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LIVROS DE IMAGEM NA LITERATURA INFANTIL BRASILEIRA UM ESTUDO DE CENÁRIOS 1 Rosa Maria Hessel Silveira, UFRGS Maria Helena Hessel, Fundação Paleontológica Phoenix Lana Luiza Maia Feitosa Sales, UFC 1. Introdução A literatura infantil se constitui num espaço que reflete valores culturais e estéticos de uma determinada sociedade, assim como numa instância para a experimentação e a subversão de expectativas estabelecidas. Esta dupla dimensão também se relaciona à questão do diálogo entre texto verbal e imagem nessa literatura. Assim, no panorama dos livros para crianças, conforme nos relata Ramos (2011, p.49), “a conversa entre texto e imagem (...) percorre uma longa tradição”, desde a obra de Comenius, no século XVII, em que o chamado pai da pedagogia moderna privilegiava as imagens como uma forma fácil de aprendizagem pelas crianças. Mas, por séculos e também em função das condições técnicas de produção e reprodutibilidade de imagens, as ilustrações nos livros para crianças tiveram como função apenas acompanhar e ornar o texto escrito, ao qual sempre era reservado o lugar de mais importância. Entretanto, a crescente invasão da imagem nos produtos culturais das últimas décadas, através da expansão da TV, do cinema, da internet, e da evolução dos aparatos de produção gráfica, repercutiu na literatura infantil, até porque se tornou necessário considerar os novos destinatários, habitantes de um mundo midiatizado. Como lembra Coelho (2016, p.41-42), nas últimas décadas, “narrativas complexas surgem da interação e do confronto de linguagens, especialmente entre palavra e imagem, propondo novas possibilidades de leituras, exigindo do leitor habilidades que vão além da compreensão linear tradicional.” Assim, o próprio objeto livro se complexificou, passando as editoras a investir no projeto gráfico 1 O presente estudo foi elaborado no contexto do projeto de pesquisa “Percursos e representações da infância em livros para crianças um estudo de obras e de leituras” (2015-2018), desenvolvido no grupo de pesquisa do Núcleo de Estudos sobre Currículo, Cultura e Sociedade (NECSSO) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). O estudo é apoiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq, e envolve pesquisadores de várias universidades.

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LIVROS DE IMAGEM NA LITERATURA INFANTIL BRASILEIRA –

UM ESTUDO DE CENÁRIOS1

Rosa Maria Hessel Silveira, UFRGS

Maria Helena Hessel, Fundação Paleontológica Phoenix

Lana Luiza Maia Feitosa Sales, UFC

1. Introdução

A literatura infantil se constitui num espaço que reflete valores culturais e estéticos

de uma determinada sociedade, assim como numa instância para a experimentação e a

subversão de expectativas estabelecidas. Esta dupla dimensão também se relaciona à

questão do diálogo entre texto verbal e imagem nessa literatura. Assim, no panorama dos

livros para crianças, conforme nos relata Ramos (2011, p.49), “a conversa entre texto e

imagem (...) percorre uma longa tradição”, desde a obra de Comenius, no século XVII,

em que o chamado pai da pedagogia moderna privilegiava as imagens como uma forma

fácil de aprendizagem pelas crianças. Mas, por séculos e também em função das

condições técnicas de produção e reprodutibilidade de imagens, as ilustrações nos livros

para crianças tiveram como função apenas acompanhar e ornar o texto escrito, ao qual

sempre era reservado o lugar de mais importância. Entretanto, a crescente invasão da

imagem nos produtos culturais das últimas décadas, através da expansão da TV, do

cinema, da internet, e da evolução dos aparatos de produção gráfica, repercutiu na

literatura infantil, até porque se tornou necessário considerar os novos destinatários,

habitantes de um mundo midiatizado. Como lembra Coelho (2016, p.41-42), nas últimas

décadas, “narrativas complexas surgem da interação e do confronto de linguagens,

especialmente entre palavra e imagem, propondo novas possibilidades de leituras,

exigindo do leitor habilidades que vão além da compreensão linear tradicional.” Assim,

o próprio objeto livro se complexificou, passando as editoras a investir no projeto gráfico

