Livro Invisibilidade Expressões Rute Rosana

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RUTE BAQUERO e ROSANA KATIA NAZZARI (Orgs.) FORMAS DE (EX)PRESSÃO JUVENIL E (IN)VISIBILIDADE SOCIAL Coluna do Saber Cascavel 2010

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Coletânea de artigos sobre

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RUTE BAQUERO e ROSANA KATIA NAZZARI

(Orgs.)

FORMAS DE (EX)PRESSÃO JUVENIL E (IN)VISIBILIDADE SOCIAL

Coluna do Saber Cascavel

2010

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Revisor: Célio Escher Ficha Catalográfica

Baquero, Rute e Nazzari, Rosana Kátia (Org.) Formas de (ex)pressão juvenil e (in)visibilidade social

/ Rute Baquero, Rosana Katia Nazzari – Cascavel: Coluna do Saber, 2010. 200 p. –

ISBN: 1. Ciência Política 2. Educação 3. Políticas Públicas 4.

Juventude 5. Brasil. CDD-20.ed. 320.98162 306.2 321.8

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SOBRE OS AUTORES

André Dias Mestre em Educação pela Universidade do Vale do Rio dos

Sinos. Professor do ensino superior, graduação e pós-graduação (lato sensu), nos Cursos de Pedagogia, de Psicopedagogia e MBA em Gestão Ambiental, no Instituto Educacional do Rio Grande do Sul. Professor-tutor do Curso de Pedagogia do Núcleo de Educação à Distância do Centro Universitário Leonardo da Vinci. Atua também em projetos sociais com educação básica, formação de professores na ONG CURUPIRA de Educação Ambiental. E-mail: [email protected].

Daniela Longoni Mestre em Educação pelo Programa de Pós-Graduação da

Universidade do Vale do Rio dos Sinos, licenciada em Educação Artística e bacharel em Artes Plásticas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Consultora na área de Educação, com ênfase em Educação Social e Educação de Jovens. E-mail: [email protected].

Eliane Brenneisen Doutora em Ciências Sociais pelo Programa de Pós-Graduação

da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e professora de Sociologia do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Sociedade, Cultura e Fronteiras, ambos na Universidade Estadual do Oeste do Paraná. Atualmente realiza pós-doutoramento na Universidade de Coimbra, no Centro de Estudos Sociais. E-mail: [email protected].

Janilson Pinheiro Barbosa Mestre e doutorando em Educação pela Universidade do Vale

do Rio dos Sinos. Licenciado em Filosofia pelo Centro Universitário La Salle. Especialista em Direitos da Criança e do Adolescente. E-mail: [email protected].

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Karine dos Santos Mestre em Educação pelo Programa de Pós-Graduação da

Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Licenciada em Pedagogia pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Consultora na área de Educação, com ênfase em Educação de Jovens, atuando principalmente nos campos da Pedagogia Social e da Educação não formal. E-mail: [email protected].

Marcello Jacome Baquero Doutor em Ciência Política pela Florida State University, com

pós-doutorado no Instituto “Gino Germani”, da Universidade de Buenos Aires, e pós-doutorado na Universidade de Sussex, Inglaterra. Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política e coordenador do Núcleo de Pesquisas sobre a América Latina, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. E-mail: [email protected]. Maria Augusta Salin Gonçalves

Doutora em Educação pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, com pós-doutorado na Universidade de Kassel, Alemanha. Professora e pesquisadora aposentada da Universidade Federal de Santa Maria e do Programa de Pós-Graduação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos. E-mail: [email protected].

Marilene Alves Leme Mestre em Educação pela Universidade do Vale do Rio dos

Sinos. Licenciada em Pedagogia pela Universidade Feevale. Funcionária pública na Prefeitura Municipal de Novo Hamburgo/RS, exercendo atividades nos serviços ligados à juventude junto à Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social. E-mail: [email protected].

Patrícia R. C. da Cunha Mestre e doutoranda em Ciência Política pelo Programa de

Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Pesquisadora vinculada ao Núcleo de Pesquisas sobre a América Latina da mesma universidade e professora do Centro Universitário Ritter dos Reis. E-mail: [email protected].

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Paulino Pereira da Luz Especialista em Planejamento, Gestão e Avaliação de Políticas

Públicas da Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Campus de Toledo. Professor da rede estadual de ensino do Estado do Paraná. E-mail: [email protected].

Pedro Rodolfo Bodê de Morais Doutor em sociologia pelo Instituto Universitário de Pesquisas

do Rio de Janeiro e mestre em antropologia social pela Universidade Federa do Rio de Janeiro. Professor adjunto no Departamento de Ciências Sociais e coordenador do Centro de Estudos em Segurança Pública e Direitos Humanos da Universidade Federal do Paraná. E-mail: [email protected]

Rosana Katia Nazzari Doutora em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio

Grande do Sul, com pós-doutorado em Educação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Professora do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Sociedade, Cultura e Fronteiras, ambos na Universidade Estadual do Oeste do Paraná. E-mail: [email protected].

Rute Vivian Angelo Baquero Doutora em Educação pela Florida State University, com pós-

doutorado na Universidade de Buenos Aires e pós-doutorado na Universidade de Sussex, Inglaterra. Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos. E-mail: [email protected].

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SUMÁRIO

CAPÍTULO 1 – JUVENTUDE, MEDO E VIOLÊNCIA Pedro Rodolfo Bodê de Morais CAPÍTULO 2 – JOVEM INFRATOR: CONTROLE SOCIAL, IDENTIDADES E ETIQUETAMENTOS Janilson Pinheiro Barbosa CAPÍTULO 3 - A CORRUPÇÃO COMO LIMITE À PARTICIPAÇÃO POLÍTICA JUVENIL: UM ESTUDO EM DEMOCRACIAS SUL-AMERICANAS Marcello Baquero e Patricia R. C. da Cunha CAPÍTULO 4 – REPRESENTAÇÕES SOBRE O ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. O QUE NOS ENSINAM? Rute Baquero e Marilene Alves Lemes CAPÍTULO 5 - JUVENILIZAÇÃO DA VIOLÊNCIA E OS DESAFIOS ÀS PRÁTICAS ESCOLARIZADAS: UMA CONTRIBUIÇÃO A PARTIR DA EDUCAÇÃO SOCIAL Karine dos Santos e Rute Baquero CAPÍTULO 6 - O CAPITAL SOCIAL COMO INSTRUMENTO DE ENFRENTAMENTO DA VIOLÊNCIA INFANTOJUVENIL EM ESCOLA DE PERIFERIA Rosana Katia Nazzari e Paulino Pereira da Luz CAPÍTULO 7 – PARTICIPAÇÃO, CONSTRUÇÃO DE NORMAS E FORMAÇÃO PARA CIDADANIA: UMA EXPERIÊNCIA DOS ADOLESCENTES NA ESCOLA André Dias e Maria Augusta Salin Gonçalves

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CAPÍTULO 8 – DIMENSÃO POLÍTICA E DIMENSÃO ESTÉTICA NAS EXPERIÊNCIAS EXPRESSIVAS JUVENIS: (RE)FLEXÕES PARA UMA EDUCAÇÃO DO SENSÍVEL Daniela Longoni CAPÍTULO 9 - AÇÕES CULTURAIS DE JUVENTUDE EM PROJETOS DE DESENVOLVIMENTO RURAL Eliane Brenneisen

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APRESENTAÇÃO

As formas através das quais os jovens se (ex)pressam em nossa sociedade assumem características identitárias próprias e conectam-se em múltiplos espaços de experiências, criando significados diversos, desenhados nos muros das cidades, tatuados na pele, fruto de sonhos e lutas, perpassados por lágrimas e risos, escritos em letras de afirmação ou de revolta. Em suas vivências, os jovens agregam elementos que definem seus estilos de vida, na interface das emoções, das cognições, das tecnologias e do consumo. Ao mesmo tempo, constroem seus sonhos e elaboram os sentidos que atribuem à condição humana nos espaços em que vivem e sobrevivem. O interesse pelo tema da juventude vem se ampliando face às diversificadas demandas juvenis em nosso país, congregando, entre outros, interesses de intelectuais, de pesquisadores, de professores, de governantes e de profissionais do terceiro setor. Os jovens ocupam lugar de destaque no mercado capitalista, por serem consumidores em potencial; igualmente recebem destaque nos meios de comunicação, notadamente, em noticiários policiais. Nesse contexto, vão se criando vários estereótipos sobre uma pretensa condição juvenil. Os temas sobre jovens despontam como emblemáticos no século XXI, e demarcam novas fronteiras e espaços entre adultos e jovens, estabelecendo controvérsias a respeito da minoridade penal, do trabalho infantojuvenil e das formas de expressão de sua corporeidade, entre outros. O desencanto e apatia manifestada pelos jovens em relação às formas tradicionais de participação sociopolítica, trazem, por sua vez, para a cena contemporânea, a interrogação sobre como se dá a inserção desses jovens nos espaços públicos e privados.

Conjunturas históricas e processos sociais, marcados pelo processo globalização e surgimento de novas tecnologias, influenciam as trajetórias dos jovens, havendo, nos países em desenvolvimento, uma preocupação crescente com a questão de sua escolarização, a oferta de emprego e a juvenilização da violência, entre outros.

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As trajetórias juvenis, em função de classe, sexo ou etnia, concretizam-se de forma diferenciada no interior de uma dada sociedade e em múltiplas formas de inserção na estrutura social. Os jovens irrompem na sociedade moderna com a ânsia de serem notados, levados em conta e desejosos de contestar as normas sociais. Nessa tentativa de afirmação de si mesmos, desafiam os limites pela busca do sentido da vida. Na sua tentativa de visibilidade e de reconhecimento, alguns jovens se perdem em trajetórias conflituosas, marcadas por tensões, por conteúdos alheios a uma ação compartilhada da comunidade em que vivem, sem encontrar os rumos de um caminho que promova seu crescimento.

No Brasil, o tema da juventude, introduzido na Assembleia Nacional Constituinte de 1988, ao ser encaminhada a Emenda Popular “Criança Prioridade Nacional”, resultou na criação, naquele mesmo ano, do Fórum Permanente de Entidades Não Governamentais de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente, o qual culminou com a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em 1990. O ECA responsabiliza a família, a sociedade e o Estado pelo cumprimento ou não dos direitos e deveres que lhes são cabidos. O art. 5º assim determina: “[...] nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei, qualquer atentado por ação ou omissão aos seus direitos fundamentais.” Observa-se, no entanto, que, embora tenha feito avançar, de modo significativo, a discussão sobre as políticas de juventude, o ECA “jogou para uma zona nebulosa” a discussão sobre os direitos dos jovens que atingem a maioridade legal (KERBAUY, 2005, p. 201).

O tema da juventude foi inserido recentemente na agenda pública no Brasil, especialmente no reconhecimento de problemas que mais diretamente afetam os jovens: saúde, violência e desemprego. Em 2005, o governo federal cria o Conselho Nacional de Juventude, a Secretaria Nacional de Juventude e o Programa Nacional de Inclusão de Jovens: Educação, Qualificação e Ação Comunitária (PROJOVEM), cujo objetivo primeiro é o de elaborar e implantar política voltada para a população de mais de 34 milhões de pessoas de 15 a 24 anos de idade.

As políticas públicas juvenis no Brasil, em geral, são, porém, fragmentadas, estão à mercê da competição interburocrática, padecem de descontinuidade administrativa, agem em resposta a certas ofertas e

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não a demandas específicas, e revelam clivagens entre a sua formulação e a sua implementação. A ampliação dos canais de interlocução com os jovens também é incipiente.

Nesse contexto, conforme destaca Bango (2003), “[...] o desafio é reorientar as políticas de juventude na direção de um modelo de jovens cidadãos e sujeitos de direito que deixe paulatinamente, para trás, enfoques como o do jovem-problema que ameaça a segurança pública”.

Para tanto, torna-se necessário romper com a setorização das políticas de juventude, romper com a visão estigmatizada ou utilitarista da condição juvenil, estimular uma melhor relação entre a sociedade civil e os jovens, com eles promovendo canais de interlocução.

Apesar dos avanços, observa-se ainda, segundo Guimarães e Souza (2008), a rotina de denúncias sobre maus tratos, violência e trabalho cativo infantojuvenil. A violência contra a criança e o adolescente ainda persistem em nosso país, tanto no campo como na cidade. No campo, o trabalho infantil permanece invisível, com os filhos trabalhando com os pais nas fazendas. Nas cidades grandes e médias observam-se crianças e adolescentes trabalhando em condições subumanas, empurrando carrinhos de coleta de recicláveis ou em lixões, nas periferias das cidades ou, ainda, na prostituição infantil e no turismo sexual das ruas das cidades brasileiras.

O senso comum, no entanto, representa a juventude em contornos negativos, por meio de estigmas e de estereótipos. Dependendo do contexto social e econômico do qual os jovens são originários, são considerados perigosos, marginais, alienados, irresponsáveis, desinteressados ou desmotivados, e relacionados à violência e ao desvio de conduta (meninos de rua, gangues, galeras e vândalos).

Para Abramo (1997), a caracterização do comportamento dos jovens como estando propensos a um desvio no processo de integração social remete à similaridade das abordagens feitas na década de 1950, configurando a cultura juvenil como antagônica à sociedade adulta.

Diante disto, problematizar formas de (ex)pressão juvenil e sua (in)visibilidade social confira-se como agenda prioritária a ser enfrentada pela sociedade e pelo Estado nas primeiras décadas do século XXI. Num cenário de crise das instituições, das convenções sociais, dos conceitos e das teorias explicativas, torna-se urgente

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interrogar sobre as crenças e os valores dos jovens, sobre suas formas de pensar e de se expressar, problematizando possibilidades de afirmação juvenil. Dados sobre a discussão a respeito de formas de (ex)pressão juvenil e sua (in)visibilidade social poderão oferecer subsídios para a formulação de políticas e de estratégias junto aos jovens.

A obra está organizada em nove capítulos. No primeiro capítulo, Pedro Rodolfo Bodê de Morais, no texto intitulado “Juventude, medo e violência”, discute a maneira como formas de controle social perverso atuam na produção de medo, articulando juventude à violência e apresentando os jovens como produtores de violência, o que justificaria, por sua vez, a intensificação da repressão desse grupo, destacadamente pelo Estado por intermédio da polícia.

No capítulo 2, Janilson Pinheiro Barbosa, em “Jovem infrator: controle social, identidades e etiquetamentos”, analisa efeitos de práticas socioeducativas desenvolvidas com jovens que cumprem medida privativa de liberdade. Ao tratar dessa problemática, o autor, ao ouvir testemunhos de jovens que vivenciaram esse tipo de experiência, apresenta as tensões da medida socioeducativa de internação, assim como os efeitos na construção de identidade dos jovens a ela destinados. A escuta de jovens, homens e mulheres que vêm cumprindo a medida socioeducativa de internação revelou que ela marca, em grande parte, negativamente suas vidas e suas representações sociais: a marca de infrator ou de infratora tem servido como estigma ou como etiqueta que vem situando esses jovens socialmente, com repercussões em seus projetos de vida.

No capítulo 3, em texto intitulado “A corrupção como limite à participação política juvenil: um estudo em democracias sul-americanas”, Marcello Baquero e Patricia R. C. da Cunha buscam, com base em pesquisa tipo “survey”, entender de que forma a corrupção limita a participação dos jovens e compromete, de forma geral, o fortalecimento democrático nessas nações. No artigo, os autores postulam que as sociedades latinas experimentam uma situação paradoxal, pois, por um lado, se constata a “consolidação” da democracia formal-poliárquica, enquanto que, por outro lado, persistem fatores socioeconômicos que comprometem o avanço social da maioria da população desses países. Nessas condições, a juventude latino-americana é a que sofre os impactos de sociedades que se desenvolvem assimetricamente. Os jovens não se sentem

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protegidos por políticas sólidas que propiciem oportunidades para seu avanço social e econômico. A incerteza do futuro é o que mais impacta os jovens atualmente. Nesse cenário, a frustração se transforma em hostilidade e em antagonismo em relação à política.

O capítulo 4 traz o texto “Representações sobre o estatuto da criança e do adolescente. O que nos ensinam?”, de Rute Baquero e Marilene Alves. As autoras observam que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) é um importante instrumento para legitimar o campo das políticas públicas da criança e do adolescente no Brasil, que se tornou o primeiro país a acertar o passo da sua legislação com o que há de melhor na normativa internacional, nessa área. As diretrizes legais do Estatuto representam um marco fundamental no trato das questões da criança e do adolescente, transitando do paradigma da Doutrina Irregular para o paradigma da Doutrina da Proteção Integral, reconhecendo criança e o adolescente como sujeitos de direitos. As autoras questionam, no entanto, as representações sociais construídas pelos jovens e pelos professores em relação ao referido Estatuto, mostrando algumas contradições entre a lei e a prática social.

No capítulo 5, o texto “A juvenilização da violência e os desafios às práticas escolarizadas: uma contribuição a partir da educação social”, de Rute Baquero e Karine dos Santos, problematiza dados de um projeto social junto a jovens com histórico de violência, refletindo a respeito das possibilidades de aproximação de uma Educação Social com a educação escolarizada.

No capítulo 6, Rosana Katia Nazzari e Paulino Luz, no texto “Capital social como instrumento de enfrentamento da violência infanto-juvenil em escola de periferia” examinam o fenômeno da violência infantojuvenil em nossa sociedade e os projetos realizados em escola pública da periferia de uma cidade do interior do Paraná. Destacam que a violência infantojuvenil tem se manifestado em diferentes formas: desde “indisciplina” escolar até as situações judiciais e criminais na sociedade (rebeldias, pichações em prédios públicos, agressões físicas, brigas de gangues, uso de substâncias psicoativas, crimes contra a propriedade, homicídios, entre outros). A partir de reflexões da realidade em que vivem os jovens da comunidade e, de modo especial, os alunos da escola, objeto de análise, educadores, funcionários, pais, membros da APMF (Associação de Pais, Mestres e Funcionários), grêmio estudantil, conselho escolar e voluntários da comunidade (ONGs e igrejas),

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desenvolve uma ação conjunta centrada em projetos que buscavam a conquista e a cumplicidade desses adolescentes, com objetivo de atraí-los para dentro da escola e de forma que deixassem de praticar atos não lícitos, fortalecendo sentimentos de pertencimento à escola. Nessa direção, os autores relatam os resultados do projeto “Transparência e Democracia”.

André Dias e Maria Augusta Salin Gonçalves, no capítulo 7, no artigo “Participação, construção de normas e formação para cidadania: uma experiência com adolescentes na escola”, relatam a investigação de uma experiência realizada em escola de Primeiro Grau de bairro periférico da cidade de São Leopoldo/RS. A experiência teve como objetivo realizar um trabalho especial com um grupo de 17 alunos da oitava série com problemas de interação social. O trabalho teve como base a proposta pedagógica do método de projetos e consistiu na construção conjunta de um vídeo com as atividades culturais da escola. Sua finalidade foi possibilitar o desenvolvimento da solidariedade, o respeito mútuo e a cooperação, bem como a compreensão e a vivência da construção de normas sociais. Nesse processo, em todas as suas fases, foi incentivada a participação dialógica dos alunos, não somente em relação a questões técnicas, mas principalmente no que diz respeito a normas de interação social. Os encontros periódicos foram gravados, transcritos e analisados em uma perspectiva hermenêutica. A partir dessa análise, foram identificados e discutidos os momentos educativos mais significativos do processo de interação social, com base nas teorias de Piaget, de Kohlberg e de Freire, entre outros.

No capítulo 8, com o texto “Dimensão política e dimensão estética nas experiências expressivas juvenis: (re)flexões para uma educação do sensível”, Daniela Longoni problematiza a dimensão política e a dimensão estética nas experiências expressivas juvenis a partir de uma experiência de Intervenção Urbana construída por jovens dentro de um processo de intervenção-formação e pesquisa. Dados coletados durante o processo de intervenção revelaram contribuições da educação do sensível na educação de jovens, tanto no processo de ressignificação da participação sociopolítica juvenil quanto na construção de modos de estar e agir no mundo.

No capítulo 9, Eliane Brenneisen, com o artigo “Ações culturais de juventude em projetos de desenvolvimento rural”, aborda aspectos de ações culturais de juventude ocorridas no âmbito de um projeto de

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desenvolvimento rural por meio da formação de um grupo de teatro político-educativo. Sua análise foca-se na migração rural-urbana, nos laços identitários estabelecidos com os seus lugares de origem e na análise das históricas representações sociais sobre o campo e a cidade.

Os artigos que integram esta coletânea refletem análises e discussões realizadas por seus autores a partir de pesquisas de campo, de natureza qualitativa ou quantitativa, desenvolvidas, na sua maior parte, junto ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, mas também junto ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Estadual do Oeste do Paraná, ao Núcleo de Pesquisa sobre a América Lática (NUPESAL) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e ao Centro de Estudos em Segurança Pública e Direitos Humanos da Universidade Federal do Paraná.

A inclusão do jovem como sujeito de sua história e da construção de si e do mundo em que vive se impõem frente aos desafios do mundo contemporâneo. A busca de alternativas que tornem os jovens protagônicos de suas demandas, em conjunto com a coletividade, passa, no entanto, por uma (re)invenção de práticas e teorias explicativas.

A realização deste livro constitui-se em um trabalho coletivo que contou com a colaboração de colegas pesquisadores e de bolsistas de Iniciação Científica. Gostaríamos de agradecer aos colegas que, solidariamente, aceitaram o desafio de socialização de seus estudos e experiências com jovens. Nossos agradecimentos, também, às bolsistas de Iniciação Científica da Universidade do Vale do Rio dos Sinos Luiza Martins Reichow e Camila Gonçalves Chagas, que, responsavelmente, assumiram a revisão e a formatação dos artigos apresentados neste livro. Sua colaboração foi fundamental para a concretização deste livro.

Rute Baquero e Rosana Katia Nazzari

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JUVENTUDE, MEDO E VIOLÊNCIA

Pedro Rodolfo Bodê de Moraes

Introdução

Nós nos propomos, neste artigo, discutir de que maneira formas de controle social perverso – distintas, é bom que se diga, do controle social como um fenômeno intrínseco à qualquer sociedade ou grupo e relacionado à produção de bem-estar coletivo e à constituição do eu – atuam na produção de medo, articulando juventude à violência ou, melhor, apresentando, por motivos vários, os jovens como produtores de violência, o que justificaria, por sua vez, a intensificação da repressão desse grupo, destacadamente pelo Estado por intermédio da polícia. Trata-se de uma repressão que é tanto mais intensa quanto mais os jovens reúnam outros atributos de caráter racial e geográfico. Negros e moradores da periferia constituem o principal alvo dessa repressão, que acontece cotidianamente, em especial nas periferias das grandes cidades ou quando grupos de jovens da periferia tentam acessar os serviços, principalmente os de lazer e de trabalho, nos centros ou em outras áreas em que estejam disponíveis, mas que não são, todavia, espaço de circulação desses mesmos jovens.

