livros-loureiro [livro] Droga disfarçada de...

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<> livros-loureiro <> [livro] Droga disfarçada de estudante... D r o g a d i s f a r ç a d a d e e s t u d a n t e P r o j e t o E s c o l a S e m D r o g a s C o p y r i g h t © F i l i p p e A r l e m O . M a f f r a , 2 0 1 0 T o d o s o s d i r e i t o s r e s e r v a d o s p e l o a u t o r . P r o i b i d a a r e p r o d u ç ã o t o t a l o u p a r c i a l d e s t a o b r a , d e q u a l q u e r f o r m a o u p o r q u a l q u e r m e i o e l e t r ô n i c o , m e c â n i c o , i n c l u s i v e p o r m e i o d e p r o c e s s o s x e r o g r á f i c o s , s e m p e r m i s s ã o e x p r e s s a d o e d i t o r ( L e i n ° 9 . 6 1 0 , d e 1 9 . 0 2 . 9 8 ) . É p r o i b i d a a r e p r o d u ç ã o t o t a l o u p a r c i a l s e m a p e r m i s s ã o , p o r e s c r i t o , d o s e d i t o r e s . P u b l i c a d o c o m a d e v i d a a u t o r i z a ç ã o e c o m t o d o s o s d i r e i t o s r e s e r v a d o s p o r P r o j e t o E s c o l a S e m D r o g a s . P r i n t e d I n B r a z i l C o r r e ç ã o o r t o g r á f i c a e l i n g ü í s t i c a : C o n c e i ç ã o M i l a g r e s D i g i t a ç ã o : F i l i p p e A r l e m M a f f r a D i a g r a m a ç ã o : F i l i p e A r a ú j o C a p a : A r l e m M a f f r a 1 5 a e d i ç ã o C i d a d e d a e d i ç ã o - B e l o H o r i z o n t e A n o d a e d i ç ã o - 2 0 1 0 M a f f r a , F i l i p p e A r l e m O . D r o g a , d i s f a r ç a d a d e e s t u d a n t e / F i l i p p e A r l e m O . M a f f r a - 1 5 . e d . - B o i t u v a : [ s . n ] , 2 0 1 0 . 1 6 8 p . ; 1 8 c m . I S B N 9 7 8 - 8 5 - 9 0 6 5 4 2 - 8 - 5 1 . E d u c a ç ã o I . T í t u l o . M i n h a d e d i c a t ó r i a D e d i c o e s t a o b r a a o C r i s t o , F i l h o d e D e u s , p o r m e r e s s u s c i t a r d o t ú m u l o d a s d r o g a s , p o r d a r - m e u m a n o v a c h a n c e d e a m a r a v i d a , p o r c o n f i a r - m e a m i s s ã o d e a v i s a r a o s o u t r o s e m s e u n o m e , p o r t e r s u p e r a d o a s m i n h a s e x p e c t a t i v a s e p o r t e r - m e f e i t o s e u a m i g o . M i n h a A d m i r a ç ã o À m i n h a f a m í l i a . A o s m e u s p a i s , p e l o a m o r a o f i l h o p r o b l e m a p o r t a n t o s a n o s . A o s p r o f e s s o r e s , c o m s a u d a d e s d o s t e m p o s d a e s c o l a . A o s a m i g o s B e t o e C a s c ã o , c o m p e s a r , p o r t e r e m e n c o n t r a d o a m o r t e a n t e s d a a j u d a . A o s h e r ó i s , m o n i t o r e s , c o n s e l h e i r o s , t e r a p e u - t a s e a j u d a d o r e s , q u e t r a b a l h a m e m i n s t i t u i ç õ e s , c o m o p r o p ó s i t o d e a j u d a r o s o u t r o s a s e l i v r a r e m d a s d r o g a s . M i n h a V o n t a d e Q u e o u t r o s n ã o e x p e r i m e n t e m . Q u e a s e s c o l a s a ç u d a m . Q u e o s p r o f e s s o r e s n ã o s e e s q u e ç a m q u e s e u s f i l h o s t a m b é m e s t u d a m . Q u e o s p a i s s e i n t e r e s s e m a l é m d o s l i v r o s e c a d e r n o s e a b r a m a s c o r t i n a s d a v i d a e s c o l a r d o s s e u s f i l h o s . Q u e o s l e g i s l a d o r e s f a ç a m l e i s m a i s a s s e r t i v a s e c o m c o n d i ç õ e s d e s e r e m a p l i c a d a s . E , a f i n a l , q u e o P r e s i d e n t e d a R e p ú b l i c a n ã o s e e s q u e ç a

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Droga disfarçada de estudanteProjeto Escola Sem DrogasCopyright © Filippe Arlem O. Maffra, 2010Todos os direitos reservados pelo autor. Proibida a reprodução total ou parcialdesta obra, de qualquer forma ou por qualquer meio eletrônico, mecânico,inclusivepor meio de processos xerográficos, sem permissão expressa do editor (Lei n°9.610, de 19.02.98). Éproibida a reprodução total ou parcial sem a permissão,por escrito,dos editores.Publicado com a devida autorização e com todos os direitos reservados porProjeto Escola Sem Drogas.Printed In BrazilCorreção ortográfica e lingüística: Conceição Milagres Digitação: Filippe ArlemMaffra Diagramação: Filipe Araújo Capa: Arlem Maffra15a edição Cidade da edição - Belo Horizonte Ano da edição - 2010Maffra, Filippe Arlem O.Droga, disfarçada de estudante / Filippe Arlem O. Maffra - 15. ed. -Boituva : [s.n], 2010. 168 p. ; 18 cm.ISBN 978-85-906542-8-51. Educação I. Título.Minha dedicatóriaDedico esta obra ao Cristo, Filho de Deus, por me ressuscitar do túmulo dasdrogas, por dar-me uma nova chance de amar a vida, por confiar-me a missãode avisaraos outros em seu nome, por ter superado as minhas expectativas e por ter-mefeito seu amigo.Minha AdmiraçãoÀ minha família. Aos meus pais, pelo amor ao filho problema por tantos anos.Aos professores, com saudades dos tempos da escola. Aos amigos Beto eCascão, com pesar,por terem encontrado a morte antes da ajuda. Aos heróis, monitores,conselheiros, terapeu-tas e ajudadores, que trabalham em instituições, com opropósito de ajudaros outros a se livrarem das drogas.Minha VontadeQue outros não experimentem. Que as escolas açudam. Que os professoresnão se esqueçam que seus filhos também estudam. Que os pais se interessemalém dos livrose cadernos e abram as cortinas da vida escolardos seus filhos. Que os legisladores façam leis mais assertivas e com condiçõesde serem aplicadas. E, afinal, que o Presidente da República não se esqueça

que os

drogados e alcoólatras também são filhos deste solo, da mãe gentil, pátriaamada, Brasil.IntroduçãoE aí, rapaziada dos livros?

Esse livro não é perfeito, muito menos, completo. Não foi escrito para lhe darlição de moral. Cumpro uma missão. Sou alguém que, aos quatorze anos, numaescola

da zona oeste de Belo Horizonte - MG, iniciou, com mais doze amigos, o caminhodo fim. Não faço psicologia ou apologia sobre o assunto. Não vou usar umalinguagem

científica, muito menos, buscar culpados. Esse livro não é um tribunal. É umparceiro para as horas de dificuldades, é um aliado para ajudá-lo nas decisões.Um amigoque, apesar do romantismo, mantém sempre o papo verdade.

Eu gostaria de estar, agora, pessoalmente, aí com você, no seu mundinho deescola. Como não posso, venha comigo pelas páginas deste livro, venhaconhecer minha históriae dos meus amigos. Não se preocupe! Só quero interagir com suas

experiências e colaborar, com as minhas, para suas decisões. Não vou "alugar"você, cara. Estou preocupado com o que está acontecendo. Tem genteinocente na "parada".

Você vai começar ver a "onda" de perto. Ninguém vai ficar na escola parasempre. E o que vai ser depois?

Houve uma explosão no meu mundo. Detonei tudo. "Namorei" a dor e, por muitotempo, "casei-me" com a tragédia. Foi difícil e, o pior de tudo, é que nessa onda,não

achei o Homem Aranha nem o Batman. Fiquei só na parada, meu irmão, e quasedesisti de lutar. Não fosse pela vontade de viver e de sentir prazer novamenteem serlivre, não poderia lhe emprestar um pouco da minha experiência.

Muito prazer... sou Arlem Maffra.

Minha escola, minha história

Dezesseis de fevereiro de 1979, 13 horas, escola da Zona Oeste de BeloHorizonte - MG. Os portões se abrem à minha frente. Vou iniciar a oitava sériedo I grau.É gente para todo lado. As listas nas mãos dos orientadores em cada uma dasportas das salas de aula indicavam para qual turma cada um deveria ir. Minhacabeça ferviade curiosidade e as perguntas eram inevitáveis:Onde estarão meus professores, meus colegas de sala?O que acontecerá de novo nesse ano?Cara, quantas garotas! Nós as chamávamos de princesinhas da zona oeste.Como eu estava animado! Na flor da adolescência, meus sonhos traziam umagradável perfumea todas as razões que eu tinha para viver.

A vontade de ser, de fazer a diferença e a busca pelo prazer, eram ingredientesda receita que eu trazia no bolso. A música, os namoros, as amizades.Era um começo de ano maravilhoso. Primeiro dia de aula. Os corredoresferviam. Todo mundo se conhecendo, aquela tradicional apresentação dealguns professores quevocê deve conhecer bem:- Oi meninos e meninas, eu sou o professor ou a professora tal, da matéria tal enão gosto de bagunça na sala. Se alguém quiser ir ao banheiro aguarde ointervalo,se alguém quiser falar, levante o dedo e aguarde a minha ordem. Agora, vamosnos conhecer melhor. Cada um levante-se, por favor, diga o seu nome, idade eo que veiofazer aqui.O primeiro a se levantar foi o Cléber:- Sou o Cléber, tenho quatorze anos, moro aqui no bairro mesmo e meu apelidoé Neném.Cléber foi imediatamente interrompido pela professora:- Eu não gosto que chamem uns aosoutros pelo apelido, ok?Nesse instante, foi inevitável. Um coro de vaias ganhou força dentro da sala.Constrangida, rendeu-se:- Tudo bem gente, como estamos iniciando, vai passar.Continuou, então, Cléber:- Tenho mais três irmãos. Gosto de jogar futebol, de namorar e vim aqui paraestudar.Todos aplaudiram:- Valeu, Neném!Cássio levantou-se em seguida.- Sou Cássio, tenho quatorze anos, meu apelido é Teco. Tenho mais dois irmãose também mais duas irmãs e vim aqui para estudar.Ainda falava Cássio, quando o bloco masculino bradou: "cunhadinho".- Eu sou Rogério, tenho quatorze anos, gosto de rock paulera como Led Zepelline Pink Floid. Moro no bairro mesmo eVim aqui para estudar.Dessa forma, todos iam se apresentando,inclusive eu.- Sou Arlem Maffra, tenho quatorze anos, meu apelido é Passarinho, gosto detocar violão e compor músicas e, assim como os outros, vim aqui para estudar.Logo depois, para a alegria da galera, ergueu-se um monumento dentro dasala, bem próximo à minha carteira. Uma miragem, uma flor delicada, com voz debrisa, sorrisoeletrizante e um olhar hipnotizado. Os cabelos louros desciam até a cintura. Orosto parecia desenhado pelas mãos de um artista, um perito na arte de fazerbeleza.O corpo era perfeito. Alta e elegante, manifestou-se:- Eu me chamo Helda, tenho quatorze anos, e moro no bairro vizinho. Sou filhaúnica, estou muito feliz por estar aqui, não tenho apelido e quero estudar paraser médica.

- Oi, doutora, pronunciou a sala, emcoro.Helda, com um sorriso meio maroto, sentou-se. Naquele momento, um tornadovarreu meu coração de adolescente.E um calafrio desceu até meu estômago. Logo pensei: "vim aqui para estudar,mas se eu conseguir namorar esse pedaço do universo, já está de bomtamanho". Pareciaque tudo ia seguir seu curso normal e o padrão de apresentação se repetiriapelos minutos seguintes, até que se levantou outro colega, moreno claro, cabeloescondendoos olhos, porte atlético. Com as duas mãos nos bolsos da calça jeans, com umavoz compassada e um olhar centralizador disse:- Eu sou Dorivaldo, tenho quinze anos. Vim de Curitiba junto com a minha famíliapara Belo Horizonte. Meu pai é engenheiro da Petrobras e minha mãeéprofessora.Tenho mais dois irmãos e duas irmãs e gosto muito de jogar basquete. Tambémsou chegado numa festinha e acho as mineiras muito bonitas.Não era de se estranhar o agradecimento em coro das meninas da sala, ele,porém, continuou:-... Ah! Esqueci de dizer que curtomuito a vida e podem me chamar de cidadão de Curitiba.Nada mal para um cara de quinze anos. Uma coisa ficou clara: o cara eraconvicto e falava com segurança. Não demorou muito para que os olhares dasala se voltassempara ele num gesto de aprovação.Não deu tempo de processar bem essa última apresentação, porque logo asirene ecoou, e num gesto coreografado, todos se levantaram, pegaram suasmochilas e saíramda sala. Na caminhada pelos corredores começamos a trocar algumas palavras:- E aí, Passarinho!Ouvi aquela voz rouca e meio musicalizada. Olhei mais atentamente. Era o Dori,aquele de Curitiba.Estendeu-me a mão, cumprimenta-mo-nos e ele continuou:- Onde você mora, cara?Eu morava a poucas quadras da sua casa, o que despertou o interesse nacontinuidade da conversa.Dei meu endereço e ele continuou:- Qualquer dia, te levo na minha casa pra gente ouvir um som.- Combinado.Eu estava com pressa. Queria alcançar aquele riacho doce com voz de brisa,chamada Helda. Apressei o passo despedindo-me do Dori e, quando conseguialcançá-la,investi sem medo de ser feliz.- E aí gata, tudo bem?- Tudo. Você é o Passarinho, que gosta de compor e tocar violão, não é?- Eu mesmo, princesa. E até posso te ensinar a tocar se quiser.Sem lhe dar tempo, continuei:- "To de "bike". Quer uma carona?

- Não, obrigada Passarinho! Minha mãe vem me buscar.- E essa mãe tem telefone?Helda, meio constrangida pelo ataque maciço, disse:- Olha, Passarinho, não me leve a mal, mas não posso dar o telefone para quemnão conheço ainda. Quem sabe, depois denos conhecermos melhor.Aquele sorriso foi imediatamente fotografado por minha memória, que nãocessava de repeti-lo no trajeto de volta à minha casa. Durante todo o restantedaquele dia,eu processava, a mil, tudo o que havia acontecido naquela escola. Era demais.Amigos novos, amigas bonitas, professores novos e gente diferente.De volta para casaEm minha bike, com uma fome de lamber o prato, corria pelo corredor do prédio,escalando os degraus da escada que dava acesso ao apartamento onde eumorava com minhafamília. A fome me empurrava porta adentro. A mochila, coitada, era desprezadade qualquer jeito na cama. Depois, a tradicional corrida à tão desejada mesa,ondeas iguarias da dona Selma (minha mãe) me aguardavam. Cara, a comida daminha mãe era de detonar o estômago de qualquer estudante faminto.Aquela comidinha mineira, com arroz a alho e óleo, feijão, couve, bife, batatinhafrita e o tradicional tempero mineiro. As vezes meu pai estava presente para oalmoço. Seu escritório no centro da cidade não permitia sua presença todos osdias.Bem, já que vamos estar um tempo juntos, e você vai conhecer um pouco daminha história, vou lhe apresentar minha família.Minha mãe é filha de imigrantes libaneses, uma perfeita rainha. Alta, cabelospretos desenhando seu perfil árabe. Uma mulher doce e também muito forte.Meu pai é um brasileiro nacionalista, desses que ama seu país e tudo que nelehá. Um homem comum, de hábitos simples. Profissional liberal, auditor econsultor.Advogado da vida, homem de poucas palavras e de muito trabalho. Eleconseguia filosofar sobre qualquer assunto. Dono de um poder para persuadircomo poucos nessemundo.Um parceiro assíduo e disciplinadodos noticiários da TV. Lia muito. Meu pai estava sempre muito bem informado ese esforçava para nos dar uma vida confortável. Tínhamos acesso à saúde,educação etudo mais que um filho de Deus tinha direito.Meu irmão, Homero, caçula, é um desses caras quietos, observadores,chegados na boa vida, o filho bonito e de caráter perfeito.Minha irmã, Débora, é muito bonita. Com o temperamento de minha mãe, tinha aesperteza de uma águia. Era dona de um coração valente.Meu irmão, Vinícius, é carinhoso, atencioso, um pouco sistemático, mas de bemcom a vida. Formávamos uma família perfeita.- Oi, filho! Era o meu pai. Como foram os primeiros dias de volta as aulas?Gostou dos professores, da escola? O ensino é bom, o material que compramos

