Livro Negro -...

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1 Julio Cezar Dosan Livro Negro Contos de Terror 2011

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Julio Cezar Dosan

Livro Negro Contos de Terror

2011

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����������� Em “Livro Negro” o autor trás sete fascinantes contos de terror, em nova e horrenda fase. Chega de finais óbvios, de construir personagens bonzinhos e destruir todo o mal... O bem nem sempre vence, e alguns destes contos podem bem provar com seus desfechos imprevisíveis... No primeiro conto um homem perde a esposa e decide ir até o inferno buscá-la de volta, enfrentando o próprio Diabo e é tentado a trazer “O Livro Negro”... “Tumulo Violado” desossa a impureza de um ladrão incomum, um saqueador que encontra em uma tumba velha o corpo morto á 76 anos. O mais insano é que o cadáver esta em perfeito estado de conservação, o invasor o leva e o mistura á sua vida decadente. Já em “A Casa dos Medos”, quatro jovens se deparam com o inesperado, enfrentando o terror, a morte e a angustia, diante a perversa maldição da casa, que não quer deixar ninguém sobreviver a seu caos... “O Perdão” revela a injustiça da fé, onde o Diabo pergunta a Deus o que aconteceria se ele lhe pedisse perdão... “Eu Sempre Vejo a Minha Morte” narra à loucura de um homem, acuado, morto e devorado por vermes, tentando descobrir o que arrancou sua vida suja. “João e Maria” Reconstrói o universo dos pequenos perdidos, destrinchando entre aventura e horror a barbárie humana. O ultimo, “Os Mortos acordam”, retrata a angustia dos esquecidos, dos corpos velhos abandonados em seus sepulcros, mas estes não querem esperar o dia do juízo...

Lenira Cavalcanti

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Para mim, Que Caibo Apertado

Dentro do Meu Egoísmo.

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Índice

O Livro Negro

Pagina 5

Tumulo Violado Pagina 16

A Casa Dos Medos

Pagina 20

O Perdão Pagina 41

“Eu Sempre Vejo a Minha Morte”

Pagina 43

João e Maria Pagina 47

Os Mortos Acordam

Pagina 67

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O Livro Negro

A tarde fria me congelou no jardim florido de minha casa confortável. Entrei, acendi a lareira e me sentei na velha cadeira herança de meu finado pai, assim como tudo que eu possuía até ali. Balancei uma, duas, três vezes... A tontura me pegou e decidi parar, nunca havia conseguido mais que aquilo, me incomodava pensar que meu velho pai passava toda a tarde balançando e lendo um velho livro ao mesmo tempo, sem mostrar enjôo ou tontura. Era um dom tolo que eu queria possuir. Me levantei ainda sobre o efeito do frio, fui até a estante antiga e me estiquei até o velho livro que ele lia: “LIVRO NEGRO”. Desde pequeno, aquele livro grande e grosso me colocava medo, eu o via sentado aos pés da cadeira de balanço, lendo encorajado, os lábios grossos transparecendo seu fino bigode. Eu o olhava como um aluno olha seu mestre, e a idéia de ler aquele livro imenso, me causava náusea e um espanto avassalador. Algo que eu nunca pude entender... Ele devorava o livro enquanto eu tentava ler ele o lendo... Foi ai que ele levantou os óculos e disse algo que me perseguiria para todo o sempre: ― Algum dia, quando deixar de ser um menino tolo e vagar pelo mundo com a cabeça cheia de problemas de homem, lerás este livro e ficaras tão aliviado quanto eu. Esta frase me cobriu de menino tolo a adulto com problemas de homem. Os problemas de homem, fatalmente se converteram em desespero, e após enterrar o corpo de meu sábio pai, me pus a ler o livro. Na vigésima terceira pagina, vi uma foto fina de um homem que eu tão bem conhecia. Era meu finado avô, pai de meu velho pai. Olhei curioso a feição da fotografia... Era como estivesse me vendo em um espelho que refletia em preto e branco. Foi então que reparei nas letras grossas, escritas atrás da fotografia: “Algum dia, quando deixar de ser um menino tolo e vagar

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pelo mundo com a cabeça cheia de problemas de homem, lerá este livro e ficara tão aliviado quanto eu.” Tremi de dar pena. Encarei a foto estarrecido e li aquela frase mais vezes que ao próprio livro. Era exatamente a frase que meu pai me dissera... Custou para eu deixar a foto de lado e continuar com minha leitura, nada ali me seduzia nada ali me entrava na cabeça e me convencia do prometido, do alivio anunciado. Foi então que vi aquela significativa passagem, as letras feitas a punho, bem colocadas em ritmo alucinante, que fizeram meus olhos viciados se deliciaram com cada palavra administrada e assimilada em meu cérebro borbulhante em êxtase e emoção... Era um relato de meu bisavô: “Cruzei a fronteira do medo, alado em meu cavalo selvagem que só respondia a mim. Outrora, este mesmo cavalo negro de cristas ríspidas e olhar insano, matou a coices e em quedas bruscas seus últimos seis cavaleiros. De fato, era uma criatura amaldiçoada. Apeei do animal e caminhei ainda sobre o efeito do medo em direção ao quarto, onde minha esposa paria nosso quinto filho. O menino saiu forte e saudável, lhe banhei com água morna e o entreguei ao padre, que o batizou e o tornou um anjo. Minha esposa sorriu e faleceu, dando a mim a criança e a viúves prematura. Chorei, pai de cinco filhos e só... A enterrei no fundo de meu quintal, em um caixão envernizado, debaixo do grande pé de figueira, trajando seu mais belo vestido, o que lhe dei no nosso aniversario de casamento. Enterrei com ela minha vida de homem puro e comum, galopando sombrio pelo sertão a fora, apeado em meu cavalo selvagem, única testemunha do meu pacto com o medo, da minha vontade de violar a morte na pele de homem vivente. Para minha desgraça eterna, não me conformei em perder o amor da minha vida. Alado em meu animal impuro, praguejei contra o tempo e a vida, ele me entendeu, galopou por entre caminhos que eu nem conhecia em minha vida térrea... Eram corredores frios e estreitos, em meio a um mar de lama e espinhos selvagens, que lhe rasgavam a carne e atravessavam seus ossos. Ele era

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fiel. Ignorou a dor, estava disposto a me levar aonde eu queria ir; o vale da sombra da morte. Eu a vi em meio ao monte de corpos, agonizando em chamas e desespero... Mas a saudade de minha esposa era ainda maior... Gritei pelo seu nome: ― Madalene! Ela em meio ao mar de corpos revirou os olhos e me encarou, com a cesária da barriga aberta, onde um verme com ferrões na ponta da calda tentava entrar, a cutucando com suas patas pontiagudas e finas. Ela o jogou de lado e veio até mim, nua, chorando em desespero no mar de seu inferno. Montou atrás de mim e o cavalo saiu veloz, em busca da saída... Foi ai que o vi, o livro... Puxei as rédeas e meu animal obediente parou. Desci e o alcancei, com as mãos tremulas. O Diabo surgiu em meio às labaredas que estalavam no ar e me sorriu, indagando: ― Não pode levar os dois! Olhei para minha esposa na sela de meu cavalo, encarei o Diabo e bradei: ― Deixo minha alma. Ele sorriu, como se já fosse dono dela, o encarei com os olhos avermelhados, lhe entreguei o livro e montei no cavalo, de volta pra casa junto de minha esposa. Chegamos a nosso lar... As crianças nos aguardavam no terreiro. Abraçaram chorosas a mãe dada como morta. Meu filho do meio me esticou um embrulho, sorriu e disse: ― Papai, um homem de chifre curto levou o pequeno, disse que em troca dele lhe daria isto. Corri para dentro da casa e não vi meu menino, o que causou a morte prematura de minha esposa. De certa forma me senti aliviado, e ela também... É odioso aceitar, mas eu o odiava por arrancar dela a vida... Abri o embrulho e me deparei com ele: “LIVRO NEGR” Embora respirando o ar dos vivos, minha esposa era vazia e de aparência fúnebre. Nunca mais ousei desenterrar o caixão aos pés da figueira, no fundo de meu quintal, embora sempre estivesse com certa curiosidade: Se eu á tinha recolhido do inferno, o que teria acontecido ao seu cadáver sepultado na terra? Era este, um mistério que jamais ousei

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desvendar. Eu tinha Madalene, e nada mais me importava... Iniciei a leitura do livro, nada de especial, apenas palavras descompassadas, coisas que nunca saberei o verdadeiro sentido ou vontade de expressão do autor... Até encontrar as paginas em branco, paginas estas, preenchidas por mim, aqui e agora, contando como o encontrei e o tornei parte de minha linhagem. Hoje eu escrevo, quando meu corpo deixar esta terra, certamente meus filhos herdaram este livro, presente do Diabo, e assim como eu, escreveram nele suas místicas e carnais memórias. ” Estava encantado com o testemunho de meu bisavô... Madalene. Este era o nome dela, de minha finada bisavó. Ousei voltar os olhos para o fundo de meu quintal, a figueira ainda estava lá... Minha bisavó Madalene viveu suficiente para eu conhecê-la. Viveu muito mais que meu bisavô, a qual não conheci. Lembro-me que fui ao seu funeral, no velho cemitério da capital. Vi seu corpo ser sepultado e coberto por grossas pedras de mármore... Mas e quanto ao caixão envernizado aos pés da figueira? O que teria sido do caixão que meu bisavô e possivelmente meu avô e meu pai não ousaram desenterrar? Continuei minha leitura instigante, aonde lia cada passagem destinada a vida dos filhos de meu bisavô, como se aquele livro fosse uma bíblia de minha família. De fato, nada de especial, senão por um ou outro detalhe... Até chegar à vida de meu avô Thomas, o menino do meio, o que aceitou o embrulho que continha o livro das mãos do próprio Diabo, entregando em troca seu irmão recém nascido. O que li me chocou ainda mais: “Quando ele entrou sem ser convidado em uma casa com três crianças e um bebê, me sorrindo escabroso e peçonhento, não ousei enfrentá-lo. Na ausência de meu pai, o próprio Diabo entrou em minha casa e me deu um embrulho. Olhou para o berço de bambu, alisou meu rosto e pegou meu irmão recém nascido, incomodamente, a causa da morte de minha mãezinha, Madalene: ― Seu pai não se importará – Me disse sorrindo. Não se importou.

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Uma coisa que nunca contei ao meu pai: O Diabo devorou ali, naquele instante, o meu irmão. Acho que ele não sabia que o bebê era batizado... Ele engoliu em uma única bocada aquele recém nascido... Vi seus olhos arderem e fui testemunha de todo seu sofrimento... O vi vomitar meu irmão moído por seus dentes... Ele recuperou o fôlego, olhou a cena de seu grande pecado e como castigo divino, antes de sumir de minha vista, o vi limpar o chão de minha casa, enquanto praguejava insano, pois sabia que seria punido por ter devorado um anjo. Depois de meu irmão, nenhum membro de minha família havia sido batizado. Meu pai se encantou pelo livro de tal forma que ignorou até mesmo o amor que sentia por minha mãe e pelo seu cavalo, que ainda ferido e desprezado pela ingratidão do dono, fugiu de nossas vidas, tal qual o Diabo. Minha mãe se dedicou a outras coisas, a escrita e a costura. Encontrava tempo para escrever suas memórias em um caderno. Era um caderno enorme, com capa rosa, feita de pano grosso, bordado seu nome em vermelho rubro: Madalene. Eu um dia ousei ler, memórias tristes de uma mulher solitária, abandonada pelo marido que a buscou no vale da sombra da morte... Mas o que mais me chamou a atenção em seu caderno de recordações e tristezas, foi ela ter escrito que o corte da cesária nunca havia cicatrizado. Eu a observava em seus banhos, tentativa de ver o tal corte, e um dia o vi, sangrando. Em momento algum tive piedade dela, ao contrario disto, mostrei curiosidade. Curiosidade esta que ao longo de minha vida, me alimentou a ser cirurgião. Como profissional, consegui reconhecimentos e méritos, no entanto, jamais consegui fechar aquele corte de minha mãe. Quando meu pai se foi, tentei enterrar com ele aquele livro que ele tanto lia. Desisti, e em um dado momento, comecei a ler também... Só então tive profundo conhecimento com relação ao seu fascínio pela obra. Casei-me com uma professora, tive um único filho e lhe ensinei sobre a importância do livro em nossa linhagem. Teodoro, como qualquer menino era desatento e não dava

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atenção alguma ao livro. Tirei uma foto de mim e escrevi a mensagem a qual queria que ecoasse por sua mente vazia, no dado momento em que eu não mais fizesse presente: “Algum dia, quando deixar de ser um menino tolo e vagar pelo mundo com a cabeça cheia de problemas de homem, leras este livro e ficaras tão aliviado quanto eu.” Teodoro cresceu, a foto se empoeirou junto com este velho livro. Ele se formou cedo e teve também um filho cedo. Minha santa mãe, Madalene, morreu de velhice. Olhei a face de meu neto menino, olhando choroso a face morta da avó. Deliciei-me com seu sofrimento, mas também me entristeci por minha mãe, que carregou por décadas a fio, uma cirurgia que jamais cicatrizava. Olhei meu filho já homem feito pegar o livro com curiosidade e iniciar sua leitura. Fiquei feliz, mas eu ainda precisava fazer uma coisa. Fui com a pá até o pé da figueira e desenterrei o caixão envernizado, a qual meu pai havia enterrado pela primeira vez o corpo de minha mãe. O que vi lá fez meu coração bater mais forte... Mas continuei com meu plano, enterrei-o de volta, antes disto, coloquei junto daquele segredo a única coisa a qual ela havia se dedicado de verdade.” Meu Avô Thomas morreu com meia idade. Jovial e belo, deixando a casa que herdou a seu filho Teodoro, meu pai. Ele veio a óbito três meses depois que reenterrou o caixão envernizado de minha bisavó. Seus amigos médicos disseram que seu coração explodiu misteriosamente. Meu pai o honrou como grande homem era professor do estado e sempre fazia questão de contar as historias de nossos antepassados a seus alunos adolescentes. Obviamente eles não acreditaram, então, certa vez ele levou o livro e o leu em voz alta. Os outros professores se encantaram com as sabias palavras do livro. Perguntaram aonde poderiam conseguir uma copia, ele sorriu, dizendo ser uma tiragem única, destinada apenas para o deleite de sua linhagem. Li então, o depoimento de meu pai: “Eu sempre lia o livro as escondidas. Não queria que meu pai soubesse de minha dedicação por aquele livro velho e

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grotesco, queria provocá-lo e incomodá-lo com meu desinteresse. Ele se incomodava. Tinha pressa pelo meu interesse, alias, tinha pressa em tudo, até em morrer. Eu o vi morrer, este é meu segredo sujo... Vi quando o próprio Diabo veio montado no cavalo selvagem que pertencia a meu velho avô. Ele desceu daquele animal cheio de cicatrizes e novos cortes, feitos certamente ao atravessar novamente o monte de espinhos que ficava no meio do caminho do Vale da Sombra da Morte. Meu pai não mostrou desespero, o Diabo o encarou serio e perguntou insano: ― Maldito homem de uma descendência imunda! Porque desenterrou o caixão? Meu pai sorriu e cuspiu em sua face. O Diabo fez cara de espanto, se limpou e o ouviu dizer: ― Verme! Achou que seu deslize ficaria longe das vistas do homem para sempre? O Diabo deu as costas, montou em seu cavalo. Os olhos de meu pai brilharam e ele feliz por ter confrontado o próprio Diabo... Segurou nas rédeas do animal: ― Este cavalo é de propriedade de meu avô! Subitamente, o animal o repudiou e deu-lhe um coice fatal no peito. O Diabo sorriu e saiu a galopes, mostrando eterna satisfação. Socorri meu pai, mas este já estava sem vida. Seu coração fatalmente explodiu, devido às patas mortais do animal, que enfim, matou seu sétimo homem. Tentei entender o porquê de tudo aquilo, das respostas que eu nunca encontraria, da coragem absurda de meu pai... Então me dediquei ainda mais ao livro. Percebi, olhando meu pequeno filho que o meu vicio, assim como o de meu avô e de meu pai, não era apenas em ler o livro, e sim querer o interesse de nossas crianças. Interesse que tardava a vir às vezes... Olhei para a foto do meu pai, olhei para meu filho que me encarava e disse-lhe serio o mesmo recado que meu pai me deixou atrás daquela foto: ― Algum dia, quando deixar de ser um menino tolo e vagar pelo mundo com a cabeça cheia de problemas de homem, leras este livro e ficaras tão aliviado quanto eu. Percebi então que plantei ali um incomodo, prometi algo que jamais poderia ser cumprido, pois a angustia perseguia a

