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O último desenhista de humor 9 P Prefácio DaCosta A origem desse perfil é uma homenagem prestada a DaCosta em O Pasquim 21. Na edição de agosto de 2002, o texto editado por Zélio e assinado por Ziraldo afirma ser ele “o último desenhista de humor”. Fazer humor não é fácil. Desenhar humor então é só para quem sabe se equilibrar perfeitamente no arame. Se Ziraldo e os demais entrevistados por Camilla Mayra para a construção deste perfil não expressam dúvida de que Osvaldo é, de fato, um dos últimos remanescentes de uma estirpe representada por André François, Jean-Jacques Sempé, Ralph Steadman, Saul Steinberg e o próprio Ziraldo, só nos resta celebrarmos a amizade com o artista raro que, nessa época de egos exagerados, se mantém, a meu ver, irritantemente modesto. Antes de ser engraçado, Osvaldo é trágico. Qualquer situação perversa à sua volta o deixa prostrado e o paralisa. Às vezes, são longos os períodos nesse estado de espírito. De

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O último desenhista de humor

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PPrefácio

DaCosta

A origem desse perfil é uma homenagem prestada a DaCosta

em O Pasquim 21. Na edição de agosto de 2002, o texto

editado por Zélio e assinado por Ziraldo afirma ser ele “o

último desenhista de humor”. Fazer humor não é fácil.

Desenhar humor então é só para quem sabe se equilibrar

perfeitamente no arame.

Se Ziraldo e os demais entrevistados por Camilla

Mayra para a construção deste perfil não expressam dúvida

de que Osvaldo é, de fato, um dos últimos remanescentes de

uma estirpe representada por André François, Jean-Jacques

Sempé, Ralph Steadman, Saul Steinberg e o próprio Ziraldo,

só nos resta celebrarmos a amizade com o artista raro que,

nessa época de egos exagerados, se mantém, a meu ver,

irritantemente modesto.

Antes de ser engraçado, Osvaldo é trágico. Qualquer

situação perversa à sua volta o deixa prostrado e o paralisa.

Às vezes, são longos os períodos nesse estado de espírito. De

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alguns anos para cá, porém, os bons momentos têm

permanecido. Ainda bem. As conversas com ele são

desenhos no ar.

“Olha aqui.”

“O quê?”, pergunto.

“O meu olho... Não está caído?”

“É...”

“Tô ficando parecido com uma pintura do Picasso.”

Na rua, ele observa os tipos como se ilustrasse um

sketchbook:

“Essa mulher aí não parece que foi desenhada pelo

Crumb?”

“É mesmo!”

“Lá vem o Chuck Berry...”

“Cacete!”

Paramos na papelaria. Ele faz a moça do caixa rir um

pouco às minhas custas:

“Olha bem: ele não poderia estar na fila das gestantes

ou na da terceira idade?”

Na Universidade, em visita ao laboratório de

jornalismo, Osvaldo observa o aluno ao lado. O cara é alto,

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meio gordo, forte. Usa cavanhaque e óculos estilosos. Então,

ele diz:

“Esse aí é o gladiador Demetrius, mas o Demetrius

interpretado pelo Victor Mature!”

Ao perfil escrito pela Camilla só tenho a acrescentar

que conheço DaCosta desde 1982. Tive a rara oportunidade

de acompanhar a evolução da sua arte e, como jornalista, a

função de editá-lo nas redações pelas quais passamos. É

preciso dizer: trata-se de um trabalhador que deita e acorda

cedo; de um profissional que não para de estudar. Trata-se

também de um grande humorista. Trata-se, enfim, de um

verdadeiro artista.

Este perfil serve como introdução à sua obra.

Márcio Calafiori

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NNa feira e no quarto-estúdio

Todas às terças, Osvaldo da Silva Costa, o DaCosta, faz as

compras da semana na feira da rua Oswaldo Cruz, no

Boqueirão, a cinquenta metros de sua casa. À medida que vai

percorrendo as bancas, DaCosta pega, olha e examina com

cuidado frutas e legumes. Mesmo sabendo do que precisa,

fica na dúvida sobre quanto levar. Sem se dar conta da

confusão, ergue as sobrancelhas e pergunta a Miriam, dona

da barraca.

“Meia ou uma dúzia? A banana é para a minha mãe,

ela é quem gosta.”

Meia hora atrás, antes de sair de casa, ele escolheu na

área de serviço uma camiseta verde, estendida no varal. Na

indecisão, pergunta a dona Anália se a opção é a correta. Ela

examina e diz:

“Tá bom, Dô! Tá bem vestido.”

Da cozinha, Anália caminha com dificuldade até a sala

em busca da bolsa, em cima do sofá. DaCosta está prestes a

sair, já com a porta aberta. Está com pressa, afinal já passam

das dez da manhã. Dona Anália o chama. Ele volta para saber

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o que a mãe quer. Ela acaba de tirar da bolsa uma nota de

cinquenta reais. DaCosta recusa o dinheiro e pergunta:

“Dona Anália, vai querer linguiça de frango para o

almoço?”

“O quê? Vai comprar frangooooo?”

“N-ã-a-o-o-o. Linguiça de frango!”

Anália, de oitenta anos, custa a entender e arrisca

mais uma vez:

“Frangooooo?”

DaCosta enrijece um pouco o rosto e passa a mão no

carrinho de feira.

“Ela tem dificuldade de ouvir”, resmunga.

Os vendedores tentam atrair no grito a freguesia que

vai e vem pelos corredores movimentados e turbulentos da

feira. Vê-se de tudo — bicicleta com sinos no guidom,

cachorros acompanhados dos donos, até minicarros de som.

É uma mistura de ruídos. Não há quem não se divirta com

tanta confusão.

Hoje, vinte quatro de agosto, o sol resolve aparecer e

dar folga à chuva. Santos é uma das cidades mais quentes da

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região. Até os que gostam de calor não se arriscam e

procuram a sombra das barracas. DaCosta é um deles:

“Vem aqui para a sombra. Que calor”, reclama.

Ele consegue o melhor local da feira, uma barraca

com muita sombra. Ali, de jeito nenhum o sol o incomoda.

Fenômeno inesperado, já que no dia anterior a temperatura

estava por volta dos onze graus. Os vendedores aproveitam

o dia ensolarado para soltar os gritos que irão até o começo

da tarde. A competição é acirrada. Vale até ofertas

relâmpago, tudo para atrair o maior número de clientes. Os

feirantes formam um verdadeiro palco de humoristas. Eles

tentam arrancar a atenção de quem passa na frente das

barracas. Algumas piadas são manjadas:

“Moça bonita não paga, mas também não leva!”

Esse ambiente diverte DaCosta, que ri de tudo. De

repente, uma movimentação diferente atrai a sua atenção.

Ele larga o carrinho e sai, sem mais nem menos, para ver o

motivo da agitação. Aos poucos, os ruídos tomam a forma de

um grupo de pessoas travestidas de palhaços, e o som

começa a fazer sentido.

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“Hahahaha. Eu conheço isso. Estão fazendo

publicidade. Muito legal, porque esse tipo de publicidade

existe há séculos”, comenta.

O grupo de palhaços faz propaganda de um

restaurante.

DaCosta agora está escolhendo laranjas. Enrola o saco

plástico e o entrega ao barraqueiro para que o pese. Seis

laranjas, essa é a quantidade exata que tem na sacola.

Percebendo o meu jeito discreto, mas irônico, ele

imediatamente tira a sacola das mãos do feirante e

acrescenta mais meia dúzia de laranjas.

“Agora tá bom?”, pergunta, solicitando a minha

opinião sobre a quantidade de laranjas que deve levar para

casa.

Como um ritual, ele passeia por todas as barracas,

comprando um pouco em cada uma. Atrapalhado quanto às

ofertas, verifica se o alface condiz de fato com o preço. Para o

bom observador nada passa despercebido. DaCosta admira

as cores do fruteiro, de enorme variedade e contrastes.

Banana, laranja, maçã, melancia.

“Olha que imagem linda, essas cores são demais”, diz.

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Até que se lembra de algo inexistente na lista que fez

em casa:

“A batata. Preciso comprar a batata!”

Não demora a ouvir o feirante de cabelos grisalhos da

banca vizinha o chamar:

“Ei, corintiano, tem batata aqui também.”

DaCosta faz feira desde os catorze anos. Hoje, aos

cinquenta e quatro, continua fazendo. Responde ao chamado

do vendedor, com um sorriso de orelha a orelha. O fiel

cliente se dirige ao feirante também como corintiano. Quem

não o conhece, pensa que DaCosta é tímido e de poucas

palavras, mas não é assim.

“E o Corinthians, hein? Você viu o jogo domingo?”,

pergunta empolgado.

Entusiasmado, o homem passa a falar sobre a partida

de domingo quando o Corinthians ganhou de três a zero do

São Paulo pelo campeonato brasileiro. A loira da barraca ao

lado não resiste e interrompe a conversa:

“Ô, corintiano, vai querer manga hoje?”

DaCosta então olha a montanha de mangas verdes e

rosadas. E brinca:

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“Você é corintiana?”

Ela balança a cabeça, o gesto indicando não. O

vendedor ao lado a cutuca:

“Ei, o cliente sempre tem razão!”

DaCosta vai para a barraca da loira. Agora, presta

atenção às frutas. Os dedos vão apontando as melhores.

“Essa aqui... Não, não, essa aqui... Acho que essa está

mais bonita...”

E diz para mim:

“A dona Anália gosta de fazer musse de manga.”

Os ponteiros do relógio indicam cinco para o meio-

dia. Agora, os vendedores não gritam mais. DaCosta se

apressa em direção ao fim da feira, para comprar a linguiça

de frango, na barraca de frutos do mar. Pensa até em trocar o

frango pelo peixe fresco, só que dona Anália não gosta muito

de peixe. Paga quase dez reais pela linguiça. A barraca é a

última do corredor, próxima a sua casa. Ele enfia a mão no

bolso das bermudas. Felizmente para ele, o dinheiro rendeu.

Dos trinta reais que levou, fica ainda com dez.

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Em casa, a televisão está sintonizada no jornal A

Tribuna, com o volume mais alto que o normal. DaCosta

anuncia a sua chegada:

“Dona Anália!”

A mãe está na pia da cozinha lavando o arroz. Ao

ouvi-lo, ela se agarra às paredes para chegar à sala, com a

intenção de ajudá-lo com as sacolas e o carrinho de feira.

“Mãe, não precisa, pode deixar que eu faço.”

Ela teima:

“N-ã-a-o-o. Eu ajudo! O Dô não gosta que eu faça as

coisas.”

A mesa e a geladeira vão sendo ocupadas aos poucos

pelas frutas e demais produtos. Mesmo com dificuldade para

andar, dona Anália não costuma pedir ajuda. Uma

empregada a ajuda nas tarefas de casa três vezes por

semana.

“Não, mãe, não precisa ajudar. Eu guardo as frutas!”,

diz DaCosta. Mesmo tendo dificuldade de se locomover, dona

Anália é teimosa e não dá ouvidos ao que o filho pede.

“A banana vai para o fruteiro. E manga para a

geladeira”, diz ela.

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Dona Anália anda inclinada. Apoia os braços sobre as

paredes estreitas da sala e anda com dificuldade. Ao

ensaboar as escadas do prédio onde morava, na Pompeia, em

Santos, Anália perdeu o equilíbrio e caiu. Esse não foi o

primeiro tombo, embora o mais grave. Teve de passar por

uma cirurgia delicada. Depois disso, nunca mais voltou a

andar normal, sempre se apoiando a um andador, ou até

mesmo nas paredes. Na residência atual, a sala é colada à

cozinha. O ambiente abriga os mais variados momentos da

vida de Anália. Sentada sobre o sofá, estende os braços na

direção dos álbuns de fotografia.

“Esse aqui é um dos meus netos, filho do Dô.”

DaCosta tem dois filhos homens, Arthur, de 20 anos, e

Gustavo, de 18.. Enquanto Anália da Silva Costa apresenta a

família, os dedos acariciam os netos na imagem. São muitos

álbuns e ela faz questão de mostrar um por um. Parece sentir

falta de algo.

“Sinto saudades dele”, desabafa em voz baixa,

referindo-se a um dos retratos.

A sala acomoda duas mesas. Uma pequena e estreita,

onde geralmente as refeições são feitas, e a outra de vidro,

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que mais parece um porta-objeto do que propriamente uma

mesa. O sofá é forrado por um lençol branco e almofadas

floridas de tons alaranjados. Para chegar ao quarto, DaCosta

passa primeiro por um corredor, que dá passagem ao

dormitório da mãe e ao banheiro.

“O Dô mesmo arruma a cama dele. Não gosta que

mexam nas suas coisas”, diz Anália da sala.

O quarto está do jeito que deixou antes de sair para a

feira, com roupas jogadas ao chão, juntas ao canto da porta.

Só a cama está arrumada. Desde criança, DaCosta tem o

hábito de fazer a cama. A janela fechada que dá para o

quintal do prédio impõe um tom sombreado ao ambiente.

Nas paredes, quadros e cartuns dos mais variados tamanhos.

Na prateleira perpendicular à janela, livros de arte, literatura

e de ensaios. O móvel tem três divisórias, duas delas repletas

de autores como Charles Baudelaire, Edmund Wilson, Gay

Talese, Gustave Flaubert, Herman Lima, Jacob Burchardt,

Jack London, Jacques Legoff, Jared Diamond, Joe Colleman,

Manuel Bandeira, Marshall Berman, Marshall McLuhan,

Peter Gay, Philip Roth, Sérgio Buarque de Holanda; e estudos

sobre Aldemir Martins, Degas, Edward Hopper, Goya, John

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Constable, John Singer Sargent, Renoir, Robert

Rauschenberg, Van Gogh, Toulouse-Lautrec, Wesley Duke

Lee, William Turner; ensaios de arte de Ernest Fischer e

Rudolph Arnheim. Os livros estão misturados a vinis de rock

(Body Count, Grand Funk) e de Jimi Hendrix e,

principalmente, CDs e vinis de jazz: Charles Mingus, Chet

Baker, Doug Raney, Duke Ellington, Grant Green, Miles Davis,

Phil Upchurch, Wes Montgomery.

Se alguém lhe pede um livro emprestado, DaCosta

tem o hábito de encapá-lo com uma folha de papel sulfite. O

cuidado se deve à vergonha que passou aos dezesseis anos,

quando pegou emprestado de uma professora um livro

sobre arte. Ao devolvê-lo, a capa estava amassada. Ele jamais

se esquece da expressão descontente dela ao receber o livro

de volta. Foi então que fez a si mesmo a promessa de nunca

mais emprestar ou pegar um livro emprestado de alguém

sem antes protegê-lo com uma capa provisória.

A estante abriga também troféus ganhos em salões de

humor. Entre o computador e a estante, num vão de trinta

centímetros, fica um dos instrumentos mais queridos de sua

vida — uma guitarra Giannini Stratocaster, modelo

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Stratosonic, similar a Fender Stratocaster, usada por Jimi

Hendrix. DaCosta se dedica ao instrumento por influência do

seu maior ídolo, cuja admiração cultiva desde os doze anos

de idade. Conheceu Jimi Hendrix por intermédio do irmão

mais velho, José Luis Costa, que é engenheiro de som. Na

época, este trabalhava em um estúdio de gravação na Galeria

Califórnia, no Centro de São Paulo, o ImageSom. Pelo menos

duas vezes por semana levava o almoço para o irmão. Nessas

ocasiões, usava a linha de ônibus Cidade Vargas —

Anhangabaú.