deu ouestá faltando algum livro...? Os novos colegas... Está tudo bem?Minha mãe fazia uma rápida checagem em meu coração, dando-me um beijo norosto. Enquanto isso, meus irmãos, cada um preocupado com o seu mundi-nho,completavam acena em casa.- Está tudo bem, pai! Na verdade, ainda não tenho novidades, porque tudo estácomeçando agora.Cara, na verdade, tudo havia acontecido naquela escola. Tanta coisa nova. Atémeu "Coração Valente" estava dando pino por aquela voz de brisa, chamadaHelda. Jáhavia conhecido o cidadão de Curitiba, aquele famoso "curtidor da vida". Isso,sem falar nos outros colegas novos, como o Cléber, Cássio, Rogério e André,que jáestavam fazendo parte do meu convívio. Não sei. Acho que esse mundo daescola não pertence mais aos nossos pais. Talvez seja muito para a cabeçadeles. Talvez, notempo deles, as coisas aconteciam um pouco mais devagar, dessa forma, issonão seria assunto para o meu pai ou minha mãe. Bom, se eles insistem emsaber sobreos livros, professores e coisa e tal, já está respondido.- Arlem, telefone. gritou minhairmã.- Quem é, Binha? (apelido carinhoso com que a chamávamos em casa).- É um tal de Dori... Falou que é seu chegado.Saindo do banho, enrolei-me na toalha e fui atender. -Alô.- E aí, grande Passarinho? disparava aquela voz rouca e musicalizada doconvicto curtidor da vida.- Cara, vem aqui em casa pra gente levar uma idéia. Estou ouvindo um som.- Agora não vai dar. Eu tenho de começar a fazer umas tarefas para a aula deamanhã. Prometo que a gente se junta para bater um papo fora da escola etocaruma viola.- Ta limpo, Passarinho. Até mais,então.Havia algumas palavras pontes nacomunicação do Dori, que eu começava a apreciar, mas isso não fazia qualquerdiferença. Os dias se seguiam na escola. Recreios, flertes, amizades, educaçãofísica...Educação física? Isso me lembra os primeiros times de basquete que montamosna escola. Aquele cidadão de Curitiba, o Dori, tinha uma habilidade fora docomum coma bola. Era fera no basquete. Todo mundo queria jogar no time dele.- Aquele cara tem coisas que fazem a diferença. - comentei com Neném e Teco,que estavam sentados na quadra comigo.Algo mais nos chamava a atenção. Ele andava com mais uns quatro colegas deoutras classes da escola. Juntos, tinham a atenção das meninas. Aparentavamsempre saber

mais alguma coisa sobre tudo. Transmitiam segurança. A alegria gratuita eraconstante em suas vidas. Esbanjavam idéias e havia qualquer coisa que serviacomo "solda"na amizade deles.De volta para escolaO recreio era esperado como um presente, para compensar aquelas horaschatas e cansativas das aulas, principalmente, se fosse de matemática (risos).Um vai e vemnos corredores, o zum... zum... zum... Dos grupinhos das meninas e dosmeninos. Cada um se atraía por um grupo e ali formava sua tribo no grandepátio da escola.Neném, Teco, Guego, André e eu já combinávamos coisas para depois dasaulas. Encontros no cinema, atividades esportivas, eventos e festinhas nosfinais de semana.Com o tempo, observei que não existia somente o nosso clubinho fechado. Ocidadão de Curitiba também tinha o seu grupo, com aquelas diferenças que jáfalei. As meninas,da mesma forma, organizavam seus clubinhos. Alguns pequenos flertes enamoricos já começavam a se desenhar naquela prancheta da vida escolar. Vezou outra, nós nosmisturávamos paratrocar algumas palavras, mas já dava para perceber que o grupo do cidadão deCuritiba tinha seus segredos e senhas que nós não tínhamos acesso. De vezem quando,eu procurava por ele nas festinhas da escola, e também no fim de semana pelobairro, mas dificilmente o encontrava. Coisas simples, que chamavam a atençãodo nossogrupo. Não tínhamos qualquer atrativo para os integrantes do seu grupo.Enquanto isso, meu coração continuava gangorrando por Helda. Agora, commais intimidade, eu conhecia a pureza do seu olhar. Ela se dedicava muito àsmatérias e seesforçava para cumprir suas obrigações. As meninas admiravam sua disciplina,maturidade, sua forma alegre e amigável de tratar as pessoas. Helda liderava echamavaa atenção pelo forte traço de segurança estampado em suas atitudes. Dori, noentanto, parecia conhecer uma fórmula mágica para se comportar na escola.Apesar da idade, chamava a atenção pela inteligência, pelo porte físico e pelahabilidade para lidar com assuntos delicados, como política, música e drogas.Cara, aquele recreio era show demais. Milhares de mundos diferentes semisturando. A metade de nossa vida estava sendo vivida ali dentro. Cada dia umcapítulo deuma longa história. Cada um criava seu roteiro. Pequenos grupos se formavamem cada canto. Papos variados, patricinhas, mauricinhos, radicais, liberais eoutros.Eu fazia parte daquele mundo e começava a admirá-lo.- E aí, professora?!No tumulto do pátio, dificilmente alguém conseguia ver um professor ouprofessora. Assim que a sirene ecoava para o recreio, eles saíam das salas de

aula e se dirigiampara a sala dos professores. Lá, eles também tinham o seu clubinho fechado.- Cara, você acredita que até hoje não sei exatamente o que rola de conversanuma sala dessas?Eu imagino que falem de salário baixo, promoções, família, alunos difíceis,condições de aula... sei lá.Quando um desses professores escapava da sala na hora do recreio, o papoera o mesmo:- E aí, professor?!- E aí, professora?!Que mundo legal, hein, colega?A história de cada um sendo escrita ali dentro de um prédio chamado escola.Acontecimentos ricos para qualquer roteirista de filme ou escritor.De volta para a vidaNada mais era totalmente novo na escola. Os dias traziam a repetição doshorários e das matérias. Helda continuava deslumbrante. Do fundo da sala eupodia sentirseu perfume, não o que ela passava na roupa, mas o que saía do seu coração.A sirene tocou mais uma vez e, naquele dia, não consegui segurar a onda.Tomei coragem,comprei um sorvete na cantina, apanhei uma pequena flor no jardim do pátio,combinei com o cidadão de Curitiba para distraí-la e, vindo de trás, coloqueimeus braços em volta do seu pescoço, entregando meu presente, com umapequena fraseem seu ouvido: "Sem você, essa escola não existe".- Obrigada, Passarinho, gostei.- E aí, gata, tenho chance?- Chance pra?- Pra qualquer coisa que me leve pra perto do seu coração.- Nossa, que lindo!É, eu estava ficando bom de conversa. Helda aceitou meu convite para umafesta de aniversário no bairro. Eu deveria apanhá-la em casa. Bem, ainda nãodava para comemorar.Eu tinha dois desafios pela frente: o primeiro era convencer um colega decondomínio a me emprestar sua moto, e o segundo, ficar de frente com o pai oua mãe dela.Liguei rapidinho para o Beto:- Sangue bom, preciso da sua moto.- Ta maluco, Passarinho!- To cara, to maluco pra sair com a Helda, e se você me emprestar a moto tecoloco dentro de todas as festas que for convidado.Eu sabia que o Beto era daqueles viciados em festa, e como eu tocava violão,era o primeiro a ser convidado em qualquer uma delas.- Táfalando sério, Passarinho?- De rocha, cara.- Então tá certo. Você tem duas horas com a minha moto. Se cair, vai se danarsozinho, e se te prenderem ou quebrar a moto, vai ter que pagar.- Show, cara.

Agora, era rezar para não acontecer qualquer uma das advertências do Beto,porque ele não era de ficar no prejuízo não.As oito da noite eu tocava a campainha da casa da Helda. Uma senhora detrinta e poucos anos, bonita e muito educada, veio atender-me.Parou na porta, olhou-me de cima abaixo, olhou para a moto:- Gostei da calça.- Como senhora?- Gostei da calça.Olhei para a minha calça jeans e vi uma mancha de graxa, que desenhava umaavenida na barra da minha coxa.- Desculpe, minha senhora, foi amoto.- Tudo bem, entre.Quando passei pela porta e sentei naquele confortável sofá, veio o tiro demisericórdia:- Você não está pensando em levar minha menina de quatorze anos para afesta nessa moto, está?Eu estava engasgado e, antes que pudesse responder, Helda desceu a escadaque dava acesso aos quartos e, vendendo beleza, disse:- Mãe, por favor, quero andar de moto. A festa é no outro quarteirão.- Tá brincando?Seu pai logo apareceu. Era médico.- Como vai? Tudo bem? Qual é o seunome?- É Passarinho, quer dizer, Arlem Maffra.- Escuta, Arlem Maffra, por que você não deixa a moto aqui em casa e vaiandando. Assim vocês conversam e podem apreciar a brisa da noite.Cara... que fogo cruzado. O que eu queria mesmo era que a Helda meabraçasse na moto, mas para não perder tudo, concordei.Bem, para você não ficar aí na curiosidade, a festa foi boa, rolou abraço ealguns beijos e começamos a namorar naquele dia.Comecei a encontrar o cidadão de Curitiba em algumas festas, esbanjando umestado de espírito desejado por qualquer adolescente mortal. Sorriso aberto,sensaçãode domínio, sempre com uma garota bonita do lado. Era expressivo. Seus olhos,às vezes, estavam um pouco arregalados e avermelhados. Copo de cerveja namão, o cigarrona outra. Mas isso não vinha ao caso. Ele era um cara legal, estudavacomo todo mundo, praticava esportes e tinha uma família que o amava. Estácerto que ele tinha um grupo meio estranho, gente que parecia esconder umelixir dafelicidade ao alcance de qualquer um que se aproximasse dele. Seu olharpenetrante buscava, ao seu redor, cúmplices daquele "estado de felicidade" queestava vivendo.Seu comportamento na escola já era mais ousado. Seus segredos já escapavamna sala de aula, quando respondia algumas perguntas. Sempre dava suaopinião sobre todosos assuntos levantados pelos professores. Na hora do recreio, tinha o

comportamento de quem parecia estar escondendo alguma coisa. Tomavasempre cuidado com os outrosa respeito do que estava falando. Os desenhos em seus cadernos queriamtestemunhar suas experiências. Tudo sempre codificado. O vocabulário já nãoescondia a preferênciapor aventuras alucinantes. Nos intervalos de aula, a tradicional visita aobanheiro, e sempre tinha uma "sentinela" na porta. É claro que nãodeixou de ser aquele amigo legal de todos os dias, das festas dos finais desemana. Estava sempre disposto a nos ensinar a jogar basquete, emprestavaseus discospara gravarmos músicas novas e nos ajudava nos recadinhos com as meninas.Seu rendimento na escola não era mal. Inteligente, aprendia as coisas comfacilidade, alémde ter uma capacidade incrível para decorar algumas matérias. Ficamos amigose muito mais depois das férias de julho, quando iniciou o segundo semestre dasaulase nos confraternizamos com mil novidades para contar uns aos outros.Meu grupo, imperceptivelmente, misturava-se ao dele, como muitos outrostambém. O segredo? Esse ainda continuava e a pergunta estava no ar.- Que "combustível" embala os sábados à noite do cidadão de Curitiba e suaturma? Por que as meninas tinham prazer em ficar horas seguidas nas festinhasconversandocom eles?Cara, isso não importava naquelemomento. Eu estava descobrindo a existência de dois mundos: minha casa,meus pais, meus irmãos, aquele velho mundo, agora um pouco careta, semadrenalina e sem atrativos.Meus pais se esforçavam para fazer o melhor que podiam, para não deixar apeteca cair. O outro mundo era o da escola, que naturalmente tinha toda aminha atenção.Era mais que uma escola, era o início de muitas descobertas, muitas diferenças.A amizade com o cidadão de Curitiba, o namoro com a Helda, os outros amigos,o esporte,as festas. "Eta mundinho bom aquele". Eu adorava as tarefas nas casas dosamigos e amigas. Curtia as conquistas, odiava os fracassos, era simplesmenteradical.Meus pais, você já sabe, aquele velho mundo, aquela velha história, aquelasvelhasperguntas.Definitivamente, não dava para misturar as Coisas. Eu não encontrava espaçopara isso. Tinha de separar esses mundos e viver como se representasse doispapéisna mesma história. A realidade estava clara diante de mim: dois mundos, doispersonagens. Talvez eu não estivesse preparado para entender o que cadamundo desses representava,e o que realmente eu deveria viver em cada um, sem perder minha identidade.Ser filho, ser amigo, ser namorado, ser estudante, ser um ser. Ser o quê?

Acho que eu precisava ficar mais à vontade com alguém, quem sabe, meus pais,algum professor para me orientar melhor. Mas está tudo bem, acho que estoufilosofandodemais. Quem sabe minha geração foi predestinada a isso e eu, diferente. Eunão tinha liberdade para falar desses acontecimentos naturalmente com meuspais. Achoque eles não queriam saber sobre esses assuntos bestas de adolescentes. Nãofazia parte do mundo deles. Não sei, cara, os meus pais eram bons, me queriammuito bem,tentavam me ajudar a descobrir coisas que eu já sabia, tentavam me inserir nomundo deles. "Eta, mundinho complicado o dos meus pais!" Acordar,comer, trabalhar, assistir TV à noite, conversar um pouco, churrasco ou clubeno final de semana. De vez em quando, visitar algum parente ou amigo. E é aíque agente sempre paga mico com aquelas perguntas tradicionais:- E aí menino, como é que vai a escola? Gosta dos professores? Das matérias?A escola é boa? O ensino é bom?Cara, que "caretice"! Uma vida inteira acontecendo por trás dessa cortina delivros e cadernos. E essa gente preocupada só com isso. Mas está valendo.Ninguém éperfeito mesmo.Namorando o perigo- Nenêm, você está vendo o que eu estou vendo?perguntei.- Vendo o que, cara? Táficando doido?- A Meire tá namorando o Célio.-E daí, meu irmão? Você queria que elanamorasse outra menina e o cara um macho?Não agüentei, tive de rir.- Não é isso, cara. Esse Célio está sempre no banheiro, junto com a turma doDori, montando sentinela na porta. E quando a gente entra depois, o cheiro defumaça está sempre impregnado no ar.- Deixa de onda, Passarinho. Os caras estão fumando no banheiro, não temnada de mais. É cigarro comum. Além do mais, não temos nada a ver com isso.Meire era uma doce menina. Tinha o temperamento diferente da Helda, querebocava um comportamento eletrizante. A gata espoleta que explodia comfacilidade. Era capaz de sair nos tapas com qualquer um para impor suasposições. Meire tinhaum senso de humor fora do comum. Era muito bonita, loura, com um rostinho decriança. Seu irmão também estudava na mesma escola e era nosso amigo.Meire não costumavadar bola para qualquer um, no entanto, vivia se envolvendo em confusão. Eracomum, na hora do recreio, observarmos o comportamento da Meire andandode um lado paraoutro. Ela tinha acesso a todos os grupos de meninas, fosse de sua idade ounão. Era de família da classe média, não trabalhava, vivia somente para osestudos. Eratambém comum, vez ou outra, quando fazíamos trabalhos em grupo, ouvirmossobre seus sonhos de ser modelo, atriz, cantora. Meire tinha uma voz bonita e

nas festinhasda escola, estava sempre ensaiando para cantar. Nós até a apelidamos demenina veneno, por causa de uma música que leva esse título.Meire começou a namorar o Célio.Célio era um cara esperto, brincalhão, experiente e acostumado a namorar.Meire, ao contrário, estava tendo sua primeira experiência com namoro. Célioestava semprede carro. Sorriso largo, olhar sedutor e dono de um comportamento irônico.Essas características estabeleciam sua performance. Célio também costumavase envolverem algumas brigas na escola, mas nada que comprometesse seus estudos. Seuirmão mais novo também estudava na mesma escola. Célio gostava de andarcom os cabelosmolhados e sempre encaracolados. Fazia amizade com facilidade, porém não seapegava a ninguém. Tinha sempre dinheiro no bolso. Cortês e muito educado,não se importavade pagar lanche para seus amigos, principalmente, se fossem amigas.Célio começou a namorar a Meire.As cartas abriam o jogo sem indicar vencedores ou perdedores. Laços afetivos,apesar de paixões adolescentes, começavam a acontecer e boa parte daspessoas daquelemundo estudantil não era mais vista sozinha, ou como fulano, mas, sim, o fulanoque namora beltrana. Vamos conhecer mais alguns pares que se formaramnaquele mundinhoescolar.Mirtes, quatorze aninhos, rechon-chuda, nissei, daquelas que têm os olhospuxadinhos de japonesa. O pai era fazendeiro e a mãe do lar. Mirtes morava nomesmo bairroda escola e de todos nós. Era ingênua, tinha corpo de mulher, porém suacabeça ainda engatinhava tentando descobrir os prazeres "inofensivos" que avida lhe pudesseoferecer. Aquelas alturas, na flor da idade, Mirtes conflitava com diversos tabusnas conversas que tinha com outras meninas do grupo. A dúvida sobrea virgindade era um desses conflitos.Descobrir o desconhecido, matar o pesadelo da curiosidade, controlar suasansiedades por aventuras jamais experimentadas. Usufruir ou não dascuriosidades apresentadasnaquele mundo da escola. Mirtes gostava de dançar e era muito comumfreqüentar, na saída da escola, as lanchonetes que vendiam sorvete e pão dequeijo para os estudantes.Participava sempre das festinhas dos finais de semana no bairro. Erafreqüentadora assídua das festas da escola. Gostava de festivais de guaraná,sorvete, pipoca,eventos dos feriados e outras festas realizadas pelos próprios alunos. Tinha osonho de ser médica veterinária e dedicava-se muito aos estudos. Docessonhos, docesdesejos, doces vontades, doces prazeres, doce vida.Mirtes começou a namorar o Cascão.