Como parte do processo de criminalização da marginalidade (COELHO, 1978), a produção do medo por intermédio da estigmatização e da satanização dos jovens – principalmente de negros, pobres e moradores de regiões periféricas – conta também com a existência de outros dois elementos articulados, a saber, a militarização da polícia e a policialização da sociedade. Além disso, observamos um aumento da violência contra os jovens, seja nos altos índices de mortes violentas, particularmente homicídios, seja no aumento das taxas de encarceramento de indivíduos advindos desse grupo social. Essas práticas parecem ser as políticas públicas que efetivamente alcançam os jovens, considerando o declínio ou a precariedade de outras esferas da vida social, como o acesso ao trabalho ou aos processos educativos presentes na escola.

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Medo e juventude Como sabemos, o medo é, talvez, um dos mais importantes sentimentos humanos, uma vez que se encontra relacionado à preservação da vida, portanto, natural e necessário. Como coloca Delumeau, o medo “[...] é uma defesa essencial, uma garantia contra os perigos, um reflexo indispensável”. Cabe entender, no entanto, que, tanto individual como coletivamente, o medo pode também tornar-se patológico, “criar bloqueios” e “[...] com efeito, tornar-se causa da involução dos indivíduos” (DELUMEAU, 2002, p. 19 e 20) – afirmação que se relaciona às questões levantadas por Elias (1998) ao discutir a necessidade de nos alienarmos ou distanciarmos do envolvimento posto pela vida para que possamos, então, compreender e buscar soluções. Elias, partindo de um conto de Edgar Allan Poe, nos mostra como, no controle do medo, pode estar a diferença entre a vida e a morte (1). Como explica esse autor (1998, p. 167), “[...] há processos em que a sensação de perigo iminente é tão fortemente avassaladora, que, para a maioria das pessoas, a relativa alienação e o controle do medo tornam-se inatingíveis [...]”, o que aconteceria em função de um “dilema fisiopsicológico e sociopsicológico”, em que se estabeleceria um círculo vicioso no qual

[...] o alto nível de exposição aos perigos de um processo tende a aumentar a emotividade das respostas humanas. Essa alta emotividade da resposta diminui a possibilidade de avaliação realista em relação a ele; sob pressão de fortes emoções, um comportamento relativamente não realista diminui a possibilidade de colocar o processo crítico sob controle. Em resumo, a incapacidade de controlar tende a ser paralela à alta emotividade da resposta, o que mantém a possibilidade de controlar os perigos do processo em nível baixo, que mantém a emotividade da resposta, e assim por diante (Elias, 1998, p. 169). (2)

É verdade que Elias trata, pelo menos inicialmente, de perigos reais, ainda que a sua reflexão nos leve a crer que, exatamente em

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função da alta emotividade na/da resposta, um perigo real possa ser desfocado ou deslocado e transformado em um perigo imaginário, tomando proporções e tornando-se um problema muito maior, porque, de certo modo, tornou-se uma realidade imaginária, não no sentido positivo que o termo possa encerrar, mas sob a forma de angústia, entendida como um medo sem “objeto determinado”, sendo “[...] vivida como uma espera dolorosa diante de um perigo tanto mais temível quanto menos claramente identificado: é um sentimento global de insegurança” (DELUMEAU, 2002, p. 25) (3). E, como já nos referimos, não estamos tratando, no caso em questão, apenas de sentimentos individuais, mas do medo e da insegurança como fenômenos coletivos, um fato social, como sugerido por Durkheim (1977 [1897]). Delumeau (2002) chamou atenção para as grandes fontes de medos imaginários durante a Idade Média e a Renascença, representados pelos agentes de Satã, a saber, muçulmanos, judeus e mulheres, estas últimas, posteriormente, associadas à feitiçaria. O medo ou sentimento de insegurança com as características acima descritas, consolidadas em uma cultura do medo (GLASSNER, 2003) e personificadas em atores e grupos sociais e suas práticas, ou sobre o que se imagina que eles sejam e pratiquem, parece ser uma condensação (4), de sentimentos mais generalizados de insegurança. As mudanças que observamos no universo do trabalho e do emprego, dominado pelo curto prazo do novo capitalismo e suas relações com a construção do futuro e da identidade (5), submetendo os indivíduos a um risco constante e à sensação de que estão à deriva (SENNETT, 1999), seriam, contemporaneamente, os elementos que, percebidos difusamente, acabariam por personificar-se em determinadas práticas ou grupos, como, por exemplo, o crime – ou pelo menos o que é assim percebido – e o criminoso (6). A angústia teria neles seus distorcidos objetos.

Tal percepção do crime e do criminoso parece reeditar a figura das classes perigosas, como descritas em meados do século XIX, que associavam perigo à juventude, presos ou ex-presos, (7) e que, já naquela época, operava uma criminalização da marginalidade e da miséria (8) – jovens que, dependendo de sua classe ou raça, passam ou transitam com certa facilidade de vítimas a algozes. Antes de partirmos para uma reflexão mais detida sobre de que maneira o jovem é percebido e definido como perigoso e, portanto, autor/produtor de medo, façamos

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uma breve discussão conceitual sobre o termo juventude. Como nos ensina Bourdieu (1983), juventude é uma daquelas palavras cuja definição se presta a todo tipo de manipulação, entre outras coisas, porque é uma categoria que tende a ser percebida e definida biologicamente, ignorando-se que “as divisões entre idades são arbitrárias” e “objeto de disputas em todas as sociedades” (BOURDIEU, 1983, p. 112). Ou seja, para muito além do aspecto biológico, a juventude e seus atributos seriam uma categoria socialmente construída e dependente de condição de classe, de proximidade do poder, de gênero e de raça e que, por sua vez, “[...] acabam sempre por impor limites e produzir uma ordem onde cada um deve se manter, em relação à qual cada um deve se manter em seu lugar” (BOURDIEU, 1983, p. 112). Todavia, tudo indica que, de maneira geral, há uma percepção mais ou menos universal de que “a juventude se caracteriza por seu marcado caráter de limite”, situada que está “no interior das margens móveis entre a dependência infantil e a autonomia da vida adulta” (LEVI & SCHMITT, 1996, p. 8) (9), processo que remeteria à construção da identidade, cuja dinâmica constituiria, em muitos casos, uma identidade mesma que teria como marca distintiva a provisoriedade. Parecendo ser exatamente essa característica que remeteria à juventude e, mais particularmente à adolescência, para um espaço de “irresponsabilidade provisória”, uma vez que “estão numa espécie de no man‟s land social”, conforme a excelente definição de Bourdieu (1983, p. 114). Seria tal condição que transformaria os jovens em um tipo social que, dependendo de sua localização social, precisaria ser protegido ou constituir-se-ia em uma ameaça?

Gostaríamos ainda de destacar a continuidade ou o desdobramento ou, melhor, a aplicação de formas de controle social perverso da juventude, controle que funcionaria, ao mesmo tempo, como uma forma específica de socialização, que percebe os jovens como incompletos, instáveis, e, por isso mesmo, mais perigosos. Trata-se de práticas e de discursos que definem tal grupo pela falta, aprofundando a estigmatização ao considerar atributos étnicos e raciais, de classe e ou geográficos.

Por sua vez, esse processo se encontra intimamente ligado à produção e à construção do medo, que é, frequentemente, utilizado como um elemento de chantagem e fundamental no processo de

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conservação de estruturas sociais excludentes.

Juventude e perigo

São abundantes os casos em que jovens e adolescentes são tomados como “ameaça à sociedade” ou “vítimas dela”, porque, estando em formação, seriam mais facilmente influenciáveis, inclusive – e aqui haveria um grande perigo – pelo mundo do crime. Ouvimos diversas vezes, de diferentes profissionais, de policiais a assistentes sociais, passando por sociólogos e psicólogos, formando um contraditório conjunto, que jovens delinquentes são mais perigosos do que os não jovens, porque “são muito influenciáveis”, “ficam muito mais nervosos”, “nada têm a perder” ou “são frios”, como se tais atributos fossem naturais à idade. É, particularmente, do jovem visto como representante do perigo e como ameaça à sociedade que trataremos.

Um caso se apresenta como paradigmático pelo debate que ensejou à época. Trata-se do assassinato de dois jovens por quatro adultos e um igualmente adolescente. É também um excelente exemplo dos jovens e adolescentes que são alvo do perigo e daqueles que são perigosos. O caso em pauta serviu para deflagrar um debate na mídia sobre a redução da idade penal para 16 anos, idade do adolescente envolvido no assassinato do casal de namorados.

O criminoso foi descrito como

[...] pobre, filho de pai alcoólatra, ele estudou apenas até a terceira série do ensino básico. Entre os dez e os catorze anos, Champinha ajudou a mãe no trabalho da roça, mas, no lugar de uma adolescência sadia, ele sofre com a falta de medicamentos para as convulsões que começou a ter a partir dos catorze anos, quando passou a viver largado pelas ruas prestando serviços a quadrilhas que atuam nos desmanches de carros roubados. Apesar de não registrar nenhuma passagem pela Febem, ele é acusado de já ter matado pelo menos uma pessoa. Sempre com um facão na cintura, Champinha se impunha na região pelo medo que transmitia aos vizinhos, conhecedores de seus crimes. (10)

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O adolescente foi apresentado como sendo o principal mentor e o mais perigoso entre os criminosos. Aliás, os adultos que faziam parte do grupo ficaram eclipsados pela suposta periculosidade do menor, que teria confessado “[...] ter matado apenas porque sentiu vontade de matar”. (11).

Já as vítimas foram caracterizadas da seguinte maneira: Liana Friedenbach, de 16 anos, filha de um advogado e uma pedagoga, é “[...] a filha mais velha de uma família de classe média alta; cursava, no período noturno, o segundo ano do ensino médio no colégio São Luiz, um dos mais tradicionais de São Paulo”. Seu namorado, Felipe Silva Caffé, de 19 anos, é apresentado como “[...] o caçula dos quatro filhos do economista Reinaldo e da enfermeira Lenice, de classe média baixa; estava desempregado e cursava o terceiro ano do ensino médio, também no São Luiz, como bolsista” (Revista Isto É, ed. n. 1781).

Como explica a reportagem, “Felipe e Liana mentiram para seus pais”. No correr da matéria, a partir de consultas a especialistas, fica estabelecido que mentir teria sido o seu delito. Mentir, contudo, continua a matéria jornalística, seria “típico dos jovens”, mas poderia tornar-se um grave problema, tanto ao colocar os jovens em riscos que os adultos poderiam ajudar a evitar, quanto a sua permanência como um atributo do caráter. A mentira foi, outrossim, transformada em uma característica da juventude e associada à instabilidade, como informa uma psicóloga entrevistada: “Os jovens mentem e vão mentir sempre. É uma maneira de adquirir privacidade”. Sem partirmos para maiores questionamentos, faríamos apenas uma indagação: adultos não mentem?

Em meio ao debate sobre a redução da idade penal, que, como dissemos, o caso fez emergir, foram feitas pesquisas de opinião – de questionável alcance sociológico – que sinalizaram que a população brasileira seria amplamente favorável à redução da idade penal (12).

Valem aqui todas as discussões feitas por Elias, anteriormente citadas, sobre o “grau de resposta da emotividade humana” em situação de perigo, bem como aquela relacionada aos medos e aos perigos imaginários, que, a partir de um caso excepcional e de sua repercussão na mídia, solidária também no medo, acabam por submergir em um debate marcado pela ignorância por um lado e pelo conservadorismo por outro. Ignorância, porque desconhece ou quer desconhecer, por exemplo, os dados relativos à prática de crimes entre jovens, bem como

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as discussões sobre a eficácia da punição via encarceramento. E conservador pelas razões anteriormente destacadas, a saber, a manutenção de estruturas sociais excludentes.

Em relação aos jovens como vítimas e como algozes, é fundamental que saibamos que os jovens são muito mais vulneráveis – e, portanto, vítimas – que vitimizadores. Dados da Unesco (cf. Tabela 1) indicam que, se a taxa total de homicídio se manteve basicamente a mesma entre 1980 e 2002, observa-se um aumento brutal das mortes entre jovens de 15 a 25 anos. Como explica Waiselfisz (2004), “[...] os avanços da violência homicida das últimas décadas no Brasil são explicados, exclusivamente, pelos incrementos dos homicídios contra a juventude”. Em dados estatísticos, isso significa que se, para a população total, entre os anos 1980 e 2002, a taxa de homicídios por cem mil habitantes variou de 21,3 para 21,7, em relação ao grupo etário entre 15 e 25 anos, nota-se um aumento de 30,0 (por cem mil jovens), em 1980, para 54,5 (por cem mil jovens), em 2002. E ainda, se os homicídios são responsáveis por 62,3% dos óbitos na população total, correspondem, por sua vez, a 88,6% da causa da morte entre jovens. Se considerarmos o item raça separadamente, nota-se que os homicídios de jovens pardos e negros são 65,3% maiores que os homicídios de jovens brancos.

Destaque-se, finalmente, que, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o número de homicídios somado aos de acidentes de trânsito impactam nossa expectativa de vida em até três anos. Ou seja, não fossem esses índices escandalosos, os brasileiros teriam sua expectativa de vida aumentada de 71,3 anos para 74,3 anos.

Em relação ao encarceramento de jovens (13), constatamos que a grande maioria se encontra nessa condição por ter cometido furtos e pequenos roubos e um pequeno grupo condenado por homicídio. No caso dos internos na Fundação Estadual de Bem-Estar do Menor de São Paulo, roubos e furtos somam a maioria dos crimes, a saber, 70,6%. Por sua vez, os homicídios perfazem 8,0% (14).

Os dados acima são um bom demonstrativo do fato de que os jovens, principalmente os negros, são as principais vítimas da violência homicida, ao mesmo tempo em que, entre os crimes por eles cometidos, na amostra que utilizamos, os homicídios representam uma pequena fração (15).

Não obstante tal cenário, em que os jovens aparecem como

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vítimas, perdura no imaginário social a representação do jovem perigoso que, em gangs, perambula pela cidade, pronto para atacar os incautos (16). A invenção da gang (17), por sua vez, parece constituir-se na justificativa moral para o aumento da repressão aos jovens, da redução da menoridade penal e do endurecimento das penas.

Parte importante das classes perigosas, o jovem perigoso seria também uma das justificativas para os outros elementos que analisaremos doravante, a saber, a militarização das polícias e a policialização das políticas públicas de atendimento as esses jovens.

Perigo e militarização A história da militarização da polícia no Brasil é antiga. Ela atendia a uma demanda específica: o controle das classes perigosas. Na Colônia, tais classes eram compostas de escravos, pretos libertos, capoeiras e alguns imigrantes, e os métodos da polícia na relação com essa população “[...] espelhavam a violência e brutalidade da vida nas ruas e da sociedade escravocrata em geral” (HOLLOWAY, 1997, p. 50).

Para a função de controle dessas classes perigosas, nada melhor que militares, uma vez que, como explica Holloway (1997, p. 50),

A justificativa fundamental das organizações militares é concentrar, regular e dirigir forças contra o inimigo. O inimigo da polícia do Rio de Janeiro era a própria sociedade – não a sociedade como um todo, mas os que violavam as regras de comportamento estabelecidas pela elite política que criou a polícia e dirigia a sua ação.

Dessa maneira, a polícia “[...] era um exército permanente travando uma guerra social contra adversários que ocupavam o espaço ao seu redor” (HOLLOWAY, 1997, p. 50). A militarização das funções policiais continuou pelos períodos seguintes da vida nacional, uma vez que as elites brasileiras jamais deixaram de acreditar que os pobres são potencial e virtualmente perigosos, entre outras coisas, mas talvez principalmente por sua composição étnica e racial, responsável por um caráter nacional perigosamente disgênico e que, por isso, deveria ser tutelado e controlado da maneira que se entendia ou se entende como a

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mais eficaz: militarmente. A propósito, no caso brasileiro, considerando-se a presença e a permanência militar em esferas muito além de sua competência, além de ser portadora de um projeto de e para a sociedade, que se tentou aplicar nos diversos períodos ditatoriais da nossa história, assim como na manutenção de um “enclave autoritário” e de tutela de instituições civis em meio a um regime democrático (ZAVERUCHA, 1994 e 2000), talvez fosse mais apropriada a utilização do termo militarismo (18). Tal disposição militarista teria sido reforçada institucional e ritualmente a cada período ditatorial e teria impregnado e reforçado o caráter militarista das polícias, em especial da polícia militar. É essa estrutura policial, e policial militar em particular, um dos elementos mais objetiváveis do referido “enclave autoritário” existente no interior do Estado brasileiro, que justificaria e garantiria sua permanência, apesar dos problemas que tal estrutura suscita, entre os quais gostaríamos de destacar dois, que ora passamos a apresentar.

Primeiramente, não obstante a ineficácia das atuais estruturas policiais, corroídas não só por um formato organizacional e administrativo arcaico, porque militarizado, mas também pela violência e pela corrupção, as mudanças observadas foram cosméticas e superficiais, e todas as tentativas de mudanças mais efetivas abortadas. Em segundo lugar e ainda derivado da estrutura militarista, as relações institucionais e intersubjetivas entre praças e oficiais são marcadas por um abismo relacional regulado pelo Regime Disciplinar do Exército, instrumento meramente punitivo, ultrapassado e com um alto grau de subjetividade na interpretação de seus artigos e incisos. Ou seja, à formação militarizada some-se um processo de socialização marcado por injustiças e violências institucionais, segundo a percepção dos praças, o que certamente tem reflexos na sua atuação nas ruas (19). Curiosamente, a argumentação pró-militarização invoca exatamente a necessidade de manutenção da disciplina sobre um contingente que foi recrutado junto à mesma população que será alvo de suas ações e também é, de certa forma, percebida como membros das classes perigosas. Assim, no entanto, como devemos avaliar a violência cometida contra a população civil, assim como a corrupção, práticas que estão longe de serem exceções no interior destas corporações? Elas são comandadas? De alguma forma, elas são percebidas pela tropa como possibilidades, considerando o grau de impunidade com que são tratadas as violências

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praticadas contra os segmentos pobres, negros e de regiões periféricas. Essa tropa encontra-se assim não porque não tenha sido treinada para tratar de modo civilizado e correto com a população, não porque tenha faltado às aulas de direitos humanos ou de resolução e mediação de conflitos. A tropa foi treinada, por intermédio da internalização da cultura institucional, para ser exatamente o que é, por meio de práticas e de atitudes que não precisam de explicação, encerram uma racionalidade própria e são capazes de resistir às tentativas de mudanças ou ressignificar as propostas de mudanças sem a produção de mudanças efetivas no caráter da instituição. É a esta polícia que se quer confiar tarefas que, primeiramente e antes de tudo, não seriam atribuição dela e, em segundo lugar, para as quais ela não se encontra preparada pelo simples fato de que foi treinada para outro tipo de resposta. A policialização de políticas públicas para a população jovem, pobre, negra e de periferia será tratada a seguir. A policialização da sociedade: as políticas públicas para os pobres Considerando os dados relativos aos homicídios e ao encarceramento dos jovens pobres, negros e de regiões periféricas, assim como as relações cotidianas entre esse mesmo grupo e as polícias, marcadas por alto grau de violência e de desconfiança (20), encontramos o que efetivamente têm sido as políticas públicas disponíveis e aplicadas a essa população: repressão, prisão e extermínio. Wacqüant (2001b e 2001c) tem chamado atenção para como o encarceramento tornou-se uma política pública implementada com a ascensão do Estado penal em substituição do Estado social. Assim também acontece no caso brasileiro (cf. MORAES, 2005), em um processo que tem atingido com grande voracidade principalmente a população jovem (21). No caso brasileiro, e particularmente no Paraná, todavia, há outro tipo de política pública para a qual gostaríamos de chamar atenção pela sua exemplaridade e significado no processo de policialização da sociedade e das políticas públicas destinadas à população pobre, negra e periférica.

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No Paraná, criou-se uma patrulha escolar (22), integrada com quadros da Polícia Militar, cuja função seria a de “consultora de segurança” da escola. Baseada na cultura do medo e na criminalização da juventude pobre, a patrulha escolar foi e tem sido utilizada para resolver conflitos e problemas que deveriam ser objeto de tratamento pela escola e pelos professores, uma vez que costumam ocorrer problemas de indisciplina e conflitos absolutamente comuns ao universo escolar (23), o que é muito claramente percebido pelos próprios policiais, como colocou uma policial membro da patrulha escolar:

[...] nós fazemos a função de orientadora, supervisora, eles não dão conta dos alunos. Aí eles querem e muitas pedem que a gente vá pôr medo nos alunos ou então alguma solução. [...] Então nós fazemos muito essa função, até nas escolas nós atendemos, não precisa de orientação, principalmente de orientadora, porque elas... nós fazemos a função delas (apud SALLAS, 1999, p. 197).

Os professores solicitam a ingerência da patrulha escolar “[...] até para que você tenha uma idéia, tem professora [...] ela quer que até a gente fale para o menino tomar banho” (apud SALLAS, 1999, p. 197) (24). Esses policiais também são responsáveis por “gerais”, ou seja, revistas feitas em estudantes, na sala de aula, em horário de aula. Destaque-se que tal procedimento tem o apoio da maioria de pais e professores e autorização do juízo correspondente. Nessas revistas, tesouras e compassos são transformados em armas e apreendidos, alguns jovens são mais detidamente revistados que outros em função de seus perfis. Além da ilegalidade flagrante de alguns desses procedimentos e da sua questionável eficácia no que diz respeito ao controle das supostas violência e criminalidade existentes na escola, ela aprofunda a estigmatização e a criminalização da juventude pobre na medida em que trata a todos como suspeitos. A patrulha escolar tem produzido efeitos tais como aumento dos casos de violência entre jovens e policiais, dificuldades no tratamento positivo dos conflitos internos da escola, esvaziamento ainda maior da autoridade do professor e desgaste da autoridade do

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policial. Todavia, não é nossa intenção discutirmos, neste momento, a patrulha escolar, mas utilizá-la como exemplo para se pensar um dos aspectos do processo de policialização da sociedade ou, como denomina Wacquant (2001, p.141), da “gestão judiciária e carcerária da pobreza”, uma tendência generalizada para supostamente aumentar a segurança (25). No caso brasileiro, as coisas se complicam, porque as estruturas policiais existentes se constituem, em muitos aspectos, como parte do problema e não da solução. Assim, isso, como o fato de se colocar sob a responsabilidade da polícia a pacificação do espaço social, sem se considerar os problemas anteriormente relatados e principalmente a falta de legitimidade, respeito e confiança junto à população, tem se mostrado equivocado (26). Conclusão Muito acertadamente Barry Glassner (2003, p. 137) destaca que

O medo cresce [...] proporcionalmente à culpa inconfessa. Ao cortar gastos com programas educacionais, médicos e antipobreza para os jovens, comete-se grande violência contra eles. Porém, em vez de se enfrentar a responsabilidade coletiva, projeta-se à violência contra os próprios jovens e contra os estranhos que se imagina irão atacá-los.

