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C A D E R N O 01 SÍNTESE HISTÓRICA E CONCEITUAL SUMÁRIO 1. Preliminares Pré-história sociopolítica - Pré-história econômica – Breve histórico dos calendários 2. Capitalismo e outros ‘ismos’ Capitalismo - Absolutismo - Mercantilismo – Liberalismo - Imperia- lismo - Socialismo – Marxismo/Comunismo - Social-democracia - Euro-socialismo 3. Neoliberalismo e globalização Neoliberalismo - Fundamentos ideológicos - Realidades e mitos da globalização 4. Exemplos da ação neoliberalizante O olho do furacão - Água no berço do neoliberalismo - O ocaso do euro-socialismo - O dominó do Leste Europeu - Sul-Sudeste da Ásia, um interessante estudo de caso - América Latina, ainda quintal dos EUA e do neoliberalismo

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C A D E R N O 01

SÍNTESE HISTÓRICA E CONCEITUAL

SUMÁRIO

1. Preliminares

Pré-história sociopolítica - Pré-história econômica – Breve histórico dos calendários

2. Capitalismo e outros ‘ismos’

Capitalismo - Absolutismo - Mercantilismo – Liberalismo - Imperia-lismo - Socialismo – Marxismo/Comunismo - Social-democracia - Euro-socialismo

3. Neoliberalismo e globalização

Neoliberalismo - Fundamentos ideológicos - Realidades e mitos da globalização

4. Exemplos da ação neoliberalizante

O olho do furacão - Água no berço do neoliberalismo - O ocaso do euro-socialismo - O dominó do Leste Europeu - Sul-Sudeste da Ásia, um interessante estudo de caso - América Latina, ainda quintal dos EUA e do neoliberalismo

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“Para chegar à verdade so-bre um fenômeno da vida so-cial, sempre é aconselhável remontar às suas origens.” Robert Kurz, Os últimos combates

1. Preliminares

O princípio de análise política, contido na epígrafe, é essencial e pode-mos aduzir que, além de estender o olhar pela evolução histórica do fe-nômeno político, social ou econômico, é conveniente também considerar alguns conceitos básicos. É bom ressaltar, porém, que os períodos e os marcos da história política e social nem sempre correspondem aos perí-odos e marcos da história econômica, introduzindo uma certa dicotomia, de sorte que é necessário tomar algumas precauções. Por exemplo, é usual a divisão da História em três períodos principais denominados Ida-de Antiga, Idade Média e Idade Moderna. Marx e outros autores, entre-tanto, preferem usar a classificação Escravidão, Feudalismo e Capitalis-mo, com nítida conotação preferencial para o sentido econômico. Após estas fases históricas, Marx vaticinou a superveniência do Comunismo, cuja teoria desenvolveu em parceria com Engels.

Hoje temos a visão de que a História não é uma seqüência de épocas ou períodos sociopolíticos ou econômicos mas um conjunto de processos. Alguns desses processos levam ao progresso e ao desenvolvimento hu-mano; outros, ao contrário, produzem o retrocesso, a decadência, a de-generescência dos sistemas, especialmente dos sistemas sociais e huma-nos.

Não cabe aqui aprofundar eventuais desconexões dicotômicas na análise da história política e da história econômica, porque são dispensáveis para os objetivos que perseguimos. É suficiente pontuar apenas que, sob pon-tos de vista econômicos e políticos, a existência de desconexões ou efei-tos de superposição entre as seqüências históricas às vezes pode causar alguma dificuldade interpretativa.

Somente para exemplificar, lembremos que na Idade Média - período

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cujos marcos delimitativos são a queda do império romano do ocidente em 496 d.C. e a queda do império bizantino em 1453, na tomada de Constantinopla - predominava o feudalismo, cujo conceito sob o ponto de vista político é bem conhecido. Sob o ponto de vista econômico, porém, a principal característica do feudalismo é a exploração dos vassalos, sen-do que os artesãos e camponeses podiam consumir parte do que produ-ziam, tendo que reservar uma parcela de seus produtos ou serviços para doação aos senhores feudais. Esse processo de exploração, no entanto, não é exclusivo desse período da História. Ele se reproduz em outras fases, até com mais ênfase, como ocorre em nossos dias, por exemplo.

De qualquer forma, os referenciais históricos e conceituais não podem ser desprezados, mesmo que não se pretenda fazer, com é o nosso caso, uma abordagem historicista. Daí, a necessidade de sintetizarmos aqui apenas um rápido e genérico alinhamento de históricos e conceitos, com predominante sentido econômico, para explicitar o nosso entendimento, subsidiar nossos argumentos e também para servir como breve recorrên-cia remissiva ou um sintético ‘vade mecum’.

Pré-história sociopolítica. As considerações a respeito da longa fase que estamos chamando de pré-história podem parecer desnecessárias e despropositadas, algo muito próximo da inutilidade. Na verdade, não é bem assim. Apesar de extremamente sintética e simplificada, essa resenha é de grande importância para a argumentação quanto a duas de nossas teses centrais: 1a. - a degenerescência e o colapso das relações econômi-cas, políticas e sociais no modelo capitalista hoje vigente, tema desen-volvido ao longo de quatro Cadernos deste estudo, mais amplamente no Caderno 04; 2a. - a proposta para a reconstrução, que é sintetizada no Caderno 05.

É claro que precisamos reconhecer que os marcos pré-históricos da for-mação da Terra e da espécie humana, bem como o desenvolvimento desta, são muito imprecisos e pouco consensuais entre os cientistas e estudiosos. Por exemplo:

• A formação do Universo, chamada de ‘big bang’, é suposta como tendo ocorrido entre 10 e 14 bilhões de anos, número que tende a convergir para 13 bilhões com base em estudos que estão sendo mais facilitados a partir de 1990 através das observações do telescópio or-bital Hubble. Há, porém, estudiosos que admitem que esse evento

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fantástico tenha ocorrido em até 30 bilhões de anos atrás. Além disso, o próprio ‘big-bang’ é uma hipótese ainda não cientificamente com-provada e nem consensual entre os estudiosos do tema.

• O nosso planeta, a Terra, é admitido como tendo sido formado há cerca de 4,5 bilhões de anos, período também sujeito a variações de avaliação. Por exemplo, essa época é tida por alguns cientistas como sendo a do aparecimento da vida na Terra, que pode ter ocorrido si-multaneamente ou não com a formação do planeta. Estudos mais a-tualizados tendem para a hipótese de que a vida teria surgido na Terra entre 500 milhões a 1 bilhão de anos após a formação do planeta.

• O surgimento do homem e de seus verdadeiros ancestrais é também muito impreciso e as divergências se apresentam tanto em referência à época quanto à seqüência e à forma como essa seqüência se deu. Os aperfeiçoamentos da ciência, especialmente a biologia molecular, a engenharia genética e o conhecimento do DNA, têm trazido alguma iluminação - não muita - sobre as dúvidas existentes.

O homem é um sistema imensamente menos complexo que os macros-sistemas, tais como o sistema solar, os sistemas galáticos ou o próprio Universo. É, porém um sistema imensamente mais complexo em relação à todas as demais espécies vivas do planeta Terra. E, em que pese a evo-lução das ciências, o homem é um sistema que está muito longe de ser explicado integralmente. Debateremos um pouco mais este tema nos dois últimos cadernos deste estudo.

Parece que não é necessário buscar, retroativamente, as origens do sur-gimento do homem além do fim do período Cretáceo e início do Terciá-rio, há 65 milhões de anos. Foi quando se deu a mais recente e mais co-nhecida, popularmente falando, grande catástrofe planetária. O impacto de um meteoro de 10 km de diâmetro na península de Yucatán, no Mé-xico, provocou por 500 mil anos fluxos monstruosos de lavas e produziu a extinção não apenas dos dinossauros (a mais badalada espécie extinta), como também de invertebrados e vertebrados marinhos e terrestres de, pelo menos, médio e grande porte. Depois dessa catástrofe surgiram os primatas, portadores de uma característica importante: polegares oposi-tores ou oponíveis e unhas ao invés de garras, características que se re-produzem no homem.

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Seguiram-se os períodos Paleoceno (65 a 53 milhões de anos), Eoceno (53 a 37 minhões de anos), Oligoceno (37 a 25 milhões), Mioceno (25 a 5 milhões) e Plioceno, há mais ou menos 5 milhões de anos. Foi nesta fase que os ancestrais do Homem moderno adquiriram outra característica importante, a postura bípede. Alguns autores defendem que no período de 1 milhão a 500 mil anos atrás ocorreu a separação entre as linhagens do chipanzé e do homem, tendo este assumido a postura do ‘homo erectus’. A fase do ‘homo sapiens neanderthalensis’ é admitida como tendo ocorrido há 120 mil anos e o ‘homo sapiens’, propriamente dito, teria surgido há cerca de 50 mil anos.i

No período Paleolítico superior, há mais ou menos 20.000 anos, é supos-to ter surgido no homem das cavernas a visão mágica a respeito da cone-xão entre o homem e o meio que o cerca. Tratava-se de uma visão ani-mista da natureza, a qual está na origem do pensamento religioso. De qualquer forma, porém, parece que o mago ou curandeiro dos agrupa-mentos tribais, ou seja, das sociedades primitivas, se tornou “o ancestral mais remoto do cientista moderno”.ii

Como vemos, a evolução da vida do homem na Terra se deu em longos períodos de tempo que são difíceis de conceber, quando comparados com nossos diminutos parâmetros e reduzidas percepções de tempo.

Pré-história econômica. Sob o ponto de vista econômico e para nos-sas finalidades analíticas, será suficiente apenas retroagir até uns 800 mil anos atrás, fase que é admitida como o início da história econômica, quando os ancestrais do homem começaram a executar algum tipo de trabalho. Para simplificar, vamos empreender igualmente uma velocíssi-ma viagem no tempo econômico até as proximidades do século 15 da nossa era, que é o momento a partir do qual concentraremos maior aten-ção.(∗)

Até começarem a ser fabricadas as primeiras ferramentas rudimentares, os ancestrais do homem viviam de forma aproximadamente igual aos animais selvagens. Somente há mais ou menos 80 mil anos, na fase do

(∗) Nossa síntese da pré-história econômica está fortemente apoiada no texto do cientista alemão Arno Peters, intitulado O princípio de equivalência como base da economia global, contido no livro Fim do capitalismo global - o novo projeto histórico.

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‘homo habilis’, é que os objetos precursores dos instrumentos de caça, como o arco e flecha, a faca, o arpão, a lança e o anzol, já estavam mais aperfeiçoados.

Mais ou menos nessa fase começou a divisão do trabalho: os homens caçavam e as mulheres tratavam dos afazeres menos perigosos, tais como juntar frutos e raízes e cuidar das crianças. Tendo começado também a providenciar sua proteção contra as intempéries, o homem já demons-trava preocupação com a melhoria da qualidade de vida. Mais tarde, há 12.000 anos, o homem já domesticava os animais, praticava a agricultura e produzia os próprios alimentos. Passava a se tornar mais independente da natureza, sem esperar que ela lhe desse espontaneamente os bens necessários à sua sobrevivência. A terra, porém, ainda era propriedade comum, isto é, para uso indistinto de qualquer pessoa. Começava a troca de bens, bem como o seu transporte, armazenamento e distribuição.

Há cerca de 7.000 anos passou a existir o comércio e, aí, começou a sur-gir o senso de valor e de propriedade e, conseqüentemente, a disputa, o saque, a apropriação e a expropriação pela força. Foi introduzida uma importante profissão, que classificamos dentre as profissões não nobres, a profissão de guerra.

Há 5.000 anos surgiram as primeiras cidades-estado e os rudimentos da economia “nacional”, que começou a se superpor à economia “local”. As comunidades se localizavam preferencialmente nos vales dos rios, espe-cialmente o Nilo, o Tigre, o Eufrates, o Indus e o Ganges. A transição da economia local para a economia nacional chegou ao sul da Europa há 3.000 anos, ao norte da Europa há 1.500 anos, a outras regiões da Euro-pa há pouco mais de 500 anos e da América e de outros continentes co-mo decorrência das ocupações coloniais.

Os traços mais essenciais desses 5.000 anos são o comércio, a guerra, a obtenção de riquezas e poder, a dominação e a expropriação. Até então, nos anteriores 800 mil anos de história econômica, a humanidade vivia sob um sistema que se costuma denominar economia equivalente, o qual foi mudado para um sistema de economia não equivalente. Este último está em vigor há 6 mil anos, o que significa menos de 1% do total do tempo eco-nômico.

De modo simplificado, podemos conceituar a economia equivalente como

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sendo o processo econômico onde os valores consumidos em bens e serviços pelos indivíduos correspondem aos valores produzidos. Por indivíduos se entende tanto uma pessoa como qualquer agrupamento: uma família, uma tribo, uma empresa ou agrupamentos maiores tais co-mo um país ou mesmo o planeta inteiro. De modo similar, a economia não equivalente é o processo onde os valores consumidos são diferentes dos valores produzidos pelos indivíduos.(*)

Breve histórico dos calendários.

Marcar o tempo sempre foi muito importante para as pessoas, desde as primeiras comunidades agrícolas, principalmente tendo em vista as épo-cas oportunas para o plantio, o qual também era correlacionado com os movimentos celestes e as festividades religiosas.

O nome calendário advém de kalenda, que inicialmente designava o livro que era usado para anotar os valores pagos no primeiro dia do mês. De-pois, a palavra kalenda (ou calenda) passou a significar apenas o primeiro dia do mês.

A história dos calendários, mais ou menos como os conhecemos hoje, isto é, como métodos de divisão do tempo em dias, semanas, meses, anos, ciclos lunares, solares e lunissolares é muito extensa e relata uma diversidade muito grande de modelos, em decorrência das culturas dos povos, dos movimentos aparentes dos astros e das datas religiosas. Uma grande dificuldade para referir os calendários aos ciclos lunares ou sola-res é que esses ciclos não são compostos por períodos inteiros de dias solares, a unidade mais comum para a contagem do tempo.

O Calendário Gregoriano é hoje adotado mundialmente, ainda que al-gumas sociedades não ocidentais utilizem, em paralelo, seus próprios calendários. Chama-se gregoriano porque foi instituído pelo Papa Gregó-rio 13 em 1582 e corresponde a uma reforma do Calendário Juliano, então vigente. Este, por sua vez, foi derivado de uma reforma do Calen-dário Romano realizada em 46 a.C., por ordem do imperador romano Julio Cesar. (*) Os conceitos de economia equivalente e de economia não equivalente se encontram desenvolvidos e aprofundados no texto citado e são de grande vali-dade para a discussão que fazemos no Caderno 03 sobre a questão do trabalho, bem como na formulação do novo modelo, desenvolvido no Caderno 05.

