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Reitor Pe. Jesus Hortal Snchez S.J. Vice-Reitor Pe. Josaf Carlos de Siqueira S.J. Vice-Reitor para Assuntos Acadmicos Prof. Jos Ricardo Bergamann Vice-Reitor para Assuntos Administrativos Prof. Luiz Carlos Scavarda do Carmo Vice-Reitor para Assuntos Comunitrios Prof. Augusto Luiz Duarte Lopes Sampaio Vice-Reitor para Assuntos de Desenvolvimento Pe. Francisco Ivern S.J. Decanos Prof Maria Clara Lucchetti Bingemer (CTCH) Prof. Luiz Roberto A. Cunha (CCS) Prof. Reinaldo Calixto de Campos (CTC) Prof. Hilton Augusto Koch (CCBM)

As marcas do homem na florestaHistria ambiental de um trecho urbano de mata atlntica

Organizao

Rogrio Ribeiro de Oliveira

Editora PUC-Rio Rua Marqus de S. Vicente, 225 Projeto Comunicar Praa Alceu Amoroso Lima, casa Editora/Agncia Gvea Rio de Janeiro RJ CEP 22453-900 Telefax: (21)3527-1838/1760 Site: www.puc-rio.br/editorapucrio E-mail: [email protected] Conselho Editorial Augusto Sampaio, Cesar Romero Jacob, Fernando S, Jos Ricardo Bergmann, Luiz Roberto Cunha, Maria Clara Lucchetti Bingemer, Miguel Pereira e Reinaldo Calixto de Campos. Diagramao de miolo e capa Jos Antonio de Oliveira Reviso de originais Toms da Costa Batista e Gilberto Scheid Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por quaisquer meios (eletrnico ou mecnico, incluindo fotocpia e gravao) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permisso escrita da Editora. ISBN: 85-87926-10-1 Republicado como e-book. Editora PUC-Rio, Rio de Janeiro, Brasil, 2010.

As marcas do homem na floresta: histria ambiental de um trecho urbano de mata atlntica/organizao: Rogrio Ribeiro de Oliveira. Rio de Janeiro : Ed. PUC-Rio, 2010. 230 p. ; il.; e-book. Inclui bibliografia. 1. Homem Influncia sobre a natureza Rio de Janeiro (RJ). 2. Florestas tropicais Mata Atlntica - Histria. 3. Mata Atlntica Proteo. I. Oliveira, Rogrio Ribeiro de. CDD: 304.28098153

Sumrio

Apresentao Rogrio Ribeiro de Oliveira PrefcioAmarcadosagrado Denise Pini Rosalem da Fonseca IntroduoOscenriosdapaisagem Rogrio Ribeiro de Oliveira CaptuloIOespaomarcado Histria de uma floresta, geografia de seus habitantes Ins Aguiar de Freitas O espao geogrficovisto do espao orbital Luiz Felipe Guanaes Rego CaptuloIIAsmarcasdasmos As marcas das mos Carlos Engemann, Angela Maria Rosa da Silveira, Maria Aparecida de Oliveira Guimares e Mirtes Cavalcanti Musitano Magalhes Corra, o viajante do sculo XX Carlos Engemann, Angela Maria Rosa da Silveira e Rogrio Ribeiro de Oliveira CaptuloIIIAsmarcasdomachado Histria ambiental e estrutura de uma floresta urbana Alexandro Solrzano e Rogrio Ribeiro de Oliveira Consumo de recursos florestais e produo de acar no perodo colonial: o caso do Engenho do Camorim, RJ Carlos Engemann, Juliano Chagas, Rogrio da Silva Santos, Alexandre Chaboudt Borges e Rogrio Ribeiro de Oliveira

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CaptuloIVAsmarcasdaenxada A influncia dos remanescentes agro-pastoris do macio da Pedra Branca na dinmica hidrolgica das encostas Marcelo Motta de Freitas, MarceloVargas, Silva Castanheira e Fernanda Rath Fingerl CaptuloVAsmarcasdofogo Resultantes ecolgicas de um incndio florestal na produo de serapilheira de uma mata atlntica de encosta Rodrigo Penna Firme e Rogrio Ribeiro de Oliveira Aspectos estruturais da paisagem da mata atlntica em reas alteradas por incndios florestais Rodrigo Penna Firme, Rita de Cssia Martins Montezuma, Renata Lopes dos Santos e Rogrio Ribeiro de Oliveira CaptuloVIAsmarcasdafumaa Contaminao e ciclagem de metais pesados na serapilheira de uma floresta urbana Rogrio Ribeiro de Oliveira, Carmem Lucia Porto Silveira, Alessandra Costa Magalhes e Rodrigo Penna Firme EplogoOfuturonasmarcasdopassado Rogrio Ribeiro de Oliveira

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Apresentao

As principais propostas deste livro so o registro do legado da atividade humana na mata atlntica no Rio de Janeiro e a procura pelos signos nela impressos. Organizado em torno de distintas marcas deixadas por episdios histricos no macio da Pedra Branca, localizado na zona oeste do municpio do Rio de Janeiro, este trabalho tem na interdisciplinaridade sua base metodolgica. Ao convidar pesquisadores de diferentes disciplinas para lanar suas vises sobre a transformao dessa paisagem, tentou-se valorizar o sentido diacrnico desta, evidenciando o fato de que a atual paisagem o produto de foras geolgicas e biolgicas que se perdem no tempo, misturadas imemorial ao humana. Esta forma de enxergar a paisagem no absolutamente nova, mas uma utopia comum a muitos pesquisadores, tanto das cincias biolgicas, da terra ou sociais. Do local para o global, do particular para o geral, os captulos vo formando uma viso dos processos de transformao da mata atlntica. O garimpo destes marcos foi a principal tarefa de seus autores. A escala de trabalho variou de esforos literais de escavao arqueolgica (seja na floresta ou em construes coloniais em suas bordas) deteco de marcas menos evidentes (como na cultura de seus habitantes ou na poluio que se presentifica no ecossistema). Comum a todos os estudos que compem esta obra a tentativa de avaliar a resultante ambiental que cada episdio histrico provocou, ou ainda provoca, na construo da paisagem. No entanto, estes episdios por si no deixam vestgios. Estes so deixados pelo trabalho de muitos homens ao longo de muito tempo, cuja memria annima tambm se tenta resgatar pelos vestgios de suas aes. Assim, este livro est organizado por grupos distintos de marcas deixadas ao longo do tempo neste trecho de mata atlntica. A introduo (Os cenrios da paisagem) procura situar a floresta estudada no contexto do bioma mata atlntica e de suas transformaes.

As marcas do homem na floresta

O captulo I (O espao marcado) traz, no artigo Histria de uma floresta, geografia de seus habitantes, uma reflexo epistemolgica sobre a histria ambiental e suas mltiplas relaes com a geografia. No artigo O espao geogrfico visto do espao orbital, a principal pergunta : ser o geoprocessamento a principal ferramenta da histria ambiental do futuro? No captulo II (As marcas das mos), dois artigos trazem informaes e reflexes sobre a histria da ocupao humana deste trecho de mata atlntica. No primeiro, seus autores trazem o produto de pesquisas histricas que forma um quadro da ocupao colonial da rea, alheio quela viso tradicional que resgata apenas a histria do vencedor (o homem branco) e no do vencido (o negro e o ndio). O seguinte (Magalhes Corra, o viajante do sculo XX) resgata a figura deste destacado historiador da regio da baixada de Jacarepagu. O captulo III (As marcas do machado) apresenta dois estudos sobre os impactos que as atividades descritas anteriormente tiveram sobre a estrutura florestal da paisagem. O artigo Histria ambiental e estrutura de uma floresta urbana constitui uma anlise fitossociolgica das resultantes estruturais da explorao de carvo em suas montanhas na dcada de 1950. O trabalho seguinte, Consumo de recursos florestais e produo de acar no perodo colonial: o caso do Engenho do Camorim, RJ, um desdobramento das pesquisas histricas do captulo II. Aqui os documentos histricos e suas informaes ecolgicas so confrontadas com a realidade ecolgica atual, com o objetivo de promover uma verdadeira contabilidade ambiental da explorao dos recursos. O captulo IV (As marcas da enxada) mostra, no estudo A influncia dos remanescentes agro-pastoris do macio da Pedra Branca na dinmica hidrolgica das encostas, as conseqncias da agricultura e da pecuria no redirecionamento de fluxos durante a fase terrestre do ciclo da gua, contemplando as modificaes no comportamento hidrolgico dos solos sob usos que transformaram o ambiente florestal anterior. Os dois trabalhos do captulo V (As marcas do fogo) versam sobre o day after dos incndios florestais. No estudo Resultantes ecolgicas de um incndio florestal na produo de serapilheira de uma mata atlntica de encosta mostrada como (no) se d a recuperao da mata atlntica aps a passagem de um incndio. Em uma abordagem fitossociolgica, o trabalho Aspectos estruturais da paisagem da mata atlntica em reas alteradas por incndios florestais apresenta, em diferentes momentos, a sucesso ecolgica que ocorre aps um incndio.

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Apresentao

O captulo VI (As marcas da fumaa) dedicado a algo como uma histria ambiental contempornea. No trabalho Contaminao e ciclagem de metais pesados na serapilheira de uma floresta urbana, a poluio da metrpole circundante e sua deposio no ecossistema florestal so analisadas como um ltimo captulo de uma histria ambiental voltada para a busca das marcas da presena humana nos ecossistemas florestais. guisa de eplogo, o captulo O futuro nas marcas do passado procura sintetizar os principais aspectos epistemolgicos e metodolgicos discutidos. Por fim, restam duas palavras sobre como foram feitas muitas destas pesquisas. Em agosto de 2002, o Ncleo Interdisciplinar de Meio Ambiente (Nima) da PUC-Rio implantou, no bairro do Camorim, o projeto Voluntariado Ecolgico. Com o objetivo de colocar a prpria comunidade redescobrindo seus valores ticos e ambientais, foram criadas diversas oficinas com os seus moradores. As oficinas de mata atlntica e de histria, ministradas por professores e alunos da PUC-Rio, foram compostas por donas de casa, comerciantes, professores e estudantes, que tiveram papel fundamental em muitas das pesquisas aqui publicadas, especialmente nos captulos I, III e V. Essas pessoas, at ento no familiarizadas com metodologias cientficas ou com o mundo acadmico, passaram a figurar, pela primeira vez, como coautores de publicaes cientficas. Mais do que um eventual orgulho acadmico, esses novos autores pesquisam suas prprias razes culturais, histricas e ecolgicas, realizando um resgate de seus valores ambientais. Essa procura por valores ticos e ambientais a mola propulsora das diversas atividades de educao ambiental desenvolvidas pelo Nima, em articulao com os departamentos de geografia e de servio social da PUC-Rio. Com isto, os novos e os menos novos autores prestam a devida homenagem e o agradecimento ao padre Josaf Carlos de Siqueira, coordenador do Nima, que, ao levantar essa bandeira, talvez no tivesse idia dos frutos que colheria mais tarde. Sinceros agradecimentos por apoio e acolhida vo tambm para a verdadeira comunidade de primeiros cristos da Igreja de So Gonalo do Amarante, localizada no Camorim, a quem este livro fraternalmente dedicado. Sempre plena do amor de Deus, tem na alegria e no acolhimento o seu grande dom. Rogrio Ribeiro de Oliveira Organizador

