
econmica gerada pelo fim do trfico, pela escassez de mo-de-obra
escrava e pela luta abolicionista interna e internacional.
A anlise de Srgio Buarque de Hollanda sobre a Monarquia tem a
mesma estatura de Casa grande e senzala. Escrita em outra poca, no bojo
de uma coleo pesada, no teve, entretanto, a repercusso que, a meu ver,
merece. H tempo ainda para corrigir isso.
J Caio Prado Jnior vem de outra tradio intelectual. Caio escreveu,
na mesma dcada de 30,A evoluo poltica do Brasil. Mas seu grande livro,
livro de referncia, a Histria econmica e, antes dele,A formao do
Brasil contemporneo, obra-prima de nossa historiografia.Caio Prado foi uma pessoa bastante diferente mentalmente do autor de
Razes do Brasil e de Gilberto Freyre. Srgio Buarque combinava sofistica-
o intelectual com vocao crtica radicalmente democrtica. Gilberto
talvez tivesse menos erudio do que Srgio e juntava a uma sensibilidade
conservadora uma capacidade de sntese com muita liberdade. Caio Prado
era quase gegrafo por formao. Falava de geografia e at de geologia com
fluidez muito grande. Foi aluno irregular da Universidade de So Paulo, na
poca da primeira leva de professores franceses. Conviveu com a elite
cultural da poca, frequentava a Universidade e os sales de So Paulo. Caio
Prado foi amigo de Lvi-Strauss, foi aluno de Deffontaines, o pai da
geografia humana moderna, e de Pierre Mombeig. Tinha noes bastante
slidas de mineralogia e poderia ter sido gegrafo era muito preciso nadescrio das condicionantes fsicas do pas. Isso, se no aparece na
Evoluo poltica do Brasil, aparece de uma maneira admirvel na Forma-
o do Brasil contemporneo e depois, na retomada dos mesmos temas, na
Histria econmica.
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A ocupao do Brasil pelos portugueses e pelos imigrantes, a
colonizao, em suma, foi descrita por Caio Prado perfeio, sempre
fundindo anlises sobre o meio fsico com os processos de explorao
econmica e as formas histricas de organizao do trabalho e da socieda-
de. Caio Prado, que era bastante rico, sempre viajou, sempre andou pelo
interior, tanto do Brasil quanto da Europa e da Amrica Latina. As noesque transmite nos livros no advm propriamente do que leu em outro
autor apenas, mas tambm do que ele viu. Leu e viu. Alguns historiadores
criticaram Caio Prado dizendo que ele no recorria s fontes primrias,
utilizando-se principalmente de fontes secundrias. Mas isso um precon-
ceito. Na verdade, Caio Prado Junior tomou as fontes secundrias e deu vida
e significao interpretativa mais ampla e elas e foi capaz de oferecer um
vasto e novo quadro do Brasil.
Quando Caio Prado escreve sobre imigrao e colonizao, por
exemplo, em alguns captulos admirveis, sabe do que est falando, porque
viu e porque leu. Conviveu desde menino com essa realidade, porque
pertenceu famlia Prado, que incentivou a imigrao. A maior fazenda de
caf do sculo XIX era de propriedade dos Prado. E Caio, emboracomunista, marxista, sempre soube expressar uma vivncia pessoal. Eu
sempre me impressionei com o jeito como Caio pensava, porque juntava, ao
mesmo tempo, categorias abstratas e descries muito concretas. Quando se
dedicou filosofia, perdeu-se em anlises equivocadas. Mas com sua
tremenda vocao para o concreto, com a base de formao de gegrafo,
sabia corrigir-se nas anlises histricas e sociais. Conseguiu fazer na histria
econmica um painel muito realista, com idias relativamente simples, que
convencem pela argumentao. Se Caio escreve claro, no tem a graa na
elaborao das vises do Brasil de Srgio Buarque, nem o encantamento de
Gilberto Freyre. Mas se s vezes a sofisticao dos tipos ideais de Razes do
Brasil encobre construes menos slidas, se Gilberto idealizou muito o
patriarcado e pode ser acusado de amar demais a Casa Grande em prejuzoda Senzala, em Caio Prado os fundamentos da obra so visveis e slidos,
como se fosse uma construo sem reboque.
Qual o problema central do Brasil colonial? Escravido, latifndio.