“O ônibus levava uma hora e meia até o Anhangabaú,

passando pelo Ibirapuera. Aquilo era uma verdadeira

diversão para mim, pois eu me distraia muito durante o

trajeto, ia observando os tipos e a cidade. Naquela época, São

Paulo ainda não tinha metrô”, relembra DaCosta.

Assim que chegava ao estúdio, ouvia o irmão pondo

os discos importados de Hendrix — “Are You Experience”;

“Axis: Bold as Love” e “Eletric Ladyland”. O irmão José Luiz

ajudou-o no interesse pela música. Sempre que dava, levava

fitas de rock do estúdio para casa porque sabia que DaCosta

iria se ligar naquilo.

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Enquanto as irmãs Joselita e Maria da Penha

assistiam na TV aos programas da Jovem Guarda

comandados por Roberto Carlos, DaCosta ficava ligado no

som das guitarras. Quando soube que o adorado Jimi

morrera sufocado com o próprio vômito, em setembro de

1970, ele estava na Rua Barão de Itapetininga, esquina com a

Rua Dom José de Barros, no Centro de São Paulo. Leu a

notícia no Jornal da Tarde. O jornal estava aberto, exposto

numa banca, com uma foto e o título: “Morreu o gênio da

guitarra, Jimi Hendrix”. Ele ficou semanas inteiras ouvindo

Hendrix, muito triste.

Na parte de baixo da estante, mais discos e CDs

voltam a se entrosar. Um canto da estante dá espaço à

televisão de vinte polegadas, dificilmente ligada. Sentado

sobre a cadeira de rodinhas, DaCosta centraliza as ideias e

puxa o papel em cima da prancheta, que é fixada à mesa. Por

dia, são horas e horas dedicadas à arte, principalmente

ilustrações e aquarelas. As mãos leves imprimem à atividade

um tom de hobby mais do que trabalho. Mas é trabalho. Os

pincéis finos e grossos se perdem na variedade de tintas à

sua frente.

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DaCosta não consegue ficar mais que sete horas na

cama. Geralmente, dorme e acorda cedo. Nesta manhã de

terça-feira, ele levantou às seis e meia e fez exercícios na

academia da Universidade Santa Cecília. Costuma ficar em

casa mais tempo do que o normal, já que o quarto serve

também como estúdio. Muitas vezes a decisão para um

desenho vem de algum sonho. Ou então de uma notícia. As

paredes brancas dão ao quarto-estúdio leveza e

tranquilidade, sensação aprimorada pelos desenhos de

humor e personagens que ele próprio criou e mandou

enquadrar. Como o quadro que fica ao lado da cama: um

homem de traços largos, com a cabeça pequena, subindo

uma longa escada que dá a lugar nenhum.

Assim que chega da feira, DaCosta puxa a cadeira e

pega o papel em cima dos cadernos gráficos. Aos poucos, o

rabisco no meio da folha dá vida a um jogador de dez pernas.

E suas pernas de lacraia conduzem a bola ao gol. Parece o

Pelé. Ele molha o pincel na aquarela preta e faz pontinhos

numa área amarela. Em um segundo os pontos se

transformam em pequenos rostos, uma multidão de

torcedores.

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“Recebi o convite para fazer uma homenagem ao Pelé.

Fiz sem saber o que fazer, a inspiração vem assim, sem mais

nem menos”, diz.

A tarde passou rápido. Grudado nos cadernos

gráficos, DaCosta nem percebe a chegada do entardecer. Às

dezessete horas do dia vinte e quatro de agosto ele está

apressado, olha o relógio, puxa a gaveta da cômoda e tira

uma camisa branca. A pressa é para chegar a tempo à

Pinacoteca Benedicto Calixto, que fica a quatro quadras de

sua casa. Quinze minutos depois está lá. A massa de ar

quente dá lugar à frente fria. O tempo começa a virar e o

vento começa. A pinacoteca ainda está vazia, só os

funcionários organizam os detalhes que ainda faltam para a

exposição “Professores Artistas”, do curso de Artes da

Universidade Santa Cecília.

DaCosta entra ansioso procurando pelos cinco

trabalhos que preparou especialmente para o evento. As

obras são calcadas em Robert Rauschenberg. A trilha sonora

que imaginou para a leitura das telas estão nos discos

“Pithecanthropus Erectus” e “Ah Um”, ambos de Charles

Mingus. Assim que chega ao salão principal, uma repórter

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está entrevistando um professor que fará parte da

exposição. Impaciente, DaCosta anda de um lado para o

outro, esperando pelo término da entrevista. Ele pergunta as

horas de um em um minuto. Enquanto isso, para tentar se

distrair, olha um álbum de fotos. Mesmo assim, não

consegue se concentrar. Já passam das dezoito horas e a

gravação está ocorrendo bem em frente aos seus quadros e

ele quer vê-los de perto. DaCosta precisa estar na Unisanta

às dezenove horas, a fim de assinar o ponto. Ele dá aulas de

produção digital e representação gráfica — tipografia e

criatividade — nos cursos de Artes, Publicidade e

Propaganda e Produção Multimídia. Ele volta ao salão, mas a

entrevista ainda rola. Assim que esta termina, ele não se

controla e imediatamente passa por baixo da fita amarela

que indica que é proibido entrar naquele espaço. Põe as

mãos sobre os quadros e os muda de posição. Para, analisa e

muda tudo de novo.

“Pronto. Tá bom? Agora tá bom, não é?”, pergunta.

Dá outra olhada e pede outra opinião. Agora, ele está

mais tranquilo. Já consegue ser espontâneo e conversar. O

salão da Pinacoteca Benedicto Calixto está iluminado. A

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exposição será aberta no dia seguinte. DaCosta consulta o

relógio. São dezoito e trinta. Está na hora de voltar para casa.

Antes, porém, precisa ir à padaria. Faz isso todos os dias.

Para me fazer companhia, ele desce pela Rua Osvaldo Cruz.

Na esquina seguinte para e se despede:

“Vou ao Carrefour comprar pão. Vá lá em casa tomar

café. A dona Anália e a minha irmã estão lá, te esperando.”

A mãe e a irmã me recebem. Elas perguntam pelo Dô,

apelido de infância. A irmã Penha é exatamente um ano mais

nova que ele:

“E o Dô, Adriana?”, pergunta.

Ela me chama de Adriana desde a primeira vez que

me viu. No início, tentei corrigi-la, mas depois me dispus a

aceitar ser chamada de Adriana mesmo, já que não adiantava

eu dizer que me chamava Camilla.

“Ele foi comprar pão...”, respondi.

Penha ironiza:

“No Carrefour...?”

“Sim”, respondo.

Ela então diz:

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“O Dô vai sempre ao Carrefour em busca do menor

preço. Se a gente gosta de Nescau, ele compra achocolatado

Carrefour, que é mais barato. Esses dias a minha mãe pediu

que ele fosse à padaria aqui perto comprar um quilo de

açúcar. Ele preferiu ir comprar no Carrefour, para

economizar quantos centavos mesmo?”

Penha é a irmã do meio, das três mulheres. É a mais

ligada a DaCosta:

“De jeito nenhum ele foi comprar o açúcar na padaria.

Eu falei: ‘Menino, mas o açúcar é um real e pouco. Sabe qual

vai ser a diferença do supermercado? Trinta ou cinquenta

centavos’. Não adiantou. Ele foi ao Carrefour comprar um

quilo de açúcar, é incrível.”

Dona Anália não dá ouvidos à crítica. Ela defende o

filho:

“Penha, ele comprou dois quilos de açúcar, e não um...

Ele está gastando com o mestrado. Precisa economizar.”

Na casa de DaCosta as despesas são divididas com a

mãe. Ele foi morar com ela desde que se divorciou da

primeira mulher, em 2003. Anália é encarregada de pagar o

aluguel de setecentos reais pelo apartamento de três quartos

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e ele cobre os outros gastos da casa, como as contas de luz,

água, telefone e as compras do mês.

Vinte e cinco de agosto. É o dia da abertura da

exposição. Às dezenove e trinta, a Pinacoteca Benedicto

Calixto começa a encher. Todos se cumprimentam. O

garçom, um homem de cabelos escorridos penteados para

trás e de colete preto, circula por todo o salão. Carrega

bandejas repletas de taças de refrigerantes, sucos e

champanhe. Do lado direito, a garçonete desfila com os

salgados. Parada no meio do salão, Penha estende as mãos

toda a vez que cruza com alguma bandeja. O mesmo faz a

prima dela, Ana, que em vez de champanhe prefere sucos. No

final do corredor, DaCosta e a namorada Natália tiram fotos

com os amigos e professores Alexandre Barbosa, o Bar, e

Márcia Okida. Ele acaba de chegar da Universidade São

Caetano do Sul, onde faz mestrado. Hoje, DaCosta está mais

agitado que o comum. Faz algumas piadas, mas está

impaciente. Poucos conseguem notar essa agitação. A tensão

no rosto revela rugas abertas em leques. É o mais assediado

da exposição. Todos estão surpresos com os trabalhos

apresentados por ele.

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“Está de parabéns”, cumprimenta-o uma artista

plástica, ao tapear de leve suas costas.

Sem palavras, DaCosta acena com a cabeça indicando

agradecimento. Ao mesmo tempo em que conversa com os

colegas, segura firme as mãos da namorada e desce o

corredor encolhendo-se para não esbarrar em alguém. O

corredor da pinacoteca é o único que dá acesso ao salão que

abriga as obras dele. No tumulto é difícil passar

despercebido pelos convidados, fotógrafos e emissoras de

TVs. De frente para o que queria ver, ele olha, chega mais

perto, olha de novo. Agora com o semblante menos armado

cruza os braços e fala baixinho, com um ligeiro tremor na

voz:

“Tá bom”, certifica-se pela centésima vez.

Não demora muito para uma ex-aluna da

Universidade Santa Cecília, formada em jornalismo, se

aproximar e cutucá-lo para se juntar na foto a dois

professores que estão expondo, Luiz Nascimento e Beatriz

Rota-Rossi. Quando visualiza a presença do irmão, Penha

corre em meio os convidados para cumprimentá-lo:

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“Dô, os desenhos estão muito bonitos. É diferente

esse jeito de desenhar.”

Por trás, Natália se aproxima. DaCosta a vê e

pergunta:

“Quer ir embora?”

Os convidados não param de cumprimentá-lo pela

exposição. Ao contrário do que esperavam, DaCosta não

expôs desenhos ou cartuns. Preferiu inspirar-se na obra de

Rauschenberg. Uma verdadeira surpresa.

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OO exército e o desenho

A televisão está ligada, mas ele não presta atenção à

programação. A tarde passa devagar no contorno do lápis no

papel. Os traços ainda não estão definidos, não passam ainda

de rabiscos no caderno.

Tímido e de poucas palavras na escola, Osvaldo

conseguia chamar a atenção dos professores por causa da

facilidade em desenhar. No intervalo das aulas, enquanto os

garotos da sua idade brincavam, ele trocava as atividades

físicas por um lápis e um pedaço de papel. Quando estava em

casa, o pai, Luiz da Silva Costa, sentava no sofá ao seu lado.

Seu olhar ficava vidrado nos desenhos do filho.

Quando pequenos, Penha e Osvaldo assistiam

seriados à tarde na TV. Ele pegava o caderno e corria para a

sala, a fim de desenhar as suas séries prediletas,

principalmente “Combate”, que hoje é reapresentada no

canal da TV a cabo, TCM. O caderno mais parecia um gibi,

todo desenhado.

Nascido em vinte e cinco de agosto de 1917, Luiz da

Silva Costa era rígido, talvez porque o pai sempre fora sério

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e introspectivo. Seu nome foi uma homenagem a Luís Alves

de Lima e Silva, o Duque de Caxias. Ele incentivava os filhos

homens a seguirem a sua carreira de militar. Nascido em

dezenove de julho de 1956, Osvaldo da Silva Costa foi o

único que chegou a se interessar pelo assunto. Os irmãos

José Luiz e Aylton não levavam aquilo a sério. Luiz

acreditava que Osvaldo seria o seu exemplo na família.

Aproveitava os poucos momentos com o filho para levá-lo ao

quartel. Como toda criança, em que a figura paterna

representa a imagem de herói, Osvaldo adorava ver o pai de

farda. Luiz da Silva Costa reformou-se na década de 1970

como primeiro-tenente do Corpo de Bombeiros. Pressionado

pela profissão, ficava pouco tempo em casa. Rígido, impunha

respeito, principalmente quando se dirigia a um dos filhos.

De vez em quando, deixava escapar um elogio:

“Osvaldo, venha aqui!”

O menino se aproximava, meio amedrontado.

“Você lembra muito o meu pai, seu avô”, dizia Luiz.

Anésio Costa, o avô, era artesão no Piauí. Segundo a

família, era muito habilidoso na manipulação do couro,

principalmente na criação de chapéus e cintos.

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“Você parece com o meu pai...”, repetia em voz baixa.

Osvaldo e o avô só se viram três vezes na vida, até ele

falecer aos 94 anos, no início dos anos setenta.

Por vinte anos, a família Costa morou na Cidade

Vargas, no Jabaquara, em São Paulo. Incluindo DaCosta, uma

família de seis irmãos, hoje ainda unida: Joselita Costa Ricci,

José Luiz Costa, Aylton da Silva Costa, Maria da Penha Costa

e Maria Lúcia Pinheiro Costa.

Aos oito anos, Osvaldo já expressava traços do seu

talento. Por passar boa parte do tempo desenhando, os

amigos pouco o procuravam. Ele preferia ficar em casa

desenhando, em vez de jogar bola. O relacionamento com os

irmãos era um pouco distante, até porque eles eram bem

mais velhos que Osvaldo. Desde criança, ele sempre foi mais

apegado às irmãs Maria da Penha e Maria Lúcia. Penha e

Osvaldo têm quase a mesma idade, por isso passavam mais

tempo juntos. Maria Lúcia ainda era de colo. Tinha

dificuldade de pronunciar Osvaldo:

“Dô!”, ela dizia.

O apelido ficou.

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O último desenhista de humor

37

DaCosta conta que a família Costa é grande. A

descendência pode ser a Espanha. No Brasil, se espalha por

Ourinhos, São Manoel, São Paulo, Rio de Janeiro,

Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Sul e Santa Catarina. Por

incentivo de um primo, Luiz da Silva Costa acabou servindo

o exército, em São Paulo. Depois, voltou à cidade natal, São

Raimundo, no Piauí. Lá conheceu e se casou com Anália. Não

demorou muito para o casal retornar a São Paulo.

Quando terminou o colegial, Osvaldo ficou três anos

sem estudar. Estava indeciso sobre o que fazer. Dedicava-se

a cursos livres de ateliê, aquarela e guache. Luiz acreditava

que a habilidade e o talento em desenhar poderiam render

ao filho a carreira de engenheiro. Afinal, ainda morando em

São Paulo, Osvaldo trabalhava no escritório do arquiteto

Umberto DeVuona: desenhava, fazia logotipos, marcas,

layouts, maquetes.

Mas ele não tinha certeza de nada. Só sabia que a área

escolhida teria de ter relação com o seu gosto pelo desenho.

Deitado no quarto ou sentado no sofá da sala essa foi uma

fase de reflexão. Isso porque suas habilidades se

aprimoravam. Aos poucos, a família reconhecia que aquilo

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UM PERFIL DO CARTUNISTA DACOSTA

38

não era coisa apenas de um garoto habilidoso. A

adolescência foi marcada pelos quadrinhos de Joe Kubert, o

criador do Sgt. Rock e fundador da Joe Kubert School of

Cartoon and Graphic Art. Sgt. Rock inspirou a criação da

série “Combate”, de que Osvaldo tanto gostava. Mas perto

dos dezoito anos, o pai ainda insistia para que ele optasse

pela carreira militar:

“Osvaldo, você já pode se alistar para servir o

exército.”