Cascão era seu apelido, é claro. Seu nome era Fernando. Ele estudava emoutrasala. Figura bacana, poucos riam e se divertiam como Cascão.Falava alto e em bom som. Cascão era magro e se vestia muito bem, gostava deandar de motocicletas e sabia andar como ninguém. Cascão e Mirtes formavamum casalperfeito, pelo menos era o que todo mundo dizia. A única coisa que pesavasobre Cascão, talvez fosse o fato de ele também fazer parte do grupo docidadão de Curitiba.De vez em quando, visitava aquele falado banheiro da escola na hora dorecreio, mas isso não importava. Nada demais. As notas dessa rapaziada nãoeram ruins, suasfamílias não eram anormais, andavam bem vestidos, sempre sorridentes, tinhamsempre uma saída rápida e inteligente para tudo, não andavam envergonhandoos pais oua escola. Vieram para estudar.Cascão começou a namorar a Mirtes.Com o cidadão de Curitiba a paradanão foi diferente. Um cara presença e líder como ele, desejado pelas meninasda escola, não poderia deixar de ter o seu par. E lá vem ele, com a toda, todaKátia. Garota bonita, branca, magra, lindíssima, cabelos longos e negros, rostoafilado. Voz irritante e muito exibida, daquelas que têm em todos os lugares,inclusiveem sua escola também. Kátia gostava de aparecer, de ser a primeira, de sermelhor e maior que todas as outras meninas. Queria ter o namorado maisbonito, dançarcom o mais cobiçado da festa, andar com os mais comentados.Espere aí, Passarinho! Não vamos crucificar a gata. Apesar dessa áureapesada que a envolvia, também tinha lá suas qualidades.Kátia era super inteligente, conversava com todo mundo, sabia organizar umafesta como ninguém, conseguia a maioria das coisas que queria e não levavadesaforo Paracasa. O cidadão de Curitiba desfilava com sua musa na escola e nas festas.Kátia começou a namorar o cidadão de Curitiba.Bem... de volta à "Bat escola"... onde foi que eu parei mesmo? Ah, é claro, aformação dos pares. Na hora do recreio, era comum a formação de grupos,recheados decasais de namorados: Dori e Kátia, Célio e Meire, Cascão e Mirtes... Eucomeçava a me sentir atraído pelo grupo do cidadão de Curitiba. Um misto decuriosidade,medo e aventura criava um desejo quase que incontrolável de me aproximarmais. Em pouco tempo, eu já freqüentava algumas festas na companhia docidadão de Curitiba.íamos juntos ao shopping, ao cinema e às mesmas quadras de futebol.Eu conversava abertamente com Helda sobre minhas novas amizades atravésdo entrosamento com o grupo do cidadão de Curitiba.Helda andava meio preocupada e sempre me avisava:- Cuidado, Passarinho!

- Cuidado por quê?- Com essa gente que você começou a andar e a atrair. Estou observando-o háalgum tempo. Percebo que as coisas estão ficando rotineiras e muito normaisparavocê, as coisas estão mudando e você ainda não percebeu.Não entendi. Cuidado com o quê? Com quem? Como assim? O que estámudando?Para não passar batido, o cidadão de Curitiba jogava pesado.- Passarinho, você tem de acabar esse namoro e partir pra outra, cara. Amenina é muito certinha, não curte, não deixa você à vontade.Aquilo caía como uma bomba em meu coração.Trocar a companhia daquele "riacho doce" pela amizade do cidadão de Curitibaera um duro golpe, depois de tanto esforço Para conquistar um coração tãodisputado.De volta para a escolaO ano letivo estava terminando. As provas de final de ano se aproximavam.Formávamos grupos para estudar juntos. E por falar em grupos, agora era umsó. Não haviamais aquela separação como no início das aulas. O meu grupo, o grupo docidadão de Curitiba, o grupo do Célio, tudo isso era coisa do início, quando nãonos conhecíamos.Agora, éramos uma tribo, ouvindo as mesmas músicas, indo às mesmas festas enamorando as meninas do mesmo grupo.De volta para casaAquela velha história se repete. Meus pais só queriam saber se eu ia passar ounão, se minhas notas iam ser boas e se eu ficaria de recuperação em algumamatéria.As férias de final de ano estavam chegando, minha família se preparava paraviajar. Meu pai começava a divulgar para nós (irmãos) o roteiro da viagem deférias. Talvezfôssemos para Passos de Minas, conhecer a fazenda do meu tio, ou então,curtir alguns dias em Porto Seguro, na Bahia, onde meu pai tinha uma casa depraia. Por falarem férias, cara, eu me lembro da última vez que meus pais falaram em férias.Eu fiquei tão empolgado, que um mês antes comecei a arrumar minhas coisas edivulgar para o bairro inteiro o roteiro da viagem e os lugares que euconheceria. Agora,porém, eu tinha a turma, a curti-ção, as festas, a Helda. Nas férias, teríamosfolga para planejarmos as saídas.Na verdade, não fiquei muito animado, no entanto, aquele velho mundo daminha família ainda era o meu mundo.Tudo continuava como antes. A velha mochila, a velha comida, o velho quarto,com uma ligeira mudança, o papo havia mudado um pouquinho. Agora, meuspais começavama cobrar mais, porque queriam que eu passasse a todo custo.Minha mãe dedicava-se a me dar algumas aulas de reforço em casa.Ufa, passei!

A festa era de confraternização. Muitos venceram, não a guerra dos estudos,mas a batalha daquele ano letivo.- "Estamos livres"- E aí, Passarinho? Parabéns, cara. Eu li a lista e você está lá. Passou!Era aquela mesma voz rouca e musicalizada do cidadão de Curitiba.- Valeu Dori, parabéns pra você também, cara!Parabéns pra lá, parabéns pra cá. É claro que alguns poucos colegas tombaramna batalha e deveriam repetir o ano e a história se repetiria. Nesse clima deconfraternização,muita festa, sorriso e alegria, começamos então a combinar como e na casa dequem faríamos nossa festinha de comemoração, antes que alguns viajassemcom suas famílias.O ano realmente havia acabado, mas as amizades ficaram. O aprendizadoe as influências haveriam de continuar, afinal, morávamos na mesma cidade eaté no mesmo bairro, freqüentávamos os mesmos lugares e nos conhecemosmelhor atravésda escola. Isso queria dizer que o cidadão de Curitiba continuaria a fazer parteda minha vida, assim como todas as outras pessoas daquele mundo estudantil.Minha vida ficou mais completa. Algumas coisas deixaram de ser caretas. Aprendimuito. Fiz mais amigos e as festas ficavam cada vez mais divertidas. Helda,como não poderia ser diferente, havia passado de ano e com as melhores notas da escola.Caminhava firme e forte rumo ao objetivo de chegar ao campus de umauniversidade para cursar medicina. Queria, a todo custo, ser doutora. Muitos outros não continuavam avida com nossa turma, mas deixa pra lá. Éramos uma grande família deestudantes apaixonados pela liberdade, pelo prazer e pela vida.Um truque que me atraiuCara, vou lhe mostrar como é que se faz uma festa em Curitiba.Ao final do período das aulas, tudo continuou como era antes. Nossas amizades,namoros e envolvimentos continuaram fora da escola. Uma coisa, no entanto,ninguémpodia contestar. Tudo começou lá, naquela escola da Zona Oeste de BeloHorizonte. Combinamos todos, então, de fazermos uma festa de final de aula nacasa de uma de nossas colegas, a Silvana, que, a essa altura, já havia conquistado ocoração do cidadão de Curitiba que, por sua vez, havia terminado o seu namorocom a Kátia, a dita que gostava de aparecer.Passamos toda aquela semana cuidando dos preparativos para a festa decomemoração do início das férias. Já que havíamos passado de ano, tínhamosdireito a isso. Nossos pais... bem... nossos pais encaravam como uma festinhaqualquerde adolescente e com todo merecimento.Talvez os nossos pais jamais discerniriam, naquelas festinhas, a continuidade ea concretização dos laços de amizades que começaram com o início das aulas.

Paraeles era mais uma festinha corriqueira com seus filhos tendo a oportunidade dearranjar uma namoradinha. Apenas uma diversão a mais. Aquela festa poderiaser besteirapara qualquer outro, mas para todos nós era muito mais que isso.Não queríamos perder o que construímos durante aquele ano que ficoumarcado em nossa vida.As amizades, que nos ensinaram tanto, os momentos divertidos e as alegriascompartilhadas ao longo de tanto tempo. Se meus pais e meus irmãos faziamparte efetivamentede minha vida, agora, também o Neném, o Teco, o Guego, o André,a Meire, a Maria, a Mirtes, o cidadão de Curitiba e tudo que vinha a reboque.Pode parecer exagero, mas você sabe que isso é verdade, que nessa idadegostamos deviver tudo com muita intensidade.A festa12 de novembro de 1979. 19 horas. O telefone toca.- Arlem Maffra, tem alguém no telefone, querendo falar com você.Acabei de amarrar o cadarço do tênis e fui atender.- Pronto!- Grande Passarinho! era o cidadão de Curitiba.- Cara, a festa começa às nove da noite, tá quase na hora. Você não vai faltar,vai?- Claro que não, Dori. Não perco essa festa por nada nesse mundo, já combineicom a Helda, vou apanhá-la daqui a pouco.- Falou, Passarinho. Me faz umfavor? Liga pro resto da turma, confirmando. Vou mostrar a vocês como se fazuma festa em Curitiba.- Falou, Dori! Até mais tarde.Alguma coisa naquela conversa estava atraindo minha curiosidade,principalmente pela promessa do cidadão de Curitiba de fazer uma festadiferente das que estávamosacostumados. O namoro do Dori com a Silvana já estava acontecendo há ummês e os dois estavam sempre se afastando em todas e quaisquer ocasiões.Depois apareciam com um comportamento meio esquisito, diferente. Não que fosse pior do que onormal, mas diferente.Expressavam sensações de prazer, de euforia, de bem-estar. E nesse clima,parecia que haviam nascido um para o outro, sorriam sempre, um poucoagitados, mas sempre os mesmos amigos de sempre. De vez em quando, saiam algumas frases meioque codificadas, soltas de um texto qualquer por parte da Silvana, dizendo àsoutras meninas que para "transar" não tinhacoisa melhor que o "elixir" da vida. Coisas desse tipo. Depois que as aulasencerraram, todos os dias estávamos juntos numa quadra de um clube no nossobairro parajogar basquete com o cidadão de Curitiba.

Chegamos até a montar um time com Dori no comando. Até disputamos umcampeonato regional, mas... não tivemos muito êxito. No bairro tinha um cinemae me lembro que todo mundo se encontrava lá quando algum filme bom entrava em cartaz.Lembro-me também que naquela época, o filme "O Tubarão" estava em cartazem todos os cinemas da cidade. Combinávamos para assistir a shows como o do 14 Bis, MiltonNascimento... Eu estava sempre animando a turma, na praça do bairro, com omeu violão, tocandoas músicas do Fagner, Cazuza, Djavan e do Lulu Santos.As 20horas45min eu buzinava na passagem pela lanchonete, próximo à escola,e Helda vinha ao encontro do carro. Abriu a porta, entrou e disse:- Passarinho, não vou à festa.- Como assim? Não vai por quê?- Porque você ta diferente, andando com gente diferente e freqüentandolugares diferentes.- O quê? Ta maluca, garota! Eu to legal. Você que é muito careta.- Eu gostava do Passarinho do início do ano, mais puro, menos curioso.- Helda, abre o jogo, polaca. O que é que você está querendo dizer?- Que esse pessoal usa drogas e que vai rolar drogas na festa. Eu não queroestar por perto e não quero que você também esteja. E mais, você escolhe, oueu ou a festa.Cara, uma noite inteirinha para curtir e eu brigando com a menina dos meussonhos.- Helda, eu quero os dois, você e a festa. São meus amigos e eu gosto demaisde você.- Passarinho, você vai mesmo à festa?- Vou!Num gesto brusco, Helda saiu docarro batendo a porta com força. Pela primeira vez, vi um gesto deselegantedela. À medida que sua silhueta perdia-se na noite, mil coisas passavam porminha cabeça.Nossas brincadeiras, nossa amizade, as músicas que cantamos juntos,combinamos de fazer a nossa festa de quinze anos juntos. Nossos sonhos,nossos filmes, nossos planos, sua beleza, sua doçura... Helda estava deixando a história da minha vidapara sempre.Cheguei à casa de Silvana... A rua estava repleta de carros e motos.Lembro-me do romantismo e o sucesso que as "TT's", da Yamaha, faziam. Logona entrada, uma bandeja com algumas bebidas. Era o sinal de boas vindas aosconvidados.Os tradicionais cumprimentos:- E aí? Diz aí! Qual é? Fala meu...Meus olhos correram pelos cantos do quintal da casa da Silvana e logoencontrei o Neném, a Mirtes, o Teco, muita gente conhecida e desconhecida. Ocidadão deCuritiba ainda não havia chegado. Silvana já estava impaciente esperando por

ele. Logo chegou seu irmão mais novo, Sinval. Tinha quatorze anos e, adivinhaquem estavacom ele? A Kátia, bicho! Que levou um fora do cidadão de Curitiba. Ninguém seespantou, afinal de contas partindo dela nada era novidade.Começou a festaEu não tinha o costume de beber, mas parece que havia algo de mágico nessedia, o clima, o pessoal, o local, os motivos da festa. Enfim, tudo montava umpalco perfeito para dar uma exagerada. Não havia mal algum em exagerar um pouquinho. Amúsica era perfeita, muito rock, baladas românticas, MPB e Dance turbinavam adisposição da rapaziada. Cerveja, vinho, quentão, batidas e, de vez em quando, apareciaum uísque.Cara, que festa! Se aquele ano trouxera tantas coisas boas através da escola,imagine o ano seguinte que voltaríamos a estudar na mesma escola com osamigos e outros que ainda haveríamos de conhecer. Dei uma passada de olhono pulso, o relógiomarcava meia noite e alguns minutos. Resolvi dar outra passada de olho noambiente e, de repente, cruzei o olhar com uma bela morena clara que vestiauma saia rodadae uma blusa. Seus cabelos negros e sedosos desciam até a cintura, olhararrebatador. Se meu pai dizia que homem não prestava, eu é que não seriaexceção. Meu coraçãobatia forte por Helda, sentia a falta dela.- E aí, Passarinho? Onde está a doutora?Era o Célio.- Terminamos, cara.- Ihh! Ta falando sério?- To sim e vamos mudar de conversa. Por que você não me diz quem é aquelagarota de saia rodada?- É a Maria, amiga da Silvana, estuda no La Salle.- Ela tá acompanhada?- Veio com um amigo, mas parece que se depender dela não vai rolar nada.-Então fui... Cara, não vou ficar sozinho nessa festa de jeito nenhum.Aproximei-me, e ela não tirava os olhos enquanto eu chegava perto. Sem dizernada, peguei-a pelas mãos e levei até o centro do salão e começamos a dançaruma canção do Dire Straits. Dançamos toda a música e depois outra do Phil Collins. Nãotrocamos uma palavra, mas não demorou para acontecer o primeiro beijo.- Você está só? perguntou ela.- Sim. E se você não tá namorando ninguém, podemos ficar juntos essa noite.A noite continuou e chamei Maria para sairmos um pouco. E ficamos próximosao carro para tomarmos um pouco de vento. Passado algum tempo, outroscasais começarama fazer o mesmo. Neném com Carla, Cascão com Mirtes, Sinval com Kátia, Céliocom Meire, Teco com Fabiana, irmã do cidadão de Curitiba. Nãodemorou muito e o cidadão de Curitiba chegou. Estava acompanhado do Beto,aquele que me emprestou a moto para meu primeiro encontro com Helda.