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O Calendário Juliano considerava o ano trópico de 365 dias e ¼ e estabele-cia que, a cada quatro anos, haveria um ano com 366 dias. Estabelecia também que seis meses alternados (janeiro, março, maio, julho, setembro e novembro) teriam 31 dias e que os demais teriam 30 dias, exceto feve-reiro que teria 29 dias nos anos de 365 dias e 30 dias nos anos bissex-tos.(∗)

No ano 8 a.C., o oitavo mês passou a se chamar agosto, em homenagem a Cesar Augusto (cujo nome verdadeiro era Gaius Julius Caesar Octavia-nus, sobrinho-neto de Cesar) e passou a ter também 31 dias, o mesmo que julho, que homenageava Julio Cesar. Foi, então retirado um dia de fevereiro, que passou a ter 28 dias nos anos normais e 29 dias nos anos bissextos. Setembro e novembro passaram de 31 para 30 dias e, conse-qüentemente, outubro e dezembro ganharam um dia, cada um. Tudo isso para satisfazer o ego e a auto-estima de um imperador invejoso.

Como curiosidade, vamos lembrar que os dias da semana, desde os tem-pos dos babilônios, tinham nomes referentes ao sistema solar então co-nhecido: Sol, Lua, Marte, Mercurio, Júpiter, Venus e Saturno. O papa Silvestre 1o, no século 4o d.C., tentou implantar uma mudança de no-menclatura, com base na palavra ‘feria’, que em latim significa comemo-ração. Assim, os dias da semana seriam denominados ‘feria prima’, ‘feria secunda’, ‘feria tertia’, até a ‘septima’. Mas a proposta não “pegou” e a maioria dos idiomas mantém ainda hoje nomes equivalentes aos dos astros do sistema solar, sendo o português a única língua importante que adotou uma nomenclatura parecida com a proposta do papa: segunda-feira, terça-feira etc.

Dezesseis séculos depois de instituído, o Calendário Juliano apresentava muitas inconsistências, por conta das diferenças acumuladas. Assim, em 1582 o Papa Gregório 13, assessorado pelo astrônomo Clavius, decretou que a quinta-feira 4 de outubro desse ano seria seguida por sexta-feira 15 de outubro, data que, em condições normais, seria uma segunda-feira da (∗) O período decorrido entre dois equinócios de primavera no hemisfério norte ou outono no hemisfério sul (março) foi usado para definir o ano trópico de 365 dias e ¼, número surpreendentemente preciso para a época. Bissexto deriva de bissextum ou mais extensamente ante diem bis sextum kalendas martias, que significa “o dia anterior às calendas de março”, isto é o último dia de feve-reiro.

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segunda semana subseqüente. Gregório 13 suprimiu, por decreto papal, 10 dias da história. Como se tratava de uma imposição da Igreja Católica, houve uma certa aceitação geral, com poucas restrições, exceto na Ingla-terra onde o novo calendário só foi implantado 170 anos depois, em 1752.

Sabe-se que hoje o ano solar tem 365,24219271 dias e diminui 0,005369 segundos por ano. O calendário gregoriano, além de ter feito a supressão de 10 dias em relação ao calendário juliano, estabeleceu que são bissextos os anos divisíveis por 4, exceto os múltiplos de 100 que não são múlti-plos de 400.

Outros calendários importantes:

• Judaico. Começa no dia em que, conforme o Gênesis, no Antigo Tes-tamento, foi criado o Universo, ou seja, 3.761 anos antes de Cristo. O ano novo judaico em 1999 ocorreu no dia 11 de setembro do calendá-rio gregoriano.

• Muçulmano. Nesse calendário o tempo é medido em ciclos lunares e existe desde a fundação da primeira comunidade islâmica em Medina, a cidade sagrada onde se encontra o túmulo de Maomé, situada na península arábica. A contagem oficial, porém, do tempo do calendário muçulmano foi estabelecida pelo califa Omar, a partir da Hégira, no ano 638 (ou 639, há dúvidas) da era cristã. O ano novo muçulmano em 1999 foi no dia 11 de abril, caso a Lua crescente tenha sido avista-da; caso contrário teria sido no dia seguinte.

• Chinês. Remonta a mais de 5.000 anos, mas somente em 265 a.C. passou a considerar o ano solar de 365,25 dias. O ano novo chinês em 1999 foi no dia 17 de abril do calendário gregoriano.

• Maia. Este é um calendário muito interessante, mas pouco conhecido, exceto no âmbito dos estudiosos da civilização maia ou do esoteris-mo. O Tsalkin, o Calendário Sagrado dos Maias, é baseado nos ciclos lunares e tem 360 dias solares, de sorte que o ano maia coincide com o ano solar a cada 18.980 dias ou, aproximadamente, 52 anos.

A civilização maia floresceu no sul do México e norte da América Cen-tral e, de modo mais ou menos abrupto, praticamente desapareceu por volta do início século 9o, em torno do ano 830. Estudiosos dessa civili-

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zação têm muitas razões para acreditar que o Calendário Maia significa mais do que uma simples forma de registro do tempo. É que os maias desenvolveram um sistema numérico e matemático extraordinariamente simples e poderoso, tendo como base apenas três valores: a unidade, re-presentada por um ponto, o número 5, representado por uma barra e o zero. Além disso, usavam um sistema exponencial de base 20, aplicado também ao seu calendário.

O desenvolvimento atingido pelos maias, assim como os astecas, os in-cas, os fenícios, os egípcios dos tempos dos antigos faraós e outras civili-zações, encerra mistérios que a ciência até hoje não soube explicar. Cite-mos um simples exemplo: a soma das diagonais da base da grande pirâ-mide de Gizé mede exatamente 25.826,53 polegadas, o mesmo número de anos do período de precessão dos equinócios. Será mera coincidên-cia?

Entendemos que a ciência, desenvolvida com base no materialismo cien-tífico, não conseguirá explicar fatos tais como esse com o simples uso de métodos pragmáticos e reducionistas com os quais costuma operar, apesar dos extraordinários avanços tecnológicos alcançados.

A breve história dos calendários que sintetizamos acima serve para res-saltar a precariedade dos métodos de medição do tempo, a qual decorre da fragilidade e da superficialidade da nossa concepção de tempo. Em decorrência, as formas de medição são mais convencionais do que cientí-ficas.

As etapas de formação e evolução da espécie humana, do nosso planeta e do Universo são medidas por centenas de milhares ou milhões ou bi-lhões de anos, enquanto o nosso cotidiano é medido em segundos, mi-nutos, horas, dias solares, semanas, meses e anos. Os calendários con-templam dias, semanas, meses, anos, séculos e, no máximo alguns pou-cos milênios, como os calendários chinês e maia.

Há, portanto, uma imensa desproporcionalidade entre o nosso sentido de tempo e os períodos demandados para a formação da natureza terres-tre, inclusive da nossa própria natureza humana.

Será que tudo isso constitui algo importante a ser considerado? É real-mente importante o nosso sentido de espaço-tempo, que caracteriza as dimensões da nossa visão materialista, tridimensional? Entendemos que

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sim e voltaremos ao tema.

2 Capitalismo e outros “ismos” Vamos desfolhar rapidamente o nosso calendário (qualquer que seja ele) e dar um salto na história econômica até o século 15, a época em que surgiu o capitalismo. O surgimento desse modelo econômico, o mais perfeito e acabado de todo o processo da economia não equivalente, se deu em conseqüência da ascensão de uma nova classe social, a burguesia, a qual se consolidou como classe dominante no início do século 19. O sistema capitalista subsiste até hoje, tendo passando por fases de crise e conseqüentes metamorfoses adaptativas, na busca da sua própria sobre-vivência.

A primeira base do modo de produção capitalista surgiu no absolutis-mo, o sistema político que substituiu o feudalismo. Nessa fase foi destru-ída a relativa autonomia dos artesãos e dos camponeses e as pessoas co-meçaram ser submetidas ao jugo do dinheiro. Iniciou-se, então a luta contra essa opressão, para fugir ao controle externo e preservar as condi-ções de sua subsistência. Essa luta durou cerca de 300 anos, estendendo-se até meados do século 19.

O mercantilismo foi o estágio inicial do capitalismo em que havia a predominância da acumulação e comercialização de metais preciosos. A essa etapa seguiu-se a fisiocracia, surgida em meados do século 18, que defendia o princípio da predominância da riqueza decorrente da produ-ção.

O liberalismo surgiu no século 17 como princípio político de oposição aos Estados militares das monarquias e dos principados absolutistas. Na mesma época havia também uma grande oposição popular ao absolutis-mo. Essa oposição, entretanto, nada tinha a ver com o liberalismo econômi-co, de concepção e interesse das elites. Em outras palavras, o liberalismo popular tinha conotações políticas e o liberalismo das elites era de sentido econômico.

Essa dicotomia para o conceito de liberal, existe até hoje e causa diversi-dade de entendimento. A origem da confusão é bem destacada por Ro-bert Kurz. Em Os últimos combates, no capítulo “Gênese do absolutismo de mercado”, ele enfatiza que o sentido econômico do liberalismo dizia

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respeito apenas aos novos capitalistas financeiros, aos grandes mercado-res e especuladores coloniais, aos capatazes (a soldo do Estado) das pri-sões-manufaturas e aos latifundiários. Nada tinha a ver com o conceito de liberdade social dos camponeses e artesãos revoltosos. Quando aque-las elites falavam em ‘liberdade’, tinham em mente apenas a sua própria liberdade econômica, contra a burocracia do Estado absolutista. O libe-ralismo popular, no sentido político e social, que exigia a liberdade do indivíduo, na verdade teve como resultado apenas o liberalismo econô-mico, ou seja, a autonomia do mercado.

Assim, no fundo, absolutismo e liberalismo são faces de uma mesma moeda: ou submissão das pessoas ao controle autoritário do Estado ou à marcha da máquina do mercado.

O pensamento econômico, que fundamenta a ideologia capitalista, tem passado por mutações para ir adaptando as teorias às necessidades práti-cas da exploração capitalista. Essa formulação ideológica se consolidou com as concepções dos economistas ditos clássicos, especialmente A-dam Smith (1723-1790) e David Ricardo (1772-1823). Este, como se recorda, desenvolveu a teoria do valor do trabalho, onde afirmava que o valor de um bem, inclusive o lucro, depende da quantidade de trabalho que é necessária para a sua produção e que a medida do seu valor deve ser proporcional ao tempo de trabalho.(∗)

No início do século 19, quando a burguesia se consolidava como classe dominante, surgiram os neoclássicos, que pregavam a harmonia social, sem exploração entre os fatores de produção, uma formulação pseudo-socialista. Também foi importante uma corrente derivada, à esquerda, do pensamento de David Ricardo, batizada como “neo-ricardiana de es-querda”.

No início no século 20 surgiu o keynesianismo quando J.M.Keynes (1883-1946) passou a pregar a intervenção do Estado na economia por ser o setor privado incapaz de garantir a estabilidade do sistema econô-mico.

(∗) No Caderno 03 Crise do mundo do trabalho e no 05 Uma utopia para a reconstrução é desenvolvida com maior profundidade a discussão sobre o valor do trabalho.

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Após a primeira guerra mundial prevalecia o taylorismo/fordismo, isto é, a idéia da exploração do trabalho desqualificado, mais fácil de ser con-trolado, onde o princípio era ‘produzir o mais rápido possível, sem pensar’. A produção massiva e em série era outro princípio vigente. As empresas entraram na fase dos processos produtivos verticais e integrais, isto é, produzindo na própria empresa todos os insumos de que necessitavam. Inicialmente dentro da própria planta industrial e, depois, expandindo-se geograficamente como empresas de âmbito nacional e multinacional.

A partir dos anos 80, quando novos processos passaram a ser experi-mentados em decorrência dos grandes avanços tecnológicos em vários campos, direta ou indiretamente ligados aos processos fabris, ganhou espaço e liderança o chamado modelo japones, ou o toyotismo. Foi assim denominado por ter sido experimentado com mais ênfase e radicalização na Toyota, do Japão. De lá espalhou-se pelo mundo como um rastilho de pólvora. O toyotismo prima pela descentralização produtiva, em oposi-ção ao fordismo, e pelo uso de vários novos processos de gerenciamento da produção (CCQ, kanban, ‘just-in-time’, qualidade total, etc.).

A respeito da atual versão do modelo capitalista, o neoliberalismo, fala-remos mais à frente.

Imperialismo. Sinteticamente falando, significa a conquista e o domínio territorial e/ou político e/ou econômico exercido por um Estado sobre outro(s). Na longa trajetória da formação dos Estados sempre existiram impérios, em todos os períodos da história, desde a Antigüidade. O im-perialismo, portanto, não é um fenômeno inerente ao capitalismo. Este apenas se apropriou dele como um mecanismo de hegemonia, domina-ção e exploração de um Estado em relação a outro. A partir do século 19 passaram a se destacar três hegemonias imperialistas, sob o ponto de vista territorial e/ou político e/ou econômico.

• Imperialismo europeu, com influência de alguns países da Europa espe-cialmente sobre a África, como solução para problemas decorrentes da revolução industrial, tais como a busca de mercados e de mão-de-obra barata.

• Imperialismo japonês, com influência sobre a Ásia, como solução para os excessos de população e de produção industrial.

• Imperialismo norte-americano, com influência inicial sobre o Caribe e

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Filipinas. Posteriormente, os EUA se tornaram a nação mais imperi-alista do mundo. Após a expansão de conquista do oeste americano e a consolidação do próprio território, os EUA se lançaram à con-quista de outras terras, tais como Cuba, Porto Rico e Panamá.

O imperialismo americano nos dias de hoje é imenso e se manifesta de formas muito variadas. Em diversos pontos deste nosso ensaio isso fica muito evidenciado. No Caderno 04 Tendências e perspectivas globais, por exemplo, é abordado o papel da Tríade (NAFTA, União Européia e Ja-pão + tigres asiáticos), onde são vistos mais alguns detalhes da atual ação imperialista norte-americana.

Marxismo e comunismo. Como contraponto ao capitalismo e em de-corrência do início da excludência econômica e social que já era notória, surgiram no século 19 algumas correntes de pensamento com formula-ções filosóficas e econômicas muito importantes. Esse século foi, assim, marcado por grande efervescência intelectual, destacando-se importantes correntes de pensamento como, por exemplo, o idealismo de Friedrich Hegel (1770-1831), o socialismo utópico de Owen, Furier, Proudhon, o socialismo científico/comunismo de Marx e Engels, o anarquismo de Bakunin etc.