Outrossim, observamos que a ampliação e a intensificação de políticas repressivas, punitivas e criminalizadoras em relação aos jovens têm produzido efeito diverso daquilo que prometem. Primeiro e antes de tudo, porque aumentam o medo e tornam mais reativas e emocionais as respostas. Em segundo porque, tendo como objeto uma distorção da realidade, respondem emocionalmente à distorção, ou seja, são incapazes de perceber, racional e cientificamente, quais ou o que deveria ser efetivamente mudado. E assim prestam-se para reforçar

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todo o sistema que foi, ele próprio, produtor daquilo que pretende combater. Por outro lado, tal cenário cria obstáculos à construção da autoridade e do limite para os jovens, uma vez que se confunde o sentido mesmo e o significado dessas noções. Autoridade nada tem a ver com posturas autoritárias, muito ao contrário, os processos autoritários são a própria negação da autoridade, aprendemos com Max Weber. Sem autoridade, por sua vez, é impossível a constituição do limite, uma vez que este precisa, necessariamente, daquela para serem operados. Isso é claramente observável no espaço escolar, no qual professores esvaziados, por motivos vários, em sua autoridade tentam resolver os problemas autoritariamente e assim acabam entrando no circulo vicioso que, por fim, legitima ações policialescas, distanciado-se, cada vez mais, das soluções efetivas do problema, que são, por vezes e paradoxalmente, menos problemáticos que as soluções propostas.

Notas

1 Trata-se do conto “Descida no Maelström”, publicado pela primeira vez em 1841 (POE, 1986, p. 873). Nesse conto, Poe relata o caso de dois irmãos tragados por um terrível redemoinho enquanto pescavam. Um deles, controlando seu medo, ao observar como se comportavam determinados objetos que boiavam ou afundavam, amarrou-se a um barril e salvou-se. Já seu irmão, agindo como “louco delirante, por causa do completo terror”, sucumbe ao turbilhão.

2 Tal discussão feita por Elias tem relação direta com a sua análise sobre os “espaços sociais pacificados”, presente em sua teoria dos processos civilizadores (1993[1939]).

3 Cf. tb. Dorsch, 2001, p. 49, 50 e 400; Laplanche & Pontalis, 1985, 60-62, 277 e 384-386.

4 Como explica Laplanche & Pontalis (1985, p. 129), trata-se de “[...] uma representação única [que] representa por si só várias cadeias associativas em cuja intersecção se encontra”.

5 Richard Sennett (1999, p. 27) destaca que “[...] o capitalismo de curto prazo corrói o caráter dele, sobretudo aquelas qualidades de caráter que ligam os seres humanos uns aos outros, e dão a cada um deles um senso de identidade sustentável”. Por sua vez, Robert Castel (1998, p. 503) destaca que, para os trabalhadores, a “sua relação com o emprego

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através da certeza de controlar o futuro [permitiu que] fizesse escolhas que engajavam esse futuro”, diferentemente daqueles trabalhadores submetidos ao desemprego que “se instalam na precariedade” e passam a ter a “precariedade como destino” (CASTEL, 1998, p. 528).

6 Nils Christie (1998, p. 13) chama atenção para o fato de que “[...] atos não são, eles se tornam alguma coisa. O mesmo acontece com o crime. É criado. Primeiro existem atos. Segue-se depois um longo processo de atribuir significado a esses atos. A distância social tem uma importância particular. A distância aumenta a tendência de atribuir a certos atos o significado de crimes, e as pessoas o simples atributo de criminosas”.

7 Guimarães (1981, p. 01 e 02) explica que o termo “classes perigosas (dangerous classes)” indicava “[...] um conjunto social formado à margem da sociedade civil, surgiu na primeira metade do século XIX”. Seu uso foi registrado no Oxford English Dictionary, na edição de 1859, mas o termo já havia sido utilizado no título de uma obra sobre um reformatório para jovens em 1849. Uma importante autora de “trabalhos sobre matéria criminal”, a saber, Mary Carpenter, utilizava este conceito para denominar os grupos formados “pelas pessoas que houvessem passado pela prisão ou as que [...] já vivessem notoriamente da pilhagem”, convencidos de que poderiam “ganhar mais praticando furtos do que trabalhando”.

8 Cf. em Wacquant (2001a), uma análise para a “criminalização da miséria” nos EUA.

9 Para que não se tenha qualquer dúvida em relação à determinação social do fenômeno, Levi & Schmitt (1996, p. 8) destacam que “[...] nenhum limite fisiológico basta para identificar analiticamente uma fase da vida que se pode explicar melhor pela determinação cultural das sociedades humanas, segundo o modo pelo qual tratam de identificar, de atribuir ordem e sentido a algo que parece tipicamente transitório, vale dizer caótico e desordenado”.

10 Revista Isto É, edição n. 1781. A descrição nos faz lembrar dos atributos dos anormais, como descrito por Foucault (2002). Estes seriam julgados não pelo crime que teriam praticado, mas por uma série de outros elementos que comporiam um comportamento que seria alvo do discurso psiquiátrico sobre o crime e o comportamento criminoso.

11 Revista Isto É edição n. 1781. 12 Destaque-se a pesquisa do Datafolha, responsável pelas pesquisas de

opinião do jornal A Folha de S. Paulo, que chegou à conclusão de que

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84% da população do país apoiariam a redução da menoridade penal. Índice próximo ao da pesquisa de opinião encomendada pela Ordem dos Advogados do Brasil, a saber, 89%.

13 O Estatuto da Criança e do Adolescente denomina as punições aplicadas aos jovens como medidas socioeducativas, e o encarceramento deles uma medida socioeducativa que implica na internação do delinquente (Art. 90, inciso VII do ECA). Consideramos, outrossim, que o que está posto é, na prática, a mesma lógica punitiva imposta aos adultos, configurando, na expressão de Sérgio Adorno, uma “experiência precoce de punição” e, completaríamos, de encarceramento.

14 Onde 100% = 21146. Levantamento feito pela FEBEM/SP em 2000. Não conseguimos dados mais recentes e de uma amplitude maior. Cremos, no entanto, que não haveria diferenças expressivas para a realidade nacional.

15 Temos ciência de que os dados estatísticos aqui utilizados apresentam problemas tanto em relação à constituição da amostra (apenas para o caso paulista), quanto da correlação que estamos sugerindo entre os jovens vítimas de homicídios e aqueles condenados por homicídio. Seria necessário um estudo específico estabelecendo tal correlação. Todavia, cremos que o quadro apresentado indicaria uma tendência possível.

16 As gangs, neologismo de origem americana, ocupam um lugar de destaque na representação negativa dos jovens. Entidade midiática, tanto no caso americano (SANCHEZ-JAMKOWSKI, 1991) quanto no brasileiro (DIÓGENES, 1998). Para o caso curitibano, cf. Sallas (1999), principalmente capítulo 3.1, “Grupos identitários e territoriais”.

17 Segundo uma policial militar membro da patrulha escolar, sobre a qual falaremos mais à frente, “essa palavra [gang] veio..., as próprias professoras usam este termo, geralmente são grupos de alunos que estão dentro ou fora da escola, do estabelecimento, promovendo desordem. Aí eles dizem que tem gang promovendo desordem, só não dizem, não repassam isso pra nós, não informam que são alunos. E nós, quando chegamos no local, vemos que são alunos e que a situação deveria ser resolvida dentro da escola, no caso, o orientador, a psicóloga e outros funcionários que estariam envolvidos com essa situação, então eles que, no caso como já falamos, que a polícia resolva o problema deles” (apud SALLAS, 1999, p. 96).

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18 Como explica Bobbio (1992, p. 748), “[...] o militarismo constitui um vasto conjunto de hábitos, interesses, ações e pensamentos associados com o uso das armas e com a guerra, mas que transcende os objetivos puramente militares. O militarismo é tal que pode até chegar a dificultar e impedir a consecução dos próprios objetivos militares. Ele visa a objetivos ilimitados; objetivos de impregnar a indústria e a arte, conferir às Forças Armadas superioridade sobre o governo; rejeita a forma científica e racional de efetuar a tomada de decisões e ostenta atitudes de casta, de culto, de autoridade e de fé.”

19 Transita, neste momento, no Congresso Nacional, uma Proposta de Emenda Constitucional, a PEC 144, que, uma vez aprovada na forma como foi apresentada – o que, diga-se de passagem, é muito improvável, pode surtir importantes efeitos. Destacamos a desconstitucionalização das polícias e o fim da justiça militar como importantes passos neste processo.

20 Há uma grande quantidade de material sobre a relação ou o tratamento dispensado pela polícia aos jovens pobres, negros e de regiões periféricas. Para fins de registro e demonstração, indicamos Sallas (1999), Abramovay (1999), Barreira (1999) e Minayo (1999). Esses autores apresentam os resultados finais de uma mesma pesquisa intitulada “Juventude, Violência e Cidadania”, encomendada pela Unesco e desenvolvida em quatro capitais brasileiras: Curitiba, Brasília, Fortaleza e Rio de Janeiro. Tal condição permite estabelecer interessantes comparações, no caso em questão, das relações entre a polícia e os jovens. A homogeneidade da percepção que os jovens de diferentes regiões do país tem da ação das polícias é impressionante. A ação policial é alvo de duras críticas, principalmente, como era de se esperar, entre os jovens pobres, negros e moradores das periferias.

21 De um total de 7178 presos no sistema penitenciário do Paraná, 37,3% têm entre 18 e 25 anos. Este grupo cresceu 189,8% entre 2001 e o primeiro trimestre de 2005. Isto sem contar a população presa nas delegacias de polícia, que, se estima, seja do mesmo tamanho que aquela do sistema penitenciário. Cf. Tabela 2.

22 Na verdade, a patrulha escolar foi constituída em 1992, mas sua ação foi intensificada a partir de 2002, no atual governo, que transformou a referida unidade policial em uma importante peça publicitária.

23Como se pode observar na Tabela 3, os maiores problemas nas escolas, segundo os jovens entrevistados, seriam discussões/bate-boca. Enquanto

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ameaça física e outros atos constituem uma pequena parcela das formas de violência.

24 Cf. também nota 18. 25 Wacquant (2001c, p. 140) relata a ocorrência, na França, de

“instauração de toques de recolher para adolescentes, aplicados de maneira discriminatória nas zonas deserdadas”.

26 Talvez o exemplo mais patente tenha sido a recente tentativa, no Rio de Janeiro, de criação dos Batalhões Comunitários (SOARES, 2000, p. 287 e segts.).

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APÊNDICE – Tabelas Estatísticas e Gráficos

Tabela 1

EVOLUÇÃO DOS ÓBITOS POR HOMICÍDIOS - FAIXA ETÁRIA: POPULAÇÃO TOTAL

PERÍODO: 1993/2002

Área 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 % aumento

BRASIL 30.586 32.603 37.128 38.888 40.507 41.916 42.914 45.343 47.899 49.640 62,3

Capitais 11.911 13.019 16.009 16.694 17.251 17.860 18.046 19.099 19.075 18.907 58,7

Reg. Met. 16.348 18.295 21.738 22.390 23.732 24.214 24.776 25.454 26.179 26.374 61,3

EVOLUÇÃO DOS ÓBITOS POR HOMICÍDIOS - FAIXA ETÁRIA: 15 a 24 ANOS

PERÍODO: 1993/2002

Área 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 % aumento

BRASIL 10.173 11.330 12.603 13.186 14.264 15.267 15.765 17.494 18.121 19.188 88,6

% do total 33,3 34,8 33,9 33,9 35,2 36,4 36,7 38,6 37,8 38,7

Capitais 4.566 5.142 6.051 6.212 6.652 7.146 7.280 8.128 7.888 8.043 76,1

% do total 38,3 39,5 37,8 37,2 38,6 40,0 40,3 42,6 41,4 42,5

Reg. Met. 6.122 7.023 8.111 8.229 9.137 9.449 9.667 10.505 10.512 10.920 78,4

% do total 37,4 38,4 37,3 36,8 38,5 39,0 39,0 41,3 40,2 41,4

Fonte – DataSus/Unesco.

Gráfico 1

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Fonte – DataSus/Unesco.

Tabela 2 População encarcerada segundo faixa etária (nos. abs.)

Número de presos por faixa etária

2001 2002 2003 2004 2005

N.º N.º N.º N.º N.º

18 a 25 anos 1410 2270 2431 2596 2676

26 a 30 anos 1151 1482 1639 1840 1861

31 a 40 anos 1413 1772 1866 2127 2202

41 a 50 anos 626 751 846 920 952

51 a 60 anos 206 197 215 255 267

Acima de 61 47 53 47 70 81

Fonte GAP/DEPEN – 1º trimestre 2005. Disponível em: <http://www.pr.gov.br/depen/pop_carceraria.shtml>.

Acesso em: 28 maio 200.5

Tabela 3

NA SUA ESCOLA, VOCÊ JÁ SE ENVOLVEU EM ALGUMA(S) DESSA(S)

SITUAÇÃO(ÕES)?

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Muitas vezes Às vezes Nunca

Discussões/Bate-boca 12% 44,8% 44%

Ameaças 1,8% 16,6% 82%

Agressão física 1,3% 13,3% 85,4%

Agressão sexual 0,1% 0,5% 99,4%

Uso de drogas 0,5% 3,7% 95,8%

Venda de drogas 0,3% 1,0% 98,7%

Apud Sallas (1999).

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JOVEM INFRATOR - CONTROLE SOCIAL, IDENTIDADES E ETIQUETAMENTOS

Janilson Pinheiro Barbosa

“Quero ser reconhecida como mulher, trabalhadora, mãe, pessoa normal, mas todos me dizem e me apontam como assassina” (Mizzuno).

O presente texto visa refletir a respeito da identidade do adolescente em conflito com lei no Brasil, assim como do tratamento jurídico a ele destinado a partir do ato infracional praticado. O referido texto parte da pesquisa realizada junto a adolescentes de dois Centros de Atendimento Sócio-Educativo da Fundação de Atendimento Sócio-Educativo do Rio Grande do Sul (FASE), antiga FEBEM. O tema será abordado sob duas perspectivas. A primeira, a partir da noção de identidade atribuída, tendo como principal foco de análise as denominações e as representações direcionadas ao adolescente em conflito com a lei. Esta abordagem será feita a partir dos marcos legais de atendimento à infância brasileira, a saber, o Código de Menores de 1927 (reformulado em 1979) e o Estatuto da Criança e do Adolescente de 1990. A segunda abordagem será construída a partir da noção de representação e de identidade a partir da escuta de adolescentes privados de liberdade em duas instituições de atendimento socioeducativo (1).

Do ponto de vista histórico, o sistema de assistência à infância no Brasil foi sustentado, fortemente, por dois paradigmas. Primeiramente, pelo paradigma da Situação Irregular, que sustentou as práticas emanadas pelo Código de Menores. Segundo, pelo paradigma da Proteção Integral, base dos documentos internacionais da Organização das Nações Unidas e, por sua vez, paradigma que sustenta o Estatuto da Criança e do Adolescente. Ambos carregam concepções de pessoa e de sociedade em seus artigos. Cada um desses documentos localiza-se em épocas distintas e traz, em si, concepções de infância, de

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sociedade e de políticas de atendimento concernentes com suas épocas e contextos políticos e sociais.

Amparado pelo paradigma da Situação Irregular, o Código de Menores sistematizou preceitos legais sobre o direito do menor. Mais do que normatizar preceitos legais e assistenciais relativos ao atendimento à infância brasileira, criou uma cultura de atendimento tutelar com resquícios até o momento presente. Na sua finalidade, escrita em seus primeiros artigos, o documento expressa suas funções de assistência, proteção e vigilância de menores. Tanto na edição de 1927, quanto na edição de 1979, a concepção de menor possuía um caráter discriminatório. Na primeira edição, menor era o abandonado ou o delinquente e, portanto, objeto de vigilância e controle da autoridade policial e do juiz. Na segunda edição permanece o caráter discriminatório a respeito do sujeito que se encontre em situação de abandono, maus tratos e vadiagem, ou seja, em situação irregular. A esse sujeito não se atribuía a nomeação de criança e adolescente. Essas denominações eram tão naturalizadas na sociedade brasileira a ponto de, em notícias jornalísticas que relatavam casos de violência envolvendo crianças da mesma idade, aparecer a seguinte manchete: “Menor assalta criança em posta de escola”.

Rompendo com a Doutrina da Situação Irregular e afirmando a Doutrina da Proteção Integral, o Estatuto da Criança e do Adolescente (2), já em seus primeiros artigos, traz uma definição de criança e adolescente atenta a questões antropológicas e especifica não só a idade, mas o significado da mesma enquanto etapa de desenvolvimento conforme os artigos 1° e 2° do próprio ECA: Art. 1º: “Esta Lei dispõe sobre proteção integral à criança e ao adolescente. Art. 2º: Considera-se criança, para efeitos desta Lei, a pessoa até doze anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade”.

Ao atribuir à criança e ao adolescente o reconhecimento de pessoa em desenvolvimento, o Estatuto da Criança e do Adolescente reconhece que eles são sujeitos racionais e conscientes, ainda em desenvolvimento, mas seres humanos dotados de todas as potencialidades de conhecer o mundo e a si mesmos. Nesse sentido,

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confere-lhes o reconhecimento de dimensões antropológicas de eu, pessoa, cidadão, sujeito.

Se, porém, do ponto de vista legal e doutrinário houve um avanço e, de certa forma, uma virada antropológica na nomeação e no tratamento da infância brasileira, se o termo criança e adolescente é atribuído e expandido a toda pessoa menor de dezoito anos, na prática ainda se percebe tratamentos diferenciados, dependendo da classe social de origem da pessoa. Quando se trata de adolescentes privados de liberdade por cometimento de ato infracional, verifica-se que ainda são os pertencentes às camadas sociais com menor poder econômico que mais ocupam as unidades de internação no país. Ou seja, ainda existe, nas instituições de atendimento à infância, o caráter tutelar da privação de liberdade e do afastamento da família como fator de proteção do adolescente pobre. Esta falsa ideia de proteção esconde, em seu bojo, o fenômeno da criminalização da pobreza.

O etiquetamento social de quais grupos inteiros são vítimas resulta na negação de condições e políticas públicas para que desenvolvam o pleno exercício da cidadania. Em se tratando de pessoas que se encontram em uma fase específica de desenvolvimento, no caso a adolescência, esse processo de etiquetamento possui consequências graves para os que desse etiquetamento são vítimas. O processo de etiquetamento é estudado no campo jurídico a partir da teoria do Labeling Approach. Essa teoria pretende uma explicação científica dos processos de criminalização, ou pretende constituir um modelo teórico explicativo do comportamento criminal. Nessa teoria, o interesse da investigação se desloca do infrator e do seu contexto social para aqueles que o definem como infrator, buscando compreender como acontece o processo de nomeação daqueles considerados infratores.

Soares (2005), ao falar de adolescência, refere-se a ela como sendo processo de “identidades em obras”. Do ponto de vista das questões biológicas, a adolescência é uma fase de muitas transformações. Essas transformações, para alguns estudiosos da psicologia do desenvolvimento, podem ser denominadas como crise de identidade. A transição entre a infância e a fase da juventude gera confusão de identidades não só nas pessoas que passam por essa fase, mas, também, nas pessoas que as rodeiam. Ser reconhecido como

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pessoa jovem, não mais como criança, passa a ser uma necessidade vital para o adolescente.

O medo do não reconhecimento e de tornar-se um invisível social (SOARES, 2005) se apresenta no jovem das camadas mais pobres quando eles não se reconhecem ou não se veem refletidos na “razão do espelho” do marketing mercadológico que dita quem é pessoa através do produto que está sendo vendido. Essa imagem é propagada pelos meios de comunicação de massa através das novelas, dos filmes e dos programas voltados para a camada jovem.

Em visita a uma Unidade de Internação da FASE, na realização da pesquisa para o Mestrado, o Diretor me informou que a hora em que os internos mais ficam quietos é às 17h30min, quando assistem à novela global Malhação. O fato me chamou atenção e fui assistir ao programa para tentar extrair alguma impressão que se aproximasse com a realidade deles. A novela se passa em uma escola chamada Múltipla Escolha, onde todos os alunos são jovens ou adolescentes da classe média alta, moram em uma espécie de república, passam pouco tempo na aula e vestem roupas e acessórios de marca. Em uma outra visita à Unidade de Internação, perguntei ao jovem JMM o porquê de eles gostarem tanto da novela Malhação, ao que ele me respondeu que o sonho da maioria dos internos é ser igual aos jovens das novelas. Sentir-se invisível ou não ser reconhecido é um medo que os adolescentes, principalmente das camadas mais pobres, enfrentam desde muito cedo.

Curioso e paradoxal é que, no Brasil, para os jovens pobres, de um modo geral, não há adolescência: salta-se direto da infância ao mundo do trabalho (ou do desemprego). É mais ou menos o que acontece, em nosso país, com as etapas do processo civilizatório. Parece que estamos vivendo uma regressão, em alguns aspectos, da qual resulta a convivência entre etapas históricas diferentes, cada uma com suas características sociais e culturais: hoje no Brasil, os homens não são mais treinados apenas para a guerra e os valores dominantes na socialização dos meninos não são os valores ligados à guerra. (SOARES, 2005, p. 211).

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A busca pelo reconhecimento se confunde entre a perspectiva do que se é e do que se tem. O jovem, ao se perceber nessa tensão, se coloca perdido, pois, não tendo os meios para adquirir as metas do padrão de consumo, sente-se frustrado na sua própria constituição de ser humano participante da sociedade. Se há, porém, uma negação de reconhecimento enquanto pessoa, sujeito e cidadão, há um processo de reconhecimento cruel. A esse processo, Taylor (2000) o chama de reconhecimento errôneo. É um processo de reconhecimento em que pessoas ou grupos de pessoas, devido à sua origem, etnia, gênero ou profissão são reconhecidas sempre negativamente, sempre de forma estigmatizante.