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todos que liam o maldito... Eu certamente o condenei a fatalmente ler o livro em algum dia de sua vida, lhe apresentando um conforto que não poderia curar seu coração de homem com problemas. Acho que este foi meu maior pecado, seduzi-lo a uma leitura inapropriada, a mesma leitura que condenou meus antepassados.” Quando meu pai morreu, minha mãe se casou de novo e foi morar na capital, junto de seu novo marido. Eu fiquei só, naquela casa que pertenceu a toda minha linhagem... Jamais pensei em me casar, sou ainda muito jovem e embora cobice mulheres, não tenho nem o dom e nem a paciência para conquistá-las. Mas agora, lendo tal livro que condenou homens que viveram naquela casa antes de mim, decidi que faria ao meu modo... Sem filhos para enfrentarem tal maldição. Quando o frio bateu impiedoso, trouxe com ele a solidão, foi neste momento que decidi ler o livro. Parei estarrecido, após o depoimento de meu pai. Ainda restavam duas paginas para seu final, estas estavam em branco... Eu percebi ali que eu teria que concluí-lo. Mas o que teria eu a dizer? O que poderia eu por em linhas, se nada tinha de interessante? Então em meu instinto de justiça e verdade, ousei decifrar os enigmas de toda aquela situação sombria... No limite da decadência e da desobediência... No interesse justo de finalizar tal obra com desfecho plausível, enxerguei o pé da figueira, e para desespero do Diabo, decidi desenterrar o caixão da minha bisavó, Madalene. O que aconteceu então passo a narrar neste final de livro, que agora vocês lêem junto a mim: “Arranquei a velha pá da parede, lugar aonde ela nunca deveria ter saído... Fui ao quintal. Debaixo do pé de figueira, cavei como homem sábio e decidido. Acho que meu pai sentiria orgulho de mim... Um vento frio bateu a ponto de congelar minha espinha. Não parei, continuei a arrancar a terra... Uma revoada de insetos me cercou por ar e terra. Ignorei seus ferrões, e mesmo com o corpo com partículas de seus incomodo veneno, prezei em ir até o fim. Eu fui. A pá finalmente encostou-se à madeira dura e seca do caixão envernizado.

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Eu com estrema dificuldade, o arrastei para a superfície e o limpei. Sorri insano e o abri... Um pano cobria seu conteúdo... Estaria abaixo dele o cadáver de minha bisa Madalene, em seu mais bonito vestido? Por cima do pano, estava o que meu avô considerou ser o que minha velha avó Madalena havia se dedicado depois que meu bisavô passou a ignora - lá com olhos de marido: Era seu velho diário com capa de pano rosa. O deixei de lado e continuei com minha descoberta, pensando que embaixo daquele pano, jazia misteriosamente o corpo da primeira morte de Madalene. Logicamente, estava errado... Era o pequeno bebê. O bebê que o Diabo havia devorado e vomitado, ao descobrir que era batizado. O recém nascido ainda estava coberto com a baba do traiçoeiro, tinha partes do corpo dilaceradas e ainda sangrava... Me desesperei, toquei nele e no cumulo do absurdo, senti que ele ainda respirava! Como poderia aquilo estar acontecendo? Como um bebê conseguiu sobreviver sepultado por décadas? Eu só conseguia perceber que aquele era um segredo que o Diabo queria manter enterrado, bem escondido em um caixão apropriado, dedicado a alguém a qual a vida foi arrancada, dedicada ao próprio, pequeno e inocente algoz... Eu não quis entender tudo aquilo... Corri para dentro de minha casa, em busca de uma toalha para enrolar meu pequeno tio-bisavô. Quando me voltei ao terreiro com a toalha eu o vi, montado em seu cavalo dilacerado... Fungava e me encarava raivoso, cheio de ira e ódio. Era o próprio Diabo, que me apontou o dedo e praguejou insano: ― Maldito homem de uma descendência imunda! – O mesmo que disse a meu pai – Sabes que nunca deveria ter desenterrado isto! Eu, mesmo conhecendo todas as conseqüências, agi tal qual meu avô faria e fez! Não mostrei medo. Nada tinha a perder... Fui em direção ao caixão, aonde o Diabo velava o caminho. O ignorei e avancei, cheguei até a cova, arranquei o bebê e o beijei, ignorando seus ferimentos sujos e mal cheirosos. O levantei ao alto e o Diabo recuou. Uma luz

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esplendorosa bateu sobre a criança, o Diabo começou a derreter, junto com seu cavalo. O vi gritar em desespero e condenar á si mesmo, até virar sangue pútrido e ser sugado pela terra. Limpei aquele bebê e zelei dele, o tratando como meu filho.” Depois que cuidei do pequeno bebê, de seus escabrosos cortes e cicatrizes, me voltei ao caixão. Encarei o livro “LIVRO NEGRO” já pronto e o joguei dentro do caixão, junto do diário de minha bisavó. O enterrei... Finalmente aquela maldição estava selada para todo o sempre, pois revelei o segredo de minha geração e os devolvi ao sepulcro. Me sentei na velha cadeira de meu pai. Balancei uma, duas, três vezes... A tontura me pegou, como sempre. Tentei me levantar da cadeira, mas me vi preso... Ela sozinha, balançou pela quarta vez, e a tontura me apertou. A cadeira agora balançava rapidamente e vomitei em minha roupas. Olhei estarrecido, o Diabo sair de dentro de minha casa, totalmente descarnado, com o bebê em seus braços: ― Ele é meu! – Me indagou em tom feroz. Eu não pude me defender, estava enjoado e tonto. Finalmente a cadeira se quebrou. Me arrastei pelo chão, tentando me recuperar daquele pesadelo sujo. Vi o diabo montar em seu cavalo também descarnado e mandá-lo seguir. O cavalo me olhou e não obedeceu. O Diabo se sentiu incomodado, e com o bebê nos braços, praguejou contra o animal, que não estava disposto a obedecê-lo. Ele desceu com o bebê. Vi que se sentia pesado e suava sangue pelo rosto descarnado. Me olhou aflito... Usava uma força descomunal para se movimentar... Não resistiu e se ajoelhou, implorando que eu tirasse a criança de seus braços. Eu já um pouco recuperado, me aproximei dele e tirei o menino limpo de suas mãos imundas. O traiçoeiro ainda ajoelhado aos meus pés e livre do incomodo, tocou em minhas pernas e sorriu desgraçadamente, como que se ousasse de um feito glorioso... Enfim se levantou, recuperando o fôlego. Com dificuldade montou no cavalo, este desta vez o obedeceu e os dois sumiram de nossas vistas por todo o sempre. O menino cresceu saudável junto a mim. Percebi sua

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curiosidade com relação ao pé de figueira, mas a ignorei. Não achei estranho, pois ele havia permanecido embaixo dele por décadas. Uma doença dominou minhas pernas, aonde o Diabo havia tocado com as mãos. Só então entendi toda sua satisfação... Ele me condenou... O Maldito astuto ousou e me condenou... Era gangrena. Elas foram amputadas, e aquele menino de doze anos cuidava de mim, como eu um dia cuidei dele. Certa vez, se aproximou de mim com as mãos cheias de terra e com as unhas sangrando. Quando perguntei o porquê daquilo, ele escondeu as mãos atrás das costas e me disse de cabeça baixa: ― Me desculpe papai. Olhei com dificuldade a janela, e vi debaixo da figueira o caixão desenterrado. Suei em desespero, ele saiu e minutos depois voltou, com as mãos limpas e com o livro debaixo dos braços. Se aproximou de mim, e leu as palavras descompassadas em voz baixa... Eu suei insano, pedia baixo para ele parar, mas ele não obedecia... A voz sumiu de mim, senti feridas cobrirem minha língua e me calei dentro de minha insignificância... Aleijado e acamado, fiquei condenado a ouvi-lo ler ao meu lado, todos os dias, um grande pedaço do livro, até concluí-lo, no ultimo suspiro de meu tormento.

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Tumulo Violado Dentro de uma tumba com o formato de uma capela, sobre o sepulcro podre cravado com tocos de velas secas, escorridas pelo piso de pedras lascadas e trincadas, jazia o corpo de Otávio Furgencio, notável barão do vinho, vitima de uma hemorragia interna que demorou a ser estancada, a 76 anos atrás. Lá fora, um homem maltrapilho, a sombra da fria noite de Agosto, munido com uma picareta e outras ferramentas, pronto para violar o tumulo de largos tijolos. Antes ele coloca o cigarro vagabundo entre os dentes podres e o acende, traga fundo e da uma violenta tossida, a qual resulta em uma escarrada grotesca no chão. Ele direciona a lanterna rumo ao catarro e o vê, mesclado com sangue. Ignora e continua a tragar, enquanto levanta a marreta e lança despudorado contra a porta de pedra. A porta se trinca e ele sorri, golpeia outras duas vezes, satisfeito com o resultado. Entra dentro do tumulo e avista o caixão do barão, o examina cauteloso, pega o pé de cabra e ainda sorrindo, pressiona a tampa. Após uma tremenda dificuldade a tampa começa a ranger, ele percebe que arrombar o caixão seria mais difícil que abrir tumulo. Em extrema força, a tampa finalmente sede aos esforços e trinca nas partes travadas, se abrindo enfim. Ele olha dentro do caixão e se prepara para saquear os pertences do barão, no entanto tem uma surpresa: O corpo sepultado a 76 anos atrás esta praticamente intacto, tal qual como foi enterrado! Ele se volta à porta do tumulo e rele a data da morte. Não, ele não estava enganado, realmente o barão havia morrido a 76 anos atrás. Ele se desespera, pois acabara de encontrar algo inusitado. O saqueador esperava encontrar jóias e dentes de ouro, como acontecia a saques anteriores túmulos anteriores. Ele para tremendo diante o corpo conservado. Alcança o

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maço e acende outro cigarro, traga em desespero e pigarreia mais sangue, manchando desta vez a própria boca. Ele se limpa com um lenço ainda mais sujo, tenta decidir o que fazer com o achado. Arranca o corpo mole do caixão e o coloca nas costas, sai do tumulo e caminha com extrema dificuldade até a rua desertificada, aonde uma velha caminhonete vermelha o aguardava. Joga o corpo do barão na carroceria, entra no veiculo desconfiado, olhando para os lados e sai dali discretamente. Na manhã seguinte alguém grita ao portão de uma grande casa velha, toda de madeira, caindo aos pedaços: — Seu Jorge! Acorde, homem! Jorge abre os olhos, abre a cortina encardida de trapos e encara a luz forte da janela. Vê a gorda que lhe chama. Ele faz sinal para que ela o espere, caminha até a cozinha, passa pela sala e vê o cobertor cobrindo o corpo do barão no sofá. Ele o levanta e vê a face barbuda do barão, sorri e o cobre novamente, coça o saco e vai atender a gorda: — Pois não, dona Cláudia. Cláudia, coberta com seu vestido de pano surrado, rodeado de prendedores de roupa de varal pede ao imundo: — Acode eu, que meu varal quebrou de novo, Seu Jorge! A madeira que sustentava as cordas se despedaçou e as roupas caíram todas nessa terra nojenta! Jorge se aproxima da gorda, a olha nos olhos e indaga: — Pois eu lhe disse que quebraria! Eu disse que aquele pau podre não agüentaria tanta peça de roupa, mulher! A gorda inconformada pede: — Pois me arrume aquilo! Tenho roupas para entregar ainda hoje, e sem varal eu estou encrencada. A gorda vira as costas e sai, Jorge entra na garagem e se volta ao velho carro. Abre a porta e arranca a caixa de ferramentas. Abre o porta luvas, pega um cigarro, acende e fuma. Vai até dentro da casa e novamente avalia o morto. Tenta abrir o paletó, este se rasga em sua mão. Ele olha para o peito do barão e o vê intacto como o resto do corpo. Olha para os lados e abre suas calças, que também se rasgam. Leva a mão até o pênis do barão e o apalpa, constatando que tá tudo em ordem. O grotesco coça a cabeça calva, procurando entender aquilo,

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mas o que entende é que este fato esta muito além de sua compreensão. Como explicar sobre um homem, que faleceu á 76 anos atrás e de repente se dá a entender que aparenta morreu a minutos? Sem se questionar, ele parte com a caixa de ferramentas a casa da gorda. Arrumando o varal da gorda, tinha total vista a tv da sala, que anunciava o ocorrido: — O tumulo de um importante barão foi arrombado e seus restos mortais foram retirados do local. Testemunhas viram um homem em uma caminhonete vermelha nas proximidades, arrastando algo estranho e o caso esta sendo investigado pela policia local. Seu Jorge se calou, respirou fundo e concluiu o serviço. A firme madeira sustentava o varal. A gorda lhe deu duas notas de dois reais. O troncho segurou na mão da gorda e lhe disse: — É pouco! Ela lhe sorriu, alisou o volume em suas calças surradas e prometeu: — Ao cair da noite eu passo na sua casa e lhe pago o resto! Esperando a visita noturna da dona Cláudia, Seu Jorge tratou de esconder o cadáver na caminhonete velha, o cobrindo com o mesmo cobertor surrado. Se voltou a casa, tomou um rápido banho e tentou pentear o pouco e seboso cabelo. O pente enroscava os dentes no emaranhado duro. Um ardume irritante invadiu sua garganta, Jorge correu para a pia. Lá, tossiu três vezes e cuspiu o catarro sangrento: — Maldito câncer! – Praguejou, ligando a torneira, se livrando do catarro. Escutou alguém bater em sua porta, olhou pela janela e a viu, Cláudia, trajada em seu vestido verde, pronta para pagar a divida ao nojento. Seu Jorge abriu a porta e sorriu, a gorda entrou e ele lhe deu um tapa em sua enorme bunda, ela gemeu como uma safada e adentrou, já conhecendo o caminho do quarto. A noite trouxe o vento frio na janela. Seu Jorge, abraçado com a gorda que dormia e roncava, escutou um estranho

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barulho vindo da garagem. Correu com um porrete em mãos para liquidar o invasor. Foi sorrateiro até a garagem, lentamente se aproximou da velha caminhonete, devagar puxou o cobertor e se surpreendeu: O corpo não estava mais lá. Jorge se estremeceu, então sentiu um vulto frio passar pelas suas costas. Escutou então o grito desesperado de dona Cláudia, em seu quarto. Correu desesperado para socorrê-la. Quando chegou encontrou o barão, espancando a gorda com o pé de cabra. Seu Jorge se desesperou, viu então as luzes de viaturas da policia transpassar a janela, e de lá gritou em desespero por socorro. Quando se voltou a gorda, não viu mais o barão. Os policiais adentraram a casa, miraram a arma em sua cabeça e o renderam. Ele contou toda a historia, então levou os policiais até a caminhonete, aonde o cadáver conservado do barão estava debaixo da coberta. Quando um dos policiais ergueu o pano velho, se deparou com uma ossada, que certamente pertencia ao barão. Seu Jorge ficou sem entender o porquê daquele monte de ossos estar no lugar do corpo... A justiça julgou Jorge por roubos a túmulos e por assassinato. O pobre homem não teve tempo de se defender, tampouco de cumprir com sua sentença cumprir sua sentença, pois o câncer que lhe provocava alucinações, lhe levou para onde tudo havia começado: O Cemitério.