Karl Marx (1818-1883), historiador, filósofo e economista alemão, de-senvolveu uma obra que conjugou magistralmente esses três ramos do pensamento humano e consubstanciou uma teoria que revolucionou as ciências sociais, econômicas e políticas e cujos fundamentos permane-cem em grande parte válidos até hoje.

Os ideais socialistas já existiam antes de Marx. Com base na filosofia hegeliana e nesses ideais, ele partiu para a formulação do seu socialismo científico, mais conhecido como marxismo, mediante a negação dialéti-ca do socialismo romântico.

O produto mais acabado da teoria desenvolvida por Marx e seu amigo e parceiro Friedrich Engels (1820-1895) foi a teoria do comunismo. Esta utopia (visão social de mundo que busca transformá-lo profundamente) propõe uma sociedade igualitária, sem classes, onde os meios de produ-ção devem pertencer a todos.

A primeira fase do modelo de Marx e Engels era o socialismo, sob o princípio: “de cada um, segundo sua capacidade; a cada um, segundo o seu traba-

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lho”. Era admitida a existência de um aparelho estatal, um aparelho jurí-dico, um aparelho administrativo e processos repressivos. A segunda fase, o comunismo, se baseava no princípio: “de cada um, segundo sua capa-cidade; a cada um, segundo suas necessidades”. Nesta etapa, deixaria de existir a luta de classes pela supressão das classes sociais e econômicas e, em con-seqüência, também deixaria de existir o Estado. Tratava-se, portanto, de uma oposição radical aos princípios do capitalismo.

O Manifesto Comunista, elaborado por esses dois pensadores e publica-do em 1848, tem duas frases que podem ser consideradas como lemas do projeto comunista e uma ameaça à dominação da burguesia, vigente na Europa naquela fase da história. Começa, como sabemos, com uma a-meaça: “Um espectro ronda a Europa - o espectro do comunismo” e termina com a palavra de ordem que se tornou lema das lutas dos trabalhadores em todo o mundo: “Proletários de todos os países, uni-nos!”. Esse documento, mesmo em forma um tanto panfletária, possui um conteúdo de uma profundidade extraordinária tal que, com grande validade, atravessou a história por mais de 150 anos, até nossos dias.

O processo revolucionário socialista no rumo do comunismo, entretan-to, não se concretizou, como Marx supunha, nos países de capitalismo mais desenvolvido da Europa, na Inglaterra, por exemplo. Só pôde se afirmar na Rússia czarista, um país atrasado política e economicamente, através da Revolução Russa de 1917, liderada por Lênin.

Da Rússia, a revolução se expandiu pelo leste europeu, onde veio a for-mar a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS).

Durante a Segunda Guerra Mundial, a Iugoslávia sob o comando do marechal Tito, fez a sua revolução socialista mas partiu para um modelo independente, que considerava as realidades do país e tinha como base a autogestão da sociedade. Tratava-se, portanto, de um modelo evidente-mente herético, sob o ponto de vista do socialismo ditatorial estalinista, então vigente na Rússia.

Após a Guerra, a expansão socialista chegou à Ásia: Vietnã do Norte (iniciada em 1945 e consolidada em 1976 com a vitória sobre os EUA, sob a liderança de Ho-Chi-Minh), Coréia do Norte (1948, com Kimil-Sung), China (1949), Laos e Camboja.

Na China o processo revolucionário foi muito complexo. Sucintamente,

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podemos dizer que a República Popular da China, após um longo pro-cesso, foi criada em 01/10/49 sob a liderança de Mao Tsé-Tung, com muitas divergências filosóficas e ideológicas com referência à União So-viética, de Stalin. Após a morte de Mao, o socialismo chinês caminhou bastante para a direita.

Na América, o confronto com o capitalismo chegou a Cuba em 1959 quando as milícias de Fidel Castro, Camilo Cienfuegos, Che Guevara e outros líderes revolucionários, chegaram a Havana e derrubaram o go-verno americanófilo de Fulgêncio Batista. O sistema político cubano, no entanto, inicialmente não seguiu o modelo soviético e a revolução cuba-na se processou à revelia do PC Cubano, que era mais simpatizante de Batista do que de Fidel Castro. Em 1970, os sandinistas expulsaram So-moza da Nicarágua.

Na África, em 1962 a Argélia se tornou independente da França e se transformou em um importante núcleo anticolonialista. No início dos anos 70 foi a vez das colônias portuguesas de Guiné-Bissau, Moçambi-que e Angola se tornarem independentes e socialistas.

A expansão socialista, que chegou a abranger cerca de 1/3 da população do planeta, tinha vários matizes ideológicos e não seguiu integralmente o ideário de Marx. Em alguns países, a ditadura do proletariado chegou a ser implantada como a primeira etapa do regime comunista mas a etapa final não se concretizou.

O que teria acontecido, afinal? A interpretação das causas e das razões do refluxo do processo socializante e a expansão da sua antítese, o pro-cesso capitalista excludente, tem desafiado os analistas de todas as cor-rentes ideológicas, filosóficas, sociológicas e políticas. As interpretações tem sido muito divergentes, até entre os analistas da esquerda.

As dificuldades e as conseqüências, no entanto, que decorreram da im-plantação desse projeto são bem conhecidas, apesar do esforço dos mei-os de divulgação e dos opositores e detratores dos ideais marxistas, que tem tentado distorcer, tendenciosamente, as análises sobre a validade das teses do pensador alemão.

O aprofundamento da discussão a respeito do pensamento de Marx, no entanto, não faz parte do nosso objetivo e nem seria cabível tentar fazê-lo no reduzido âmbito deste estudo. Além disso, essa discussão tem sido

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exaustivamente travada por intelectuais e estudiosos realmente capacita-dos para tal. Como instigação ao debate apenas levantamos a hipótese de que uma das poucas debilidades da teoria final de Marx - um pouco diferente das idéias iniciais do “jovem Marx” - parece ter sido a sua es-sencialidade materialista, não considerando que os processos históricos são conduzidos por pessoas. E seres humanos cometem erros, enganos e equívocos, tanto de ação quanto de percepção. Além disso, é da natu-reza humana o livre arbítrio para ter comportamentos tanto concordan-tes quanto divergentes no que se refere a trajetórias que lhe sejam apon-tadas. Esta é, aliás, uma visão essencialmente democrática e dialética da natureza humana e, vale lembrar, a dialética é um método de análise de-senvolvido por Hegel e que foi retomado e aprofundado por Marx.

Em outras palavras, a sociedade ideal e universalista, com coerentes sis-temas econômicos e políticos, imaginada por Marx, talvez fosse tão ina-tingível naquela época quanto os modelos de sociedades socialistas, que ele criticava, idealizadas pelos chamados socialistas utópicos, utopistas e mutualistas.

Além disso, o sistema socialista que foi implantado na URSS, chamado de socialismo real, foi uma etapa que não se consolidou no rumo do comu-nismo verdadeiro. Seu ocaso, oriundo da própria degenerescência intrín-seca, cujo desfecho ficou simbolizado na queda do muro de Berlim em 1989, desarticulou terrivelmente as esquerdas do mundo todo, do que tem se aproveitado o capitalismo excludente para se afirmar como siste-ma todo poderoso na atualidade.(*)

A social democracia, que se estabeleceu na Alemanha e se expandiu para outros países do norte da Europa, é uma vertente que pode ser con-siderada derivada - e degenerada, segundo seus críticos, entre os quais modestamente nos incluímos - das teorias de Marx e Engels. Esta ver-tente acabou por desfigurar por completo os princípios marxistas, pela negação da luta de classes e pela proposta de uma trajetória de implanta-ção gradual do socialismo, de forma negociada com o capitalismo. Um

(*) Uma das teses centrais, contida e enfatizada em diversos pontos deste livreto, é o questionamento e a negação da preponderância eterna e imbatível do capita-lismo, contrapondo-nos a tudo o que tem sido alardeado pelos ideólogos e adoradores do “deus-mercado”.

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caminho evidentemente equivocado, como é fácil perceber, tanto em termos teóricos quanto práticos, com resultados inconsistentes e fugazes.

Outra vertente, intermediária entre o socialismo e a social democracia, que alguns autores denominam eurosocialismo, foi constituída pelos sistemas implantados no sul da Europa. Tal é o caso da França, (com Mitterand), da Espanha (com Felipe Gonzales), de Portugal (com Mario Soares), da Itália (com Craxi) e da Grécia (com Papandreau). Nesses países, os partidos de linha socialista e comunista tiveram grande desen-volvimento, em que pese algumas variações em termos de clareza ideo-lógica. Mesmo assim, ocorreram ali algumas alternativas progressistas, baseadas em movimentos operários e populares, em contraste com os governos sociais democratas ou reacionários e neoliberais do norte da Europa, da Alemanha Ocidental e dos EUA.

Mesmo com todos os esforços, esses projetos “socializantes” encontra-ram grandes dificuldades e acabaram fracassando, especialmente devido às pressões dos mercados financeiros internacionais e ao desemprego crescente. Em outras palavras, incapazes de romper com a lógica do capital, tropeçaram na agenda capitalista e foram ou estão sendo engoli-dos por ela, no rolo compressor da globalização.

Tornaram-se quase inevitáveis, e efetivamente chegaram a ocorrer, algu-mas mudanças dramáticas de curso e concessões à ortodoxia neoliberal que conduziram ao domínio da direita e até ao ressurgimento de teses radicais, como o neonazismo e o neofascismo. Estas tendências feliz-mente entraram em processo de retroação e de repúdio popular, como o denotam, por exemplo, a curta trajetória de Berlusconi na Itália e os re-sultados das eleições de 1997 na França, com a vitória de Jospin e na Inglaterra, com a vitória de Blair.

3 Neoliberalismo e globalização

É indispensável darmos algum destaque ao último (este qualificativo pode ser tomado tanto no sentido de “atual” como de “derradeiro”) modelo capitalista.

No final dos anos 70 entrou em cena o neoliberalismo, isto é, a atual versão da ideologia capitalista que justifica e defende os princípios do capitalismo baseados na propriedade privada e na total liberdade das

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empresas, o que significa nenhuma intervenção do Estado na economia. Seu objetivo fundamental é o lucro individual e suas palavras de ordem são: Estado mínimo, modernidade, economia de mercado, redução de emissão de moeda, globalização da economia (= fim de barreiras alfan-degárias + redução de impostos de importação + fim de subsídios), ele-vação da taxa de juros, redução de impostos sobre altos rendimentos, redução de salários, massificação do desemprego, aniquilamento dos movimentos sindicais especialmente das greves e cortes nos gastos soci-ais. Esse é o receituário geral, adaptável caso a caso.

O neoliberalismo, como se vê, retoma e readapta - radicalizando e ampliando - os fundamentos do liberalismo no seu sentido econômico que, como vimos, era uma prática econômica das elites (não propriamen-te uma corrente de pensamento), cujo princípio maior se consubstancia-va no jargão “laisser faire, laisser passer”.

Há autores para os quais o termo neoliberalismo não é adequado para significar o estágio histórico atual do capitalismo. Alguns entendem, até jocosamente, que o nome mais correto seria “paleoliberalismo” (liberalismo pré-histórico) e outros o classificam como “imperialismo senil”, aprovei-tando o conceito de Lênin (“imperialismo, etapa superior do capitalis-mo”). Na nossa visão, no entanto, o capitalismo hoje está degenerescen-te e, nesse sentido, não se encontra em uma “etapa superior” mas sim em uma fase que poderá se constituir na sua última e derradeira etapa.

As primeiras idéias do neoliberalismo surgiram depois da II Guerra Mundial, consubstanciadas principalmente no texto O Caminho da Servidão, do austríaco Friedrich von Hayek. Trata-se de um ataque rai-voso ao Partido Trabalhista inglês, às vésperas da eleição de 1945, a qual foi efetivamente vencida por aquele partido. A mensagem de Hayek era realmente drástica: “Apesar das suas boas intenções, a social democracia moderada inglesa conduz ao mesmo desastre que o nazismo alemão - uma servidão moderna”.

Embora derrotado, porque as bases do Welfare State (Estado do bem-estar) estavam sendo construídas com sucesso na Europa do pós-guerra, mesmo assim Hayek não se deu por vencido. Em 1947 convocou os principais representantes de sua linha de pensamento, entre eles Milton Friedman, para uma reunião que se realizou em Mont Pèlerin, na Suiça. Ali foi fundada a Sociedade de Mont Pèlerin que, no dizer de Perry An-derson era “uma espécie de maçonaria neoliberal, altamente dedicada e organiza-

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da”. Realizava reuniões internacionais a cada dois anos e tinha como objetivo “combater o keynesianismo e o solidarismo reinantes e preparar as bases de um outro tipo de capitalismo, duro e livre de regras para o futuro”.iii

Entretanto, como os princípios keynesianos, então vigentes no capitalis-mo, ainda estavam indo muito bem, não havia condições favoráveis à assimilação e implantação das novas idéias liberais (ou neoliberais) e nem credibilidade para as advertências de Hayek e de seus parceiros de Mont Pèlerin.

O neoliberalismo só ganhou espaço quando o crescimento econômico registrado a partir da II Guerra Mundial entrou em crise, nos anos 70. Os marcos mais significativos desse momento de crise foram: a) a desin-tegração do sistema monetário em 1971 quando, por decisão unilateral dos EUA (governo Nixon), foi abolida a vinculação do dólar às reservas em ouro e b) a crise do petróleo, em 1973.

Façamos um parêntesis para destacar que em 1981, numa entrevista em Santiago do Chile, Hayek radicalizava bem mais:

“Uma sociedade livre requer certos valores que, em última instância, se reduzem à manutenção de vidas: não à manutenção de todas as vidas porque poderia ser ne-cessário sacrificar vidas individuais para preservar um número maior de outras vi-das. Portanto, as únicas regras morais são as que levam ao cálculo de vidas: a propriedade e o contrato”. iv

Pode parecer que Hayek estava delirando. No Brasil e em outros países, porém, esses princípios já foram bastante aperfeiçoados: para preservar algumas vidas (as das elites) sacrificam-se milhões de outras, as dos “so-brantes”.

Outro “papa” das teses neoliberais, talvez mais importante e respeitado que o próprio Hayek é Milton Friedman, um dos ilustres participantes de Mont Pèlerin e membro destacado da chamada corrente de Chicago, uma corrente de pensamento econômico que sempre serviu de bíblia para os modelos do FMI, BIRD, BID e para os deslumbrados teólogos neoliberais. Friedman afirmava que, para reduzir o desemprego, é preciso baixar os salários, mesmo que se tenha de zerá-los, situação em que se obterá o pleno emprego. Antigamente, a isso se dava o nome de escravi-dão!