- E aí, Passarinho? Onde está a Helda?Beto me colocava numa enrascadana frente da Maria.- Acabou tudo, cara. Ela acha que não pode se misturar com a gente.- Ela é muito careta pra você... Pra frente que atrás vem gente.Maria, apesar de muito diferente de Helda, era também muito bonita, fumava,bebia e gostava de Rock'n Roll.Beto morava no bairro, mas não estudava na mesma escola que todos. Ele eraum sujeito sangue bom que não se entur-mava com qualquer pessoa, tinhasempre uma bolsa pendurada no ombro. Beto estava sempre com o Dori e eles se entendiam muitobem. A festa rompia noite adentro e com a chegada de Dori as coisas ficarammais animadas. Entramos para a casa novamente e continuamos a dançar,beber e namorar. A essa altura, começou a fazer calor por causa daaglomeração das pessoas, da fumaça dos cigarros e o agito das músicas,embalando danças coreogra-fadas. Em determinado momento em que Dori caminhava para fora da casa juntamentecom Silvana, disse quase sussurrando ao passar por mim e Maria:- Passarinho, vamos dar uma chega-dinha ali comigo.Não pensei duas vezes. E assim, da mesma forma, estendi o convite para orestante da rapaziada: Neném, Teco, Guego, André e Beto. Um a um seguíamoso cidadão de Curitiba numa fila indiana.Saímos do quintal e nos afastamos um pouco dos carros, dobramos a esquina ecomo já passava de uma hora da manhã, as ruas do bairro estavam desertas.O conviteCom a habilidade de sempre, Dori disse que ia fazer a festa ficar melhor doque estava e isso aflorou nossa curiosidade. Éramos amigos, o admirávamos etodos queriam saber os segredos do cidadão de Curitiba. Sendo assim, eranormal partilharmosdo que ele ia fazer. Sem que tivéssemos tempo para processar suas palavras, ocidadão de Curitiba tirou uma carteira de cigarros do bolso, abriu-a, tirou todosos cigarros que estavam envoltos numa seda, começou a cortá-la num tamanhoque indicava usar para elaborar um cigarro.- Passarinho, você pode segurar a seda pra mim?Todos estavam inertes, apreensivos, curiosos, perplexos, surpresos...Sem dar tempo, o cidadão de Curitiba tirou um outro pacote do bolso queexalava um cheiro mais forte que o do cigarro comum.- Neném, você pode segurar isso pramim?Ali estávamos todos, participando daquele ritual desconhecido. Novamentesacou do outro bolso, outro pacotinhocontendo um pó branco que era cocaína... Cara, ninguém se assustou comodeveria. Afinal de contas, àquela hora da madrugada, com muita cerveja nacabeça, "alegres" e curiosos, sem falar no cara legal que ele era e na amizade que todos nós

tínhamos consolidado durante todo aquele ano na escola, era só uma festa,nada mais.Não havia nada que pudéssemos pesar contra o cidadão de Curitiba."É algo que acontece uma vez na vida e outra na morte, um acessório, ele nãoestá forçando ninguém. E depois, meus pais disseram que um traficante comcara de mau que iria me oferecer drogas, ou alguém empurrando um carrinho de pipocas naporta da escola poderia ser um traficante disfarçado. "Meus pais diziam para eu não andar com gente "vagabunda", sem ocupação ecoisa e tal. O mais engraçado e estranho era que nenhuma dessas referênciascaía naquele momento. Todos riam num clima de descontração.A sireneAquela sirene interna tocava na consciência de cada um, avisando, de longe equase inaudível, que deveríamos pensar antes de experimentarmos a maconhae a cocaína.Havia um ar de perplexidade entre nós, mas não de medo, já que Dori não tinhareações anormais, violentas, alucinógenas ou perda de consciência.O certo era que não havia com o que nos preocuparmos, um servia como sinalde aprovação para o outro.Ninguém estava sozinho e a confiança no outro era total. Se foi um truque ounão, o fato é que fomos atraídos, e, assim, conhecemos e experimentamos, pelaprimeira vez, a maconha e a cocaína.Alguns olhares fixos, outros atentos, vigilantes... O medo de alguém estar porPerto, de alguém descobrir e contar para nossas famílias... O receio de haveralguma reação orgânica por parte de algum dentrenós... A expectativa da sensação física no primeiro uso... A guerra dospensamentos num campo de batalha, digladiando-se, debatendo, oraaprovando, ora desaprovando.O que nos ensinaram nossos pais, professores, parentes...? O fato era que nãoeram suficientes as informações que recebemos a respeito para resistirmosàquele momentode tão grande curiosidade. Experimentar o desconhecido, desvendar o mistériodos segredos das drogas, entrar no mundo do cidadão de Curitiba, evoluir,crescer, mudar,reciclar.Nossa cabeça estava confusa, fervia, mas experimentamos.Eu não podia acreditar que era verdade o que estava acontecendo naquelemomento. Tinha usado drogas e não tinha muito conhecimento a respeito.Estava seguindo ospassos dos amigos, suas orientações, seus conceitos, seus motivos, suasjustificativas. E eu? Não tinha os meus conceitos, minha opinião formada arespeito daqueles acontecimentos? Não vim à escola para estudar apenas?A realidade estava diante de mim e eu não podia negá-la, pois conheci ocidadão de Curitiba na escola, estudei, me diverti, conheci novos amigos eamigas, me socializei,

participei das atividades da escola, mas agora estava usando, experimentandodrogas pela primeira vez.O que viria depois disso? Como eu reagiria no dia seguinte? Já estava feito, eujá havia usado, agora, era esperar para ver no que ia dar."Está tudo bem, só tenho de tomar cuidado para não me viciar."Vida nova, experiências novas... Confesso uma coisa: sinceramente, pensei queo meu encontro com as drogas fosse trazer um dano sem medidas e que minhaconsciência não me deixaria em paz por muito tempo, que não teria como encarar meus pais.E depois, que minha vida imediatamente tomaria um rumo trágico ou qualquercoisa desse tipo, mas para minhasurpresa, nada disso aconteceu. Senti-me tão protegido, tinha tantas garantiaspara fazer o que fiz que estava tão ou mais tranqüilo quanto antes de usar. Naverdade,estava me sentindo a dois passos do paraíso. Não deu tempo de processar o"depois" e avaliar a experiência na companhia do grupo, porque logo emseguida viajei com meus pais de férias. Na viagem, eu pensava naquela experiência.- Senti formigamento em todo o corpo, inclusive no cérebro. Minha boca ficouseca, minha visão um pouco embaçada, os olhos um pouco irritados, e sorrimais que o de costume. Adquiri uma disposição para conversar e fui invadido por umasensação de bem-estar fora do comum, além de ter aumentado a temperaturado meu corpo, fazen-do-me suar além do normal.O que me chamou a atenção também foi o fato de ter durado muito pouco tempotodo esse "paraíso". O resto não foi aquele bicho de sete cabeças que meuspais diziam.Eu não via a hora de retornar das férias, encontrar a galera novamente erecomeçar aquela experiência. Poderia também parar e me dar por satisfeitocom a primeiraexperiência. Era uma questão de escolha. Por que repeti-la? Por que continuar?Acho que fui fisgado por um sentimento de prazer que não me exigia muitoesforço além de fumar ou cheirar. Quanto e o que será que isto me custaria? Era a perguntaque eu não poderia responder. Tinha curiosidade para saber o que os outrosestavam pensando, como é que reagiram, se iriam continuar ou abortar... Eram respostasque eu só poderia obter quando retornasse, e foi o que aconteceu.Ao chegar novamente no bairro, peguei imediatamente o telefone e liguei para ocidadão de Curitiba. Ele não estava e então liguei para o Neném.- Alô! atendeu Neném.- E aí, meu chapa? Como é que vai? perguntei.- Passarinho! Que bom que você chegou,cara! A gente ta com saudades. Ta todo mundo no pedaço agitando todas,muita festa.Antes que eu perguntasse, ele se adiantou:

- Cara, sabe aquela onda que aconteceu na festa de comemoração na casa daSilvana? Pois é, a "coisa" épra lá de boa, meu irmão. O cidadão de Curitiba tododia tem alguma coisa nova pra gente. As meninas estão de vento em polpa, cara. Muitacurtição: é "neguinho" rindo pra todo lado quando fuma maconha e, pracompletar, o "pozinhobranco" tá fazendo o maior sucesso com a rapaziada.Estavam ali todas as respostas que eu queria. E as coisas estavamacontecendo como imaginei. Só não pensei que as meninas também já estariamna onda... Besteiraminha pensar assim. É claro que não poderia ser diferente. Estando todasnamorando o perigo, vieram a reboque de seus sentimentos.Aproveitando cada minuto daqueles dias que ainda me restavam de férias,entrei na onda surfando em altíssima velocidade. Eu tinha uma quedaacentuada pela cocaína e maconha era só de vez em quando. Não precisavacomprar, era de graça.O cidadão de Curitiba fazia questão de nos dar. Daí em diante, as músicas, osnamoros, as festas e as amizades eram regadas ao "elixir da felicidade","segredo da curtição", ao "pleno prazer". Quanto aquilo ia custar, era a pergunta que saltavanos olhares de cada um de nós. Por enquanto, todos se sentiam a dois passosdo paraíso. Não nos sentíamos drogados, viciados, dependentes, escravos ouqualquer outra terminologia empregada pelos médicos ou por nossos pais. Asdesculpas e justificativas que a gente precisava para continuar usando, o cidadão de Curitiba sabia nosdar com muita convicção.Não havia polícia, roubos ou violência na jogada.Sem que eu percebesse minha mente começou a criar frases de pensamentosmanipuladores para me anestesiar da sireneque ecoava em minha consciência. As perguntas continuavam:- "Quanto tudo aquilo iria nos custar? Quem poderia responder a essapergunta?"Há tempos, são os jovens que adoecem"Cuidado, Passarinho, você está se envolvendo demais com aquele grupo...Você sabe qual... Você está se deixando atrair demais por coisas que, maistarde, podemcomplicá-lo..."As palavras de Helda, de vez em quando, soavam no meu interior como uma vozmacia e branda da minha consciência, tentando me alertar sobre as alternativasque euencontrara para aquele cotidiano rotineiro e comum, que a vida estava setornando. Mas apesar do apelo, coisas muito mais importantes estavamacontecendo comigopara dar ouvidos a essa voz da consciência.Estava me destacando entre o grupo de iguais .Tudo bem que aquilo não fosse o paraíso, mas ninguém podia dizer que eracoisa de desvio de comportamento, de bandido ou de "mente doentia". Eu

deveria tomar cuidado,claro, para não exagerar quanto ao uso. Minha preocupação inicial era que issochegasse ao conhecimento dos meus pais. Eu sabia que eles ficariam muitodecepcionadoscomigo. Até porque, não tinham cabeça para entender e abordar os fatos semsentenciar um veredicto a respeito de toda aquela experiência nova que euestava vivendo.Abrir o jogo, falar a verdade com eles, nem pensar. Eu não tinha abertura paraisso e depois, não estava a fim de parar. Não havia indícios físicos nem sociaisdeque estava me fazendo mal. Eu podia admitir, talvez, um conselho de alguémmais experiente.Deixei rolar.De volta para casa- Filho, estou percebendo que você está voltando para casa um pouco maistarde do que de costume e, além disso, está saindo mais vezes que o derotina...Está acontecendo alguma coisa? Você está com algum problema? perguntouminha mãe.- Que isso, mãe! Ta tudo bem! Éporque eu estou namorando firme com a Mariae estou aproveitando bem o final das férias, afinal de contas, daqui a poucotenhode retornar às aulas e o ano será mais difícil. respondi.- E a Helda, o que aconteceu?- Agora é a Maria, mãe. E não quero mais falar no assunto.- Tá bom, mas maneira um pouco, porque seu pai também está estranhandoesse comportamento.Cara, senti-me o Judas naquele exato momento em que traía Jesus Cristo,entregando-o mentirosamente aos romanos. Meus pais depositavam todaconfiançaem mim, falavam a verdade comigo e agora eu tinha de mentirescandalosamente para eles. E o pior é que eu tinha de olhar naqueles olhoscuidadosos e sincerosda minha mãe, desconfiados de minhas respostas. Tinha de conviver comaqueles gestos de proteção e de cuidado que, às vezes, chegavam a serexagerados. Tinha deabraçar, beijar e dividir minha vida com meu pai sem confiar minhas experiênciasà sua apreciação. Se eu continuasse mentindo nunca saberia sua opinião arespeito,nunca teria seus conselhos sobre o assunto. Mentir, coisa que eu não faziaantes.- Ah! É assim mesmo, Passarinho. Não fique colocando minhocas na cabeça.Isso passa.Era o que me dizia sempre o cidadão de Curitiba.Deixa rolar.Logo as aulas recomeçariam e todos nós estaríamos lá novamente, os mesmose outros novos colegas. Talvez com uma diferença significativa, pois os laços deamizade estariam muito mais firmes, as bases do nosso relacionamento estariam

muito mais solidificadas pela cumplicidade. Sempre gostei de música e logopercebi umaligeira mudança no repertório.Comecei a admirar alguns novos cantores que tinham alguma ligação com oconsumo de drogas.Minha preferência era indisfarçável, além de ouvi-los com assiduidade. Eraimpossível ficar distante dos conceitos e opiniões que esses cantores e gruposmusicaisemitiam a respeito de qualquer assunto ou questões da vida de um modo geral.Meus irmãos começavam a parecer um pouco caretas, sem brilho. Eram meusirmãos, é claro, e eu os amava muito, mas o papo já não era o mesmo.Com meus pais, o malabarismo para manter minha nova vida de consumo dedrogas no anonimato era enorme. Novas preferências, novos hábitos, novosconceitos, tudo começavaa mudar. A essa altura do campeonato, perguntar se issoera certo ou errado não tinha muito a ver. Talvez a pergunta correta fosse:"Quanto vou ter de pagar por isso? Minha família, meus sonhos, meus estudos,minha saúde, minha liberdade... Tudo isso era intocável para mim. "Porque o Renato Russo, ex-vocalista da banda Legião Urbana, cantava: "Hátempos, são os jovens que adoecem... há tempos, não entendem a medida damaldade... "Com o tempo, eu percebia que, direta ou indiretamente, alguns vocalistas debandas famosas mandavam seus recados estampados nas letras de suasmúsicas, como aquelado Cazuza, ex-vocalista da banda Barão Vermelho: "Meus heróis morreram deoverdose e meus inimigos estão no poder".Enfim, isso não dava para estabelecer uma mudança no curso que minha vidaestava tomando. Talvez eu necessitasse prosseguir nessa "viagem", percorrersuas estradas,visitar seus labirintos atéobter uma resposta mais convincente.Será que alguma tragédia poderia acontecer antes disso? Algum acidente depercurso? Afinal de contas, eu estava usando drogas. A onda de perguntascontinuava inundandominha mente.A polícia tinha razão em ficar prendendo pessoas que usavam drogas semprejudicar ninguém?""Eu tenho todas as boas intenções do mundo. Acho que não estou errado."Corra, que o piloto sumiuBem, amigos da "rede vida", vai começar tudo de novo. Mochila nas costas,cadernos, livros, canetas. Mais um desafio pela frente, um ano inteiro deescola... Bem,talvez também de amizades e coisa e tal.Os portões se abrem novamente. Os mesmos portões da mesma escola. Seráque os professores serão os mesmos? E os colegas de sala? De escola...?Um a um ia chegando. Toda a tribo reunida novamente. Maria matriculou-se emnossa escola para ficarmos juntos. Estávamos nos dando muito bem. Sua

cabeça era maisinteirada que a da Helda.Usava drogas junto comigo, ouvíamos as mesmas músicas, víamos os mesmosfilmes, minha família já se acostumara e ficava numa boa. Os pais de Maria eramevangélicos da igreja Batista e não aprovavam muito nosso namoro. Aí estãonovamente: o cidadão de Curitiba, o Neném, o Célio, o Guego, o Teco, oCascão e as meninas.Tem gente nova no pedaço, é claro.Repetir aquele iniciozinho chato para você dos primeiros dias de aula é aluguel,não acha? Então, vou lhe poupar isso. O primeiro recreio do ano trouxe de voltanosso mundinho de estudante. Saí da sala e logo no corredor, abraços daMeire, Mirtes, Kátia... Maria pulou em minhas costas e fomos em direção àcantina, compramosum lanche e fomos para o grande pátio. Novamente meus olhos percorreram asdezenas de grupinhos e mundinhos diferentes que já aninhavam em cada cantodaquele pátio.Garotos e garotas novas, agora do outro lado, onde eu estava no ano anterior.O cidadão de Curitiba e eu agora tínhamos muitas coisas em comum. Muitacoisa aconteceu nesse tempo de convívio e de relacionamento.No segundo dia de aula, quandoecoou novamente a música para o recreio, Maria já estava à porta da minhasala. Saímos, como de costume, em direção à cantina. Deixei-a com a turmaenquanto compravaficha no caixa da lanchonete e quando me virei, vindo do caixa, fiquei de frentecom a coisa mais linda que os meus olhos já viram naquela escola, Helda, maisbelado que nunca.Ficamos ali alguns segundos, paralisados, olhando um para o outro sem saber oque dizer.- Oi, "polaca".Tomei a iniciativa de chamá-la pelo apelido que eu lhe dera.- Oi, Passarinho.- Quanto tempo, Helda.- Como é que você está?- Depois de perder você... Não estou.- Espero que somente eu tenha perdido você.- Como assim?- Pelas informações que me chegaram, daqui a pouco sua família, seus sonhose sualiberdade também vão perdê-lo.- O o o q u u u e? — gaguejei.-Adeus, Passarinho, estou com saudades.Será que todo mundo tinha a mesma percepção da Helda? Eu estava mesmoperdendo alguma coisa e não sabia?- Por que tá demorando, cara?Maria chegou de repente.- Nada, vamos.Dessa vez, nada de voz de brisa varrendo meu coração de adolescente. Agora,

eu tinha Maria que, diferente de Helda, compartilhava das mesmas sensações. Acuriosidadepelas novas descobertas parecia ter sumido. Aqueles grupos formados na horado recreio começavam a se configurar, porém acho que eu estava predestinadoa pertencerao grupo do cidadão de Curitiba. Essa era minha nova identidade. Eu não podiame dar ao luxo de pertencer a um grupo de caretas que não partilhava dasmesmas experiênciasque eu. "Novas almas" haveriam de compor esses grupos. Todos nós, dessa"tribo", nos tornamoscidadãos ligados ao cidadão de Curitiba. Multiplicamo-nos, e os segredos, bem,esses já não existiam mais, a senha foi revelada. A pergunta era: quais seriamasnovas almas desse ano que estava começando?Os próximos Passarinhos, Nenens, Guegos, Tecos, Mirtes, Meires e Marias?A freqüência nos banheiros da escola continuava, e, o pior, ou melhor, é quedessa vez os freqüentadores aumentaram. O ritmo tornou-se alucinante. Euparticipavacom prazer, fazia repetir o filme do ano passado com uma pequena diferença,dessa vez não mais como crítico, observador ou como mero espectador.Fazíamos, todos,parte do filme, estávamos lá, contracenando.Outras "almas" assumiriam nossolugar.Quem sabe, no ano que vem, eles estarão em nosso lugar e essa história serepita pelos séculos dos séculos."Senhores passageiros, tenho a infelicidade de comunicar-lhes que essevoo está em turbulência e não há mais nada a fazer, não sabemos o destino quenos aguarda. Os computadores de bordo não funcionam mais e perdemos ocontato com atorre de controle. Que Deus nos ajude".Os meses seguintes àquele início de aula, no ano de 1980, foram determinantespara todos nós.Alguma coisa de errado estava acontecendo. As coisas pareciam estar fugindodo controle, ou seja, a direção da escola já estava sabendo que estávamos nosdrogandono banheiro na hora do intervalo.Estavam de olho. Fomos todos chamados à sala da diretoria para darexplicações e, é claro, que desmentimos tudo. Comecei a arranjar muitosinimigos dentro da escola.As duas últimas aulas de todos os dias não tinham muito significado para mim,pois aconteciam na volta do intervalo e eu, no mínimo, havia fumado umbaseado no banheiroou cheirado algumas carreiras de cocaína. Alguns dias domês todo o grupo, nós e as meninas, resolvíamos matar aula para nosdrogarmos ou fazer qualquer outra programação desde que fosse regada adrogas e bebidas.- "Alguma coisa errada está acontecendo".