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A Casa dos Medos

Eram tantas da noite. Carla alisava seu escapulário e bebia despojada em uma casa noturna qualquer, se lamentando da decadência de seu ser, da falta de criatividade e da demissão tão certa... Era jornalista do “Diário Popular”, jornal local onde seu finado pai havia se destacado como grande mestre: — Sou um fracasso – Se disse em um gole de marguerita – E pior que isto, sou um fracasso mal compreendido! Arrancou um cigarro da bolsa e riscou o isqueiro. Não pegou. Diante daquilo, ela respirou fundo e completou: — Fudeu... Nem acender a porra do cigarro eu consigo! Felipe se sentiu confiante. Atravessou a multidão, girando um palito de fósforo nos dedos rápidos. Nunca fora tão fácil seduzir uma moça, e ele estava seguro de si. Se aproximou glorioso, riscou o fósforo e acendeu o cigarro: — Obrigada – Agradeceu Carla. Antes que ele a paquerasse, Rosane adentrou esplendorosa na espelunca. Ganhou a atenção de Felipe, que distraído, queimou os dedos no palito ainda aceso. O DJ da casa quando á viu, tratou de colocar a musica que ela gostava, Jailbreak do AC/DC. Rosane sorriu para ele a galera se agitou. Felipe deixou Carla e foi em direção a nova presa, mesmo sabendo que precisaria mais que um palito de fósforo para fisgar aquela. Carla, a fracassada, apagou o cigarro na marguerita e a bebeu: — Fodida fodida, fodida e meia fica! Ele se aproximou cauteloso, confiante em seu ousado penteado: — Meu nome é Felipe. E o seu? Rosane nada disse. Embalada na musica que curtia, o agarrou como a uma selvagem e o beijou, engolindo sua língua e mordendo seus lábios. Quando o soltou, deixou o cara maluco: — Me chama de Rosane, meu querido... Ou do que você quiser. Ódio. Era o que Carla sentia dela. Rosane não passava de uma popular repórter policial, que cobria homicídios brutais e toda a má sorte. Na maior parte do tempo, ficava na delegacia, esperando a policia ser chamada e ia junto, de encontro a

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noticia fresca... Era mesmo uma carniceira... Mesmo assim era uma profissional ousada, considerada pela maioria dos colegas como brilhante, Carla tinha inveja da moça bem sucedida e muito bem lida, pois atrai inúmeros compradores de jornais, gente com o espírito pobre que gosta de saber das tragédias alheias. Rosane sorria desajeitada, beijando o gato que era para ser de Carla, que finalmente encontrou as cinzas de seu cigarro no ultimo gole de marguerita. César se aproximou do balcão onde ela estava. Bebia uma cerveja long neck, quando perguntou: — Noite ruim? Carla sorriu: — Mais uma entre todas os outras que já tive. Ele sorriu, bebeu da cerveja e perguntou: — Você é a Carla Cioffi, não? Filha de Jorge Cioffi, o grande mito jornalístico do “Diário Popular”. Certo? — Sim – Respondeu ela, mais uma vez chateada por ser lembrada graças ao profissionalismo do finado pai – Essa sou eu. César sorriu: — Eu sabia! Você escreve? — Sim. Estou escrevendo no “Diário Popular”. Você o lê ainda? — Só as tirinhas e a programação de cinema – Respondeu o rapaz sincero – Desculpe, mas depois que seu pai fechou os olhos, aquele jornal voltou a ser um jornaleco, cheio de porcarias. Olha lá ela – Disse apontando os olhos para Rosane, que dançava aos beijos libidinosos com Felipe – Se não fosse aquela vadia ali, que atrai leitores urubus, o jornal já tinha falido faz tempo... Carla sorriu, por compartilhar da mesma opinião que ele: — Mas ai – Continuou o agora bom rapaz – Vou prestar mais atenção no jornal, pra ler alguma coisa sua. Eu conhecia seu pai pessoalmente. Sabia que ele tinha você como filha, pois os via na coluna social. Mas não sabia que você escrevia. — Filha de peixe, morre afogada. Não escrevo como ele. Não chego nem aos pés do cara. Ele era muito foda, muito talentoso... Pra chegar ao nível do meu pai eu teria que passar tudo que ele passou, e sinceramente, para isto eu precisaria mais que uma vida. E uma vida bem mais interessante que

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esta. César sorriu: — Só precisa fazer as matérias certas, furos de reportagens como ele. O telefone de Rosane tocou. Ela largou dos lábios de Felipe e atendeu. Era Francisco, o repórter de plantão na delegacia de policia: — Rosane! Corre para antiga casa dos Pedrosos! Novos homicídios lá, o cara ficou louco e matou toda a família! Corre pra lá que é um furo de reportagem do caralho! Rosane desligou o celular desajeitada. Discou para seu fotografo. O aparelho estava desligado. Ela se desesperou. Carla de longe percebeu sua afobação. Se aproximou dela com César e perguntou: — O que houve Rosane? Ela sorriu, como se recebesse boa noticia: — Novo homicídio na casa dos Pedrosos! A nova família que se mudou á uma semana foi morta pelo pai! Tenho que ir pra lá urgente, mas não consigo contactar o puto do fotografo! César ainda tímido se pronunciou: — Bem... Eu fotografo. Se eu puder ajudar... — Você tem uma câmera ai? — Sim – Respondeu ele – No carro. Eu sempre carrego meu equipamento. Fotografo e filmo casamentos, formaturas e outros eventos. — Excelente. Vamos comigo! Felipe desesperado perguntou: — Calma ai, gata! E nosso lance? Rosane sorriu profissional, sem responder. César a seguiu e Carla chocada por perder mais um pra moça, olhou para Felipe arrancar a caixa de fósforos do bolso e descaradamente perguntar: — E ai, anda vai querer fumar aquele cigarro? De repente César voltou no salão, a segurou pelos braços e falou: — A Rosane disse que você pode vir com a gente! Isso vai virar um caso alem das paginas sangrentas que ela escreve, é sua grande chance de escrever uma grande matéria! Carla que não sabia cavar oportunidades como o pai, sorriu com a ajuda do novo amigo. Felipe foi atrás deles para ver de

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camarote a grande tragédia. Chegaram à casa as pressas, no carro de Rosane. Os quatro desceram e estranharam... Não tinha nenhum carro policial estacionado na frente da casa. Rosane viu pela janela o homem conversando normalmente com a esposa na sala, e depois ir a cozinha. Do lado de fora disse preocupada: — Que merda é essa? Esta tudo normal! O Francisco se enganou? Discou para o repórter policial e perguntou estressada: — Puta merda, Francisco! Você recebeu informação errada! Não tem homicídio algum na velha casa dos Pedrosos! O homem assustado perguntou: — Do que diabos esta falando, Rosane? — Não seja imbecil! Você me ligou dizendo que o novo morador ficou louco e assassinou toda a família! Francisco sorriu: — Você deve estar louca... Hoje estou de folga. Estou é em casa, tentando fazer sexo com minha senhora, e você esta atrapalhando tudo! Você é broxante, sabia? Rosane desligou. Olhou para os três sem nada entender e disse constrangida: — Acho que me equivoquei. Eu devo estar ficando louca... Foi alarme falso, gente, desculpa. Os quatro estavam na calçada. Felipe olhou pela janela da cozinha e viu que o homem segurava uma grande faca. Sorriu atento, e viu o homem caminhar e surgir já na grande janela da sala, próximo a esposa que lia uma revista, sentada no sofá. O viu empunhar a faca raivoso e indagou: — Meu Deus! Olhem aquilo! Os três olharam. O homem voraz, de trás do sofá esfaqueou a esposa, que segurava seus braços enquanto recebia inúmeros golpes, até amolecer... César impressionado olhou para Carla: — Precisamos avisar a policia! Rosane com o aparelho na mão discou... Carla olhou o homem subir as escadas e disse preocupada: — Não vai dar tempo da policia chegar! Pode ter mais alguém lá em cima... Talvez até crianças! — Precisamos fazer alguma coisa – Bradou Felipe preocupado – Vamos impedir!

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Os três abriram o grande portão e entraram. Rosane em estado de choque tentava discar para policia, mas o celular só chiava... — Preciso de outro aparelho! Entrou atrás dos amigos, para pegar outro celular emprestado. Quando entrou o grande portão se fechou... Ela assustada se voltou às grades. Não conseguiu abrir e apavorada, correu em direção aos outros. César e Felipe arrombaram com dificuldades a grande porta... Entraram na sala e viram a mulher ainda se estrebuchar na sala, golfando sangue: — Meus filhos... Os salvem – Disse ela em desespero, com a barriga com inúmeros buracos. A mulher fechou os olhos e se entregou a morte. Eles não entenderam como ela ainda conseguiu falar. César bateu uma foto. Carla o olhou e admirou seu profissionalismo diante de tudo aquilo. De repente, ouviu um grito de menino vindo lá de cima: — Meu Deus! – Se desesperou Carla. Subiram as escadas as pressas... A porta de um dos quartos estava arrombada... O pai estava na cama de um dos filhos pequenos, o esfaqueando descompassado, enquanto o outro chorava em um canto, pronto a ser o próximo. César segurou um quadro posto no corredor e atingiu a cabeça do homem, que raivoso largou o cadáver do menino e se voltou a ele, munido com a faca. Rosane arrancou a gaveta da cômoda e bateu na cabeça do homem... Carla e Felipe tentavam segura-lo, mas ele estava totalmente fora de si, disposto a estraçalhar o que visse a frente. César recebeu uma facada no braço. Gritou de dor, enquanto Felipe desferiu um forte soco na cabeça do homem bigodudo. Este mal sentiu o golpe, se voltou a Felipe com sede de sangue, até um pedaço de ripa afiado invadir seu crânio e sair em seu olho esquerdo. A ponta da ripa com o olho espetado ficou a milímetros da face desesperada de Felipe... O homem se virou cambaleando... Se aproximou da janela e caiu lá de cima... Os quatro olharam para baixo e o virão, empalado em cima do cercado da horta, feito de outras ripas pontiagudas. Carla que desferiu o golpe fulminante, abraçou César chorosa, lamentando ter que fazer o que fez:

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— Está tudo acabado, Carla... Você fez o que tinha que fazer... O desgraçado estava descontrolado, você nos salvou do pior! Rosane abraçada com o menino de seis anos disse: — Não consegui ligar para policia! Vim buscar o celular de vocês. César com o braço sangrando discou para policia. O celular de Felipe tocou, numero desconhecido. Ele atendeu e era César: — Porque discou pra mim? De onde conseguiu meu numero? César o olhou assustado: — Não tenho seu numero! Disquei para policia e caiu em você... Todas as vezes que discavam para policia, caia no numero de um deles. Se olharam indignados. Rosane foi cobrir o menino morto na cama. Reparou que era gêmeo do outro pequeno. Olhou para o irmãozinho e disse chorosa: — Sinto muito... Eu te prometo que tudo ficará bem. César amarrou um pano velho no braço cortado. Se aproximou do garoto e perguntou: — Alem de seus pais, tem mais alguém na casa? — Sim – Respondeu o menino com o rosto em lagrimas – Minha irmã, Talita. Ela está no quarto ao lado. Carla se aproximou do quarto, abriu a porta e deu de frente com uma moça... Foi até ela, estava com os pés e as mãos amarrada na cama. Uma grande câmera de vídeo posta em um suporte se direcionava a ela. O olho estava roxo e a coitada estava sem as peças intimas. Tinha uma grande quantidade de fitas cassetes no quarto. César entrou curioso pegou uma, todas estavam com datas. A colocou no aparelho velho e viram imagens do pai violentando a filha: — Deus meu – Disse Felipe indignado – O sujeito era um monstro! César passou a mão na cabeça e disse preocupado: — Temos que sair daqui e avisar a policia! A menina acordou... Olhou para os lados e sorriu. Diante dela, Carla impressionada alarmou: — Como ele pode fazer tudo que fez? Desamarraram a menina. Carla a cobriu com o lençol, a

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coitada estava fora de si, parecia que havia sido drogada pelo pai... César abriu as gavetas e constatou inúmeras seringas e comprimidos: — Que insano... Ele a dopava para ela não oferecer resistência... A deixaram no quarto. Correram em direção ao grande portão. Tentando inutilmente abri-lo. A chuva começou a cair desgraçadamente: — Estamos presos aqui – Disse Felipe – Temos que pular o portão... Ao menos um de nós precisa fazer! Carla olhou para o cadáver do homem sujo espetado na cerca de balaustra. Se voltou aos amigos e os lembrou: — É muito alto. — Acho que consigo – Disse Felipe, pronto para subir. Todos concordaram. Rosane olhou para o alto, viu três linhas de fios correrem pelo muro e contou: — A cerca é elétrica. Esta chovendo... É muito perigoso. — Tenho que tentar. Torçam para estar desligada. Quando Felipe se aproximou da grade seu coração disparou. Estava totalmente molhado... Segurou a respiração e tocou nela... Uma grande corrente elétrica percorreu seu corpo... Permaneceu colado na armação, se estrebuchando em meio ao chão molhado: — Não toquem nele – Disse César – Se tocarem ficaram coladas e tomaram o choque também! Pegou um grande galho seco e golpeou fortemente a barriga de Felipe, que caiu para trás babando... — Temos que levá-lo pra dentro! O arrastou para longe dali com a ajuda de Rosane. Carla olhou para a cerca de balaustra e se impressionou: — O desgraçado não esta mais lá! Os dois olharam e lamentaram. Rosane respirou fundo e respondeu: — Ficaremos seguros lá dentro... Até resolvermos o que fazer. Vamos entrar. Carla cobriu o cadáver da mulher no sofá. Rosane forrou um edredom no chão da sala e cuidava de Felipe ainda desmaiado, o menino sentado em outro sofá brincava com seu boneco, parecia que nada estava acontecendo. César olhou as escadas e

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decidiu olhar a menina no quarto... Felipe respirava aos poucos, recobrando a consciência, mas ainda tinha partes do corpo com graves queimaduras. César abriu a porta devagar e a viu deitada na cama... Seus olhos medrosos a flagrou se masturbando e gemendo... Diante daquilo ele se impressionou, ela sentiu sua presença e o convidou a entrar... Com medo, César trancou a porta e caminhou até o outro quarto com o menino morto. Um monte de insetos o devoravam, enquanto o pano que o cobria estava no chão. César olhou para o chão frio e flagrou insetos caminhando em direção a ele. Fechou rapidamente a porta... Sem querer pisou em cima da correição de formigas que levavam minúsculos pedaços da carne do garoto: — Essa casa... Essa casa esta amaldiçoada! Olhou novamente pelo buraco da fechadura do quarto da menina, e deu de frente com seus olhos grandes e azuis... Se afastou com o coração disparado... Correu em direção aos amigos. Felipe já conversava normalmente, mas ainda estava deitado no edredom. Rosane olhou lá fora, acompanhou um vulto passar pela janela. Viu a porta da sala arrombada por eles e correu até ela. A trancou, colocando contra a maçaneta uma grande e velha mesa. Olhou para os três e disse: — Talvez estejamos seguros aqui dentro. Mas só talvez. Temos que ficar juntos até o dia amanhecer... Carla olhou para o relógio que acusava onze e meia. Se voltou a Rosane e disse desanimada: — Acho que esta noite vai ser bem longa. A porta da cozinha bateu. César correu em direção a ela e viu pelo vidro o homem com a ripa atravessada no olho esquerdo tentando entrar. Se desesperou e empurrou o fogão contra a porta... O homem era forte e a forçava... César pediu ajuda, Felipe mal conseguia se mexer, as meninas foram ajudá-la, juntos arrastaram a geladeira pesada para proteger a porta. Lá na sala, Felipe deitado, olhou para o menino brincando com o boneco. O menino se aproximou dele. Sorriu. Foi até o ferro de passar roupa, arrancou a tomada e emendou cada ponta em um pedaço de ferro, retirados da mesa que escorava a porta da sala. Se levantou... Felipe o olhou assustado... O