A exigência de reconhecimento assume nesses casos um caráter de urgência dados os supostos vínculos entre reconhecimento e identidade, em que “identidade” designa algo como uma compreensão de quem somos, de nossas características definitórias fundamentais como seres humanos. A tese é de que nossa identidade é moldada em parte pelo reconhecimento ou por sua ausência, freqüentemente pelo reconhecimento errôneo por parte dos outros, de modo que uma pessoa ou grupo de pessoas pode sofrer reais danos, uma real distorção, se as pessoas ou sociedade ao redor deles lhes devolverem um quadro de si mesmas redutor, desmerecedor ou desprezível. O não-reconhecimento ou o reconhecimento errôneo podem causar danos, podem ser uma forma de opressão, aprisionando alguém numa modalidade de ser falsa, distorcida e redutora. (TAYLOR, 2000, p. 241).

Na pesquisa realizada com adolescentes privados de liberdade, optou-se pelo contato direto com os mesmos sujeitos. Esses contatos foram realizados a partir de entrevistas individuais e de grupos de discussão. Foram momentos que proporcionaram encontros com adolescentes, meninos e meninas, que vivem de forma concreta a experiência da privação de liberdade. Adidas, Puma, Mormai, Mizzuno,

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Boyzão, Gordo, Sid e Piu-Piu (3) foram os sujeitos que possibilitaram a realização da pesquisa. A entrada na Instituição foi lenta e envolveu um processo de negociação burocrática. Foi necessário observar regras, normas e cuidados nos contatos.

O diálogo foi o principal instrumento de pesquisa utilizado. Tanto nas entrevistas individuais como nos grupos de discussão se privilegiou a escuta atenta, o esclarecimento de dúvidas, a partilha. Mais do que obtenção de dados, esse exercício gerou aprendizados e emoções.

A existência, porque humana, não pode ser muda, silenciosa, nem tampouco pode nutrir-se de falsas palavras, mas de palavras verdadeiras, com que os homens transformam o mundo. Existir, humanamente, é pronunciar o mundo, é modificá-lo. O mundo pronunciado, por sua vez, se volta problematizado aos sujeitos pronunciantes, a exigir deles novo pronunciar. Não é no silêncio que os homens se fazem, mas na palavra, no trabalho, na ação-reflexão. Mas, se dizer a palavra verdadeira, que é trabalho, que é práxis, é transformar o mundo, dizer a palavra não é privilégio de alguns homens, mas direito de todos os homens. Precisamente, por isto ninguém pode dizer a palavra verdadeira sozinho, ou dizê-la para outros, num ato de prescrição, com o qual rouba a palavra aos demais. O diálogo, este encontro de homens, mediatizados pelo mundo, para pronunciá-lo, não se esgotando, portanto, na relação eu-tu (FREIRE, 1987, p. 78).

A identidade foi uma das dimensões trabalhadas na pesquisa. Nesse sentido se buscou verificar qual a imagem que os/as adolescentes possuem de si mesmos/as, a imagem que os outros possuem deles/as a partir de suas compreensões e em que sentido a experiência da privação de liberdade afeta na construção e manutenção de suas identidades.

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Quanto à imagem que os entrevistados possuem de si mesmos e de como se percebem a partir do olhar dos outros, observaram-se diferenças entre ser homem e ser mulher no contexto de privação de liberdade. Essas diferenças apontam para a própria relação com o ato infracional. Perguntando aos adolescentes entrevistados sobre a imagem que eles/elas possuem de si mesmos/as, obtive as seguintes respostas:

“Eu me vejo uma pessoa estressada. Em qualquer coisinha eu me irrito. Eu sou irritante. Eu sou a pessoa que eu sou assim, como é que eu vou explicar? Eu sou direta, o que eu tenho pra falar, assim, eu falo, assim na frente, doa ou não doa, a verdade é essa. Acredita ou não acreditando, eu sou fria no que eu falo. Mas eu me vejo agora uma pessoa que tem mais facilidade de falar, entendeu? Com ajuda dessas pessoas aqui de dentro que eu estou aprendendo, entendeu? Demorou, demorou, mas eu estou conseguindo. Não estou super bem, mas estou caminhando” (Adidas).

Percebeu-se que a imagem que as entrevistadas possuem de si mesmas é sempre negativa. Há uma relação muito direta com a forma com que se veem e os atos infracionais praticados. Esta pergunta foi feita várias vezes durante as conversas e nunca obtive respostas do tipo “me acho bonita”, “legal”. Mesmo quando se referiam à vaidade, era em tom negativo que elas se expressavam, como se fosse um erro que elas estavam cometendo em serem vaidosas.

“Não tem explicação, pra eles eu acho que foi bom, porque eu mesma me olhava no espelho e me achava horrível, sabe. Eu era uma pessoa irreconhecível por causa da droga. Ah! Eu mesma assim me olhava, eu era, bah! Não tem explicação. Pra eles foi bom, sim, eu estar aqui. Eu acho que eles vejam isso como uma recuperação” (Puma).

Vários estudos apontam as ideias crime e criminoso como antropocêntricas ou, melhor, a construção desses conceitos tem como base postulados teóricos fundamentados em uma ideologia masculinizada, ou seja, numa visão masculina do mundo. Mesmo as pesquisas de campo apenas subsidiariamente colocam a mulher como

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elemento de interesse investigativo. Por muito tempo buscou-se explicar o fenômeno do envolvimento da mulher com a criminalidade pela ideia do desvio sexual, principalmente ligado à prostituição.

Ao perguntar para as adolescentes entrevistadas como se viam na condição de mulheres tendo que cumprir medidas socioeducativas de internação e, por isso, sendo reconhecidas como violentas e criminosas, as respostas e os sentimentos variam de acordo com as diversas experiências que vivenciam nessa condição.

Um dos elementos que aparece muito forte nas respostas das adolescentes são os sentimentos de poder e de vergonha que sentem em determinadas situações, particularmente quando referem o uso de armas ou quando são levadas algemadas a algum lugar:

“Eu gosto de usar armas, apesar de ter vergonha. Você se sente mais. Se sente bandida mesmo. Tu tá algemada, tu não tá como as outras pessoas. Impõe um respeito ou medo, sei lá. Eu não vivi preconceito, até em alguns lugares que eu fui pessoas se sentaram com crianças perto de mim e conversaram comigo. Sempre vai ter um pra olhar meio errado, mas ninguém pode atirar a primeira pedra que ninguém tá livre. Mas se tem conhecidos, dá vergonha. No fórum da minha cidade eu já fui várias vezes algemada, ai, sim, bah! Eu baixava a cabeça. Eu entro de cabeça baixa no fórum da minha cidade” (Mizzuno).

“Eu tenho vergonha. Não gosto, morro de vergonha. Pra que ser mau. Essa coisa de chegar em um lugar e as pessoas nem quererem ficar perto de ti, só porque tu tá algemada. Eu já fui algemada. No corredor longe as pessoas já se afastavam. Claro tu te acha moral, por ter matado, ter roubado. Mas moral mesmo é a vergonha que eu tenho. Aqui eu já tenho vergonha. Imagina se eu tivesse uma audiência lá no fórum da minha cidade. Minha mãe é um alarme, ia falar para todos os meus amigos. Ia tocar a sirene do camburão. Imagina todo mundo lá no fórum, meus amigos. Eu ia entrar assim, né, de cabeça baixa” (Adidas).

Verificou-se que essa sensação de poder na condição de “bandida”, como dizem elas, é, também, uma forma de reação à aversão que sentem das pessoas quando chegam algemadas nos

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tribunais, hospitais e repartições públicas. Uma reação ao desprezo e ao olhar julgador das pessoas. Um olhar que estigmatiza e condena. A esse olhar elas devolvem uma postura “que possa causar medo”. Uma postura que busca uma visibilidade social, “buscando fazer com que os outros a vejam”, mesmo que seja através do medo. Trata-se de um medo não somente da violência que imaginam que elas podem praticar, mas “medo da imagem deles”. Não querem se ver associadas a uma bandida, mas elas mesmas sabem, e por isso os encaram de frente: “[...] sempre vai ter um pra olhar meio errado, mas ninguém pode atirar a primeira pedra que ninguém tá livre”(Mormai).

Ao lado do sentimento de poder encontra-se o sentimento de vergonha. Uma vergonha que é localizada. Se expostas em lugares onde não são conhecidas, a sensação é de poder, do poder de causar medo, mas nos lugares conhecidos, é a vergonha que domina. Aos estranhos encaram, aos conhecidos abaixam a cabeça:

Entrei de cabeça bem baixa. Todo mundo me olhando, sabe?(Mormai).

Imagina todo mundo lá no fórum, meus amigos. Eu ia entrar assim, né, decabeça baixa (Puma).

No fórum da minha cidade eu já fui várias vezes algemada, ai, sim, bah! Eu baixava a cabeça. Eu entro de cabeça baixa no fórum da minha cidade (Mizzuno).

A sensação de vergonha é vivida no corpo. É uma experiência que é vivenciada com grande profundidade: “abaixo a cabeça”. Segundo Foucault (1987, p. 18 ), “[...] pois não é mais o corpo, é a alma. À expiação que tripudia sobre o corpo deve suceder um castigo que atue, profundamente, sobre o coração, o intelecto, a vontade, as disposições”.

Ao sentirem vergonha diante de seus conhecidos, elas reagem, dessa forma, por os terem decepcionado. A decepção da qual dizem que os outros sentem delas não está muito ligada ao ato cometido, mas pelo fato de, na condição de mulheres, terem cometido “crimes”. Nesse sentido, denunciam que o tratamento jurídico dirigido a elas se diferencia daquele dado aos homens. Essa diferença aponta, segundo as adolescentes entrevistadas, uma não aceitação social de que a mulher

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saia do lugar que a ela está destinado, o lugar doméstico. O lugar das coisas de mulheres: “[...] a lei pra mulher é mais agressiva. Eles aceitam até o homem que faz. Mas tu acha que eles aceitam a mulher? [...]. É que não aceitam de jeito nenhum que a mulher seja bandida” (Adidas). Conforme reforça outra entrevistada:

Meu padrasto fez a mesma coisa que eu fiz e não ficou preso um dia. E eu tou aqui um ano e oito meses. O juiz me disse: “Se tu fosse de maior tu ficaria uns dez anos. Quase eu dizia pra ele meu padrasto fez a mesma coisa e não ficou nem um dia. Eu ia dizer na cara dele, só não disse para não me ferrar mais. Mulher pra eles tem que cozinhar, lavar roupa, cuidar de filho e, mesmo que tu seja da classe bem alta, tu tem que tá na manicure, fazendo os cabelos, tem que fazer os pés, tem que ir no shopping, tem que ir no cinema. Ah, quando eu vejo uma mulher assim, dá vontade de aprontar. É que me dá uma raiva (Puma).

A adolescente que cometeu ato infracional, além de carregar o peso aflitivo da medida a qual é destinada, carrega ainda o peso de ter que lidar com a vergonha e o sentimento de decepção por parte de seus parentes e do grupo social do qual faz parte. Por ser mulher, precisa exibir um comportamento que exige certa subserviência social, ou seja, um comportamento que lhe exige ações femininas ou certa sensibilidade que se assemelha à expressão de fraqueza. Nesse sentido, o ato infracional como ação violenta não é visto, no caso delas, como expressão de força, comum no caso dos rapazes. É uma ação vista como imoral e vulgar.

A imagem que os internos do sexo masculino possuem de si mesmos não se diferencia muito da imagem que as meninas possuem de si. No caso deles há certa diferença na forma como as pessoas os veem. Apesar de vivenciarem os estigmas de bandidos, violentos e perigosos, não há, no caso dos adolescentes, uma cobrança tão forte quanto ao fato de terem decepcionado parentes e amigos. Indagando-os sobre a maneira como se viam, obtive as seguintes respostas:

Dependeria muito do momento. Nesse momento como interno, da minha pessoa que eu me veria, eu mesmo bem diferente do que eu me via quando tava na rua. Eu penso assim, se fosse um tempo atrás eu

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nem tava pra sociedade, que sociedade, negócio é o crime que nem uma música do MV BIL eu falo que a moda aqui na área é ser mulher de bandido. É loucura, é loucura. Tanto que eu tava no crime veio essa bandida. O cara tá no crime, o cara tá por todas. Eu tava por todas, fiz o meu nome, fiz tudo, hoje me arrependo de ter feito nome, tal. Por que, né? Ah! Eu era um piá, mas já andava com arma pesada, sentava o balaço mesmo nos doidão, não tava nem aí. Agora os pessoal tem uma imagem tão negativa que eu não queria ter hoje (Boyzão).

Ah, não sei explicar. Eu não me conheço. Eu não sou mais aquele que eu era. Tive que ser violento pra resolver aquela parada e acabei aqui, né? (Sid).

Ah, antes eu era um cara muito doido. Hoje me sinto outra pessoa. Mais gordo, antes eu era virado em osso de tanto cheirar pedra. É que lá fora tu tem que ser sempre machão, mau. Isso é cansativo, mas se tu não for assim, os louco te pegam (Gordo).

Bom, eu não sei, não. Eu sou uma pessoa boa, uma pessoa importante, um cara legal. Eu precisava mudar um pouquinho, também. Antes eu não sabia fazer nada, agora tou mudando as conseqüências. Mas, todo mundo diz que eu sou louco. Pessoal tem uma imagem bem negativa, isso atrapalha na vida (Piu-Piu).

Os adolescentes envolvidos com atos infracionais que tiveram como ponto de partida o tráfico de drogas, como é o caso de três dos entrevistados, precisaram construir uma carreira no mundo da infração. Mais que construir uma carreira, precisaram construir uma identidade e uma fama. Essa identidade é construída com expressões de força e de violência. Fraquejar é colocar em risco a própria vida. É colocar em risco sua própria identidade masculina. A arma serve como símbolo desse poder. Ela é símbolo de conquistas, de mulheres inclusive, e de um controverso respeito que lhes conferem seus subordinados e a comunidade da qual fazem parte. A arma os tira da invisibilidade social à qual estavam atrelados.

Saltando para fora do escuro em que o guardamos e o esquecemos, o garoto armado readquire densidade

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antropológica, isto é, vira um homem de verdade. Antes, invisível, era um fantasma transparente, portador de uma carcaça porosa e imperceptível. Antes da arma, do gesto ameaçador, do sentimento que ela desperta, era como se o corpo do garoto não existisse ou existisse como corpo, não como pessoa, ou se confundisse com as coisas da cidade, mais uma peça do cenário urbano. Pois agora tudo mudou. Num passe de mágica, o mundo ficou de cabeça para baixo: quem passava sem vê-lo, lhe obedece. Invertem-se posições. Quem desfilava sua soberba destilando indiferença, agora submete-se à autoridade do jovem desconhecido. Celebra-se um pacto fáustico: o jovem troca seu futuro, sua alma, seu destino, por um momento de glória, um momento fugaz de glória vã, seu futuro pelo acesso à superfície do planeta, onde se é visível (SOARES, 2005, p. 216).

O avesso da sensação de poder dos rapazes na condição de infratores não é a vergonha, como é no caso das meninas. Para eles é outra experiência dolorosa que vivenciam. Se, em um determinado momento de suas vidas, precisaram, a partir de ações violentas, construir uma identidade de “bandido”, infrator e delinquente, no momento em que começam a pensar suas vidas esta identidade se torna um peso.

Todos os entrevistados reconhecem que o fato de terem feito o que fizeram e estarem pagando por isso através da privação de liberdade marcou suas vidas para sempre. “Eu tava por todas, fiz o meu nome, fiz tudo, hoje me arrependo de ter feito nome, tal. Por que, né? Ah! Eu era um piá, mas já andava com arma pesada, sentava o balaço mesmo nos doidão, não tava nem ai. Agora os pessoal tem uma imagem tão negativa que eu não queria ter hoje” (Boyzão).

Se, para as meninas, há uma forte cobrança, por se colocarem na condição de infratoras, para os meninos há, controversamente, uma cobrança de que continuem na condição de “bandidos”. A mudança que eles intentam é ameaçada por esta identidade que construíram.

É difícil mudar. Muito difícil. Doloroso e angustiante. Primeiro, porque a ousadia de mudar-se a si mesmo envolve cortejar a morte. Na mudança uma parte de nós

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perece: um modo de sermos nós mesmos entra em colapso. Segundo, porque enfrentamos a resistência organizada das instituições e a oposição ferrenha de todo mundo que nos cerca. Unem-se numa brigada contra a mudança aqueles que, de uma forma ou de outra, nos conhecem, dão testemunho de nossa biografia e zelam pela imutabilidade. [...] Engana-se quem imagina que contará com o apoio alheio ao projeto de transformar-se, mesmo que a mudança seja um imperativo social, um desejo imperativo e um desejo coletivo. Equivoca-se o sonhador ingênuo que espera estímulo à mudança por parte das instituições supostamente destinadas a promovê-la, por paradoxal que pareça. Este é o fato, há uma conspiração pela fixação de identidades e pelo congelamento de suas respectivas qualificações, especialmente se tais qualificações forem estigmatizantes. Mas a pior notícia é a seguinte: nós tomamos parte da conspiração; participamos e contribuímos para a blindagem ontológica que coagula a história e engessa processos biográficos. (SOARES, 2005, p. 100).

O peso da imagem que construíram dificulta, para os rapazes, seus processos de mudança de vida. Essa identidade é como que colada em suas vidas. Mudar seria sinal de fraqueza. Não só sinal de fraqueza, mas também de não conseguirem vislumbrar alternativas concretas de ajuda para a sua mudança. Como diz um dos entrevistados:

“Quando eu sair daqui eu vou voltar pra lá, não tem jeito, não tenho pra onde ir. Só que tem gente me esperando, tem gente querendo me apagar. Ai não dá, né? Eu vou ter que me proteger. Não tem não, não quero, mas acho que vou ser sempre bandido (Boyzão).

Outro rapaz diz:

“Pois é, até eu cometer esse crime eu não tinha feito nada de errado, não usava droga nem nada. E sei que não vou cometer mais nada disso. Só que as pessoas do meu bairro, meus parentes, para eles eu sempre serei um assassino (Sid).

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Por trás dos rótulos e das etiquetas que ostentam, escondem-se seres humanos muitas vezes fragilizados. As experiências negativas que vivenciaram desde a infância por si só não justificam o fato de terem cometido ato infracional, mas os acompanha e ocupa um lugar muito significativo em suas vidas e, principalmente, na maneira como resolvem seus conflitos. O peso da identidade de adolescentes em conflito com a lei é sentido por eles e por elas como uma identidade atribuída e estanque que dificulta o reconhecimento e a vivência de sentimentos como amor, compaixão, arrependimento e sensibilidade.

Muitos caras dizem que vagabundo não tem sentimento, tá ligado? Vagabundo tem sentimento, só que não expressa. Uma coisa que tu não vai ver de nem um ladrão dizer que ama uma pessoa, um amigo, considera um camarada. Eu falo, né. Eu também amo, de uma forma que eu não sei explicar. No caso eu considero as pessoas, pessoas que eu considero e não posso conversar com elas, não posso conversar com um amigo, não posso me relacionar com um amigo por carta, tem que ser só com parentes. Só com minha família pergunto de canto: Como é que tá, fulano? Como é que tá, cicrano? Ô, que merda o cara tá nessa e tal. Ah! Se eu tivesse lá hoje. Vários morreram. Pó, se eu tivesse lá hoje. E mesmo antes quando eu era loucão, tá ligado? Se eu tivesse lá eu ia atrás, tá ligado? Se eu tivesse lá, ele não tava lá onde tava e não tinha tomado um tiro, ele não tava preso. O cara fica assim pensando. Perdi vários amigos, véio. Quando o cara fica pensando assim, pó, se foi mais um (Boyzão).

A experiência da internação marca a vida do/da adolescente. As marcas de tal experiência têm consequências na sua vida. São muitos os relatos de jovens que dizem que, mesmo tendo o desejo de sair da instituição, têm medo. Têm medo porque sabem que, de certa forma, não terão “lá fora” os recursos que possuem na unidade de internação. Medo por não saberem quem serão ou o que serão fora da Instituição. Medo de serem reconhecidos, permanentemente, como “ex-interno da Febem”. Medo por saberem que, infelizmente, em muitos casos, fora da vida do crime não serão reconhecidos, ou seja, serão ninguém. Como diz Foucault (2004, p. 12), “[...] libertado, o louco se vê agora em pé de igualdade consigo mesmo, o que significa que não pode mais escapar a sua própria verdade, é jogado nela e ela o confisca

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inteiramente”. Essa verdade é sua própria condição em relação à sociedade. A mesma sociedade que, de certa forma, criou as condições para que ele entrasse em conflito com a lei.

Embora alguns dos papéis possam ser restabelecidos pelo internado, se e quando ele voltar para o mundo, é claro que outras perdas são irrecuperáveis e podem ser dolorosamente sentidas como tais. Pode não ser possível recuperar, em fase posterior do ciclo vital, o tempo não empregado no processo educacional ou profissional, no namoro, na criação dos filhos. Um aspecto legal dessa perda permanente pode ser encontrado no conceito de “morte civil”: os presos podem enfrentar, não apenas uma perda temporária dos direitos de dispor do dinheiro e assinar cheques, opor-se a processos de divórcio ou adoção, e votar, mas ainda podem ter alguns desses direitos permanentemente negados. (GOFFMAN 1974, p. 25).

A experiência da privação de liberdade é dolorosa, mesmo que haja recursos positivos à disposição. O preço é muito alto. Precisa-se dispor da liberdade, assim como da autonomia pessoal, para corresponder às normas sociais e institucionais. Conforme Konzen (2005, p. 63) assinala, “[...] o peso da aflição, porque sinal de reprovação, sinônimo de sofrimento [...] segrega do indivíduo um de seus bens naturais mais valiosos, a plena disposição do exercício da liberdade”. As experiências vividas no interior de uma Unidade de Internação afetam diretamente no processo de construção de identidades, próprio da fase da adolescência. Faz-se necessária a construção e o desenvolvimento de práticas educativas, no interior das unidades de internação, que possibilitem que os jovens a elas destinados possam responder judicialmente ao ato infracional cometido, mas que não tenham o respeito à dignidade humana e aos seus direitos violados.

Notas

1 A temática aqui desenvolvida é parte de uma pesquisa maior realizada nos anos de 2006 a 2009 com adolescentes que cumpriam medida socioeducativa de internação em duas unidades de privação de

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liberdade da Fundação de Atendimento Sócio-Educativo do Rio Grande do Sul. As entrevistas foram realizadas no Centro de Atendimento Sócio-Educativo de Novo Hamburgo, com adolescentes do sexo masculino e, no Centro de Atendimento Sócio-Educativo Feminino, em Porto Alegre/RS.