Na mesa, a família jantava.

“Não quero servir o exercito”, disse Osvaldo.

“Como? Não vai se alistar mais? De repente, você

pode ser um engenheiro lá dentro”, retrucou o pai.

Osvaldo fixou o olhar na mesa. Teve como resposta o

olhar duro do pai. Ele não sabia definir aquele olhar. Nada o

deixava mais inseguro do que a reprovação dele. Antes que o

pai pudesse reagir, Osvaldo disse:

“Ah, não! Eu quero estudar desenho, quadrinho,

desenho mecânico.”

O pai enrijeceu o rosto, mas não o criticou. Ficou

calado durante todo o almoço. Depois, não se intrometeu

Page 31: Livro teste

O último desenhista de humor

39

mais. Seu Luiz morreu com problemas no pulmão em abril

de 1989.

Quando não estava desenhando, Osvaldo ajudava José

Luiz nas arrumações do som para o baile no bairro. O irmão

gostava de organizar bailes nas garagens, quintais e clubes.

O repertório, rock dos anos 1960 e 1970. Todo mundo

dançando ao som de Rolling Stones, Stooges, Mc5, Deep

Purple, Led Zeppelin.

Num desses bailes Osvaldo conheceu o vizinho,

Marcus Castrioto. Depois de meia hora de conversa,

descobrem que ambos gostam de Jimi Hendrix. Ficam

amigos. Em 1975, Osvaldo e Marcus entram na onda hippie.

Decidem improvisar e se aventurar no litoral de São Paulo.

Montam uma barraca e começam a pedir dinheiro para a

viagem. Sem rumo certo, os jovens pegam carona na estrada

e acabam em Santos.

Os mochileiros temporários, numa tática de ficar na

cidade, montam uma barraca na praia. Não demorou muito

para que policiais aparecessem e mandassem que a barraca

fosse armada em outra freguesia. Os aventureiros levaram

um minuto para pegar os objetos e seguir rumo a mais uma

Page 32: Livro teste

UM PERFIL DO CARTUNISTA DACOSTA

40

aventura. Dessa vez, o destino era o Rio de Janeiro. Antes,

porém, uma parada no Festival de Iacanga, interior de São

Paulo. Aderiram de vez ao estilo hippie. Esse período foi de

muitas ideias. Primeiro, Osvaldo, por influência de uma tia,

começou a tingir roupas, a desenhar bordas de calças com

contorno de cores. Em 1974, teve outra ideia. Vender os

desenhos que produzia em formato de cartões natalinos.

Com amigos, instalou-se na Rua Augusta. Ele não tinha muito

jeito com as vendas, mas mesmo assim conseguiu

comercializar os cartões. Até que um cliente se mostrou

especialmente interessado e perguntou se havia mais

cartões para vender. Empolgado, Osvaldo tirou tudo o que

estava na bolsa. No instante em que os mostrou, o homem se

declarou fiscal da prefeitura e apreendeu a mercadoria.

Decepcionado, Osvaldo desistiu do plano.

O período era de mudanças. Adolescentes com

predisposição para a música, Osvaldo e Marcus iniciam

depois do Festival de Iacanga a montagem da banda de rock

Estrela Cadente, montada também por Rogério, filho do

falecido Rubinho, músico falecido que integrou

posteriormente o sexteto Onze e Meia, de Jô Soares. O grupo

Page 33: Livro teste

O último desenhista de humor

41

se reunia aos sábados e domingos. Mas perto de completar

um ano o grupo chegou ao fim. Mas isso não foi o fim para

Osvaldo. Em casa, ele ousava tocar canções na guitarra,

inspirado por Jimi Hendrix. Na adolescência, o pintor

Salvador Dali foi também um dos seus grandes ídolos. Os

traços do surrealista chamavam a sua atenção pela

combinação de imagens bizarras e oníricas.

Em 1977, os pais de Osvaldo se mudaram para

Santos. O cigarro já o fazia mal a Luiz da Silva Costa. A fim de

melhorar o funcionamento dos pulmões, os médicos

sugeriram que trocasse São Paulo por uma cidade praiana,

porque o clima seria melhor para a sua recuperação. A

família se instalou na Rua Paraíba, no bairro Pompeia.

Vieram também Osvaldo, Maria da Penha e Maria Lúcia.

Em Santos, o rapaz de vinte e um anos chegou

decidido a cursar arquitetura. Logo se matriculou na

Faculdade de Arquitetura e Urbanismo de Santos. No início,

a indecisão sobre o que fazer não o influenciava tanto. O

importante era desenhar. Isso incluía os desenhos

mecânicos. Na família, todos tiveram rumos diferentes. José

Luiz apostava no interesse por música. Por anos, trabalhou

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UM PERFIL DO CARTUNISTA DACOSTA

42

num estúdio, até que acabou por ser formar engenheiro de

som. Aylton é técnico de impressão e trabalha na Empresa

Folha da Manhã. Maria da Penha, assim que chegou a Santos,

se tornou microempresária. Depois, acabou comprando uma

banca de revista na qual trabalha até hoje. Já Joselita, a mais

velha dos irmãos, e Maria Lúcia, a caçula, optaram por ser

donas de casa.

Osvaldo fala rápido, às vezes engole palavras. No

entanto, o raciocínio vem límpido e probo quando o assunto

é desenho, cartum, pintura. Com os ouvidos ligados nas

guitarras de Jimi Hendrix, John McLaughlin, Grant Green e

Wes Montgmery, ele arrisca até compor. Guarda um caderno

de composição, enfiado numa das gavetas do quarto-estúdio.

Ao final do primeiro ano da Faculdade de Arquitetura

e Urbanismo, ainda se empolgava. Já no segundo, o interesse

se dilui no decorrer do processo. Por mais que desenhasse

com frequência, ele sabia que faltava alguma coisa e, por

isso, precisaria mudar de rumo. A Faculdade de Publicidade

e Propaganda, também na Universidade Católica de Santos,

não preencheu o vazio. Até que se decidiu pela Faculdade de

Belas Artes, em São Paulo. Para lá estudar, alugou com o

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O último desenhista de humor

43

irmão Aylton da Silva Costa um apartamento na Rua

Domingos de Morais, na Vila Mariana. Acabou morando

sozinho, pois no último instante o irmão desistiu. Com a

ajuda do pai e o trabalho de freela nas revistas Leia Livros,

Dados e Idéias, e nos jornais Folha de S.Paulo e O

Metalúrgico, do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo, ia

conseguindo levar.

Todos os dias, por volta das vinte e três horas,

deitava-se sobre o colchão. Não tinha cama. O apartamento

na Vila Mariana, de quarto e sala, abrigava ainda um fogão,

uma geladeira e um arquivo de aço, que comprou para

guardar os desenhos. Adquiria livros de arte, mas não

comprava roupas. Comprou uma prancheta enorme,

comprou discos. Investia em cultura. Nunca se preocupava

com o que vestir.

Quando não está em São Paulo, ele tenta dar um jeito

de ir a Santos visitar os pais. Agora, já sabe o que quer. Passa

mais tempo dentro das redações. Já conseguiu freelas para

atuar também no Jornal da Tarde. Já completara um ano no

Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo.

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UM PERFIL DO CARTUNISTA DACOSTA

44

Prestes a tirar férias, Maria da Penha o aconselhou a

fazer uma viagem: Bahia. Foi nessa viagem que conheceu a

mulher com quem viria a se casar, aos trinta e quatro anos.

Ao se casar, continuou morando no pequeno apartamento da

Vila Mariana. Anos mais tarde, a pedido da esposa, foram

morar em Campinas, na casa dos sogros. Na cidade, Osvaldo

trabalhou como ilustrador e cartunista no jornal Diário do

Povo, ao lado do mais novo amigo, Dálcio Machado,

caricaturista da revista Veja, vencedor constante do Salão

Internacional de Humor de Piracicaba.

DaCosta acaba de chegar em casa. Encontra Arthur e

Gustavo vendo televisão. Fica feliz de vê-los. Leva-os até o

quarto. Enquanto faz os últimos ajustes na guitarra, os

meninos se sentam sobre a cama e não tiram os olhos do

instrumento. Quando Osvaldo descobriu a aptidão pela

música, com o salário dos freelas fez aulas de guitarra e de

violão clássico. Eles gostam de ver o pai manusear a guitarra.

Quando ele tocava, os olhos dos dois brilham. Ao ver o

encanto dos filhos, se emociona. É notória a identidade dos

meninos pelo mesmo estilo de som e guitarra, exatamente na

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O último desenhista de humor

45

mesma idade em que ainda era um garoto. Eles o admiram.

DaCosta incentivou mais tarde a banda de rock dos filhos.

Em Campinas havia mais de três anos, o casal já não

estava bem. Mesmo assim, o casal decidiu morar em Santos.

Não demorou muito e Osvaldo já estava empregado no

jornal A Tribuna. O casamento chegou ao fim em 2003.

Natália Silva Cunha entrou no curso de Artes da

Unisanta já conhecendo o nome do artista DaCosta. Quando

fazia estágio na galeria de arte da Universidade, teve

curiosidade de conhecê-lo pessoalmente. As visitas

passaram a ser constantes na galeria. Toda a vez que

Osvaldo entrava na galeria procurava a moça de cabelos

encaracolados curtos. Então, ela tirou do bolso uma caneta

azul e uma folha cortada ao meio com o seu e-mail e MSN.

Ela, com vinte e um anos. Ele, com cinquenta e dois. DaCosta

criou coragem e a convidou para sair, ir ao cinema. Hoje, eles

se identificam perfeitamente:

“Natália, lembra daquele filme de 1980?”

Ela não entende o que diz o namorado. Afinal, em

1980, ela nem tinha nascido. O contraste de idades não é

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UM PERFIL DO CARTUNISTA DACOSTA

46

problema. De mãos dadas na rua, as pessoas às vezes olham.

Natália lembra de quando foi apresentada aos amigos dele:

“É sua filha, Osvaldo?”

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O último desenhista de humor

47

OO último desenhista de humor

O auditório da Biblioteca de São Paulo está repleto. DaCosta

está sentado numa poltrona ao lado do artista gráfico e

pintor Geandré. Os dois não param de conversar um só

minuto. O primeiro pega um envelope, retira com delicadeza

o papel que está ali dentro e repassa-o a Geandré. Este,

aprovando, balança a cabeça e faz um sinal com os dedos

apontando para o papel.

Num minuto, a atenção é suspensa pelos assobios que

anunciam a chegada tão esperada de Ziraldo. De acordo com

DaCosta, o “pai de todos nós”. Espiando, Osvaldo ergue o

olhar e eleva a cabeça ainda mais em direção à entrada.

Ziraldo passa pelo corredor e as pessoas sorriem para ele.

Ele retribui e para quando vê DaCosta:

“Oi, DaCosta. Como é que você tá?”

Este imediatamente levanta e abraça o homem alto,

de cabelo branco. Geandré também o cumprimenta, mas

permanece sentado. Os fãs da última fileira não se contêm e

gritam ao vê-lo. Muitos se emocionam ao encontrar pela

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UM PERFIL DO CARTUNISTA DACOSTA

48

primeira vez o criador do Menino Maluquinho, um dos mais

importantes artistas gráficos brasileiros.

“Ziraldo, Ziraldo”, grita a morena de cabelos

encaracolados até os ombros.

O encontro estava marcado para as duas da tarde,

mas já eram duas e trinta. Para as crianças, foi montado um

espaço repleto de livros do Menino Maluquinho. São pilhas e

pilhas de histórias de autoria do consagrado cartunista

brasileiro. Nas primeiras abordagens, em pé, Ziraldo Alves

Pinto se congratula com os amigos e fãs, agradece a

participação no projeto “Sábados da Memória das Artes

Gráficas”, promovido pelo governo de São Paulo. É uma

homenagem aos artistas gráficos. Eles passam pela

biblioteca e falam sobre a sua trajetória. Todo sábado um é

homenageado. Hoje é o dia de Ziraldo. Não faltou ninguém. O

irmão, Zélio Alves Pinto, também artista gráfico, foi o

primeiro homenageado no projeto.

Lá no fundo, sentada, uma mulher comenta com a

amiga ao lado:

“Esse foi o meu ídolo e agora é o dela”, aponta para a

filha de seis anos, sentada em seu colo.

Page 41: Livro teste

O último desenhista de humor

49

A menina está com o livro de Ziraldo nas mãos e pede

à mãe autorização para cumprimentá-lo.

“Calma”, a mãe assopra nos ouvidos da menina.

“Ainda não?”, a menina pergunta.

“Depois a gente vai lá e tira uma foto”, diz a mãe.

Ziraldo já tinha começado a falar. No discurso, mais

uma vez agradece a participação dos convidados e arrisca

uma piada:

“Achei que não ia ter ninguém.”

Na plateia, o público é variado: crianças, jovens e

adultos. Tem até gente sentada sobre banquinhos

improvisados pela assessoria da Biblioteca de São Paulo.

Meia hora depois, o apresentador anuncia a presença de

Geandré, DaCosta e de outros artistas. Depois, faz uma pausa

de quinze minutos para que Ziraldo se recomponha e beba

água. Os flashes das máquinas fotográficas não dão

descanso. Alguns se levantam e seguem na direção de

Ziraldo, em busca de fotografias e autógrafos.

Vendo a movimentação frenética, o apresentador

pega o microfone e faz um apelo:

Page 42: Livro teste

UM PERFIL DO CARTUNISTA DACOSTA

50

“Pessoal, pessoal, o Ziraldo dará autógrafos e tirará

fotos com todos, mas depois da entrevista. Agora é um

intervalinho de quinze minutos. Rápido, rápido.”

A mãe e filha que estão de pé logo voltam aos seus

assentos.

DaCosta vai ao encontro de Ziraldo. Carrega num

envelope a réplica de duas páginas do jornal O Pasquim 21,

editadas por Zélio e assinadas pelo próprio Ziraldo. Nessas

páginas, publicadas em 2002, os irmãos fizeram uma

homenagem a DaCosta chamando-o de “o último desenhista

de humor”. Nos bastidores, do lado de fora da pequena sala,

Ziraldo e Zélio cumprimentam amigos e colegas de profissão.

Osvaldo se aproxima por trás dos cartunistas com o

envelope nas mãos. O primeiro a perceber a sua presença é

Zélio:

“Oi, DaCosta!”, diz.

Imediatamente, Osvaldo puxa do envelope a réplica

das duas páginas e a entrega a Zélio. Este dá um tapinha nas

costas do amigo e faz elogios. À sua frente, Ziraldo conversa

com outros cartunistas, mas vira-se após ouvir o que diz

Zélio.

Page 43: Livro teste

O último desenhista de humor

51

“Venha ver”, pede o irmão, ao acenar com as mãos.

Ao ver DaCosta, os dois se abraçam. Este fica feliz em

rever o ídolo. Antes que algo seja dito, Zélio puxa Ziraldo:

“Ziraldo! Já viu?”, pergunta, mostrando o material que

está nas mãos de DaCosta, com as duas páginas inteiras com

os seus melhores desenhos publicados em O Pasquim 21.