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Prefcio

A marca do sagradoDenise Pini Rosalem da Fonseca1

Este um livro sobre a floresta. No uma floresta qualquer abstrata ou mtica mas uma natureza sobrevivente, que bordeja a zona oeste da cidade do Rio de Janeiro, uma das maiores concentraes urbanas da Amrica Latina. Este um trabalho sobre homens. No homens quaisquer descontextualizados ou sem histria mas os construtores do legado das escolhas humanas que sustentam a cultura local do atual bairro do Camorim. Esta uma obra que conta as histrias do encontro desta natureza com estes homens. No um encontro qualquer, que no tivesse deixado marcas ou cicatrizes, mas uma realidade tangvel, mensurvel e previsvel; a histria do que, aqui, foi possvel viver, na busca da sobrevivncia. Da sobrevivncia de ambos homens e natureza trata este trabalho. Mas este livro tambm se esfora para compreender o valor das manifestaes do sagrado, por meio das relaes dos homens com a natureza e com eles mesmos, o que obriga, necessariamente, a tratar de histria e de cultura. Este um esforo para entender as incontveis confisses que fazemos do nosso sentido de pertencimento de nossa identidade cultural e seus valores o que obriga, necessariamente, a tratar de vida em comunidade. Das marcas que a vida desenha sobre a natureza e sobre os homens tambm trata este texto. As marcas so sinais deixados pelas vivncias. No haver marcas onde no houver histrias a serem contadas. Por outro lado, as marcas l permanecem para fazer lembrar os caminhos de regresso, para permitir o resgate do que ficou perdido ou para que evitemos percursos que j se mostraram inadequados ou perigosos. Falar de marcas falar dos homens e das suas aes,1

Professora do Departamento de Servio Social da PUC-Rio Setor de Desenvolvimento Sustentvel do Nima/PUC-Rio: Rua Marqus de So Vicente, 225, CEP: 22453-900, Rio de Janeiro. E-mail: [email protected]

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pois elas so o registro do acontecer humano. E se o homem, no seu af de sobreviver fsica, emocional e espiritualmente vai depositando marcas sobre a natureza e cicatrizes em outros homens, como resultado ele tambm fica marcado, com mos calejadas, corpo e alma comformados ou deformados, segundo a qualidade das suas relaes com a natureza e com a comunidade humana que o acolhe. Por todas estas razes, a histria ambiental uma jovem disciplina, que trata de refletir sobre estes aspectos em comunho tem, necessariamente, que ser interdisciplinar e holstica. No toa que esta obra foi construda por muitas mos, que foram imprimindo as marcas de gegrafos, bilogos, historiadores e membros da prpria comunidade, sobre a compreenso possvel da natureza e da comumunidade a identidade do Camorim. O desafio que este trabalho deseja enfrentar o de falar sobre as aes humanas e suas conseqncias por meio dos registros de ocorrncias que a floresta e a cultura, cuidadosamente, conservam. A natureza destas marcas, no entanto, obriga o observador a conhecer as suas incontveis linguagens para decifrlas. Comecemos, ento, pelo sagrado. Desde tempos imemorveis, a natureza associada idia de sagrado (Sullivan, 2003, p. 234). A dessacralizao da natureza a que estamos acostumados no mundo ocidental, tem a ver com o iluminismo, com os sculos XVIII e XIX e com a fundao das cincias sociais e todo o seu corolrio de controle social subseqente (Sullivan, 2003, p. 327). O esforo de entender como primitivas as culturas que prestam ritos de devoo natureza est fundamentado na racionalidade prpria da modernidade ocidental, em que este mesmo movimento no apenas dessacralizou a natureza, como tambm secularizou a cultura e a prpria religio. Para o catolicismo, foi tambm no contexto do iluminismo que a manuteno de uma atitude religiosa, que seguia reconhecendo a correlao entre natureza e graa divina, abriu um fosso enorme entre piedade e teologia, ou seja, entre religiosidade popular e teologia erudita (Eliade, 1996, p. 524). Em ltima instncia, ao desqualificar como primitivos os rituais de devoo natureza aqueles capazes de constituir comunidades pela via de confisses de pertencimento passou-se a privar o homem religioso da experincia do sagrado, em meio a um mundo materialista e profano. A este respeito Eliade nos lembra a famosa frase de Pascal, o Deus de Abrao, de Isaac e de Jac, e no o dos filsofos e sbios, na qual fica clara a supresso, na religio racional, da relao do homem com a sua prpria histria e com a vivncia do sagrado, por meio da natureza (Eliade, 1996, p. 528).12

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A experincia de uma natureza radicalmente dessacralizada um descobrimento recente; ainda no acessvel mais que a uma minoria de sociedades modernas e, em primeiro lugar, aos homens de cincia. Para o resto, a natureza continua apresentando um encontro, um mistrio, uma majestade nas quais se podem decifrar vestgios de antigos valores religiosos. No h homem moderno, seja qual for o seu grau de irreligiosidade, que seja insensvel aos encantos da natureza (Eliade, 1998, p. 12). [Traduo nossa]

A dimenso ritual constitui, ela mesma, uma forma de confisso de um certo pertencimento religioso, ou seja, participar de um ritual de devoo, de acordo com as regras estabelecidas pela comunidade religiosa, um sinal de reconhecimento do seu pertencimento quela mesma comunidade (Eliade, 1996, p. 520). Assim se organizam as religies e, dentro delas, as igrejas. Assim se organiza a vida em sociedade. Por todas estas razes, falar de rituais que ocorrem no seio da floresta tambm falar de homens vivendo em sociedade, de relaes intracomunitrias, de sentido de pertencimento, de cultura local e, sobretudo, de preservao e sobrevivncia de homens e natureza o objeto deste trabalho. Em quase todas as passagens do Antigo Testamento, nas quais a figueira mencionada, ela vem associada idia de preservao, de proteo e de acolhimento material ou espiritual (Reis 1, 4; Marcos 2, 12; e Joo 1, 48-49). Por outro lado, em Mt 21, 18-22, Jesus amaldioa uma figueira que no d fruto, agregando um outro significado figueira, ou seja, expectativa de frutificao da Sua obra, derivando da a nossa responsabilidade pela preservao da criao e dos seus smbolos sagrados, dentre eles a figueira. Por todas estas razes, desde a criao do mundo, a partir da sua presena no jardim do den, a figueira ocupa um lugar especial no imaginrio humano, pois foi com as suas folhas que Ado e Eva se cobriram quando descobriram a sua humanidade (Gnesis 3, 7). Reconhecida em diversas tradies culturais como uma famlia que possui indivduos soberanos, alguns por apresentarem copas frondosas que podem abrigar muitos, e outros por produzirem frutos doces, abundantes e repletos de sementes, que germinaro uma profcua descendncia, a figueira (neste caso, Ficus carica), na cultura judaico-crist, simboliza a casa do Senhor na natureza e, portanto, uma das moradas do sagrado na floresta do inconsciente coletivo do mundo ocidental moderno (Chevalier & Gheerbrant, 1998, p. 427). Muito embora estes contedos associados figueira estejam tambm presentes em muitos outros imaginrios ancestrais como o caso das re13

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ligies prprias do subcontinente asitico (Chevalier & Gheerbrant, 1998, p. 427), de cuja flora nativa a figueira religiosa (Ficus religiosa) proveniente interessa a ns compreender as convergncias destes contedos na confluncia de trs tradies culturais brasileiras que sustentam o patrimnio cultural fundador do Camorim: o legado judaico-cristo; as tradies ancestrais nativas, de origem caiara; e o acervo cultural brasileiro afrodescendente. Nas regies de ocupao caiara, como o caso do Parque Estadual da Pedra Branca, nas franjas do qual o Camorim est localizado, quando os camponeses abrem a mata para, no seio desta, instalar uma roa de subsistncia, eles derrubam todas as rvores presentes, preservando apenas os indivduos de um gnero: o da figueira. Aparentemente, reza na tradio camponesa local alguma forma de sabedoria ancestral, que remete o homem simples, muitas vezes solitrio e annimo, a um universo de smbolos, que pertencem ao sujeito coletivo do qual ele membro, e que lhe confere identidade.2 Posto que algumas das espcies da figueira so para ns rvores exticas, ou seja, que foram trazidas pela ao humana de alguma outra regio geogrfica, podemos afirmar, sem medo de errar, que elas chegaram ao Brasil junto com a cristandade. possvel imaginar, portanto, que os mesmos homens e mulheres que, provavelmente no sculo XVI (Engemann, 2003, p. 1), ergueram a igreja de So Gonalo do Amarante, instalando casa-grande e senzalas na regio do Camorim, tenham compartilhado, com a natureza local e seus tradicionais habitantes, sementes de alguns saberes e plantas, bem como as suas representaes de profano e sagrado. Aqueles eram seres forjados em percursos diferentes, que se encontravam em uma terra fecunda, capaz de germinar outras espcies; aquela era uma famlia de rvores que carregava um sentido de acolhimento, capaz de fazer convergir em si mesma um conjunto de imaginrios. dos encontros de contedos humanos, como este, que nasce o nosso patrimnio cultural e, no caso da figueira, o imaterial se faz tangvel no seio da natureza. O curioso que a manuteno exclusivamente das figueiras nos campos desnudados por descendentes da mestiagem de portugueses e indgenas2

Agradeo ao professor Rogrio Ribeiro de Oliveira, diretor do Departamento de Geografia da PUC-Rio, pela contribuio no caso da figueira como exemplo de um mito que preserva espcimes animais e vegetais e a leitura crtica deste trabalho, que garantiu o rigor das informaes taxionmicas nele contidas. Em trabalho de pesquisa recentemente realizado na floresta do Camorim, a equipe do professor Oliveira catalogou a presena de 15 espcies da famlia Moraceae, da qual o gnero Ficus faz parte, sendo o nico a ser preservado pelos agricultores.