2 Lei Federal n. 8.069, de 13 de junho de 1990.

3 Esses são nomes utilizados para preservar e não identificar seus nomes reais, respeitando, assim, as normativas legais. Cada uma destas formas de identificação foi escolhida por eles e elas. A forma como aqui se encontra descrita ao que se refere às meninas foi uma primeira opção. Quando informei que o trabalho seria publicado e um relatório final seria entregue à coordenação da instituição, elas pediram que fossem trocados os apelidos e fossem identificadas com nomes de marcas de roupa: Adidas, Nike, Puma e Mormai.

Referências

FOCAULT, Michel. História da loucura. São Paulo: Perspectiva, 2004. ___. Vigiar e punir: história da violência nas prisões. Petrópolis, RJ: Vozes, 1987. FREIRE, Paulo. Ação cultural para a liberdade: e outros escritos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. _____________. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. KONZEN, Afonso Armando. Pertinência sócio-educativa: reflexão sobre a natureza das medidas. Porto Alegre, RS: Livraria do Advogado, 2005. GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. São Paulo: LTS, 1988. SOARES, Luis Eduardo; BILL, Mv; ATHAYDE, Celso. Cabeça de porco. Rio de Janeiro: Objetiva, 2005. TAYLOR, Charles. Argumentos filosóficos. São Paulo: Loyola, 2000.

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A CORRUPÇÃO COMO LIMITE À PARTICIPAÇÃO

POLÍTICA JUVENIL: UM ESTUDO EM DEMOCRACIAS SUL-AMERICANAS

Marcello Baquero

Patrícia R. C. da Cunha Introdução Presentemente, a comunidade acadêmica nas Ciências Sociais atribui um peso significativo ao apoio político que as pessoas dão ao sistema político vigente. Isso ocorre porque os regimes democráticos contemporâneos dependem do apoio dos cidadãos para seu efetivo funcionamento, sobrevivência, credibilidade e legitimidade. Não é novidade, portanto, que o tema da democracia tenha recebido tanta atenção em relação à sua conceituação e à sua mensuração (BUNCE, 2000).

Pode-se dizer que a América Latina, nas últimas décadas, experimenta o modelo de uma nova democracia confrontada com desafios tanto do passado, na forma de vícios estruturais, como do presente, via novas demandas e formas de se fazer política. Desse modo, as democracias neste continente apresentam os sintomas de desafeto político: falta de interesse na política, ceticismo em relação à coisa política, instituições e gestores públicos, e um senso de alienação e anomia em relação a tudo que signifique política (TORÇAL, 2003). Assim, um dos problemas teóricos atuais é explicar por que os regimes latino-americanos não têm conseguido fomentar uma participação política mais intensa e por que o novo status democrático não tem criado as bases para a uma efetiva transformação social.

Nos últimos anos é possível observar o esforço dos governos latinos na tentativa de institucionalizar uma base normativa de crenças e valores em relação à democracia. Os sucessivos escândalos sobre corrupção nos governos, os efeitos de empobrecimento provocados pelo neoliberalismo e agravados pela crise econômica mundial, entre outros fatores, têm, contudo, reforçado a frustração da população, principalmente dos/as jovens, em relação à possibilidade de melhoria

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na qualidade de vida que se associou à instauração do regime democrático.

A tendência dessa desilusão se manifesta nas percepções da juventude, expressas em pesquisas de opinião realizadas nas últimas décadas (Latinobarômetro, o World Values Survey, a Encuesta Panamericana e LAPOP, entre as mais importantes). As pesquisas demonstram que os/as jovens têm perdido a fé na habilidade e na capacidade dos governos para resolver os problemas de saúde, de educação, de moradia e de segurança em suas sociedades.

Desse modo, apesar dos avanços institucionais significativos que ocorreram na América Latina, Kliksberg (2000) mostra que continua existindo um atraso no que se refere à participação política dos cidadãos, na medida em que não se tem traduzido em participação social. Tal situação, no entanto, é considerada normal na vertente teórica de cunho agregativo-institucional vis-à-vis uma perspectiva deliberativa social que destaca a necessidade de proporcionar oportunidades iguais para todos (YOUNG, 2000). A ênfase numa abordagem liberal-democrática se tornou hegemônica na Ciência Política, privilegia a análise do regime político em detrimento da dimensão social. Isso pode ser atribuído ao fato de que tal perspectiva teórica considera a democracia unidimensional e elitista, simplificando sua aplicação (DAHL, 1971). A popularidade desse enfoque, de acordo com Burchardt (2008), pode ser atribuída à sua simplicidade empírica e explicativa. Nessas condições, têm sido negligenciadas análises mais aprofundadas a respeito de como os cidadãos, neste caso, a juventude, constroem as suas representações sociais sobre a política e como essas representações se naturalizam ao longo do tempo. Assim, são poucos os trabalhos que têm orientado o seu enfoque para a análise do processo de socialização política da juventude latino-americana. Os estudos, em sua maior parte, são de diagnósticos ou descritivos.

Nesse contexto, embora os estudos de socialização política da juventude tenham contribuído para a investigação do processo de construção democrática na América Latina, ainda não se tem clareza de como esse processo de socialização política incide na formatação de cidadãos críticos e participativos na arena política. A socialização política tem como principal premissa o fato de que as atitudes e os valores políticos que se desenvolvem na infância e na adolescência têm um papel significativo nas fundações psicológicas de valores políticos

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na formação da personalidade política. Aspectos ecológicos têm destaque na forma como as pessoas percebem a política numa sociedade. No caso da América Latina, a juventude tem se confrontado com obstáculos importantes, como a desigualdade social, a pobreza e a corrupção, que se refletem nas suas intenções participativas, pois, mesmo com o surgimento de novos dispositivos de mobilização política (como o capital social), a apatia e a anomia têm imperado.

Com base nessas constatações, este artigo tem como objetivo problematizar a dinâmica do comportamento político da juventude buscando compreender a forma como a construção da democracia sul-americana é constrangida por fatores considerados estruturais, principalmente as práticas políticas danosas para a coesão social. Os fatores examinados são: a corrupção, a desconfiança política e interpessoal e a reduzida participação juvenil em atividades políticas.

Tomam-se como unidades de análises diversos grupos de jovens, de 16 a 29 anos, presentes em partidos políticos, sindicatos, organizações sociais, organizações de base, universitários, assembleias populares e grupos informais. Eles/as participaram da pesquisa do tipo survey probabilística realizada em 2005, pelo Núcleo de Pesquisa da América Latina (NUPESAL/UFRGS) em Porto Alegre (no Brasil), em Montevidéu (no Uruguai) e em Santiago (no Chile). A juventude sul-americana

O que se compreende por juventude seus limites, suas atribuições, suas características e suas responsabilidades – tem se modificado periodicamente. Associado a esse fato, a juventude, concebida como uma categoria social, pode ser considerada uma visão moderna. O debate contemporâneo sobre a juventude evidencia lacunas a respeito de como tratar o tema no contexto atual. Exemplo dessas dificuldades está relacionado com os critérios de definição conceitual da categoria jovem.

Alguns teóricos (SALVAT, 1977, p. 47) abordam o conceito a partir das características psicológicas, enquanto outros o fazem a partir das culturais. Para os primeiros, a juventude está relacionada com a idade e a adolescência, constituindo uma fase de transição, compreendida a partir de 10 anos para os meninos e a partir de 12 para as meninas. Eles compreendem que a juventude adquire componentes

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psicológicos e sociológicos ao determinar que “[...] este é o período no qual se selecionam, se constituem e se afirmam as conquistas obtidas durante a adolescência.” (ibidem, p. 48, tradução livre dos autores). Essas afirmações fundam o conceito de juventude no etário e vão de encontro ao que propõe o segundo grupo de teóricos na linha culturalista.

A juventude é um significante complexo que contém em sua intimidade as múltiplas modalidades que levam a processar socialmente a condição da idade, tomando em conta a diferenciação social, a inserção familiar e entre outras instituições o gênero, o bairro, a micro-cultura grupal. (MARGULIS Y URESTI, 1988, p. 3).

A visão culturalista da juventude envolve uma definição de outras variáveis, convertendo-a em um conceito menos quantitativo, considerando o/a jovem como um construtor importante da cultura e da sociedade. É possível encontrar, ainda, a visão da juventude como um processo que se inicia com a capacidade do indivíduo de reproduzir a espécie e termina quando este se torna capaz de reproduzir a sociedade. Nessa perspectiva, Sandoval (1985) ressalta que a juventude é um conceito cultural e, como tal, é um fenômeno variável de acordo com cada sociedade, dando-se de formas diversas, em momentos distintos, e em grupos diferentes de uma mesma sociedade. A questão é que os conceitos elaborados pelas diversas escolas teóricas não esgotam a definição de juventude em uma sociedade, pois os/as jovens, apesar de se associarem a uma faixa etária, também se distinguem por uma subcultura, que compõe sua identidade distinta em cada sociedade. Essa questão origina conceitos que trabalham com a mediação entre a abordagem psicológica e a cultural, ao mesmo tempo em que garante para a juventude um papel de agente com notável influência no desenvolvimento social. É o caso da definição adotado pela Colômbia, na Lei da Juventude, onde se entende por jovem “[...] a pessoa entre 14 e 26 anos com um corpo social dotado de uma considerável influência no presente e no futuro da sociedade. (ALCALDÍA DE CALI, 1996, p. 6). É este último conceito que norteia este trabalho.

É nesse contexto que os jovens vivenciam o processo de construção da cidadania e da democracia na América Latina. Eles

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assumem um papel primordial, pois vão eleger e colocar em prática conteúdos antigos ou novos de uma cultura política que é fruto do permanente conflito social. São eles/as que vão definir quais as concepções que predominam em seus ideais e que serão transmitidas para as novas gerações. Dessa forma, a participação política da juventude possibilita interpretar a maneira como as novas gerações percebem, internalizam e expressam valores políticos e os traduzem no cotidiano da construção social democrática. A participação política juvenil

Com a consolidação da “democracia poliárquica” e fruto das transformações ocorridas nas formas de sociabilidade e na realidade cotidiana das pessoas, novas formas de participação dos sujeitos sociais têm emergido. Tais modalidades de envolvimento político, em virtude das deficiências dos canais de intermediação formais existentes (partidos políticos), buscam ir além dos padrões estabelecidos de envolvimento político e parecem estar produzido mudanças significativas na forma como os cidadãos estão encaminhado suas demandas ao Estado.

Uma dessas modalidades que tem assumido centralidade é a democracia participativa (PATEMAN, 1992). Esse tipo de democracia proporciona, além dos procedimentos formais, alternativas ou possibilidades de espaços negociados e de diálogos no desenvolvimento de discursos e práticas. Tal processo parece ser mais evidente em países em desenvolvimento, onde o Estado tem se mostrado ineficiente na resolução de problemas sociais essenciais, como moradia, educação, saúde e segurança. Nessas circunstâncias, a participação direta do cidadão na arena política é considerada como instrumento complementar para fortalecer a democracia nessas sociedades.

Na sua análise das democracias latinas, Young (2000, p. 34) constata que elas contêm desigualdades estruturais – por exemplo, desigualdades de riqueza, desigualdade de poder político e econômico, e desigualdade de acesso ao conhecimento e de status. Segundo a autora, essas desigualdades são injustas porque produzem ou perpetuam as condições institucionais que geram dominação ou inibem o desenvolvimento pessoal. Mesmo quando os cidadãos têm acesso formal a direitos iguais para participar, na prática têm pouco, ou

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nenhum, acesso aos procedimentos por meio dos quais poderiam influenciar os resultados de políticas públicas. Desse modo, a exclusão do processo político se materializa mesmo em situações de fortalecimento poliárquico (DAHL, 1971).

As constatações acima contribuem para uma melhor compreensão do processo político participativo da juventude na América Latina. As pesquisas desenvolvidas nos últimos anos sobre a participação política juvenil têm demonstrado que ela ocorre numa situação complexa. Assim, a participação política da juventude tem sido caracterizada como apática, passiva, cética, desconfiada e com pouco interesse pelos modos tradicionais de fazer política (BAQUERO, 2004, NAZZARI, 2006, MÜXEL, 1997). Cabe, porém, contrapor que a participação política da juventude não pode ser vista como algo fixo e/ou determinado. Ela é uma construção social, onde a juventude reflete a elaboração, a ressignificação, a interpretação e a transformação da política.

Para Castro, L. & Correa, J. (2005), a juventude contemporânea tem passado por um processo de individualização como princípio moral (SOUZA, 2000), processo que a coloca frente à dupla tarefa de, primeiro, se construírem como sujeitos singulares em condições sociais incertas, onde foram abolidos os roteiros válidos de oportunidades e de escolhas futuras, e, segundo, de se construírem enquanto sujeitos coletivos. Para as autoras, a participação social se constitui num dos aspectos importantes dessa articulação necessária entre os processos de individualização e de construção do coletivo, fazendo com que o comportamento apático, passivo, de desconfiança política e de pouco interesse por causas comuns, que se vincula a uma imagem alienada dos/as jovens, tenha de ser melhor compreendido por denunciar o surgimento de um novo parâmetro sobre o que é, e como se faz, a participação política. Enquanto resultante desse processo, para as autoras, a juventude contemporânea tem enormes dificuldades de construção de “[...] um espaço coletivo e de elaboração de uma versão válida e legítima da vida social” (ibidem, p. 24). Apesar disso, a juventude tem criado alternativas de participação social, o que leva à identificação do comportamento juvenil de descrença frente à política formal como uma atitude de reação em relação à política como tal, “[...] e não uma abdicação de dizer, sentir e agir em comum” (ibidem, p. 24).

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O argumento de que a juventude tem recusado ou reagido às formas tradicionais de fazer política sem, entretanto, abrir mão da política se vê reforçado no mapeamento sobre o estado da arte da participação cidadã ou política da juventude. Em relação a esta temática, Alvarado, Ospina, Botero e Muñoz (2008) identificam a existência de quatro tendências nos trabalhos acadêmicos, sendo elas:

[...] a explicação e descrição da participação como conduta (Almond & Verba,1963; Milbrath,1981; Sabucedo,1988; Seaone y Rodríguez, 1988); a participação juvenil a partir dos movimentos e identidades sociais (Sabuceno, 2003; Delgado, 2006; Aguilera, 2006); a participação juvenil sobre a lente da política pública, compreendendo-a como direito e como processo de formação (Hart, 1997; Hopenhayn, 2004; Rodrigues, 2004; Abad, 2006; UNICEF, 2003; CEPAL/OIJ, 2003, 2004; Funlibre, 2005); e, finalmente, a participação juvenil lida a partir das rupturas sócio-históricas e das mediações estéticas e culturais (Reguillo, 1998, 2003; Urresti, 2000; Balardini, 2005; Muñoz, 2005). (ALVARADO, OSPINA, BOTERO E MUÑOZ, 2008, p. 22, tradução livre dos autores).

A existência de várias formas de participação política torna necessário estabelecer as distinções entre elas. É possível falar em participação cidadã, que implica uma relação direta com o Estado e que se dá quando o cidadão intervém no público e atua na defesa de seus interesses frente ao Estado. Pode-se falar em participação comunitária, que busca na coletividade a satisfação das necessidades cotidianas de uma comunidade, dessa forma, essa participação não envolve necessariamente uma relação com o Estado. Identifica-se, ainda, a participação social que, apesar de se mover no campo dos interesses privados, procura melhorar as condições de vida da comunidade ou defender interesses comuns e identidades sociais (Velásquez, citado por GONZÁLEZ, 1996, p. 17). E, finalmente, a participação política, que acontece quando o cidadão utiliza instrumentos ou meios já estabelecidos entre ele e o Estado para intervir na solução de necessidades da comunidade política, ou seja, aquela que determina

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com sua participação as ações de governo (ARRIAGADA, I. & MIRADO, F. 2003).

Assim, a participação social juvenil se realiza de várias formas e pode ser vista sob vários ângulos e analisada por meio de múltiplas abordagens. Alicia I. Palermo (2008) aponta que a juventude tem sido uma das principais protagonistas tanto dos efeitos das crises econômicas, como do esgotamento das formas políticas na região latina-americana. Isso tem possibilitado distinguir em duas dimensões as formas de organização e participação juvenis. Por um lado, a participação juvenil nos chamados movimentos sociais. Por outro lado, a participação em organizações sociais em torno de produções culturais “[...] que podem se converter em contra-hegemônica, alternativas ou contra-culturais” (p. 10). Essa última, em particular, ilustra a postura da juventude na recusa da política formal na América Latina. Como demonstra o trabalho de Lodi & Souza (2005), a juventude hip-hop no Brasil tem utilizado a cultura para reinventar a ação política. Essa necessidade de reinventar a política deriva do fato de compreenderem que a política “[...] está completamente desacreditada, e que a única finalidade dos parlamentares é se dá bem às custas da ignorância do povo” (ibidem, p. 146).

Dessa forma, os sucessivos e constantes escândalos de corrupção, que ocorrem e são amplamente divulgados na América Latina, somados ao processo de individualização como princípio moral, que enfraquece os laços de cooperação e os valores de lealdade, são aspectos que impactam o comportamento político juvenil, assim como a participação política da juventude, que tem demonstrado não estar indiferente às práticas de corrupção política, como será visto na próxima seção. A corrupção como limite da participação política juvenil

Um dos temas que tem recebido atenção, nos últimos anos, no contexto da democratização latino-americana diz respeito a como as pessoas e, particularmente, os/as jovens, percebem a corrupção e os efeitos dessas percepções na construção democrática de uma sociedade. Para o Banco Mundial, a corrupção se refere ao abuso praticado por funcionários públicos para benefícios privados. A Transparência Internacional (instituto internacional que acompanha a corrupção no

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mundo) se refere à corrupção como o mau uso do poder, encomendado para obter benefícios particulares. No âmbito acadêmico, Nino (1992) diz que a corrupção é uma conduta que se beneficia pelo descumprimento da lei e pela existência de um pacto de silêncio entre os atores envolvidos em atos desse tipo. Há um consenso, portanto, de que a corrupção se refere ao uso da posição e do poder público para fins ilegítimos, ilegais e/ou diferentes para os quais foram formalmente estabelecidos.

Geralmente se estabelece uma distinção entre um ato de corrupção e um sistema de corrupção. Para efeitos deste estudo, a última categoria será enfatizada. Um sistema de corrupção diz respeito a estruturas e a processos que se institucionalizam ao longo do tempo na sociedade como modalidades normais para conseguir benefícios particulares às custas do bem público. Nesse sentido, o que se constata é uma naturalização do fenômeno da corrupção como „o modo normal de fazer as coisas‟ na sociedade, nas instituições e nas organizações (GAMALLO, 2007).

As pesquisas sobre corrupção podem ser classificadas em quatro categorias: (1) pesquisas que buscam aferir as percepções de informantes-chave numa sociedade sobre a corrupção (Transparência Internacional, Barômetro da Corrupção, Índice Internacional de

Anticorrupção) esse tipo de estudo tem como objetivo estabelecer comparações entre países; (2) estudos de caráter quantitativo macroestruturais via regressão linear, onde as variáveis dependentes são os índices de corrupção acima mencionados e as variáveis independentes se referem ao funcionamento da economia ou do sistema institucional; (3) um terceiro tipo de estudos analisa, por meio de técnicas quantitativas, o impacto da corrupção na economia e na construção democrática de uma nação; e (4) estudos que buscam identificar as percepções das pessoas sobre a corrupção como consequência de suas crenças, seus valores e suas normas socializadas dento de um determinado sistema político (SAUTU et alii, 2004).

Este estudo se enquadra entre a terceira e quarta categoria apontada por Sautu et alii (2004), na medida em que se busca avaliar o impacto que a naturalização da corrupção no sistema de crenças da juventude pode ter no enfraquecimento democrático, gerando um círculo vicioso entre a transmissão de valores que propiciam a prevalência de práticas que operam à margem da lei e um sistema que

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nada faz para impedir a proliferação de tais ações. A democracia, nessas circunstâncias, permanecerá instável, a despeito da sua institucionalização poliárquica.

Nesse contexto, um dos principais obstáculos para o progresso democrático se refere ao papel deletério da corrupção. A corrupção, que até há pouco tempo não despertava o interesse acadêmico, nos últimos anos tem se transformado em tema associado às deficiências da democracia contemporânea. O fato é que, tradicionalmente, se pensava que um pouco de corrupção possibilitava um melhor funcionamento da democracia à medida que reduziria os custos de transação e as ineficiências de regras incompreensíveis (ANECHIARICO E JACOBS, 1996). Presentemente, há uma linha de pensamento que defende a ideia de que a corrupção é um sintoma, bem como uma disfunção dentro das democracias (THOMPSON, 1995). Para Thompson (1995), a corrupção quebra o vínculo entre o processo de decisões coletivas e o poder das pessoas para influenciar essas decisões por meio da liberdade de expressão e do voto, vínculo esse que define a democracia. Assim, a corrupção reduz o domínio eficiente da ação pública, reduzindo as agências públicas de ação coletiva a meros instrumentos de benefício privado. Nessas circunstâncias, os serviços públicos são ineficientes, sobretudo pelo fato de que se criam possibilidades para que as atividades públicas sejam envolvidas por práticas de corrupção para benefício particular. É o que Banfield (1958) denominava de familismo amoral na política. A corrupção, vista sob esse ângulo, mina as bases de uma cultura democrática. Isso ocorre porque, se os jovens perdem a confiança em relação ao caráter público das decisões políticas, tornam-se céticos em relação às instituições da democracia representativa e em relação aos gestores públicos. Questionam também a sua própria capacidade de envolvimento em atividades políticas públicas e preferem, de maneira geral, se envolver em ações de caráter privado e em benefício próprio. Nessas circunstâncias, os jovens latino-americanos podem ser caracterizados nos mesmos moldes que os adultos, como passivos, desinteressados e apáticos em relação à política. A possibilidade de construir uma cultura política juvenil nessas condições é mínima. Esse fenômeno é agravado pela forma como a corrupção é percebida nessas sociedades. A corrupção não é considerada em termos morais, mas em termos de comportamentos de

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desvio, associados a uma motivação particular de ganho privado em detrimento dos interesses públicos. Conceituada dessa maneira, a corrupção facilita a mensuração do comportamento individual quando vai contra as normas e regras operacionalizadas em leis. Tal definição possibilita que se desenhem instituições formais para controlar, reduzir e eliminar as práticas de corrupção no serviço público. Acontece, no entanto, que, em países onde as instituições são frágeis e pouco fiscalizadas por dispositivos formais, e menos ainda por mecanismos societários, a corrupção, em nossa opinião, impacta estruturalmente o sistema de crenças da cidadania. Sob esse ângulo, a corrupção mina as capacidades de associação dentro da sociedade civil, na medida em que generaliza a suspeita bem como corrói a confiança e a reciprocidade (WARREN, 2004), de fato se constituindo num tipo específico de desempoderamento injustificável, diminuindo possibilidades da ação coletiva e constrangendo um pilar essencial da democracia – os valores democráticos. A sua presença estrutural no processo de construção política de um país se constitui, portanto, em obstáculo formidável a ser superado pelas sociedades latino-americanas. Na medida em que práticas de corrupção são vistas como algo normal, embora condenadas eticamente, o ceticismo cresce e a desconfiança na política aumenta. De acordo com Krishna (2002), a mera criação de instituições de cima para baixo não é suficiente para potencializar a plena participação cidadã. É necessário que elas sejam consideradas transparentes, honestas e que contem com o apoio majoritário da população. A ideia de que, quando manipulações ocorrem, a introdução de instituições corrige e resolve o problema, não se aplica em países com deficits materiais significativos. Os dados analisados a seguir atestam sobre as crenças e os valores políticos da juventude sul-americana, e podem contribuir para ilustrar o limite que a corrupção constitui para o comportamento e a participação política democrática da juventude. A dimensão empírica A base de dados utilizada neste trabalho é composta por informações de jovens de 16 a 29 anos residentes nas cidades Santiago

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(Chile), Montevidéu (Uruguai) e Porto Alegre (Brasil). A juventude nos três países observados compõe cerca de 20% da população, portanto, apesar de haver um processo de envelhecimento dessas sociedades, os/as jovens ainda constituem um contingente significativo que demanda necessidades específicas. Em comum, todos os países pesquisados são de maioria católica, colonizados por ibéricos e classificados como em desenvolvimento. Dessa forma, antes de apresentar e analisar os dados coletados, faz-se importante caracterizar brevemente os locais pesquisados.