São quinze obras premiadas. Numa delas, um homem alto,

de cabeça minúscula, está encostado num portão que dá a

lugar nenhum. Esse mesmo homem está em mais nove

desenhos, com conotações diferentes. Ele aparece com um

taco de baisebol na intenção de acertar uma bola, só que a

bola é o planeta terra. O mesmo homem, multiplicado por

seis, marchando para um só caminho. Todos acorrentados

nos braços e pescoços. Lá no final de uma das páginas, no

fundo azul, estão uma bailarina e um elefante. Os dois em

cima do palco de um circo. A bailarina faz as unhas do

elefante, que está sentado, lendo um jornal. Os desenhos são

acompanhados de um texto, escrito pelo próprio Ziraldo, que

diz o seguinte:

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UM PERFIL DO CARTUNISTA DACOSTA

52

Nós eramos quatro rapazes cheios de talento: Jaguar, Claudius, Fortuna e eu. E gravitávamos em volta do Millôr, que era nosso modelo. Éramos todos humoristas e desenhávamos “pracará”. E achávamos que este negócio de fazer piada sem um grande desenho (digno de ir pra um quadro), era besteira. Nós não gostávamos de ser chamados de caricaturistas e, muito menos, de cartunista (palavra que, grafada assim, nem existia). Nós éramos desenhistas de humor!!!

Queríamos todos ser como Steingberg, o André François ou o Ronald Searle. Aquele engraçadíssimo cartunista do MAD, Não-sei-o-quê Martin ou mesmo Sérgio Aragonez, para nós, eram artistas menores. Eu saía pelo mundo a comprar álbuns daqueles gênios. Depois veio o Folon, mais novo do que nós, e falou pro Zélio que éramos graphistes. Achei chiquíssimo. Depois tudo acabou. Já não há mais desenhista de humor no mundo. Só o Ralph Steadman, um inglês, o desenhista mais obsessivo e mais talentoso de todos os tempos que, de vez em quando, lança um álbum fantástico no mercado.

Na imprensa, cadê eles? Onde um desenhista de humor no Brasil, como nos velhos tempos? Aqui está ele. Chama-se DaCosta, ou, para os íntimos, Osvaldo da Costa. Nasceu em São Paulo no final da década de 1950 e hoje mora em Santos. Já passou por vários veículos como chargista, caricaturista e ilustrador, mas o que gosta mesmo é de fazer o velho e bom desenho de humor. Embora afirme que continua aprendendo, confessa também que sua influência — e admiração —, no ínício da carreira, foram Millôr, Jaguar, Zélio e Miran. Fez, porém, um percurso extenso e variado. Foi do gravador brasileiro Grillo a Egon Schiele; de Aldemir

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O último desenhista de humor

53

Martins a Edward Hopper. Hoje, ele cumpre o desígnio do velho Manzi, o maior desenhista de humor que passou pela Itália. Que dizia: “Um bom desenho salva qualquer piada”. Era uma lei para nós. (Ziraldo, 2002)

“É O Pasquim 21?”, pergunta Ziraldo. “Nossa, mas

você está ficando melhor a cada dia!”

Sem graça quanto os elogios, DaCosta ri. Tenta

argumentar, mas as palavras parecem se perder.

“Ah, é!”, responde desajeitado.

Antes que Ziraldo pudesse dizer alguma coisa, um fã

interrompe a conversa e o tira dali para bater uma foto.

Ainda assim, Osvaldo permanece parado. Não demora e

Ziraldo está de volta. Dá mais dois passos para trás e retoma

o assunto com DaCosta:

“Você está cada dia melhor. Me manda as suas obras,

manda para mim. Tenho um lugar para publicar. Me manda

por e-mail. Sabe o meu e-mail?”

Os dois seguem de volta para a sala, local onde ocorre

a entrevista. Eles se despedem. Antes de sentar na sua

cadeira, duas fileiras antes de Zélio, Ziraldo faz o último

aviso:

“DaCosta! Não esquece de me mandar os desenhos.”

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UM PERFIL DO CARTUNISTA DACOSTA

54

“Tá bom”.

Oito horas da noite, o evento está perto de chegar ao

fim. Foram tantas perguntas e respostas que Ziraldo não

concluiu o que queria dizer sobre a sua carreira:

“Faltou mais”, diz o apresentador. “Vai precisar vir

mais uma vez e contar o que falta.”

Ziraldo está cansado, o semblante já o entrega, afinal,

foram cinco horas de bate-papo. Falou do tempo quando era

jovem, das prisões que sofreu no tempo da ditadura militar.

Bem-humorado, Ziraldo consegue fazer de momentos

difíceis piadas engraçadas. Não há quem não ria das

histórias do maior cartunista brasileiro. Os assentos

continuaram cheios. Ninguém saiu do lugar. Ao final, Ziraldo

agradece e pede que os fãs façam uma fila única para tirar

fotos e pegar autógrafos. A fila se forma rápida. São homens,

mulheres e crianças. Todos querem uma foto com o criador

do Menino Maluquinho. DaCosta e Geandré esperam a

muvuca passar. Zélio levanta e vai até eles. Agora todos de

pé, a conversa rende. A única que parece não prestar atenção

é Natália. Sua distração é com a máquina fotográfica. A fila

está perto de acabar e eu sou a última. Quero saber do

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O último desenhista de humor

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Ziraldo porque DaCosta é o último desenhista de humor.

Afinal, ele continua sendo o último desenhista de humor?

“Falta o principal”, diz uma garota de mais ou menos

quinze ou dezesseis anos ao lado de Ziraldo. No mesmo

instante, ela mesma lembra:

“Ah, foto. Tira aqui, mãe.”

Eu sou a próxima.

“Vai tirar uma foto?”, pergunta Ziraldo.

“Claro que vou. Mas primeiro tenho uma pergunta.”

Com as mãos, ele faz sinal para eu me aproximar

mais. Ele indica a mesinha ao seu lado onde abriga os livros.

Sento-me. Então ele diz:

“Agora pode falar.”

Pergunto:

“No Pasquim 21 o senhor disse que o DaCosta é o

último desenhista de humor. O que quis dizer com isso?”

Ele pede para que eu chegue mais perto. Então, repito

a pergunta:

“No Pasquim 21 o senhor disse que o DaCosta é o

último desenhista de humor. O que quis dizer com isso?”

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UM PERFIL DO CARTUNISTA DACOSTA

56

Entrosando os dedos entre a caneta, Ziraldo pensa e

logo já tem a resposta na ponta da língua:

“Aqui no Brasil quem fazia cartum passou a fazer ou

tira ou charge. De repente, sem mais explicações, sem a

gente saber de onde ele veio e porque estava fazendo isso,

recebemos no Pasquim 21 um monte de cartuns de um cara

maduro, de um verdadeiro cartunista do nosso tempo. ‘Que

história é essa? Quem é esse cara fazendo esse tipo de coisa,

quando ninguém mais está fazendo isso?’, questionei. Era o

DaCosta! Depois de conhecer os seus trabalhos por

intermédio do meu irmão Zélio, pedi ao DaCosta que me

mandasse as suas obras, pois eram dignas de uma

homenagem. Aí eu falei para o Zélio: ‘Publica aí: DaCosta —

O último desenhista de humor.’”

Ziraldo estabelece uma opinião firme e incisiva. De

minha parte, eis a pergunta que não queria calar:

“E desde a homenagem, em 2002, ele continua sendo

o último desenhista de humor?”.

Ziraldo para e pensa. E com um “ah”, ele responde:

“Não apareceu nenhum cartunista no Brasil depois

dele. Ele é o último cartunista que apareceu.”

Page 49: Livro teste

O último desenhista de humor

57

Aponta para a escada, na direção em que se

encontram DaCosta, Geandré e Zélio. Não resiste e faz o

comentário:

“Achei que ele fosse mais jovem, mas estou olhando

para ele e sei que é mais velho. Seria muito difícil se ele fosse

um homem de vinte anos fazer isso. Só um cara mais velho

pode fazer um cartum.”

De frente para mim, e com as mãos na minha direção,

é ele agora quem me indaga:

“E eu pergunto, onde é que ele estava? Fazendo o

quê? Por que não procurou a gente antes. Ele podia ser da

turma d´O Pasquim. O Chico e o Paulo Caruso, todo mundo

foi da turma d´O Pasquim. Onde é que ele estava? Aliás, eu

gostaria de saber dele: onde é que ele estava que demorou

tanto a mandar os desenhos dele para serem publicados no

nosso Pasquim?”

Descendo a escada do auditório, na direção de

Ziraldo, DaCosta vira-se e pede que Natália o acompanhe. As

mãos postas na câmera fotográfica. Geandré adere aos

óculos escuros, arruma o cabelo assim que ouve o barulho

do flash.

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UM PERFIL DO CARTUNISTA DACOSTA

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“Agora, sim”, diz Geandré.

Todos estão a postos, para mais uma foto.

“Natália, tira uma foto minha e do Geandré com o

Ziraldo?”, pede DaCosta.

Depois de tirar, Natália solicita a dela. Ziraldo, que

não a conhece, pergunta quem é a jovem moça.

Imediatamente, Osvaldo responde:

“É a minha namorada.”

“Suuuaaaa namoraaaaada? Pegou para criar?

Pedofilia é crime”, brinca Ziraldo.

Turbilhões de vozes e risos.

Osvaldo se despede dos amigos cartunistas.

DaCosta, não esquece de me mandar os desenhos”,

pede Ziraldo.

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O último desenhista de humor

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DDe Osvaldo a DaCosta

Na esquina das ruas Piauí e Euclides da Cunha, no bairro

Pompeia, em Santos, ele está com o semblante cabisbaixo e o

aspecto cansado. Encostado no poste que dá de frente para o

bar Dez e Dez, ao lado da antiga Faculdade de Comunicação

(recentemente demolida), de camisa social amarela e com

mala preta, aparentemente pesada sobre os ombros, Helder

Marques acabara de chegar de São Bernardo, depois de um

dia exaustivo.

Helder e DaCosta se conheceram em 1980, três anos

depois que a família de Osvaldo se mudou para Santos.

Vizinhos, e apreciadores da mesma modalidade, os

desenhos, se identificaram e, consequentemente, criaram

laços de amizade. Helder também desenhava, mas optou

pelo jornalismo, no jornal Cidade de Santos. Hoje, é

professor universitário. Ele dá aula no curso de jornalismo

na Universidade Santa Cecília e faz assessoria de imprensa

da Prefeitura de São Bernardo.

Na esquina ele me espera, boceja algumas vezes. São

quinze para as oito, a noite está serena, mas fria. Ao me ver,

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UM PERFIL DO CARTUNISTA DACOSTA

60

segue em minha direção e me conduz a uma lanchonete

próxima. Ao entrarmos, Helder logo se aproxima de uma

mesa, a mais perto da parede, no canto, de frente para a

televisão. Em 1980, quando Osvaldo tinha vinte e quatro

anos, um frequentava a casa do outro.

“Na época, o Osvaldo esbanjava talento, mas o seu

traço não era tão definido quanto o de hoje”, diz Helder.

Na época, Helder trabalhava na Cooperativa dos

Jornalistas de Santos como vice-presidente e assessor de

imprensa. Na cooperativa, Helder fundou também uma

editora, a GHM, e criou o Jornal de Mesa. Era uma publicação

semanal, na verdade uma toalha de mesa distribuída em

restaurantes, com textos, humor, cultura e entretenimento. A

equipe editava, diagramava, escrevia matérias e vendia

anúncios. A publicação abriu espaço aos ilustradores. É aí

que Osvaldo entra em ação. Foi convidado a fazer parte do

elenco do Jornal de Mesa.

“Se este jornal não foi a primeira publicação que

trouxe uma ilustração dele, foi uma das primeiras. Na época,

ele assinava Osvaldo ”, relembra Helder.

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O último desenhista de humor

61

Em primeiro de janeiro de 1984, o jornal teve a sua

última edição. Não havia mais como mantê-lo.

“Houve um declínio natural no mercado, num

momento em que a equipe não tinha mais fôlego para

segurar a barra”, conta Helder.

A garçonete interrompe a conversa:

“Vão querer o quê?”

“Um cappuccino”, diz Helder.

“Um suco de laranja”, digo.

Antes de sermos interrompidos, Helder contava-me

como era diferente o traço de Osvaldo com o DaCosta de

hoje.

“Os traços dele não eram tão leves, eram muito

duros”, gesticula.

Faz uma pausa e continua:

Ele era um desenhista em busca de espaço. Alguém

que tinha talento para o humor, para o grafismo. Mas ele só

foi evoluindo de lá para cá. O traço dele melhorou muito,

está muito melhor. Ele adquiriu uma personalidade

artística”.

Page 54: Livro teste

UM PERFIL DO CARTUNISTA DACOSTA

62

O humor de DaCosta é fino, de reflexão. O mundo do

cartum possui vários tipos de humor. Uma das suas

principais características atuais é a cor. Antes, trabalhava

muito o preto e branco. Hoje, a cor é uma presença forte na

sua arte.

Meses atrás, Helder estava andando de bicicleta e

encontrou DaCosta na rua. Para a sua surpresa, o amigo

levava nas mãos um caderno, uma espécie de diário gráfico,

o skeetbook. Ao verificar o caderno, Helder achou-o

interessante. Mais do que isso: achou importante o

progresso.

“Muito legal. O Osvaldo e o seu diário gráfico!”, diz

Helder.

À tarde, quando tem tempo, DaCosta passeia pela orla

da praia em busca de personagens e tipos, de situações e

ideias para novos desenhos e aquarelas.

“Nas obras do Osvaldo existe o humor. Este é só o

início para uma grande reflexão. Existem artistas de humor

que não se preocupam muito com a estética, têm o traço

rápido, só uma sugestão de linha já é o suficiente para passar

a mensagem. O Osvaldo faz as duas coisas, se preocupa, e

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O último desenhista de humor

63

muito, com o lado estético. Nele, o traço está igualado à

mensagem, são entrelaçados. Trata-se ainda de um desenho

elegante, em que a cor tem um papel muito importante. É

tudo suave, tem beleza, é agradável de ver”, observa Helder.

Quando era convidado a fazer alguma ilustração

diziam-lhe que simplesmente assinar Osvaldo poderia lhe

render confusões mais adiante. No jornal Folha de S.Paulo já

havia um Osvaldo, o Osvaldo Pavanelli. Em 1986, Osvaldo foi

convidado a ilustrar a revista de informática Dados e Idéias,

da Editora Três. Semanas depois, ainda não havia sido pago.

Um dia, na redação de O Pasquim, em São Paulo, o bem-

humorado Pavanelli o encontra. Os dois se cumprimentam e

Pavanelli inicia a conversa:

“Porra, bicho um dia desses me ligaram lá em casa

para eu receber um dinheiro de uma ilustração.

Perguntaram-me se eu era o Osvaldo da Costa.”

Osvaldo recebeu, enfim, da Dados e Idéias, mas ficou

com aquilo na cabeça. Um dia, decidiu ir ao ateliê de Zélio

Alves Pinto. Folheando alguns livros espalhados pelo ateliê,

Osvaldo está inquieto, com uma ideia fixa na cabeça. Então,

decide desabafar:

Page 56: Livro teste

UM PERFIL DO CARTUNISTA DACOSTA

64

“Tão fazendo confusão com o meu nome. Um dia

desses deixei de receber um trabalho na data certa porque

acharam que o Pavanelli era eu.”

Zélio, que havia levantado para repor um livro no

lugar, faz a sugestão:

“Então, vamos criar um nome artístico para você.

Você tem algum apelido de criança?”

“Na minha casa, a minha família me chama de Dô.”

Zélio o olha incisivamente. Osvaldo retribui com uma

risada. Por segundos o silêncio permeia o ateliê. Zélio já tem

uma nova ideia e revolve expô-la:

“A maior parte dos cartunistas tem os nomes

abreviados com o sobrenome. O que você acha de DaCosta?

Osvaldo da Silva Costa: DaCosta?”