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pirralho arrancou o pipi pra fora e urinou na cabeça dele... Felipe estava com os nervos atrofiados devido ao choque... Mal conseguia falar... De olhos arregalados tentava entender a intenção do garoto... Balbuciava, implorando para que ele parasse com aquilo... Este lhe sorriu novamente, com a tomada na mão... Os três estavam ocupados segurando a porta... O garoto riu e ligou a tomada... Felipe recebia a nova descarga elétrica e tremia no chão molhado pela urina. O garoto se voltou a seu boneco e continuou a brincar... Uma fumaça saia do corpo de Felipe, enquanto ele batia os dentes e se entregava ao eletrocutamento... Carla sentiu o cheiro de queimado vindo da sala... Deixou César e Rosane segurando a porta e correu em direção a Felipe... Encontrou seu cadáver em chamas, enquanto o menino brincava, como se nada tivesse acontecido... César em desespero sentia o defunto esmurrar a porta protegida por ele e por Rosane, prestes a arrombá-la... Olhou para as cadeiras de ferro e enfim sugeriu: — Não agüentaremos a porta por muito tempo... O desgraçado tem uma força incomum! Vou soltar, pegar uma cadeira daquelas e quando ele avançar, eu o golpeio... Depois que ele entrar vá até a sala e veja se a mulher também esta viva e a destrua! Carla esta lá e pode ser atacada. Rosane tremeu, consentiu, sabendo não ter outra saída. César soltou a porta, abraçou a cadeira de ferro... Rosane correu na gaveta e pegou um facão de cortar carne, o guardou na cintura... O morto ganhou mais apoio e empurrou desesperado a porta... A geladeira que a protegia tombou, Rosane correu até a sala, se aproximou do sofá e descobriu o cadáver. Carla olhava perplexa Felipe queimar: — Carla – Disse Rosane em desespero, enquanto constatava se a mulher estava viva – Precisamos de você! Ele já está morto, deixe-o e nos ajude... De repente o cadáver da mulher morta segurou Rosane pelo punho. Rosane congelou de medo. O menino olhou curioso e sorriu, vendo a mãe morta-viva. Carla segurou no pescoço da mulher morta, tentando esganá-la para soltar à amiga... Rosane alcançou a faca na cintura com a outra mão e com um único

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golpe, decepou o pulso do cadáver, o decepando e se vendo enfim livre. Carla tomou a faca da mão da amiga e a cravou na testa da mulher, que de olhos arregalados, parou de se mexer... Enquanto na cozinha o defunto avançou voraz em direção a César, que segurava a cadeira de ferro, quando o desgraçado se aproximou, recebeu um golpe triunfante. César com estilo o golpeou outras vezes, firme em destruir aquele ser abominável... O sangue sujo do morto espirrava por toda a cozinha... César em ira eterna o esmagava feroz... Sentia seus ossos se quebrando e sua carne se soltar, espancou com firmeza para o infeliz nunca mais caminhar entre os vivos... Largou a cadeira depois que o defunto virou carne moída. Sorriu satisfeito e vitorioso. Carla pegou o lençol que cobria a mulher. O menino apenas as olhava, tentando descobrir o que fariam com a mãe: — Melhor acabarmos logo com isto... Vamos destruir ela... Eles estão todos amaldiçoados! César entrou na sala, segurando a cadeira pesada e ensangüentada: — Rosane tem razão... Vamos trancar o menino e atear fogo no casal e na outra criança morta... Tudo isto aqui esta alem de nossa compreensão... Ou nos livramos dos corpos ou corremos o risco de ser brutalmente massacrados por eles, tal qual o Felipe! — Sim – Respondeu Carla – Mas e quando tudo isto acabar pela manhã? Como explicaremos as autoridades que colocamos fogo nos cadáveres? Vamos dizer que antes disto eles ressuscitaram e nos atacaram? Não vão acreditar! Vamos deixá-la trancada na dispensa, vamos até o quarto onde esta o menino morto e trancá-lo. Temos que nos precaver... Felipe já esta morto, já perdemos muito nos envolvendo em tudo isto... Rosane se aproximou do garoto. Se abaixou diante dele, colocou o dedo em seu queixo e fez com que olha-se pra ela: — Ei menino... Conta pra mim... Quem fez isto com o Felipe? Foi você? O menino com cara chorosa apontou o dedinho para a mãe: — Ela me mandoueu fazer! Rosane se levantou. Olhou para Carla e disse atrevida:

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— Que se foda! — O que? – Perguntou Carla não entendendo. — Eu disse que se foda! Eu curtia aquele cara que agora tá torrado ali! Se quer saber eu tava caindo na lábia dele e se não estivéssemos aqui, ia rolar muita sacanagem no meu apartamento! Não gosto que toquem no que é meu! Que se foda as explicações de amanhã! César esta certo. Temos que queimá-los, como insetos que são! Caminhou até a sala, em um balcão cheio de copos. O abriu e viu bebidas. Pegou um litro de Control e voltou em direção a mulher. Jogava a bebida por cima dela. Esta, com a faca cravada na testa e sem o punho dizia chorosa: — Por favor... Eu estou viva! Rosane sorriu, olhou para o cadáver queimado de Felipe e disse: — É, mas ele não! César e Carla não ousaram discordar. Subiram até os quartos onde o menino morto e a menina nua estavam. — Tem insetos... Formigas e insetos devorando o cadáver do garoto... Temos que tomar cuidado. Acho que o melhor a fazer é isto mesmo... Precisamos queimá-los. Temos que sobreviver a isto, não podemos facilitar. Rosane riscou o fósforo. O menino largou o boneco, se levantou e indagou feroz: — Não faça isto com ela sua vagabunda! Rosane o olhou curiosa. Ignorou o pedido e jogou o fósforo no corpo da mulher... As chamas a cobriam e ela gritava agonizante, dizendo estar viva. O menino pegou um dos pés da cadeira e bradou: — Eu disse pra você não fazer! Rosane se afastou do garoto de apenas seis anos... Sorriu ainda curiosa com o que aquela criaturinha mirrada poderia lhe fazer: — Você tá merecendo umas chineladas, pivetinho! O menino irritado foi com tudo em direção a ela. Rosane segurou na barra de ferro e a tomou dele: — Que coisa feia! Vai ser um monstrinho igual seu pai? O dominou pelo braço e o segurou pelo pescoço: — Eu vou destrinchar você sua vagabunda... Você não devia ter se metido em tudo isto!

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Rosane se arrepiou, jogou o menino no chão e percebeu que não era mais ele: — Não tenho medo de nada – Disse ela o encarando – Já passei pelo pior na vida! Com cautela César abriu a porta do quarto escuro do garoto. Acendeu a luz fraca e o viu, sentado na cama, comendo os insetos que retirava do próprio corpo. Carla se arrepiou, o menino gêmeo do outro que estava com Rosane, os olhou. Os olhos brilhavam avivados, e ele sem deixar de comer os insetos, disse aos invasores: — Vocês estão condenados... Foram arrastados pra cá e agora farão parte da maldição deste lugar... Carla se aproximou. Ele parou de devorar os insetos e lhe disse: — Seu pai era um homem notável, Carla... — Como sabe de meu pai? O garoto colocou o dedo na correição de formigas, dezenas delas subiram em seu dedo miúdo. Ele pôs o que pode na boca e contou: — Sei muito mais dele que você... Ele cobriu o massacre dos Pedrosos... Este lugar tem historia, historia esta que ele contou no maldito jornal. Mas ele não contou tudo. Contou apenas aquilo que as pessoas conseguiam entender. E fez muito bem... Mas e você, Carla Cioffi? O que contara amanhã no jornaleco falido? Carla se assustou olhou para o menino sem nada entender. César a segurou pela mão e sugeriu: — Melhor sairmos daqui! A porta então se fechou, os trancando lá dentro. O menino os olhou e perguntou: — Vivos? Rosane estava com o menino totalmente dominado, amarrado no chão, olhando a própria mãe queimar e pedir ajuda. A moça sorriu pelo feito, se voltou ao armário e encheu um copo com wyskey. Bebeu um gole olhou para a porta e o viu, esplendoroso de terno e gravata, a olhando aos risos: — Roxane – Indagou admirado. Ela sorriu. Bebeu mais um gole e o corrigiu:

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— Não é Roxane, já falei... É Rosane, Jorge Cioffi... Era o pai morto de Carla. Rosane se aproximou do homem morto, de pé diante dela. Ele pediu que ela parasse, limitando seu espaço entre os vivos: — Roxane... Roxane do “The Police”. Era bem assim que eu gostava de te chamar, você se lembra? Rosane chorou saudosa: — Sim, amor... Eu me lembro... Eu sento sua falta... Ele a olhou serio: — Rosane, vocês precisam ficar juntos... Precisam sobreviver a tudo isto. Esta casa esta amaldiçoada, condenada ao caos... Eles querem destruir vocês, querem ser lembrados à custa da violência e do ódio. Por favor, Rosane... Fiquem juntos e atentos, não os deixem vencer, não se deixem levar pelo ódio. Se controle, mulher! Se controle e se mantenham firmes até o amanhecer! Rosane sorriu. O fogo cobriu Cioffi e o inferno lhe arrastou de volta, depois que ele terminou de lhe dizer: — Eu só vim te avisar, Roxane... Cuidem-se... Rosane abandonou o copo. Olhou para o menino e perguntou: — Você viu isto também, pirralho? O garoto cuspiu raivoso no chão: — É – Disse ela – Foi o que eu pensei! César se aproximou da porta e tentou abri-la... Não conseguindo começou a chutar... O menino que devorava insetos sorria, Carla foi junto ao amigo e tentaram escapar dali. De repente, sentiu as formigas subirem em suas pernas. César também se sentiu infestado... Outros insetos esvoaçavam pelo quarto e posavam sobre eles... O menino sorriu ainda sentado, apreciando o ataque. César e Carla sentiram o corpo sendo dominado e ferroado por milhares e milhares deles, que chegavam aos montes pela janela aberta. Rosane lá debaixo escutou os gritos e subiu as pressas pela escada... A porta do quarto da menina se abriu. Ela saiu nua lá de dentro e sorriu para Rosane: — Merda – Indagou Rosane, lamentando a sorte. A moça a sua frente sorria abrindo as mãos... Mostrava suas unhas cumpridas e sujas. Rosane as olhou, enquanto escutava os gritos desesperados de César e Carla, dentro do quarto com

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o garoto: — Pensa em ajudá-los? – Perguntou a moça nua – Sabe que terá que passar por mim... Te digo que não será fácil! César se debatia, arrancando os formigões e outros insetos que mordiam seu rosto já todo coberto... Carla gritava tentando abrir a porta e se batendo em desespero... Estavam condenados, enquanto o menino morto sorria, devorando outros insetos. Rosane foi para cima da moça e logo tomou uma unhada no rosto branco. O sangue desceu nos três riscos da bochecha... A moça sorriu sádica. Rosane em ira a pegou pelos cabelos e a esmurrou no limite do ódio... As duas se unhavam e puxavam os cabelos... Rosane estava desfavorecida, a moça parecia não sentir dor e ria da fraqueza da rival. Rosane no chão rolou com ela até os pés da escada, então teve a idéia... Deu uma joelhada no estomago da moça nua e a viu se levantar quase sem ar... Rapidamente foi até ela, se aproveitou de sua fraqueza empurrou escada abaixo... A moça despencava com seu corpo pelado e moreno, tentando se segurar na parede com as unhas cumpridas... Acabou por chegar ao chão de cabeça, quebrando o pescoço... Lá de cima Rosane viu a poça de sangue se formar em volta da moça morta... Vitoriosa, correu até o quarto do garoto e abriu facilmente a porta. César e Carla saíram lá de dentro em desespero... Rosane tentava ajudá-los a remover os insetos, os tacando no chão e os esmagando com os pés... Quando conseguiu libertá-los, olhou o menino grunhir diante dela e pular a janela, escalando a parede até o telhado... Os três olharam para cima e o sentiram caminhar sobre a casa... As telhas trincavam e faziam um barulho estranho, enquanto ele continuava a grunhir como um inseto... Rosane os olhou com o rosto dilacerado. César viu a porta do quarto da moça aberta e perguntou: — Onde ela esta? Rosane apontou para a escadaria, lá abaixo a moça morta de cara no chão, com o pescoço quebrado e a poça de sangue em volta da cabeça: — Temos que queima-lá! – Indagou Carla – Ela é mais perigosa agora!

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Rosane toda cortada caminhou pelo corredor dizendo: — Preciso ir até o banheiro limpar esses cortes... Carla estranhou ela abrir uma porta segura que era o banheiro: — Como sabe que o banheiro fica ai? Rosane sorriu. Olhou para trás e perguntou: — Quer mesmo saber, lindinha? Já estive aqui antes, ainda na época de seu pai. Carla e César se aproximaram dela, Rosane despudorada contou: — Quando comecei minha carreira de jornalista, tive muito apoio de seu pai, Carla... E se quer saber, ele me ensinou tudo que eu sei. Quando o senhor Valério Pedroso ficou louco, estuprou e matou a filha e a esposa... Foi a maior tragédia desta cidade de merda! Na reconstituição do crime, o desgraçado conseguiu uma brecha e se suicidou aqui dentro, uma semana depois de tudo. Seu pai investigava o caso, na condição de repórter policial. Eu tinha apenas 17, e era leitora assídua do trabalho dele. Um dia ele me convidou para vir até aqui, sabe... Conhecer a cena do crime, ver como as coisas funcionam... Eu aceitei. E a partir dali começamos a ficar juntos... Ele tinha acesso a esta casa, era o trabalho dele saber tudo sobre os Pedrosos, e usávamos este lugar para ficarmos noites e noites juntos. Acho que fudemos por esta casa inteira... Seu pai me tornou tudo que eu sou... Eu o amava... O amava como profissional e como homem. Carla ficou sem palavras diante a descoberta do caso do pai bem casado. Em um minuto pensou na mãe, nos irmãos, na família bem estruturada... Uma grande mentira! Rosane antes de fechar a porta do banheiro confessou: — Ele apareceu para mim hoje, na sala... Disse para nos cuidarmos e ficarmos juntos até tudo isto passar. César interrompeu seus pensamentos a puxando pelo braço: — Ei, Carla! Temos que nos livrar do corpo da moça! Os dois foram até os pés da escadaria, olharam para baixo e apenas encontraram a poça de sangue. Assustados, se olharam e desceram. Lá embaixo o menino ainda estava amarrado. Carla o olhou e sentiu pena. César passou as mãos na cabeça e condenou: — Estamos encrencados! Ela esta por aqui e vai nos atacar! O menino estava normal, sem traços de possessão. Carla

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ousou desamarrá-lo e o abraçou: — Tudo ficará bem, eu te prometo... O menino em lagrimas se sentiu seguro. Rosane no banheiro limpava os cortes da bochecha... Ligou a torneira da pia e enquanto se olhava no espelho, embebedava um pano com água e passava no ferimento profundo. Tinha mais ferimentos por todo seu corpo, as longas unhas da moça dilaceraram até sua roupa de oxford para invadir sua carne. Arrancou todas as peças, nua, lamentando os cortes bizarros em seu corpo delineado. Escutou um barulho vindo do box. Se arrepiou quando alguma coisa pesada caiu do vitro pequeno, dentro da banheira! Abriu ousada a porta de correr e constatou com espanto: Era a moça morta. De pescoço quebrado, deitada na banheira virou a cabeça e a encarou. Sorriu em desvantagem e colocou a própria cabeça no lugar: — Rosane... Ou Roxane, aos íntimos... Você pensou que seria tão fácil, não? O coração fraco de Rosane disparou. Ela tentou inutilmente abrir a porta, a moça morta colocou os dedos nos lábios frios e contou: — Estamos tranqüilas aqui... Ninguém nos incomodará, minha querida... Na sala, Carla olhou atenta para as brancas paredes que pipocavam... César se aproximou e a olhou com atenção: — Merda, Carla! Formigas! Formigas, besouros e até escorpiões! Precisamos dar um jeito de sairmos daqui! Aos poucos chegavam mais insetos... O menino medroso e livre da possessão abraçou Carla, que o consolou dizendo que tudo acabaria bem. César foi até ele e perguntou: — Tem alguma arma nesta casa, garoto? O menino pensou por segundos e confessou: — Meu pai tem uma espingarda no quarto dele... Ele á esconde em cima do guarda roupa para não alcançarmos. No porão tem algumas coisas de caça, meu pai caçava sempre na primavera. César perguntou onde ficava o quarto do casal, o menino