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Fundamentos ideológicos. Heinz Dieterich(*) explicita com notável clareza os fundamentos da lógica neoliberal, cuja análise tomamos como base para fazermos a breve síntese a seguir.

Dieterich destaca que as duas principais fontes de incompatibilidade entre a sociedade global neoliberal e uma desejada ordem social justa e democrática são:

I. O princípio material universal de alimentar-se e ter um teto é incompatí-vel com a lógica capitalista da produção do lucro e do valor.

II. A antropologia política que rege o pensamento e as práticas dos exe-cutores do sistema capitalista.

A primeira fonte de incompatibilidade dispensa comentários dada a sua nitidez. E também a sua brutalidade.

No que se refere à segunda fonte, o destaque é para as quatro lógicas do pensamento neoliberal, na sua t~ao desesperada quanto impossível bus-ca de legitimidade. São derivadas das mais reacionárias correntes de pen-samento existentes na história do pensamento humano: o utilitarismo, o malthusianismo, o social-darwinismo e o totalitarismo metafísico. A primeira lógica do neoliberalismo é o direito de sobrevivência pela conquista do mercado na força bruta. Tem origem nos princípios do“homem lobo do homem” e da “guerra de todos contra todos”, conforme o pensamento do filósofo inglês Thomas Hobbes (1588-1679), agregada do utilitarismo de Jeremy Bentham (1748-1832), jurista, economista e filósofo inglês. Podemos acrescentar qui o nosso brasileiríssimo princípio utilitarista: “tirar vantagens em tudo, de preferência com o uso do jeitinho brasileiro”.

A segunda lógica está fundada no princípio do direito de sobrevivência pela obtenção de tudo o que se possa conquistar no mercado. Esta lógica de guerra se apóia nas idéias do padre Robert Malthus (1766-1834) (*) Doutor em Ciências Sociais e Econômicas na ex-República Federal da Ale-manha, radicado há mais de 20 anos no México, onde é professor na Universi-dade Autônoma Metropolitana. Autor de várias obras, inclusive o Fim do ca-pitalismo global - o novo projeto histórico, cujo ensaio “Teoria e práxis do Novo Projeto Histórico” têm sido de grande utilidade para o debate que estamos travando.

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o qual, entre outras barbaridades, pregava que a sociedade devia se liber-tar da tirania, da dependência, da indolência e da infelicidade, que condu-zem à beneficência pública. Também, no seu “Plano proposto para a supres-são gradual das leis de beneficência”, afirmava que era ilegítimo o casamento dos pobres e que, mais grave ainda, seria a geração de filhos. Estes seri-am considerados também ilegítimos e um peso morto para a Igreja e para o Estado. Literalmente, afirmava: “às crianças ilegítimas não deveria permitir-lhes nenhum direito paroquial (...). A criança é, relativamente, de escasso valor para a sociedade, já que outras ocuparão em seguida o seu lugar”.

A terceira lógica é a seleção evolutiva da sociedade, baseada no cha-mado social-darwinismo, assim denominado porque adapta as idéias do naturalista inglês Charles Darwin (1809-1882) à ideologia do neolibera-lismo. Em síntese, afirma que a concorrência deve ser a mais feroz e brutal possível porque ela produz a seleção natural dos mais capazes. Nessa linha de raciocínio, a intervenção do Estado só atrapalha. Essas idéias de William Sumner, divulgadas no século 19, foram retomadas por Hayeck após a II Guerra Mundial que afirmava, por exemplo, “sem desi-gualdade (...) a humanidade não teria podido alcançar nunca sua grandeza nem pode-ria mantê-la hoje”.

A quarta fonte ideológica é a absolutização e a mitificação do merca-do, transubstanciada do malthusianismo e de seus discípulos atuais. É a base de uma nova e reacionária metafísica que institui o mercado com atributos de divindade. Sustenta a supressão de qualquer idéia que reflita uma inserção democrática do cidadão. E que todas as marcas da sobera-nia popular devem ser erradicadas.

Dieterich conclui, sem maiores dificuldades, que “o sistema capitalista mun-dial é essencialmente ilegítimo e, portanto, instável”. E afirma que essa instabili-dade não pode ser superada por movimentos internos e intrínsecos pró-prios. Sua substituição deve ser feita por um sistema que advenha de um projeto histórico diferente. Disso trataremos no Caderno 05, Uma utopia para a reconstrução. Realidades e mitos da globalização. Diz-se, não sabemos se por piada ou de verdade, que Alexandre Magno chorou ao olhar o mapa de seu vasto império porque não via mais terras, então conhecidas, para con-quistar!

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Os grandes conquistadores (Alexandre, Julio César, Genghis-Khan e outros) bem como os grandes navegadores (Vasco da Gama, Fernão de Magalhães, Pinzón, Colombo, Cabral) foram também grandes globaliza-dores, não apenas no sentido territorial mas também no sentido político, econômico e cultural, visando a ocupação, a dominação, a submissão e a exploração de povos e áreas conquistadas ou “descobertas”.

Podemos, então, admitir que a globalização é contemporânea da forma-ção dos impérios, construídos na base de conquistas de outros povos pela força das armas ou de simples tomada e ocupação de áreas até então habitadas por povos nativos. A globalização, portanto, tem origem na ânsia de expansão de poder territorial e de dominação política e econô-mica. Isso significa dizer que o seu conceito, ao longo de toda a sua traje-tória histórica, sempre teve estreita relação com os conceitos de imperia-lismo, colonialismo, dominação, exploração, espoliação, acumulação capitalista e outros do mesmo teor.

No entanto, os princípios da globalização que, ideologicamente, os neo-liberais tentam nos impingir têm o sentido de algo moderno, formidável, ótimo para todo o mundo e, além disso, irreversível. Que não cabe, por conseguinte, tentarmos nos opor ou resistir à sua ação avassaladora. O(A) leitor(a) desculpe a imagem grosseira, mas é como se eles estives-sem nos dizendo: “Não se preocupe, a irreversibilidade da globalização não tem o significado de uma curra inevitável. Mesmo assim e por via das dúvidas, não resista!”

O processo tem sido denominado também com outros nomes, além de globalização, tais como mundialização e transnacionalização. A discussão quanto ao termo mais adequado para expressar essa “coisa” parece ser meramente semântica, quase sem sentido, mas de fato não é.

A literatura anglo-americana prefere globalização e a literatura francesa prefere mundialização. A atual globalização econômica, como instrumen-to do neoliberalismo e com abrangência planetária, é terrivelmente ex-cludente. E a idéia de que possa existir uma globalização com exclusão é uma absurda incoerência porque, se é global não pode ser excludente. Por isso, a expressão mundialização parece ser mais adequada. Porém, apenas por comodidade ou para seguir o modismo vigente, fiquemos com globalização a despeito do seu forte sentido sublimar de indução i-deológica.

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Já o termo transnacionalização diz respeito ao conceito de empresas que operam desvinculadas de suas origens nacionais. Estas, no entanto, caso existam, são em reduzidíssimo número. A Nestlé, por exemplo, uma das empresas mais internacionalizadas do mundo, com apenas 5% dos seus ativos localizados na Suíça, limita o direito de voto de estrangeiros a ape-nas 3% do total.

Hoje, de um modo mais forte do que antes, a globalização tem uma a-cepção multidimensional (econômica, financeira, cultural, política). Fun-damentalmente, significa a aceleração do processo de mercado, viabiliza-do pelos avanços obtidos nas tecnologias de transporte, informática e comunicação ao longo do século 20. E apresenta como principal caracte-rística a generalização, em âmbito planetário, da produção e do comér-cio, tendo o processo assumido dimensões mais amplas com a desregu-lamentação financeira, muito mais acelerada nos últimos vinte anos desse século.

As dimensões econômicas, financeiras, políticas e sociais da globalização são profunda e substancialmente conhecidas e analisadas nos dias de hoje. Há, porém, aspectos igualmente da maior relevância não muito bem percebidos e, menos ainda, destacados. Um desses aspectos é o incremento das irrealidades virtuais e o conseqüente obscurecimento das realidades concretas, ambos implementados, especialmente, pelo uso da mídia. Essas cortinas de ocultação ou de mutação de cor das realidades estão atuando em todos os campos, especialmente no político e no eco-nômico. Trata-se de um fantástico processo ideológico de mitificação e mistificação o qual nunca foi visto anteriormente em tais dimensões.

Citemos, por oportuno e para exemplificar, um trecho do artigo de João Sayad, “Da Rússia com amor”, publicado no jornal Folha de São Paulo do dia 24/08/98, pag. 2-2:

“Estamos vivendo num mundo onde o que importa são apenas símbolos e ima-gens. (...) Entretanto, nesses tempos de globalização financeira, os espelhos se tor-nam mais importantes do que o que refletem. Os investidores reagem como as tri-bos primitivas, que trocavam chifres de elefantes, especiarias e metais preciosos por espelhinhos e outras bugigangas trazidas pelos ‘colonizadores’. A característica mais importante da globalização financeira não é a movimentação de poupanças entre diferentes países, como imaginam os seus apologetas. A globalização financei-ra consegue apenas transformar o mundo em imagens sem conteúdo”.

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Uma dessas imagens sem conteúdo é o alarde que a imprensa faz dos movimentos de sobe-desce das bolsas de valores, onde a notícia passa a ter mais importância do que o fato.(∗)

Os neoliberais defendem que, como causa (ou efeito, tanto faz) da globa-lização, deve haver a redução da ação regulatória dos governos, tanto no que se refere à movimentação do capital quanto das mercadorias. A globalização é usada como se fosse um processo irresistível e a conse-qüência dessa utilização ideológica é que ela pretende paralisar o pensa-mento crítico e induzir a aceitação de uma integração subordinada.

É preciso desmontar algumas falácias e falsos mitos, isto é, afirmações absolutamente não verdadeiras quanto ao processo da globalização. En-tre tantos outros exemplos, citamos:

I. A elevação da produtividade das empresas, com a conseqüente redução de custos dos seus produtos, faz com que se tornem acessíveis a um número maior de pessoas. Como isso pode acontecer se esse “numero maior de pessoas” está excluído do mercado porque não tem renda?

II. É natural e normal o declínio do poder dos Estados nacionais, dominados pelo capital que vive girando no mundo. Isso é um subterfúgio para justificar as políticas subalternas dos governos servis aos interesses desse capital especulativo. Trata-se de uma clara renúncia à soberania, o que não ocorre com os Estados dos países centrais e também com alguns poucos países periféricos cujos governos não são totalmente servis aos interesses internacionais.

III. A disputa entre grandes empresas pelo mercado mundial não está apoiada pelo poderio dos seus respectivos Estados nacionais. É uma inverdade porque as grandes multinacionais, que sempre têm raízes em algum país, se utili-zam do poder político desses Estados para fazer valer os seus interes-ses, na conquista ou ampliação de mercados. O Brasil, ao contrário, está entregando as suas três multinacionais: a Vale do Rio Doce já foi passada para o capital privado nacional e internacional e o Banco do Brasil e a Petrobrás estão a caminho.

IV. A globalização econômica significa que o mundo é um todo uniforme. A dis- (∗) A questão das bolsas de valores, de mercadorias e de futuros é abordada no Caderno 04 Tendências e perspectivas, ao tratarmos dos mercados derivativos.

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cussão feita anteriormente a respeito do termo mais adequado ao mo-delo atual ressalta a incoerência entre o conceito e o significado atri-buído ao termo.

Caracterizando o princípio do “faz o que eu digo, mas não faz o que eu faço”, os países mais desenvolvidos adotam políticas protecionistas. Por exemplo:

a) No Japão e na Itália, que foram os 2 países capitalistas centrais que mais cresceram anos 80, o Estado intervém poderosamente na eco-nomia.

b) No Japão, governo detém 60% das ações da Nippon Telephone & Telegraph e os estrangeiros são proibidos de ocupar cargos executi-vos nessa empresa.

c) O Japão proíbe as importações de arroz e os europeus impõem res-trições ao açúcar de cana mesmo que este tenha um custo menor do que o açúcar de beterraba.

d) Na década de 80 os EUA apoiaram e estimularam empresas de tec-nologia de ponta, como IBM e ITT, para competir no mercado in-ternacional de informática e telecomunicações, para enfrentar o po-derio econômico do Japão.

e) O Código de Comunicações americano estabelece, desde 1934, que nenhuma licença de estação de radiodifusão, de comunicação aero-náutica, fixa ou móvel, de telecomunicações será controlada por es-trangeiro ou descendente de estrangeiro ou qualquer corporação or-ganizada sob a lei de qualquer governo estrangeiro ou qualquer cor-poração cujo gerente ou diretor seja um estrangeiro.

f) Os EUA impuseram leis de patentes não só para o Brasil mas para a América Latina, agindo em função dos interesses de grandes indús-trias farmacêuticas americanas.

g) A fusão da Boing com a McDowells fez com que hoje praticamente exista apenas uma grande empresa de construção de aviões no mun-do. A Europa tentou reagir em apoio à Airbus mas teve de se curvar às pressões americanas.

h) No Brasil, tivemos a questão do projeto SIVAM com a prevalência da

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americana Ratheon sobre a francesa Thompson através da ação direta do presidente americano sobre o nosso subserviente governo.

Ao contrário das mercadorias, que tem cada vez mais liberdade, o ser humano é cada vez mais restringido. Não existe um mercado de trabalho globalizado e as condições de trabalho variam de acordo com as leis de cada país.

O que existe de novo é a financeirização da riqueza, o capital optando pela forma de moeda na busca do lucro máximo, a especulação desenfre-ada, os países disputando esse capital com oferta de juros cada vez maio-res. Novidade também é a exclusão social, o desemprego, a edificação de fronteiras mais rigorosas entre os países e o medo da migração oriun-da dos países periféricos em direção aos países desenvolvidos. Este é um movimento exatamente no sentido inverso ao da emigração para países em desenvolvimento, fenômeno que foi muito significativo em décadas anteriores.

No Brasil, entretanto, a abertura é total e irrestrita. Só de 1993 a 1997 mais de 300 empresas brasileiras foram compradas por estrangeiros. Há um assédio crescente dos bancos internacionais sobre os bancos nacio-nais, especialmente aqueles que estão em dificuldades e/ou possuam muitas agências no país. É fantástica e assustadora a apropriação (ou seria expropriação?) das nossas estatais, especialmente as dos setores estratégicos como siderurgia, ferrovia, energia e telecomunicações.v

As perspectivas econômicas para o país, embutidas nesse processo de desnacionalização feroz e irresponsável são tão reais quanto caóticas e cruéis para o povo brasileiro. Só não querem perceber - e se percebem não confessam - os “vendilhões da pátria”, acoitados no governo federal e também na maioria dos governos estaduais e municipais.