1 O presente estudo foi elaborado no contexto do projeto de pesquisa “Percursos e representações da

infância em livros para crianças – um estudo de obras e de leituras” (2015-2018), desenvolvido no grupo

de pesquisa do Núcleo de Estudos sobre Currículo, Cultura e Sociedade (NECSSO) da Universidade

Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). O estudo é apoiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento

Científico e Tecnológico - CNPq, e envolve pesquisadores de várias universidades.

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global das obras e deixando de considerá-las apenas como meras histórias a serem

impressas e, de forma acessória, ilustradas.

É dentro deste panorama mais geral, de crescente privilegiamento às imagens no

campo da literatura para crianças, que se situa o presente trabalho, o qual coloca em

articulação a produção – bastante recente – de livros apenas de imagens (sem texto verbal)

e o estudo dos cenários representados nessas imagens. Dessas duas dimensões, trataremos

brevemente na próxima seção.

2. Livros de imagem e cenários – alguns apontamentos

Desde as pinturas rupestres, o ser humano registra e expressa seus pensamentos,

emoções, ações e acontecimentos através da produção de imagens em diferentes suportes.

Técnicas e convenções diversas, funções variadas, estilos múltiplos atravessaram as

representações pictóricas dos grupos humanos. Entretanto, com o surgimento da

imprensa, que possibilitou a popularização da escrita e da leitura, a linguagem verbal é

que ocupou o lugar de honra nos livros (em detrimento da imagem), concebida aquela

como mais sofisticada, complexa e adequada para comunicação nos diversos campos de

conhecimento. Mas, como Castanha (2008, p.141) acentua, em sua abordagem da

linguagem visual no livro de imagem, “utilizar a imagem como instrumento de linguagem

foi – e ainda é – crucial para todos os grupos culturais”.

Como acima mencionado, embora tenha havido, desde as primeiras edições

europeias de livros para crianças, alguma preocupação com a ilustração, só muito

recentemente é que ela assumiu um papel de importância paralela (ou quase) à palavra

escrita na literatura infantil. E foi dentro dessa tendência de sua crescente priorização, que

surgiram os livros de imagem, primordialmente voltados para crianças (embora os haja

também para adultos).

De acordo com Patricia Cianciolo (1997), apud Kirchof, Bonin e Silveira (2014,

p.51), os livros de imagem “constituem um gênero muito específico em relação a qualquer

outro tipo de produção literária”, uma vez que veiculam suas mensagens “através de

imagens ou de imagens mescladas a breves textos com funções específicas”. Já

Cademartori (s/d, p.3) define-os como livros com texto visual, no qual se articulam dois

conjuntos de elementos:

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O conjunto dos elementos plásticos – como a linha, a cor, a forma, a luz, a sombra,

o enquadramento – consiste no modo de expressão da representação artística. O

conjunto de elementos narrativos – aqueles que, transpostos para a linguagem

verbal, podem descrever uma cena ou um personagem, podem narrar uma história

ou várias – constitui o que as imagens representam.

Neste breve apanhado sobre livros de imagem – ou livros visuais, como os nomeia

Ramos (2011, p.105) – alguns dados ainda podem ser recuperados. Assim, há certo

consenso sobre a obra inaugural desta vertente (ou “obra modelar do gênero”, cf.

Zilberman (2005, p.126)) na literatura infantil brasileira: “Ida e Volta”, de Juarez

Machado, publicado em 1975. Zilberman ainda cita como importante autora destes não

tão recuados primórdios (afinal, estamos falando de cerca de 40 anos!), Ângela Lago,

com obras publicadas já no início dos anos 80, como a premiada “Cena de rua” de 1984,

e Eva Furnari, outra prolífica e talentosa autora de literatura infantil, que tem

enriquecido com constância esta produção, desde a década de 80, produzindo narrativas

de imagens com personagens constantes, como a bruxinha atrapalhada, que transitam

de um a outro livro. Assim, embora se trate de uma categoria relativamente recente no

universo literário, ela tem se expandido e veio para ficar, como o atestam ainda alguns

dados.