Antes, eu não mentia para os meus pais, não brigava na escola, não agredia aspessoas, não matava aula... Eu não conseguia mais ver e apreciar aqueleenvolvimentodo intervalo, não tinha tempo para conversar e formar novas amizades, poisestava sempre no banheiro com o restante da turma.Os novos colegas que chegaram à escola não tinham a menor importância paramim, afinal, o que importava era estar com a nossa turma, nosso grupo, nossatribo, nossagalera. Algumas vezes, eu não ia direto para casa depois da aula,principalmente com a mudança do turno matutino para o vespertino. Às vezes,chegava à noite em casa ainda uniformizado. As escapadas para dormir, no final de semana,na casa de alguns dos integrantes da turma eram constantes. O dinheiro quemeu pai me dava, inclusive a mesada, estava sendo usado para comprar drogasque agorajá não eram gratuitas e, adivinhe quem estava nos fornecendo? O cidadão deCuritiba.Na escola, eu já havia recebido a terceira advertência. Mais uma e eu levariasuspensão. O mais interessante era que minha situação se repetia fielmentecom todosos outros integrantes do nosso grupo, inclusive, as meninas que namorávamos.Lembra-se do Beto, aquele que apareceu de moto na festa da Silvana com ocidadão de Curitiba? Pois é, agora estava estudando na mesma escola quetodos nós. Betoe eu ficamos muito amigos, sempre juntos, dentro e fora da escola. Comecei aperder a motivação para fazer as tarefas em casa, para apresentá-las no diaseguinte.Os professores assistiam às mudanças com pesar, estavam impotentes dianteda nova situação. Não sabiam se era "a droga do inimigo ou o inimigo da droga".Em pouco tempo, aconteceu o que já era previsto.Levei uma suspensão de uma semana. Minhas notas não estavam boas, nãotinha mais a cabeça no lugar para fazer boas provas, a não ser das matériasque eu gostava muito. Nessa onda impetuosa, comecei a criar o hábito de só aceitar e investirem coisas e situações que me causavam prazer. Tudo o que exigia muitoesforço, eradescartado.Neném começou a ficar muito violento. Começou a namorar a Carla e batiamuito nela.Teco era o mais bem comportado, usava drogas, mas não comprava, vivia doque todos nós comprávamos do cidadão de Curitiba. Suas notas também nãoiam bem. Guego estava tendo sérios problemas em casa com seus pais que, a essa altura, já sabiam detudo. André estava mais ou menos como eu. As meninas estavam cada vez maisescancaradas, suas mentes estavam presas pelo prazer de usar drogas e fazersexo. O cidadão de Curitiba, além de nos fornecer o combustível agora tãonecessário ao nosso cotidiano, começava a formar novos grupos na hora do

intervalo dasaulas.De volta para casaEu não estava mais de bike, mas demoto.Aquela tradicional escalada pelos degraus da escada da minha casa já nãoacontecia com aquele entusiasmo de antes. A comida da minha mãe, apesar decontinuar a mesma delícia de sempre, sobrava em meu prato, principalmente quando cheiravacocaína. Perdia completamente a fome.Recebi informações que os pais do cidadão de Curitiba estavam em guerra porcausa de problemas relacionados ao seu comportamento.Ficaram sabendo que, além de usar, Dori estava também traficando. Discussõesinfindáveis, brigas, agressões. Certodia, a diretoria da escola convocou os pais do cidadão de Curitiba para umareunião a portas fechadas com a presença de vários professores. Depois disso,ele foi expulso da escola por tráfico de drogas no interior da mesma.Isso não foi suficiente para nos separar, muito pelo contrário, estávamos semprenos comunicando por telefone, marcávamos encontros à noite e nas festas definais de semana no bairro.Mirtes engravidou de Cascão. Ficou desesperada com a reação que seus paisdeveriam ter e com o agravante de não poder contar com o pai do seu bebê.Chorava desesperadamente e continuava se drogando. Falava em suicídio, mas foi desestimulada da idéiapor Maria. Saiu da escola e passou toda a sua gravidez na fazenda de seu pai.Sofreu a dor da solidão, perdeu o ano letivo e teve de se transferir para outra escolaem outro bairro. Seus pais descobriram o envolvimento com as drogas e com aturma do cidadão de Curitiba.Ficaram muito decepcionados e obrigaram-na a acabar o namoro com oCascão. Mirtes levou, de lucro, um filho que nunca foi assumido e queaconteceu numa dasnoites de sexo, drogas e rock'n roll.Enfim, aconteceu o que já era esperado. Fui também expulso da escola porestar consumindo drogas. Eu faltava sucessivamente às aulas, praticavaagressão física contra os meus colegas e desrespeitava os professores. Cascão continuou estudando.Célio começou a roubar dinheiro do restaurante do seu próprio pai para sedrogar. Como trabalhava no caixa, causou um prejuízo incalculável e o resultado não poderiaser diferente. Seu pai entrou em dificuldades financeiras. Célio destruiu umcarro novo, com os agravantes de ser menor de idade, estar em estado de aluci-nação e dirigindo em alta velocidade pelas ruas. Cássio também se transferiupara outra escola.

Continuou se drogando e começou a ter alguns problemas de saúde. Adquiriuuma bronquite e um princípiode tuberculose por causa do cigarro e da maconha.Coisas estranhas estavam acontecendo com todos os integrantes do nossogrupo. Aquilo que deveria ser somente uma experiência sem maiorescompromissos, acabou sendo o início de uma cadeia de fatos e acontecimentos que nós não estávamosacostumados a lidar. Nossos sonhos começaram a ruir. Os pais do cidadão deCuritiba se separaram definitivamente. Eles tinham constantes brigas, pelo fato de saberem que seufilho era drogado. Eles mudaram do bairro, foram para um bairro de ricos. Dorimatriculou-se em outra escola. Logo depois, teve sua primeira prisão, em função dasconstantes denúncias de outros pais que o acusavam de estar influenciandoseus filhos a usarem drogas.Eu já ia completar meus quinze anos e continuava me drogandoconstantemente. Meus pais já estavam a um passo de descobrirem tudo, se éque já não sabiam e estavam desviando o assunto para fugiremda vergonha. A fábrica de automóveis FIAT estava instalada em Betim, nagrande Belo Horizonte, e com isso, muitos técnicos e engenheiros vieram morarem nossobairro. Seus filhos, infelizmente, foram presa fácil para a experiência epidêmicaque rapidamente se expandia pelo bairro.Meire teve duas internações em UTI de hospitais por overdose. Começou aemagrecer assustadoramente. Envelheceu dez anos em dois. Terminou seunamoro com Célio que, a essa altura, foi expulso de casa pelo pai por estar roubando e ser acusado desua falência. Célio já havia completado dezessete anos e foi morar com uma tia.Nãoconseguia parar de se drogar. Cascão estava exagerando muito. Misturavadroga com álcool. Por várias vezes, nós o advertimos, porém, também nosfaltava o controle que exigíamos dele.Todos estavam preocupados com Cascão. Nas baladas, o uísque e a cocaínase tornaram seus companheiros inseparáveis. Estava indo fundo demais. Certodia,Cascão estava num estado extremamente depressivo. Drogou-se com muitacocaína, montou em sua moto, uma 350 da Yamaha, entrou por uma avenidalarga e extensa, demão dupla, acelerou tudo que a moto conseguia dar e, ao final, quandoprecisava fazer a curva, foi direto ao encontro de um paredão de concreto, deuma recauchutadorade pneus. Certamente, deve ter embarcado em alguma viagem alucinógena enão conseguiu o bilhete de volta. Cascão morreu. Nosso amigo se foi.Minha pergunta sobre quanto nos custaria todo aquele prazer começava a serrespondida.

Realidade crua e implacável. O cutelo estava posto à mão e a ceifa começava.Beto também começou a usar drogas mais pesadas como a cocaína. Gostavade freqüentar uma Lan House próxima à minha casa para jogar vídeo game.Certo dia, tomou umadose como a de costume e foi jogar. Quando estava com a atenção voltada paraa máquina, foi acometido deuma parada cardíaca fulminante. Em meio a convulsões, parou de respirarestirado no chão gelado. Todos os colegas, que estavam com ele no momentodo acontecimento,correram desesperados, com medo que alguém chamasse a Polícia. Betomorreu. Nosso amigo Beto também se foi.André foi comprar drogas de um traficante de outro bairro. Nessa transação, foiassaltado pelo traficante. Ficou humilhado e recheado de ódio.Todos os dias ele dizia que um dia mataria esse traficante. Não demorou muito,André viu a oportunidade. Correu em sua casa e pegou o revólver de seu pai.Ele sóqueria dar um susto no traficante que o assaltou. Encontrou-o, apontou orevólver e mandou que corresse. O cara obedeceu e pediu que ele nãoatirasse. Poucos passos depois, a uns vinte metros de distância, André puxou o gatilho pensando quenão ia acertá-lo. A bala, como que guiada pela mão de algum demônio,penetrou suas costas,atravessou seu coração eencerrou sua vida de assaltante. Foi fatal. O traficante atingido caiu e começoua rolar rua abaixo até parar próximo a um bueiro. Chovia muito naquela tarde ea águada chuva escoava o sangue que saía daquele corpo. Que cena chocante!André tornou-se um assassino sem querer, foi preso como tal e estavacondenado a passar a maior parte de sua vida em um presídio.Explosão no meu mundo"Filho, você está usando drogas, mentiu para mim, mentiu para sua mãe e seusirmãos. Você desistiu de estudar, agora tornou-se um traficante e, o que é pior,a políciaestá procurando-o."Manhã de Quinta-feira. 8 horas e 30 minutos. Ainda meio dormindo, fuiacordado por um telefonema. Era o cidadão de Curitiba. Agora morava do outrolado da cidade.- E aí, Passarinho? Preciso falar urgente com você, cara. É coisa boa. Você vaigostar.- Me deixa dormir, cara, liga mais tarde. - respondi.- Como é que estão as coisas, meu irmão?Já tem uma "data"que você não meliga.Como é que estão seus pais, seus irmãos e a rapaziada do bairro continuou ocidadão de Curitiba, ignorando o meu pedido.Algumas coisas estavam mudando. A conversa do cidadão de Curitiba já nãotinha o mesmo efeito hipnotizador. Agora, com os últimos acontecimentostrágicos, faltava

aquela admiração do início. Meus pais estavam tristes e preocupados, talvezperplexos com a descoberta. Tantas coisas aconteceram desde aquela primeiraexperiência na festa na casa da Silvana.Mortes por acidentes, overdoses, expulsões da escola, repetência escolar,gravidez precoce, perda de motivação, desespero familiar, perda de confiança,vergonha... Na verdade, acho que calculamos mal. Seria esse o preço que nos custaria eque agora respondia às nossas dúvidas? Havia, porém uma coisa que não davapara negar: as drogas podiam não continuar exercendo o mesmo fascínio de antes, mas nãoconseguíamos ficar sem ela. Eu entrava em pânico só de pensar em encarara vida e os fatos de cara limpa. Eu estava dependente. Batalhar pelo prazer eelaborar a vida com esforço causava-me pavor. Precisávamos de, cada vezmais, anestesiapara agüentarmos a angústia que se tornou nossa vida.Eu estava dependendo constantemente de usá-las. Perdi amigos, escola,sonhos e agora minha liberdade. O preço era alto demais. A grande maioria porsua vez continuavaviajando por um caminho que ainda reservaria muitas surpresas.Levantei-me naquela manhã e troquei algumas palavras com minha mãe. Elacomeçava a se desesperar com o sentimento de angústia que ainda haveria deacompanhá-la porlongos anos. Fui para a casa do cidadão de Curitiba.- Entra, cara, vem aqui pro meu quarto pra gente conversar.Andei pelos corredores daquele imenso apartamento muito bem decorado.- Vou pegar a chave do carro da minha mãe pra gente dar uma volta no bairro.Quero te apresentar alguns novos amigos. soou aquela tradicional voz rouca emusicalizada do cidadão de Curitiba.Iniciamos o passeio. Tudo o que eu podia ver era a ostentação de grandesprédios de apartamentos e casas muito bem arquitetadas. Um padrão de classemédia alta que,aliás, estava em ascensão naquele bairro. Chegamos a uma praça principal,onde o cidadão de Curitiba começou a me apresentar seus novos amigos.Pobres almas.Voltamos para o apartamento dos seus pais, que como você já leu no capítuloanterior, estavam definitivamente separados.- Passarinho, tenho algo para conversar com você, mas isso não deve serrepassado para mais ninguém. Eu tenho a maior confiança em você e é por issoque euo chamei aqui.Eu estava impaciente.- Diga logo, cara. Você está me deixando curioso.Antes que eu continuasse, ele fechou:- Como é que você está de grana?Disse na maior naturalidade, enquanto preparava algumas carreiras de cocaína.- Como assim, cara? Eu não estou trabalhando. A grana que tenho é o meu paiquem me dá.

- Tá legal, Passarinho.Imediatamente, ligou o som e aumentou o volume. Não queria que outra pessoaescutasse nossa conversa. Abaixou-se, passou a mão numa fenda por detrásdo guarda-roupa do quarto que ele dividia com seu irmão Sinval e tirou um pacote, colocando-oem cima da mesa. Quando ele abriu, um cheiro forte de éter e acetona invadiu oquarto.Eram várias bolas amarelas e petrificadas. Pela primeira vez, eu estava vendoum quilo de cocaína pura em minha vida.- Pode cheirar à vontade se você quiser, mas eu não trouxe você aqui paramatá-lo por overdose. - disse com um sorriso contido e um olhar sério.- Quero lhe dar a oportunidade de ter, usar, vender e ganhar dinheiro suficientepara não depender de seus pais.A essa altura eu já sabia qual seria sua proposta, e segundos depois veio aconfirmação.- Vou ensiná-lo a vender, cara.Minha mente se voltou para minhacasa.Comecei a pensar nas cenas: meus pais, novas mentiras, novas descobertas,novas vergonhas... Traficar era um pouco pesado. Eu não conhecia ainda essemundo. Mas não demorou muito e o cidadão de Curitiba começou com sua artilharia pesada:- Olha, Passarinho, o segredo é usar menos e vender mais, tá ligado? Por quevocê acha que as pessoas me respeitam, me procuram toda hora, e me tratambem?Ele silenciou-se por alguns segundos para dar tempo aos meus ouvidos e àminha mente de processarem esses argumentos e continuou:- Grana, cara. Droga mais venda é igual a grana, "sacou"?Novamente o silêncio invadiu aquele quarto. Eu já estava quase convencido,estava muito drogado.Sem deixar a "peteca" cair, o cidadão de Curitiba tirou sua carteira do bolsocomo se tivesse sacando uma arma. Abriu-a, tirou um pacote de dinheiro emnotas graúdase jogou em cima da cama.- Taí, cara! Sabe quanto tempo eu levei para ganhar essa grana? Não mais quedois dias.(Se eu lhe contasse que ele foi preso e passou boa parte da sua vida numa celaimunda no porão de uma prisão, você não diria que era a mesma pessoa queestava falando).Esse fechamento foi com "chave de ouro" para mim. Comecei a enxergar apossibilidade de, perto dos 17 anos, ter a minha independência. O que eu nãosabia, era que,dali por diante, minha vida desceria ladeira abaixo, rumo a um caos total.Minha consciência dizia para encerrare pedir ajuda. Mas aquele cara, que eu admirava e confiava tanto, o amigo detodos os dias, me dizia: continue, Passarinho, mergulhe e o céu virá.- Passarinho, o negócio é o seguinte...Passou explicar antes que eu lhe

desse a resposta:- Eu lhe forneço droga em quantidades maiores. Você mistura e multiplica empequenas quantidades. Com isso, você ganha o dobro do que você mecomprou, então pode vender lá no seu bairro e nos arredores. Quando eu precisar de você aquinesse bairro, eu o chamo.O "negócio" estava feito. Imediatamente o cidadão de Curitiba passou a meensinar como separar em quantidades iguais, embalar e vender. Falou dealguns truques, segredos e artimanhas do "negócio". Comecei a traficar drogas.O que estava acontecendo comigo? Será que não bastavam as tragédias queeu estava vendo na vida de meus colegas? Será que não bastava o desmonteque estavaacontecendo com nossos sonhos? Talvez eu precisasse olhar para a angústiaque começava a rondar o coração dos meus pais. O que era necessárioacontecer para que eu rompessecom aquela experiência mal começada? Mais dores?Eu não queria admitir, mas estava dependente das drogas. Não tinha forçaspara, sozinho, resolver essa escravidão da repetição do uso. Entrar para omundo do tráficoera perigoso, mas tudo estava acontecendo com tanta naturalidade que euficava sem argumentos para estabelecer critérios. Eu precisava pensar umpouco mais... Talvezdevesse procurar meus pais ou alguém para me abrir e conversar sobre oassunto. Não o fiz.Não demorou muito para que eu ficasse conhecido nos bairros próximos ao meue a quantidade de usuários que me procuravam tornou-se cada vez maior.Algumas pessoas eram presas pela polícia e muitas me denunciavam como traficante. Em poucotempo, a polícia estava à minha procura.As coisas começaram a tomar um rumo diferente do que eu imaginava. Asvendas iam bem e, com isso, comecei a despertar a atenção dos meus pais queme viam constantementecom roupas novas, trocando de moto, passeando... Eu não trabalhava e nemrecebia mais dinheiro do meu pai, portanto não tinha como justificar aquelasituação.De volta para casaManhã de terça-feira, daquele frio mês de junho. Meu pai entrou no meu quartoe pediu que eu desligasse o som.- Sente-se, filho, e preste atenção, por favor. Tenho coisas importantes para lhefalar.Um vento gelado descia por minha garganta e estacionava em meu estômago.Faltou saliva em minha boca, tive sede, não conseguia olhar nos olhos do meupai. Eu sabia que ele estava a par de, pelo menos, algumas coisas que eu já estava fazendo.Para minha surpresa, porém, ele já sabiade tudo, tudo mesmo.