A cidade de Montevidéu destaca-se pelos baixos níveis de pobreza se considerada a região, contudo, nos últimos anos, é possível observar um processo de empobrecimento da população uruguaia (KATZMAN E RETAMOSO, 2005, p. 1), onde a juventude tem sido particularmente castigada. A cultura política da cidade, caracterizada como altamente politizada e detentora de valores democráticos fortes e estáveis, calcados no papel dos partidos políticos e de uma base normativa de apoio à democracia, tem se modificado em consequência desse processo. Consequentemente, observa-se, atualmente, certo desencanto com a democracia por parte dos cidadãos de Montevidéu, o que é atribuído, por Chasquetti e Bouquet (2004), ao início da crise do modelo de desenvolvimento baseado na substituição de importações, provocando a sensação de que a sociedade uruguaia vive uma crise constante.

Santiago, enquanto capital do Chile, é referência cultural, administrativa e financeira do país. A cidade é tida como a de melhor qualidade de vida da América do Sul. Destaque-se seu desempenho econômico da década de 1990, desempenho bem acima da média do continente, entretanto esse fenômeno chama atenção por não se refletir no processo participatório dos cidadãos chilenos. Segundo Silva (2004, p. 64), a sociedade civil chilena tem vivenciado um processo de ausência de debates políticos nacionais, despolitização crescente e desvalorização da política.

Porto Alegre situa-se no Sul do Brasil e faz fronteira com a Argentina e o Uruguai. Conhecida por sediar o Fórum Social Mundial e pela criação do Orçamento Participativo, processo de consulta cidadã para a destinação de uma parte do orçamento municipal, a cidade detém o melhor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH/Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas-2001) dentre as capitais do país. A

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cidade vive, contudo, a mesma contradição da maior parte das cidades brasileiras, ou seja, a consolidação da democracia eleitoral sem resolver os problemas consequentes da ampla desigualdade e da exclusão social. Em relação à cultura política, é possível observar uma desconfiança em relação às instituições políticas e à permanência de práticas informais na resolução dos problemas políticos (O´DONELL, 1999).

De maneira geral, as sociedades da América Latina têm sofrido com o aumento do desemprego, da pobreza, da desconfiança nas instituições políticas e com o desencanto com a democracia existente. Essa realidade impacta a juventude sul-americana na constituição de seus valores e de suas percepções sobre a política. Isso tem demandado resposta dos Estados que, de modo geral, tem procurado criar políticas públicas específicas para a juventude. O Chile se destaca como a primeira experiência do continente em criar uma estrutura, como Secretarias, Conselhos e Institutos, para gerar e gerenciar políticas estatais específicas para a juventude. Seu modelo tem inspirado iniciativas semelhantes no Uruguai e no Brasil.

Nesse contexto, a juventude sul-americana continua sendo o contingente populacional mais atingido por problemas como o desemprego e a violência urbana. Isso se reflete em suas preocupações, figurando, entre as principais delas, o desemprego, a educação e a corrupção. Como argumentado até então, a continuidade e, muitas vezes, o agravamento dos problemas sociais precisam ser considerados quando se examina a rejeição da juventude em relação à política, pois, como ressaltou Castro, L. & Correa, J. (2005), a não participação política da juventude não significa uma abdicação em relação à política.

Nesse sentido, a Tabela 1 demonstra que a maioria dos/as jovens das três cidades apresenta algum interesse por política, pois, se somada a coluna SIM com a de MAIS OU MENOS, temos o maior percentual de interesse por política em Montevidéu (com 68,7%), seguido de Porto Alegre (com 62,81%) e, depois, Santiago (com 52,4%). Apesar desses dados, os números obtidos dentre as respostas negativas é elevada, visto que, em nenhum dos casos, estão abaixo dos 30%. Comparando apenas aqueles que responderam se interessar por política com os que não se interessam, as respostas negativas atingem percentuais maiores em todos os casos. No caso do desinteresse, chama atenção, ainda, Santiago, que, com 47,6% de desinteresse da juventude por política, reforça o argumento de Silva (2004), no sentido de um

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processo de ausência de debate e de desvalorização da política na sociedade chilena. Tabela 1. Falando em política, o/a sr./sra. se interessa por política? (%)

Jovens Sim Mais ou Menos Não NS/NR* TOTAL Porto Alegre 22 41 37 1 100

Santiago 15 37 48 - 100

Montevidéu 31 38 31 - 100

Fonte: NUPESAL/2005. * = Não Sabe/Não Respondeu. N em POA = 148, N em Santiago = 166 e N em Montevidéu = 166

Apesar de demonstrar algum grau de interesse por política, a

juventude sul-americana não traduz esse interesse em participação social. Na Tabela 2 encontram-se os valores obtidos junto aos/às jovens, quando questionados/as se participavam de algum grupo ou organização social. Santiago apresenta o melhor resultado nesse sentido (33,0%). Mesmo assim, não atinge nem a metade da população, que respondeu “não” (68,0%). Porto Alegre, apesar de ser considerada uma sociedade civil tradicionalmente participativa, demonstra o pior resultado das três cidades pesquisadas (87,0%), seguida por Montevidéu, também, na casa dos 80%.

Tabela 2. Atualmente o/a sr./sra. participa de algum grupo ou organização?

Jovens Sim Não TOTAL

Porto Alegre 14 87 100%

Santiago 33 68 100%

Montevidéu 20 80 100%

Fonte: NUPESAL/2005. N em POA = 148, N em Santiago = 166 e N em Montevidéu = 166.

Nesse sentido, a fragilidade das relações de confiança interpessoal e em relação às instituições que balizam a democracia contribui para entender por que a participação social da juventude é tão baixa. Na Tabela 3, quando questionados/as se os/as jovens confiam em seus vizinhos, apenas em Montevidéu é possível encontrar um nível elevado de confiança na comunidade (45,2%), mesmo assim, se somados os jovens que não cofiam com os que confiam pouco em seus vizinhos, o resultado é de 54,9%. Dessa forma, é possível observar uma

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das dificuldades de organização da juventude para pensar em questões coletivas, pois, com níveis de confiança tão baixos (Porto Alegre com 20,3% e Santiago com 23%), a predisposição para se envolver em atividades ou em ações comuns no local onde vivem torna-se pouco provável. Esse fator aponta, ainda, para outra questão preocupante: à medida que a capacidade associativa da juventude se fragiliza, nessa medida enfraquece também a coesão social.

Tabela 3. Gostaria de saber se o/a sr./sra. confia muito, pouco, não confia nos seus vizinhos.

Jovens Confio Muito Confio Pouco Não Confio NS/NR TOTAL Porto Alegre 23 55 20 1,3 100%

Santiago 23 55 21 0,6 100%

Montevidéu 45 39 16 - 100%

Fonte: NUPESAL/2005. * = Não Sabe/Não Respondeu. N em POA = 148, N em Santiago = 166 e N em Montevidéu = 166

Os partidos políticos são considerados as instituições responsáveis pela pré-seleção e organização da representação democrática, pois, por meio deles, aqueles que se candidatam a representantes políticos poderão expor suas ideias e propostas para serem escolhidas pela maioria eleitoral. Outras funções importantes dos partidos políticos em uma sociedade democrática são a educação política da população e a propagação de ideologias. Por isso partidos fortes são considerados indicativos de estabilidade democrática, uma vez que fortalecem e realimentam o sistema político. Os partidos políticos têm, contudo, sido alvos de constantes questionamentos e de desconfianças por parte da população. Acusados de burocráticos e distantes dos representados, a fragilidade dos partidos políticos no continente é notória, e entre a juventude a situação não aparece diferente. Os dados sobre esta questão, na Tabela 4, revelam que, mesmo em Montevidéu, que possui uma longa tradição partidária com um sistema considerado forte e estável, dentre aqueles que responderam que confiam muito nos partidos políticos registrou-se apenas 9,6%, contrastando com os 53% dos que confiam pouco e 36,2% dos que não confiam. Já em Santiago e em Porto Alegre, ali a desconfiança é muito alta, sendo que a primeira cidade atinge por volta de 50% de desconfiança da juventude e a segunda, quase 53%.

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Tabela 4. Gostaria de saber se o/a sr./sra. confia muito, pouco, não confia nos partidos políticos.

Jovens Confio Muito Confio Pouco Não Confio NS/NR TOTAL Porto Alegre 6 37 53 4 100%

Santiago 4 46 49 - 100%

Montevidéu 10 53 36 1,2 100%

Fonte: NUPESAL/2005. * = Não Sabe/Não Respondeu. N em POA = 148, N em Santiago = 166 e N em Montevidéu = 166 O quadro de desconfiança em relação aos partidos políticos se agrava e se retroalimenta quando se observam as percepções juvenis sobre a corrupção dos representantes (Tabela 5). Ao serem questionados se consideravam todos os políticos corruptos, a maioria dos/as jovens, em torno de 50% em todas as cidades pesquisadas, concordou em parte com a afirmação. Somados com aqueles que concordam, então se registra 75,7% em Porto Alegre, 87,3% em Santiago (com o maior percentual) e 74,7% em Montevidéu.

Tabela 5. Qual é a sua opinião sobre a seguinte afirmação: Todos os

políticos são corruptos.

Jovens Concorda Concorda em parte Discorda NS/NR TOTAL

Porto Alegre 27 49 22 2% 100%

Santiago 34 54 13 - 100%

Montevidéu 25 50 24 1,3% 100%

Fonte: NUPESAL/2005. * = Não Sabe/Não Respondeu. N em POA = 148, N em Santiago = 166 e N em Montevidéu = 166 Reforçando a percepção da juventude sul-americana de corrupção na política, ao serem questionados se concordavam ou não com a afirmação de que os políticos não cumprem com suas promessas (Tabela 6), novamente a maioria concorda com essa afirmação. Santiago apresenta, mais uma vez, o maior percentual, atingindo 65,6%, seguido de Porto Alegre com 49,3%, e Montevidéu com 41%. Essa situação se vê agravada quando são somados os percentuais dentre

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os/as jovens que concordam e concordam em parte que os políticos não cumprem com suas promessas, somando 94,6% em Santiago, 96% em Porto Alegre e 91% em Montevidéu. Tabela 6. Qual é a sua opinião sobre a seguinte afirmação: Os políticos

prometem, depois não cumprem.

Jovens Concorda Concorda em parte Discorda NS/NR TOTAL Porto Alegre 49 47 4 - 100%

Santiago 66 29 5 1 100%

Montevidéu 41 50 8 1 100%

Fonte: NUPESAL/2005. * = Não Sabe/Não Respondeu. N em POA = 148, N em Santiago = 166 e N em Montevidéu = 166 A associação realizada entre corrupção e política constitui assim uma explicação para a refutação da política formal e uma falta de estímulo para a participação política da juventude. Esse grave problema constitui, dessa forma, um desafio para a manutenção e o aperfeiçoamento do regime democrático na América Latina. Considerações finais A juventude contemporânea tem, muitas vezes, sido acusada de apática, descrente e cética (BAQUERO, 2004, NAZZARI, 2006, MÜXEL, 1997. Nascendo e crescendo concomitante ao regime democrático na América Latina, a juventude experimenta um processo onde o voto se fortalece enquanto procedimento democrático, ao passo que as expectativas de melhores condições de vida e de distribuição mais equitativa da riqueza se frustram. Herdeira de uma memória de repressão e autoritarismo, a valorização da democracia em termos abstratos e procedimentais pela juventude figura como fator de fortalecimento da democracia na região. Acontece, contudo, que as debilidades e os vícios não condizentes com o sistema democrático, que permaneceram na cultura e na prática política latina, enfraquecem a construção e a consolidação de uma democracia efetiva (O´DONELL, 1999).

A corrupção, à medida que promove a descrença nos procedimentos e nos canais democráticos, distorce as regras do jogo político, cria e reforça canais de favorecimentos escusos, bem como

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fragiliza os processos de organização, associação e participação coletiva. Em decorrência, quebra o vínculo entre o processo de decisões coletivas e o poder das pessoas de influenciar nessas decisões (THOMPSON, 1995), passando a valorizar iniciativas individuais de satisfação de demandas. Esses fatores se agravam quando somados à fragmentação cultural e ao processo de individualização como princípio moral (SOUZA, 2000) vivenciado pela juventude.

Esse contexto dificulta a elaboração de identidades coletivas por parte da juventude (CASTRO & CORREA, 2005), pois a ausência de participação social do/a jovem elimina um dos aspectos importantes entre a articulação dos processos de individualização e de construção coletiva. Da mesma forma, um alto nível de desconfiança interpessoal, como os demonstrados pelos/as jovens em relação aos seus vizinhos nas três cidades pesquisadas, dificulta o processo associativo, a vivência comunitária e a organização da sociedade civil, por constituir um estímulo à não participação social. Assim, se somados os jovens que não cofiam com os que confiam pouco em seus vizinhos, os resultados obtidos são: Porto Alegre com 75,7%, Santiago com 76,4% e Montevidéu com 54,9%.

Dessa forma, a corrupção se apresenta como um obstáculo à participação política da juventude sul-americana, pois a visão do processo político como corrupto inibe a propagação de uma cultura democrática. Contribuem para essa afirmação os dados de participação política obtidos, onde os/as jovens não participam de algum grupo ou organização na ordem de 86,5% em Porto Alegre, 67,5% em Santiago e 80,1% em Montevidéu. Reforça essa visão a constatação da desconfiança da juventude nas instituições políticas como os partidos, visto que 52,7% dos/as jovens em Porto Alegre, 49,4% em Santiago e 36,2% em Montevidéu não confiam nos partidos políticos. A desconfiança nas instituições políticas e em relação ao caráter público das decisões produz, assim, comportamentos desagregadores da sociedade.

Apesar dos esforços dos governos latinos na tentativa de institucionalizar uma base normativa de crenças e valores em relação à democracia, os sucessivos escândalos sobre corrupção nos governos têm impactado a percepção da juventude sobre os políticos. Somados os/as jovens que concordam em parte os que concordam que todos os

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políticos são corruptos, registra-se 75,7% em Porto Alegre, 87,3% em Santiago e 74,7% em Montevidéu.

Entretanto, a participação política da juventude sul-americana precisa ser vista como uma construção social continuada, onde os/as jovens passam por um processo de edificação da cidadania e da democracia na região. Nesse sentido, a juventude assume um papel primordial, se compreendida como agente de influência no presente e no futuro da sociedade. É a juventude que seleciona e põe em prática conteúdos antigos ou novos de uma cultura política, que é fruto do cotidiano de participação na vida pública. O combate à corrupção na América Latina não pode ser visto unicamente como uma ação de cunho ético e moral, mas como um desvio de comportamento, portanto, que tem consequências para estruturação do sistema político democrático. Assim, ao se constituir em limite para a participação política da juventude, a corrupção ameaça a democracia à medida que provoca a erosão dos valores democráticos e distancia da política as novas gerações, que questionam a legitimidade e a credibilidade do sistema político.

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REPRESENTAÇÕES SOBRE O ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. O QUE NOS ENSINAM?

Rute Baquero

Marilene Alves Lemes

Introdução

Na década de 1990 é criado, no Brasil, um importante instrumento para legitimar o campo das políticas públicas da criança e do adolescente. Trata-se da Lei Federal nº 8.069, de 13 de julho de 1990, que institui o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), o qual ganhou visibilidade e reconhecimento da comunidade internacional. Na época, o Estatuto da Criança e do Adolescente foi acolhido por unanimidade e o Brasil tornou-se o primeiro país a acertar o passo da sua legislação com o que há de melhor na normativa internacional nessa área.

Dessa forma, o Estatuto da Criança e do Adolescente representa um marco fundamental no trato das questões da criança e do adolescente, transitando do paradigma da Doutrina Irregular para o paradigma da Doutrina da Proteção Integral, reconhecendo as crianças e os adolescentes como sujeitos de direitos.

Desde então, um conjunto de ações vêm sendo regulamentadas, fornecendo-nos, hoje, elementos para subsidiar uma reflexão sobre os seus efeitos – no caso deste artigo, os efeitos no cotidiano da prática educativa da sala de aula. Neste sentido, o artigo tem por objetivo problematizar representações que adolescentes e professores vêm produzindo a respeito do Estatuto da Criança e do Adolescente, enquanto instrumento regulador e legitimador de políticas públicas.

Para atingir este objetivo, o artigo está estruturado de modo que, num primeiro momento, situa-se o Estatuto da Criança e do Adolescente quanto à sua origem e à sua concepção. Num segundo momento, analisam-se dados de pesquisa a respeito de representações sobre o ECA por parte de adolescentes de 14 a 18 anos e de professores da Educação de Jovens e Adultos, buscando aproximações

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e distanciamentos entre os seus discursos. Por último, tecem-se algumas considerações em termos de um à guisa de conclusão. Estatuto da Criança e do Adolescente: origem e concepção

Historicamente, o ECA nasce em contraposição à concepção de direito do menor, orientando-se pela ideia central de que crianças e adolescentes são sujeitos de direitos em relação ao mundo adulto, ou seja, em suas relações com a família, a sociedade e o Estado. Mais do que isso, segundo Machado (2003), norteia-se pela noção de que crianças e adolescentes são pessoas em fase de desenvolvimento físico, psíquico, emocional, em processo de desenvolvimento de sua potencialidade humana adulta. O direito do menor, conforme Machado (2003) explicitava e preocupava-se, quase que exclusivamente, em dar combate à criminalidade juvenil e combate não apenas repressivo, em face do crime, mas também, e principalmente, preventivo, sob a ótica da criminologia positivista.

Em síntese com a constituição dos juízos de menores e a cristalização do direito do menor criou-se um sistema sociopenal de controle de toda a infância socialmente desassistida, como meio de defesa social em face da criminalidade juvenil que somente se revelou possível em razão da identificação jurídica e ideológica entre infância carente e infância delinqüente. Esta terminologia ficou conhecida como doutrina da situação irregular. (MACHADO, 2003, p. 42).

O ECA, juridicamente falando, é originado do artigo 227

da Constituição Federal e da Convenção Internacional dos Direitos da Criança. Nesse sentido, podemos pensar com Silva (1998) que o ECA é dotado de natureza de valor supremo, pois é também fundamento da República, da Federação, do País, da Democracia e do Direito. Não é, portanto, apenas um princípio da ordem jurídica, mas é também da ordem política, social, econômica e cultural. Daí sua natureza de valor supremo, porque está na base de toda a vida nacional.

Importa anotar também que o ECA é o resultado de lutas do movimento dos direitos das crianças e dos adolescentes no Brasil, especialmente de profissionais da assistência social, de juristas e de

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educadores sociais de rua. Conforme Machado (2003), a mobilização popular foi tão expressiva que, na época, foi entregue aos constituintes um manifesto em favor da atual redação do Art. 227 da Constituição Federal de 1988, contendo cerca de 5 milhões de assinaturas.

Aprofundando a compreensão no campo do Direito, entende-se que “[...] os direitos do homem são direitos históricos que emergem gradualmente das lutas que o homem trava por sua própria emancipação e das transformações das condições de vida que estas lutas produzem” (BOBBIO, 1992). Assim, a história do ECA é também parte da história dos direitos humanos.

É, no entanto, necessário referir o que se entende por direito na expressão direitos humanos. No sentido estritamente técnico-jurídico, direito, segundo Machado (2003, p. 70), é uma pretensão positivada, um bem garantido por uma norma jurídica que corresponde a uma obrigação, cujo inadimplemento acarreta uma sanção, potencialmente imposta, de forma coercitiva, pelo Estado Soberano. Bobbio corrobora a necessidade de definição do termo direito, afirmando que, “[...] apesar das inúmeras tentativas de análise definitória, a linguagem dos direitos permanece bastante ambígua, pouco rigorosa e freqüentemente usada de modo retórico” (BOBBIO, 1992). Bobbio sustenta ainda que nada impede que se use o termo de modos indistintos, mas que, entre uns e outros, segundo o autor, “[...] há uma bela diferença” (BOBBIO, 1992). Machado (2003), por sua vez, refere que muitos autores preferem fazer uso da expressão direitos fundamentais para designar direitos humanos por tratar-se de uma concepção de direitos absolutos e homogêneos.

Em termos gerais, existe uma unanimidade no que diz respeito à defesa dos direitos das crianças e dos adolescentes de que elas sejam prioridade absoluta. Segundo Kayayan (2008) (1), no que se refere à promoção e à defesa dos direitos da criança, o Brasil foi o primeiro país da América Latina – e um dos primeiros do mundo - a qualificar sua legislação nessa área, distinguindo-se internacionalmente. De fato, o artigo 227 da Constituição Federal de 1988 e o ECA superam de vez o desgastado modelo da doutrina da situação irregular, substituindo-a pelo enfoque da proteção integral, concepção sustentadora da Convenção

Internacional dos Direitos da Criança, aprovada pela Assembleia Geral da ONU, em 20 de novembro de 1989.