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brasileiros no apenas garante a preservao da espcie, mas tambm de uma variedade de famlias de pssaros da regio, que se alimentam dos seus frutos, e da fora do mito que a sustenta, ou seja: do seu poder. Para compreender esta classe de poder, importa pouco saber se esta prtica se originou em torno de uma figueira exticaou nativa, ou seja, se o mito que alimenta rvore e pssaros da regio l salmos, recita ladainhas, ou dana livre e nu pela floresta. Interessa, sim, descobrir os mecanismos desta permanncia; a natureza da fora que a retroalimenta ao mesmo tempo em que afasta a indignidade da fome e do desabrigo. dessa ordem de questes que se ocupa a ps-modernidade, pois at mesmo o capitalismo, velho conhecido predador dos homens e da natureza, em sua sanha devoradora de valores para gerar mais-valia, j se apercebeu de que em tempos de capitalismo cultural ou bio-capitalismo (Lazzarato, 2001, p. 91-106) so as nossas paixes, os nossos desejos, a nossa afetividade e a nossa religiosidade, ou seja, o material impondervel da nossa subjetividade, o bem mais precioso a ser acumulado. E se disso que advm o lucro e, conseqentemente, a explorao bem pode ser desse mesmo poder que derivem as nossas melhores oportunidades para a construo de uma insero econmica e social mais justa e eficiente. Estamos falando das vantagens comparativas que podemos e devemos nos reservar por ser parte do nosso prprio material cultural identitrio o legado cultural a que tivemos acesso para com ele construir novas relaes de poder e uma identidade cultural que melhor nos sirva (Castells, 1999, p. 425). Trabalhando primordialmente nos campos da antropologia e da histria, os estudos culturais recentes vm tentando entender a natureza dos laos de lealdade e do sentido de pertencimento que animam as sociedades na entrada do terceiro milnio o que tem a ver, necessariamente, com religiosidade em que o paradigma nacional vem sistematicamente perdendo relevncia e capacidade de promover coeso social. Embora sejamos beneficirios das contribuies de diversos autores, por estarmos preocupados com os mecanismos internos de funcionamento das chamadas redes sociais de solidariedade intracomunais, interessa-nos, aqui, comentar alguns conceitos oferecidos por Manuel Castells, quetratou mais diretamente deste assunto. Em O poder da identidade, ele nos fala de trs formas possveis de associaes identitrias. A primeira delas se consubstancia sob a forma de uma identidade legitimadora, cuja origem est ligada s instituies e organizaes da sociedade civil, pois elas surgiram e se organizaram em torno do Estado de-

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mocrtico e do contrato social entre capital e trabalho (Castells, 1999, p. 418420). Dentre elas esto a identidade nacional, os fundamentalismos religiosos ou tnicos e, em grande medida, os partidos polticos e as associaes sindicais. Foram estas as estruturas que, no final do sculo XX, mais perderam a sua capacidade de manter vnculos vivos com os valores das pessoas. Este tipo de identidade, portanto, no tem sido capaz de desenvolver prticas renovadoras em termos dos movimentos sociais mais recentes. Quem sabe pudssemos aqui agregar que parece ter sido ao redor destas identidades, as legitimadoras, que os maiores desastres sociais tm sido produzidos recentemente. O segundo tipo de associao identitria seria o que o autor chamou de identidade de resistncia, que gerada por agentes sociais que se encontram em posio de excluso, sob discriminao ou que se sentem ameaados (Castells, 1999, p. 420-425). Nesta categoria se enquadram muitas das formas de resistncia atual, desde o movimento feminista at o ambientalismo, passando pelos grupos de resistncia homossexual e movimentos por reforma agrria. O problema aqui se d quando cada uma destas vertentes de mobilizao social se fecha sobre a sua prpria rede identitria e, por ignorar os contedos e premissas das outras redes correlatas, ignora tambm a teia maior que vai se formando ao seu redor e que limita a sua prpria capacidade de ao, permitindo refluxos indesejados. Por esta razo, para garantir a sua efetividade, segundo Castells, as identidades de resistncia precisam se transformar, tambm, em identidades de projeto. Uma identidade de projeto se constri quando os agentes sociais tratam de redefinir a sua prpria posio na sociedade a partir dos legados culturais a que tiveram acesso (Castells, 1999, p. 425-427). Segundo o autor, estes tipos de agentes precisam, necessariamente, ser mobilizadores de smbolos, o que equivale a dizer que, para obter sucesso, eles devem se manifestar por meio da principal corrente cultural para subvert-la em benefcio de valores alternativos. Em outras palavras, h que dar visibilidade aos contedos culturais historicamente silenciados, re-significando-os e criando novos smbolos que os representem. Alm disso, esta organizao deve, como observou empiricamente Castells, assumir uma estrutura descentralizada e integrada em rede, que ele chamou de redes de mudanas sociais, das quais o movimento ambientalista e o movimento feminista so duas das expresses mais acabadas. Trata-se de evoluir de uma perspectiva subjetivista e centrada no indivduo muito prpria da modernidade para uma viso de mundo solidria e centrada na cultura, o que vem a ser a novidade ps-moderna. Esta a perspectiva que perseguimos.16

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O conceito que desejamos explorar identidade cultural tributrio de todas estas formulaes tericas, que o precedem e que sustentam a sua concepo. Muito embora ele j tenha sido utilizado, principalmente por Stuart Hall (2001), que igualmente chegou a ele por caminhos percorridos por Hobsbawm (2000), Anderson (1991), Giddens (1991), e outros, nossa concepo de identidade cultural est pautada na observao emprica realizada nos trabalhos que desenvolvemos junto s comunidades carentes desde 1998. O contedo que associamos ao conceito, no entanto, se afasta daquele que Hall utiliza, na mesma medida em que se distancia das preocupaes com a questo da nacionalidade e da identidade nacional, centrando sua nfase no sentido de pertencimento que alimenta as redes sociais de solidariedade, responsveis pela diferena entre pobreza e misria. Assumindo, com Castells, que toda identidade construo e que toda construo de identidade implica relaes de poder (Castells, 1999, p. 426), vale a pena uma reflexo sobre a essncia dos poderes imateriais que residem naquelas redes e nas suas prticas cotidianas. Nosso desejo o de afastar, de vez, a arraigada e limitada concepo de poder que carregamos por razes histricas e culturais que se apresenta ligada s idias de constrangimento, aliciamento, manipulao, coero e, em ltima instncia, violncia. No plano religioso, a concepo de poder tem, muitas vezes, sido manipulada como primitivo, atrasado, profano, ignorante ou no limite satnico. Estamos convencidos de que o poder que fomenta e alimenta as identidades culturais emana da memria do sujeito coletivo desta identidade e provm de saberes compartilhados pelos seus indivduos, cuja natureza intangvel, qual seja: o seu patrimnio cultural imaterial, do qual o sagrado o elemento central e fundador. O problema que, muitas vezes em um mesmo patrimnio cultural imaterial, conflui um conjunto de significados provenientes de muitas identidades culturais que, embora compartilhem um mesmo smbolo e sua essncia, utilizam prticas de reafirmao do mito diferenciadas, como o caso da figueira est nos ajudando a exemplificar. Na tradio afrodescendente brasileira por sua vez uma confluncia de pelo menos quatro tradies ancestrais africanas a figueira ocupa o lugar de uma espcie africana a Clorophora excelsa dificilmente encontrvel no Brasil, para representar um deus-rvore: o Iroco (Martins & Marinho, 2002, p. 34). Por se tratar de um orix materializado sob a forma de rvore, a figueira, ou seja, o Iroco, cultuadacom devoo pelos seus protegidos e no pode

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deixar de estar presente, assim como os demais orixs, nos terreiros gge-iorubanos. Conta uma histria3 que, certa vez, estando um terreiro de Pernambuco ameaado de invaso e destruio, todos os instrumentos rituais sagrados foram colocados no interior do Iroco, em uma cavidade que se abriu no tronco daquela rvore para receb-los e se fechou para preserv-los at que os perigos passassem. Mais uma vez aparece a figueira desta vez como uma divindade negra para cumprir o seu destino de proteo e auxlio: os contedos nela igualmente depositados pelas tradies caiara e europia moderna. No fica difcil entender, portanto, que, no Camorim rea de antigos quilombos muitas vezes apaream ofertas rituais colocadas aos ps do Iroco a figueira, que l ocorre com oito espcies ou, algumas vezes, a gameleira branca (Ficus gomeleira) ou a mangueira (Mangifera indica) para nos fazer lembrar dos muitos contedos culturais que convergem na figueira ou em uma comunidade. No entanto, os elementos que fazem a fortaleza do mito, bem como do sujeito coletivo a identidade cultural podem tambm estar na gnese das suas fragilidades, na medida em que, no processo de negociao de poder para a construo da comunidade, o sujeito coletivo venha a se estilhaar em lutas, entre os indivduos que o compem, pelo controle dos benefcios que dele emanam.Talvez fosse til lembrar, mais uma vez ajudados pela figueira, que, se a ela no estivesse associado o mito independente de seus contedos, origem e prticas no restaria um nico indivduo da sua espcie que fosse capaz de resistir fome dos camponeses locais, como a norma para todas as outras espcies vegetais da regio. Durante os meses em que estivemos regularmente visitando o Camorim para desenvolver com a comunidade o trabalho de resgate do seu patrimnio imaterial, sua revalorizao no interior da prpria comunidade e sua re-significao extracomunitria, ficou claro para ns que o empoderamento (empowerment) pode servir, com sucesso, s comunidades no re-conhecimento das suas principais vocaes. O que se busca conhecer as redes sociais de solidariedade para, a partir delas, apoiar a construo de identidades de projeto que ofeream uma insero socioeconmica mais justa e que garantam o efetivo exerccio da cidadania. Porm, esta construo de identidade cultural, ao tocar o intangvel, desprende o poder que normalmente fica represado pelas formas tradicionais de identidades legitimadoras, fazendo emergir no seio da comunidade antigos contedos de medos e o seu corolrio: o dio.3

Agradeo ao babalorix Manoel Papai, do Terreiro dos Xangs de Recife, a contribuio desta histria sobre o poder do Iroco.

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A marca do sagrado

Nossa recente experincia junto s comunidades carentes da cidade do Rio de Janeiro, da qual o Camorim faz parte, permite a ns identificar pelo menos quatro formas tradicionais de associaes identitrias que funcionam sistematicamente no interior dessas comunidades: Redes familiares; Redes religiosas; Redes geogrficas (vizinhana); e Redes de interesses compartilhados.