Neste sentido, conforme Castanha informa (2008, p.155), a Fundação Nacional

do Livro Infantil e Juvenil desde 1981 passou a incluir livros sem texto em suas

categorias de premiação anual, o que se mantém até hoje. Por outro lado o Programa

Nacional Biblioteca na Escola (PNBE), que, com regularidade até o ano de 2015 vinha

selecionando, adquirindo e distribuindo acervos de obras literárias para todas as escolas

públicas do Brasil, mantém uma categorização de livros a serem inscritos em três

grupos: textos em verso, textos em prosa, livros de imagens e histórias em quadrinhos.

Ou seja: os livros apenas de imagens já estão presentes nas bibliotecas de todas as

escolas públicas brasileiras há cerca de uma década e, de certa forma, tem havido um

incentivo governamental à sua produção.

Tais fatos, entretanto, não podem nos fazer esquecer a existência de uma certa

desconfiança dos leitores (e dos mediadores – professores e bibliotecários) em relação

a livros de imagens nos espaços escolares. Eles são com mais naturalidade aceitos na

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educação infantil, entendida como uma etapa em que as crianças, por não terem domínio

do código escrito, teriam o acesso ao objeto livro facilitado pela utilização exclusiva da

imagem, tida como mais “direta” e “simples”. Já os livros de imagens cujos destinatários

não sejam crianças pequenas, por sua complexidade narrativa e multiplicidade de

referências, não parecem circular com desenvoltura no espaço escolar.

Neste trabalho, nosso interesse pelos livros de imagens se entrecruza com o estudo

sobre ‘cenários’ na literatura infantil que a autora norteamericana Rebecca Lukens

insere em sua obra “Critical Handbook of Children’s Literature’ (1994). Incorporando

elementos dos estudos da crítica literária e dos estudos sobre narrativa, Lukens (1994,

p.111) define cenário, na literatura, como o conjunto dos elementos de tempo e espaço

nos quais se desenrola o enredo e se situam os personagens. A autora observa que as

possibilidades para exploração dos cenários na literatura são muito amplas,

considerando desde os tempos imemoriais ao futuro ficcional, do globo terrestre ao

universo celeste, do mundo microscópico ao visível, sem esquecer o extenso mundo do

imaginário.

Um breve recorrido sobre a abordagem do espaço (um dos componentes do

cenário de Lukens) nas análises narrativas nos mostra modos de sua análise, como a

verificação, conforme Reuter (2007, p.52) aponta, da “importância funcional dos

lugares: simples moldura, elemento determinante em diferentes momentos do

desenrolar da história, até mesmo para as personagens constantes”. Ou seja: nas obras

literárias, por vezes o cenário tem grande importância para o desenvolvimento da trama

e a compreensão da construção das protagonistas, interferindo e refletindo em ambos,

podendo ainda caracterizar o fluxo temporal decorrido; em outras obras, o cenário é

secundário e, quase, dispensado. Assim, Lukens (1994) propõe a identificação de dois

tipos básicos de cenário na literatura: cenário “integral” (integral setting), que possui

um papel importante no enredo, já que os personagens se comportariam de determinado

modo, dadas as circunstâncias locais e temporais; e cenário pano de fundo (backdrop

setting), quando, a exemplo do pano de fundo do teatro, ele é pouco relevante para o

desenvolvimento da trama.