Quem responderá pelas conseqüências e o que se deve fazer com esses irresponsáveis, são questões que a sociedade brasileira terá que enfrentar e dirimir algum dia.

4 Exemplos da ação neoliberalizante

Para pontuar a ação neoliberalizante e mostrar que ela realmente se glo-balizou, alinhamos uma breve recorrência histórica a respeito de alguns

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países situados em diversas regiões do mundo.(*)

O olho o furacão. Os EUA, como a economia referencial do sistema capitalista moderno, têm se constituído naquilo que podemos chamar de o olho do furacão. Em 1980, com Ronald Reagan, os EUA se lançaram numa corrida ar-mamentista sem precedentes, com gastos militares que ampliaram enor-memente o déficit público, o qual passou a crescer em cerca de US$ 100 bilhões ao ano e que chegou se acumular em US$ 4 ou 5 trilhões.

Uma dívida fantástica como essa é impagável. Uma solução fácil porém perigosa é a emissão de moeda (dólar). Isso pode produzir acréscimos inflacionários incomuns para a sociedade americana e, além disso, o re-sultado do jogo seria do tipo 0x0, porque o equilíbrio da conta da dívida se diluiria no desequilíbrio do balanço das contas primárias.

A solução, então, é o velho chavão de sempre, ou seja, aumentar as ex-portações de tudo que for possível: produtos, a própria dívida, dólares, idéias, políticas, lavagens cerebrais, tudo o que um dominador faz com seus fiéis dominados. E, claro, lucrar sempre, lucrar muito em todos os negócios realizados. Apenas transitoriamente e em raras oportunidades, a dívida americana é financiada pela oferta de juros atrativos. Após a fase Reagan, entre 1988 e 1992, esses juros foram reduzidos, o que permitiu a revoada de uma parte da nuvem de capitais internacionais para países em desenvolvimento o que fez a glória dos arautos neoliberalizantes do Mé-xico, da Argentina, do Brasil e de outros emergentes. Ao primeiro cha-mado da “voz do dono”, entretanto, refluem sugados pelo olho do fura-cão e varrem as economias de países que tenham ido no canto da sereia neoliberal. O México, em dezembro/94, é um exemplo muito expressivo disso.

Na crise iniciada em 97 e que teve como epicentro o sudeste da Ásia, caso os EUA viessem a aumentar suas taxas de juros, teria havido - hipó-tese sempre presente como espada de Dámocles sobre nossas cabeças - (*) Quanto ao Brasil, além das correlações inevitáveis feitas neste Caderno, uma análise mais ampla é desenvolvida especificamente no Caderno 03, Brasil, da de-pendência à subserviência.

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uma varredura geral nos capitais especulativos em direção ao mercado financeiro americano e, literalmente, estariam falidos todos os países com economias frágeis. O Brasil estaria incluído nesse rol.

Esta é uma hipótese e uma afirmação tão terríveis que nem os economis-tas ditos de esquerda tinham coragem de formulá-las. Não se trata, entre-tanto, de qualquer catastrofismo, como gostam os arautos neoliberais de caracterizar as advertências quanto à suas políticas econômicas. Trata-se de uma perspectiva concreta e realista, contra a qual, entretanto, estamos todos torcendo. Mas é concreto também que “torcida sozinha não ganha jogo”. De qualquer forma, serve como mensuração da fragilidade e da instabilidade da situação do tal mundo globalizado em que vivemos.

Água no berço do neoliberalismo. O Estado do bem-estar havia in-troduzido na Inglaterra alguma perda de eficiência e prejuízos em setores básicos como educação e saúde. Por isso, em 1978 havia um certo desa-grado da sociedade com a situação, tanto que até os trabalhadores vota-ram majoritariamente no Partido Conservador. Este, em 1979, assumiu o poder com Margareth Tatcher e continuou com John Major.

O governo Tatcher foi o primeiro governo de um país central a estar publicamente empenhado na implantação de um projeto neoliberal. O modelo inglês foi, ao mesmo tempo, o pioneiro entre os países ricos e o mais puro, sob o ponto de vista dos princípios neoliberais. Procedeu a redução de emissão de moeda, elevação da taxa de juros, redução de impostos sobre os altos rendimentos, abolição de controles sobre os fluxos financeiros, massificação do desemprego, aniquilamento de gre-ves, cortes de gastos sociais.

Quanto às privatizações, o programa foi surpreendentemente bastante retardado, talvez pela demora na definição da regras do jogo, dado que foi instituída uma profunda e extensa regulamentação. Foi, porém, o mais ambicioso dentre os projetos neoliberais dos países de capitalismo avançado.

Tal como em alguns outros países, na Inglaterra as privatizações foram feitas por blocos de empresas, com obrigatoriedade de compra de mais de uma e menos do que todas.

Ainda que o modelo conservador afrontasse o sindicalismo e o debate passasse a ter caráter ideológico e anti-sindical, não se pode dizer que a

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privatização na Inglaterra tenha sido totalmente impopular. Algumas empresas, como a British Airways, por exemplo, além de não pertence-rem a setores estratégicos até melhoraram seu desempenho após a priva-tização.

Embora a regulação dos serviços públicos pudesse ter sido mais dura do que foi, mesmo assim foi devido a ela que os preços reais para a popula-ção ficaram menores em alguns casos. Assim, sob o ponto de vista eco-nômico a privatização poderia ser julgada como exitosa. No entanto, politicamente a privatização começou a se tornar um desastre, devido aos desvios produzidos pela ganância do capital nacional e internacional e por algumas indecisões do governo. O grande público britânico passou a desacreditar nos programas neoliberais, porque a miséria cresceu signi-ficativamente e as tarifas públicas aumentaram, especialmente as de e-nergia elétrica, até com desabastecimento em áreas atendidas por empre-sas privatizadas. Não sendo interessantes do ponto de vista econômico, as populações respectivas que se danem. Em outras palavras, também ali, no berço do projeto neoliberal dos paí-ses desenvolvidos, os programas começaram a “fazer água”, tendo como resultado a eleição de Tony Blair.

A vitória de Blair, apesar de não significar exatamente uma vitória da esquerda, foi indubitavelmente um forte indicativo da necessidade de um desvio na trajetória da política neoliberal tatcheriana no sentido de um projeto mais populista de centro-esquerda. No entanto, ocorreu apenas uma manobra capitalista batizada de “terceira via”.

O ocaso do euro-socialismo. Quanto aos países do Sul da Europa, onde se desenvolveu o chamado eurosocialismo (França, Espanha, Por-tugal, Itália e Grécia), já vimos uma síntese anteriormente.

É interessante ressaltar, porém, que governos de extrema direita como Berlusconi, na Itália, caem tão rápido quanto ascendem. Asnar, na Es-panha, passou a enfrentar muitas dificuldades para governar e Chirac, na França, perdeu o poder para a esquerda com Jospin, numa clara demons-tração de repúdio popular à tentativa da direita para sedimentar o seu domínio sobre o politizado e esclarecido povo francês.

O dominó do Leste Europeu. As informações que chegam a nós, ocidentais, a respeito do que se passa nas economias dos países ex-

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socialistas do Leste da Europa, com exceção da Rússia, são raras e dis-persas. Mesmo assim, talvez sejam suficientes para perceber que os ven-tos neoliberalizantes fizeram uma varredura completa e feroz na região, logo ao início dos anos 90, isto é, após a chamada queda do muro de Berlim.vi

Na Polônia, segundo a revista “Tendências e Políticas de Privatização”, volume I, n.2, editada pela OCDE em 1994, estava sendo usada uma espécie de liquidação para privatizar pequenas e médias empresas, ainda que a privatização fosse considerada como indispensável. Os executivos e empregados das empresas do Estado faziam pressão para obter maio-res privilégios, um processo de oportunismo explicito, muito conhecido por aqui, nas bandas ocidentais.

Na Hungria o grande número de vendas de empresas ao capital estran-geiro tinha sido um obstáculo à participação dos pequenos investidores nacionais, tendo sido já privatizadas, até 94, cerca de 15% das empresas públicas.

Na República Checa a grande privatização, representada por um gran-de número de empresas envolvidas, foi muito rápida: cerca de 60% já estavam privatizadas ou na última fase de privatização em 1994. Na Re-pública Eslovaca foram privatizadas rapidamente mais de 40% das grandes empresas, na Lituânia mais de 20% e na Albânia cerca de 15%.

Como se vê, mesmo os dados sendo um pouco antigos, o neoliberalismo foi arrasador também nessa região, tendo encontrado campo fértil para a sua ação predatória.

A Rússia, como não poderia deixar de ser, é um caso especial. Após a segunda guerra, quando de fato se bipolarizou o embate com os EUA, a Rússia lançou-se a uma feroz militarização e desenvolveu um processo de industrialização desequilibrado, com uma enorme prevalência para dois setores industriais, o bélico e o aeroespacial.

Quando o socialismo real ruiu com o muro de Berlim e a guerra fria pas-sou à fase do congelamento completo, restou um sistema industrial tec-nologicamente sucateado e superado.

A criação da CEI (Comunidade dos Estados Independentes) foi uma desesperada, frustrada e fugaz tentativa de manter uma fictícia unidade de treze culturas regionais e religiosas cuja homogeneidade era impossí-

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vel de ser obtida. Assim, o segundo mundo desapareceu, vindo a se jun-tar ao terceiro, em quase nada diferenciado deste, exceto quanto ao po-derio atômico.

Ainda que o seu material bélico tenha se enferrujado e deteriorado ao relento, é preciso não esquecer que a Rússia ainda é a segunda potência atômica do planeta. Agregue-se a isso o fato de que existem poderosas influências mafiosas nos sistemas de poder e de governo na Rússia e teremos razões adicionais para nossas insônias, dada a possibilidade de que armas atômicas possam parar em mãos de grupos terroristas ou faná-ticos religiosos.

Sob o ponto de vista econômico, a Rússia está pagando um preço muito alto pela sua tumultuada inserção no neoliberalismo ocidental, através do “tratamento de choque” que adotou por imposição do G-7 e do FMI. Por algum tempo, assistimos à triste ironia do ex-poderoso urso euro-asiático debatendo-se para sobreviver com o auxílio político e econômi-co do capitalismo ocidental, o qual tanto combateu e tentou derrubar.

Na década de 90, sob o impacto da adoção da receita neoliberal do FMI, a Rússia entrou em grave depressão. Vários indicadores econômicos passaram a mostrar o processo de queda livre da sua economia. O PIB caiu continuamente de 91 a 96, cresceu um pouco em 97 e caiu nova-mente em 98; a inflação cresceu de forma preocupante; o déficit comer-cial, idem; a taxa de juros para o mercado financeiro internacional che-gou a ser a maior do mundo, dentre os países importantes. Como coro-amento de todas essas desgraças, a Rússia protagonizou a crise financeira mundial de 1998, ao declarar moratória quanto às suas dívidas. Abando-nou o regime de bandas cambiais e recusou a proposta de se submeter ao conselho da moeda (“currency boad”), o modelo colonial e colonizador vigente na Argentina.

Por conta dessa atitude de soberania, que assustou o mundo ocidental, parece que as coisas começaram mudar por lá. Dizemos parece, porque a Rússia sumiu do noticiário, muito convenientemente para os interesses políticos e financeiros dominantes no mundo. Por exemplo, a notícia de que os credores haviam aceitado as condições impostas pelas autoridades econômicas russas apareceu apenas em cantos de página dos nossos jor-nais na época.

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Hoje, entretanto, começamos a saber que as coisas começam a dar certo e até trocaram o Yeltsin pelo Vladimir Putin. Quase todos os indicativos econômicos indicam melhoras sensíveis e o próprio FMI reconhece que “o desempenho macroeconômico da Rússia em 1999 foi, em várias di-mensões, substancialmente melhor que o projetado”. Arre! ‘Mea culpa, mea máxima culpa’! Quando o FMI terá a mesma atitude em relação ao Brasil?(*)

Sul e Sudeste da Ásia, um interessante estudo de caso. Os proces-sos neoliberais na região sul-oriental asiática são muito variados e com-plexos, a começar pelo próprio Japão, um caso a parte, até em razão da sua própria dimensão econômica e importância no mundo moderno globalizado. Vamos, porem, deixar o Japão de lado nesta nossa brevíssi-ma resenha.

A Malásia, um pequeno país do sul da Ásia (329 mil Km2 e 21 milhões de habitantes), considerado um dos emergentes tigres asiáticos é um e-xemplo que deve ser destacado.

De 1992 a 1997 o seu PIB cresceu de US$ 60 bilhões para US$ 100 bi-lhões, um crescimento extraordinário. Em meados de 98 tinha reservas cambiais de cerca de US$ 20 bilhões, inflação de 6% a.a., saldo da balan-ça comercial de US$ 6,4 bilhões e pagava juros de 10% a.a.

A sua moeda, o ringgit, foi desvalorizada em mais de 30% em um ano (de meados de 1997 até meados de 1998), contrariando as receitas do FMI, o que rendeu destacada celebridade ao primeiro ministro Mahathir bin Mohamad, um médico de 72 anos, no cargo desde 1981. No início de setembro/98 ele demitiu o seu ministro das finanças e tomou medidas drásticas para a contenção das ameaças de crise que se anunciavam para o país. As principais medidas foram: a) centralização do câmbio no seu Banco Central; b) controle das saídas de divisas; c) restrição às saídas de dinheiro da Bolsa e para compras de turistas no exterior (limitadas em

(*)Aconselha-se, entre outras leituras, a do artigo de Robertz Kurtz “A expansão do caos” (Folha de S.Paulo – 06/09/98) e de vários artigos de Paulo Nogueira Batista Junior, que tem acompanhado com elogiável dedicação intelectual a crise russa: “Caipirosca” (Folha de S.Paulo – 20/08/98); “Coquetel Molotov” (Folha de S.Paulo – 28/08/98) e “Esqueceram a Rússia” (Folha de S.Paulo - 18/05/2000).

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1000 ringgits = 260 dólares); d) aplicações dos cidadãos malaios no exte-rior (cerca de US$ 1,7 bi) estariam proibidas de voltar após outubro/98.vii

A Tailândia, tal como o México e outros países neoliberalizados, cum-priu com grande zelo as lições de casa impostas pelo FMI. Com sua moeda (baht) colada ao dólar, tornou-se desde 1985 uma das lâmpadas mais atrativas para as mariposas do capital internacional, especialmente o Japão. Cresceu em média 8% ao ano e suas exportações aumentaram substancialmente.