Cada uma destas formas de associao identitria possui uma lgica prpria de integrao entre os seus membros e um cdigo de conduta uma tica ou conjunto de prticas de confisso que garante a sua fortaleza como sujeito coletivo, legitima cada um dos seus membros e define os limites dessa identidade, definindo tambm os seus no-membros, ou seja, os seus excludos.4 Cada um desses sentidos de pertencimento responde por aspectos particulares da re-existncia material, emocional e espiritual dos seus membros. O ncleo duro do poder que emana dessas formas de identidades legitimadoras tem a ver com o sentido de pertencimento que elas oferecem e se apresenta sob a forma de aceitao, solidariedade e lealdade definitivamente, conceitos ligados ao sagrado. No interior de cada uma dessas formas de existir na comunidade, a capacidade de resistir dos seus indivduos ser tanto maior quanto mais estruturados estiverem os cdigos ticos daquela rede, independente do valor dos seus contedos. As redes familiares so as principais responsveis pelas prticas de proteo fsica e de sobrevivncia material. As redes religiosas respondem primordialmente por legitimidade e oportunidades sociais extrafamiliares. As redes geogrficas, ou de vizinhana, esto ligadas aos limites fsicos que definem inseres socioeconmicas e percepes polticas. Por ltimo, as redes de interesses compartilhados respondem pela sobrevivncia de valores ticos, estticos, educacionais e comportamentais, que excedem as esferas da famlia, das igrejas e das associaes de corte geogrfico. Muito embora seja dessas redes que emanem incontestveis fortalezas sociais, a sustentar as redes sociais de solidariedade que nos importa conhecer, delas tambm que derivam as mais dolorosas fragilidades que propiciam o4

Vale lembrar que no estamos aqui tratando da categoria excludos com a qual vm operando as cincias sociais brasileiras a partir de um imaginrio francfilo.

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exerccio de prticas cotidianas de violncia mtua, um substrato tico que d suporte violncia maior a que todos estamos submetidos na atualidade. Assim como o ncleo duro do poder das identidades legitimadoras tem a ver com o sentido de pertencimento, o cerne dessas formas cotidianas de enfraquecimento mtuo justamente o no-pertencimento que essas mesmas identidades constroem ao seu redor por meio de disputas de poder e de preconceitos de toda sorte. No nosso entender, trabalhar com a idia de empoderamento das comunidades carentes, na esperana de criar condies para uma insero mais justa no capitalismo cultural, significa encontrar as estreitas passagens deixadas pelas prticas sistemticas do preconceito e das disputas de poder para, por meio delas, fazer avanar a construo de identidades culturais poderosas e transformadoras. Trata-se de fazer convergir em algum smbolo escolhido pela prpria comunidade como o caso da figueira os contedos e as prticas de incontveis identidades para alm dos seus conflitos de tal maneira a construir um sujeito coletivo capaz de ser senhor da sua prpria histria. Voltemos floresta para buscar a essncia deste smbolo. O culto a certos elementos da natureza tem a ver com a busca humana pela aproximao do espao do divino, o local do desfrute da paz, da felicidade, da saciedade e da plenitude (Sullivan & Eliade, 2003, p. 166).A existncia de centros sagrados permite o estabelecimento de um sistema mundano, um corpo de realidades imaginadas que se relacionam entre si: duas realidades sagradas; um axis mundi [eixo do mundo] (rvore, montanha, escada, parreira ou coluna) que simboliza a comunicao entre duas regies csmicas; e a extenso de um mundo organizado e habitvel que existe em torno do centro (Sullivan & Eliade, 2003, p. 166). [Traduo nossa]

a sacralidade do objeto de devoo que se cultua, e no a sua imanncia a forma que ele assume no mundo. No caso da figueira, como vimos, o sagrado o acolhimento, a proteo e o pertencimento que ela oferece aos herdeiros dos legados de todas as tradies culturais presentes no Camorim. Os rituais de devoo a qualquer rvore sagrada tm a ver com a demarcao do espao de Deus no mundo: o espao do sagrado. A diferenciao dos espaos e tempos entre sagrados ou profanos o que nos ajuda a construir a idia de cosmo, em oposio ao caos da homogeneidade. Sobre este assunto Eliade nos ensina que:

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Para o homem religioso o espao no homogneo, ele apresenta rupturas, cises: h pores do espao qualitativamente diferentes das outras: No te aproximes daqui disse o Senhor a Moiss tire os sapatos dos ps, pois o lugar onde ests uma terra santa. (xodo 3,5) H, sempre, um espao sagrado e, por conseguinte, forte, significativo, e h outros espaos no consagrados e, por conseguinte, sem estrutura nem consistncia, em uma palavra: amorfos (...) a experincia religiosa da no-homogeneidade do espao constitui uma experincia primordial, equivalente fundao do mundo (...) esta ruptura o que descobre o ponto fixo, o eixo central de toda orientao futura (Eliade, 1998, p. 21). [Traduo nossa]

Demarcar um espao sagrado por meio de alguma forma cultual natureza construir a idia de uma passagem para a aproximao a Deus, e tem o mesmo valor simblico que a construo de um templo. Falar de espcies sagradasna floresta transportar para l a sacralidade do templo, da casa e da comunidade. Como reflexo final, vale a pena lembrar que, com mos, machado, enxada, fogo e fumaa como mostra este livro provocou-se e se provoca a fragilidade da natureza sobrevivente do Parque Estadual da Pedra Branca. O curioso que, com o transcorrer da histria, quanto mais sutil e voltil foi o seu agente predador, tanto mais devastador e irremedivel ele se mostrou. Entre outras coisas, este livro permite aprender que algo to imperceptvel quanto a fumaa pode ser portador de elementos pesados que destruam mais que os toscos instrumentos de homens mais primitivos. E o que se observa na natureza, via de regra, vale para a vida no interior da comunidade humana. Quem sabe seja hora de re-sacralizar o mundo a partir dos espaos da casa, da vizinhana e da comunidade. Quem sabe seja j o tempo de conhecer os elementos pesados das nossas relaes, que provocam as nossas fragilidades, para nos livrarmos definitivamente deles. Quem sabe seja agora a hora de cultuar a solidariedade da figueira, seu poder de receber as muitas verdades que habitam a floresta e o mundo, sua capacidade de acolher as diferenas mundanas a partir do reconhecimento da sua unidade sagrada. Quem sabe seja tempo de marcar os nossos espaos no mundo a partir do que nos sagrado. Refernciasbibliogrficas ANDERSON, B.Imagined communities: reflections on the origin and spread of nationalism. Londres/Nova York: Verso, 1991.21

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Introduo

Os cenrios da paisagemRogrio Ribeiro de Oliveira1

Poucos ecossistemas no Brasil apresentam uma situao de diversidade seme-

lhante que ocorre na extensa formao costeira brasileira conhecida como mata atlntica, onde a paisagem apresenta-se multifragmentada e profusamente variada ao longo do litoral. Esse mosaico de florestas pluviais, plancies e montanhas costeiras, denominado em conjunto de mata atlntica, ocupa principalmente a vertente atlntica das serranias. No trecho da regio Sudeste, a fachada atlntica comporta uma variedade de bitopos que, se por um lado apresentam similaridades geoecolgicas entre si, por outro levam a particularidades ditadas por diferentes condies de evoluo tanto na escala geolgica quanto em natureza e intensidade das intervenes antrpicas. A ancianidade da mata atlntica um fator relevante e presente em todas as suas manifestaes, quer biticas ou abiticas. Segundo Leito-Filho (1987), a floresta atlntica a formao florestal mais antiga do Brasil, sendo que a maioria das famlias de angiospermas modernas estabeleceram-se na era Mesozica, no final do perodo Cretceo h cerca de 70 milhes de anos (Salgado-Laboriau, 1994). As particularidades de sua formao geolgica esto ligadas ao fato de que a mata atlntica reveste uma ampla faixa de domnios estruturais e geolgicos, abarcando distintas formas geomorfolgicas. Apesar da ocorrncia de solos muito distintos, uma caracterstica comum maioria dos mesmos a sua baixa fertilidade. Somando-se a este fator, h o fato de que a megadiversidade caracterstica da mata atlntica influenciada pela variedade de bitopos: sua altitude varia do nvel do mar a quase trs mil metros, apresentando encostas voltadas para diferentes quadrantes geogrficos. A variabilidade de climas deste bioma tambm intensa, seja na dimenso horizontal (alteraes ligadas amplitude latitudinal), como na vertical (os gradientes altitudinais e fitofisionmicos que a compem).Professor do Departamento de Geografia da PUC-Rio: Rua Marqus de So Vicente, 225, CEP 22 453-900, Rio de Janeiro. E-mail: [email protected].

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Toda esta variabilidade no quadro fsico forma a base para o estabelecimento de ecossistemas extremamente diversos no que se refere sua biocenose. Em qualquer escala em que se estude a mata atlntica, impem-se as elevadas diversidades genticas de espcies, ecossistemas e da prpria paisagem. De acordo com Joly et al. (1991), esta diversidade atinge o mximo na regio Sudeste, decrescendo em direo ao Sul. Fato extremamente relevante para a compreenso da riqueza deste bioma o seu alto ndice de endemismos. Entre as rvores, mais da metade das espcies exclusiva deste ecossistema. No caso de plantas herbceas, especialmente em relao s epfitas, este percentual ainda muito maior. Para palmeiras e bromlias, de cada trs espcies, duas so endmicas (Mori et al. 1981; Peixoto, 1992; Joly et al., 1991). Em contraste com essa diversidade e exuberncia, importante levar em considerao que mais de 70% da populao brasileira vivem no territrio da mata atlntica. Alm de abrigar a maioria das cidades e regies metropolitanas do pas, a rea originalmente coberta pela floresta sedia tambm os grandes plos industriais, petroleiros e porturios do Brasil, respondendo por mais de 80% do PIB nacional. No quadro das resultantes ambientais desse processo, um campo amplo de estudos o da transformao da paisagem pela ao do homem. A paisagem atual da mata atlntica constitui um sistema extremamente complexo, em que processos evolutivos chegaram ao presente evidenciando como caracterstica uma marcada interao com a presena humana, que alteraria para sempre seus funcionamento, estrutura e espacializao. Seja qual for o recorte histrico os grupamentos de coletorescaadores do litoral de cinco mil anos atrs; os aldeamentos indgenas que os sucederam; as populaes tradicionais j mestiadas com o branco (caiaras, etc.), ou os ciclos econmicos que tiveram a mata atlntica como palco, a caracterstica principal sempre foi a substituio da paisagem natural pela cultural. Mais recentemente, somou-se a estes a grande expanso dos centros urbanos e industriais, que acrescentou novos agentes dinmica desta formao, como deposio de poluentes, uso intensivo de encostas, turismo descontrolado, etc. Assim, a dimenso da presena humana na mata atlntica, em quaisquer escalas ou recortes de tempo, parece ser um fato marcante e constitui um processo interativo, cuja caracterstica principal apresentar suas gnese e atuais manifestaes ligadas ao passado. Estendendo-se nos entornos de trs macios litorneos de expresso Pedra Branca, Mendanha e Tijuca a cidade do Rio de Janeiro apresenta especificidades ditadas justamente por esta vizinhana. A interao desses sis-

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temas de natureza to opostos a cidade e a montanha leva ao estabelecimento de uma rede de trocas entre ambos que colabora para a construo de uma realidade geoecolgica mpar. Numerosos aspectos fitofisionmicos contribuem para uma constituio estrutural em que elementos naturais e antrpicos intervm em graus diversos. A paisagem assim formada guarda caractersticas muito distintas. Apesar da relativa proximidade, os sistemas montanhosos da Pedra Branca e da Tijuca guardam dessemelhanas entre si geradas por condicionantes geolgicos, geomorfolgicos, vegetacionais e por sua histria ambiental. Por outro lado, dispe-se, sobre o macio da Pedra Branca, de um conjunto de conhecimentos cientficos muito reduzido se comparado ao macio da Tijuca. Esta situao ainda mais inquietante quando se considera ser a zona oeste o plo de crescimento da cidade do Rio de Janeiro. A ocupao da regio iniciou-se, como em boa parte do litoral sudeste, h mais de trs mil anos, com bandos de coletores-caadores que formaram vrios sambaquis (montes de conchas e restos orgnicos) na baixada de Jacarepagu. A economia desses grupos era bastante diversificada, com predomnio da pesca e coleta de moluscos. Apesar da dependncia dos recursos litorneos, existem evidncias de que essas populaes subsidiavam seu abastecimento com a caa na encosta do macio da Pedra Branca. Machados de pedra encontrados na floresta atestam essa possibilidade (figura 1). Essa cultura perdurou at o contato com o Tupi-guarani, em quase todo o litoral.