A análise de Lukens se baseia, sobretudo, no texto verbal – nas descrições, em seu

desenvolvimento, em sua escassez ou inexistência. Através da análise de várias obras da

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literatura infantil, a analista busca demonstrar a funcionalidade (ou não) das referências

ao cenário em sua articulação com a trama, apontando que tal uso nem sempre é plausível,

ocorrendo casos em que a descrição parece gratuita, já que as ações independem

totalmente do ambiente onde ocorrem, por exemplo.

Naturalmente, a importância da apresentação do cenário depende dos objetivos do

autor, pois é ele que determina o caráter da história e, portanto, a necessidade de uma

maior ou menor exploração do mesmo. Em livros onde o foco sejam conflitos internos,

exploração de sentimentos, atitudes e emoções ou, mesmo, naqueles em que a ação seja

central mas independente de circunstâncias específicas, saber quando e onde se desenrola

a história pode ser pouco importante, ocorrendo então a menção a cenários como panos

de fundo (Lukens, 1994, p.112-113). A autora cita como livros infantis onde os cenários

são panos de fundo, tanto a obra de apresentação da heroína Pippi Meialonga, da autora

sueca Astrid Lindgren, quanto Winnie-the-Pooh (O ursinho Puff, em português), livro

originalmente escrito pelo inglês Alan Alexander Milne. Conforme a autora observa,

nesses (e em outros casos) o cenário é generalizado e universal e não chega a influir no

personagem e no enredo de forma significativa.

Em contrapartida, em enredos de ação, comumente os locais e personagens são

coparticipantes e o tempo é bem marcado, oferecendo dinamismo aos acontecimentos.

Neste caso, o cenário integral aparece com destaque.

Especificamente nos livros de imagens destinados a crianças menores, caracterizar

cenários pode ser um desafio, pois sons, cheiros, sensações tácteis etc., que podem ser

referidos através de palavras no texto escrito, precisam se transformar em imagens. Para

tornar vívidos os cenários através de imagens, o ilustrador pode utilizar jogos de luz, de

cores e de formas para acentuar a expressão das cenas descritas (VAN DER LINDEN,

2011 p.105). Há várias “gramáticas” e códigos gráficos e icônicos dos elementos da

imagem – cores, luz, linhas etc., e, neste contexto, de modo geral, o escuro sinalizaria o

perigo, o mistério ou o desconhecido, e o claro incorporaria uma alegoria à felicidade, à

paz e à segurança (BATTUT & BENSIMHON, 2006). Segundo os mesmos autores, a

ilustração em preto e branco traduziria a racionalidade, e o colorido refletiria emoções e

sentimentos, enquanto molduras auxiliariam a delimitar o campo de ação. De modo

similar, as formas representadas por linhas retas e ângulos agudos indicariam escolhas

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racionais; linhas curvas e contatos suaves representariam sentimentos e espiritualidade.

Importante também observar como os livros de imagens trabalham com a progressão, já

que ela é um dos constituintes da narrativa. Van der Linden observa que, « ao ligar, por

meio da leitura, uma imagem à seguinte, o leitor as inscreve dentro de uma continuidade

(...) imaginando o que ocorre entre as duas, ele preenche o lapso temporal. » (2011,

p.107). Enfim, são vários os recursos de que autores de livros de imagens se valem e têm

em mente ao elaborarem suas narrativas e, nelas, privilegiarem ou não os cenários das

tramas.

3. Objetivos do estudo e metodologia

Dentro dos limites deste estudo, que constitui uma primeira aproximação ao tema,

colocamos como objetivo analisar, com base principalmente em Lukens (1994), os

cenários presentes em narrativas de livros de imagem da literatura infantil de autores

brasileiros, mapeando algumas de suas características. Neste sentido, entendemos que

esta análise pode contribuir para uma leitura e um trabalho mais produtivo com tais obras.