“Pô, legal, Zélio. Mas já não existe o pintor?”,

questiona.

“Sim, mas ele é o Milton da Costa. Você é apenas

DaCosta.”

Feliz com a nova assinatura, Osvaldo já começa a

treinar ali mesmo, no ateliê do amigo, a sua nova marca. Nos

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O último desenhista de humor

65

primeiros seis meses, alterna as duas assinaturas, Osvaldo e

DaCosta. Mas DaCosta, enfim, toma o lugar de Osvaldo.

Page 58: Livro teste

UM PERFIL DO CARTUNISTA DACOSTA

66

AA biblioteca do Zélio

A decisão de Osvaldo em seguir desenhando teve forte

influência das revistas de contracultura que passou a

comprar no período em que trabalhou numa gráfica, em

Santos, em 1980. Grilo, Patota e Rolling Stone eram as suas

favoritas. Foi nessas revistas que passou a conhecer mais a

fundo os cartunistas e os desenhistas de humor e de

quadrinhos e também a música. No Brasil, o início da sua

carreira foi marcado também pelos trabalhos de Jaguar,

Millôr e Ziraldo.

Osvaldo desenha, mas ainda não tem experiência em

salões de humor. Foi no curso de Publicidade e Propaganda

da Universidade Católica de Santos que Sérgio Ribeiro, o

Seri, lhe apresentou um folheto sobre o I Salão Regional de

Goiânia, em 1981.

“Manda um desenho, Osvaldo. Participa”, insiste Seri.

Osvaldo faz dois trabalhos a lápis e os envia.

Surpresa: são selecionados entre as melhores do evento.

Certa tarde, em 1981, ele está em casa trabalhando. O rádio

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O último desenhista de humor

67

está ligado: ora quer saber o que ocorre no Brasil e no

mundo, ora quer ouvir música. O telefone toca.

“Alô!”

“Osvaldo?”

“É ele. Quem fala?”

“É o Seri. Tudo bem?”

“Tudo. O que conta?”

“Vamos para o Salão de Humor de Piracicaba?”,

convida Seri

O convite é aceito na hora.

Ao desligar o telefone, Osvaldo vai à cozinha contar à

mãe:

“Vou para Piracicaba, dona Anália, para o Salão de

Humor.”

“Vai, Dô?”

Semanas antes da viagem, Osvaldo já começa a

produzir os desenhos que pretende levar. Alguns já estão

guardados, outros precisam ser acabados. Essa é a sua

oportunidade de mostrá-los aos cartunistas experientes. Ele

quer fazer novas amizades e conhecer um dos ídolos que o

inspiraram. Quando jovem, Osvaldo era fissurado nos

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UM PERFIL DO CARTUNISTA DACOSTA

68

desenhos de Ziraldo. Passou a admirá-lo ainda mais quando

o viu pela primeira vez na TV. Vê-lo na televisão foi o que o

fez decidir-se de vez pelo cartum, pelo desenho de humor.

Na abertura do 8º Salão Internacional de Humor de

Piracicaba, o mais tradicional evento de humor gráfico do

mundo, estavam presentes Angeli, Glauco, Laerte, Zélio,

Ziraldo. Surpreso, Osvaldo pergunta a Seri:

“O salão é assim sempre cheio de cartunistas?”

“É, sim”, diz Seri ao cumprimentar os colegas que iam

se aproximando.

Osvaldo está emocionado, apreensivo. A face

enrijecida não nega a tensão. Seu olhar é concentrado. As

mãos suadas e frias seguram a pasta com os desenhos. As

últimas palavras da noite de abertura do evento cabem a

Ziraldo. Emoção pura vê-lo falar ao vivo.

Na primeira oportunidade, ele tira os desenhos do

envelope. Osvaldo está munido de cartuns e pede que eles

sejam autografados pelos cartunistas. O primeiro a assinar é

Glauco; Angeli em seguida; Laerte, o terceiro. Zélio também

entra no clima e autografa. Alguns hesitavam em escrever o

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O último desenhista de humor

69

nome, para não estragar os cartuns que Osvaldo fizera. Ele

diz:

“Não tem problema. É uma honra. Podem assinar,

sim.”

Osvaldo retira mais cartuns do envelope e os mostra a

Zélio. Impressionado com o que vê, este o convida para ir a

sua Escola Brasileira de Artes.

“Os teus desenhos são muito legais. Vá visitar a

Ebrart, faço questão. Aparece lá quando quiser”, convida

Zélio.

“Apareço, sim.”

O convite de Zélio não sai da cabeça. Semanas depois,

Osvaldo decide juntar todos os seus desenhos e, finalmente,

levá-los à Escola Brasileira de Artes. O pensamento é

determinante: quer conhecer o famoso acervo de livro de

artes de Zélio. Finalmente, este o recebe. Osvaldo retira os

cartuns da bolsa e os entrega a ele. Zélio diz:

“Vai lá naquela sala.”

Osvaldo depara então a enorme biblioteca. Já

desconfiava de algo do tipo, mas não imaginava que fosse tão

grande e completa. Nas prateleiras, fuça os livros um a um.

Page 62: Livro teste

UM PERFIL DO CARTUNISTA DACOSTA

70

São horas intensas em contato com publicações de arte e

álbuns de quadrinhos, charges, cartuns e desenhos de

humor. Ao longo do dia, vive as emoções de novas

descobertas, com estilos e modos diferentes de criar.

Conhece grandes desenhistas de humor como André

François, Ralph Steadman e Ronald Searle, caras que tiveram

influência decisiva para a geração de cartunistas de O

Pasquim, representada por Jaguar, Millôr e Ziraldo.

Antes de ir embora, Zélio o puxa de canto:

“Olha esse aqui.”

E então apresenta a Osvaldo o cartunista Saul

Steinberg, um cara de uma técnica inovadora, que muito o

viria a influenciá-lo.

“O Steinberg é um ícone do cartum. Aqui no Brasil, ele

inspirou a turma do Pasquim. Sua técnica tem inacabável

variedade de formas de expressão — aquarelas, pastel,

caryon, colagens de sacolas de papel, lápis-tinta, madeiras ou

qualquer combinação desses materiais. Seus desenhos

refletem o artista, o viajante, o romântico e até humorista”,

diz DaCosta.

Page 63: Livro teste

O último desenhista de humor

71

Na biblioteca de Zélio, as aquarelas são também a

grande descoberta do dia. O domínio das cores, a sincronia

nos finos traços o envolve tanto que os lápis em casa

perderam espaço para o copo de água misturado às mais

leves combinações. Assim, Osvaldo passou a desenvolver

uma linguagem própria, mais elaborada e independente. As

investidas e pesquisas nas técnicas de Saul Steinberg, que

também é aquarelista, o ajudaram a criar novas fórmulas de

criatividade. Com DaCosta, as aquarelas expressam

passivamente paisagens nas cores transparentes sobre o

papel branco. Embora sutil, existe uma mensagem por trás

do homem cortando a árvore com uma motosserra. A árvore

está tombando de um lado, o homem também tomba do

outro, em direção ao solo. O desenho lhe rendeu o terceiro

lugar no Salão Carioca de Humor, entre três mil e duzentos

inscritos.

“Depois que conheci as técnicas de Saul Steinberg,

passei a usar materiais como lápis de cor, aquarela e tinta

acrílica.”

Recentemente, DaCosta comentou com um amigo que

está sem dinheiro para investir mais nas aquarelas. Manter

Page 64: Livro teste

UM PERFIL DO CARTUNISTA DACOSTA

72

essa técnica não é barato. A cada ida à Casa do Artista, em

São Paulo, gasta em torno de quatrocentos reais, o que abala

o seu orçamento apertado de professor. As compras podem

ocorrer a cada três ou quatro meses.

Em casa, Osvaldo não para de estudar. Testa técnicas,

desenhos e novas linguagens, aprimorando o traço,

imprimindo-lhe leveza. O estudo da técnica fornece ao

desenho de humor a sofisticação de que este precisa.

Page 65: Livro teste

O último desenhista de humor

73

UUm vinho e uma taça

“DaCosta, preciso que você me mande alguns de seus

desenhos. Vou publicá-lo no Pasquim 21 por iniciativa minha

e do Ziraldo.”

“Ah, é? Mando, mando sim.”

Desliga o telefone e comemora o pedido. Empolgado,

já sabe quais vai mandar.

Semanas depois, compra o jornal e está lá: “DaCosta, o

último desenhista de humor”

“Que baita homenagem dos meus ídolos. Demais!”,

comemora.

“Alô, Zélio, é o DaCosta.”

“Oi, DaCosta, gostou?”

“Se eu gostei? Não sei o que dizer.”

Silêncio:

“Adorei. Muito legal”, diz DaCosta.

Zélio Alves Pinto nasceu em Caratinga (MG), em vinte

de fevereiro de 1938. Também é pintor e escritor. É um dos

fundadores de O Pasquim e do Salão Internacional de

Humor de Piracicaba. A sua carreira se entrelaça com a do

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UM PERFIL DO CARTUNISTA DACOSTA

74

irmão Ziraldo em alguns momentos: na primeira versão de

O Pasquim, no fim dos anos 1960, e nas revistas A Palavra,

Bundas e, mais recentemente, em O Pasquim 21. A família

sempre cultivou o gosto pela arte: eram músicos,

escultores, pintores, atores.

Segundo Zélio, um dos motivos que levaram ele e o

irmão Ziraldo a criar O Pasquim 21 foi exatamente para dar

sequência ao trabalho que desenvolviam no Salão

Internacional de Humor de Piracicaba. O jornal foi criado em

2002, numa época difícil, em que nem a charge, o cartum e o

desenho de humor tinham espaço na mídia.

O bairro é Higienópolis, em São Paulo. O visitante que

entra no ateliê de Zélio logo vê um quadro com o retrato de

Maria Lúcia Ramos, a Ciça, sua mulher pintada em verde

musgo, à qual ele faz várias referências durante a entrevista.

Antes de subir as escadas, Zélio me conduz e aponta para o

retrato:

“Esse foi um quadro dado por Ziraldo. Esta é a minha

esposa.”

Ali subo até o ateliê. Zélio não me acompanha, diz que

tem de terminar o café, mas não demora. Caso precise de

Page 67: Livro teste

O último desenhista de humor

75

algo, o filho Fernando, que está no quintal, pode ser

acionado. Na escadaria que dá acesso ao ateliê tem uma

caricatura do irmão Ziraldo, de braços abertos, em sinal de

saudação, com a frase: “Zélio, meu irmãozinho, seja bem-

vindo ao clube”. Ao subir são vistas prateleiras e quadros

semiacabados. Pendurados, se misturam aos mais de três mil

livros. São tantas as cores no ateliê. As recentes pinturas

abrem a entrada do estúdio. O quadro de um metro de altura

ainda tem cheiro de tinta fresca, pois acaba de ser pintado.

Meia hora depois, Zélio está à minha frente, pronto para

responder a qualquer pergunta. Antes de iniciarmos, ele

prepara a cadeira que tem ponto fixo ao lado da janela.

“Fique à vontade”, diz ele.

Ao lado da janela fica a mesa com o computador, uma

velha impressora e uma TV pequena, que aparenta não ser

usada com frequência. Hoje o dia está ensolarado e o céu

mais azul do que nunca. O sol ofuscante reflete-se sobre a

mesa encostada à parede. Muitos livros e páginas de jornal

espalhados pelo local. Um livro em especial chama a atenção.

É de Otto Dix, estendido sobre a cômoda, aberto na página

dezoito. Um homem na cor vermelha dá veemência ao

Page 68: Livro teste

UM PERFIL DO CARTUNISTA DACOSTA

76

desenho. Zélio está estudando o livro, um pedaço de jornal

tira o molde da figura do livro. Recados, lembretes, fotos e

um telefone ilustram as prateleiras. Há mais obras de artes

plásticas do que gráficas.

“O senhor abandonou o cartum?”

“Não, de jeito nenhum, esse foi um processo natural.

Fui lidando com as artes visuais ao longo desses anos. E, de

repente, fui sentido que o espaço para artista gráfico se

esgotava. Aos poucos, para mim, o cartum foi perdendo o

segredo, o mistério. Então, agora o artista gráfico dá asas às

artes plásticas”, diz.

Antes que eu fizesse a segunda pergunta, e a mais

importante, ele me interrompe e pega sobre a mesa o maço

de cigarros.

“Espera”, corta.

O cinzeiro fica ao lado direito, parece estar ali há

anos. Ele acende o cigarro e, ao baixar as mãos, pede que eu

continue o que ia perguntar. Interrompe mais uma vez e

proclama:

“É sobre o DaCosta, não é?”

“É, sim”, respondo.

Page 69: Livro teste

O último desenhista de humor

77

Ele levanta a cabeça em tom de aprovação. Pergunto:

“Por que o último desenhista de humor?”

Zélio para e mantém os olhos fixos em mim. Pensando

sobre como responder, ele gesticula com as mãos, que

flutuam no ar:

“Porque, infelizmente, o desenho de humor perdeu

nos últimos anos a embocadura que tinha quando nós

iniciamos na atividade, entendeu? O desenho de humor é

mais refinado do que um simples cartum. O desenho de

humor não tem necessariamente o objetivo de provocar o

riso hilário. Ele provoca a surpresa, é sempre um achado,

com a inclinação para o humor. Quase que uma atitude

filosófica. Neste aspecto, o DaCosta é um genuíno desenhista

de humor.”

No meio de tantos acessórios, num canto quase que

imperceptível, um vinho e uma taça tentam se esconder

entre as cores e a bandeja. Zélio não abre mão do ritual do

vinho que lhe acompanha há anos. Mais uma vez ele se

levanta. E antes que percebesse a sua saída, ele já está de

volta, vidrado nas perguntas, posicionado na cadeira que

parece moldar o seu corpo. Elegante, veste calça jeans azul e

Page 70: Livro teste

UM PERFIL DO CARTUNISTA DACOSTA

78

camisa social rosa, por cima um colete bege. Retomo a

entrevista:

“Como interpreta hoje o trabalho de DaCosta?”

Zélio não economiza as palavras e o releva por que

Osvaldo foi homenageado na edição de treze de agosto de

2002 de O Pasquim 21:

“Ele continua a fazer um belo trabalho. Ele é um

sujeito criativo, não só na imagem, mas na forma e no

conteúdo. O conteúdo dele é ousado, busca os aspectos

comportamentais mais sutis. Ele não é chulo nem vulgar em

momento algum. Sempre vai um pouco além.”

Com modos elegantes, Zélio acende mais um cigarro e

se acomoda na cadeira. Agora, a conversa mais parece um

bate-papo do que uma entrevista formal:

“Mesmo depois de oito anos, o DaCosta é ainda o

último desenhista de humor?”

“Eu ainda não vi algum desenhista novo depois dele. É

possível que pela atividade que exerce como professor, como

profissional atuante, acabe inspirando novos desenhistas de

humor, mas não sei.”

Page 71: Livro teste

O último desenhista de humor

79

Junto ao comentário veio uma sequência de respostas

sobre diferentes definições do cartum e do desenho de

humor. Que em sua concepção são trabalhos distintos.

Podem até ser confundidos, mas na realidade, segundo Zélio,

existe uma importante característica que os distinguem:

“O cartum tem a especifica intenção de provocar o

riso. Ele quase sempre é uma crítica ou comportamental ou

circunstancial, mas é uma crítica. O desenho de humor é o

comentário sobre o comportamento de alguma

circunstância, sobre a vida. Existem poucos desenhistas de

humor, muito poucos.”