A respeito da Doutrina Irregular, é importante referir que ela foi constituída de dois instrumentos. O primeiro:

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Em 12 de outubro de 1927, o Decreto-Lei 17.943-A institui o primeiro Código de Menores no Brasil, buscando sistematizar a ação de tutela e coerção que o Estado passa a adotar. Com tal decreto, o Brasil começa a implantar o seu sistema público de atenção às crianças e jovens em circunstâncias especialmente difíceis. (ROQUE, 2002, p. 3). O segundo: Já o Código de menores de 1979, disciplinado pela Lei 6.697, de 10 de outubro de 1979, ofereceu assistência, proteção e vigilância a "menores" até 18 anos, cuidando de catalogar casos em que o menor pudesse estar em "situação irregular", ainda que estivesse em companhia dos pais ou responsáveis, descrevendo seis categorias: a) abandonados, b) carentes, c) em abandono eventual, d) com desvio de conduta, e) infratores [...]. (ROQUE, 2002, p. 3).

A Proteção Integral, representada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, é estabelecida na década de 1990:

Lei 8069 de 13 de julho de 1990, que, revolucionando em termos doutrinários e legislativos, rompeu com a doutrina da situação irregular e adotou a doutrina da proteção integral. Considerada um avanço cultural da sociedade como um todo, reconhecendo-os como parte integrante da família e da sociedade, com direito ao respeito, à dignidade, à liberdade, à opinião, à alimentação, ao estudo, dentre outros. Com mudanças de conteúdo, método e gestão, o Estatuto da Criança e do Adolescente acrescenta novos elementos às políticas públicas para a infância e juventude, com atendimento muito mais amplo, com o Estado substituindo o então assistencialismo vigente por intervenções sócio-educativas baseadas no fato de crianças e adolescentes serem pessoas em desenvolvimento e cidadãos de direito, promovendo uma nova estrutura de política de promoção e defesa desses direitos baseada na descentralização político-administrativa e na participação da sociedade por meio

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de suas organizações representativas. O Estatuto da Criança e do Adolescente é, portanto, uma legislação moderna e revolucionária em seus conceitos na letra da lei. (ROQUE, 2002, p. 3).

O ECA, sendo portador das concepções da proteção integral,

é considerado o mais importante instrumento elaborado em toda a história dos direitos fundamentais da população infantojuvenil, porque nele estão contidas referências legais, legítimas e exequíveis, que devem impulsionar a reflexão social em favor da construção de uma cultura de direitos. A proteção integral precisa, no entanto, tornar-se uma realidade, pois há que se considerar que existe um hiato entre a vida dos adolescentes e aquilo que dispõe a legislação. Embora o ECA, na sua linguagem e conteúdo, tenha rompido com o paradigma da Doutrina Irregular, sua prática, voltada especialmente para crianças e adolescentes das classes populares, ainda é carregada de estigmas. Realização da Pesquisa

A pesquisa foi realizada utilizando a estratégia de grupos focais. De acordo com Thornton (2005 apud M. SHAW, 1981), grupos focais, também denominados pelo autor como grupos de discussão, caracterizam-se como grupos pequenos, com duas ou mais pessoas que interagem de tal maneira que cada uma delas mutuamente influencia e é influenciada pela outra. Thornton (2005) acrescenta que atividade, interação e sentimento são os pilares fundamentais de um grupo focal. Para o desenvolvimento da pesquisa, constituíram-se dois grupos focais. Um dos grupos reuniu adolescentes, dez meninos e uma menina, na faixa etária entre 14 e 18 anos, estudantes, sendo cinco na modalidade da Educação de Jovens e Adultos (EJA), e seis no ensino regular, em duas escolas da periferia da cidade de Novo Hamburgo/RS. Os adolescentes integram também o Programa Bolsa Família(2) do governo federal e frequentam o Serviço ProJovem Adolescente(3).Como integrantes do ProJovem Adolescente, esses jovens devem ter renda per capita igual ou inferior a ½ salário mínimo e ser considerados em situação de risco pessoal e social, excluídos, ou ainda em situação de vulnerabilidade social. O outro grupo focal reuniu, em uma das escolas frequentadas pelos

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adolescentes, cinco professores da EJA. A realização dos grupos focais ocorreu nos meses de maio a setembro do ano de 2009.

Os grupos de discussão foram organizados com o objetivo de problematizar o Estatuto da Criança e do Adolescente junto a adolescentes e a professores, identificando representações por eles partilhadas e os efeitos dessas representações em algumas relações pedagógicas da ação escolarizada. Tema de controvérsia, o Estatuto da Criança e do Adolescente tem sido pauta destacada pela opinião pública, em diferentes momentos da vida da cidade, região e país, tornando o processo, vivido no desenvolvimento dos grupos, rico, intenso e contraditório.

Para registrar as representações, de como os adolescentes e os professores percebem o Estatuto da Criança e do Adolescente, foram utilizados os seguintes instrumentos: observação assistemática e filmagem dos grupos, atividades seguidas de relatório de transcrição e de diários de campo das pesquisadoras.

A análise dos dados coletados apoiou-se em Moscovici (1978), em Arroyo (2004) e em Freire (2000, 2006). Representações sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente - discurso dos adolescentes e dos professores

Embora o Estatuto da Criança e do Adolescente tenha

sido instrumento provocador, não só de diálogos, mas de efetivação de políticas públicas para a infância e a adolescência brasileira, sua proposta vive um dilema de cunho interpretativo, observando-se, às vezes, representações distintas, por parte de diferentes atores sociais, no que diz respeito ao seu conteúdo. Neste trabalho, as representações do ECA são analisadas a partir do que expressam os adolescentes e os professores, colaboradores deste estudo.

Antes, porém, faz-se necessário compreender a ideia de representação social, abordada neste estudo. Representações sociais são entendidas, aqui, na perspectiva de Moscovici (1978). Moscovici conceitua representações sociais como “[...] conjuntos dinâmicos, seu status é o de uma produção de comportamentos e de relações com o meio ambiente, de uma ação que modifica aqueles e estas, e não de uma reprodução desses comportamentos ou dessas relações, de uma reação a um dado estímulo exterior” (MOSCOVICI, 1978, p. 50). O autor

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considera que não existe um corte entre o universo exterior e o universo do indivíduo – ou do grupo –, ou seja, “[...] que o sujeito e objeto não são absolutamente heterogêneos em seu campo comum. [...] Isto significa reconhecer o poder criador de objetos, de eventos, de nossa atividade representativa” (MOSCOVICI, 1978, p. 48). Logo, toda a realidade é uma realidade (re)criada.

Para Moscovici (1978, p. 56), os indivíduos – ou grupos –, em sua vida cotidiana, não são máquinas passivas determinadas a obedecer, registrar e apenas reagir a estímulos exteriores. Pelo contrário, possuem o frescor da imaginação e o desejo de dar um sentido ao universo a que pertencem: “[...] de fato, representar uma coisa, um estado, não consiste simplesmente em desdobrá-lo, repeti-lo ou reproduzi-lo; é reconstituí-lo, retocá-lo, modificar-lhe o texto” (p. 58).

Nesta perspectiva, representações sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente vão se produzindo, (re)criando-o, (re)interpretando-o na visão de cada sujeito colaborador deste estudo: adolescentes e professores.

Uma análise dessas representações revela que os professores reconhecem positividades no Estatuto da Criança e do Adolescente, sobre o qual relatam o seguinte: “Realmente [o ECA] teve a intenção de auxiliar a criança e o adolescente dos maus tratos, nas dificuldades que eles venham a ter” (profa. Tarsila do Amaral).

“Claro, concordo que ele veio para auxiliar. Eu acho que quando foi feito foi realmente para diminuir a violência contra a criança, violência em todos os sentidos, violência verbal e abusos” (prof. Di Cavalcanti).

“Concordo também com os colegas. Realmente o ECA era para dar um auxílio, ser uma coisa boa” (profa. Anita Malfatti).

A profa. Tarsila reconhece, inclusive, que o ECA “[...] deu um limite nos próprios professores”, tensionando a tênue linha existente entre a autoridade e autoritarismo. Nas suas palavras: “O Estatuto da Criança e do Adolescente favoreceu no sentido de que alguns professores tiveram seus limites também e não puderam mais ultrapassar seus limites que era colocado, por exemplo, no município já tivemos casos de professores que mandaram alunos arrancarem a mão, agressão verbal, que eu acho que é muito sério e para a gente trabalhar com alunos a gente tem que cuidar com o que a gente fala. Uma coisa é se impor e ele saber que tu és autoridade ali dentro e ele saber que ele

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deve respeito a essa autoridade. Outra coisa é tu te impores como um militar, ele vai te respeitar, mais por medo e não pelo respeito que ele tem contigo”.

Da mesma forma que os professores, os adolescentes, ao falarem sobre a finalidade do ECA, também apontam positividades: “Serve para dar uma ajuda para o adolescente que está em má fase... (Adolescente 3); “Para tirar adolescentes das drogas, dar um auxílio” (Adolescente 8); “Ele [o ECA] dá uma ajuda nos maus tratos, quando não tá indo na escola freqüentemente” (Adolescente 1).

Ao ilustrarem a forma como o Estatuto da Criança e do Adolescente poderia ajudar, os adolescentes relatam inúmeras situações. Abaixo segue o depoimento de dois adolescentes: “Uma guriazinha, tinha fugido de casa, né, daí passaram a noite inteira procurando ela. Daí uns guardas municipais acharam ela na rua e falaram com ela, perguntando porque ela fugiu de casa [...] Daí ela não contou pra mãe dela porque ela tinha fugido e a mãe não dava, muito assim, a mínima pra ela, e o irmão dela, que é meio ligeirinho, tava atrás dela pra levar ela para casa. Daí eles ficaram sabendo das dificuldades que eles tinham, toda a família, tentaram ajudá-los. [...] Ela devia de ser uns 8 pra 9 anos, ela era pequininha e tava até descalça, mal vestida, correndo pela rua e estava com medo de voltar para casa, não sei por quê” (Adolescentes 1 e 2).

Embora os professores reconheçam positividades relacionadas às intenções do ECA, conforme referido anteriormente, destacam que, na prática, ele veio “atrapalhar” a escola: “No geral eu vejo que ele [o ECA] veio para atrapalhar [...] não atingiu sua finalidade” (Prof. Tarsila do Amaral). “É, eu acho que ele está sendo mal interpretado e está nos prejudicando na escola” (Prof. Di Cavalcanti).

Parece estar presente um mal-estar entre os professores, particularmente no que diz respeito à explicitação de direitos dos adolescentes no ECA: “Esse Estatuto tem que ser bem explorado, bem explicado, principalmente no que diz respeito aos deveres dos adolescentes, que normalmente eles sofrem disso, que o ECA vem pra trazer só direitos” (profa. Tarsila do Amaral).

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“Eu vou concordar com a Prof. Tarsila. [...] As pessoas estão interpretando só o direito do adolescente, os deveres ficaram subentendidos, e os subentendidos ninguém está lendo. [...] Aí os adolescentes só têm direitos (prof. Di Cavalcanti).

A profa. Anita Malfatti, corroborando o posicionamento dos professores anteriores, assim se expressa: “Ele [o ECA] foi transformado numa coisa ruim porque foi mostrado só os direitos e nenhum dever. O que isso traz para a escola? Que realmente as crianças e adolescentes estão ficando sem limites e tudo o que a gente fala em sala de aula é o cúmulo. Eles é que mandam, principalmente porque o ECA está na boca deles. [...] Então qualquer coisa que tu falas dentro de sala de aula, 'vou te entregar para o conselho', 'vou ligar para o conselho tutelar', 'meu pai vai lá no conselho tutelar porque tu não pode me xingar, tu não pode me deixar sem recreio, tu não pode me deixar de castigo'. Mas as crianças e adolescentes acham que podem fazer tudo, e os pais também não têm mais limites, não têm mais o que fazer porque também são ameaçados pelas crianças e adolescentes em casa: 'vou no conselho tutelar'”.

O ECA se divide em dois livros: o primeiro trata da proteção dos direitos fundamentais da pessoa em desenvolvimento, que devem estar amparados pela ação das políticas básicas. O segundo trata dos órgãos e dos procedimentos protetivos. Lembramos ainda que os direitos no ECA são universais e não apenas para a chamada população de “risco” ou “excluídos” ou, ainda, “vulnerabilizados” sociais, pois direito violado é direito violado. Nesse sentido, é preciso valorizar a construção histórica do direito da criança e do adolescente, considerando que, através do ECA, se articulou um sistema de garantia de direitos que envolve outros atores, como poder judiciário, ministério público, poder executivo e sociedade civil organizada, a partir das ações dos conselhos tanto de direitos, quanto tutelares.

Outra consideração fundamental é que o ECA (1990) é anterior à LOAS (1993) e à LDB (1996), por exemplo, definindo claramente que medidas de proteção podem ser aplicadas em várias condições: para a inclusão escolar, para tratamento especializado de saúde, para abrigamento quando do afastamento familiar temporário, etc. As políticas de proteção estão presentes nas diferentes áreas, como educação, saúde, esporte, lazer, cultura, segurança pública, assistência social, entre outras, estabelecendo o fim da aplicação de punições para adolescentes, tratados com medidas de proteção em caso de “desvio de conduta” e com medidas socioeducativas em caso de cometimento de atos infracionais.

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O relato da professora Anita Malfatti traz, em si, tensionamentos que estão postos sobre os conceitos de autoridade e de autoritarismo. Arroyo (2004, p. 36) diz que as formas adolescentes de sobreviver, de pensar e de comportar-se se chocam com nossas formas pedagógicas e docentes de pensar e de pensá-los. Trata-se de formas a que não estamos acostumados, uma vez que os alunos parecem revelar que veem o mundo, a escola e o conhecimento, a vida e seus mestres em outra lógica, que não a nossa – idealizada –, segundo a qual as escolas seriam jardins de infância e nós, os jardineiros.

No caso do referido relato, impõe-se, em nosso entender, um questionamento: Há um problema de interpretação do ECA pelas crianças e adolescentes? Os artigos 5º, 17º e 18º do ECA tratam do direito ao respeito, o qual consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente. Enfatizam que nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e, ainda, que é dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento,

aterrorizante, vexatório ou constrangedor. Nesse sentido, cabe perguntar: Quando a criança e o adolescente “ameaçam” a professora, alertando-a que não devem ficar sem recreio, de castigo, serem xingadas... não estariam as crianças e adolescentes utilizando-se do ECA para se protegerem de algum tratamento constrangedor? – Não teriam já aprendido que o ECA foi criado para assegurar-lhes o direito de serem respeitados? Neste caso, de quem é a falta de limites?

Nota-se também uma sensação da perda da autoridade, traduzida pelo que os professores já expressaram, e ainda expressam, nos relatos a seguir: “Ah, por causa do Estatuto da Criança e do Adolescente, um aluno que sujou a classe, não pode colaborar na limpeza. - Isso não, o aluno varrer, isso aí não, pois estamos explorando, isso é trabalho infantil. Que nada! Olha a que ponto isso chegou! Então organização do espaço, saber utilizar o espaço, ter um espaço limpo, digno de ser usado de se sentir bem, e se sujou, por que não aprender a limpar?” (profa. Tarsila do Amaral). “É, isso que aconteceu com a Tarsila, eu vi numa outra escola. […] A direção foi chamada porque a mãe chegou lá e disse: ”- Olha minha filha está fazendo trabalho de escravo, porque ela está limpando a sala”. E ainda bem que foi um conselheiro tutelar lá que explicou para a mãe que, sempre que a filha dela sujasse a sala, ela tinha que limpar, e era isso justamente, isso que eles estavam fazendo, dentro da

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sala de aula achavam que quem tinha que limpar era a faxineira. É nesse sentido que está sendo mal interpretado porque a mãe chegou lá com todos os direitos, porque ela tinha direitos, porque ela era uma adolescente, por que ela não podia fazer trabalho infantil...” (prof. Di Cavalcanti).

Freire (2000) chama nossa atenção para o fato de que ainda não está resolvido o problema da tensão entre autoridade e liberdade. Refere que, “[...] inclinados a superar a tradição autoritária, tão presente entre nós, resvalamos para formas licenciosas de comportamento e descobrimos autoritarismos onde só houve o exercício legítimo da autoridade” (p. 117).

Freire e Shor (2006) sugerem o diálogo como uma possível saída contra o autoritarismo, embora, para os autores, o diálogo signifique uma tensão permanente entre autoridade e liberdade. Nessa tensão, porém, a autoridade continua 'sendo', porque ela tem autoridade em permitir que surja a liberdade dos alunos, os quais crescem e amadurecem, precisamente porque a autoridade e a liberdade aprendem a autodisciplina.

Por outro lado, Freire também nos adverte para a distorção da liberdade em licenciosidade. O que sempre deliberadamente recusei, em nome do próprio respeito à liberdade, foi sua distorção em licenciosidade. O que sempre procurei foi viver em plenitude a relação tensa, contraditória e não mecânica, entre autoridade e liberdade, no sentido de assegurar o respeito entre ambas, cuja ruptura provoca a hipertrofia de uma ou de outra. É interessante observar como, de modo geral, os autoritários consideram, amiúde, o respeito indispensável à liberdade como expressão de incorrigível espontaneísmo e os licenciosos descobrem autoritarismo em toda manifestação legítima da autoridade. (FREIRE, 2000, p. 117).

Segundo o prof. Di Cavalcanti, “Não é que ele [o ECA] não está atribuindo deveres, ele está atribuindo deveres também, só que, o que não está escrito lá, é que o adolescente tem que cumprir os deveres”. De fato, o ECA, quando fala em deveres –explicitamente –, diz respeito aos deveres dos outros, exceto o artigo 6º, que diz: “Na interpretação desta Lei levar-se-ão em conta os fins sociais a que ela se dirige, as exigências do bem comum, os direitos e deveres (grifo nosso) individuais e coletivos, e a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento”. Além do artigo 6, os “deveres” de adolescentes estão explicitados no artigo 112, referindo-se à prática de ato infracional. Nesse caso, cabe à autoridade competente aplicar medidas

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socioeducativas ao adolescente, medidas que vão da advertência à internação em estabelecimento educacional.

Bobbio (2004) afirma, utilizando uma metáfora, que direito e dever são como o verso e o reverso de uma mesma moeda. Resta saber qual é o verso e qual é o reverso. Segundo Bobbio, verso e reverso dependem da posição com que olhamos a moeda. E, conforme o autor, a moeda da moral foi tradicionalmente olhada mais pelo lado dos deveres do que pelo lado dos direitos.

Talvez seja importante atentar para o que diz Bobbio (2004), na metáfora da moeda, ao se fazer uma leitura do Estatuto da Criança e do Adolescente, lidando com verso e o reverso, ou seja, direitos e deveres, de forma mais dinâmica e contextualizada.

Um adolescente, ao ler espontaneamente o artigo 15 do Estatuto da Criança e do Adolescente, na dinâmica do grupo focal, disse: “Eu entendi que temos direito à liberdade de opinião, cultura, religião, brincar, praticar esporte e divertir-se. [...] A criança e o adolescente têm essa liberdade” (Adolescente 4).

Um outro adolescente realizou a leitura do artigo 3º e proferiu: “A pessoa, o adolescente, pode ter oportunidades iguais, ser digno”. E o que é ser digno? (foi perguntado): “Dignidade é viver com palavra. É tipo assim, não mentir, dizer a verdade (Adolescente 5).

Observa-se que o Adolescente 5 fez uma interpretação a partir dos deveres, contrariando as representações de que os adolescentes entendem o Estatuto da Criança e do Adolescente apenas na perspectiva do direito, conforme os professores destacaram.

Os professores problematizaram, ainda, o paradigma da proteção integral, que define o ECA, ao referirem que: “É, a gente tem o caso de uma conhecida nossa que foi agredida, e nada ocorreu, nada aconteceu, porque a criança era protegida e foi visto de uma forma diferente (profa. Anita Malfatti). “Ele [o ECA] é usado para outros fins. Então eu vou na ideia de que não dá nada. Eu tenho um ECA que me protege, posso fazer o que eu quero. É isso que normalmente a gente escuta. [...] Eu só me questiono com o Estatuto da Criança e do Adolescente essas questões que a gente vê ocorrendo pelo Brasil inteiro. De professores agredidos, de crianças que fazem e acontecem pela internet e pessoalmente batem em professor e nada acontece, por causa do Estatuto da Criança e do

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Adolescente. Ah! eu me pergunto: - Que criança e que adulto estou criando, que vai se transformar numa pessoa que vai agredir os outros, que vai bater? Ele pode extravasar como quiser e nada vai acontecer com ele porque o Estatuto é para proteger. Que proteção é esta? (prof. Di Cavalcanti).

A professora Tarsila do Amaral, por sua vez, referiu, em relação a essa questão, que o Estatuto da Criança e do Adolescente veio para dar conta da problemática da criança negligenciada, pela a falta de estrutura familiar. Expõe que, em muitos casos, a criança vai para a escola sem noção do que seja limite, sem saber se organizar, não tem alguém responsável por ela, tratando-se, assim, de uma criança negligenciada. E acrescenta: “O Estatuto da Criança e do Adolescente veio para suprir isso, e junto com isso, ele trouxe outros problemas: - Ah, então agora nós vamos proteger, não pode, tu vai ser protegido disso, mas tu não pode fazer isso, e não foi bem explicado, o que não pode. Isso criou uma super proteção e tudo que é em excesso faz mal. Eu acho que excedeu na questão da proteção e não se deixou claro quais eram os deveres e os direitos, a falta de responsabilidade, tanto para a criança quanto para o adolescente”.

Os adolescentes também expressaram suas representações a respeito do que compreenderam sobre proteção, conforme leitura do artigo 7º do ECA: “A criança e o adolescente tem o direito de ser protegido e ser sadio [...] A gente protege as crianças cuidando delas, colocando na escola (Adolescente 5). “Sôra, a gente cuida também dando amor, carinho, atenção, respeito” (Adolescente 2).

O Adolescente 6 fez a leitura do Capítulo I: Do Direito à Vida e à Saúde. Perguntou-se, então, ao adolescente: “O que significa isto que tu leste?” Ele respondeu, aparentando muita naturalidade: “Significa que a pessoa tem que ser protegida até completar os 18”. O adolescente foi indagado novamente: “E como esta pessoa deve ser protegida até os 18 anos?” “Puxando a orelha. Tem que quebrar a pau” (Adolescente 6). “Dar umas bordoadas” (Adolescente 2);. “Tem que ser com exemplo de educação, assim, sentar e conversar sôra” (Adolescente 5).