A partir de um exame preliminar de pouco mais de 50 livros de imagens de autores

brasileiros de um acervo temático pessoal (publicados de 1987 a 2015), selecionamos oito

deles para a análise do presente estudo, procurando atender aos seguintes critérios: obras

de diferentes autores, mas todos com uma produção consistente e reconhecida no campo

da literatura infantil brasileira; obras com 1ª edição tanto no século passado (1991-1997),

quanto no presente século (2003-2012); obras com nível de complexidade de narrativas e

referências culturais que as pudesse situar como destinadas às crianças e, por fim, obras

com um único autor. Por fim, dentro do objetivo de efetuar um estudo de certa forma

exploratório da aplicabilidade da proposta de Lukens quanto a cenário para livros de

imagens, escolhemos obras que pudessem exemplificar os tipos de cenários referidos pela

autora, procurando analisar sua efetividade.

4. Análise dos cenários

Os dois tipos básicos de cenários propostos por Lukens (1994) podem ser

encontrados em livros de imagens do universo investigado. Observe-se que, na medida

em que nos apropriamos de um conceito construído sobre o texto verbal, foi necessário

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operacionalizá-lo para a análise dos livros de imagem. Para tanto, consideramos como

cenário – em livros de imagens – o conjunto de elementos plásticos representados na

ilustração que excedam a representação dos personagens e de suas ações.

Em uma primeira aproximação ao conjunto mais global de livros, verificamos que

cenários integrais, que desempenham função relevante no conflito, integrando o fio

narrativo e criando, por vezes, histórias paralelas, compõem a maioria das obras

manuseadas. Neles, os cenários acompanham, ampliam e sublinham as ações, mesmo que

tragam poucos detalhes. Em geral, dão eco às muitas ações dos protagonistas na trama a

ser desvendada. Efetivamente, isto se relaciona também com as temáticas preferenciais

dos livros de imagens brasileiros, frequentemente focalizados em histórias do cotidiano.

Uma das obras que exemplificam a utilização de cenários integrais é Leonardo,

do ilustrador mineiro Nelson Cruz, livro que recebeu o prêmio Octogone (Literatura de

Transgressão) de 1997 do Centre International d’Études en Literature de Jeunesse (Paris)

e o Prêmio Luís Jardim de 1998 (Melhor Livro de Imagens) pela FNLIJ. Trata-se de um

livro de imagens com bastante complexidade e inúmeras referências culturais e

intertextuais. O título Leonardo faz menção a Leonardo da Vinci, e a narrativa tem como

protagonista justamente uma estátua do artista localizada em uma praça, que é fechada à

noite. É nesta ocasião – a noite - que animais dela se acercam, como gatos e pombos, que

tiram os pincéis de suas mãos, fazendo-a reviver episódios da vida do homenageado; já

ao amanhecer, quando a praça é reaberta, os pombos devolvem os pincéis à estátua e tudo

volta ao normal. As ilustrações, em nanquim e guache, emolduradas por linhas, em geral

são coloridas e cobrem toda a página. Entretanto, em seis páginas há quadrinhos em preto

e branco, detalhando e dinamizando a narrativa. O cenário marca dois diferentes tempos

(atual e renascentista) e locais (uma praça tipicamente brasileira, inspirada em uma praça

de Belo Horizonte, segundo o autor, e Florença, Milão), além de sugerir conexões do

trabalho de da Vinci que atravessam os tempos. Conforme Lacerda (2017), trata-se de

uma rica obra de “intertextualidade pictórica”.

Outro livro infantil de imagens que também pode ser considerado como tendo

cenários integrais é Branca, de autoria da pernambucana Rosinha Campos, editado em

2004. Entretanto, situa-se quase no outro extremo de um gradiente de complexidade

composicional, em relação a Leonardo, tendo como destinatários possivelmente crianças

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de menor idade. A temática focaliza o sonho de uma ovelha branca em tornar-se uma

nuvem. A protagonista observa pássaros brancos voando pelos céus e deseja estar onde

eles estão; realiza tentativas frustradas, como a de lançar mão de balões que murcham,

até que sobe a uma alta rocha e, possivelmente, dela se joga (esta é uma lacuna a ser

preenchida pelos leitores), se tornando uma nuvem lanuda do céu (o que possibilita tanto

uma leitura mais literal, quanto metafórica, de morte). As ilustrações são em tinta acrílica

sobre cartão colorido, sem moldura. O cenário, ainda que minimalista, localiza a

narrativa, dimensiona as alturas alcançadas a cada esforço de alcançar o céu e permite

relacionar o tempo sequencial dos eventos. A representação da personagem é tão pouco

variável, que, sem o cenário, seria quase impossível construir um enredo, já que os lugares

é que contextualizam a trama.