Figura 1 Artefatos lticos encontrados nas encostas florestadas do macio da Pedra Branca.

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Em termos de transformao da paisagem, a ocupao acelerada deu-se no sculo XVII, com a instalao de um importante engenho nas terras da sesmaria de Correia de S, legadas ao mosteiro de So Bento em 1667 por d. Vitria de S. Essas propriedades foram administradas, at fins do sculo XIX, pelos beneditinos, que criariam ali trs prsperas fazendas: as propriedades de Camorim, Vargem Grande e Vargem Pequena, onde havia intensa atividade agropecuria. Posteriormente, essas terras foram hipotecadas ao Banco de Crdito Mvel. Com o crescimento da cidade, algumas modalidades de proteo ambiental foram estabelecidas, como as Florestas Protetoras da Unio. A partir de 1920, o banco comeou a venda, aos lavradores, de lotes que foram transformados em stios de destinao diversa, de acordo com sua localizao. Na vargem, a mata do brejo serviu a indstrias de cestos e tamancos. Nas encostas, a explorao das capoeiras para lenha e carvo teve grande importncia para o abastecimento dos foges domsticos do Rio de Janeiro at 1940. Em termos de cultivos, extensos bananais recobrem at hoje os flancos at altitudes superiores a 400 m. Espalhada em numerosos pontos do macio, existia a lavoura branca (chuchu, milho, aipim, batata-doce, jil, maxixe, abbora), feita no sistema derrubada-pousio (Galvo, 1957). Com a urbanizao crescente do Rio de Janeiro, e com a criao, em 1974, do Parque Estadual da Pedra Branca, estas foram praticamente extintas na vertente sul do macio e, com o tempo, a sucesso ecolgica promoveu a cicatrizao dessas clareiras. A explorao econmica da encosta do macio da Pedra Branca migrou das roas de subsistncia para os bananais. Esses mantiveram-se em vastas reas, tendo os agricultores remanescentes se adaptado nova ordem ambiental: as queimadas foram eliminadas e o cultivo da banana assumiu um carter semiclandestino, baseando a sua explorao mais no extrativismo do que no manejo da cultura. Por no utilizar o fogo, essa forma de explorao se adaptou melhor s restries sobre o uso da terra impostas pelo Parque Estadual da Pedra Branca. Essa unidade de conservao tem a extenso de 12.398 ha (o que representa 16% do territrio do municpio do Rio de Janeiro), abrangendo vrios bairros, como Campo Grande, Bangu, Realengo, Jacarepagu, Barra da Tijuca, Recreio dos Bandeirantes e Guaratiba. Seu limite oficial a cota de 100 m, englobando, assim, cerca de 70% do macio (Costa, 2002). O macio da Pedra Branca vive atualmente um acelerado processo de desenvolvimento das atividades urbanas em seu entorno e de expanso da degradao do ecossistema florestal. O crescimento da malha urbana, o des-

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matamento e a expanso das atividades agrcolas em suas encostas imprimem hoje, na paisagem, grandes modificaes no arranjo espacial de seus elementos; e definem, assim, sua nova paisagem. Por ser rea de expanso urbana, ou seja, onde o crescimento dos ncleos de ocupao esto ainda se processando, o macio da Pedra Branca guarda, no seu espao, traos de um conflito rural-urbano. Dessa forma, encontra-se ainda uma atmosfera rural em meio crescente paisagem urbana que se constri com suas contradies sociais (Freitas, 2003). As propaladas vantagens da implantao de projetos de desenvolvimento do ecoturismo ainda no encontraram condies propcias, em funo da desarticulao de polticas nesse sentido. Dados do Instituto Municipal de Planejamento (Iplan) do, para os bairros localizados em seu sop, elevadas taxas de crescimento populacional ao longo das dcadas de 1990 e 2000. Este se deu pelo crescimento da chamada cidade informal, com a proliferao de favelas e loteamentos irregulares, avanando pela mata atlntica do Parque Estadual da Pedra Branca. Como uma resultante desse processo, cresceram exponencialmente problemas ligados ao saneamento bsico. A presena do Parque Estadual da Pedra Branca no suficiente para impedir o avano seja por favelas ou residncias de luxo sobre as encostas da mata atlntica do macio. Muito possivelmente, dentre as matas que compem o macio da Pedra Branca, a floresta do Camorim local de realizao da maioria dos estudos deste livro seja a que se apresenta mais bem conservada. Isto se deve ao combinada de diversos fatores ambientais, como a baixa presso de visitao, gradientes altitudinais, orientao de encostas e proximidade do litoral. Localizada na bacia do rio Camorim, com 1.200 ha, esta apresenta um permetro de 17 km e tem como principais tributrios os rios So Gonalo do Amarante e Caambe. Em seu interior encontram-se a serra do Nogueira e a Pedra da Rosilha, com 648 m e 480 m, respectivamente. A represa do Camorim, um lago artificial construdo na dcada de 1930, uma das suas atraes, situada a 436 m de altitude. Um dos pontos de destaque na serra do Nogueira o Pico do Itaiaci, com 588 m. A principal caracterstica desta elevao como tambm de vastas reas no macio da Pedra Branca - a ocorrncia de um tipo particular de floresta localizada sobre solos extremamente rasos (de 30 cm a 40 cm de profundidade) e com grande teor de matria orgnica (Oliveira & Costa, 1985). Em termos fisiogrficos, o macio da Pedra Branca faz parte do conjunto de macios litorneos que compem o relevo da cidade do Rio de Janei-

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ro. Apresenta-se com altitude moderada (1.025 m no Pico da Pedra Branca, ponto culminante do municpio) e vertentes escarpadas, apesar de apresentar feies de relevo menos dissecadas, comparativamente ao macio da Tijuca (Costa, 2002). A geologia da regio da bacia do rio Camorim caracterizada, nas partes mais baixas, pela presena de ampla faixa de gnaisse melanocrtico, enquanto, nas mais elevadas, por granitos de diversos tipos. No entanto, a presena desses granitos conspcua nos trechos de baixa encosta e fundos de vales, sob a forma de mataces oriundos de desabamentos ocorridos em pocas diversas. Esta litologia, juntamente com o clima regional, gera os seguintes solos na regio do Camorim: os latossolos, nas encostas mais elevadas do macio, que so solos rasos e aparecem associados a cambissolos, solos litlicos e podzlicos, estes recobrindo principalmente as vertentes mais suaves e de menor altitude. O balano hdrico do bairro do Camorim foi estabelecido a partir dos dados da estao meteorolgica mais prxima (autdromo de Jacarepagu). O tipo climtico submido, com pouco ou nenhum dficit de gua, megatrmico, com calor uniformemente distribudo por todo o ano. A baixada de Jacarepagu, segundo a classificao de Kppen, acha-se includa no tipo Af, ou seja, clima tropical quente e mido, sem estao seca, com 60 mm de chuvas no ms mais seco, no caso, agosto. A regio, com pluviosidade de 1.215 mm anuais, apresenta uma retirada de gua do solo igual reposio (35 mm). As matas que revestem o grande anfiteatro montanhoso do Camorim fazem parte da floresta ombrfila densa submontana e montana (Velloso et al., 1991), apresentando-se em diferentes estgios de conservao. A resultante ambiental do intenso processo histrico de ocupao por agricultura de subsistncia uma profuso de florestas secundrias formadas pela multiplicidade de antigas roas abandonadas em diferentes tempos. Esta caracterstica parece ser a principal responsvel pela fragmentao estrutural da paisagem florestada. A esse processo de incremento e recomposio do tecido florestal interpem-se os incndios florestais, que destroem periodicamente faixas considerveis da mata atlntica. Esses distrbios vm contribuindo para a destruio paulatina do patrimnio biolgico. Com relao flora ameaada de extino, as seguintes espcies, presentes na lista florstica do Camorim, fazem parte da lista oficial de espcies da flora brasileira ameaada de extino: Heliconia angusta, H. farinosa, Dalbergia nigra, Cariniana ianeirensis, Dorstenia ramosa e D. arifolia (Ibama, 1992). Na relao de espcies ameaadas