Em 95, entretanto, começaram as dificuldades decorrentes de uma polí-tica monetarista ultrapassada. Em julho/97, desvalorizou a sua moeda dando início à chamada crise asiática, epicentro da turbulência global que se desencadeou como onda de ressaca pelo mundo todo, em especial sobre as economias emergentes e endividadas, tais como o Brasil.

A Coréia do Sul, oitava economia do planeta mas com alto nível de endividamento de curto prazo, foi socorrida significativamente pelo FMI, mas em novembro/97 desvalorizou o Won e, com isso, adicionou lenha na fogueira que havia sido iniciada com o ataque especulativo so-bre Hong Kong no mês anterior e desencadeou uma feroz crise finan-ceira que atingiu em cheio o Brasil, como estamos bem lembrados.

A Indonésia nos últimos 30 anos teve o apoio implícito e explicito dos EUA para a sustentação de uma ditadura feroz e cruel. Em novem-bro/97 ainda recebia ajuda externa mas no início de 98 se agudizou a convulsão social que redundou na renúncia do presidente Suharto, sem conseguir resolver satisfatoriamente a sua crise social e econômica.

A Índia é um dos países emergentes importantes e respeitados pelo do-minadores do mercado, tendo em vista os seus quase 1 bilhão de habi-tantes - leia-se: possíveis consumidores potenciais -, cifra nada desprezí-vel para a ganância do capital mundializado.

A Índia começou há pouco tempo a adaptação da sua economia ao para-digma neoliberal, mas tem saído mais ou menos incólume dos agitos dos mercados financeiros, através de medidas eficazes e soberanas, coisa incomum nos países periféricos.

Na China, segundo reportagem do “New York Times” de maio/94, uma siderúrgica privada, a Wuhan Iron and Steel Company tinha despe-dido 70 mil dos seus 120 mil trabalhadores, em grande parte com prê-

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mios de incentivo à demissão. Economistas oficiais estimavam que 11 mil indústrias do Estado não eram viáveis e que pelo menos 2/3 sobre-viviam graças a empréstimos bancários. Os dirigentes chineses, entretan-to, temiam que uma privatização maciça pudesse trazer uma explosão social revolucionária.

De lá para cá, a China aderiu à massificação consumista ocidental mas tem imposto, soberanamente, regras coercitivas aos excessos neoliberali-zantes. É necessário conferir por quanto tempo será mantida essa resis-tência, tendo em vista que a China foi convidada a integrar o seleto gru-po da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), indício muito claro de tentativa de cooptação e de abertura de espaço para a dominação do extraordinário mercado de consumo chinês, com seus 1,2 bilhões de habitantes.

América Latina, ainda um quintal dos EUA e do neoliberalismo. As situações muito similares nos países da América Latina reforçam a questão: para que e a quem servem a estabilidade da moeda e da eco-nomia e até o próprio desenvolvimento econômico, se o povo continua cada vez mais pobre? Servem, evidentemente, apenas a aqueles que ga-nham sempre, tanto faz a inflação estar alta, baixa ou zero, porque as regras políticas nesses países continuam as mesmas, favorecendo unica-mente às elites.

A América Latina vinha sendo o maior campo experimental do neolibe-ralismo, por razões óbvias:

a) Os países da região tem problemas estruturais graves e crônicos.

b) Grande parte deles tem passado por processos ditatoriais ferozes e corruptos.

c) Possuem governos fracos, dominados por interesses de grupos e a-presentam espaços imensos para a exploração e a corrupção.

d) São profundamente dependentes, submissos e subservientes ao mo-derno imperialismo dos EUA.

Em um passado recente, as moedas dos países da América Latina, de um modo geral, estavam valorizadas em relação às moedas da Ásia. É natu-ral, portanto, que tenham sofrido dificuldades de exportação para aquela região e para qualquer área de influência econômica dos paises asiáticos.

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O que não é pouca coisa.

Adicione-se a isso a queda dos investimentos de empresas européias na região em decorrência da crise da Ásia e da Rússia e a queda dos preços internacionais de alguns produtos chaves das suas economias, como o petróleo (México e Venezuela), cobre (Chile), café (Brasil e Colômbia).

As conseqüências foram as mesmas que repercutiram sobre o Brasil: redução dos valores de exportação, desequilíbrio na balança comercial, perdas acumuladas nas bolsas de valores e de mercadorias.

Na década final do século 20, no entanto, surgiram reações ao neolibera-lismo na América Latina acompanhando, de modo tardio e incipiente, o que vem acontecendo em várias outras regiões do mundo. Os processos e os resultados eleitorais em vários países são indícios, ainda frágeis mas sintomáticos, de tendências de mudanças. Ou, pelo menos, indicam um cansaço crescente dos povos latino-americanos com respeito à explora-ção capitalista selvagem e à exclusão predatória de imensas parcelas de suas sociedades. Espera-se que não se trate apenas de mais um “ciclo democrático”, que venha a ser substituído mais uma vez por outro “ciclo ditatorial”, como já aconteceu em tantas outras oportunidades na história da América Latina.

Por enquanto, a resistência das elites vem se dando através de processos políticos no sentido de fazer ajustes capitalistas para tentar contornar as inquietações que começam a se manifestar. Esses processos têm o tradi-cional sentido de um “afrouxamento do torniquete de modo a manter o asfixiamento da vítima sem, contudo, chegar a matá-la”. Como exemplos dessas ambigüidades, do tipo “mudar para não mudar”, temos as situa-ções criadas com as eleições na Argentina, no Uruguai, no México, no Chile. Um caso especial era o do Peru, onde o princípio era “não mudar para não mudar, mesmo!”.

Na linha de análise e de simbolismos acima, fica difícil criar uma imagem para significar o sentido da reeleição e do segundo mandato de FHC. Talvez a mais representativa seja: “continuar o processo de subserviência colonial até quando seja possível manter a mistificação, bem como con-tinuar a transfusão do sangue do povo e da nação, para os capitalistas nacionais e principalmente internacionais, até o limite da suportabilidade e da tolerância do país”. Ou, mais sinteticamente, “continuar bebendo o

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leite mesmo que o bezerro morra”.

Há, porém, processos de confronto realmente explícitos e radicais com as ideologias vigentes, como são os casos das transformações populistas do presidente Chávez na Venezuela, da revolução zapatista no México, do processo revolucionário no Equador e da guerra civil que já dura 36 anos na Colômbia.

As informações sobre o que vem acontecendo em alguns países onde ocorrem processos mais radicais de confronto com as elites dominantes, especialmente após o “boom” neoliberal, são muito escassas e/ou ten-denciosas. Nesse sentido, fica normalmente difícil saber o que realmente está se passando, quando nos baseamos apenas nas informações da grande mídia nacional ou internacional. É similar ao tratamento que no Brasil é dado às questões do MST, por exemplo. O ideal, sempre que possível, é buscar essas informações em várias fontes, inclusive direta-mente com quem está envolvido no processo de confronto. Mesmo as-sim, podem ocorrer distorções por supervalorização, sendo necessário tomar alguns cuidados.

México. Desde 1983 que a receita neoliberal vinha sendo implantada no México com muita precisão conceitual e absoluta fidelidade ao modelo, tanto que o México era alardeado como um exemplo bem sucedido da filosofia neoliberal.

As privatizações no México renderam 60 bilhões de pesos mexicanos que deveriam ter sido aplicados nos programas sociais. Não foram e em janeiro/95 restavam apenas 500 milhões de pesos no Fundo de Contin-gência. Ao mesmo tempo, com as vendas dos ativos públicos geraram-se, a uma velocidade meteórica, algumas das maiores fortunas pessoais do mundo.

Dos US$ 47,8 bilhões da “ajuda” internacional prestada ao México, 17,8 foram do FMI, 20 dos EUA e 10 de outros países, incluídos os US$ 300 milhões, não confirmados, do Brasil. Em troca, o México deu um pro-porcional acréscimo à sua já enorme dependência dos EUA, além de comprometer o seu petróleo como garantia dos empréstimos.

A falência do modelo, entretanto, já estava anunciada porém vinha sen-do ocultada, pelo menos desde o início do governo Salinas e só explodiu em dezembro/94, já no governo Zedillo, tendo o significado de um gol-

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pe mortal no discurso do modernismo liberalizante. Mesmo assim, os nossos arautos neoliberais fingiam desconhecer essa realidade, para que o seu discurso não se inviabilizasse. Como sustentar um projeto que não deu e não está dando certo em qualquer outra parte do mundo? O presi-dente FHC faziam declarações enfáticas de que não estávamos copiando o México mas o Programa Comunidade Solidária é uma cópia decalcada do Pronasol - Programa Nacional de Solidariedade mexicano. Ambos são projetos que têm o sentido de políticas compensatórias, isto é, políti-cas que podem ser comparadas à chupeta que é dada à criança para que durma com fome e esqueça a mamadeira vazia.

Quanto às questões políticas, cabe destacar dois aspectos do atual mo-mento histórico do México. O primeiro é o fato de que, após 70 anos de exercício ininterrupto de poder (com o uso, inclusive, de assassinatos de candidatos e processos eleitorais escusos e viciados), o Partido Revolu-cionário Institucional - PRI perdeu as eleições presidenciais de ju-lho/2000.

Nessas sete décadas, o PRI teve procedimentos contraditórios. Depois de implantar um processo bastante radical de reforma agrária, o governo mudou de rumo, especialmente na gestão de Salinas de Gortari, e aderiu totalmente aos interesses dos EUA e ao neoliberalismo. As estatais me-xicanas foram praticamente doadas para grupos com influência direta no poder governamental e foi montado um fantástico esquema de corrup-ção e de manutenção do poder.

Nas eleições/2000 houve uma aliança bastante estranha, inconcebível até algum tempo atrás, entre a esquerda do PRD (Partido Revolucionário Democrático), tradicional adversário sempre derrotado pelo PRI, e os conservadores do PAN (Partido da Ação Nacional), em torno de Vicente Fox Quesada, um empresário que dizem ter feito uma administração eficiente e competente como governador do estado de Guanajuato. Não foram, porém, apenas as alianças de Fox e o marketing de sua campanha eleitoral que produziram a derrota do PRI. A deterioração nas condições de vida e de trabalho que vem ocorrendo no México apesar da “ajuda” norte-americana também contribuiu para o desencanto do povo mexica-no com relação à dinastia priísta.

A vitória de Fox pode indicar aparentes mudanças políticas mas, tal co-mo em outros países latino-americanos, não vai significar mudanças no

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rumo econômico da política mexicana nem no desatrelamento do Méxi-co ao neoliberalismo e aos EUA. Tudo irá ficar dentro do princípio: “pa-rece que mudou, mas só parece, porque tudo continua como estava”.

O segundo aspecto, que consideramos mais importante que os eventuais ajustes com finalidades eleitoreiras entre as elites políticas, é o processo revolucionário existente na selva da Lancadona, na região de Chiapas.

O significado da ação do Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN) transcende as fronteiras do México. Seu líder maior, que assina “Subcomandante Insurgente Marcos” - evidentemente um codinome(∗) -, após mais de dez anos de ação revolucionária, se transformou numa fi-gura quase lendária. Hoje ele é conhecido mundialmente não apenas pelo significado das lutas libertárias que lidera e pelo capuz que usa, mas tam-bém pelo crescente respeito e admiração que vem granjeando por suas inegáveis qualidades intelectuais.

A síntese do movimento é feita, com muita propriedade, pelo próprio Marcos:

“Nós não propomos um modelo econômico determinado. Digamos que a propos-ta zapatista tem mais a ver com o sentido ético da política que com um programa de governo, que é o que um partido político apresentaria. O zapatismo afasta-se dos movimentos revolucionários tradicionais. Não queremos o poder. (...) Sobre a utopia, eu pergunto: que transformação social na história do mundo não foi uto-pia na véspera? Nenhuma.” viii

Em outra passagem da entrevista:

“O EZLN não nasce de propostas urbanas, mas tampouco de propostas vindas exclusivamente das comunidades indígenas. Nasce dessa mescla, desse coquetel Molotov, desse choque que produz um novo discurso. O que dizemos é que a transformação histórica não deve ser feita à custa da exclusão de setores da socie-dade”.

É bem por isso que o movimento zapatista tem reflexos nas demandas (∗) O codinome tem um duplo sentido, subliminar: 1o. - para efeitos externos, passa a idéia de que ele não é o chefe maior da guerrilha; 2o. - para efeitos inter-nos, significa que o comando do EZLN é partilhado, isto é, não existe a figura do comandante supremo, e que o poder e o comando máximo pertencem so-mente ao povo mexicano.

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não apenas do México mas também de outras partes do mundo. “O méri-to do EZLN é ter encontrado a freqüência de comunicação capaz de produzir esse reflexo múltiplo”, destaca o subcomandante Marcos.

Argentina. Dados básicos socioeconômicos: 2.780 mil km2, 36,6 mi-lhões de habitantes, PIB de US$ 325 bi, renda per capita/ano de US$ 8,9 mil, IDH de 0,827, mortalidade infantil de 22/mil, analfabetismo de 4%.

Em 1995, de acordo com informações da Associação dos Engenheiros da Petrobrás (AEPET) havia cerca de 1,5 milhão de desempregados, adicionados de cerca de 1,3 milhão de sub-empregados, além dos 5 mi-lhões (15% da população) que viviam abaixo da linha de pobreza, isto é, com menos do que uma cesta básica. O processo de privatização argen-tino desempregou 350 mil trabalhadores e a atividade privada, outros 200 mil. Nas frentes de trabalho estavam 170 mil pessoas recebendo remune-ração miserável.

As perspectivas reais na época indicavam de que até o final do século 20 estariam esgotadas todas as reservas petrolíferas argentinas, porque em 89 eram para 13 anos e em 94 já estavam em 8 anos. Trata-se de uma decorrência direta do processo predatório implantado após a privatização da YPF e ausência de investimentos de risco das empresas que assumi-ram o controle do setor na Argentina.

Menem, no entanto, se reelegeu presidente, um fato que em tese parece não ter lógica (no Brasil em 1998 FHC também se reelegeu em condi-ções muito similares). Em 97, o grupo político de Menem, no Partido Justicialista (peronista) perdeu a maioria no Congresso bem como a elei-ção para a prefeitura de Buenos Aires e a deputada Graciela Fernandes Meijide (Frente País Solidário – Frepaso) foi eleita com mais de um mi-lhão de votos. Em 1999 ela disputou as prévias das oposições como pré-candidata à presidência da república e perdeu para Fernando de la Rúa, (União Cívica Radical – UCR), prefeito da capital. De la Rua venceu as eleições presidenciais de 99, concorrendo contra o candidato peronista Eduardo Duhalde, então governador da Província de Buenos Aires, a mais importante região política e econômica do país.