Quanto aos cenários considerados panos de fundo, relembre-se que quase não se

modificam ou que apenas traduzem um local indiferenciado de um tempo qualquer. A

ação ou o conflito íntimo da(s) personagem(ns) independe deles. Uma obra que bem

exemplifica a utilização de cenário tipo pano de fundo é Truks, de Eva Furnari, publicado

em 1992, que recebeu o Prêmio Luís Jardim de 1993 (Melhor Livro de Imagem) da

FNLIJ. A história traz as vicissitudes de um leão que entra em uma caixa numa sala onde

está uma bruxa, que faz truques e transforma este animal feroz e vivo, gradativa e

parcialmente, num dinossauro feroz, mas extinto, até que ele se transmuta de novo em

leão, mas agora, amigo. Há outra narrativa, paralela, de um pássaro caçando uma minhoca

e ambos acabam sendo transformados pela bruxa em duas borboletas amigas. As

ilustrações, emolduradas por um traço branco, são fotos de bonecos de massinha (biscuit)

à frente de um cenário constituído invariavelmente por duas faixas de cores neutras. O

livro, que retoma a personagem estereotípica de “bruxinha atrapalhada”, de Eva Furnari,

é bastante exemplar de sua obra, em que as ações, suas consequências imediatas –

externas (no ambiente) e internas (nos personagens) – ocupam o lugar de maior

importância, independendo de parâmetros de espaço e tempo.

Outro livro infantil – este, para crianças bem pequenas, dada a simplicidade das

situações - com o cenário como pano de fundo é Chico, da autora mineira Regina Coeli

Rennó, que veio a lume em 2012. Nas imagens, vê-se um menino pequeno com um

coelhinho branco de pelúcia, que parece estar numa praia (?) brincando com objetos de

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um cesto (ou baldinho com tampa?). Com o passar do tempo, o menino se cansa, boceja

e acaba dormindo abraçado no coelhinho, o qual, sem sucesso, ele tinha tentado colocar

anteriormente no cesto. As ilustrações, sem molduras e elaboradas eletronicamente,

trazem cenários com pouquíssimos elementos e que, mesmo mudando de cor, sempre

mostram uma base que poderia ser interpretada, no contexto, como areia, complementada

por um céu também de cores inusitadas, que poderia representar qualquer local do mundo.

Entretanto, fosse qualquer outro o pano de fundo, não mudaria o ponto central da narrativa

(temática do cotidiano bastante visitada nos livros infantis): enfim, o que trazemos

conosco e é conhecido (o coelhinho, no caso da criança), sempre nos traz conforto e

segurança.

Em menor número, encontram-se obras que misturam ambos os tipos de cenários,

naturalmente com diferentes propósitos do autor: onde a contextualização da ação é

importante na narrativa, há cenários integrais; onde são preponderantes reações,

pensamentos e sentimentos (que não exigem necessariamente ação) aparecem panos de

fundo. Assim, há livros que transformam panos de fundo em cenários integrais,

materializando a solução de conflitos internos dos personagens, como Do outro lado da

janela, do paulista Ricardo Azevedo, publicado em 1992. As imagens mostram

inicialmente um menino imóvel, de frente, num ambiente interno, ao redor do qual

começa a voar um pássaro branco; seus rodopios perturbam o menino, que, no começo, o

persegue, para, depois, decidir desenhar uma janela na parede, abrindo assim a

possibilidade de o pássaro voar livremente e, também, de ele próprio sair do espaço

interno da casa e, de certa forma, conhecer o mundo lá fora. As ilustrações, em caneta

hidrocor e guache, mostram um cenário emoldurado, um pano de fundo sempre igual

enquanto o menino observa o pássaro e pensa; na medida em que o protagonista decide

fazer algo (e o realiza), aparece o cenário integral, que, de certa forma, também tem um

caráter simbólico, de associação do caminho, das árvores, do céu, da pipa, da água, da

borboleta, das flores e da árvore, à liberdade e à vida. .