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de extino no municpio do Rio de Janeiro (Secretaria Municipal de Meio Ambiente, 2000) constam diversas espcies vulnerveis e criticamente em perigo. Mais vulnervel ainda a situao da fauna (especialmente mamferos e aves) no macio da Pedra Branca. A cultura de caa por parte de seus moradores faz com que muitas espcies, especialmente os mamferos, encontremse no limiar da extino local, principalmente na regio perifrica da floresta. No entanto, a bacia hidrogrfica do rio Camorim apresenta locais que podem ser considerados como verdadeiros relictos florestais, descritos a seguir. Bacia do rio So Gonalo do Amarante Esta bacia hidrogrfica revestida por uma floresta com um grande potencial em termos de conservao. Apesar desta ser ainda muito mal conhecida do ponto de vista botnico, os poucos dados disponveis so promissores. Em primeiro lugar, h que se destacar aspectos de ordem estrutural. De uma maneira geral, o estrato arbreo da bacia do rio So Gonalo do Amarante apresenta altura elevada, percebendo-se claramente um dossel contnuo, caracterizado por espcies de tamanhos desiguais. Em alguns casos, possvel encontrar indivduos emergentes de grande porte, como o caso de um jequitib (Cariniana legalis) de cerca de 45 m de altura. Como inexistem atrativos como cachoeiras ou lagos, a visitao reduzida, o que contribui para que esta bacia apresente um dos melhores trechos florestados do municpio do Rio de Janeiro. Um outro fator que concorre para conservao da floresta a orientao da encosta que, no caso, voltada para o sul. Esta orientao tambm promove a conservao da umidade no interior da floresta, o que contribui para impedir a propagao de incndios. Em termos de ocupao espacial e dominncia, a espcie que mais chama ateno a sucanga (Senefeldera multiflora). Ela dominante na floresta, sendo tambm possvel encontr-la em todos os estgios desde indivduos adultos at plntulas de 0,5 m de altura ocorrendo de forma onipresente em toda esta bacia. Um padro de comportamento oposto a este pode ser encontrado em Almeidea rubra, um arbusto que forma comunidades de ocorrncia extremamente pontual. Em relao s espcies de valor econmico ou etnobotnico, podem ser identificadas vrias madeiras de primeira qualidade, como a bicuba (Virola oleifera) e o jacarand (Dalbergia nigra), assim como canelas de diversas espcies do gnero Ocotea, alm do cedro (Cedrela fissilis), da peroba (Aspidosperma melanocalix) e do louro-pardo (Cordia trichotoma). Outra tambm de grande

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valor o jatob (Hymaenaea courbaril), que, alm da madeira de lei, fornece, a partir de sua seiva, o vinho de jatob, um fortificante. Alm disso, a casca tambm utilizada na medicina popular. De utilizao menos nobre, mas nem por isso menos procurado, o pau-pereira (Geissospermum vellosoi), cuja casca utilizada para condimentar a cachaa. Pico do Itaiaci Na mata atlntica, as classes de solo podem variar substancialmente a intervalos de poucos metros. Solos rasos podem ocorrer ao lado de afloramentos de rochas; e solos profundos, assim como solos frteis, podem estar associados a solos pobres em nutrientes. No entanto, relativamente comum, no macio da Pedra Branca, a existncia de encostas ngremes por vezes com declives superiores a 45o revestidas por floresta densa mas com caractersticas estruturais e de composio prprias, como por exemplo na vertente sul do Pico Itaiaci, com cerca de 40o de declividade. Informaes de antigos moradores atestam para este trecho a inexistncia de incndios ou da prtica de agricultura de subsistncia e fortalecem a hiptese de se tratar de uma floresta em excelente estado de preservao, configurando-se, portanto, como um clmax local. Possivelmente em funo das caractersticas edficas, a vegetao apresenta um aspecto geral escleromrfico, sendo constituda por numerosas espcies helifilas, algumas tpicas de restingas, como o cacto Opuntia brasiliensis e o gravat Bromelia antiacantha. No estrato arbreo, as espcies mais caractersticas so Casearia sylvestris (guaatonga), Alseis floribunda, Rapanea umbellata (capororoca), Myrcia rostrata (vassourinha), Hymenaea courbaril var. altissima (jatob), Swartzia simplex var. grandiflora (laranjinha-do-mato), Ficus enormis (figueira-da-pedra), Salacia elliptica, Guapira opposita (mariapreta), Luehea divaricata (aoita-cavalo) e Roupala brasiliensis (carne-de-vaca). As espcies emergentes so constitudas por Pradosia kulmanii (casca-doce), Cryptocarya saligna e Attalea dubia (coco-indai). Em funo do raleamento do dossel, o sub-bosque bastante denso e representado por Ceiba erianthus, Actinostemum communis, Sorocea guilleminiana (espinheira-santa, como equivocadamente conhecida na regio), Erythroxylum pulchrum (arco-de-pipa), Amphirrhox longifolia, Allophylus sericeus, Maytenus comunis, Cordia trichoclada e Opuntia brasiliensis (Firme et al., 2001). Nas proximidades das zonas de cumeada, e em locais de solo ainda mais raso, o estrato herbceo todo formado por comunidades de bromeliceas, como Neoregelia cruenta, Bromelia

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antiacantha e Vriesea amestisthina. Esta espcie foi descoberta e descrita em 1870 por Glaziou, que depositou uma amostra no herbrio de Paris. Desde ento, nunca mais esta espcie foi reencontrada na natureza, tendo sido dada por extinta. Recentemente, a mesma foi redescoberta nesta rea em uma populao muito reduzida, em funo de um incndio florestal que ocorreu em agosto de 2000. Floresta do prtico do Camorim O prtico do Camorim do Parque Estadual da Pedra Branca est localizado no entorno da captao de guas do rio Camorim, construo que data do incio do sculo passado. formado por um conjunto de construes visando o represamento de suas guas: canalizao aberta, escada para arejamento e tanques de decantao e unidades de filtrao e clorao. Destaca-se nessa rea a cachoeira Vu da Noiva, de grande beleza cnica. A floresta em questo estende-se a montante dos tanques de decantao de gua e do Vu de Noiva, em uma rea de aproximadamente 50 ha. Embora tecnicamente esse trecho possa ser classificado como floresta climxica, tanto quanto a formao anterior (a floresta do Pico do Itaiaci), desta se distingue pelos atributos fisionmico-estruturais. Enquanto a floresta que reveste o Pico do Itaiaci, por se tratar de formao sobre solos rasos, pouco densa e de porte reduzido, a floresta do prtico do Camorim se diferencia por ser constituda de rvores de grande porte. Sem dvida, trata-se de destacado patrimnio ecolgico do Parque Estadual da Pedra Branca e de grande importncia no contexto da conservao ambiental do municpio do Rio de Janeiro. Os dados disponveis sobre a composio da mata atlntica nesta rea so muito reduzidos, mas ainda assim suficientes para se ter uma noo do potencial de biodiversidade da rea, em funo da presena em grande nmero de espcies tpicas de florestas conservadas. Dentre estas, destacam-se gneros e espcies pertencentes s famlias Lauraceae, Myrtaceae e Apocynaceae. Somente para esta ltima, foram encontradas 12 espcies em apenas 0,1 ha (Peixoto e Oliveira, dados no publicados). Entre estas, destacamse Micropholis crassipedicellata, Chrysophyllum lucentifolium e Pradosia kuhlmanii, consideradas indicadoras de florestas maduras. A carga de epfitos grande e muito diversificada, o que tambm caracteriza florestas em estgio climxico. De uma maneira geral, o aspecto que mais chama a ateno neste local a estrutura da floresta, que se caracteriza por exemplares de grande porte, tanto na altura como na espessura de caules, o que reflete a sua condio

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prstina. No que se refere aos flancos de deteriorizao da rea do prtico do Camorim, o elemento de maior peso o gradual avano do capim colonio (Panicum maximum), que aqui entra proveniente de pastagens vizinhas. J de longa data fcil perceber que a existncia de pastagens de modo geral clandestinas e com baixa produtividade de carne e leite apresenta-se associada ocorrncia de incndios anuais. No intento de se conseguir pasto mais verde no perodo da seca, os proprietrios do gado ateiam fogo pastagem, o que resulta em gradual avano da mesma sobre as reas florestadas. Estes trs trechos de mata atlntica constituem os mais bem conservados de toda a bacia do Camorim, configurando-se, portanto, como formaes climxicas. Por razes histricas diversas, foram preservados da destruio, sendo muito possvel que o fato de se localizarem em terrenos ngremes e distantes da baixada tenha sido objeto de menor procura para explorao. Sua rea total de cerca de 200 ha, o que perfaz 28% de toda a bacia. Os demais 72%, alm do uso antrpico direto, so constitudos de florestas secundrias, em vrios estgios de regenerao. As causas dessa descaracterizao de sua condio prstina e de sua histria ambiental, e as resultantes ecolgicas desse processo, sero vistas ao longo dos captulos que se seguem. Agradecimentos A Luci P. Hack e Edson Fialho pela elaborao do balano hdrico e a Pedro Paulo Lima-e-Silva e Mirtes Cavalcanti Musitano pela reviso do original. Refernciasbibliogrficas COSTA, N. M. Anlise do Parque Estadual da Pedra Branca por geoprocessamento: uma contribuio ao seu Plano Diretor. 2002. 317 f. Tese (doutorado) Programa de ps-graduao em geografia, UFRJ, Rio de Janeiro, 2002. FIRME, R. P.; VICENZ, R. S.; MACEDO, G. V.; SILVA, I. M. & OLIVEIRA, R. R. Estrutura da vegetao de um trecho de mata atlntica sobre solos rasos (macio da Pedra Branca, RJ), Eugeniana. v. 24, n. 1, p. 3-10, 200 FREITAS, M.M. Funcionalidade hidrolgica dos cultivos de banana e territorialidades na paisagem do Parque Municipal de Grumari Macio da Pedra Branca, RJ. 2003. 247 f. Tese (doutorado) Programa de ps-graduao em geografia, UFRJ, Rio de Janeiro, 2003. GALVO, M.C. Lavradores brasileiros e portugueses na Vargem Grande.

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Os cenrios da paisagem

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Captulo I O espao marcado

Histria de uma floresta, geografia de seus habitantesIns Aguiar de Freitas1

Sou um gegrafo e meu trabalho repousa quase que exclusivamente numa grande tradio: (...) a de dar sentido natureza falava-nos Stoddart em sua obra On Geography and its History, de 1986. E esta nossa tarefa no conjunto de captulos que compem esta obra: pensar uma floresta do ponto de vista de sua importncia econmica e social, mas, principalmente, dar-lhe significado histrico. Em outras palavras, falar de sua geografia a partir de sua histria ambiental. E, neste captulo, pretendemos dar subsdios compreenso do que chamaremos, ao longo da obra, de histria ambiental. No quadro atual de transformaes vividas pela geografia, a anlise da organizao espacial tem se dado, cada vez mais, por meio de uma prtica interdisciplinar, despertando novo interesse no estudo das relaes entre natureza, cultura, sociedade e meio ambiente. certo que tal relao sempre foi objeto de investigao de diversos ramos do saber, desde a antigidade. No entanto, este tema encontra agora dois novos caminhos que interessam de perto geografia. O primeiro aquele proposto pela histria ambiental, uma disciplina recente que considera a natureza um agente na histria do homem. Este ramo da histria trabalha em trs diferentes nveis: o entendimento da natureza propriamente dita; a anlise do domnio socioeconmico; e a apreenso de percepes, valores ticos, leis, mitos e outras estruturas de significao que ligam um indivduo ou um grupo natureza, incluindo, conseqentemente, a questo da cultura. O segundo caminho o proposto pela geografia cultural, apoiado naquilo que a geografia h muito postula a cultura vista como a resposta humana ao que a natureza nos oferece como base fsica. Se tais idias parecem atreladas a uma geografia cultural do passado, est ligada tambm nova geografia cultural, preocupada com a influncia da cultura na organizao espacial.1

Professora do Departamento de Geografia da UERJ Rua So Francisco Xavier, 524, Rio de Janeiro - RJ, CEP 20550-013.