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apontou para frente e ele correu até lá. Carla olhou para a porta que dava ao porão, arrancou o escapulário do pescoço e pôs no menino: — Vou até o porão achar alguma coisa... Fique com este escapulário, ele te protegerá do mal. Prometo voltar rápido. O menino com medo segurou com força o escapulário. Carla foi até a porta e a abriu, olhando fixamente toda aquela bagunça. No banheiro, Rosane tremula enfrentava a irá da moça morta. Um frio arrasador entrou pelo vitro aberto e ela nua como sua algoz, sentiu um frio congelante lhe dominar. A moça se aproximou dela e a tocou nos ombros... O calor vindo de suas mãos parecia ser do inferno, mas a aquecia da turbulência do frio noturno. Rosane se sentiu protegida por segundos... A moça se aproximou de sua orelha gelada e com o quente hálito balbuciou: — Ele te chamava de Roxane... Não? Rosane não mais tremia de frio, tampouco de medo... Se lembrou de Jorge... A moça lambeu sua orelha e arrastou levemente a mão até seus seios médios... Rosane parecia hipnotizada... Se entregava sem pudor as caricias da morta. Desceu com a língua até seu corpo dilacerado... Rodeou com a ponta o umbigo, com as mãos massageando seus quadris. Rosane ainda hipnotizada forçava a cabeça da moça morta até seu sexo... A língua da morta se esticava até sua vagina, a invadindo mais e mais... Rosane em desejo extremo apertou a cabeça da morta e deixou o orgasmo lhe dominar... Quando terminou caiu em si, e sentiu a língua longa lhe adentrar já na carne viva... A empurrou já acordada, a morta limpou a boca babada pelo sumo de seu sexo, sorriu e a condenou: — Espero que tenha se divertido... Você tem um gosto delicioso! Rosane não encontrou armas para se defender, a moça morta lhe desferiu um novo corte com a unha, seguido de outros e outros... O sangue grosso e quente escorria de seu corpo... Rosane tentava forças para lutar, mas era dominada e ganhava novas dilacerações... Tombou impotente... Sua garganta

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também cortada impossibilitava um pedido de ajuda... A moça sentou sobre seu corpo deitado, lambeu as unhas com pedaços finos de sua carne e disse aos risos: — Realmente você é muito gostosa, Roxane... A mão direita da moça entrou com tudo no estomago de Rosane. Arregalou os olhos e sentiu a mão vagar por dentro de seu corpo... O sangue sujo saia de sua boca em pedidos de ajuda... Sentiu a presença de Jorge Cioffi, que segurou no ombro da morta e implorou que ela parasse: — Chega... Por favor... Já esta feito... Deixe-a ir em paz. A morta arrancou a mão ensangüentada de dentro de Rosane e sorriu leve, a abandonando agonizante. Saiu pelo mesmo vitro que entrou. Jorge abraçou Rosane e disse calmo: — Esta tudo bem agora, Roxane... Esta tudo bem... Rosane sentiu o abraço da morte e se entregou, no frio congelante das trevas. O menino só na sala sentiu a presença maligna lhe rodear. Fechou os olhos e apertou firme o escapulário... Os espíritos sombrios agonizaram e sumiram de perto dele. No porão, Carla encontrou um arpão de cabo longo, se sentiu satisfeita e de lá saiu às pressas. César ainda não havia voltado. No quarto do casal, César com a espingarda na mão, estava tão admirado que não viu a janela se abrir. Olhou para a cama e a viu, deitada ainda nua. Era a moça morta. Ele a encarou, mirando em sua cabeça... Ela sorriu e se masturbou em sua frente... César sentiu seu espírito se elevar... A arma caiu no chão e ele perdeu o controle e o rumo da situação... A moça morta sorriu se aproximou dele e abriu suas calças: — Não tema, lindo... Eu só quero te fazer feliz Carla viu uma quantidade maior de insetos nas paredes... A telha da casa se quebrava com mais violência. O susto a dominou e ela deu de frente com Rosane, morta e nua, com inúmeras dilacerações pelo corpo. A olhou perplexa, então diante dela surgiu seu pai: — Papai... Ele limitou seu espaço, pedindo para a filha não se aproximar

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dos dois. Abraçou Rosane para aquece-lá e bradou: — Isto tem que acabar, amor – Olhou para cima, em direção ao barulho infernal e profetizou – O menino vai descer, se o fizer vocês não terão chance... Vocês precisam sair daqui, e a única forma daquele portão se abrir é o sacrifício... — Sacrifício? O homem balançou a cabeça e olhou para o menino medroso. No quarto, César fora de si, possuía despudoradamente a moça morta... Ela como uma selvagem dilacerava suas costas enquanto rebolava em seu sexo. César no limite do prazer se deitou na cama, totalmente entregue a morta que se remexia feito uma cobra sobre ele... Quando gozou satisfeito, caiu em si... Ela com as unhas em seu peito sorriu majestosa, pronta para lhe matar. As unhas finas e quebradiças cortaram sua carne e adentraram milímetro por milímetro... De repente, a ponta do arpão entrou pela costas da moça nua... César com ela ainda sentada sobre ele, viu o meio de seu peito se abrir e seu sangue ainda quente cair sobre ele. A moça morta golfou mais sangue, o arpão foi e voltou em três novos golpes. Ela sentada sobre César, olhou para trás com o pescoço quebrado, então viu Carla com ira, segurando o arpão ensangüentado: — Vaca amaldiçoada de merda! – Praguejou a morta. Carla sem pudor, a perfurou no pescoço, atravessando violentamente o arpão. E quando o puxou de volta, trouxe com ele sua cabeça. César empurrou o cadáver decapitado da moça, se limpou daquele banho de sangue e se vestiu... Abraçou Carla e disse com medo: — Temos que sumir daqui! A maldição é muito forte... César pegou a espingarda e os dois foram até a sala... As paredes que eram brancas estavam cobertas por milhares e milhares de insetos. Carla munida com a faca deixou uma lagrima escorrer de seus olhos... Se direcionou a César e confessou chorosa: — Só a um jeito de sairmos vivos de tudo isto... Foi corajosa até o menino, o deitou no chão e disse sem parar de chorar: — Tudo ficará bem meu amor... Eu te prometo...

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O menino de olhos fechados apertou firme o escapulário, Carla com toda a coragem do mundo aproximou a faca de seu pescoço... O garoto rezava para o escapulário livrá-lo de tudo aquilo... O telhado roia mais violento e César, testemunhando o sacrifício, nada falou, pois queria sair logo daquele inferno... Sentiu o forro roer... Se armou com a espingarda e bradou a Carla: — Faça logo, mulher! Carla esperava coragem... O menino abriu os olhos, respirava fundo e a olhava apavorado: — Feche os olhos meu amor. – Pediu Carla tremendo. Ele não fechou... A faca deslizou afiada em seu pescoço fino... O sangue escorria e ele tremia nas mãos da mulher... Carla e César escutaram o portão se abrir depois do ultimo suspiro do menino... Olharam vitoriosos e se prepararam para sair, quando o forro rachou e o outro menino morto caiu violentamente lá de cima. César o olhou em desespero. Ele se levantou e seu corpo começou a tremer... De repente, grandes patas de insetos brotaram de seu tórax... Ele entregue a aberração, sentiu seu corpo se rasgar e um gigantesco inseto peludo sair de dentro de si. César munido com a espingarda olhou os outros insetos lhe cercar... Carla o puxou pelo braço para seguirem para fora da casa e do quintal... Sairão esmagando e sendo alvejados por insetos... César abandonou a espingarda e sentiu um ferrão grande lhe vara as costas... Próxima ao portão, Carla parou de correr e tentou ajudá-lo... O grande inseto lhe trouxe até ele com o ferrão de seu abdome e devorou sua cabeça... Carla lamentou e em desespero tentou correr... Caiu no chão e milhares de insetos a cobriram... Ela se arrastava até o portão, arrancando forças para fugir de todo aquele inferno. O inseto gigante corria com suas seis patas em direção a ela, que se arrastava cada vez mais próxima de sua liberdade... Quando chegou na calçada, os insetos que a cobriam caíram secos no chão... Carla se levantou vitoriosa e viu o inseto selvagem grunhir de ódio... A sala vazia começou a queimar leve... O fogo se espalhou avassalador e logo tomou conta de tudo... Carla viu o fogo correr o quintal e o inseto gritante

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agonizar nas labaredas insanas... Parecia que o próprio inferno devorava voraz a propriedade... Carla se ajoelhou diante as chamas e sorriu em comemoração, por ter sobrevivido a toda aquela desgraça. 8 Meses Depois Na feira de livros, Carla autografava orgulhosa os exemplares dos leitores. Olhou seu nome na capa, logo acima do título: “A Casa dos Medos”. Sorriu e se lembrou de todo o passado, detalhado em ficção. Enquanto palestrava a pequena multidão de fãs, viu de cima do palco um menino com o pescoço enfaixado. Tentou ignorar aquela imagem, mas não conseguia. Quando terminou o menino se foi junto com os outros. Abriu sua bolsa e arrancou calmantes de lá... Estava só na grande sala, quando sentiu o vento bater... Não tinha janelas abertas e ela lamentou. Olhou para trás e deu de frente com o garoto, com o escapulário no pescoço e a grande faca na mão esquerda. A faca correu até sua barriga, ele a consolou em seu pequeno ombro e disse a seu ouvido: — Feche os olhos meu amor... Tudo ficará bem, eu te prometo...

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O Perdão

Esfinge solta no tempo modela o caráter desigual da besta que ressurge em meio a discórdia humana. Homem morto na senzala, pútrido, atacado pelo algoz dono seu. Este em posse de um machado, o dilacerou e deixou em meio aos outros escravos, os mesmos eram obrigados a conviver com o cheiro do companheiro morto. Me diz do tempo que corre solto enquanto corremos de nossas obrigações. Me diz deste escravo morto por abater um garrote, para seus companheiros matarem a fome... Agora ele era devorado por outros negros, tão inocentes e famintos como ele um dia foi. A luz reluzente ressurge dos céus, atravessa o peito frio do homem, cuja maldade parecia ser incurável. Ele ainda segura o machado podre, ferramenta da carnificina... A luz erradia seu semblante e ele se ajoelha diante a presença do próprio Deus dos homens. Seus olhos queimam em brasa, mesmo assim ele decide encarar a face do mestre e pedir perdão. Os negros seguem o brilho, a ponta da pirâmide gira lentamente, a esfinge se meche, Deus a olha e consente. Maldito o homem que mata a outro homem... Maldito homem que interrompe com as próprias mãos o ciclo de uma vida... O assassino é devorado pela esfinge reluzente, ele cai cortado ao meio, vivo-morto, morto-vivo, tentando entender os mistérios de Deus. Sua alma limpa paira no ar, ele se vê curado diante seu grande pecado... Os escravos acompanham seu julgamento, não acham justo, mas Deus achou. Eles enterram o que sobrou do amigo, o que dele ainda não comeram, só então percebem que também não foram justos, eles o devoraram, comeram da carne humana, pútrida e impura. O inferno os alcançara, o Diabo também governa uma esfinge e ela certamente os devorara. O Diabo está pensativo enquanto conduz o rebanho de escravos ao inferno eterno. Também tenta entender os caprichos de Deus. É tolo, foi expulso dos céus... Jamais

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entenderia. Para ao meio do caminho, os escravos e sua esfinge não o entendem, ele olha aos céus e diz: — E se eu lhe pedisse perdão? É inimaginável... Mas aquela condição é minuciosamente avaliada: E se o Diabo vomitasse seu ego e pedisse perdão a Deus? A esfinge não desce, nem seu mestre, Deus é orgulhoso, ainda guarda magoas do traidor. O Diabo age como se Deus não o tivesse ouvido, repete a pergunta que fez: — E se eu lhe pedisse perdão? A esfinge do Diabo ainda tem o gosto dos escravos na boca... Ela entende primeiro que seu mestre que não tem volta que Deus não tem motivos para perdoá-lo, pois o criou para ser o próprio mal. Era ele parte do equilíbrio natural, do visível e do invisível. O Diabo respirou fundo e caminhou pelo abismo, conformado com a condição de reinar o mal.

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“Eu Sempre Vejo a Minha Morte”

Sentado em minha cadeira, de frente ao computador e de cara para o meu mundo, escrevendo sobre meus medos e inseguranças, vencendo e me perdendo em meio às palavras descompassadas e um ou outro gole de vinho... Foi assim que eu me vi só, carregado de informações inúteis e verdades inconvenientes a qual o medo me transportou para meu estado de testemunha. Uma letra começa a se mexer de forma descarada e corre por todas as outras, saltando em meus olhos como a um precipício. Desconecto o teclado e o reviso como um especialista, desparafuso a tampa e limpo a placa, depois, tecla por tecla. Conecto novamente e a letra inconveniente volta a correr pelas palavras horrivelmente colocadas, sem destino certo, como se a mesma fugisse de mim. Ouço um barulho estranho, parecia meu portão... Eu estou só em casa e me arrepio! Caminho com o coração disparado entre o corredor calado e úmido, tendo em mãos a garrafa de vinho ainda pela metade. Antes de entrar na sala dou uma generosa golada, encaro os fatos e lá a vejo, a bagunça, o aquário vazava, os peixes estavam mortos, no chão frio e calado... Vejo um vulto correr pela janela, o cão não late, isto me faz se sentir seguro e me minto que é coisa de minha cabeça insana. Arrisco mais um gole de vinho, fujo da água que toma toda a sala, mas ela extravasa pelo corredor. Vejo novamente o vulto, corro para a cozinha e encaro a grossa porta de madeira. Me concentro na maçaneta redonda girar, esta trancada... O invasor remexe com raiva a maçaneta, com tanta violência que temo que ela se quebre... A porta não se abre, ouço um estrondo, como se ele a chutasse... Ele vai entrar... Ele entra. Encaro sua face desfigurada... Parece que o conheço... Ele se enfurece, leva uma faca em meu pescoço e diz antes de me dilacerar a jugular: ― Eu não gosto que toquem em minhas coisas! O Resto: A faca desliza pelo meu pescoço e corta minha carne. Meu sangue se mistura com a água do aquário quebrado

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e o corredor, sala e cozinha se tornam tão impuros quanto meu algoz. Sinto a lamina encostar-se em meu osso, eu o encaro e ele me solta. Caio no chão frio e molhado... A última coisa que vejo é sua cara desfigurada e satisfeita. Deitado em um caixão horroroso, o pescoço enfaixado, um véu fino me cobrindo a face, um crucifixo entre os dedos duros e lagrimas de minha mãe. Poucos amigos estão presentes e uma ou outra mosca ousa pousar sobre o véu. Minha mãe constrangida às espanta. Um amigo tosse e vem ao meu caixão, alisa minha testa gélida e espanta outras três moscas. Percebe o constrangimento de minha mãe: ― Vou falar com a direção da capela. Ele vai e uma faxineira vem, munida de uma lata de spray inseticida. Pede licença aos presentes e borrifa o ar com o veneno. Moscas mortas caem sobre mim... Elas voam no ar venenoso e caem em minha face crua... Sinto como pingos de chuva, uma a uma respingar e embebedar meu caixão: ― Ai meu Deus... Que desgraça é essa? – Pergunta desconcertada minha mãe. As moscas não param de passar e cair, as sinto se espernear e agonizar, me fazendo companhia em minha morte... É inevitável, a sala é invadida e os presentes saem, sentindo o ataque dos insetos. O efeito do veneno passa, as sinto depositar ovas em mim... Entram por minha ultima roupa, minhas narinas e boca, sem pudor, depositam pelo meu corpo seus futuros e asquerosos vermes. Alguém entra na sala e joga veneno por toda capela, mosca alguma ousa entrar, mas as ovas estão sobre mim, vivas e pulsantes. O envenenador olha minha carne vibrando pela violência dos hospedeiros e sugere: ― Recomendo que deixe o caixão fechado, senhora. Minha mãe me olhou e depois encarou o envenenador. Ele com a bomba de veneno olhou para ela como se dissesse que jogaria em meu corpo, se fosse de sua vontade. Ela entendeu, mas pensou por três segundos, escolhendo fechar o caixão. Os vermes se remexiam em meu rosto, eu senti saudades de meu aquário... Os imundos me devoraram, o barulho deles