- Filho. - começou meu pai com os olhos cheios de lágrimas.- Não sei por onde começar, só quero que você não minta. Por favor, não minta.Eu posso ajudá-lo. Eu sei que posso, filho.Cada palavra parecia estimular seu choro e as lágrimas inundavam seu rostocansado e decepcionado.- Por que filho? Por que você se deixou chegar tão longe? A gente se ama, agente sempre se deu bem. Vai ruir tudo, filho. Sem você nós não vamosprosseguir...Aquilo era demais para mim. Meu coração foi envolvido numa massa deconcreto para suportar a dor de ver e ouvir meu pai pronunciando aquelaspalavras. Aquele homem bom, divertido, brincalhão, sorridente, contador de piadas, que sempre melevava para passear... íamos juntos ao clube, às praias. As viagens juntos... Ah!Que viagens por esse "Brasilzão"! Ele respondia a todas as perguntas que eu fazia a respeitodas placas de sinalização estrada afora.Meu paizão, meu amigo, minha paixão, meu herói. Ele se preocupava em me daro melhor do mundo. Ele gastou mais da metade da sua vida em função da minhasobrevivência.Ele sempre buscou o meu bem-estar. Agora, ele tinha um filho drogado, um filhotraficante, procurado pela polícia de Belo Horizonte. Minha voz estavaemudecida pelo constrangimento. O preço era muito alto. Meu pai era tudo que eu tinha de bom."Meu Deus, eu daria tudo para não estar passando por isso. Que dor, cara!".Durante toda aquela semana, apesar de continuar vendendo drogas, eubuscava uma saída.Não dava mais para encarar a minha família, não tinha mais ambiente em minhacasa. Eu andava preocupado com a polícia, com os delatores, os riscos quevinham a reboque da exposição à qual eu estava submetido. Ser um traficante me dava uma falsasensação de poder, mas também tinha riscos. Procurado pela polícia, odia-do pelos moradores do bairro, perseguido por outros traficantes concorrentes.Talvez eu tivesse de deixar a minha casa. Aquela experiência mal começadaestava medestruindo, tomou minha liberdade, meu dinheiro, minha capacidade de escolha,meu futuro e agora estava tomando minha família. Eu tinha de tomar umadecisão e tinha de ser rápido. Minha prisão era uma questão de tempo. Eu não queria que fosseem minha casa, diante dos meus pais. Que enrascada, cara!"Haveria chance de desistir a essa altura do campeonato?""Haveria alguma outra alternativa que eu não conhecesse?"Eu poderia ter encerrado mais uma vez ali. Não o fiz. Prossegui.Estava agora sem escola, sem trabalho, sem liberdade e bem próximo de perderas pessoas mais importantes da minha vida. E pensar que tudo começou comaquela festinhainocente, um pequeno "tapa" num cigarro de maconha, nacompanhia de bons amigos, ao som de rock'n roll. Os meus amigos haviamsofrido dores e perdas irreparáveis. Eu, porém, não as tomei como lição para

parar e continueia aventura inconseqüente.Aos dezessete anos saí de casaProcurei o cidadão de Curitiba para comunicar minhas novas decisões. Euestava agora por minha conta e precisava me engajar de vez no mundo dotráfico de drogas. Para tal, não queria mais aquela pequena quantidade de drogas. Eu queria serum traficante de poder e ganhar muito dinheiro.Conheci dois rapazes ciganos que me fizeram uma proposta:- Passarinho, nós temos armas. Você encontra os fornecedores de drogas, faz atroca e distribui. Seremos sócios no negócio.Topei.O cidadão de Curitiba não conseguia atender minhas necessidades. Conhecium grande fornecedor. A droga vinha da Bolívia, passava pelo Mato Grosso echegava ao interior de Minas Gerais, onde fazíamos a transação. O encontropara o negócioera sempre numa área rural, num matagal próximo à linha de trens. Vagõesabandonados serviam de proteção para mim e para o fornecedor.Contratei dois caras para me darem cobertura com armas pesadas: Ângelo e Jó.Eles seriam a garantia que eu não seria enganado ou assaltado. Eu tinha medode morrer. A essa altura, Maria mergulhava comigo nessa louca viagem rumo aodesconhecido.A noite caía. Não havia lua cheia. Estava muito escuro. Ângelo e eu andávamospor cima dos trilhos da estrada de ferro, que nos levaria ao lugar de encontro.Para não chamar a atenção dos cachorros que estavam nas fazendas próximas,escorávamos um no ombro do outro e caminhávamos sem fazer barulho até olocal combinado. Esperamos a hora e logo ostraficantes apareceram com uma sacola contendo a droga. Eu estava tenso,suava e não conseguia falar muito.Ângelo se afastou um pouco, olhou ao redor e sinalizou que estava tudo bem,eu podia seguir com a transação.Passei-lhes o dinheiro... contaram...- Ta limpo, cara. Pode conferir a droga. - falou um dos fornecedores.Conferi e experimentei.- Tá tudo certo. - respondi.- Então podem ir embora. Se quiserem mais, esse será o procedimentonovamente.Esperaram que afastássemos e logo sumiram na escuridão da noite.Em Belo Horizonte, começamos um arriscado negócio de distribuição de drogascom tentáculos nas baladas, festas de aniversário, acampamentos e excursõesa partir das escolas.Comecei a ganhar dinheiro. Morava por minha conta e tinha carro. Andavaarmado, sofria ameaças de outros traficantes. Não consegui mais manter-me noanonimato. Eu tinha acesso aos jovens de classe média alta. Conhecia-os nas

baladas, descobria onde estudavam. Se a escola me interessava, euconsolidava a amizadecom os caras e as garotas mais influentes. Depois de ganhar a confiança deles,financiava toda a bebida que queriam na balada ou na festa e, então, quandonão podiam mais ter total controle sobre suas mentes, eu acrescentava drogas no cardápioda noite. Eu estava somente repetindo a mesma estratégia usada pelo cidadãode Curitiba naquela noite da festa na casa da Silvana. Não vendia drogas para seremconsumidas no interior das escolas, era muito arriscado.Começava, então, um negócio estratégico que, em pouco tempo, ganhariaoutros bairros de ricos de Belo Horizonte. Passava, vez ou outra, por revistaspoliciais nocarro (ainda bem que não estava dirigindo), até que não demorou muito paraacontecer a minha primeira prisão.O pavor tomava conta de mim quando vi aqueles revólveres apontadospara minha cabeça.- É a polícia! Você está preso!Não era um filme. Eu estava mesmo recebendo uma ordem de prisão. Tododinheiro e bens que consegui com o tráfico de drogas, foi usado para ganharminha liberdadecom o pagamento de advogados e "outros acertos". Eu estava diante de outrarealidade que não conhecia.Além de estar sem minha liberdade, perdi o que ganhei com a mesma facilidade.E agora, como recomeçar?A vida continuava, meu namoro com Maria continuava, mesmo com o tráfico e aprisão. Ela me ajudava com a distribuição e escondia a droga quando a políciaabordava o carro. Maria tornou-se uma vítima desse carrossel de desgraças.Numa velocidade tremenda, aconteceu minha segunda prisão e logo depois aterceira e última.Era uma madrugada fria e chuvosa num bairro de Belo Horizonte. Eu dormianuma rede na casa de um parceiro do tráfico,escondendo-me da polícia, quando, de repente...- Polícia! Você está preso!Sem dar tempo de acordar direito, arrastaram-me pelos cabelos por um trilho delama, debaixo de socos e pontapés até o carro de polícia. Algemaram-me econduziram-meaté a delegacia.Durante o processo de investigação e da montagem do inquérito, eu passavapor longos momentos de tortura nas salas de uma delegacia da zona oeste deBelo Horizonte.Psicologicamente eu estava destruído.Era acordado várias vezes durante a noite e pela manhã também. Não medeixavam dormir.Estava cansado. Meus pais não sabiam onde eu estava. Fui levado parasessões de tortura por várias vezes para dizer de onde vinha a droga.Sofria contínuos espancamentos e outros métodos de tortura psicológica.

Esse era o preço, amigo, que ocidadão de Curitiba não conhecia. Esse é o preço que não se consegue pagar.Mês de outubro. 9 horas da manhã. Os portões se abrem à minha frente. Dessavez, não mais aqueles saudosos portões da escola da zona oeste da capitalmineira. Nãotinha mais o cidadão de Curitiba, o Neném, o Teco, o Guego, o Cascão, o Célio,a Helda e os professores. Eram os portões do presídio, os companheiros decela, oscarcereiros, o diretor do presídio.Pagando a contaEu não podia imaginar que uma simples decisão de matar a curiosidade deexperimentar a maconha, depois de alguns copos de cerveja em uma simplesfestinha entre amigos,pudesse me conduzir para um futuro incerto e perigoso.- Todos para fora! É hora do banho de sol. Todo mundo em fila, sem brigas,sem conversa. Vocês têm 30 minutos. Ao ouvirem a sirene, voltem para suascelas e aguardemque sejam trancadas pelo carcereiro.O que para mim era a coisa mais natural do mundo, agora se tornara umprivilégio: Tomar banho de sol.- Hora da comida! Todos para fora! Fila indiana, sem conversa, sem briga!Estendam o prato.Eu estava desconfiado. Fiz algumas amizades na cela e agora começava aconhecer outros companheiros de outras celas.No final da fila, dois tambores cheios de algo que chamavam de comida. Eramrestos de comida de muitos restaurantes. Eles faziam aquilo de propósito.Esperavam que a comida apodrecesse para depois nos servir. Aquilo não cheirava muito bem,era um grude, uma pasta de arroz com um pedaço de pão de "trocen-tos" dias.A princípio, eu não conseguia digerir aquele alimento, mas com o tempo fui meacostumando, até porque, senão, morreria de fome.- Hora do pátio! Todos para fora.Os carcereiros nos conduziam aogrande pátio, onde podíamos jogar futebol. Quem não queria, podia ficarsentado nas arquibancadas de concreto, que rodeavam a quadra. Um vai e vemde presos, conversas,risadas, gritos e discussões.Eu, como tocava violão, logo fiz muitas amizades.- Hora do banho! Todo mundo para fora. Tirem somente a camisa e cada umtem apenas um minuto nas duchas.Eram duchas de água muito frias e naquele inverno isso fazia muito mal. Muitospresos pegavam pneumonia. Havia muita gente doente naquele lugar. Nãotinham assistência médica. Não estou falando de uma simples doença, mas de AIDS, câncer,tuberculose, intoxicações diversas, feridas, escoriações e marcas deespancamento por causa das brigas entre os presos e as torturas praticadas pelos agentes

penitenciários. Esse era o preço, cara.Esse ainda é o preço para muitos que insistem. Não vale a pena. Digo a vocêque não vale.- Hora do jantar. gritava um carcereiro.Era um procedimento diferente do almoço, porque não saíamos das celas.Todos recebiam suas porções de comida, estendendo o prato de plástico porentre as gradespor uma pequena abertura na grande chapa de aço que era a porta. Issoevitava motins e tentativas de fuga, porque a noite era mais propício para isso.E assim passavam-se meus dias na prisão.- E aí, Passarinho? - era o preso que comandava a prisão.- A gente ta planejando uma escapada, você ta a fim?Quem não queria sair daquele inferno? Pensei. Mas sair como, e por onde?- O plano é o seguinte: quando o caminhão da comida sair do presídio e todosestiverem em fila, tomamos de assalto os agentes penitenciários. Enquanto um grupo distrai os agentes que ficam armados nos corredores superiores,colocamos os tambores de comida um sobre o outro. Aí, é só escalar omuro e descer numa corda feita com a emenda dos cobertores.Era uma fuga muito mal planejada, e eu sabia que muita gente ia sair feridanaquela trama. Eu tinha de dar uma resposta e talvez estivesse apenas sendotestado.- Tudo bem, cara. Pode contar comigo!Quando a noite chegava no interior daquela cela, minha mente estava sempreviajando para além daquele pequeno cubículo. Virtualmente, eu atravessava asparedes e as grades, percorria os corredores, atravessava o pátio e, enfim, me projetavaalém dos muros daquela prisão infernal. Meus pensamentos ganhavam as ruasda cidade de Belo Horizonte.De volta para casaAgora eu só podia chegar até minha casa através dos meus pensamentos.Podia me ver subindo novamente aquelas escadas, correndo, largando minhamochila na cama e sentando à mesa para saborear agostosa comida da minha mãe.Podia ver o meu pai chegando do trabalho, sentado à mesa conosco, contandosuas histórias. Podia ligar a TV e assistir a algum programa, filme, desenho. Emeus irmãos? O som no quarto, a comida farta na geladeira, a cama sempre bem arrumada,aquele cobertor quentinho e o beijo gostoso da minha mãe em minha face antesde ir para a escola. Podia pensar em seus conselhos que pareciam tão inocentes, tãodesprovidos de maldade, mas tão doces e cheios de cuidados. Podia escutar otelefone tocando e Maria, do outro lado, fazendo suas declarações de amor, marcando encontros.As viagens com minha família pelas estradas desse "Brasilzão".- Que saudades, cara!