Page 72: Livro teste
Page 73: Livro teste

BBicho 36º Salão de Humor Internacional de Piracicaba (2009)

Bonsai 36º Salão Internacional de Humor de Piracicaba (2009)

Page 74: Livro teste

Capa da revista Exame (2002)

Garrafa Humor at the Falls Festival Internacional de Humor Gráfico das Cataratas do Iguaçu (2003)

Page 75: Livro teste

LLona 33º Salão Internacional de Humor de Piracicaba (2006)

Page 76: Livro teste

Céu 18º Salão Universitário de Humor de Piracicaba (2010)

Page 77: Livro teste

Corda 15º Salão Internacional de Humor (2004)

Darwin 3ª Mostra de Humor Gráfico de Valência, Espenha

Page 78: Livro teste

Capa do livro Pequena história da música (de Henrique Autran Dourado, Editora Vitale,1999)

Nuvem Cartum premiado no 18º Salão Universitário de Humor de Piracicaba (2010)

Page 79: Livro teste

Oss

, Portugal)

Internacional

Ossos 10º Porto Cartoon World Festival, Portugal

Perpétuo 9º Porto Cartoon World Festival, Portugal (2007)

Poderes Cartum premiado no 33º Salão Internacional de Humor de Piracicaba (2006)

Page 80: Livro teste

Sanguuessugas Cartum premiado no 33º Salão Internacional de Humor de Piracicaba (2006)

Span 2ª Mostra de Humor Gráfico de Valência, Espanha (2007)

Stick Salão de Humor Montes Claros (2002)

Page 81: Livro teste

WWar The First Cartoon Web Contest Iran Cartoons, Irã (2002)

Violência 2º Mostra de Humor de Valencia, Espanha (2010) Violência

4ª Mostra de Humor Gráfico de Valencia, Espanha (2010)

Pedicuro Grande Prêmio do 4º Concurso Nacional de Charge da Baixada Santista (1998)

Page 82: Livro teste

SSérie Mingus Obras que integraram a exposição "Professores Artistas", na Pinacoteca Benedicto Calixto, Santos (2010)

Page 83: Livro teste

DaCosta [ao centro] com os

filhos pequenos e com os amigos

Medina, Seri [de camisa listada] e

Alexandre Barbosa, o Bar, ao

receber o Grande Prêmio em

1998 no 4º concurso Nacional de

Charges da Baixada Santista

DaCosta é o garoto da direita. Ele

está com a irmã Maria da Penha, o

primo Roberto, o irmão Aylton e o

primo Marcos [na frente]

Com a irmã Maria da Penha e a

mãe, Anália, em Santos

Page 84: Livro teste

Na Universidade de São Paulo, em

1991: ele colaborava com o Jornal

da USP

Uma sequência do

múltiplo DaCosta

Page 85: Livro teste

Osvaldo faz feira desde os 14 anos. Aqui, ele está na feira da Rua Oswaldo Cruz, no

Boqueirão, a cinquenta metros de sua casa DaCosta utiliza o quarto como

ateliê: trabalho árduo e constante

Page 86: Livro teste

Uma pausa no trabalho

para tocar guitarra:

Osvaldo adora o Jimi

Hendrix até hoje

Sketchcrawl: evento mundial dedicado

ao desenho e à pintura. DaCosta reúne

os amigos no Museu de Pesca de Santos

e põe mãos à obra. Mais tarde, o

cartunista Geandré foi prestigiar o

grande encontro da arte

Page 87: Livro teste
Page 88: Livro teste

O cartunista e artista plástico, Geandré: o jornal

Ovelha Negra, que ele fundou nos anos setenta, é tema

do mestrado do amigo DaCosta. Em seu ateliê, no

Ibirapuera, quadros [incluindo um da mulher] e a

árvore seca que acompanha muitos de seus cartuns

Page 89: Livro teste

Zélio Alves Pinto em seu ateliê, em

São Paulo: importante influência na

carreira de DaCosta

Page 90: Livro teste

DaCosta com os amigos e a

namorada Natália na

exposição Professores

Artistas , na Pinacoteca

Benedicto Calixto

Page 91: Livro teste

Grande encontro de DaCosta com

os irmãos Zélio e Ziraldo na

Biblioteca São Paulo: para ambos,

Osvaldo é o último desenhista de

humor

Page 92: Livro teste

Seri, o criador da Cacilda: ele

incentivou o amigo Osvaldo a

participar dos salões de humor

Page 93: Livro teste
Page 94: Livro teste

UM PERFIL DO CARTUNISTA DACOSTA

80

AA holandesa

Antes da entrevista, conversei por telefone algumas vezes

com a doutora em Ciências da Comunicação pela Escola de

Comunicações da USP, Sonia Luyten. Pesquisadora da área

de quadrinhos há mais de quarenta anos, fundadora na

década de setenta do primeiro núcleo de estudos de mangá

na USP, ela integra também os júris dos principais salões

nacionais de humor e de quadrinhos. Ao telefone, me disse:

“Osvaldo é um grande desenhista, um grande artista.”

Numa segunda-feira de julho, de temperatura amena,

ela me aguarda em seu arejado apartamento de paredes de

vidro, na Avenida Padre Manoel da Nóbrega, em São Vicente.

Parece um local invisível, sem paredes. De frente para praia,

o som do mar funciona como terapia. A forte corrente de ar é

refrescante. Toco a campainha. Dou de cara com uma mulher

de pele clara, quase translúcida, cabelos loiros e o rosto

marcado pela simpatia. Ela abre os braços e me convida a

entrar:

“Você é a Camilla!”, diz ao mesmo tempo em que me

conduz à sala.

Page 95: Livro teste

O último desenhista de humor

81

“A entrevista vai ser aqui mesmo. Pode ser?”

“Sim, claro.”

Sentada com as pernas cruzadas em um sofá bege,

Sonia veste uma blusa do mesmo tom que o sofá. O visual é

esplêndido, ao fundo o mar calmo e imenso. O espaço é

bastante iluminado. Quadros, fotos, cartuns e charges

ilustram o ambiente. A sala de jantar é ao lado da sala de

estar. Próximo à mesa central, há um raque que acomoda um

notebook.

Dando continuidade ao que perguntei, Sonia Luyten

faz uma pausa para um comentário. E levanta para fechar o

computador:

“Não consigo conectar a internet. Às vezes funciona,

às vezes não.”

Antes que a entrevista recomece, ela procura o maço

de cigarros que está a sua frente, sobre a mesa de mármore,

com o cinzeiro do lado direito. Formada em jornalismo,

trabalhou na Agência Estado. No fim dos anos sessenta, uma

colega que traduzia quadrinhos, e ia se casar, pediu para que

Sonia traduzisse os quadrinhos no seu lugar.

Page 96: Livro teste

UM PERFIL DO CARTUNISTA DACOSTA

82

“Foi assim que comecei. Fui para o Jornal da Tarde,

que tinha aquela seção que existe até hoje de tirinhas. Então,

passei a me interessar e a estudar o assunto.”

Anos mais tarde ingressaria na Universidade de São

Paulo num curso de editoração, na cadeira de quadrinhos.

Em 1972, a atividade praticamente inaugurou o primeiro

curso regular no Brasil.

Depois disso, Sonia engatou na publicação de livros,

ministrou cursos de graduação e de pós-graduação. Seu

primeiro livro foi editado pela Paulinas: Leitura Crítica das

Histórias em Quadrinho; depois publicou O que é história em

quadrinhos, para a Coleção Primeiros Passos, da Editora

Brasiliense, e O que é filosofia, para a mesma coleção.

Sonia levanta do sofá e vai à cozinha. Retorna

perguntando se bebo suco de pêssego. Num instante volta

com o copo.

“Tá geladinho”, diz.

Ainda de pé, me pergunta se aceito biscoitos para

acompanhar a bebida.

“Não. Obrigada.”

Page 97: Livro teste

O último desenhista de humor

83

“Sim, o DaCosta...”, começa antes que eu faça a

pergunta. “Conheci o trabalho dele antes de conhecê-lo. A

gente se encontrou pela primeira vez acho que no

Sesc/Santos. O DaCosta sempre se refere a mim como ‘a

holandesa que mora em São Vicente.’”

Sonia tem origem italiana e sobrenome holandês

devido ao casamento com o jornalista, professor e

pesquisador de cultura popular, Joseph Luyten, já falecido.

Foi como membro de júri do Salão Internacional de

Humor de Piracicaba que conheceu o trabalho de DaCosta.

“O que chama a sua atenção nos trabalhos dele?”,

pergunto.

“Em primeiro lugar, é um trabalho limpo, é um

trabalho inteligente e que tem uma mensagem. Não adianta

você fazer um bom desenho. É preciso ter uma mensagem,

de conteúdo profundo. O DaCosta é desenhista premiado no

exterior. Isso quer dizer o quê?”, indaga e responde: “Que ele

é capaz de passar uma mensagem. É nesse sentido que

aprecio o trabalho dele.”

“O que seria um desenho limpo?”

Page 98: Livro teste

UM PERFIL DO CARTUNISTA DACOSTA

84

“Um desenho limpo é quando um artista com poucos

traços consegue expressar aquilo o que quer dizer. Vou te

dar um exemplo: vamos supor que você quer fazer um

quadro mostrando Santos. Não é preciso desenhar a cidade

inteira. Se você puser na tela um elemento representativo da

cidade de forma clara e limpa, então Santos estará

representada no quadro. Alguém vê o quadro e

imediatamente sabe que é Santos. O DaCosta tem essa

limpeza no traço, diz muito com pouco!”

Na visão de Sonia Luyten, Osvaldo é daqueles que

anda de bicicleta na rua e se ela não o conhecesse jamais

imaginaria que fosse um artista, tal a sua simplicidade e

modéstia.

“Quando me encontra, o Osvaldo tem aquele jeito de

falar que é um barato. Sempre que me vê pergunta: ‘Como

vai a terra de Martim Afonso, holandesa?’”

No corredor do apartamento, deparei um extenso

armário de onde brotavam jornais. São centenas de caixas

com milhares de recortes classificados por gênero. Isso não é

tudo. De frente para as bancadas e as prateleiras há uma

Page 99: Livro teste

O último desenhista de humor

85

verdadeira biblioteca de arte. Voltamos agora para a sala em

que iniciamos a entrevista. Então, Sonia revela:

“Nunca tive coragem de pedir a ele, morro de

vergonha...”

Põe as mãos no rosto:

“Meu sonho é que o DaCosta faça um desenho meu.”

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UM PERFIL DO CARTUNISTA DACOSTA

86

OO homem da cabeça pequena

De 1993 a 1996, DaCosta atuou em Campinas como

ilustrador do jornal Diário do Povo a convite do diretor de

redação, João Paulo Soares. O jornal vivia uma fase

importante de mudanças e ele foi chamado para participar

do novo projeto editorial e gráfico. Além de DaCosta, a

editoria de arte contava com o caricaturista Dálcio Machado

— que hoje é um dos principais colaboradores da revista

Veja — e com os ilustradores Dellova e Bira. O responsável

pela implantação do novo projeto gráfico do Diário do Povo

foi o professor e artista gráfico, Camilo Riani.

“Como o Brasil priorizou nas últimas décadas a

charge e a caricatura na imprensa, o cartum acabou sumindo

das publicações. O DaCosta é um dos raros artistas que ainda

se debruçam sobre a linguagem tão sutil e bela do desenho

de humor, com resultados muito bons mesmo”, avalia

Camilo, hoje coordenador do Salão Universitário de Humor

da Universidade Metodista de Piracicaba.

Depois de uma temporada de três anos em Campinas,

onde teve a oportunidade de testar novas linguagens como

Page 101: Livro teste

O último desenhista de humor

87

ilustrador, em 1996 DaCosta retorna com a família para

Santos. Logo fica sabendo que o jornal A Tribuna está

selecionando currículos de artistas gráficos. É contratado

então para trabalhar na editoria de arte com Alexandre

Barbosa, o Bar, e Sérgio Ribeiro, o Seri.

A Tribuna impulsionou-o a novos enredos. Lendo um

texto do jornalista econômico Joelmir Beting, em que este

dizia que “algumas pessoas têm a cabeça pequena para

pensar”, DaCosta imediatamente elabora o desenho de um

homem com uma cabeça muito pequena e um corpo imenso.

O resultado foi impressionante. Todos na redação aprovam.

Em casa, ele passa horas e horas desenhando o mesmo

homem em contextos diferentes. Ora ele está subindo uma

escada para um ponto que dá a lugar nenhum. Agora está

com um tambor nos braços, pisando sobre prédios e casas.

Em versão colorida, senta-se em uma cadeira no topo de um

morro. Com o personagem, Osvaldo extrai situações

corriqueiras do cotidiano, entremeando-as com uma aura

surrealista, pois a vida não tem sentido. De repente, o

homem é um serralheiro no meio da floresta...

Page 102: Livro teste

UM PERFIL DO CARTUNISTA DACOSTA

88

São oito e meia da manhã de um sábado, o dia está

frio e chuvoso. Uma sala na Universidade Santa Cecília está

repleta de alunos do curso de Publicidade e Propaganda.

Estou ali para entrevistar Alexandre Barbosa, o Bar, que dá

aula com DaCosta. Ambos são criadores e curadores do Salão

Dino de Humor do Litoral Paulista. O pseudônimo Bar

remete a 1988, quando ingressou em A Tribuna. Pergunto:

“O que o Ziraldo quis dizer quando denominou

DaCosta de ‘o último desenhista de humor?’”

“A resposta é simples: porque ele é muito bom nisso.”

Bar conta que num primeiro momento em A Tribuna,

DaCosta moderou um pouco o humor nos cartuns, receoso

de receber um segundo processo. Ele se refere ao processo

que DaCosta sofreu em Campinas, quando atuava no jornal

Diário do Povo, por ter feito um desenho considerado

ofensivo por um leitor. Depois, segundo Bar, DaCosta foi se

soltando e readquiriu a confiança no seu trabalho:

“Ele tem um modo muito característico de ver as

coisas”, define.

A técnica de DaCosta não combina com a rapidez que

um jornal diário exige. Em A Tribuna, as ilustrações tinham

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O último desenhista de humor

89

de correr contra o tempo e a produção de Osvaldo era mais

aprimorada, quase não se adaptava à correria.

“Cheguei até discutir algumas vezes porque, às vezes,

ele era muito lento. Mas o DaCosta é tão profissional que

mergulha inteiramente no trabalho. Fica chateado por ter

que fazer as coisas com pressa. Ele não gosta disso, gosta de

elaborar”, conta Bar.

Alexandre Barbosa salienta a formação de Osvaldo na

escola de Belas Artes, em São Paulo:

“Por exemplo: o Seri é formado em jornalismo e

aprendeu a desenhar por causa disso. Quando me formei em

publicidade, eu já gostava de desenhar. Desenhava antes de

entrar em publicidade porque a minha paixão sempre foi o

quadrinho. Mas a paixão do DaCosta sempre foi a pintura.

Então, diferentemente de mim e do Seri, o trabalho dele está

diretamente ligado à pintura. Se você perguntar quais são as

suas influências ele vai citar os aquarelistas.”

“O senhor acha que estão faltando desenhistas de

humor hoje?”

“Se você pegar as novas gerações que estão surgindo

nos salões de humor vai perceber muito mais cartunistas do

Page 104: Livro teste

UM PERFIL DO CARTUNISTA DACOSTA

90

que desenhistas de humor. De certo modo, isso reflete a falta

de criatividade. Como faz parte de outra geração, o DaCosta

sabe analisar o comportamento social e traz para o desenho

essa analogia. Os novos artistas gráficos não sabem fazer

isso. O Osvaldo é um marco na questão do desenho de

humor porque ele reelabora a crítica feita quando o país

estava sob a tutela militar. Do pessoal da época dele, acho

que ele é o remanescente. Os outros já estão ultrapassados e

os que estão surgindo não têm essa pegada.”