Mais do que a vitória da oposição na Argentina e independentemente das atitudes políticas que o governo De La Rua possa tomar, a derrota de Menem é um fato que tem em si mesmo um significado político impor-

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tante. O significado econômico tem proporções mais reduzidas porque é difícil - talvez impossível - que o novo governo possa produzir mudanças de fundo na política econômica argentina, tendo em vista a dolarização formal da sua economia (“currency board”), pela lei da conversibilidade (peso = dólar).

Assim, é absolutamente fatal que, em condições normais, a trajetória política e econômica argentina não sofrera mudanças de rumo, pois con-tinuara atrelada e subalterna aos interesses dos EUA.

Essa perspectiva está se confirmando integralmente porque o novo go-verno está seguindo os passos do governo Menem, até com mais rigor neoliberal, mediante medidas muito duras para com o povo argentino. E tenta sair do sufoco da crise econômica através da “ajuda” do FMI, sen-do muito claros os indícios de que a Argentina está indo na direção do afastamento do Mercosul e da integração na Alca. Isso tudo, sem sombra de duvidas, deve ser lido como um aprofundamento da subserviência do Estado argentino ao governo dos EUA.

Uruguai. Dados básicos socioeconômicos: 176 mil km2, 3,3 milhões de habitantes, PIB de US$ 20 bi, renda per capita/ano de US$ 6,1 mil, IDH de 0,826, mortalidade infantil de 18/mil, analfabetismo de 3%.

O Uruguai tem menos habitantes que muitos estados e algumas regiões metropolitanas do Brasil. Por outro lado, tem renda per capita maior que o Brasil, taxa de analfabetismo cinco vezes menor e índice de morta-lidade infantil duas vezes menor que o Brasil.

Após a redemocratização do Uruguai em 1985, no primeiro governo Sanguinetti, iniciou a discussão do papel do Estado na economia, sendo importante a influência do Partido Colorado no combate à ofensiva neo-liberal. Iniciou-se, então, uma discussão de caráter ideológico e propa-gandístico, num processo gradual, pausado.

Em 1990 assumiu o governo Luis Alberto Lacalle, mais conservador, e de pronto definiu que em 90 dias seriam atingidos 3 objetivos: 1 - reduzir o déficit público e a inflação; 2 - vender as empresas do Estado; 3 - re-formar o movimento sindical. Entretanto, quase nada disso ocorreu em todo o seu governo. Foi aprovada uma lei de reforma do Estado, com trâmites tumultuosos e acordos políticos complicados, que não conse-guiu ser implementada e um plebiscito realizado a respeito da privatiza-

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ção no Uruguai resultou numa votação de mais de 70% contrária.

No Uruguai, a imensa maioria das estatais são superavitárias e a maioria dos cidadãos uruguaios entende que a maior parte dessas empresas de-vem continuar em poder do Estado.

O presidente Julio Maria Sanguinetti, eleito pela segunda vez em 1995 no próprio ato de posse atacou o Plano Real do Brasil e o Plano Cavallo da Argentina chamando-os de ‘fórmulas de laboratório’. O seu maior desa-fio era a retração da economia argentina, importante parceiro comercial, tal como o Brasil. Por conta disso, o desemprego no Uruguai atingiu 9,1% da população economicamente ativa, em 1994.

Nos últimos anos, através de uma política de criação de pólos regionais de desenvolvimento, o Uruguai tem tentado interiorizar a sua economia, que antes era centrada na faixa litorânea e especialmente concentrada na capital, Montevidéu.

Politicamente, têm ocorrido também algumas mudanças. No dizer do jornalista uruguaio Eduardo Galeano, autor do clássico As veias abertas da América Latina:

“No Uruguai, como em todas as partes da América Latina, o pobre votava contra o pobre. Agora começa a votar em representantes dos pobres. A esquer-da aqui no Uruguai sempre foi mais uma atitude de minorias intelectuais do que um sentimento popular. Agora isso mudou. A esquerda saiu do aquário.”

ix

Galeano interpretava o fato novo da esquerda ter assumido a prefeitura da capital, Montevidéu, já por dois mandatos consecutivos, desde 1990. Também se referia ao fato de que Tabaré Vásquez, da Frente Ampla - Encontro Progressista, além de ter feito o seu sucessor na Prefeitura de Montevidéu, disputava como favorito as eleições para a presidência da Republica Oriental do Uruguai. Vásquez, porém, acabou perdendo a eleição no segundo turno para Jorge Batle, do Partido Colorado, quando este conseguiu a coalizão das forças de centro-direita.

Chile. Dados básicos socioeconômicos: 756 mil km2, 15 milhões de habitantes, PIB de US$ 77 bi, renda per capita/ano de US$ 4,8 mil, IDH de 0,844, mortalidade infantil de 13/mil, analfabetismo de 5%.

O Chile é tido como o verdadeiro precursor do ciclo neoliberal na histó-

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ria contemporânea. Os programas de desregulamentação, desemprego massivo, repressão sindical etc. começaram na ditadura Pinochet, no início dos anos 70. Era o início do tratamento determinado pelo receituá-rio neoliberal o qual, no entanto, não se completou. Um dos pressupos-tos, obviamente, foi a supressão das liberdades democráticas determina-das pela ditadura chilena, se bem que a democracia nunca foi um valor imprescindível à ação do neoliberalismo. Aliás, é ao contrário, de acordo com o que “mestre” Hayek apregoava na já citada entrevista ao jornal El Mercúrio, em 1981: numa opção entre uma economia de livre mercado com um governo ditatorial e uma economia com controles e regulações sob um Estado democrá-tico, escolheria a primeira”. O Chile, após a crise mexicana, se tornou o último dos paraísos terrestres dos nossos deslumbrados neoliberais. No entanto, um estudo da profes-sora Maria da Conceição Tavares, confirmado por análises de vários es-tudiosos do tema, mostra que isso não passa de uma mistificação, similar à que havia a respeito do México e de vários outros países. Um dos e-xemplos do argumento é o fato de que o poder fiscal e comercial do Estado chileno é de uma força sem par na América Latina. O poder de compra do poder público e o controle do comércio do cobre, garantem quase 50 % das receitas de exportação.

Em resumo, o Estado chileno foi o mais intervencionista da América Latina. Isso é deliberada e tendenciosamente omitido pelos defensores do neoliberalismo e pelos relatórios das agências financeiras internacio-nais tipo FMI, BIRD, BID. Por exemplo, em recente estudo (ao que consta não divulgado) o Banco Mundial (BIRD), detectou que o Chile na verdade não aplicou o modelo do FMI.

Existem, porém, vários problemas que se anunciam. As reservas minerais são bens finitos, não renováveis, tendendo ao esgotamento e outras fon-tes de riqueza do Chile, como a pesca, apresentam também dificuldades. Por isso, uma economia apoiada essencialmente em um único produto de exportação, não renovável, como o cobre, acaba se tornando extre-mamente vulnerável às imposições do capital internacional, quanto a preços e mercados. Além disso, a maior parte da exploração do cobre está nas mãos de empresas privadas.

Uma outra questão mal avaliada e distorcida da política neoliberal do Chile é a previdência. O governo privatizou a previdência, dividindo o

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contingente de aposentados e trabalhadores em grandes lotes que entre-gou a grandes grupos ou consórcios econômicos, mas mantém um con-tingente (os que já estavam aposentados ou que não podem pagar previ-dência privada) sob o guarda-chuva do Estado. Esse financiamento mais o aporte de subsídios aos grupos privados chegou a ser 18% do PIB, ou seja, quase 2 vezes o percentual correspondente à seguridade social intei-ra no Brasil, que é cerca de 10% do PIB.

Em janeiro/2000 as eleições presidenciais no Chile foram vencidas pelo “socialista” Ricardo Lagos, como candidato da situação já que a frente partidária Concertación, pela qual foi eleito, já estava no poder. Trata-se de outro exemplo do pretenso avanço das esquerdas na América Latina o qual, além de teórico, é falso. O ano de 2000 ainda não tinha acabado e Lagos já estava caindo no colo do governo norte-americano ao preferir a Alca ao Mercosul.

Bolívia. Dados básicos socioeconômicos: 1.100 mil km2, 8,1 milhões de habitantes, PIB de US$ 8 bi, renda per capita/ano de US$ 0,97 mil, IDH de 0,652, mortalidade infantil de 66/mil, analfabetismo de 16%.

O tratamento de choque aplicado na Bolívia em 1985, sob a orientação de Jeffrey Sachs foi, mais tarde, aplicado na Polônia e na Rússia, também sob orientação do próprio Sachs.

O então presidente Vitor Paz Estensoro encontrou o país com uma in-flação de 23.000% ao ano. Com medidas ortodoxas muito duras, reduziu drasticamente a inflação para cerca de 8% a.a. em 94. O preço disso, no entanto, foram demissões em massa (só na empresa estatal de mineração foram demitidos 23 mil dos 28 mil trabalhadores) e o índice de pobreza atingiu 80% da população.

A Bolívia atravessou em 1994 uma situação de extrema tensão social e política, a ponto de ter sido decretado estado de sítio, com prisões de mais de 300 sindicalistas da Central Operária Boliviana (COB). O go-verno do presidente Gonzalo Sanches de Lozada estava mais submetido às forças armadas e aos interesses e pressões dos empresários, que apoia-vam o estado de sítio, do que ao atendimento das reivindicações dos trabalhadores. Os professores, por exemplo, cujo salário era de menos de US$ 30 mensais, ficaram em greve por um mês, reivindicando míseros US$ 100 sem conseguirem nada, só prisões e violência da polícia e do

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exército. De lá para cá, a situação na Bolívia em nada melhorou, mas as informações sobre aquele país na nossa grande mídia são muito escassas.

Peru. O Peru em 1990 enfrentava uma inflação de mais de 7.500% anu-ais. O presidente Fujimori, mesmo com golpes “brancos” de Estado e todas as suas trapalhadas políticas e matrimoniais, conseguiu trazê-la para 15% em 94. Entretanto, apesar disso e do crescimento econômico re-corde na AL, de 13% em 94, a pobreza no Peru na era Fujimori passou de menos de 30% para mais de 60% da população peruana de cerca de 23 milhões de habitantes.

Fujimori, entretanto, se reelegeu presidente. E, não satisfeito, tentou de tudo para tornar a se re-reeleger para um terceiro mandato, o que real-mente conseguiu mediante um processo notoriamente corrupto, repudi-ado até pela opinião pública internacional. Esse repúdio foi manifestado até pelo governo dos EUA. O governo brasileiro se manteve “neutro”.

E claro que um processo de degradação política e social tão brutal teria de se esgotar em si mesmo. Logo ao início do seu terceiro mandato, a insustentabilidade do governo Fujimori se agravou com a descoberta da ação corrupta do seu braço direito, Montesinos, que respingou fortemen-te sobre o presidente. A conseqüência natural foi a concretização da tão esperada e inevitável renuncia de Fujimori, “asilado” no Japão e protegi-do pela sua cidadania também japonesa. Concretizou-se, então, uma perspectiva de abertura democrática naquele país.

Equador. Tal como o Chile, o Equador é um dos dois países sul-americanos que não tem fronteira com o Brasil. O território tem 270 mil km2, a população de 3 milhões de habitantes (70% de pobres) é essenci-almente de origem indígena. Quito, a capital, possui 600 mil habitantes.

A base de sua economia era agrícola (exportação de bananas e cacau) e o latifúndio ainda é muito forte. Hoje, o petróleo é o grande sustentáculo da economia equatoriana. O momento de prosperidade atual, em função do petróleo, induziu processos de reforma social.

Tal como em outros países latino-americanos, historicamente o exército equatoriano tem tido muita influência na política nacional em decorrên-cia da imagem, da figura e do significado do herói venezuelano e sul-americano Simón Bolivar, considerado um símbolo das lutas libertárias no continente.

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A maior entidade política de mobilização popular é a Conaie - Coorde-nação das Nacionalidades Indígenas do Equador, que agrega nações in-dígenas das duas correntes principais: os descendentes dos Incas e os que habitam a bacia amazônica.

O Movimento Pachakutik (novo país, em quíchua, a língua nativa do E-quador) é uma organização similar à nossa Consulta Popular, porém com muito menor consistência ideológica e organizativa. Existe também a organização de movimentos sociais através de uma Coordenadora, simi-lar à nossa Central de Movimentos Populares. Outro movimento, o Se-guro Campesino, é uma organização camponesa que foi muito importan-te no processo de levante.

A política no Equador já vinha complicada desde o governo Abdalá Bu-caran o qual, em 1997, foi declarado mentalmente incapaz pelo Congres-so Nacional. Jamil Mahuad, eleito em 1998, uma espécie de Fernando Collor, instituiu um governo similar ao de Collor, tanto na abertura eco-nômica e dependência externa quanto na corrupção.

Em 1997 já tinha ocorrido uma marcha que promoveu uma atuação mais forte das forças populares, especialmente indígenas e em 1999 houve outra marcha que aprofundou o confronto dessas forças com o governo.

Em janeiro de 2000 houve um agravamento na situação política e finan-ceira do Equador que desaguou na dolarização da moeda e todo o pro-cesso de confronto que culminou no levante das forças populares e a tomada do poder no dia 21 de janeiro.

O movimento de massas, com mais de 15 mil participantes, criou um grande impacto na capital. A tomada do poder começou com a tomada do Congresso e se estendeu ao Executivo, sendo que o presidente já havia fugido. A tomada do palácio do governo durou apenas 3 horas, uma das mais rápidas revoluções da história! O governo provisório, que tinha inicialmente o apoio e a participação de parte do exército, sofreu um rápido contra-golpe da direita, apoiada pela cúpula militar, que trans-feriu o poder para o vice-presidente Gustavo Noboa e esvaziou o movi-mento.

O processo revolucionário, que ainda está em curso no Equador, deve ser melhor analisado. Desde logo, entretanto, ficou claro que uma das fortes razões para a perda, tão rápida, do poder conquistado está na fra-

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gilidade das organizações sociais que se contrapõe ao sistema dominante, em que pese este apresentar grande fragilidade e profundas contradições.