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mastigando minha carne transpassava o interior do caixão e invadia a capela, e enquanto a faxineira varria o chão com as moscas mortas, minha mãe, ouvinte do barulho, se arrependeu de não ter pedido pelo veneno. O caixão foi carregado pelo cemitério. Na metade do caminho do cortejo, um homem bonito de óculos escuros e terno preto, corria alucinado e suado. Estava atrasado para o funeral de seu próprio filho. Chegou quase que a tempo, com a língua pra fora. Abraçou minha mãe: ― Me desculpa... O vôo atrasou, fez uma parada imprevista em Belo Horizonte... Posso vê-lo... Posso ver meu filho? Minha mãe fez cara de espanto. Não sabia o que veria ao abrir a tampa do caixão, nunca deixou meu pai me ver e agora estava prestes a permitir, mesmo sabendo ser impróprio. Ele olhou para o mesmo, atravessou a multidão do cortejo, alisou todo o caixão e pediu licença aos presentes. Sem dificuldades a tampa se abriu ao ar livre e limpo do cemitério, onde o sol cobria e um fraco vento transpassava... Milhares e milhares de moscas verdes, varejeiras e formadas, sairão de lá de dentro infestando o ambiente, trazendo nojo e náusea a todos... As moscas se espalharam pelo ar limpo, deixando nua minha face cheia de mais e mais vermes. Minha mãe desmaia, meu pai leva às mãos a cabeça e clama por Deus... O pânico e o horror é geral, meu corpo não é sepultado e o medo das moscas que arranham vorazes o couro fazem com que as pessoas fujam dali... O sol se esconde e uma fina chuva cai por sobre meu corpo... Os coveiros correm para finalmente me enterrarem... Pequenas moscas sem asas invadem suas mãos desprotegidas e por um absurdo insano, adentram em suas carnes! Eles abandonam o caixão, que cai na terra molhada e tentam se proteger da carne invadida... Meu corpo desfigurado naquele chão frio ainda alimenta a fome daqueles pequenos vermes, que crescem rapidamente, se eclodindo em vermes famintos e depois em novas moscas... Já é noite quando meus olhos se abrem, estou molhado pela chuva que ainda insisti em cair, em meio à desertificação do cemitério. Eu respiro fraco e arranco a faixa de meu pescoço costurado. Olho a minha volta e vomito os vermes que me

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invadirão minha boca seca. Vejo entre meus destroços eles se mexendo e agonizando no acido solto por meu estomago. Me levanto. Caminho seguro e chego finalmente em minha casa. Como um vulto, passo pela janela e sinto que tem alguém lá dentro... Meu cão me olha, mas não late, balança o rabo e tira a língua pra fora, lambendo meu pé com os buracos feitos pelas larvas. Passo pelo quintal e finalmente chego até a porta da cozinha. Meu coração morto finalmente dispara de medo do invasor... Vou até minha churrasqueira e arranco de lá a faca afiada... Giro a maçaneta, ela não abre... Ouso rompe-la com mais força... Não abre... Sinto que o estranho se apavora... Eu dou uma pesada... Duas... Três... Quatro... A porta se rompe e eu entro... Ele segura minha garrafa de vinho, encara meu rosto desfigurado, parece que o conheço, tenho ovas em meu cérebro e já não tenho mais tempo para pensar... Por instinto ouso ser rápido... Corro com a faca em seu pescoço e digo insanamente antes de cortar: ― Eu não gosto que toquem em minhas coisas! Puxo a faca, ela corre por sua jugular, o sangue escorre e cai no chão molhado... Quando chega ao osso ele me encara e eu finalmente o solto, ele cai... Ainda respiro com dificuldade, vou ao telefone e disco o numero que conheço: ― Mãe... Preciso de ajuda... Deixo a faca cair na mão do morto... Eu o reconheço... Desmaio e acordo, novamente dentro de meu caixão horroroso. O pescoço enfaixado, um véu fino me cobrindo a face, um crucifixo entre os dedos duros, moscas posando em minha face, e lagrimas de minha mãe...

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João e Maria

Em meio ao barulho atordoante da floresta, uma simples casa resistia à maldição do inverno rigoroso e da fome avassaladora. Dentro desta velha casa, residia uma pobre mãe e seu casal de filhos miúdos, João e Maria. O pai havia morrido de cólera durante a primavera, seu corpo foi enterrado embaixo de uma das arvores da floresta, próximo a casa tosca. A pobre mãe que guardava o que podia para alimentar os pequenos na tenebrosa neve de meses se via quase que sem nada, pronta a se entregar ao frio braço da morte. João tinha apenas 12 anos, mas vasculhava a floresta em busca de animais mortos para alimentar a pequena irmã Maria e a mãe, mas raramente tinha sucesso em sua busca. Certa vez a mãe enxergou um vulto ao alto da montanha. Era um homem cansado, segurando em uma das mãos um veado abatido e destrinchado, e em outra mão uma grossa espingarda. Trajava roupas de soldado e caminhava ferido, em meio a neve e aos galhos secos. Ela correu até ele e o sentiu desmaiar em seus braços, o levou para casa e limpou seus ferimentos de guerra. O homem acordou com o cheiro de uma sopa... As crianças vorazes comiam a mesa, enquanto o ouviam contar sua história: — Éramos em 112 contra as tropas do rei George. Em meio a balaços e cabeças decapitadas, me banhei do sangue de meus companheiros e fui jogado na valeta, junto com os mortos. Antes que ateassem fogo, me arrastei até o lago e fugi. Vaguei há 93 dias por esta floresta fria, até encontrar sua ajuda, boa senhora. O soldado bebeu da sopa e olhou João e Maria, apreciarem da carne do veado. — É preciso comer apenas o necessário – Advertiu – Este inverno durara mais um mês e tanto... A mãe arrancou os pratos da mesa e guardou a carne, o soldado adormeceu e as crianças foram brincar lá fora Seis meses correram ligeiros. João corria em desespero pela

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floresta densa... Seu coração pequeno disparava diante a perseguição, ele parou diante uma arvore e sentiu uma corda suja enrolar seu pescoço: — Moleque desgraçado! Acha que pode fugir de suas obrigações assim? Era o soldado, agora na condição de seu padrasto. João foi empurrado no chão, e com medo, tentava fugir de mais uma surra violenta... A corda enlaçou seus pés pequenos, o padrasto atirou a outra ponta da corda sobre um galho alto e a puxou, arrastando João até pendurá-lo de ponta cabeça. O pobre menino gritava em desespero, indefeso, enquanto o homem voraz o chicoteava com a outra ponta da corda: — Moleque vadio! Você vai fazer o que eu mandar! O que eu mandar! Você entendeu seu merdinha? Maria e a mãe chegaram desesperadas e viram o menino pendurado, com vergões pela face nua. A mãe se ajoelhou diante os pés de seu homem, ele a empurrou e babando indagou: — Ele precisa aprender! Precisa aprender o que é ser um homem de verdade! Após o odioso episódio, João carregava a lenha e a empilhava atrás da casa, tremendo e com o corpo tilintando de dor. Maria costurava com a mãe os couros da caça do padrasto. Eram meses muito bons e toda a carne foi estocada em um cômodo fora da casa, construído por João e o carrasco. O tempo corria e mais uma vez o inverno rigoroso se aproximara. João escondido em cima de uma arvore mirava cauteloso a espingarda para um gordo Javali. Do outro galho ouvia as instruções: — Olhe para ele, João... Olha bem para ele... É grande não? Vai nos garantir boa refeição durante o inverno odioso. Mire certeiro, João! Mire na cabeça e atire sem pesar... Atire para matar, não deixe que ele fuja... Se isso acontecer, teremos que nos contentar apenas com a carne seca armazenada na estocagem. João respirava fundo e com medo mirava, temendo errar e ser surrado: — Acerta ele João... Acerte na cabeça... Não de chances dele fugir! Acerte agora!

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Um tiro ecoou pela floresta que começava a ficar fria. Os pássaros que migravam para o norte voaram mais rápidos... O javali grunhiu ao ser alvejado e correu sangrando por entre as arvores que perdiam as folhas. O padrasto pulou no galho em que João estava, tomou a espingarda de sua mão e deu uma coronhada em sua testa. O pobre menino despencou a quatro metros de altura, caiu de olhos abertos e os fechou desmaiando. O homem escarrou em cima dele e bradou: — Falei para não errar, seu filho da puta! Era tarde da noite quando o menino acordou com a testa enfaixada por um pano velho. Se levantou ainda tonto pela pancada, escutando um barulho selvagem vindo do quarto da mãe. Olhou para o lado e viu o grande Javali abatido, pendurado pela mesma corda que o surrava, a barriga aberta, limpo, sem nenhum dos órgãos internos. João caminhou descalço até o quarto da mãe, e a viu sendo possuída com violência pelo padrasto. A cabeça da mulher era pressionada contra a cama dura, enquanto ele a invadia como um animal, batendo em suas nádegas roxas com a outra mão. O ex-soldado, sem parar o ato, o olhou e ordenou: — Vá para o seu quarto, pivete de merda! João se afastou e dormiu com dificuldade, pensando em toda a barbárie que havia começado em sua vida desde a chegada do homem sujo... Na manhã seguinte o homem embaixo da arvore chamou Maria. A menina veio correndo. Ele apontou para o chão e perguntou: — Quem está enterrado aqui? Era a cova de seu pai. Maria olhou para os lados, se lembrou da mãe e da ordem que recebeu para não contar sobre a cova. Ela tremia, tentando esconder a verdade. O homem segurou com a mão forte seu queixo, o apertou e perguntou novamente: — Vamos lá, responda Maria: Quem está enterrado aqui? Ela diante a dor, olhou em seu rosto e confessou: — Pa-Papai... O homem a soltou. Maria passou as mãozinha no queixo

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ferido e o ouviu dizer: — Quero que o desenterre. O desenterre e se livre dos ossos. Não quero o ex de minha mulher enterrado em meu quintal! Faça até o entardecer. João sentado com o padrasto via a irmã sofrendo para desenterrar o pai da terra seca e gelada. O ex-soldado o olhava curioso. Por fim falou: — Você quer ir até lá ajuda-lá, não quer João? O menino consentiu com a cabeça. O padrasto sorriu com seus dentes amarelos. Acendeu um paieiro de fumo e falou: — Você parece ter pena das mulheres. Não deveria. A Maria é preguiçosa, fazemos todo o trabalho enquanto ela só come e engorda. Não deveria ter pena das mulheres, João. Elas são bem pra isto mesmo, para nos serem uteis, na cama, na cozinha ou até mesmo no quintal desenterrando velhos defuntos. João o olhou raivoso: — Viu como eu fodi sua mãe? Você pode até não acreditar, mas ela bem gosta de tudo aquilo João. E quando a Maria crescer mais farei o mesmo com ela... E quer saber? Ela herdou a submissão de sua mãe... Acho que gostara, assim como ela. João nervoso pulou em cima do padrasto. O homem ria enquanto o dominava facilmente e continuava a dizer: — Não fique tão brabo, João... Isso ainda vai demorar alguns anos... Até lá você vai ter a chance de defendê-la. Porque agora você não passa de um pirralhinho ranhento e fraco. O homem grotesco o empurrou no chão e saiu, rindo de toda a desgraça do menino, enquanto Maria batia a pá, tirando aos poucos a terra congelada.. Maria enfim arrancou todos os ossos do pai da terra e os colocou em um saco velho. Já era tarde, estava quase que escurecendo quando ela caminhou com ele até a estrada do antigo cemitério, aonde repousavam os restos de seus avós. Era noite quando ela entrou na casa tosca, toda suja de terra. Os três comiam sopa a mesa. O padrasto parou de comer e lhe falou: — Chegou cedo, Maria. Tenho minhas duvidas se realmente deixou os ossos velhos de seu pai no cemitério.

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Maria nada respondeu. Ele a chamou. Ela toda suja se aproximou dele. João parou de comer e os olhou assustado: — Você é uma boa menina – Disse ele alisando seu rosto que havia ferido – Sabes que sempre vai poder contar comigo, mas nunca mais esconda nada de mim. Agora vai se banhar. Você esta fedendo. — Sim, papai – Respondeu Maria, provando a João que era tão submissa quanto à mãe. A menina foi até o fogo e pegou a água quente. João encarou o padrasto que sorriu e bradou: — Como tudo pirralho. Você precisa ficar forte... Precisa crescer forte pra um dia poder cuidar melhor da sua irmãzinha! Naquela noite, João não conseguia dormir com o insuportável barulho do padrasto violentando sua mãe. Ele que não podia se defender tremia de dar pena, até pegar no sono. Na manhã seguinte ela apareceu com os olhos roxos, enquanto o padrasto limpava a arma de caça: — Hoje é o ultimo dia, João – Disse ele, extremamente dedicado a arma – O ultimo dia para se caçar... Amanhã o inverno virá com tudo, avassalador, nos privando de qualquer chance de caçar nos próximos 90 ou 100 dias. Mas não se preocupe se nada acharmos hoje. Nosso estoque esta cheio, sobreviveremos a este inverno. Os dois vagavam pelo frio que já invadia a imensa floresta. O padrasto ia à frente, e João logo atrás... A neve fina dava o primeiro sinal, João o seguia com atenção, ele parou e sorriu, apontando a arma para três lobos cinzentos ao longe, que devoravam um veado recém abatido: — Consegue vê-los, João? — Sim... — Olhe com atenção, pirralho... Três lobos cinzentos, famintos. — Vai matá-los? – Perguntou o menino curioso. O homem abaixou a arma e sorriu respondendo: — É claro que não seu moleque. E você sabe porque? Porque eles são como nós... São caçadores, predadores que só querem sobreviver ao caos da natureza. Não merecem morrer, não pelas nossas mãos. Talvez pela de Deus. — Poderíamos matá-los, ou ao menos afugentá-los e pegar a

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caça que conseguiram... O padrasto alisou a cabeça de João e sorrindo forçado perguntou: — Você não aprendeu nada, não é menino? Não posso matá-los, porque eles são como nós. É da natureza deles sobreviverem, e eles o farão a qualquer custo. Vamos deixá-los e voltar pra casa. Como eu te disse antes, temos o bastante, e parece que eles não. Mas eles acharam um jeito de sobreviver. João o seguiu, percebendo ali que ele não era tão tolo. O frio intenso devorou de vez toda a floresta. João tentava pensar em um jeito de se livrar de seu padrasto, enquanto as folhas resistentes se entregavam a geada dura. Os dias correram e viraram semanas, e em uma noite tranqüila, João ouviu um barulho vindo da estocagem. Se levantou assustado e constatou o pior... As grossas tabuas haviam sido ruídas e ele enxergou um rabo cinza: — Lobos! João correu para o quarto do padrasto e o avisou... Os dois desesperados foram até a estocagem... Os três lobos que a tudo devoravam, foram confrontados pelos dois. O menino João desarmado foi atacado por um lobo cinza... O padrasto em posse da arma disparou contra o crânio do lobo velho, o derrubando ainda no ar, próximo a jugular de João. O homem nervoso disparou contra os outros dois lobos, mas os mesmos fugiram em espetacular fuga, ainda arrastando a carne seca... João olhou a estocagem devorada e lamentou. O inverno rigoroso seguia... Os pratos com pouca comida denunciavam a extrema escassez. O padrasto revirava a floresta atrás de comida e dos lobos, enquanto João construía armadilhas em meio a floresta congelada. Um dia a esposa do ex-soldado procurava lenha para cozinhar ossos, quanto um estranho homem surgiu dos montes. Tinha carne seca pendurada na cinta... Ela o encarou e o ouviu dizer: — Não tema, mulher. Busco por um antigo comandante. Um maldito desertor que deixou uma batalha pelo meio, facilitando a vitória do inimigo. Um vendedor de munições disse que um homem vestido de soldado trocava carne por balas, e que residia por aqui.