“Depois da homenagem do Ziraldo, os artistas

gráficos passaram a olhar o trabalho do DaCosta de outro

jeito?”

“A verdade é que com o tempo os artistas gráficos

aprenderam a respeitá-lo. O Ziraldo só enfatizou que o

trabalho dele merece respeito. Digamos: você pode até não

admirar o trabalho do DaCosta, mas você tem de respeitá-lo

porque ele é sincero naquilo que faz. Acho que essa é uma

das principais características do trabalho dele. O que ele faz

é o que sempre fez. Existe uma evolução, mas não existe

descaracterização no trabalho dele.”

Page 105: Livro teste

O último desenhista de humor

91

Page 106: Livro teste

UM PERFIL DO CARTUNISTA DACOSTA

92

PPalhaços azuis

Antes de conhecer DaCosta pessoalmente, o pintor Juracy

Silveira descobriu primeiro a sua obra caminhando pelos

corredores do Salão Internacional de Humor de Piracicaba.

Em 2005, ele estava no evento acompanhado dos amigos

Argemiro Antunes — o artista gráfico Miro — e do escultor

espanhol radicado em Santos, Luis Garcia Jorge. Foi quando

viu algo diferente. Era o desenho de um circo, repleto de

palhaços pulando de um trampolim. Juracy para, olha a cena

mais uma vez e chama Miro:

“Miro, venha cá ver esse cartum. Olha que coisa

linda.”

Miro reconhece imediatamente o autor do desenho.

Vira-se para o amigo e diz:

“É o DaCosta. Ele é de Santos”

O que atraiu a sua atenção para o trabalho de Osvaldo

foi a sutileza na mistura de cores, uns azuis bonitos nas

roupas dos palhaços. Nascido em 1937, em São Paulo, Juracy

da Silveira e Silva foi morar em Santos ainda criança. Desde

cedo, manifestou interesse pela pintura. Começou a pintar

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O último desenhista de humor

93

no ateliê de Nelson Penteado de Andrade, um dos

fundadores, ao lado de Mario Gruber, do Clube da Gravura

de Santos e um dos pintores mais importantes de Santos,

falecido precocemente.

Como artista, Juracy participou de diversos salões de

arte por todo o país. A sua técnica envolve pincéis com tintas

acrílicas sobre tela e outros materiais. A mensagem sobre a

tela tenta traduzir a alma humana em meio aos

desequilíbrios sociais, como ele mesmo define.

Por intermédio do professor de jornalismo da

Universidade Santa Cecília, Márcio Calafiori, Juracy Silveira

veio a conhecer o autor dos desenhos que tanto o

impressionara em Piracicaba. Ele relembra:

“Conversando com o Calafiori, falei do que eu tinha

visto e ele me perguntou se eu queria conhecer o DaCosta.

Respondi que fazia questão de conhecê-lo.”

Marcaram a data e no dia combinado seguiram no

fusca de Juracy para a Rua Bento de Abreu, no Boqueirão. Na

ocasião, julho de 2007, DaCosta havia acabado de receber

um prêmio em Portugal. Estava com um estojo nas mãos,

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UM PERFIL DO CARTUNISTA DACOSTA

94

com vinho e outros objetos trazidos de lá a título de

homenagem. Juracy não resistiu e fez a piada:

“Corre por aí que os portugueses deram espelhinhos

aos indígenas quando aportaram aqui.”

Osvaldo volta a olhar atentamente o estojo e diz:

“Eles continuam dando espelhinhos.”

Um dia depois da inauguração da exposição

“Professores Artistas”, do curso de Artes da Universidade

Santa Cecília, na Pinacoteca Benedicto Calixto, Juracy

retorna. Hoje, o local está tranquilo e o pintor aproveita para

apreciar com calma as obras expostas, principalmente as de

DaCosta:

“Sou apaixonado pela cor. O que me chama a atenção

na obra dele é isso. Se me perguntarem se ele é parecido com

outro cartunista, vou dizer que não. Eu o acho mais parecido

com o Marc Chagall, pela leveza das cores.”

Juracy olha os trabalhos mais uma vez e repete:

O desenho dele é tão fino! O colorido dele me lembra

muito o Marc Chagall, um dos grandes pintores do século

vinte. O Chagall é extremamente delicado no tratamento da

Page 109: Livro teste

O último desenhista de humor

95

cor. Não sei a relação que o DaCosta tem com ele, nem

conversamos sobre isso.”

Falando ainda sobre Osvaldo, Juracy se recorda do

último desenho de sua autoria que viu no Sesc/Santos, em

homenagem à Copa do Mundo de 2010:

“Quando vi o trabalho ri muito. O Sesc ampliou o

cartum que ele fez, de um cara vendo televisão com uma

antena que ficava em cima de uma árvore. O desenho foi

transformado em banner. E como ficou grande, as pessoas

tinham de levantar a cabeça para perceber a piada. Ficou

curioso, com aquela árvore com azuis bonitos no céu.”

Page 110: Livro teste

UM PERFIL DO CARTUNISTA DACOSTA

96

TTraços duros e geométricos

Sérgio Ribeiro, o Seri, desenhava, mas nunca achou que

partiria para a vida profissional como cartunista. Gostava

apenas de ver as tirinhas nos jornais. As coisas só comeram a

ficar séria aos quinze anos de idade, quando passou a

desenhar na classe assuntos referentes à aula. Uma

professora de inglês o indicou para prestar serviços à

Cooperativa dos Jornalistas de Santos. Na entidade, Seri

trabalhou no jornal Preto no Branco. Em 1980, foi convidado

também para o Jornal de Mesa.

A cooperativa foi o empurrão que faltava para o

ingresso de Seri nos salões de humor. No mesmo ano, Seri foi

convidado a trabalhar no jornal A Tribuna, a princípio como

freela. Quando ficaram amigos, Osvaldo e Seri viviam se

encontrando nos salões. Em 1984, Seri entrou na faculdade

de jornalismo e no mesmo ano começou no extinto jornal

Cidade de Santos. Passou lá um ano como desenhista

publicitário e depois subiu para a redação. Na época, o jornal

não possuía um cartunista fixo e Seri foi o primeiro.

Ingressou em A Tribuna em 1987 e saiu em 2001. Criador da

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O último desenhista de humor

97

personagem Cacilda, atualmente trabalha no jornal Diário do

Grande ABC, em Santo André.

Seri é brincalhão, os desenhos já mostram por si só.

Quanto pergunto sobre um de seus favoritos, ele tira da

manga um desenho. É uma mulher mais gordinha, ela está

de biquíni e deitada. O que chama a atenção são as linhas

fortes, meio alaranjadas. Sobre a técnica de DaCosta, Seri é

incisivo:

“Antes, o desenho do Osvaldo era completamente

diferente. Era diferente porque ele trabalhava com

edificações, trabalhava com um arquiteto. Naquela época,

como não havia computador, ele trabalhava muito com

gabaritos, que são aquelas coisas de círculo, fazer elipse,

canto arredondado. Era uma régua. Você pegava uma

canetinha de nanquim e seguia uma guia.”

Para Seri, Osvaldo tinha traços duros, geométricos.

Mas isso, segundo ele, influenciou o trabalho artístico dele.

“Quando vi de novo o DaCosta, em 1996, eu estava na

Tribuna. Vi o trabalho dele e disse: ‘Não, não, esse aqui não

pode ser o DaCosta’. Eu fiquei muito feliz, o trabalho tinha

evoluído muito. Ficou leve, mais sutil. Antes, ele tinha um

Page 112: Livro teste

UM PERFIL DO CARTUNISTA DACOSTA

98

traço pesado, até pela contingência de trabalhar com

arquitetura. Mas depois a cabeça dele se soltou. Foi uma

surpresa.”

Na redação, ele trabalhava quieto. Bom em caricatura,

sempre desenhava o pessoal da redação.

“A gente ria muito com as caricaturas do DaCosta”, diz

Seri.

“O desenho dele é caprichado. O ritmo do Osvaldo é

de artista, tanto que ele não se deu muito bem em redação.

Se você perguntar se prefere trabalhar em redação ou

trabalhar em casa, ele vai responder que prefere trabalhar

em casa. Ele é meticuloso. Você pode reparar pelas aguadas

que faz. Ele está longe daquele cartum que se fazia na década

de oitenta, cuja importância estava mais na mensagem do

que na forma. A gente se preocupava mais com a piada, de

criticar o sistema, do que com o aspecto plástico. E o DaCosta

hoje é mais um artista plástico em termos de acabamento do

que um cartunista. As sacadas deles são ótimas, sutis. Não

vejo nada parecido no Brasil com o DaCosta, em termos de

cartum para salão de humor. É muito próprio, é singular o

trabalho dele”.

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O último desenhista de humor

99

DaCosta passou pelo jornal Folha de S.Paulo de 1987

a 1989. Depois, foi para a Folha da Tarde, onde ficou até

1991, como freela. A empresa Folha da Manhã, foi um

período de descobertas. Conheceu cartunistas como Angeli,

Alex Argozino, Glauco, Fernando Gonsales, Mário Kano,

Orlando. E também os ídolos Paulo Francis e Tarso de

Castro, jornalistas da pesada. Também teve trabalhos

publicados nas revistas Exame (2000) e Bundas (2002), esta

a pedido do próprio Ziraldo, que era o editor da publicação.

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UM PERFIL DO CARTUNISTA DACOSTA

100

ÁÁrvores secas

O jornal Ovelha Negra foi criado pelo artista gráfico Geandré

em 1976. Hoje, não há muitos registros sobre a existência da

publicação que divulgava caricaturistas, chargistas,

cartunistas e ilustradores, entre os quais Angeli e Laerte.

Basicamente a sua linguagem era de humor. De acordo com a

Associação Brasileira de Imprensa, é um dos maiores

registros que tem na imprensa nacional de um jornal do

gênero.

Como não poderia deixar de ser, o Ovelha Negra

também sofreu com a censura militar. Geandré tinha uma

influencia muito forte do humor espanhol e o aplicou na

publicação. O jornal sofria também com a censura

econômica. Constantemente seus exemplares eram

impedidos de chegar às bancas. Por muitas vezes, Geandré

teve de se esconder na gráfica por causa das censuras, para

garantir que o jornal fosse impresso mensalmente. No total,

eram rodados vinte mil exemplares e quinze mil eram de

vendas garantidas. Um ano e meio depois de sua fundação, o

jornal não resistiu à pressão política e econômica e fechou.

Page 115: Livro teste

O último desenhista de humor

101

Ainda não conheço Geandré, só por telefone. O mês é

julho. Combinamos às dez da manhã, em São Paulo, no bairro

Ibirapuera, onde ele mora. Mas cheguei meia hora mais cedo.

O porteiro interfona para ter certeza sobre a visita. Não

demora e uma loira de olhos azuis se aproxima:

“Sou a esposa do Geandré. É que ele disse que você

viria às dez horas e por isso ainda não está pronto. Quer

esperá-lo lá dentro?”

Subimos o elevador. Simpática, a mulher me dá

atenção até chegarmos à sala. Ao entrar no grande espaço,

ela me acomoda em um dos sofás.

“Fique à vontade. Vou sair, mas se precisar chame a

empregada.”

Os quadros nas paredes atraem a minha atenção, de

cores fortes, os traços são finos e alinhados. Tem um

desenho: uma árvore sem folhas, em frente a um portão

estreito. As cores são quentes e frias. Ao lado, outro desenho

chama atenção. Dessa vez, são várias árvores depenadas em

uma praça que abriga uma multidão de pessoas. Todos em

preto e branco.

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UM PERFIL DO CARTUNISTA DACOSTA

102

Na mesinha, no centro da sala, tem catálogos de fotos,

cartuns e revistas. Todas organizadas em fileira. Geandré

começou a desenhar precocemente, aos sete anos de idade,

em Santos. Desenhista nato, sua primeira experiência foi em

A Tribuninha, o primeiro suplemento infantil da imprensa

brasileira, encartado no jornal A Tribuna. Quando começou a

colaborar com o suplemento, Geandré tinha doze anos.

Ele passou rapidamente pela imprensa de Santos e foi

para São Paulo. No entanto, decidido a se estabelecer fora do

país logo se instalou em Barcelona, na Espanha, em 1972. A

partir daí, Geandré construiu uma carreira sólida e

itinerante, com obras espalhadas, além de Barcelona, por

Madri, Milão e Paris. Uma temporada de dois anos em cada

uma dessas cidades europeias. No tempo em que esteve fora,

colaborou com o Diário de Barcelona e as revistas Paris

Match e Filipachi. Suas obras passaram por Paris, Barcelona,

Madri, Zurique, Agência Tusquet-Oslo, Copenhagen, Berlim.

Realizou exposições em São Paulo, Ribeirão Preto, Curitiba,

Tóquio, Barcelona, Montreal e Paris. Geandré conhece

DaCosta há pouco mais de um ano. Mas já conhecia o seu

trabalho desde o início da revista Pau Brasil, em 1982.

Page 117: Livro teste

O último desenhista de humor

103

Depois, Geandré viu novamente o seu trabalho no jornal A

Tribuna.

De olho no relógio, os ponteiros apontam dez horas.

Como combinado surge no corredor um homem de altura

mediana, cabelos brancos escorridos até os ombros, de

cinquenta e nove anos. Calças jeans e camiseta vermelha. É o

Geandré. Ele estende as mãos. Imediatamente levanto-me do

sofá e retribuo:

“Olá, Camilla! Ainda não tomei café. Podemos

conversar na varanda?”

Logo pergunto sobre DaCosta e ele responde:

“Trata-se de um trabalho interessante porque o

conteúdo do humor dele tem uma tendência para o lado

mais gráfico. O humor dele é tanto metafísico quanto surreal.

É um trabalho contemporâneo, com uma visão particular

para o cartum, para o desenho de humor. Seus desenhos

podem ter sido produzidos há anos, mas continuam sempre

atuais. Ele é atemporal. É um artista múltiplo, sempre vai ser

um cara inovador.”

Olhando de rabo de olho, percebo que a empregada se

aproxima. Ela interrompe a conversa:

Page 118: Livro teste

UM PERFIL DO CARTUNISTA DACOSTA

104

“Mais um suco?”

Geandré parece não prestar a atenção no que ela diz e

fica em silêncio. O silêncio dura menos de um minuto. Ela

nos serve suco de maracujá.

“Onde paramos?”, pergunta Geandré.

“Falávamos do Osvaldo...”

“Ah, é!... Antes eu não era tão abrangente quanto

deveria ser em relação ao seu trabalho, mas tenho tido muito

contato com ele ultimamente. Tem sido uma companhia

muito agradável. É um artista de um caráter, de um

profissionalismo extremo. Vejo também no Da Costa um

agente muito importante no relacionamento com os

cartunistas. Ele faz essa intermediação, essa interação, dá

apoio, tem ideias. É muito importante o que ele está fazendo

agora com o Salão Dino de Humor do Litoral Paulista,

resgatando a memória do Dino, um dos maiores chargistas

que o Brasil já teve e de que Santos deveria se orgulhar.”

“Será que o Osvaldo não deveria voltar a trabalhar em

redação?”

“Sinto falta do DaCosta no jornal diário, porque ele é

um bom chargista também. Na verdade, os dois mil

Page 119: Livro teste

O último desenhista de humor

105

cartunistas que existem atualmente no país não são tão

cartunistas quanto ele.”

Pergunto a Geandré onde estão os seus desenhos.