Um fator importante na questão equatoriana foi a dolarização da sua economia, decidida repentinamente pelo presidente Mahuad, numa de-monstração de incapacidade para enfrentar uma grave crise econômica e a ameaça da própria destituição do cargo. Mesmo tendo estudado em Harvard, Mahuad não tinha “gabarito para ser sequer síndico de prédio ou presi-dente de associação de bairro”, no dizer de Paulo Batista Nogueira Jr. Quando entrou em desespero resolveu abrir mão de um dos elementos centrais da soberania do Equador, a sua moeda. Nos termos e condições em que se estabeleceu, foi uma decisão subalterna praticamente sem precedentes, tanto na América Latina quanto no mundo todo.

Colômbia. A Colômbia, juntamente com o Brasil e a Venezuela, foi um dos cinco países que mais se desenvolveram no mundo, no século 20, conforme estudo elaborado pelo professor Marcio Pochmann. Esse de-senvolvimento ocorreu, obviamente, em razão da economia cafeeira e não em decorrência do narcotráfico, cujos resultados econômicos e fi-nanceiros seguem o destino dos paraísos fiscais ou outros centros de lavagem de narcodólares e muito pouco devem ter influído no desenvol-vimento da Colômbia.

Entretanto, tal como o Brasil e outros países, na década passada a sua economia entrou em recessão. Em 1999 foi reduzida em mais de 5%, somente até meados do ano. A moeda havia sido desvalorizada em 25% e a taxa de desemprego era de cerca de 20%.

Sob o ponto de vista político, desde há muito tempo na Colômbia os partidos Liberal e Conservador se alternam no poder. Por exemplo, de 1885 a 1930 governavam os conservadores e de 1930 até 1946, os libe-rais. Em 1946, os conservadores, mesmo minoritários, retornaram ao poder porque houve a divisão dos liberais em duas candidaturas.(∗)

A partir daí, coincidindo com o término da Segunda Guerra e o avanço do domínio americano sobre a América Latina, como de resto sobre

(∗) A resenha histórica a seguir está apoiada, em grande parte, no livreto FARC-EP, esboço histórico – Publicação da Comissão Internacional das FARC-EP – 1998.

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grande parte do mundo, a Colômbia entrou numa fase de terror militaris-ta de dominação e de conseqüentes insurreições e guerrilhas populares, situação que só se agravou ao longo de toda a segunda metade do século 20. Cabe destacar que, de início, uma das vertentes guerrilheiras era cons-tituída por liberais, denominação que lá não tinha o sentido reacionário que têm os “nossos liberais”, no Brasil.(∗∗)

A guerrilha colombiana, de natureza nitidamente camponesa, tem raízes profundas na história do país, na cultura do seu povo e na geografia exu-berante e montanhosa de seu território. De início, foi mais baseada no voluntarismo que na organização e preparação para o enfrentamento das forças oficiais e, por isso, sofreu muitos reveses. Também foi sempre inspirada mais no bolivarismo do que em modelos importados. Alguns movimentos guerrilheiros foram aniquilados. Outros foram co-optados e seduzidos por promessas de fatias do poder ou, ainda, opta-ram por fazer uma luta de modo mais cômodo, apenas através dos pro-cessos institucionais, por exemplo.

A luta armada que permaneceu efetiva nos últimos 30 anos tem sido representada pelas duas vertentes revolucionárias mais importantes: o Exército de Libertação Nacional (ELN) e as Forças Armadas Revolucio-nárias da Colômbia - Exército do Povo (FARC-EP). Trata-se de movi-mentos revolucionários extremamente organizados e preparados, tanto militar quanto política e ideologicamente, que tem domínio territorial e militar sobre extensas áreas do país, somando cerca de 50% do território colombiano, com áreas ocupadas muito próximas da capital, Bogotá. Possuem contingentes armados equivalentes numericamente às forças oficiais, às quais têm infringido derrotas acachapantes.

Esses movimentos têm profundas raízes populares, porque são parte integrante do povo colombiano, de quem têm recebido apoio permanen-te. Seus líderes foram forjados em uma longa estória de lutas guerrilhei-ras e afirmam não ter qualquer relação com o narcotráfico.

Vêm infundindo cada vez mais respeito e temor aos governantes daquele país. Uma prova disso é que, na eleição governamental de 1998, os dois candidatos mais fortes garantiram em suas campanhas eleitorais que iri- (∗∗) É conveniente reportar à dualidade do conceito de liberalismo, tema desen-volvido no início deste Caderno.

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am tratar a pacificação interna na Colômbia mediante negociação e não pela força das armas. O candidato que acabou eleito, Andrés Pastrana Arango, foi mais além na sua promessa eleitoral, garantindo que negocia-ria pessoalmente com o comandante em chefe do Estado Maior das FARC-EP, Manuel Marulanda Vélez.

Governos anteriores tais como o de Belisario Betancour (1982-1986), Virgilio Basco Vargas (1986-1990), Cesar Gaviria Trujillo (1990-1994) e Ernesto Samper (1994-1998), já haviam tentado negociar com os revolu-cionários, nunca de modo sério e respeitoso, sempre com intenções escusas e armadilhas. As armadilhas, no entanto, raramente deram certo, tendo em vista o preparo e a experiência dos guerrilheiros, adquirida na longa trajetória de luta revolucionária.

Pastrana cumpriu a processa de campanha e um histórico encontro real-mente ocorreu logo após a sua eleição. Foi acordado um primeiro passo no caminho do objetivo que é defendido pelas FARC-EP: a reconstru-ção e a reconciliação nacionais, sob nova ordem econômica, política e social. O primeiro passo foi a condição colocada pelos revolucionários para a continuidade das negociações: a desocupação por parte das forças oficiais militares e policiais de cinco municípios, conforme especificação do comando guerrilheiro. Nessa fase, a deposição de armas por parte dos guerrilheiros era questão totalmente fora de cogitação, como precaução quanto a embustes ou retrocessos na negociação, bem como para pre-servação das condições de soberania do movimento.

As informações disponíveis indicavam prenúncios de dificuldades na continuidade das negociações entre os revolucionários e o governo co-lombiano. Por um lado, as discussões, com base em uma plataforma de dez pontos para um governo de reconstrução e reconciliação nacional, eram realizadas com audiências públicas, como mecanismos de participa-ção de todas as camadas sociais, inclusive as Centrais Operárias. Con-traditoriamente, no entanto, o governo Pastrana, com o apoio de espe-cialistas da CIA, elaborou o chamado “Plano Colômbia” para a intensifi-cação da guerra.

Mesmo com uma análise produzida à distância, sob várias dificuldades quanto a elementos informativos mais abrangentes e/ou aprofundados sobre a questão colombiana, é possível destacar pontos que chamam a atenção. Por exemplo:

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• O longo processo de efetiva luta interna por mais de três décadas, sem uma definição militar ou política para o impasse. Os resultados naturais extremos dessa definição seriam: 1) a aniquilação da guerrilha pela ação militar governamental ou 2) o seu inverso, isto é, a tomada do poder pelos revolucionários. Entretanto, nem uma nem outra coi-sa ocorreu. Ao que consta, a falta de preparo não é uma boa razão pa-ra tal porque, por um lado, os governos colombianos têm recebido significativo e ostensivo auxílio norte-americano e, por outro, o co-mando revolucionário tem demonstrado excelente organização e pre-paro militar e político.

• A extensão territorial ocupada pela guerrilha e o seu extraordinário quantitativo em armas.

• O forte apoio popular campesino ao movimento e a aparente falta de apoio do povo urbano e das suas organizações populares.

• A aparente fragilidade ou ausência de formas politicamente institucio-nalizadas (partidos políticos, por exemplo) que representem ou que tenham condições de servir como porta-voz do movimento revolu-cionário colombiano, no âmbito da sociedade civil organizada.

A questão colombiana é importante referência porque, guardadas as pro-porções e as diferenças estruturais, políticas e culturais, não é despropo-sitada nem descartada a hipótese de que o Brasil possa seguir uma traje-tória que venha apresentar alguma correlação com a situação colombia-na. Um exemplo de similaridade possível de ocorrer no Brasil em relação à Colômbia é que a nossa direita reacionária, basicamente representada pelo PFL, resolva assumir um radicalismo mais explícito e mergulhe o país num terrorismo de Estado. São indícios disso as constantes manifes-tações do senhor Antonio Carlos Magalhães a respeito do exército nas ruas, pretensamente para combater a violência. E as ações de terror pro-duzidas pelo governador Jaime Lerner, no Paraná, podem ter também o sentido de um “protótipo experimental” para um projeto reacionário e golpista do PFL, em âmbito nacional.

Venezuela. Ao contrário de países como a Argentina (com Menen), o Peru (com Fujimori) e a Bolívia (com Paz Estensoro), onde o neolibera-lismo foi implantado sob fortes doses de autoritarismo, a Venezuela tem uma história de democracia partidária muito mais sólida e contínua desde

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meados do século 20. É o único país da América do Sul que tem estado livre de ditaduras militares desde 1958, quando as forças democráticas depuseram o ditador Marcos Perez Ximenes, encerrando um ciclo de mais de meio século de ditaduras.

A partir daí, os partidos Ação Democrática (AD), Partido Social Cristão (Copei) e União Renovadora Democrática (URD), firmaram o chamado “pacto de Punto Fijo”, (nome da localidade onde foi o mesmo firmado). Esse pacto, previsto para durar de 1959 a 1964, na verdade se estendeu por quarenta anos, com revesamentos no poder apenas entre os partici-pantes desses partidos. (∗) Nas décadas de 60 a 80 sucederam-se na presi-dência da república Romulo Betancourt (AD), Raul Leoni (AD), Rafael Caldera (Copei), Carlos Andrés Perez (AD), Luiz Herrera Campins (Co-pei) e Jayme Lusinschi (AD). Nesse período ocorreu a restauração de-mocrática, a reconstrução institucional e o crescimento econômico apoi-ado na riqueza petrolífera da Venezuela. Ocorreu, porém, a expansão da máquina administrativa, a realização de obras faraônicas, os favoreci-mentos aos grupos econômicos privados e a instauração de uma cultura clientelista.

Na década de 90, Carlos Andrés Perez, eleito pela segunda vez em 89 com um discurso populista, aderiu ao neoliberalismo e, uma semana a-pós a posse, já enfrentava uma revolta popular na qual morreram 300 pessoas. A origem dos protestos foi a supressão dos controles de preços, uma das primeiras medidas do presidente empossado. Foi o início das dificuldades do governo por ter passado a implantar um inesperado pro-jeto neoliberal, que tinha sido ocultado da população durante a campa-nha eleitoral. Aliás, esse procedimento é muito usual nas “democracias” latino-americanas. Menen na Argentina, Fujimori no Peru, tal como Collor e Fernando Henrique no Brasil, também deixaram de confessar ao povo seus propósitos neoliberais, por ocasião das respectivas campanhas.

Perez foi sucedido por Rafael Caldera, também em segundo mandato

(∗) A análise histórica a respeito do “fenômeno Chávez” está em boa parte apoi-ada no texto “Anotações sobre o processo político venezuelano”, de Plínio Arruda Sam-paio, que esteve naquele país em fins de 1999, observando o processo político que ali está em desenvolvimento.

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(1994 - 1998). Nesse período cristalizou-se o processo de decadência do Pacto de Punto Fijo, pela degenerescência da política e da administração corrupta do governo venezuelano.

Em fevereiro de 1992 houve uma tentativa frustrada de rebelião militar para derrubar o governo Perez, liderada pelo então coronel paraquedista Hugo Chávez. Em 1998, ele se candidatou à presidência da república e derrotou, com mais de 57% dos votos, a coligação dos dois partidos de centro-direita que haviam se alternado no poder por quarenta anos.

De 1998 até o início de 2000, Chávez se dedicou à reinstitucionalização do Estado venezuelano, através um processo constituinte comandado por ele, confrontando e derrotando as elites reacionários que dominavam o Congresso e o Judiciário. Com base na nova Constituição, aprovada por plebiscito, ele realizou eleições gerais em agosto/2000 e submeteu a sua proposta política a outro verdadeiro plebiscito nacional, ao desistir do tempo restante do seu mandato e concorrer à nova eleição presiden-cial, a qual venceu com cerca de 60% dos votos. Além disso, elegeu a maioria dos governos das províncias. É preciso destacar que na Venezu-ela o voto não é obrigatório.

Chávez tem sido acusado por seus opositores de estar construindo uma terceira via populista, mais ou menos “a la Perón”. Entre esses oposito-res estão até representantes dos movimentos populares que o acusam de estar atropelando o processo de organização e conscientização das mas-sas populares, na medida em que tenta manter uma ligação direta entre o líder e o seu povo inculto e despolitizado.

É inegável, porém, que o seu projeto segue muito firme em termos de apoio do povo venezuelano. Se conseguir, como prometeu, resolver os problemas econômicos da Venezuela até o final do atual mandato e não se deixar escorregar para o autoritarismo, o seu projeto passa a ser um marco e um exemplo exitoso de confronto com o projeto neoliberal, não apenas para a América Latina como para o mundo todo. Bem por isso, as elites financeiras e políticas internacionais (leia-se EUA) devem estar muito atentas ao que se passa na Venezuela e farão todo o possível para apoiar qualquer ação que vise criar dificuldades para Chávez, tais que possam até mesmo vir a desmontar esse projeto e derrubá-lo.

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Caderno 01 – Síntese histórica e conceitual

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NOTAS

i Cf. artigo de Christiane Galus, do jornal “Le Monde”, intitulado A evolu-ção pela catástrofe, publicado no Caderno Mais! da Folha de São Paulo de 26/12/99. Ver também o artigo de José Reis O homem e os grandes macacos, bem como outros textos de Marcelo Gleiser e de José Reis, nas suas respectivas colunas semanais no mesmo Caderno. Trata-se de textos com rigor cientifico, porém sob forma didática mais adequada a leigos como nós. ii Cf. OLIVEIRA, Agamenon R.E., Ciência e Sociedade. iii Cf. SADER, Emir e GENTILI, Pablo (Organizadores), Pós-neoliberalismo: as políticas sociais e o Estado democrático iv Cf. EQUIPO DE EDUCACIÓN MAIZ. O Neoliberalismo... ou o meca-nismo para fabricar mais pobres entre os pobres. v Cf. Anais do IV CONSENGE – Congresso Nacional de Sindicatos de Engenheiros. vi Cf. GLUCKSTEIN, Daniel. Alguns dados sobre o imperialismo senil e a marcha para o desmembramento do mercado mundial vii Cf. Folha da Tarde de 02/09/98. viii Conforme entrevista ao escritor espanhol Manoel Vásques Montalbán, em matéria intitulada Na clareira da revolução, publicada pelo jornal Folha de São Paulo de 09/05/99, caderno Mais! ix Cf. Folha de São Paulo, 31/10/99, pg. 20 “Esquerda saiu do aquário, diz Galeano”.