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A mulher o olhou raivosa e indagou: — Meu esposo é caçador. Achou um soldado defunto já em decomposição... Arrancou suas roupas e jogou o cadáver no rio gelado. Talvez seja o soldado que procura. O homem bebeu um gole de whyskey e sorriu banguelo: — Talvez seja... Mas aquele não é o tipo de homem que se morre fácil não, dona... Fui encarregado de levá-lo vivo ou morto... Não quero ter que revirar o lago congelado. Minha esperança é que a senhora esteja mentindo para mim. A mulher se calou. Ele continuou a dizer: — Sei que é difícil dona... Talvez a senhora tenha se apegado a ele. Ficarei acampado próximo ao tal lago nos próximos três dias... Como eu já lhe disse, ele está congelado, não posso mergulhar para encontrar a ossada. Nem é por isto que ficarei lá. Ficarei até a senhora decidir entregá-lo a mim. O homem saiu. A mulher pensativa tratou de esquecê-lo. O marido chegou mais uma vez de mãos vazias. A fome o fez ainda mais louco... Ele olhou para as panelas limpas e foi ao quarto. A mulher foi atrás, arrancando a roupa e se deitando ao seu lado. Ele a ignorou e de olhos abertos condenou: — Temos que matá-lo. Ela arregalou os olhos: — Matar quem homem? O grotesco sorriu: — Matar o João... É o único jeito. Ou fazemos, ou morremos de fome! A mulher se calou e tentou dormir... Sabia que ele faria, pois estava bem decidido... Não arrancaria aquela idéia suja da cabeça. Pela manhã ela o acordou com chá de cidreira. O olhou nos olhos e disse: — Eu faço. Ele sorriu diante sua coragem e perguntou: — Fará? — Sim... Levo os dois em meio à floresta e os sacrifico. — Não – Disse ele nervoso – A menina não! Eu a desejo! A mãe indignada lamentou... Olhou para o marido e implorou: — Piedade... Matemos os dois, não precisa dela... Não a nada que ela poderia fazer por você que eu não faça melhor... A

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carne deles pode nos deixar vivos ao longo de todo o inverno... O homem sorriu, concordando. Maria escondida a tudo ouviu... Correu ao quintal, onde João vistoriava as armadilhas vazias... Ela respirou fundo e contou: — A mamãe... A mamãe e o papai estão... — Ei – Interrompeu João – Aquele desgraçado não é nosso pai. Sei que você cresceu um pouco aos cuidados dele, mas nosso pai é aquele que você levou os ossos ao cemitério. Maria concordou... Se acalmou e contou: — Eles planejam nos devorar... Mamãe nos levará a floresta e nos assassinará... Ela concordou com ele... Nos matará e levara nossa carne para a nova estocagem! João a olhou e a acalmou: — Mamãe jamais faria isto... — Ela fará João. Fará sim... Você acredite ou não. A mulher chegou com um saco na mão. Os chamou para ir até a floresta. Os dois pequenos se olharam e Maria alertou: — Vai ser agora João... Pegaram a estrada rumo ao cemitério. No meio do caminho, Maria parou diante uma grande arvore, pegando um grande saco: — São os ossos do papai... Não tive coragem de levá-los até o cemitério João... Se eu for morta, quero estar junto dele! João a olhou e se lembrou do que o padrasto lhe disse: — A Maria é preguiçosa, fazemos todo o trabalho enquanto ela só come e engorda. Não deveria ter pena das mulheres, João... Infelizmente o desgraçado estava certo, Maria não teve coragem para sepultar os ossos do pai e os deixou escondidos a sombra de uma arvore velha. Quase chegando ao cemitério, à mulher parou diante um novo atalho e anunciou: — Vamos para o lago, crianças... Eles a seguiram, logo avistaram uma pequena tenda verde. A mulher se aproximou. O homem que dormia acordou e a recepcionou. As crianças famintas o olharam, ele arrancou os filetes de carne da cintura e jogou a elas. A mulher o olhou, arrancou a espingarda de dentro do saco e contou: — Esta é a arma dele. O homem sorriu. Se aproximou cauteloso. A mulher mirou a

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arma em sua cabeça e indagou, antes de atirar: — Não vou deixar você arrancá-lo de mim! O tiro ecoou em meio às arvores secas e geladas... O homem caiu com um buraco no crânio. A mulher jogou duas facas da bolsa e as deu a João e Maria: — Descarnem o desgraçado. Vou levar os pedaços dele! João e Maria obedeceram... Retalharam todo o homem, colocando a carne no grande saco. Diante apenas dos ossos e as tripas, olharam para a mãe, que os abraçou e ordenou: — Ele carrega carne seca. Peguem e fujam para a floresta... Voltarei para casa e direi que esta carne é de vocês... João, cuide da sua irmã e não voltem nunca mais... Se voltarem, ele matará vocês... Me escute meu querido... Faça o que mando e vocês sobreviveram! João obedeceu. Pegou as carnes secas estocadas pelo homem e adentrou na floresta com Maria. A mãe abraçou a grande sacola com a carne do morto e a levou pro barraco tosco. João cortava por entre os galhos secos, adentrando com a pequena Maria cada vez mais nas profundezas da floresta... Parou e sugeriu: — Maria, pegue os ossos do papai. Jogue-os ao longo de nossa jornada, para que possamos voltar, caso a carne acabe e passemos fome... Poderemos voltar pra casa e confrontar nosso padrasto, será melhor enfrentá-lo mais tarde do que confrontar a morte! Maria concordou e obedeceu, invadiram o caminho desconhecido, enquanto Maria atirava os ossos do pai pela nova trilha. Enquanto vagavam, roíam a carne velha, invadindo a floresta cada vez mais, sem nada encontrarem. Quando a noite se aproximava, paravam e acendiam a fogueira. Maria mastigava o tempo todo... João tomou a carne de sua mão e indagou feroz: — Não como tudo Maria! Só o pai do céu sabe quando encontraremos alguma coisa... Estamos vagando a dias, talvez a semanas... Maria ameaçou chorar. O dia raiava, João juntou as coisas e novamente caminhou, racionando a carne para durar o mais

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tempo possível. Semanas se passaram. Maria já muito magra mastigou sozinha o ultimo filete de carne. João a olhou e disse desanimado: — Temos que voltar... Temos que voltar pra casa! A fé abandonou de vez o coração do menino. Seguiram então a trilha de ossos... João sabia que estava a semanas longe de seu lar, mas também sabia que se desanimasse, se entregaria morte e morreria ali mesmo, em meio ao gelo. Então avistaram próximo ao fêmur do pai dois lobos selvagens o roendo... João olhou assustado e os espantou. Os lobos ao longe rangeram os dentes, João então não teve duvidas, eram os dois lobos que invadiram a estocagem. Os cinzentos estavam cada vez mais próximos deles... João corajoso se armou com um pau pontiagudo, o lobo pulou em um galho de arvore, o encarou feroz e disse pronto a atacar: — Esta muito longe de casa menino... João delirava pela fome... Se espantou por ouvir o lobo lhe falar. Maria não ouvia, com medo se escondia atrás do irmão. O outro lobo feroz correu em sua direção. João raivoso fechou os dentes e se preparou. O lobo de cima da arvore olhou paciente... João arremessou o pau pontiagudo, atingindo em cheio no coração do lobo... O outro de cima da arvore uivou... João se aproximou do lobo abatido, arrancou o pau de seu peito e se voltou ao outro, que raivoso bradou: — Você matou minha irmã, João... É até justo... Mas não se engane, seu padrasto estava certo... Somos iguais, e vai chegar a hora em que farei o mesmo com você! João se aproximou da loba abatida... A abriu e a limpou. Olhou para a irmã e disse: — Agora temos carne para terminar de cumprir com o inverno. Vamos continuar o caminho que estávamos, pois o de volta pra casa esta perdido. Os irmãos seguiam, o lobo cinzento ia atrás, distante. João parou, arrancou um pedaço da loba e atirou a ele. Ele a devorou aos poucos, sem tirar os olhos do menino... Ao longo do caminho João comia, alimentava a irmã e o lobo cinzento... O inverno acabou junto com a carne. O esperto menino fez novas armadilhas e agora conseguia se alimentar e

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seguir sempre em frente. O lobo ainda os seguia, João sempre o alimentava, era este seu novo habito. Depois de outros tantos meses e dias, João chegou até uma longa estrada que dividia a floresta que estava de outra. João olhou assustado a nova floresta, de arvores muito diferentes das que conhecia. O lobo parou de longe. João olhou para Maria e indagou: — Poderemos decidir: Ou entramos na floresta ou seguimos este caminho para um dos lados. Maria o olhou e opinou: — O mundo esta em guerra, João... Pode ser que se seguirmos a estrada, cheguemos a uma cidade arrasada e dominada por soldados. Agora se adentrarmos na floresta, poderemos encontrar um pacifico vilarejo. Melhor enfrentarmos o que já conhecemos do que nos aventurarmos contra homens armados. João a ouviu, e entraram em meio a mata fechada. O lobo parou de segui-los, como que se soubesse o que tinha lá dentro... Não queria enfrentar, e voltou para trás, em busca de sua própria jornada. Maria corria em meio ao desconhecido, enquanto mascava a carne da caça fresca, se deliciava extasiada, lambendo os dedos gordos, feliz por buscar vida nova. João avistou uma bela casa em meio ao nada, com quintal limpo, carregado de arvores frutíferas. Uma grande horta bem irrigada corria próxima a casa, e em um cercado porcos, coelhos e galinhas eram mantidos limpos e bem cuidados. João nunca havia visto aquilo, sequer conhecia alguns daqueles bichos e frutas... Correu com Maria até a propriedade e juntos desfrutaram de todos os prazeres mostrados pelo lugar. De dentro da casa uma senhora ouviu o atordoante barulho de sua matilha de cães... João e Maria ignorava o rosnar das feras e subiam nos pés de fruta, se deliciando com os sabores que para eles eram total novidade. A Senhora saiu munida com uma vassoura e ralhou aos meninos: — Vermes imundos, sujos e empesteados! Como ousam invadir meu lar? João desceu as pressas do pé de manga e se defendeu: — Me desculpe minha senhora... A principio nos pareceu

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tentador... Nunca vimos tamanha fartura. Estávamos perdidos, viemos de muito longe e por conveniência entramos aqui e encontramos essa maravilha. Não nos julgue por este ato insolente, somos humildes e pobres, o que a senhora tem nos pareceu boa sombra e optamos por apreciar... — Sem mais desculpas, fedelho imundo – Interrompeu a mulher raivosa – Minha propriedade não é local de balburdia, tampouco de deguste a fedelhos sujos. Estranho como meus cães apenas ralharam e não devoraram seus ossos fracos! Pelo menos é o que fazem a invasores! João baixou a cabeça e humilde falou: — Eu converso com cães e lobos, senhora... Eu os escuto e eles me escutam. Não ousam me atacar. Não é a toa que atravessamos uma densa floresta gelada, enfrentando tais criaturas. A senhora sorriu: — Lobos não ousam adentrar em minha floresta, agora os cães protegem minha propriedade da invasão de soldados, que vem mapear o lugar... Não entendo o prazer que os homens sentem em desbrava o desconhecido... Meus bichos já destrincharam dezenas deles... A guerra é longe daqui, mas eles se espalham pelo mundo... São como pragas... Insetos sujos que matam em nome de seu Deus. A senhora olhou para a outra arvore, olhou com atenção para a menina que devorava sem parar uma grande e madura jaca: — Aquela fofinha é sua irmã, meu jovem? — Sim minha senhora. Seu nome é Maria, como eu, enfrentou a fome e os lobos. Não vamos mais incomodá-la, sairemos de sua floresta e iremos para a cidade, em busca de um abrigo. A senhora riu desgraçadamente. Maria desceu da arvore satisfeita, abraçou João e viu a mulher entre gargalhadas perguntar: — Quantos anos tens, menino? — Treze, senhora... Estou próximo dos catorze. Ela alisou os cabelos de João e lhe contou: — Estamos enfrentando tempos sujos de guerra, meu jovem... Não há lugar melhor que aqui! Muito me interessei pelo fato de você conversar com caninos... É um dom louvável e seria tolice de minha parte não apreciá-lo – A mulher se aproximou

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mais de João, que mostrava um busto forte e características firmes de um saudável adolescente. Ela correu o dedo em seu ombro e propôs – Você e a bolotinha de carne podem ficar, podem apreciar do conforto e da fartura de minha propriedade. Em troca, peço que adestre meus cães, que os ensine a ser mais eficazes, mais cruéis e objetivos... Como viu, não são de tanta valia, já que você e sua irmã facilmente entraram em meus domínios. Você aceita, meu jovem? João sorriu diante a ótima proposta. Maria olhou a sua volta, toda aquela fartura. Se voltou ao irmão e o ouviu responder: — Passamos por tempos difíceis, minha senhora. O conforto de seu lar será como uma recompensa a todas as adversidades que nos corrompeu. Eu aceito ficar e adestrar seus cães. A mulher sorriu se apertando as duas mãos. Maria correu pelo vasto quintal, enquanto João tratou de ser apresentado a matilha de cães, que eram num total de doze. Mais de um ano se passou desde a chegada de João a propriedade da estranha mulher, que mais tarde ele foi chamar pelo nome de Efênia. João aos 16 anos estava próximo a uma montanha, no gélido frio. De lá tinha total visão da outra floresta, a floresta congelada onde ele há tempos havia passado fome junto com a irmã. Olhou a sua volta, no bom lugar com um clima mais favorável a caça e sorriu. Olhou então ao longe... Três homens fardados, caminhando em sua direção. João munido apenas com uma lança bem trabalhada, não demonstrou medo... Os homens sacaram suas armas e o cercaram, seguros de sua dominação: — Ora, ora – Disse um deles – Vagamos a semanas nesta mata fechada, finalmente achamos viva alma. João o entendeu, mas nada respondeu. O homem largou a arma, os outros dois miraram as suas com mais atenção, enquanto o companheiro desarmado arrancou uma bíblia da mochila e perguntou a João: — Você é convertido, menino? È convertido na palavra de nosso senhor? João foi rude: — Não creio em seu deus perverso. O soldado sorriu e voltou com a bíblia na mochila. Sorriu aos

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companheiros e calmo falou: — Neste caso... Te sentencio a morte. A morte imediata. João sorriu calmo... Os homens prontos a atirar. O outro o olhou e disse antes de ordenar: — Que Deus tenha piedade de seu espírito sujo, garoto. João assoviou... O assovio atordoante ecoou pela mata e logo os selvagens cães rodearam os soldados. Eles demonstram medo, sendo cercados pela matilha que babava ódio, só esperando pela ordem de João: — São cães adestrados – Disse ele aos homens – Nós pessoalmente os ensinei a mastigar soldados. Devem saber que ao longo dos anos alguns de seus companheiros vieram aqui e se perderam na mata. Não tiveram sorte, este aqui não é lugar pra nenhum de vocês. Vou lhes dizer o que vai acontecer: Não importa o que façam, meus cães avançaram em vocês antes que aproximem o dedo do gatilho. São animais sensíveis, percebem qualquer movimento e ou pensamento de maldade... Vocês estão condenados, meus amigos... E espero que seu deus tenha piedade por suas almas assassinas. João assoviou de novo... Os cães raivosos avançaram selvagemente contra os soldados, que tiveram a chance de atirar apenas uma vez, fatalmente errando o alvo. João sorriu vendo os homens sendo destroçados pelas mandíbulas dos cães famintos, então, gritou alto: — Não comam os corações! Os levarei a Efênia! Efênia recepcionou João com um bom prato a mesa. Maria na cabeceira devorava um leitão assado... Estava ainda mais gorda e toda segura de sua gana em comer. João a olhou com desprezo, segurou na mão da mulher e falou: — Lhe trouxe corações de soldados. Estavam mapeando a região quando os encontrei. A velha abriu a caixa com os três corações e sorriu satisfeita: — Você é um bom garoto, João... Tornou meus dias mais felizes desde que apareceu aqui. Efênia segurou na mão do garoto e o arrastou para o quarto... Maria distraída comia desvairada, sem nada perceber. Enquanto fazia sexo com a mulher, João se lembrava de tudo que seu padrasto lhe disse e lhe ensinou... Tratava selvagemente Efênia na cama, e ela gostava... João a humilhava em seus caprichos, como via o padrasto fazer com a