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Temos, assim, nos dedicado a estudos em histria ambiental, principalmente na busca de uma interface dessa disciplina com a geografia. Inclui-se nesses estudos o tema das relaes entre natureza e cultura e de como tais relaes influenciam a ao dos homens sobre o meio ambiente. Por isso, sentimo-nos vontade para tratar aqui das bases terico-conceituais da histria ambiental e da questo de sua interdisciplinaridade fator que permite um rico e intenso dilogo com a geografia (seja ela fsica ou humana)2. Ao mesmo tempo, gostaramos de destacar que uma situao de novidade que caracteriza a abordagem do tema para ns, gegrafos, de maneira geral, no tem impedido que esses primeiros passos venham a pblico, mesmo que ainda no existam estudos mais aprofundados ligando a histria ambiental geografia. Enfim, nosso objetivo principal, neste captulo, estabelecer um dilogo entre a geografia e a histria ambiental, crendo que este muito tem a contribuir para a compreenso da organizao espacial e, principalmente, do significado que uma floresta urbana como a do Camorim possa ter hoje, para seus habitantes e para o povo da cidade que a cerca, no caso, o Rio de Janeiro. Ageografiaeumanovainterdisciplinaridade Seguindo Glacken (1990), cremos que um dos temas fundadores da geografia (ou do saber geogrfico, antes mesmo de sua institucionalizao como cincia ou disciplina acadmica) aquele que aborda as relaes entre natureza e cultura. Tais preocupaes tm origem na antigidade, passando por todos os momentos da histria desde ento, destacando-se o sculo XVIII (quando o tema ganha enorme importncia) e chegando aos nossos dias, quando, entre outras coisas, buscamos nessa relao as respostas mais urgentes para a compreenso da organizao espacial, entre elas a questo da cultura na construo das paisagens humanas ou a busca por solues para os problemas ambientais que hoje enfrentamos. Enfim, tal temtica nunca abandonou gegrafos e estudiosos de muitas outras reas. Ao longo de toda a histria da geografia, a anlise da organizao espacial tem se dado por meio de uma prtica interdisciplinar. Isto inegvel. E esta tem sido a causa de muitos problemas epistemolgicos vividos pela2

Assim foi nos trabalhos: Histria ambiental e geografia, apresentado no Encontro Nacional de Gegrafos; Histria ambiental e geografia na obra de Alberto Lamego, apresentado na mesma ocasio, numa mesa redonda; e A geografia na construo de uma histria ambiental brasileira, publicado no Boletim Goiano de Geografia (da Universidade Federal de Gois), em dezembro de 2002.

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prpria geografia sua maior caracterstica (a interdisciplinaridade) , tambm, sua maior fragilidade. E, se hoje as mais recentes propostas e pesquisas nas diferentes reas do conhecimento tm se orientado no mesmo sentido de uma interdisciplinaridade, esta, no entanto, no deve ser compreendida como um conjunto, muitas vezes desarticulado, de diferentes disciplinas, em que se tenta fundir mtodos, objetos, tcnicas e abordagens diversas. Tal interdisciplinaridade estaria, sim, fundamentada pelo princpio da complexidade. Como claramente explica Cavalcanti (2002, p. 127), no contexto desse novo paradigma a interdisciplinaridade surge como parte da proposta de se criar um intercmbio, uma cooperao entre diversas disciplinas, em busca da construo de projetos com base em objetos de conhecimento transdisciplinares. Alerta-nos Morin (2001, p.13) que, no quadro atual de nossa cincia moderna h inadequao cada vez mais ampla, profunda e grave entre os saberes separados, fragmentados, compartimentados entre disciplinas, e, por outro lado, realidades ou problemas cada vez mais polidisciplinares, transversais, multidimensionais, transnacionais, globais, planetrios. Assim, acredita o autor que as cincias da terra, entre as quais se d destaque geografia, contribuem para a elaborao de um cenrio diferente, acreditando que(...) o desenvolvimento das cincias da terra e da ecologia revitalizam a geografia, cincia complexa por princpio, uma vez que abrange a fsica terrestre, a biosfera e as implantaes humanas (...). A geografia (...) desenvolve seus pseudpodes geopolticos e reassume sua vocao originria (...), segundo o autor, generalizadora (...) (Morin, 2001, p. 28-29).

Assim, a geografia, com seu objeto multidimensional o espao geogrfico ainda segundo Morin, estaria apta a fazer parte dessa nova interdisciplinaridade, apoiada na proposta de ecologizar as disciplinas, associando-as a uma metadisciplina (entendida como algo que vai alm da disciplina, em que a geografia se visse como parte de um todo complexo). Conhecimento distinto, sim, mas no isolado das outras partes e do todo (Cavalcanti, 2002, p. 127). como se dentro desse esprito de renovao de paradigmas vislumbrssemos a possibilidade de dar incio a uma conexo ou, se preferirmos, a um dilogo entre a geografia e uma disciplina relativamente recente, ainda pouco conhecida no Brasil a histria ambiental, sempre perseguindo as propostas de construo de uma nova e verdadeira interdisciplinaridade. Cremos que a histria ambiental apresente muitos pontos de interesse comuns nossa cincia e que, sendo assim, os gegrafos no podem deixar39

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de estar atentos s propostas que os historiadores ambientais trazem para o campo das idias sobre as relaes entre natureza e sociedade. No podem tambm deixar de dar sua contribuio a essa nova disciplina. E, principalmente, devemos reconhecer, na produo da geografia, os autores que, mesmo sem saber, j tenham recorrido a objetos e formas de abordagem tpicos de uma histria ambiental, estabelecendo alguma forma de conexo entre as duas disciplinas. Como dito acima, o principal objetivo deste texto estabelecer o debate da geografia com a histria ambiental, a fim de que a geografia possa contribuir para a compreenso (e soluo) dos problemas que envolvem, hoje, uma floresta como a do Camorim: uma crise ambiental, uma intensa crise urbana vivida pela grande cidade ao seu redor, a perda da qualidade de vida que atinge quase todos os habitantes da cidade s para citar alguns deles; problemas cujas caractersticas nos permitem apont-los como ecolgicos, sistmicos, holsticos, ou metadisciplinares, no sentido conferido a esses termos por autores como Capra e Morin, entre outros. Se o paradigma da cincia moderna fazia fundamental que todo campo do conhecimento tivesse seus limites bem traados, que fosse bem conhecida a natureza de suas preocupaes, que tivesse seus objetivos bem definidos e que, ao se fundar, toda cincia pudesse estar trazendo uma nova e real contribuio para a compreenso do mundo em que vivemos, os novos paradigmas, que apontam para uma cincia sistmica, dificultam o estabelecimento de tais limites e imposies. Assim, se no caso da histria ambiental esta nova disciplina apia-se nos mtodos e em alguns conceitos da histria, por outro lado devemos lembrar que a interdisciplinaridade que a caracteriza parece abrir espao para um grande dilogo com a geografia. Oquehistriaambiental? A histria ambiental uma disciplina relativamente nova, praticada principalmente nos Estados Unidos, na Austrlia e em alguns outros pases de lngua inglesa, nascida do interesse e dos trabalhos de pesquisa de uma pequena comunidade acadmica, formada principalmente por historiadores e bilogos vindos de diferentes temas e especialidades. Este novo campo do conhecimento vem sendo construdo h cerca de 15 anos, ligando a histria natural histria social. Esta caracterstica bsica da proposta dos criadores da histria ambiental torna-se possvel devido ao fato de a construo dessa nova disciplina se apoiar numa viso arraigadamen40

Histria de uma floresta, geografia de seus habitantes

te interdisciplinar, interessada em tratar do papel e do lugar da natureza na vida humana (Worster, 1991). Drummond (1997), um dos primeiros divulgadores da histria ambiental no Brasil, indica a ns alguns nomes constituintes do grupo de trabalho em histria ambiental nos Estados Unidos. Seriam eles: William Cronon, Donald Worster, Richard White, Stephen Pyne, Warren Dean, Alfred Crosby, Joseph Petulla, Frederick Turner, Roderick Nash, Samuel Hays, Richard Tucker, entre outros. O grupo, que possui uma associao profissional a American Society for Environmental History e um peridico a revista Environmental History tem por objetivo principal colocar a natureza na histria, segundo palavras de William Cronon. Segundo Donald Worster (1991, p. 198), at pouco tempo o assunto tradicionalmente importante para os historiadores era a poltica e, conseqentemente, o nico campo que merecia interesse era o Estado. Ou seja, a histria sempre dedicou sua ateno a temas relacionados com o funcionamento das instituies formadoras dos Estados nacionais. Mas h algum tempo esse conceito da histria comeou a perder terreno, na medida em que o mundo evolua para um ponto de vista mais global. Os historiadores comearam a abandonar um pouco da sua certeza de que o passado tenha sido to integralmente controlado ou representado por alguns poucos homens ou determinado to-somente por interesses de Estado. Os estudiosos comearam a desenterrar camadas longamente submersas das vidas e dos pensamentos das pessoas comuns e tentaram reconceituar a histria de baixo para cima (Worster, 1991), valorizando cada vez mais conceitos como territrio, territorialidades, enfim, aproximando-se (no caso da histria ambiental), podemos dizer, de categorias at hoje to prprias da geografia. nessa nova forma de se fazer histria (baseada na vida e nos pensamentos das pessoas comuns) que a histria ambiental se insere. E ela vai alm, pois considera a Terra (o meio ambiente) como um agente e uma presena na histria. Isto impe ainda uma anlise mais global, na medida em que os fenmenos que acontecem no meio ambiente no ficam restritos s fronteiras dos Estados nacionais. E, se quisermos entend-los e associ-los evoluo das prticas sociais, precisamos ter uma viso mais integrada do mundo, que no fique restrita s fronteiras polticas. Pavimentando o caminho da histria ambiental, Worster indica, como vimos, que esta disciplina trata do papel e do lugar da natureza na vida humana, lembrando que esta nova histria encontra seu principal tema de estudo na esfera no-humana. Ou seja, em tudo aquilo que no construdo pelo hu41

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mano (e que normalmente chamamos de natureza), mas que exerce influncia sobre a vida humana; aquelas energias autnomas que no derivam de ns, mas que interferem na vida humana, estimulando algumas reaes, algumas defesas, algumas ambies. Haveria trs nveis de funcionamento na histria ambiental, ou, se preferirmos, trs grandes conjuntos de questes: 1. Aquele que trata doentendimento da natureza propriamente dita seus aspectos orgnicos e inorgnicos, formadores de uma histria natural. Existiria sempre a perspectiva de se comear os estudos em histria ambiental com a apresentao do passado das paisagens que sero estudadas. O segundo nvel de investigao trata dodomnio socioeconmico, na medida em que este interage com o ambiente ferramentas de trabalho, modos de produo, relaes sociais, instituies, decises ambientais ou seja, est includo neste nvel o estudo do poder de tomada de deciso de uma dada sociedade, inclusive as decises econmicas e polticas referentes ao meio ambiente. Grande parte da histria ambiental se dedica justamente a examinar essas mudanas, voluntrias ou foradas, nos modos de subsistncia e suas implicaes para as pessoas e para a terra. (Worster, 1991, p. 207) O terceiro nvel cuida de um tipo de interao mais intangvel e exclusivamente humano, puramente mental ou intelectual, no qual percepes, valores ticos, leis, mitos e outras estruturas de significao se tornam parte do dilogo de um indivduo ou de um grupo, com a natureza (Worster, 1991. p.202). Seria aquilo que Turner (1990) chamou de uma histria espiritual que um povo tem com seu territrio. (...) a natureza no uma idia, mas muitas idias, significados, pensamentos, sentimentos, empilhados uns sobre os outros, freqentemente da forma menos sistemtica possvel. (Worster, 1991, p. 210)

2.