Como que se d a ocupao? E nosso autor descreve como o portugus
chegou, como fez a expanso pelo interior, como se deu a simbiose entre
regio e produo etc. Descreve admiravelmente, por exemplo, a expanso
da pecuria, e assim por diante. No meu modo de ver, a anlise patina um
pouco quando se refere cidade e indstria. At chegar cidade e
indstria, enquanto descreve o grande painel da Colnia, Caio Prado
insupervel. Eu acho que, talvez, s um outro autor tenha tido fora de
pensamento para abarcar toda a Colnia em termos conceituais equivalen-
tes: Fernando Novaes. O que Caio Prado escreveu sobre a Colnia, sobre opapel da cidade e do latifndio, sobre a mo-de-obra escrava, definitivo,
at chegar-se poca da industrializao. A partir da, a anlise no tem a
mesma fora de argumentao. A partir do perodo, digamos, ps-30, o
gosto pelo conceito abstrato e simplificador leva-o a idealizar a descrio do
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processo histrico. Caio passa a condicionar a anlise viso do imperialis-mo, crena em certa impossibilidade do desenvolvimento industrial naperiferia do capitalismo, deformao da indstria nacional pelo capitalis-mo monoplico internacional. interessante ver como nosso autor contra-pe a isso o que pareceria ser um idlico capitalismo de concorrncia.Entretanto, o que pulsa no corao de Caio Prado outra coisa: o socialismo.Na ideologia prevalecente quela poca, entretanto, passar-se-ia, primeiro,por uma "etapa" capitalista. Mas no a monopolista e sim a concorrencial.A razo, nestes termos, fraqueja, e a anlise, embora continuando aapresentar oposies binrias simples, no leva ao conhecimento, como nocaso das anlises sobre o Brasil Colnia.
Por outro lado, parece-me que havia um certo preconceito de senhorde terra, uma certa malquerena dessa sociedade urbana, populacheira einjusta. Malquerena que do ponto de vista poltico foi positiva, porquemotivou uma ao crtica, radical. Mas h em Caio Prado uma certamalquerena do mundo moderno. Srgio Buarque no a tinha. Ele queriaver como seria possvel mudar as instituies, as formas de comportamento,
para que pudssemos ter democracia, e acreditava nas foras urbanas quecriariam a possibilidade para que "los de abajo" pressionassem. Caio Prado,embora sendo comunista, guardava uma viso mais aristocrtica: s opartido de quadros poderia mudar uma sociedade to injusta quesufocava o proletariado noLumpenproletariat.
Eu no sei quais os livros de Caio Prado que iro perdurar. Acho quea Formao do Brasil contemporneo vai perdurar. AHistria econmica,
j lida por vrios geraes, um livro de referncia, mas ser um livro dereferncia mais fatual do que uma fonte de inspirao de anlises futuras,embora algumas de suas idias possam fecundar, crescer.
Mas Caio Prado escreveu um livro, depois dos clssicos j referidos,que ainda no mereceu dos crticos o reconhecimento da importncia que
tem. Trata-se deA revoluo brasileira. Nele, Caio retoma alguns temas quehavia desenvolvido naRevista Brasiliense e na prpriaHistria econmicae trava um dilogo muito bom com a esquerda.
Caio Prado ter sido talvez quem tenha expressado com maiorclareza e radicalidade o pensamento brasileiro sobre a questo agrria.Participei de grandes discusses com ele. Brigando com a esquerda, como "progressismo" da poca, Caio era quem via mais claramente a naturezado sistema agrrio capitalista no Brasil. Sabia como ningum como sedavam as relaes sociais de produo no campo. Em um artigo publicadonaRevista Brasiliense, retomou a questo das relaes sociais de produono campo: a "meao" era uma forma disfarada de assalariamento, masera vista muito frequentemente como se fosse um indcio de "vestgios
feudais". Caio Prado nunca se enganou nessa matria; nunca confundiuseus avs e bisavs com bares feudais; eles eram exportadores, eramhomens inseridos na grande expanso do capitalismo mundial. E a idiade que, apesar disso, haveria vestgios feudais no campo, por causa dasesmaria, por no-sei-o-que, porque havia uma superexplorao, nunca
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atraiu nosso autor, e a discusso de tudo isso, em certa poca, foiapaixonante.