Imediatamente, ele se levanta e aponta o final do corredor:

“É por aqui.”

Indica-me um escritório. Na bancada fica o

computador. Do lado direto da porta tem uma estante

repleta de livros, dos mais diversos tamanhos e cores.

Também ao lado da porta tem um desenho de uma mulher.

Ele diz:

“É a minha mulher. É um retrato que ela fez em

Roma.”

Em cima do sofá, tem uma grande pasta. Ele a mostra

cuidadosamente. Abrindo a primeira página há um desenho

com um fundo azul escuro, com um lápis gigante nas cores

amarela e vermelha, pintando letras e riscos. Sobre o lápis,

um pequeno homem o conduz. De novo, Geandré folheia a

pasta. Faz questão de mostrar um a um. Diferentemente do

anterior, o desenho agora é o de uma mulher deitada de lado

sobre um sofá vermelho, vestida de azul, na mesma

entonação do céu, só que mais claro. Noutro desenho, a

Page 120: Livro teste

UM PERFIL DO CARTUNISTA DACOSTA

106

mesma mulher está apoiada a uma mesa, com um livro

aberto. Parece retratar a imagem de uma só pessoa, em

diferentes ângulos.

Virando mais ainda a pasta, agora o cartum mostra

uma rua. Prédios altos e homens pequenos. E em primeiro

plano, mais uma vez ela aparece — a árvore. Noutro

desenho, o plano grande de um prédio, minuciosamente

detalhado. Há a proclamação de cada detalhe, até a bandeira

pendurada sobre uma das janelas, que possui traços finos.

Quase todos os desenhos são preenchidos no branco da folha

contrastando com o preto do lápis. Há só uma placa

vermelha, a de um sorriso proibido. No desenho, quase que

subliminarmente, Geandré não abre mão da pequena árvore.

Ele parece ter uma forte identificação com o outono. As

árvores secas aparecem em primeiro plano, às vezes ao

fundo. Mas sempre então lá.

Em 2009, DaCosta convidou Geandré para abrir o

Salão Dino de Humor. Agora, na dissertação de mestrado

Osvaldo está resgatando a obra do amigo e a vida breve do

jornal Ovelha Negra, outra de suas maiores influências como

artista gráfico. Geandré diz:

Page 121: Livro teste

O último desenhista de humor

107

“Foi uma surpresa e tanto quando ele me procurou e

disse: ‘Geandré, o seu trabalho foi uma das maiores

referências para mim.’”

Page 122: Livro teste

UM PERFIL DO CARTUNISTA DACOSTA

108

SSketchcrawl

O sketchcrawl é um evento mundial em que todos saem de

casa no mesmo dia e horário para desenhar. É uma

socialização que ressalta a criatividade e a espontaneidade,

retratando desde situações corriqueiras a um detalhamento

da paisagem. Foi criado por Enrico Casarosa, que depois de

tomar proporções continentais nos Estados Unidos e Canadá

espalhou-se pelo mundo. Em Santos, o evento completará

dois anos em janeiro de 2011. Organizado pelo próprio

DaCosta, os desenhistas santistas já passaram pelo Museu de

Pesca, Emissário Submarino, Praça Mauá, Praça da Bandeira

e Boqueirão.

Às catorze horas, o sol parece se perpetuar sobre as

nossas cabeças. Trinta e um de julho. Sábado, muito calor.

Muito mais do que a meteorologia previra. Em frente ao

Museu de Pesca de Santos, já consigo visualizar o casal

entrando. Ele está de regata azul e ela de camiseta branca e

bermudas. Mais dois casais atravessam a avenida

movimentada da orla. E seguem na mesma direção. Aos

poucos os participantes vão se identificando com cada

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O último desenhista de humor

109

espaço do local. Uns preferem o gramado verdinho, outros se

acomodam no banco próximo ao palacete. Natália está do

outro lado, se junta ao casal no banco.

Já Osvaldo se isola no canto do gramado. Encosta-se

na parede e tira da mochila uma garrafa e um copo

descartável. As mãos já seguram um pincel e uma tigela de

tinta. Nas pernas, já deixa na posição correta o caderno

gráfico. Pega o lápis e começa a produzir. Riscos repetidos e

finos dão forma ao desenho talentosamente discreto. Ele

olha para a frente e confere. Olha mais uma vez lá adiante.

Confere de novo se os traços estão coerentes com o que vê.

Do outro lado, Natália tira da bolsa o seu caderno. Ela

também desenha. Aqui cada um reproduz o que acha mais

interessante, não existe uma regra a seguir. Apenas o que o

instinto manda.

“E aeeee, professor”, cumprimenta um aluno.

“Oi, tudo bem?”, seus olhos se concentram no

desenho.

O garoto permanece parado à sua frente:

“Pode escolher onde quer sentar”, diz DaCosta.

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UM PERFIL DO CARTUNISTA DACOSTA

110

O garoto segue em direção ao gramado e faz igual ao

professor, prefere sentar-se sobre o chão fresco. Para um

desenhista parece que vale mais ficar à vontade num lugar

tranquilo e isolado, do que se acomodar num local mais

confortável. Mais à frente, Natália começa a desenhar. Ela

abre o caderno e de um outro ângulo faz os desenhos. Ela ri

bastante com a moça de traços orientais ao seu lado. Ambas

parecem se dar muito bem.

Enquanto isso, DaCosta já começa a misturar as tintas

na paleta. Ele conversa comigo, mas parece não prestar

muita atenção no que digo. As respostas são meio aleatórias.

Como:

“Ah, é, sim.”

Às vezes, me proponho a perguntar mais de uma vez

e exigir respostas afirmativas:

“Você era hippie?”.

“Tive uma fase de contracultura. Eu gostava do

movimento.”

Osvaldo tira da mochila um estojo de aquarelas, as

mais diferentes cores. Ele as mistura na tigela com muita

água. A água estimula a leveza da cor.

Page 125: Livro teste

O último desenhista de humor

111

“Vai pintar, Osvaldo?”

“É, vou”.

O formato está completo. O desenho já pode ser

claramente visto. É o Museu de Pesca, que se assemelha a um

palácio. Repleto de janelas.

“Lindo, hein, DaCosta?”

“Ah, é? Gostou?”

“Osvaldo, vai fazer o que agora?”

“Vou fazer o acabamento.”

“É? E como?”

Ao conversar, percebo que ele faz um mistura de

marrom ao amarelo, em contato direto com a água.

“Assim”, mostra ao pincelar no caderno gráfico. E

depois, retomando o assunto da contracultura e dos hippies:

“Uma tia por parte de mãe, a Conceição, frequentava

muita a minha casa quando eu era novo. Lembro que quando

ela apareceu em casa, em 1970, com aquele cabelo, parecia a

Janis Joplin. O cabelo dela era grandão e colorido. Eu tinha

catorze anos.”

“Então, você passou a conhecer melhor o

movimento?”

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UM PERFIL DO CARTUNISTA DACOSTA

112

“Foi porque ela apareceu lá em casa com aquele

cabelão. Quando a gente é adolescente começa a ser

influenciado e a grande influência que tive foi dessa prima.

Então, essa fase marca muito a gente.”

“Qual a influência que ela teve sobre você?”

“A de ser mais libertário e criativo, né? Naquela época

era tudo novidade. O legal da minha tia era essa cultura

hippie, ela se produzia. Fazia roupas e vendia. Ela me

ensinou a manchar uma camiseta. Aí eu manchava, tinha

algumas que eu até desenhava. Eu fazia desenhos malucos.

Era um barato... Ela aparecia em casa com aquele baita

cabelão.”

Aí, de repente, ele muda de assunto, uma de suas

principais características, emendar um assunto no outro, dar

uma volta inteira e então retomar o tema que gerou a

conversa, um circuito tonto e elétrico.

“Sabia?... Segunda-feira agora vou à Associação dos

Ilustradores do Brasil?”

DaCosta disse associação, mas na verdade é

Sociedade dos Ilustradores do Brasil. Os desenhistas se

filiam, pagam uma taxa anual e têm apoio jurídico, caso

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O último desenhista de humor

113

tenham algum problema com as ilustrações. É uma entidade

sem fins lucrativos, concebida inicialmente a partir do

encontro de ilustradores, realizado em agosto de 2001. A

Sibi promove interação entre os desenhistas. Agencia

workshops, palestras, exposição, concursos anuais com

premiação.

Osvaldo usa o pincel e desenha as cores verdadeiras

do museu. Ele as espalha minuciosamente. Contorna com a

canetinha os traços que agora estão cobertos pela tinta. Ele

diz:

“O Geandré disse que vai vir.”

Às dezesseis horas, o sol começa a dar trégua. A luz

não ofusca mais os olhos de quem ousa olhar para o alto.

Não demora muito para o cartunista Geandré entrar,

olhando para os lados.

“E o DaCosta?”

Osvaldo levanta rapidamente e o cumprimenta, com

as mãos ainda sobre o desenho úmido. E ele mostra a

Geandré.

“Sketchcrawl”, aponta.

Natália o vê e corre para cumprimentá-lo:

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UM PERFIL DO CARTUNISTA DACOSTA

114

“Oi, Geandré.”

“Oi, Natália.”

Os três se reúnem e o papo começa. Minutos antes,

tive de sair para tomar uma água. A voltar vejo-os

conversando. Agora de mãos vazias DaCosta gesticula

entoando um assunto que parece interessar bastante

Geandré. Natália retorna ao banco, onde estava com os

colegas. Ela aproveita para bater fotos. Na varanda do Museu

de Pesca tem gente espalhada por todos os cantos.

“Como vai a terra de Benedicto Calixto?”, me pergunta

Geandré.

“Vai bem”, respondo.

“Como é em Itanhaém?”

“Como assim?”

“A terra de Calixto.... Tem lá alguma casa de

exposição?”

“Tem sim, a Casa do Olhar.”

“E de homenagem a Calixto?”

“Tem lá uma escola estadual leva o nome do pintor.”

A voz de Natália se acentua ao chamar os

participantes do sketchcrawl para a última foto do evento:

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O último desenhista de humor

115

“Pessoal, vamos tirar uma foto?”

Natália sai recolhendo os participantes:

“Vamos?”, diz ela. “Vamos”, pede mais uma vez.

O professor do curso de jornalismo da Unisanta,

Marcus Vinícius Batista, chega acompanhado da filha, a

tempo para se juntar ao grupo e sair na foto. Todos se

encolhem no banco, metade em pé e outra sentada.

“Mais uma”, pede Natália. “Essa vai para o site do

sketchcrawl.”

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116

OO professor e as palavras Após sair do jornal A Tribuna, Osvaldo recebeu em 1998 o

convite para ingressar como professor na Universidade

Santa Cecília. O pedido veio do amigo e colega de profissão,

Alexandre Barbosa. Ele aceitou de imediato. Afinal, seria

uma experiência nova, trabalhar como professor.

São dezenove horas. Aos poucos, os alunos chegam

um a um. Na mesa do professor, Osvaldo apoia o material.

Hoje, a aula é de capa. Os alunos vão aprender a costurar o

caderno gráfico.

Os alunos parecem gostar de DaCosta e ele gosta do

que faz. Passa de mesa em mesa:

“Professor!”, chama a aluna de cabelo e vestido

góticos.

Ele explica:

“Os papéis da semana passada serão colados no

caderno. Hoje vamos costurar e pintar o que falta.”

Ele tira da sacola a aquarela branca:

“Professor”, a aluna continua.

“Quem está me chamando?”

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O último desenhista de humor

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Ele olha para frente e a garota o chama com a mão.

Com os óculos apoiados numa cordinha sobre o pescoço,

Osvaldo olha fixo para a menina.

“Aqui, aqui”, ela diz.

Como professor, Osvaldo não costuma usar roteiro,

a programação das aulas é espontânea.

“Vamos continuar o que não terminamos na última

aula.”

“Professor, professor”, outro chamado.

Imediatamente vira-se.

“Quem me chamou?”.

Um aluno magro, de olhos arredondados, o encara

do outro lado:

“Eu?”, estende o braço.

Ao pegar o caderno gráfico do garoto, Osvaldo o

incentiva:

“Você tem talento.”

A sala está cheia. Todos proclamam pelo professor

DaCosta.

“É assim”, ele vai explicando.

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UM PERFIL DO CARTUNISTA DACOSTA

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Osvaldo é fácil de se atrapalhar, não consegue se

concentrar em duas coisas. Ou desenha ou fala. Na aula,

procura passar nas mesas de todos os alunos, tentando

sempre ajudar. No fim da aula, ele repete:

“Semana que vem tem skatchcrawl no Museu de

Pesca!”

Atualmente a preocupação de DaCosta é com o

mestrado:

“Tenho que fazer uma resenha desse livro aqui”, me

mostra.

Ele lê e rele um texto estampado na tela do

computador. As páginas estão sublinhadas:

“Uhhh”, resmunga. “Tenho que fazer isso.”

Não é a primeira nem a última vez que ouço essa

frase. Sempre que tem algo importante, DaCosta não

consegue se concentrar e repete a mesma coisa várias

vezes ao dia.

“Caramba, tenho de fazer a resenha”

Sentado na cadeira do computador, ele tira da

gaveta um caderno. Folheia as páginas. Uma, duas, três. Ele

diz:

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“A Natália me ajudou a fazer isso aqui. É

difícil...aahhh... A Natália é uma garota muito inteligente.

Tá me ajudando no mestrado.”

Vira-se para o computador e checa os e-mails:

Renato Alarcão... Você precisa falar com ele. Ele é

um artista muito legal.”

Osvaldo tenta fazer tudo ao mesmo tempo. Deixa

aberto a caixa do e-mail e volta a ver os desenhos. O caderno

gráfico em cima da mesa está semiaberto. Ele acabara de

pintar uma página em branco e espera secar. Perto de mim,

ele pega de volta o caderno e o folheia novamente. Depois de

olhar por cinco minutos o caderno em silêncio, mais uma vez

faz sinal com a boca:

“Ihhhhh.... É complicado. É difícil fazer isso aqui.

Falei para o Geandré que esse ano é mais sossegado, mas

no ano que vem não vou sair do pé dele”.

Ele continua o assunto:

Olha isso. Vê o que acha?”

Ele não é bom com as palavras. Faz confusões quanto

a datas e não consegue se concentrar num só assunto. Para

tirar dele uma resposta exata é preciso perguntar mais de

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UM PERFIL DO CARTUNISTA DACOSTA

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uma vez. Entre uma conversa e outra, o assunto toma outros

rumos. Apontando para quadros e gráficos coloridos na

parede, DaCosta se distrai:

“Olha os quadros da Pinacoteca”, aponta. “Esse aqui

vai para o Márcio”.

“Sábado agora vou à Gibiteca. Vou levar a exposição

Dino para lá”.

Osvaldo fala bastante do tempo em que trabalhou na

imprensa, mas se perguntado sobre uma possível volta à

redação, se desvencilha:

“Não. Eu gosto de ser professor”.

Nas mãos, as ideias surgem do nada. Osvaldo aponta

para o desenho que fica acima do computador. O retrato

mostra várias pessoas tomando sol de frente a muitos

aquários no espaço, como se estivessem numa praia, só que

o mar está preso dentro de uma caixa de vidro, a galeria da

água.

“Esse desenho foi o seguinte. Sonhei que estava numa

sala e nela havia vários aquários e as pessoas usavam trajes

de praia”.

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Ele agora se esforça, quer aprender a escrever, pois a

vida toda só se dedicou ao desenho. O mestrado é a sua

grande oportunidade. Aos poucos, Osvaldo da Silva Costa

começa a pegar o jeito com as palavras.

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