De volta para a escolaNovamente minha mente percorria os corredores da escola à procura dosamigos e amigas. Lá está o cidadão de Curitibaconversando com um novo grupo de novos amigos. A adrenalina daquelerecreio, as meninas que perfumavam nossas salas de aula... Aquele zum...zum... zum... dasconversas, o barulho das sirenes, aqueles gestos coreografados juntando oscadernos, o material e correndo para a saída da escola.- Todo mundo para fora! Hora do pátio! Sem conversa, sem briga, em fila,rápido...Era hora de abandonar aqueles pensamentos e voltar à realidade. Quemudança, hein colega?O que era realidade, agora só em sonhos, e o que era imaginável, agora erarealidade. Eu não podia sair daquela prisão antes que todos os inquéritosfossem concluídos, os processos montados e julgados, as penas fossem decretadas e cumpridas.Talvez passasse ali, no mínimo, 10 anos de minha vida, por tráfico, consumo dedrogas e outros crimes. Eu havia perdido a minha liberdade, a minha família, osmeus colegas, a minha escola, o meutrabalho, o meu dinheiro, a chance de realizar meus sonhos e, agora, talvez, emalgum momento, sentia que poderia perder minha vida.Um grito no silêncio"Quinta-feira qualquer daquele inverno"Chovia muito. Era quase noite. Os colegas de cela descansavam deitados nochão. Mesmo naquela prisão, as drogas chegavam com facilidade, e ali, adependência aumentava.Levantei-me, fui até a porta da cela, segurei firmemente naquela pequenaabertura com grades e comecei a percorrer aquela prisão com meus olhos.De repente alguns pássaros, pequenos pardais, entravam pelos muros, voavampelos corredores e desciam no centro do pátio. Eles estavam à procura dosrestos de comida do almoço que caíam no chão. Saíam voando novamente para fora da prisão.Cantavam a todos os pulmões.Comecei a pensar: "Quanto vale um pardal? Quem paga alguma coisa por ele?No entanto, hoje, ele vale muito mais que eu. Ele tem liberdade, pode comer oque quiser,ir onde quiser e voar com quem quiser.Meus pensamentos começaram a entrar em debate: "De onde vim? Quem mefez? Por que existo?"A chuva continuava caindo, o frio e o escuro chegavam para mais uma noitetriste e angustiante. Eu queria estar sonhando, desejava que tudo aquilo nãopassasse de um pesadelo.Queria dormir e acordar em minha casa, com minha família. Queria tomar umbanho, trocar de roupa, almoçar, vestir o uniforme e ir para a escola estudar. Euqueria me encontrar novamente com o cidadão de Curitiba e alertá-lo sobre o perigo

ao qual ele estava nos submetendo, quando nos oferecia droga. Eu queriaencontrar com Maria, abraçá-la e dizer que não íamos mais usar drogas.Queria encontrar com todo mundonovamente, Teco, Guego, André, Neném... E propor que procurássemos ajudacom a direção da escola ou com nossos pais."Não dava mais, cara. Eu estava preso. Todo mundo se deu mal nessa aventurainconseqüente".A angústia me atravessou dentro daquela cela. O choro brotava e eu nãoconseguia mais controlá-lo. Eu ocultava meus olhos por entre as grades, paraque meus colegasnão percebessem. Meus lábios tremiam, minha garganta estava do-endo e tinhacontrações no estômago. Eu precisava cheirar cocaína. Olhei para o alto domuro, tentandoenxergar o céu antes que a noite o escondesse e, quase sem me conter, abri aminha boca e disse, sussurrando, pela primeira vez:- "Deus... Deus... Você pode me ouvir?... Onde está você agora?...Fiz silêncio... Cheguei à conclusão que Deus não podia fazer nada por mim e,no mais, eu estava ali pagando por tudo oque tinha feito de errado. Estava em dívida com a sociedade e com a lei.Espere aí! E se Deus estivesse me ouvindo e aguardando para saber o que éque eu queria falar... hein...?Então, continuei sussurrando:- "... Deus, se você existe, se foi você quem me fez, se sua inteligência me criou,então, agora, é hora de você se manifestar..."Eu achei que estava ficando louco, mas continuei:- "Deus, tira-me daqui, me dá uma outra chance, uma outra oportunidade detentar novamente. Sei que errei, sei que estou aqui para pagar minha conta coma lei, mas ninguém foi á escola para me dar informações concretas. Não posso teprometer nada, mas preciso de uma nova chance. Talvez eu possa ir lá e avisaraos novos, aos que estão chegando agora, aos que ainda não experimentaram. Talvez eupossa informá-los sobre os riscos e as conseqüências que estou sofrendo e quesofrerão.Sair daquele lugar não parecia nadafácil.Meus pais não sabiam onde eu estava. Não tinha mais dinheiro para pagaradvogados. Não tinha ninguém para pedir minha soltura, a não ser umadvogado do Estado quenunca aparecia.A noite já havia chegado e, antes que os meus colegas desconfiassem daquelaloucura, voltei para o meu lugar no chão. Acendi um cigarro, encostei-me naparede e logo depois caí no sono.Eu havia me esquecido daquelas palavras, mas estava me sentindo muitomelhor. Não sei como lhe explicar isso, cara. Mas uma esperança brotou dentrode mim na manhã

seguinte. Eu sentia que algo estava para acontecer a qualquer momento, nãosabia o que era, mas sentia."Todos para fora! Hora do pátio! Em silêncio, sem brigas e em fila! Rápido.Naquela manhã eu estava diferente. Tinha esperança em meu interior. Dealguma forma, não estava me sentindo mais abandonado naquele lugar.-Arlem Maffra! gritou o carcereiro- Para fora! Você tem visita!A cela foi aberta, fui algemado e entregue aos agentes penitenciários que meconduziram à administração do presídio. Fiquei apreensivo. Não sabia o queestava acontecendo nem para onde iam me levar.- Assine aqui. disse o diretor do presídio.Deram-me uma caneta, mostraram-me um livro preto e pediram que euassinasse nele. Logo depois, apareceram dois policiais. Eram agentesinvestigadores de uma delegaciade Contagem, uma cidade que faz parte da grande Belo Horizonte.- Você irá com esses policiais. Eles têm uma ordem do juiz para transferi-lo paraa delegacia onde será ouvido em outros inquéritos que pesam contra você.Eu não entendia muito o que estava acontecendo, mas comecei a caminhar poraquele grande corredor que dava acesso à porta principal do presídio.Algemado e escoltado pelos dois policiais, fui empurrado para dentro da viatura. A cidade iapassando diante dos meus olhos. Ruas, avenidas, carros, buzinas, fumaça,vento, pessoas, propagandas, barulho de motores. Eu estava preso dentro deum carro, algemadoe escoltado, mas podia sentir a sensação de estar novamente de volta à vida.Um silêncio completo. Não me diziam o que ia acontecer, não conversavamcomigo, apenas me conduziam.-"Passarinho, cuidado, você está se envolvendo demais com essa gente e estáatraído demais pelas coisas que elas estão fazendo ".- "Filho, eu estou percebendo que você está diferente, estranho. Seu paitambém está notando a diferença".-"Passarinho, vou te mostrar como é que se faz uma festa em Curitiba".- "E aí, Passarinho? Como é que foi de férias, preciso te contar as novidades".-"Vamos logo, Passarinho! A festa está para começar e não podemos chegaratrasados".Tudo passava como um filme novamente por minha mente. Será que estouficando louco? Estou ouvindo vozes?Continuava apreensivo para saber o que ia acontecer comigo. Conseguiacalmar-me um pouco e comecei a pensar em meus pais. Lembrei-me de umamúsica do Fag-ner e comeceia cantar sozinho:"Quando penso em você, fecho os olhos de saudadesTenho tido muita coisa, menos a felicidade... Correm os meus dedos longos, emversos tristes que invento,Nem aquilo a que me entrego já me traz contentamento...Eu só queria ter do mato um gosto de framboesa, pra correr entre os canteiros,

e esconder minha tristeza.Deixemos disso e cuidemos da vida, pois quando chega a morte ou coisaparecida e nos arrasta, moço, para um beco sem saída..."Logo me lembrei também de uma canção do 14 Bis:"... Nossa linda juventude,Página de um livro bom...Guardo teu tesouro,Joia marrom,Raça como nossa cor...""... Maravilha, juventude,Tudo de mim, tudo de nós, via láctea... "O carro parou.- Para fora, Passarinho! Rápido! Não tente nada! Entre para a delegacia!Subi a escada escoltado e entrei em uma sala de espera.- Passarinho, pode entrar. O delegado está esperando.Quando entrei na sala, com os policiais me cercando, vi o delegado com muitospapéis nas mãos. Corri meus olhos por toda a extensão da sala e deparei-mecom o inesperado:o meu pai, de cabeça baixa, sem conseguir olhar-me. Seus olhos estavamlacrimejando. Eu não sabia o que sentir ou falar. Era muita humilhação para omeu paisubmeter-seàquela cena. Um homem honrado, trabalhador, honesto, sério e bom pai, haviase esforçado para me dar o melhor que pôde conseguir. Continuei calado,desviei meu olhar para o chão.Havia mais pessoas naquele lugar, homens de terno. Eram os advogados domeu pai.-Aproxime-se, Passarinho... - disse o delegado.- Você acaba de ser premiado. O seu pai está com uma transferência judicial,para conduzir você até Brasília para ser internado numa comunidadeterapêutica, onde você fará um tratamento, e voltará para concluir sua pena aqui. Seu tratamentodura nove meses em regime fechado numa fazenda, mas preste atenção: tudoisso depende de você. Se não quiser, pode voltar para o presídio. Você quer?Não consegui processar o que estavam me oferecendo, mas podia sentir que omeu pai desejava ardentemente que eu aceitasse, então balancei a cabeçaafirmativamente. Não tinha coragem para abrir minha boca, para pronunciar qualquerpalavra, porque sabia o sofrimento que estava causando à minha família,naquele momento, representada pelo meu pai.Não sabia como meu pai me encontrara, o quanto de dinheiro gastara comadvogados e a quanto tempo estava tentando me transferir. O resultado era queeu estava viajando para Brasília sob a custódia do meu pai.- Assine esses papéis e depois você estará livre para acompanhar seu pai.Quero deixar claro que se você não cumprir o determinado pelo termo judicial,

seu pai também estará encrencado com a justiça por sua causa, portanto é melhorvocê fazer tudo direitinho.- Vamos, filho.Há muito tempo eu não ouvia alguém me chamar de filho. A voz era familiar. Meupai, minha paixão. Ele estava de volta. Eu não tinha os guerreiros do Ma-trix,nem o Gladiador, não tinha Aquiles, nem o Spider Man. Eu tinha um pai que meamava. Não podia acreditar, mas estava voltando para casa. Para minha casa.Paraminha velha casa, para minha velha mãe, para os meus velhos irmãos.Passaria alguns dias com eles antes de desembarcar para Brasília. Tinhavontade de usar cocaína, de rever alguns dos "colegas" do bairro, de ligar paraMaria, masme lembrava das palavras do delegado.Tinha medo de não conseguir viajar depois de usar drogas. Fui recebidocarinhosamente por minha mãe. Meus irmãos choravam muito. Tomei um banhoe sen-tei-me à mesa. Naquele dia comi para valer. Comia e chorava, chorava e comia. Antes de irpara o meu quarto, pedi ao meu pai que viajássemos logo no dia seguinte,assim eu nãocorria o risco de estragar tudo novamente. Ele concordou.Naquela noite, não consegui conversar com ninguém. Estava muito confuso eenvergonhado.O meu lar parecia um cemitério. Agora eu percebia o quanto tinha estragado ossentimentos e a vida dos meus irmãos e meus pais. Entrei no meu quartoe lá estava a minha cama, toda arrumada, com aquele cheiro agradável deperfume. Ao lado, algumas roupas que eles haviam comprado para mim. Fui aobanheiro, abrio chuveiro quente, tomei um banho. Usei todos os xampus e condicionadoresque lá encontrei. Fui até o espelho, comecei a experimentar todos os perfumesque estavam sobre o mármore. Vesti uma roupa limpa e cheirosa e fui novamente para o meuquarto. Liguei o som, corri os olhos por sobre a cômoda e vi uma velha fita queeu tantogostava de ouvir do Sá e Guarabyra:"O homem chega, já desfaz a natureza Tira gente, põe represa e diz que tudovai mudar...O São Francisco lápra cima da Bahia Diz que dia menos dia vai subir bemdevagar... Vai ter barragem no salto de sobradinho E o povo vai se embora commedo de se afogar, O sertão vai virar mar, dá no coração O medo que algum dia o martambém vire sertão...Adeus Remanso, Casa Nova... Adeus Pilão Arcado vem o rio te engolir...Debaixo d'água lá se vai a vida inteira Por cima da cachoeira a gaiola vai, vaisubir... "-dizia a música.Deitei-me naquela cama confortável e foi então que comecei a me dar conta do

que estava acontecendo. Parecia um sonho impossível. Ainda de manhã estavanaquela prisão sombria. Não tinha perspectiva de liberdade, e agora estava em casa, em meuquarto, em minha cama, com minha família.- Deus... terá sido você?... Você respondeu ao meu pedido ou foi somente umacoincidência... ?Cidade dos anjos"Segunda-feira. Inverno de 1986. 7 horas da manhã".O carro nos deixava no estacionamento de um bloco, numa super quadra emBrasília, no centro das decisões políticas brasileiras, e ainda não me dava contade tudo o que estava acontecendo. Já ensaiava algumas palavras com meu pai e minhamãe que me acompanhavam. Andamos pelo corredor do bloco até chegar aalgumas portas. Elas ocupavam quase a metade de todo o espaço do bloco. Estavam todas fechadas.- Vamos aproveitar para tomarmos um café. - disse minha mãe.- Tem uma padaria na esquina do bloco. - disse meu pai.- É aqui que terei deficar? perguntei.- Sim, filho. Quando abrirem, vocêpassará por algumas entrevistas, fará alguns exames e será encaminhado atéuma fazenda modelo que fica a mais ou menos oitenta quilômetros daqui.respondeu meupai.Dirigimo-nos até a padaria e lanchamos. Quando voltamos, as portas dainstituição já estavam abertas. A minha frente, uma secretária jovem e bonita,Nilda, nos atendeucom um sorriso e pediu que aguardássemos. Assentei-me com meus pais e vium livro de capa escura com a fotografia de alguém se drogando, na penumbrade uma cruz.Do outro lado da cruz, uma luz radiante, iluminava aquele mesmo rapaz quejogava fora a seringa e ajoelhava-se.O nome do livro: "A cruz e o punhal".O nome do autor: "DavidWilkerson".Comecei a folheá-lo. Interessei-me pela ousada e fascinante história de umjovem pregador batista nos E.U.A, que se sensibilizou pela situação deescravidão a que as drogas levavam os jovens americanos. Mostrou-se presente à dor quecausa-va às suas famílias.Comecei a lê-lo.A história começava quando esse pregador cristão, que morava no interior dasE.U.A, começou a ler um jornal de circulação no Estado de Nova York.Estampada na primeira página, uma manchete, que contava a triste história de uma gangue das ruas doHarlem, que consumia e traficava drogas e que estava presa. Haviam praticadocrimes hediondos em função de estarem drogados e agora poderiam pegar penamáxima no tribunal do Estado. Esse homem sentiu uma enorme comoção pela

vida e pelo futuro daqueles jovens, vítimas das drogas e dos traficantes. Tomou a decisão de tentar fazeralguma coisa por eles. Comunicou à sua esposa, arrumou suas malas e dirigiu-se até a cidade de Nova York. Orientando-se pela matéria do jornal, conseguiu chegarao tribunal americano na hora do julgamento dos jovens. Assistiu a tudo,olhando fixamente para aqueles jovens rapazes cheiosde terror e arrependimento. Quando o juiz pronunciou a sentença, o homem nãose conteve, levantou-se e começou a protestar em alta voz, pedindo mais umachance paraos réus, uma vez que eram viciados e que deveriam receber uma pequena penade tratamento e não uma pena de prisão. Sua voz era ouvida em todo aquelesalão. O juiz que presidia a sessão não gostou da intervenção e mandou que o expulsassemda sala. Ele foi expulso, mas também chamou a atenção de toda a imprensa queestava dando cobertura ao caso.- Quem é o senhor?- Por que o senhor está protestando?- Que tipo de tratamento o senhor acha que deveria ser dado a eles?- Por favor... por favor... Os repórteres o cercavam.Ele saiu daquele local muito angustiado e tomou a decisão de não se dar porvencido. Se não pode socorrer aqueles garotos, podia tentar socorrer os quetinham tempo para se decidir.Então criou uma instituição chamada "Teen Chalenger", que traduzido é"Desafio Jovem". Elaborou um programa de tratamento, conclamou associedades políticas, civise religiosas e começou a estender as mãos para as pessoas que quisessem sairdas drogas. Num instante, ele já estava firmando convênio com a justiça queencaminhava para sua instituição os presos que necessitavam de tratamento. Muitorapidamente ele ganhou o apoio das autoridades locais, estaduais e nacionais.Ganhou a confiança de toda a sociedade americana que contribuía com seu trabalho. Tinhacredibilidade junto à polícia. Os resultados foram tão surpreendentes que o seuprograma e metodologia de tratamento foram exportados para outros países, chegando também ao Brasilatravés de um professor de antropologia.- Ei, você é Arlem Maffra?Voltei a minha atenção para o ambiente. Estava tão envolvido com aquele livro,que não percebi que muitos outrosrapazes chegaram ali, de vários lugares do Brasil, para serem internadostambém. A sala estava cheia.- Sim, sou eu.- Você pode descer até as salas do subsolo e encontrará alguém para atendê-lo.