Em outras obras, ao inverso, as ilustrações passam de cenário integral para pano

de fundo, quando as ações conduzem a reflexões e conclusões sobre o ocorrido ou quando

se passa de uma representação mais realista à fantástica. Este é o caso do livro da autora

mineira Semíramis Paterno publicado em 2003: Dona Pina e Zé da Esquina. O tema

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central da trama é a modernização de uma casa e a consequência – inevitável - de que

tudo o que nela existisse de velho fosse “descartado”, inclusive a idosa que nela morava.

Linhas cinéticas pontilhadas indicam vários seres e objetos que teriam sido descartados,

como a velha senhora, o gato, objetos de estimação... Posta na rua, a senhora faz amizade

com um menino de rua, que vivia no bairro e observa o acontecido desde o início da

história. As ilustrações em guache e lápis de cor, sem moldura, trazem inicialmente

cenários integrais bastante detalhados que ocupam toda a superfície do papel, evocando

paisagens urbanas brasileiras; depois que tudo o que é velho é descartado, os cenários se

tornam menos completos e se transformam em panos de fundo branco, mostrando só os

personagens e objetos de apoio que servem para transmitir a ideia dos sentimentos. O

local onde se desenrola a narrativa, ao final, já não é importante, uma vez que a interação

entre as duas pessoas “excluídas” é que é enfatizada !

Por fim, há aqueles livros que trazem pano de fundo e cenário em situações

determinadas, com objetivos expressivos distintos. Assim se constitui o livro O melhor

nem sempre é o bom de Roberto Caldas, publicado em 1991. A narrativa traz a história

de um menino que, por possuir muitos brinquedos, se achava o “maioral” entre as crianças

de seu bairro – algo assim como o “dono da bola”; a trama se desenvolve através de várias

situações de brinquedo em grupo, em que as outras crianças não apreciam o

comportamento pouco solidário do protagonista e se unem com brincadeiras simples. Ao

final, o menino fica solitário em sua casa no meio de brinquedos sofisticados e troféus As

ilustrações, efetuadas com caneta hidrocor e lápis de cor, eventualmente trazem molduras.

Ainda que na maior parte da obra apareça tão somente um pano de fundo branco realçando

apenas as personagens crianças em ação, na primeira e na última página há o que se

poderia considerar como cenário integral, também em preto e branco e com personagens

coloridos. Estas páginas trazem elementos importantes para a contextualização das ações

e dos sentimentos do protagonista, ora de alegre expectativa, ora de tristeza inconformada.

Observe-se que outras duas páginas possuem pequenos quadros, cada um focando um dos

nove companheiros de folguedos em um cenário mais completo, destacando seus

prováveis ambientes caseiros e disposições.

Rabisco, um cachorro perfeito, criado por Michele Iacocca e publicado em 2008,

é um livro de imagens infantojuvenil que traz cenários como panos de fundo (quando, nas

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ações, há ênfase a trocas e interações independentes da situação) tanto nas páginas iniciais

e finais quanto em algumas páginas do miolo. Estes cenários panos de fundo se intercalam

com cenários integrais (quando há ação, busca), predominantes no enredo. Na obra, um

menino desenha vários cachorros e um deles ganha vida, buscando sua amizade, o que

não consegue, sendo rejeitado pelo menino. Numa técnica que lança mão de recursos de

HQ, vê-se o pequeno cão que sai pelas ruas, em busca de quem goste dele, vivendo muitas

situações de rechaço e perseguição; ao final só um mendigo o acolhe. Agora mais

confiante, o cãozinho procura um desenhista que desenhe para ele um cão de verdade.