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mãe, e estranhamente percebeu que ela sentia ainda mais prazer... Ele apesar da disposição, de gozar dos prazeres da juventude, não gostava de invadir aquele corpo velho... Mas sabia que era conveniente satisfazer os caprichos curtos da senhora, que lhe era tão bondosa. Certa vez ela pediu que João construísse um forno maior no quintal. Quando o rapaz perguntou por que, ela responde: — Meu menino... Sinto em lhe dizer, mas Maria é muito troncha, não passa de um fardo sujo, fardo este que eu e você estamos cansados de carregar. Proponho que a cozinhemos, após o inverno. João ficou pensativo... Maria era a única lembrança da família que ele tinha. Pensou e de tanto pensar, optou por construir o grande forno. O inverno corria rápido, e enquanto concluía o forno, pensava na mãe. Será que ela ainda estava viva? Pensou no padrasto, naquele homem rude que fazia de tudo para sobreviver... Viu a irmã brincando com os coelhinhos e sorriu... Teria coragem de cozinhá-la? Talvez não tivesse... Olhou para a matilha de Cães que dormiam. Os doze ferozes despertaram com seu assovio. João então perguntou: — São fiéis a mim? São de acordo com todas as decisões que eu tomar? Os cães pareceram concordar com João. Ele olhou toda a propriedade e indagou: — Este lugar é riquíssimo... Chego a pensar que ele é mágico... Muito próspero e farto. Penso em ir buscar minha mãe e viver aqui com ela e minha irmã. Para isto eu teria que... Sabem o que eu teria que fazer... O lavrador branco se aproximou e lambeu os pés descalços de João... Os outros vieram em seqüência e fizeram o mesmo, concordando com quaisquer decisões que ele tomasse. Os dias largos terminaram e a primavera deu o ar da graça. O grande forno já havia sido construído e a velha amolava um grosso facão, sorrindo ao seu amado. João acendeu o grande forno... A lenha virou brasas vibrantes. Ela se aproximou do garoto e o ouviu perguntar: — Acha que a temperatura esta boa? Acha que teremos um bom assado?

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A mulher lhe beijou os lábios, passou a língua limbosa por seus dentes e balbuciou: — Mais tarde quero lambe-los e sentir o gosto de sua irmã... João sorriu, ela se aproximou da grande fornalha: — Esta meu querido... Esta em ótima temperatura... Vou já cuidar do prato principal. Antes que ela tirasse a cabeça lá de dentro, João segurou em suas pernas e a atirou de vez dentro da grande fornalha. Efênia em desespero tentou fugir... João trancou o forno e a viu inutilmente se esquivar do carvão em brasa: — Maldita seja sua linhagem seu moleque infeliz! Os gritos da velha ecoavam por toda a floresta... Maria correu em desespero... Os cães de orelha em pé olhavam sua antiga dona agonizar em meio as chamas curtas... A mulher velha tardava a morrer... João aflito assistia a toda aquela agonia, já arrependido de ter feito o que fez. Maria assustada, pegou a lança de João e cutucava com ela a mulher que ainda gritava, com o corpo todo queimado. A lança entrava em sua carne e trazia com ela um pedaço... Maria ria e atirava os pedaços aos cães, que comiam, esperando por mais. João olhava a tudo aquilo indignado... Ora ou outra ela se deliciava com o macabro assado e o ofertava ao irmão, que indignado, vomitava em desespero. Era tarde da noite quando a mulher se entregou a morte. Os restos dela queimavam no forno novo, enquanto João contava seu plano a Maria: — Iremos buscar a mamãe. Traremos ela para viver aqui com a gente, começaremos então nova vida. — A jornada é longa, irmão. Não agüento passar por tudo aquilo de novo. Proponho que você vá e me deixe a sua espera. João olhou para o crânio seco em chamas e bradou: — Você ira comigo. Talvez eu precise de você. Levarei também seis cães e muita comida. Deixarei os outros seis tomando conta da propriedade. Maria não mais ousou questioná-lo. João armou todas as coisas, pôs um fardo der comida nas costas de cada um dos seis cães escolhidos e se preparou para a jornada do dia seguinte.

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Os cães soltos na propriedade receberam a ordem de devorar qualquer invasor. João destruiu o grande forno, a ultima lembrança da antiga proprietária do belo lugar. Deixou que os animais se alimentassem de qual cria quisessem e partiu, com a irmã e sua pequena matilha. Caminhou pela floresta com sua irmã, brincando com ela e os seis cães... Quando chegou à estrada que separava as duas florestas, parou... Um batalhão de soldados ensangüentados passava por ela, levando com eles cabeças de ateus, esticadas em pontas de bambus, mostradas como troféus... Esperaram a longa tropa passar e depois entraram na floresta gelada. João avistou ao longe o grande lobo cinzento. Este veio mais próximo a ele. De longe mostrava sinal de felicidade, mas não se aproximou. Se mantinha longe como sempre fazia. Os meses fartos se acabaram e a jornada ainda era longa. A comida agora era escassa, pois Maria tinha uma fome totalmente fora de controle. João então se arrependeu de te-lá trazido, deveria ter ignorado seu orgulho e a escutado, quando a mesma lhe propôs que ficasse na propriedade cuidando das coisas. Mas estava ele tão acostumado com sua presença, que não conseguiu mudar de idéia. Maria reclamava de fome. Os cães famintos seguiam seu mestre. Os dias correram e estavam eles todos fracos... O lobo cinzento pouco conseguia oferecer a João e sua tropa... E em meio a total escassez, João o ouviu sugerir: — Temos boa historia juntos, não garoto? — Sim – Concordou João – Temos... — Lembro-me como ontem... Ataquei a estocagem de sua família, ao lado de meu velho pai e minha irmã. Meu pai foi alvejado, e mais tarde em nosso novo encontro você executou minha irmã. Não te culpei, pois apreciei seu instinto, já que somos iguais. Mas o fato é que você carrega consigo novos amigos, podem lhes ser muito uteis... É triste vê-los tombar pela fome. João raivoso encarou o lobo magro e perguntou: — Diga logo, cinzento desgraçado! O que sugere? O lobo cauteloso, medindo o que ia dizer olhou para a gorda Maria: — Veja sua irmã, um fardo inútil que não precisa carregar.

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Ela deve ter boa carne, seria muito útil em nossa sobrevivência. Falamos abertamente, João: Da ultima vez minha irmã foi favorável a nossa ultima jornada... Nada mais justo que devorarmos a sua, ou então morreremos... A casa de sua mãe ainda esta á dias daqui... E você já parece perdido. — Não farei! – Respondeu João rangendo os dentes, enquanto seus cães aguardavam ansiosos sua decisão – A ultima pessoa que sugeriu que eu matasse minha irmã teve a carne queimada e serviu de alimento a minha corja. O lobo olhou ao horizonte congelado e tentou a ultima vez: — Sinto ser persuasivo, rapaz... Mas apenas eu conheço o caminho que leva a casa de sua mãe... Não se esqueça que eu roí todos aqueles ossos que usou para marcar o caminho... Os ossos velhos de seu pai. Diante da fome faço uma ultima proposta: Permita que eu e seus cães dêem fim ao sofrimento de Maria. Nos apreciamos de sua carne, você se satisfaz com a gente e seguimos a jornada no caminho certo... João olhou para a irmã. Maria roia os próprios dedos... Os dedos gordinhos pingavam sangue e ela o chupava, ignorando a dor: — Vamos lá, João – Disse o lobo sarcástico – Antes que ela não deixe nada pra gente! João abaixou a cabeça. Os cães se levantaram famintos e entenderam o recado. O lobo rápido e rasteiro pulou na jugular de Maria, enquanto os cães mordiam suas pernas e braços... João olhou horrorizado a toda aquela insanidade... Mas seu instinto aguçado fez com que ele fizesse parte do banquete, e junto com o lobo e os cães, devorou insano a gorda irmã. Dois dias se passaram, João e os cães bem dispostos caminhavam juntos, rumo ao caminho guiado pelo lobo. Os cães então pararam... Ouviram barulhos de armas engatilhando... João olhou para o lobo e com ira indagou: — Você nos traiu! O lobo cinzento olhou rosnento para João e respondeu voraz: — Como ousa dizer isto? Não seja tolo! Os soldados estão em toda a parte, recrutando novas pessoas para a guerra que estão montando! João totalmente cercado levantou as mãos e lamentou a sorte, sendo cercado por inúmeros homens armados até os dentes.

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Sons de tiros ecoavam na cidade arrasada... A guerra agora não era contra os ateus, e sim contra os escoceses... João munido com sua arma disparava voraz contra os inimigos, conquistando novo território e cumprindo com seu dever... O tanque sujo de guerra encostou-se ao monumento central, João em posse da bandeira do pais que o adotou, subiu no monumento, arrancou a velha bandeira e colocou a sua... Lá embaixo os soldados vibravam de intensa alegria, saudando o forte guerreiro... A guerra enfim terminou João com a farda chegou a seu barracão... Os cães e o lobo lhe balançaram o rabo e o ouviram dizer: — Hoje faz seis anos... Um jovem soldado adentrou no barracão e anunciou: — Senhor! Recebemos denuncias de um informante que um desertor de anos atrás se esconde em meio à floresta gelada! João sorriu, soltou os cães e ordenou: — Reúna os homens. Vamos buscá-lo! O lobo refazia o atalho com seu faro seguro... João com os cães e dezenas de soldados o seguiam em jipes. O lobo parou diante um grande quintal, a velha casa de João... O rapaz desceu, olhou roupas velhas no varal... Os soldados e os cães rodearam a casa... João gritou: — Sei que esta ai, desertor! Saia para que possa ser julgado! Minutos depois a grande porta se abriu. João olhou para a mãe, sem os braços e sem uma das pernas, com um pedaço de madeira amarrado no toco da coxa. Concluiu que o padrasto se alimentava dela, durante o grande inverno: — Deixe-nos em paz – Gritou ela – A guerra acabou! João sorriu, se aproximou da mãe e constatou que seus dois olhos haviam sido arrancados. Acenou a cabeça para o lobo e os cães, que mais que depressa correu em direção a velha e a dilacerou com seus dentes afiados: — Saia daí, seu covarde – Gritou ao padrasto – Se esconde atrás da esposa que devora! O homem saiu acabado. Na hora reconheceu João, do alto de sua glória. João empunhou a arma... Colocou em sua testa e disse: — Estava certo. Eu precisava mesmo me tornar um homem de verdade.

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— João – Sorriu o homem – Sabia que aquela carne não era a sua... Estava tão dura para ser carne de crianças... João jogou a arma no chão e o esmurrava sem piedade, enquanto dizia: — Antônio Tenório, por assassinar três soldados e fugir em sua ultima batalha na condição de comandante contra o rei George, facilitando sua vitória, eu o condeno... O homem ensangüentado pela surra o olhou sorrindo João sorriu também, pegou a arma do chão e disse antes de descarregar derrotado: — A morte! Os soldados vibraram... João abraçou seus cães e ateou fogo na velha casa, queimando suas lembranças de menino. Naquele mesmo dia seguiu na companhia de seus animais até a propriedade que era da velha senhora Efênia... Deixou o jipe no acostamento da estrada que dividia as duas florestas e seguiu na com a matilha. Quando chegou ao grande quintal, foi surpreendido pelos outros cães raivosos, que confrontaram em latidos os seus. De dentro da velha casa, saiu Efênia, sorrindo, com apenas algumas queimaduras pelo rosto enrugado: — Ora, ora... Se não é o menino João... Agora um homem feito! João espantado perguntou como aquilo tudo estava acontecendo. A velha devorava uma maçã, enquanto lhe contava: — O fogo não pode destruir a tudo, menino... Ele pode consumir sua lembranças de infância e os cadáveres de sua linhagem indecente... Mas não consomem a mim. Acho justo que viva seus dias de gloria, muito me forneceu de bom antes de me escarrar a morte. Vá em paz, suma desta floresta e viva sua vida. Leve com sigo seu lobo e deixe meus cães. João olhou para os 12 cães juntos. Olhou para a velha e sorriu. Pôs a mochila nas costas e chamou pelo lobo, que o seguiu por todos os novos caminhos que ousou trilhar.

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Os Mortos Acordam A pequena cidade era prospera e vivia limpa, mas a cada geração que se passava, os homens iam perdendo seus mais sagrados costumes. As religiões chegaram a serem ignoradas e em virtude do progresso, os homens assim como as mulheres trabalhavam, e por sua vez, seus filhos passavam todo o dia na escola, para se formarem e serem novas maquinas de ganhar dinheiro. Um dos costumes que o homem perdeu, foi o de cultuar seus mortos. Freqüentavam o cemitério apenas para enterrar seus entes queridos, depois das lagrimas, os mesmos lá eram esquecidos. Sim, a evolução fez com que o homem esquecesse até mesmo o próprio Deus. Ficaram neutros de sentimentos, com as mãos limpas, porem como robôs que dormiam, acordavam, trabalhavam, dormiam e começavam tudo de novo. Era finados, o cemitério assim como a cidade estavam vazios, as pessoas haviam aproveitado e emendado com o fim de semana para viajarem, depois de uma jornada anual de trabalho. A tarde, na boca da noite que ameaçava ser escura e longa, em meio ao vazio do cemitério, a terra começou a tremer levemente. O cheiro de podridão tomou o ar limpo, e as covas começaram a se abrir. As mãos, umas magras, outras descarnadas e podres, começaram a se erguer, em busca de apoio para saírem. Logo os primeiros corpos se levantaram, e caminharam entre tropeços e dificuldades rumo ao portão principal. Os mortos estavam de pé, decidiram que se os vivos não fossem cultuá-los, iriam eles a seu encontro. Derrubaram o portão e se espalharam pela cidade vazia, sem encontrar ninguém. Cada morto sozinho ou em grupo, tomou uma casa, a maioria deles, tomaram as casas que eram de sua propriedade em vida. Três dias depois, ao entardecer, os habitantes da cidade voltaram felizes e cansados da longa viagem. Já ao entrarem

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na cidade, perceberam o forte cheiro da morte, se surpreenderam quando viram seus entes queridos, tomando conta de seus lares. Sem forças para lutar, foram dominados pelos mortos, que os levaram até o cemitério e os enterraram em suas covas. Os vivos, agora sepultados, em nada pensaram, alem de se lamentarem e torcerem pelos mortos lhes cultuarem no próximo dia de finados.

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Véu Branco

Lagrimas triste Cai no Afago O peito febril

O homem deixa se levar O peito aberto

A moça chora a perda Sobre a doce e braba ferida

As lagrimas secam Mas não foram em vão

A noite nua cai O véu branco cobre o rosto morto

O rosto do amado Novas lagrimas brotam È triste a despedida Do véu a madeira

Sobre a madeira a terra fofa A crus larga e fina Brilha no horizonte

Tal qual as lagrimas sofridas Moço puro

De muita sorte Sorte limpa

Como seu peito costurado Sorte única

Por ter alguém Alguém que chora por ele