Os meus pais foram encaminhados para outra sala.Quase três horas de entrevista. Vasculharam a minha vida, leram o regulamentoe me conduziram ao carro que me levaria até a fazenda."As 16 horas, uma Van encosta no estacionamento. "- Chegou a hora filho, precisamos nos despedir. meu pai dirigiu-se a mim com osolhos cheios de lágrimas.- Nunca o abandonaremos, filho. Tudo isso vai passar logo e teremos nossomenino de volta. disse a minha mãe.Eu não me sentia bem. Estava muito angustiado. Sentia-me como um doentesendo internado em um hospital. Queria sumir, acordar de todo aquelepesadelo.- "O que é que eu estava fazendo em Brasília?"- "Por que me internar?"Minha mãe me abraçou, me apertou, chorou...Meu pai enxugava os olhos e não conseguia falar muita coisa.- Eu estou com você, filho. Mesmo que você não queira ficar aqui.O carro ia se afastando e meus olhos perdiam no horizonte aquelas duas figurasmáximas em minha vida. Havia uma esperança acesa nos olhos dos meus pais.Agora, a dor se misturava à nova chance que eu tinha para recomeçar. Meus sonhos,lindos sonhos... Meus amigos, distantes amigos... Meus colegas de escola.Eu estava, mais uma vez, separado da minha família.Sinceramente, se eu soubesse que o preço seria esse, não teria experimentadodrogas naquele dia.Segunda-feira. 18 horas. A Van chega à fazenda da clínica. Interno, confuso,distante do que estava acontecendo, eu precisava me adaptar àquele lugar.- Seja bem-vindo, Arlem Maffra. disse um dos orientadores com uma vozcompassada e segura. Ele tinha um sorriso nos lábios e um brilho diferente nosolhos.Era uma fazenda maravilhosa, com animais, plantações, muitas árvores, ar puroe um soprar contínuo dos ventos do cerrado.Você deve estar curioso para saber o tipo de tratamento que eles ofereciam lá,não é mesmo?Bem... Acordávamos às 6 horas, higiene pessoal, café, um pequeno intervalo elogo começavam as atividades de tratamento, com estudos, debates, palestras ereuniões. O almoço era servido ao meio-dia. Podíamos descansar até 13 horas e30minutos, quando então participávamos de uma terapia ocupacional. Eraservido um lanche às 16 horas e o trabalho encerrava às 17 horas, quando então tínhamos até às 18horas para o lazer, que era ofutebol.Eu ia passar três meses naquele lugar para fazer desintoxicação, adaptação,disciplina e um descondicionamento psicológico, depois então seria transferidoparaoutra unidade na cidade para a ressociali-zação e a retomada dos estudos.Os dias foram passando e eu já me sentia melhor. Meus hábitos alimentaresforam mudados, meus horários foram disciplinados, fiz muitas amizades com

rapazes que vinhamde todos os lugares do Brasil, América do Sul e Europa para se tratarem lá. Foium tempo muito especial em minha vida, mas havia sempre uma indagação arespeito das drogas: Romper definitivamente com o sentimento de prazer que a cocaíname proporcionava, era algo que me assustava. Ali naquele lugar tudo bem, eunão estava usando, mas... e quando saísse?As drogas se tornaram parte da minha vida. Na verdade, a parte podre queprecisava ser tirada. Passei por crises de abstinência terríveis até acostumarmeu organismoa viver sem elas. Psicologica-mente, acostumado com a companhia e o prazer das drogas, eu precisavaagora de algo maior. Sentia muita saudade da minha família, e sabia que não iaficar ali parasempre. Precisava redefinir minha vida, saber para onde iria, o que faria depoisde tudo isso, se a justiça me deixaria em liberdade após o tratamento. Enfim,muitas coisas me perturbavam.Quinta feira, 7 horas. Aquele parecia um dia normal como os outros. A sirenetoca na fazenda, convocando todos para a costumeira reunião na capela, ondetodos os dias um orientador lia um texto da bíblia e logo depois, passava a nos explicar,tirando uma lição para ser aplicada no nosso dia-a-dia na fazenda.- Bom dia, amigos! Eu quero ler para vocês um pequeno trecho que São Pauloescreveu para os seus amigos da cidade de Colossos quando estava na prisão.Eu não entendia nada de religião e achava aquilo uma caretice."E ele (Deus) vos libertou doimpério das trevas, e vos transportou para o reino do filho (Jesus) do seu amor".- Amigos, Deus nos criou como seus filhos, desejando o melhor para todosnós...Prosseguiu explicando:- ... "Ele queria que fôssemos felizes, curtíssemos tudo de bom que colocounessa terra e que vivêssemos livres. Um dia, nós fomos seqüestrados por umaforça do mal, através das drogas, e, então ficamos aprisionados e condenados a vivercomo escravos desse mal por toda a vida. As drogas nos fizeram reféns e nosjogaram num cativeiro de dor e tragédia. A droga tornou-se uma força muito superior anós. Deus, testemunhando a angústia de nossas famílias e o nosso desespero,ouviu nosso grito e nos libertou do império das trevas, da solidão e da humilhação... "Que história mais esquisita, porém comecei a configurar o que ele dizia. Vivi atragédia, minha família cheia de dores. Desesperado, gritei. A prisão podia sercomparada ao império das trevas e a droga era um problema além das minhas forças."... a força que precisamos está, primeiro, em Deus, depois em nós, em nossosamigos e em nossas famílias..."

Cara, que história louca. Show cara, Show. Eu tinha de me agarrar àquilo, euprecisava mais que qualquer pessoa ali.Continuava parecendo mais um dia normal, com um sol bonito, um céu limpo emuito vento.Eu estava triste, sentia um forte peso nos ombros. Aquela velha vontade de usarcocaína trouxe o gosto em minha garganta. Dirigi-me ao almoxarifado paraapanharalgumas ferramentas para o trabalho. Subi a estrada que dava acesso aocerrado para limpar uma área onde plantaríamos arroz com os tratores. Aterapia naquele dia parecia pesada, comecei a pensar se todo aquele esforço resultaria em algumacoisa, se eu não estava ali somente passando o tempo... Soou a sirene para olanche das 16 horas. Depois do lanche voltei ao trabalho e então me lembrei que haviaesquecido uma ferramenta. Voltei para apanhá-la. Dei a voltapor trás dos depósitos de lenha, entrei no almoxarifado, apanhei umaferramenta e quando saí, senti um cansaço muito forte. Sentei-me no degrau aofundo da construçãopara descansar. Comecei a sentir uma angústia, uma sensação de vazio, defalta, um vácuo dentro de mim. Agora, percebi que haviam me tirado a únicacoisa que eu tinha, a droga. Estava longe de tudo e de todos, amigos, família, pessoasconhecidas, escola... De repente, comecei a ouvir um barulho de pássaroscantando. Olhei para cima, o céu estava claro, limpo e azul com pequenos filetes de nuvens.Uma revoada de pássaros... Eram pequenos peri-quitos voando em bando, maisbaixo que o normal. Passaram bem próximo de onde eu estava. Em questão de segundos,outro bando e então alguns pardais voaram por entre os pés de laranjas dopomar, pousaram no chão e começaram a buscar alimentos na terra com o bico. Levantaram vooe foram embora. Sim, aquela cena não me era estranha. Em algum lugar aquilojá havia acontecido. Claro! Por que não me lembrei logo? Na prisão, cara.Aquele dia chuvoso que eu estava angustiado, segurei-me nas grades, observeios pardaisvoarem pelo pátio da prisão, cantarem e voarem livremente para além dosmuros. Sem ter tempo para processar tudo aquilo, uma voz fraca, branda esuave vinha de algum lugar em meu interior:-"... Eu cumpri minha parte, agora, cumpra a sua..."Aquela voz vinha cada vez mais forte. "... Eu cumpri a minha parte, agoracumpra a sua..."Alguma coisa me chamava para uma resposta, um compromisso, um voto, umapromessa. Naquele dia, na prisão, eu disse que se Deus existisse e me desse achance de reescreverminha história e da minha família, eu voltaria às escolas para dizer aos outros oque havia acontecido comigo e com meus amigos. Naquele momento, caí dejoelhos,

chorava e gritava:- Obrigado, Deus... Obrigado... Ajuda-mea vencer as drogas e serei uma voz à tua disposição nas escolas da minhanação.Eu agora não precisava sussurrar como lá na cela da prisão, podia falar alto,não tinha ninguém para me ouvir a não ser, talvez, Deus.- Será que foi você quem me tirou realmente daquela prisão e me trouxe paraesse lugar...?Dessa vez eu falava com mais convicção da existência de Deus, mesmo sem teruma religião ou seguir uma cartilha do padre ou pastor.Se eu não estava ficando louco, acabara de ter a chance de me encontrar navida, de dar um sentido aos meus dias, de me sentir seguro para sair dali econstruir algo, de voltar a fazer felizes os meus pais, de voltar a ter aqueles sonhos deconquistas e realizações.-... Deus, por acaso você não podia ser meu companheiro e me dar umsentimento melhor que o da cocaína...?Comecei a chorar. Não parava dechorar. O tempo estava passando e logo a sirene para encerrar a terapiaocupacional soaria e eu ainda estava ali, escondido de tudo e de todos,chorando e conversandocom algo que chamava de Deus. Estava colocando tudo para fora através dochoro. As marcas das tragédias, as feridas da rejeição, o pavor da solidão, amutilaçãodos meus sonhos, as perdas emocionais, tudo estava sendo revisto. Não era umchoro de tristeza e nem de angústia, mas de escape. Eu estava me encontrandocom Deuse conhecendo o seu amor de pai. Eu estava sendo apresentado ao seu Filho,Jesus Cristo, e conhecendo sua companhia.Levantei a cabeça e enxuguei as lágrimas. Achava-me possuído por umacoragem, uma certeza de que tudo ia dar certo e que poderia vencer as drogascom a ajuda, acompanhia e o sentimento de amor que Deus poderia me dar. Logo, meuscompanheiros de quarto começaram a perceber a mudança e a confiança queeu havia encontradopara estar tão bem.- Passarinho, o que é que está acontecendo com você?- To bem, cara. Apenas me encontrei com Deus. Não o vi, mas pude senti-lobem perto de mim. Conversei com Ele, resolvi convidar o seu Filho, Jesus Cristo,para morar em minha vida, depois Ele me fez chorar e senti que estavaperdoando todas as besteiras que fiz com a minha vida, usando drogas ecausando dores á minha família.- Ah é?! Você não ta pirando não,cara?- Não sei, cara... Eu to bem.- Escuta aí, Passarinho... E onde foi que isso aconteceu?- Lá no degrau da construção, atrás do almoxarifado... em frente ao pomar.

O cara me olhou meio desconfiado e encerrou o assunto.Eu não podia esperar a hora para ter novamente contato com Deus. Semreligião. Só Ele e eu. Comecei a adquirir o hábito de falar com Ele todos os dias.No meu quarto, sentado em minha cama, outrabalhando. Eu precisava muito daquilo. Sentia-me muito bem. Achei algomelhor e maior que as drogas.Valeu, "paizão"! Por me ressuscitar do túmulo das drogas.Sua escola, sua históriaPassei cinco anos naquela instituição. Cumpri parte da pena em tratamento. Eusentia tanta saudade da Maria, dos amigos, da escola.Minha mãe veio me visitar. Dois anos haviam se passado e foi então que me deiconta que havia aprendido a viver sem as drogas. Retomei meus estudos,concluí meu segundo grau e agora queria alçar voos mais altos. Fazer um curso superior,trabalhar na empresa com meu pai, comprar meu carro, meu apartamento. Maso maior desejo que tinha era de rever minha cidade, minha escola, meus amigos. Nesses doisanos, meu amor por Maria apagou-se completamente, porém a chama aindaardia muito por Helda. Esquecê-la era difícil. Algo de muito forte teria de acontecer... e...aconteceu, cara!Seis horas da manhã. A sirene toca mais uma vez e somos acordados por umacanção que dizia: "Calmo, sereno e tranqüilo...". Parecia mais um dia comoqualquer outro.Fiz a higiene pessoal, fui para a reunião de grupo, tomei o café da manhã equando me preparava para uma terapia, vi, na linha do horizonte daquelafazenda, um carro se aproximando. Percebi que era um microônibus. Logo, o coordenador daclínica nos reuniu e solicitou alguns voluntários para trabalharem na colheita dafazenda treze. Lá, residiam as meninas que estavam em tratamento. Para mim eraindiferente, ficar ou ir. Decidi me voluntariar, pelo menos, me distraía. Omicroônibus percorria os sessenta quilômetros que separavam uma fazenda da outra. A paisagem eraexuberante. O sol entrava por entre as árvores do cerrado, refletindo um tomavermelhadoem suas folhas. A linha do horizonte parecia infinita. Nenhuma montanha,nenhum obstáculo. Eu aproveitava esses momentos para fazer a minha viagemparticular. Sonhava, pensava, projetava imagens, curtia a ficção elaborada por minha mente. Aprendi isso naprisão. Enquanto os outros presos se desesperavam para encontrar um túnel ouqualqueroutro meio que os tirassem daquele inferno, eu tinha meu próprio túnel.Fechava os olhos e construía um caminho virtual, por onde meu espírito e minhaalma tinham livre acesso à vida normal. Minha mente ia junto. Se você fechar osolhos

agora, colocar uma música, ficar sozinho, você pode entrar no meu mundo eviajar na minha história, na minha vida. Você pode até ser uma personagem domeu livro.Você pode entrar na minha escola, matricular-se e pronto.Daqui a pouco soa a música para o recreio e você estará se encontrandocomigo, com a Helda, o cidadão de Curitiba... todo mundo. Como é o seu nome?Seja bem-vindo! Seja bem-vindo à nossa tribo. Ok! Acabou a viagem. Umsolavanco me trouxe à realidade. Estávamos entrando na fazenda das meninas.Trabalheiduro até a hora do almoço. O microônibus voltava para nos levar até o refeitório,quando, de repente...As meninas estavam caminhando para seus apartamentos. Não podíamos tercontato naquele momento, mas meus olhos chegaram antes de mim. Cor dejambo, cabelos negrosaté a cintura, olhos negros, sorriso puro. Nunca vou me esquecer daquela boca,daquele par de olhos.Corpo escultural, jeito de menina. Laila. Nascida na fronteira de Manaus,Amazonas. Uau! O tornado voltou a varrer meu coração tão ferido, tão doído,tão sozinho. De novo aquele calafrio. Foi tudo fotografado. Eu tinha um amigo que dividiacomigo as conquistas e os fracassos. Chamava-se Egmar. Olhei para ele edisse: - Prestaatenção, cara! Ta vendo aquela figura entrando no alojamento? Vou me casarcom ela.Agora, enquanto escrevo para você, ela está no quarto dormindo. É a mulherdos meus sonhos e das minhas realidades.Muitas coisas aconteceram nesses anos. Voltei à minha cidade, reencontreiquase todo mundo, fiquei livre da minha pena, reconstruí minha vida e ajudeimeus paisa reescreverem o capítulo de tragédias que deixei. Tenho três filhos Filippe, Lailie Larissa pelos quais sou eternamente apaixonado. Acredito que essa marcatãoprofunda que tive na minha história não poderia parar em mim. Hoje, meu filho eminha esposa desenvolvem um projeto chamado Escola sem Drogas, que temcompartilhadoum pouco da nossa história para a orientação e prevenção ao uso de drogas.Se me dissessem que, se eu gritasse salvaria pessoas desse mundo horrívelque vivi, eu gritaria, mas como sei que isso não é possível e que certamentevocê não meescutaria, eu escrevi.Obrigado por ter escutado a minha voz!Valeu, cara."Passarinho"Missão impossívelOlá! Chamo-me Filippe Maffra e dirijo, hoje, o Projeto Escola sem Drogas.Nesses anos, como diretor, tenho viajado por muitas cidades, levando umprograma de prevençãopara a família e para a escola. Vejo-me como um soldado que tem um único

objetivo em sua vida, o de cumprir sua missão. Vejo o Projeto Escola semDrogas como uma forma de retribuir o bem que aconteceu na vida do meu pai. Minha missão serealiza agora, quando suas mãos tocam este livro e seus olhos correm por seusúltimos parágrafos.Em cada encontro, ouço histórias diferentes que só me fazem ter a certeza deque construir um projeto de prevenção com essa obra foi uma das coisas maisgra-tificantes da minha vida. Ao ouvir inúmeras experiências singulares, que cada leitor temao ter contato com a história, ficosurpreendido de como um "pequeno livro" tem o imenso poder de ajudarpessoas.Uma pergunta que me faço é: Por que meus pais não morreram? Tem muitagente que morre por muito menos, mas eles não. Por quê?A única resposta que encontrei nesses anos todos foi: "VOCÊ" ou por causa devocê. Seria egoísta se não compartilhasse a história dos meus pais, sabendoque ela, em sua profundidade, tem sido muito útil para salvação de vidas do problemachamado "dependência química", no qual dedico minha vida em seu combate.VOCÊ faz ter sentido todos os dias que saio de minha casa com minha esposapara fazer mais um encontro. E, em cada encontro, conhecer VOCÊ é o que memotiva a nunca parar de desenvolver esse projeto, essa missão, que descobri que não eraimpossível quando fui à primeira escola falar com professores, alunos e paissobre o poder de salvar vidas e reescrever histórias através da prevenção.Agradeço aos meus pais por emprestarem sua história para que um projeto tãolindo nascesse, fazendo com que VOCÊ não limite o seu "tempo de vida", pois,quem vivemais, ama mais e vence mais. Jogo nesse time!Mas esse não é o final, quero lhe chamar atenção para a emocionante trajetóriade uma aluna de apenas treze anos que, ao ser atraída por uma paixãoestudantil, malsabia que dali nasceria uma paixão "irresistível" pelas drogas, levando-apercorrer caminhos de dor, vergonha e tragédias jamais imagináveis. Essa é ahistória daminha mãe, que está relatada no nosso segundo livro "Droga DisfarceIrresistível". Você não pode ficar sem ler!Vou aonde este livro chega. Isso quer dizer que, em breve, estaremos juntos.Vou aí, em sua escola, conhecê-lo, conhecer sua tribo e terminar essa históriacom VOCÊ.Até nosso encontro.Missão cumprida.Filippe Maffra TEste livro é baseado em fatos reais.O que uma família de classe média alta poderia esperar de um filho bem criadoe amado?

Surpreendendo sua resposta, ele foi tragado pela sedução das drogas noconvívio com outros numa escola.Mergulhou a sua vida e a de sua família no mais profundo abismo de dor etragédia.- Do consumo ao tráfico. - Da escola à prisão.A história que fará você rever a sua vida.Ele ressuscitou do túmulo das drogas e volta, dessa vez, do outro lado.A incrível história de Passarinho e seus amigos no palco do recreio de umaescola.