Na questo agrria, Caio Prado foi muito preciso e deu uma contribui-o enorme. E na Revoluo brasileira mostra como funciona de fato osistema capitalista, como era possvel haver desenvolvimento apesar do
imperialismo, fazendo, assim, crtica de algumas de suas posies anterio-res. No um livro de historiador, nem um livro que contenha um grandepainel sobre o Brasil, mas um livro que faz uma crtica do pensamento deesquerda muito avanada para a poca, um livro no qual faz a crtica daproposta poltica que permanecia vigente na esquerda dos anos 60. Trata-se de um livro com grande vitalidade.
Em sntese, de modo muito diverso esses trs autores procuraram, nofundo, dar uma resposta sobre a questo de nossa identidade, sobre ascondicionantes da histria e as alternativas de futuro do Brasil. Eu sei queexiste esta paixo em outros povos, claro. Quem no conhece o Facundode Sarmiento? Eu fui amigo de Gino Germani, que fez estudos importantessobre a Argentina como sociedade de massas. Os argentinos sempre falam
do seu "desenraizamento". natural que os povos procurem indagar-sesobre si e sobre seus destinos, mas eu no sei se h muitos exemplos detanta paixo pela descoberta do "ser nacional" ou da sociedade nacional porintelectuais vlidos. Porque esta obsesso pode gerar muitas simplificaes,pode gerar a busca de diferenas nacionais e culturais que dem dimensode "superioridade" aos povos. Mas ns no estamos falando disso; estamosfalando de grandes autores, que so mestres, capazes de lidar comfenmenos complexos, que no constroem vises simplistas de seu pas.Esse um trao curioso da cultura brasileira, e que talvez tenha seesmaecido nos ltimos tempos. Essa paixo por uma interrogao contnuasobre nossas origens, sobre o que somos, o que poderemos ser, que orasustenta a idia de um legado ora a de um peso que tem que ser posto
margem, no deixa de ser curiosa e, mesmo, produtiva.As geraes mais recentes criticaram muito essas vises grandiosas. O
grosso da produo das universidades se dirigiu para monografias, paraestudos mais especializados, mais profundos, mais detalhados, que enrique-ceram muito o conhecimento de aspectos do Brasil. Mas eu creio que estfaltando algum que retome esse tipo de abordagem global mesma alturados autores aqui discutidos, de maneira que pensemos outra vez sobrenossas potencialidades e que possamos, ao mesmo tempo, fazer umaanlise que sacuda a poeira que vai se acumulando no decorrer da histriaquanto a certas idias preestabelecidas.
No o mtodo que o autor A, B ou C usou que interessa saber. Valemais saber o que disse e props, saber se o livro avanou ou no no
conhecimento da temtica proposta, mesmo que, s vezes, sem muito rigor.De Srgio Buarque de Holanda diz-se que era weberiano, de Gilberto Freyreque era "culturalista" e pouco objetivo, pois toma partido. E Caio Prado fezuma coisa que s no Terceiro Mundo foi possvel fazer: uma anlisemarxista na qual a servido tomou o lugar proeminente do proletariado, e
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os senhores do latifndio no se transformaram em bares feudais, mas em
capitalistas exportadores "modernos". Usou a dialtica para entender
processos, sem estar muito preocupado com a "negao da negao" a todo
instante.
Em outros termos, quando o livro grande, quando realmente diz
alguma coisa, os andaimes pesam menos. Neste curso os senhores tero de
haver-se com grandes construtores de idias. Preocupem-se menos com a
maquinaria utilizada e desfrutem a beleza da obra construda. Cada qual a
seu modo, a seu estilo, colocou pedra fundamental no conhecimento do
Brasil. Foram gigantes.
Recebido para publicao emsetembro de 1993.
Fernando Henrique Cardoso ex-presidente do Cebrap. Jpublicou nesta revista "Desa-fios da social-democracia naAmrica Latina" (N 28).
Novos E s t udosC E B R A P
N. 37 , nove m bro 1993 pp .21 -35
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ESTUDOS HISTRICOS
Revista semestral da Associao de Pes-
quisa e Documentao Histrica (APDOC)
lanada em 1988, Estudos Histricos
analisa a histria do Brasil sob uma pers-pectiva multidisciplinar, em artigos que co-
brem os mais diversos campos do conheci-
mento, como Histria, Antropologia, Socio-
logia, Literatura, Filosofia e Poltica.
EDITORA FGV
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LUA NOVAREVISTA DE CULTURA E POLTICA
LUA NOVA uma revista quadrimestral do Centro de Estudos de CulturaContempornea (CEDEC). O CEDEC um centro de pesquisa e reflexona rea de Cincias Humanas.
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