3.

Longe de um determinismo ambiental, pode-se ver que a histria ambiental uma histria que inclui a natureza como objeto, mas tambm como resultante de processos engendrados pelo homem e pela evoluo natural da rea, ou seja, a paisagem (Worster, 1991). Vejamos alguns exemplos do que estudam alguns historiadores ambientais.42

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William Cronon, um dos mais ativos participantes do grupo fundador da histria ambiental nos Estados Unidos e que ocupa, no por acaso, a cadeira Professor Frederick Jackson Turner3 de histria, geografia e estudos ambientais, na Universidade de Wisconsin-Madison, nos mostra em sua obra como importante refletirmos sobre a natureza e sobre nossas relaes fsicas complexas com o mundo natural, poisa natureza que carregamos dentro ns to importante quanto a natureza que nos cerca, porque a natureza que est dentro de ns com certeza o motor que dirige nossas interaes com a natureza fsica, neste contnuo processo de transformao homem/natureza (Cronon, 1996).

O que nos traz lembrana a tese presente na obra Paisagem e memria, de Simon Shama:Estamos habituados a situar a natureza e a percepo humana em dois campos distintos; na verdade, elas so inseparveis. Antes de poder ser um repouso para os sentidos, a paisagem obra da mente... Compe-se tanto de camadas de lembranas quanto de estratos de rocha (Shama, 1996, p. 8).

Podemos perceber aqui o tema daquele terceiro grupo de questes, apontado por Worster e que nos lembra que a histria ambiental incorpora um elemento de anlise bastante raro nas demais cincias ambientais: a construo imaginria da natureza pelo homem. Nos Estados Unidos, a histria ambiental tem como base, ainda, a histria da conservao ambiental. E isto fica claro se observarmos que, em uma de suas atuais linhas de pesquisa, William Cronon se preocupa em decifrar como as comunidades humanas modificam as paisagens em que vivem e como as pessoas ao redor so afetadas pelas mudanas ocorridas nas condies geolgicas, climatolgicas, epidemolgicas e ecolgicas (Cronon, 1996).3

Frederick Jacson Turner (1861-1932) foi o historiador americano que primeiro estudou a idia da fronteira como formadora do esprito americano. Turner rejeitou a doutrina de que as instituies americanas deveriam ser compreendidas principalmente pelas suas origens europias e demonstrou suas teorias numa srie de ensaios. Em The Significance of the Frontier in American History (1893), ele desenvolve a idia de que a alma americana foi esculpida pela vida na fronteira e pelo fim da era da fronteira. O conjunto de seus ensaios foi publicado sob o nome de The Frontier in American History (1920) and Significance of Sections in American History (1932, Prmio Pulitzer).

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Talvez o mais intrigante, que a wilderness4 encara um dualismo antigo em que o ser humano e a natureza se opem. A natureza selvagem, pela definio, o lugar onde os seres humanos no esto, e nossa presena pode no somente manch-la, mas tambm destru-la. Este dualismo algo muito complexo, pois, para se tentar construir um movimento ambiental, tem que se encarar o desafio moral de viver sustentavelmente na terra (Cronon, 1996).

Explica ainda que a natureza intocada sobrevive em um espao cultural, e que sobreviver somente se ns considerarmos os contextos cultural, poltico e econmico sob o espao que a natureza selvagem est inserida. E lembra que o no uso, ou seja, a natureza intocvel no uma opo: viver na natureza us-la e transform-la com a nossa presena. A escolha que ns fazemos no deve ser a de no deixar nenhuma marca, que impossvel, mas sim quais tipos de marcas ns desejamos deixar. ainda na obra Humanist Environmentalism: a Manifesto que o mesmo autor nos d algumas pistas importantes para a apreenso e compreenso dos objetos e objetivos da histria ambiental e que podemos reconhecer tambm algumas palavras-chave para uma melhor apreenso do que seja histria ambiental: wilderness, marcas, paisagem, valores, tica, antropocentrismo, sonhos, medos, mito, religio, histria todas elas denotam elementos imprescindveis para a construo de uma histria ambiental. E estas palavras-chave se reforam na obra de muitos outros historiadores ambientais. A ttulo de exemplo, vejamos algumas idias presentes nas obras de Worster e Turner. Tambm considerado fundador do tema, Donald Worster comeou a estudar histria ambiental a partir de seu grande trabalho em histria das idias ecolgicas, Natures Economy, publicado em 1977. Nesse trabalho acadmico, o autor fez uma tentativa consciente de colocar a cincia dentro da histria a histria das pessoas, sociedades, culturas e economias e inaugura uma investigao sobre a ecologia do passado, ou seja, rev a origem da evoluo, discute as teorias evolucionistas e mostra como essas idias transformaram nossa maneira no s de ver a natureza mas de nos relacionarmos com ela. Sua pesquisa defende ainda a idia de que, desde o sculo XVIII, o ocidente foi dividido em duas partes opostas uma dedicada ao pensamento livre, pesquisa por valores, ordem e propsitos na vida, e, outra, nfase na dominao da natureza e na4

Sobre o conceito de wilderness, cuja traduo para o portugus empobrece seu sentido, tivemos a mesma dificuldade encontrada por Antnio Carlos Diegues ao traduzir sua obra O mito moderno da natureza intocada, optando por traduzir wilderness por natureza intocada. Aqui, chamaremos wilderness de natureza intocada ou natureza selvagem.

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devastao da mesma. Essa dicotomia, cr o autor, levou alienao espiritual das pessoas em relao natureza. Enfim, Natures Economy tenta mostrar a maneira atravs da qual os descobrimentos biolgicos se refletem nos valores culturais. Baseando-se em temas como a relao entre cincia e cultura, Worster, em 1984, escreveu History as Natural History, em que estabelece uma nova perspectiva para a recm-criada histria ambiental. Frederick Turner5 talvez seja um dos poucos historiadores ambientais cuja obra foi traduzida no Brasil. Trata-se do autor de O esprito ocidental contra a natureza: mito, histria e terras selvagens (1990). Nas palavras do autor reside todo o conjunto de idias e interesses que fundam este campo do conhecimento, no momento em que Turner define sua obra como um ensaio de histria espiritual. Ele parte do princpio que o Ocidente cristo trocou o mito pela histria como forma de entender a vida, encontrando a as razes mais profundas do confronto entre europeus e os povos nativos da Amrica no que concerne s suas concepes sobre a wilderness. Mostra como as religies histricas originadas no Velho Testamento dessacralizaram o mundo natural e desenvolveram dio profundo pela natureza jamais tocada pelo trabalho do homem. Essa obra talvez seja o exemplo mais concreto que poderamos encontrar daquilo que queremos definir como histria espiritual. Estabelecendorelaesentreageografiaeahistriaambiental A histria ambiental tem, no entanto, desenvolvido-se em ritmo e importncia diversos em diferentes pases do mundo; e trabalhos acadmicos que evidenciem suas relaes com a geografia so quase inexistentes. Se, no Brasil, temos conhecimento de rarssimos trabalhos nesse ramo do conhecimento, pior ainda a situao quando se refere a trabalhos em histria ambiental realizados por estudiosos oriundos da geografia. Porm, gostaramos de destacar algumas caractersticas que podero ser muito teis quando da realizao de futuros trabalhos unindo estas duas disciplinas. Assim, tentando estabelecer interesses e temas comuns, poderamos dizer que, a princpio, os trs nveis de questes apontadas pela histria ambiental tm relao direta com os objetos da geografia em geral e seus temas mais recorrentes o entendimento da natureza propriamente dita; o domnio scioeconmico, que d origem s tcnicas, s ferramentas de trabalho, aos modos de produo, s relaes sociais, s instituies e s decises ambientais; e per5

No confundir com Frederick Jackson Turner, o historiador americano j citado anteriormente.

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cepo, ideologia, valores e idias que as pessoas tm da natureza e de seu territrio. Tais semelhanas so percebidas at mesmo por aqueles estudiosos no diretamente ligados geografia. Assim, no por acaso que em Drummond, um cientista poltico que vem contribuindo com publicaes e tradues para a divulgao da histria ambiental no Brasil, encontramos alguns pontos para relacion-la com nossa disciplina (Drummond, 1997): A primeira caracterstica a de que quase todas as anlises realizadas em histria ambiental, at agora, focalizam uma regio geogrfica com algum grau de homogeneidade natural. (No seria coincidncia pensarmos na regio natural, quase sinnimo da regio geogrfica, categoria/objeto da geografia, presente em quase todos os momentos do pensamento geogrfico.) Uma segunda caracterstica dos estudos da histria ambiental, tambm peculiar geografia, o seu dilogo sistemtico com quase todas as cincias naturais aplicveis ao entendimento dos quadros fsicos e ecolgicos das regies estudadas, ou seja, um trabalho interdisciplinar em geologia, geomorfologia, climatologia, meteorologia, biologia vegetal e animal e, principalmente, ecologia. Segundo Drummond (1997, p .23), os historiadores ambientais no fazem apenas visitas protocolares s cincias naturais: dependem delas para saber como funcionam os ecossistemas sem interferncia humana, para da identificar com preciso os efeitos ecossistmicos da ao humana. Notamos aqui a relao com o primeiro grupo de questes da histria ambiental apontado anteriormente. o prprio Worster quem avisa: O historiador ambiental, alm de fazer algumas perguntas novas, precisa aprender a falar algumas lnguas novas. Sem dvida, a mais estranha dessas lnguas a dos cientistas naturais. (Worster, 1991, p. 202) A terceira car