Quando o consegue, leva o desenho ao seu criador (o menino), que assim o adota.

Efetuadas com lápis de cor preto, nanquim e aquarela, as ilustrações trazem inicialmente

panos de fundo brancos, que paulatinamente tornam-se coloridos, para logo após

transformarem-se em cenários integrais – detalhados e ricos, de cenas urbanas - e

finalmente, voltarem a ser panos de fundo. As figuras iniciam sem moldura para depois

as adquirirem, tornando-se paralelamente menores, até que formem quadrinhos que

conduzem a narrativa. Páginas com ilustrações de página inteira (com cenários integrais

ou panos de fundo, com ou sem moldura), de meia página, inclusas em figuras maiores

ou mesmo em quadrinhos se intercalam ao longo de toda a obra. Com este design

narrativo, este jogo de cenários e figuras emolduradas ou não, o autor enriquece a obra

com múltiplas possibilidades interpretativas.

5. Considerações finais

A partir deste pequeno exercício de análise de cenários em livros de imagens

brasileiros de diferentes autores, algumas considerações podem ser feitas. A variedade

das estratégias de criação-ilustração-produção das obras aqui brevemente analisadas no

que diz respeito aos cenários aponta para a produtividade de sua exploração na leitura.

Trata-se de dimensão que costuma receber pouco relevo no manuseio de tais livros, em

que a trama e os personagens capturam a nossa atenção. Neste sentido, parece evidente a

importância de o professor mediador estar atento para estes aspectos, considerando – em

especial - a sensibilidade das crianças contemporâneas para as imagens, acostumadas que

estão a detalhes e signos de um mundo midiático, que repousa em grande parte na

multiplicidade imagética. O reconhecimento dos tipos de cenários que dão corpo às

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ilustrações de livros infantojuvenis poderia nos levar a uma interpretação mais sensível

e polissêmica das narrativas, sugerindo questões para refletirmos sobre muitas dessas

obras com as crianças.

Por outro lado – embora tal aprofundamento fuja às possibilidades de espaço do

presente trabalho – uma fina análise dos cenários em livros de imagens pode trazer

contribuições ao entendimento de valores culturais e estéticos, assim como das

representações de infância que neles estão embutidas. De certa forma, pode-se perguntar

que “infâncias” estão neles representadas e como os cenários em que elas vêm inseridas

auxiliam (ou silenciam) neste delineamento – com seus brinquedos, sentimentos,

interações, imaginação, brincadeiras... Por outro lado, também se pode questionar que

imagem de criança leitora é delineada nestes livros, considerando as gramáticas de que

se valem, o cruzamento de fronteiras entre real e fantástico, a escolha de referências

culturais, que podem se tornar anacrônicas e/ou fugirem ao repertório das novas gerações.

Ou seja: os cenários de livros de imagens podem nos falar muito, ainda que sem palavras.

Livros analisados:

AZEVEDO, Ricardo. Do outro lado da janela. São Paulo: Moderna, 1992.

CALDAS, Roberto. O melhor nem sempre é o bom. São Paulo: Paulinas, 1991.

CAMPOS, Rosinha. Branca. São Paulo: Paulinas, 2004.

CRUZ, Nelson. Leonardo. São Paulo: Scipione, 1997.

FURNARI, Eva. Truks. São Paulo: Ática, 1992.

IACOCCA, Michele. Rabisco, um cachorro perfeito. São Paulo: Ática, 2008.

PATERNO, Semíramis. Dona Pina e Zé da Esquina. Juiz de Fora: Franco Editora, 2003.

RENNÓ, Regina Coeli. Chico. Belo Horizonte: A Semente, 2012.

Referências

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176p. 2006

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