Conforme o ECA, proteger é “quebrar a pau”? Perguntou-se aos adolescentes. As respostas foram nas seguintes direções: “Não” (Adolescente 5). “O, sôra, as mães não batem de braba, batem de carinho. É melhor que ficar

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apanhando de outros” (Adolescente 7). “É melhor apanhar em casa do que na rua, sôra. É o que minha mãe diz, sôra” (Adolescente 2).

Ao indagar: Vocês pensam que “é melhor apanhar em casa do que na rua”? o Adolescente 6 sacode a cabeça, afirmando: “Si,m eu concordo. Porque assim ela educa e dá mais respeito prá gente.

Outros adolescentes acrescentaram, em relação a essa questão: E ensina a gente fazer as coisas certas e não as coisas erradas (Adolescente 2). “Daí tem uns malandros, sôra, que se revoltam, viram bandidos porque eles não entendem que é melhor apanhar da mãe do que dos outros na rua (Adolescente 7).

Além da mãe, quem mais pode “educar” assim?, indagou-se a seguir. Concomitantemente vários responderam: “O pai”. “O pai [...] pode ser com palmada, puxão de orelha, virar a noite acordado” (Adolescente 7). “Com a cinta, com a mangueira, com o chinelo...”. (Adolescente 2). “Com a mão, castigo...” (Adolescente 4).

Como indicam os depoimentos, os adolescentes relataram situações em que foram punidos pela família, porém entenderam e reconheceram as punições como formas de educá-los, conforme também revelam os relatos a seguir: “Quando eu incomodava minha mãe, eu tinha que ficar de joelho até amanhecer o dia” (Adolescente 2). “A minha mãe me deu com uma varinha na minha boca, para mim não dizer mais nome [...] outra vez “pegou” no meu olho. Aí eu não fui na aula, prá minha professora não vê, porque senão ela ia pensar que minha mãe tinha me agredido, e daí ia chamar o Conselho. Daí eu não fui” (Adolescente 4).

Para os adolescentes, adulto não é sinônimo de responsabilidade ou de alguém que seja capaz de protegê-los. Ao expressarem suas representações a respeito do que seria um adulto, segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente, um adolescente diz: “O adulto pode ensinar outras pessoas, ou pode ser mau também, ensinar coisas ruins assim, como droga...” (Adolescente 7).

Perguntou-se, então: Quem são os adultos que poderiam proteger, ensinar coisas boas? “Os professores, os tios” (Adolescente 7). “Os pais, a família, os vizinhos” (Adolescente 2). “Um amigo mais próximo” (Adolescente 3).

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“Um médico” (Adolescente 2). Convidados a pensarem em quais adultos poderiam

ensinar coisas ruins, responderam: “Os drogados” (Adolescente 2). “Os traficantes” (Adolescente 5). “Os bandidos, os estupradores, os pedófilos” (Adolescente 6). “Os assassinos” (Adolescente 9). “Tem mãe que não tá nem aí, que não apoia. Por isso os filhos estão por aí, perdidos” (Adolescente 4). “A maioria dos pais e mães, em vez de mandar a criança estudar, ir prá escola, deixam a criança trabalhando e eles, sem fazer nada, em casa” (Adolescente 5).

Os professores expressaram também preocupações quanto ao uso/abuso das crianças e dos adolescentes pelos adultos aliciadores, referindo que “[...] muitas vezes as quadrilhas pegam essas crianças para cometerem esses delitos (roubos), porque sabem que com a criança e o adolescente não vai acontecer nada” (prof. Di Cavalcanti).

Afirmar que “com a criança e o adolescente, aliciadas por adultos para a prática da contravenção não vai acontecer nada”, traduz um discurso ilusório. A aplicação das medidas socioeducativas tem demonstrado que com os adolescentes a Justiça é bem mais severa que com os adultos. Não bastasse o parâmetro legal, há que se considerar a construção da subjetividade dessa criança e desse adolescente. Nesse caso, pena maior é a perda de dignidade, situação a que a criança ou o adolescente ficam expostos por estarem desprotegidos, podendo perder, em situações limites, a própria vida.

No discurso dos professores é possível perceber a dificuldade de romper com o paradigma da Doutrina Irregular: o Estatuto da Criança e do Adolescente seria uma legislação “demasiadamente evoluída” para o Brasil, um país com tantos problemas. Vejamos o que diz o prof. Di Cavalcanti: “O momento estrutural do Brasil não é o momento do ECA. As famílias estão tão desestruturadas e eu vejo os pais tão ausentes que este Estatuto, ele até é bom, mas ele teria que ser trabalhado com as famílias também. As famílias teriam que ter conhecimento do que elas tinham que fazer com o filho. Elas não sabem o que fazer com os filhos. Elas acham que colocar o filho no mundo basta. [...] Elas não têm a concepção de que gerar um filho é muito mais do que simplesmente colocar um filho no mundo”

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Em outro depoimento, o mesmo professor enfatizou a necessidade da punição. É perceptível a busca de brechas, por parte dos professores, no Estatuto da Criança e do Adolescente, para recorrer ao modelo punitivo, que constituiu o paradigma da Doutrina Irregular, além da “queixa” a respeito da fragilização da “autoridade” da família e da escola. Vejamos, abaixo, os depoimentos do professor Di Cavalcanti: “E, pelo que eu vejo assim, tanto a escola quanto os pais se retraíram, em função do ECA, por questões de botar limites ao adolescente e a gente está aí formando um adulto que vai crescer sem limites porque tem todos os direitos. Só que a gente sabe, quando ele for para a sociedade, ele já está em sociedade, mais quando ele for exercer seus papéis como adulto ele vai receber punições porque ele tem que ter direitos, e o Estatuto da Criança e do Adolescente, muitas vezes, da forma como ele é interpretado, ele retira essas punições, é obvio que o adolescente vai fazer isso ou aquilo, porque ele tem direito... (prof. Di Cavalcanti).

Valores dos adolescentes e suas famílias também foram objeto de discussão entre os professores, quando problematizaram o ECA no grupo focal: “Eu acho que a constituição dos valores tem que vir da família, [...] porque somos, às vezes, de extratos diferentes da sociedade, a família tem uma concepção de valor e o professor tem outra. Aí os valores vão ser diferentes...” (prof. Di Cavalcanti ); “Porque a valorização deles é bem diferente do que a gente. E, enquanto isso, os valores deles é: - Ah! minha mãe me teve cedo, eu também vou ter filho cedo..”. (profa. Anita Malfatti); “O ciclo, né? A mãe teve a filha com 15 anos, a filha vai ter, a neta vai ter” (profa. Tarsila do Amaral).

Parece haver, no discurso dos professores, uma sutil “supremacia” dos valores por eles partilhados em relação aos valores dos adolescentes de classes “populares” e suas famílias. A exacerbação da diferença, nesse caso, impede, talvez, a alegria do encontro entre docentes e discentes, professores e adolescentes. Arroyo (2000) refere que só reconstruiremos nossa imagem de professores na medida em que nos reencontremos com a infância e a adolescência (grifo nosso), que nos dão sentido, pois, a cada dia, estão mais desafiadoras.

Percebe-se também, nos relatos dos professores, uma visão determinista da problemática das famílias pobres. A respeito disso, Freire (2000, p. 29) escreve o seguinte: “Aqui chegamos ao ponto de que talvez devêssemos ter partido. O do inacabamento de ser

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humano. Na verdade, o inacabamento do ser ou sua inconclusão é próprio da experiência vital. Onde há vida, há inacabamento”. E o autor acrescenta:

Gosto de ser homem, de ser gente, porque sei que minha passagem pelo mundo não é predeterminada, preestabelecida. Que meu "destino" não é um dado, mas algo que precisa ser feito e de cuja responsabilidade não posso me eximir. Gosto de ser gente porque a História em que me faço com os outros e de cuja feitura tomo parte é um tempo de possibilidades e não de determinismo. Daí que insista tanto na problematização do futuro e recuse sua inexorabilidade. (FREIRE, 2000, p. 30). Sobre a compreensão dos valores impera uma visão de que

a classe média está isenta ou trata melhor dos seus problemas do que as classes menos abastadas economicamente. Nesse caso, a exacerbação da diferença amplia ainda mais o hiato existente entre professores e jovens. A discussão sobre a gravidez na adolescência, por parte de alguns professores, ilustra esse posicionamento: “E o que a gente vê é que isso se repete muito na periferia. Numa classe média, ou classe média alta, isso já não acontece tanto porque os valores são outros e os objetivos são outros. Eles têm outros objetivos, até o próprio sexo, porque aí eles tomam cuidado, já têm toda uma estrutura diferente” (prof. Di Cavalcanti). “Têm uma conversa com os pais, há um diálogo maior e há então uma proteção contra isso. Quando ocorre isso em outra classe há o apoio da família, enquanto que numa classe mais pobre, miserável, não há o apoio da família. O que acontece? Ah, tu engravidou? Te vira! Vai morar com fulano, com ciclano e eu não vou te dar apoio nenhum. Enquanto que em outras classes, não. Mesmo que ocorra, que seja um “baque”, há o contentamento da nova vida, do neto que vai chegar, é outra visão, e eles vão dar suporte a este adolescente” (profa. Tarsila do Amaral).

Diferenças em relação ao comportamento de crianças e de adolescentes de classes privilegiadas e populares também são invocadas por uma professora participante da pesquisa, quando se refere ao conhecimento sobre o ECA. Nesse caso, a professora equaciona crianças de escola com maior poder aquisitivo com maior nível de conhecimento do ECA.

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“Bom, eu trabalhei em duas realidades: numa escola onde tinha o poder aquisitivo maior e trabalho aqui nessa. Na de poder aquisitivo maior, realmente as crianças de 3ª série tinham um conhecimento e falavam para as professoras. Diziam: - Ah, mas isso não pode, isso está no Estatuto, mas assim não dá. Aqui (referindo a escola da periferia) nós não vemos esta fala, eu não encontrei nenhuma vez alguma criança dizendo: - Mas tá no Estatuto, professora, eu tenho esse direito, ou eu sei que eu tenho esse direito. Não, eu vejo que elas não têm esse discernimento.

Ao manifestarem suas representações sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente, os professores, ao mesmo tempo, vão explicitando aspectos da sala de aula e da escola e apontando sugestões, como a necessidade de estudo do próprio Estatuto da Criança e do Adolescente: “Nunca tive um estudo aprofundado do ECA, nunca parei para ler todo ele. E isso é necessário também, termos este estudo prá que a gente tenha condições de trabalhar de forma adequado com os adolescentes” (profa. Tarsila do Amaral).

Referiram, ainda, a necessidade da explicitação também dos deveres: “A gente fala em contrato com as crianças na escola, estes contratos, estes deveres deles, devem estar bem escritos. O que eles podem fazer? Bom, pedir licença prá falar, levantar o dedo na sala...” (profa. Tarsila do Amaral). “Só que muitas vezes, as pessoas não subentendem os deveres, só entendem os direitos, [...] se não está escrito, não está na lei. Então, eu acho que precisa ser pensado novamente isso. Eu tenho que escrever que as pessoas têm deveres. Qual é o dever? Tem que estar escrito lá” (prof. Di Cavalcanti).

Finalmente, os professores revelaram também preocupar-se com a naturalização de determinados eventos que ocorrem no cotidiano da sala de aula, relacionados com comportamentos agressivos, por parte dos estudantes: “Dar um tapa no colega e achar que isso é normal, essa violência mínima? E a gente também acreditar, achar que não foi nada, que foi só uma brincadeira? [...] A gente precisa perceber isso e não se acostumar com estes pequenos atos, que, no contexto geral, a gente termina pensado assim: - Ah, ele tá dentro de um meio agressivo, é normal ele ser agressivo. Não, não é normal, então vamos estipular: Criança não pode bater. Então, vamos escrever: criança não pode bater. tem que ter isso” (prof. Tarsila do Amaral).

Cabe destacar a preocupação da professora Tarsila ao relatar que não devemos naturalizar os fatos, por mais ínfimos que pareçam ser. Atitudes autoritárias, seja por parte do professor, seja por parte da criança e do adolescente, naturalizam injustiças encontradas

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nos sofrimentos e nos silêncios humanos. Nas palavras de Ghiggi (2001, p. 174), “As injustiças ganham status de naturais e imutáveis”.

Ghiggi (2000) refere, ainda, que as concepções clássicas dão conta de que a liberdade de cada humano termina onde começa a do outro. Será tal afirmativa suficiente para desencadear processos a

favor da liberdade para todos? indaga o autor. Não será imperativo afirmar, com Freire, que a liberdade de cada um termina onde finda a liberdade do outro? [...] Será o homem responsável pelo que é? Parece que sim se é sujeito da história, [...] partindo da condição de que ninguém é livre antes de ser livre. [...]. (GHIGGI, 2001, p. 7).

Liberdade, então, é possibilidade de acesso à felicidade,

sempre em conflito, num mundo de interesses antagônicos bastante definidos. Talvez a proposta deva ser a seguinte: A felicidade e a liberdade de cada um estarão garantidas se houver condições de felicidade e liberdade para todos.

Fundamentalmente, nos processos educativos/formativos, o professor é o sujeito que precisa corporificar as palavras pelo exemplo. Freire (2000, p. 19) afirma que o professor que realmente ensina, quer dizer, que trabalha os conteúdos no quadro da rigorosidade do pensar certo, nega, como falsa, a fórmula farisaica do "faça o que mando e não o que eu faço". Quem pensa certo está cansado de saber que as palavras para as quais faltam a corporeidade do exemplo pouco ou quase nada valem. Pensar certo é fazer certo.

As representações sobre o ECA, de adolescentes e de professores, são representações de subjetividades humanas que sugerem a promoção de reflexões capazes de humanizar os humanos.

Considerações Finais (ou iniciais?)

Nosso objetivo inicial foi problematizar o Estatuto da Criança e do Adolescente junto a adolescentes e a professores, identificando representações por eles partilhadas e os efeitos dessas representações nas relações pedagógicas da ação escolarizada. Acreditamos que a compreensão de representações que atores sociais

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fazem sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente é fundamental para o desenvolvimento de toda e qualquer ação educativa, uma vez que o Estatuto da Criança e do Adolescente tem sido o principal instrumento normativo de qualquer trabalho desenvolvido com o segmento da criança e do adolescente.

A análise das representações expressas por professores nos grupos focais evidenciou dificuldades quando se trata de romper com o paradigma da Doutrina Irregular. Observou-se que as suas narrativas estão impregnadas da concepção de um modelo punitivo e não de um processo educativo. São notórias as recorrências onde as pessoas transitam facilmente da autoridade ao autoritarismo, do respeito ao desrespeito. Nem os discursos foram superados, nem as práticas, mesmo por parte daqueles aqueles que assumiram um discurso de caráter mais educativo.

Por outro lado, os deveres parecem não estar tão explicitados quanto estão os direitos no Estatuto da Criança e do Adolescente, levando a uma compreensão ambígua. Os deveres, exceto no artigo 6º, que parece ser regra para a interpretação dos demais, são proferidos sempre na perspectiva de obrigação do outro. Apenas quando o adolescente comete o ato infracional é que os seus deveres são explicitados, traduzidos pela aplicação das medidas socioeducativas, no artigo 112.

Com isso não se quer dizer que não haja uma responsabilização dos adolescentes pelos seus atos, estabelecendo os limites necessários, pois se entende o Estatuto da Criança e do Adolescente numa perspectiva educativa que se dá no sentido de que a educação seja corresponsável pelo processo tão peculiar dessas pessoas em desenvolvimento.

Ao finalizar as reflexões deste estudo é importante referir Farr (1994, p. 46), o qual afirma que “[...] as representações estão presentes tanto no „mundo‟, como na „mente‟, [...] e somente vale a pena estudar uma representação social se ela estiver relativamente espalhada dentro da cultura em que o estudo é feito”. O estudo realizado mostra que a tão desejada proteção, para centenas de adolescentes (e crianças também), ainda não é uma realidade. As contradições inerentes ao processo de interpretação do ECA, que têm implicações diretas no cotidiano da escola e da vida dos adolescentes e dos professores, conforme suas narrativas evidenciam, podem

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contribuir para dificultar a efetivação de políticas públicas que legitimem, de fato, a proteção desses adolescentes que tentam sobreviver nos limites de realidades sociais empobrecidas e empobrecedoras, convivendo, diariamente, com o tráfico de drogas e com o crime organizado, além de fazerem parte dos graves índices de evasão e de repetência escolar, como é o caso de muitos dos adolescentes colaboradores deste estudo.

Notas

1 Agop Kayayan – Representante do UNICEF no Brasil. O Brasil pode. Disponível em: <www.eca.org.br/eca>. Acesso em: 22 dez. 2008.

2 O Programa Bolsa Família (PBF) é um programa de transferência direta de renda com condicionalidades, que beneficia famílias em situação de pobreza ou de extrema pobreza, de acordo com a Lei Federal nº 10.836, de 9 de janeiro de 2004, e o Decreto nº 5.209, de 17 de setembro de 2004 (Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome – MDS, 2004).

3 O ProJovem Adolescente integra o Programa Nacional de Inclusão de Jovens (PROJOVEM), como modalidade exclusivamente destinada à faixa da juventude compreendida entre os 15 e 17 anos (Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome – MDS, 2004).

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JUVENILIZAÇÃO DA VIOLÊNCIA E OS DESAFIOS ÀS PRÁTICAS ESCOLARIZADAS: UMA CONTRIBUIÇÃO A

PARTIR DA EDUCAÇÃO SOCIAL

Karine dos Santos Rute Baquero

Introdução

Um complexo e multifacetado quadro de violência cotidiana

impõe-se atualmente sobre a sociedade brasileira, afetando indistintamente os vários grupos sociais, no entanto, destes os mais afetados são os jovens. Segundo pesquisa desenvolvida pela UNESCO (2004) sobre juventude e violência no Brasil, a noção de violência é ambígua, pois não existe uma violência, mas uma multiplicidade de atos violentos, cujas significações devem ser analisadas a partir das normas, das condições e dos contextos sociais e históricos. Para alguns jovens, situações limites passam a fazer parte da rotina, levando, muitas vezes, a internalizar o entendimento de que só a força resolve conflitos. Cria-se a convicção de que a violência é inevitável e de que as pessoas devem estar preparadas para reagir em conformidade. Vários segmentos da sociedade são afetados diretamente por esse fenômeno. Em destaque encontra-se a escola, que, por sua obrigatoriedade, é local de encontro e socialização desse público. Quando a escola é afetada por violências, quando alunos e professores exibem comportamentos de intolerância, rompe-se a possibilidade de que a escola cumpra seus objetivos. Embora se reconheçam as raízes estruturais dessa questão, consideramos, por outro lado, que a escola pode constituir-se em instrumento para minimizar os efeitos dessa situação. Ocorre, no entanto, que a mesma escola se encontra em crise, demonstrando dificuldades na sua relação com a juventude. O presente artigo se propõe a trazer uma contribuição no trato de questões relacionadas à juventude e à violência, fazendo-o a partir do aporte da Educação Social. Visando problematizar esta questão, fomos buscar, na experiência de um projeto social destinado a esse público, resultados positivos de práticas que desenvolveram, de forma coordenada e com autonomia, protagonismo e resolução de conflitos.

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O texto traz, inicialmente, algumas considerações a respeito da questão juventude e violência, situando-a, posteriormente, no âmbito da educação. A seguir, problematiza dados de um projeto social junto a jovens com histórico de violência, refletindo a respeito das possibilidades de aproximação de uma Educação Social com a educação escolarizada. Juventude e violência

A categoria juventude representa uma parcela significativa de toda a população mundial (mais de 2 bilhões, segundo a ONU, 2005). A sua maioria se concentra na Ásia e na América Latina. No Brasil, o contingente juvenil atinge cerca de 51 milhões, o que corresponde a 26% da população brasileira na faixa etária de 15 a 29 anos (IPEA, 2010).

Sua significativa expressão numérica coloca o jovem em evidência, contribuindo para a construção de preconceitos a respeito da sua condição. Ora são entendidos como problema, ora como apáticos e rebeldes por natureza, muitas vezes como alienados e consumistas, algumas vezes como ameaças reais.

Não há como negar a enorme dificuldade de entender as expressões juvenis, mas é justamente essa dificuldade um dos fatores de sua exclusão e marginalização. Assim, na medida em que isso se expressa de forma mais contundente, seja na exclusão escolar, na exclusão do trabalho, na exclusão pelas relações humanas, alguns jovens se manifestam por expressões violentas, sejam elas violências simbólicas ou físicas.

Abramoway e Rua (2002) nos ajudam a entender melhor a definição de violência, que perpassa duas grandes dimensões - a física e a simbólica: (1) Intervenção física de um indivíduo ou grupo contra a integridade de outro(s) ou de grupo(s) e também contra si mesmo, abrangendo desde os suicídios, espancamentos de vários tipos, roubos, assaltos e homicídios até a violência no trânsito (disfarçada sob a denominação de “acidentes”), além das diversas formas de agressão sexual. (2) Formas de violência simbólica (abuso do poder baseado no consentimento que se estabelece e se impõe mediante o uso de símbolos de autoridade); verbal e institucional (marginalização,

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discriminação e práticas de assujeitamento utilizadas por instituições diversas que instrumentalizam estratégias de poder).

A sociedade “teme” alguns jovens a partir da ideia de que eles são seres potencialmente violentos e a experiência de violência, que é restrita e concreta para alguns setores juvenis, se espalha e todos os jovens passam a se constituir ameaças potenciais. Costa (1999) alerta, no entanto, para o fato de que seria problemático ler certos atos agressivos de jovens como manifestações de pura violência, pois, na maioria das vezes, manifestações de agressividade são indicativas de um turbilhão de mudanças identificatórias. Com uma interpretação equivocada, desqualificamos o sentido desses movimentos. Dessa forma, conforme destaca o autor, mesmo que possamos encontrar, em algumas situações, certas razões que nos orientam na leitura dessas manifestações, o ato de violência não contribui em nada para uma reordenação simbólica desse laço.

Juventude, violência e educação

Diferentes autores têm destacado a tensa relação entre juventude e escola. De um lado, os jovens queixam-se que não encontram na escola abertura para as suas demandas, ainda que reconheçam a sua importância por ser espaço privilegiado de encontro e socialização. A escola, por sua vez, aponta o jovem como descomprometido com o saber e extremamente apático.

Esse tensionamento não é recente e aumenta, ainda mais, com o fator violência, o que tem contribuído, significativamente, para a marginalização dos jovens que por ela passam.

Podemos perceber esse enfrentamento a partir de noticiários vinculados na mídia. A escola, ao invés de garantir um espaço de acolhimento às diversidades, orientado pelo exercício da ética e da razão, tem sido noticiada como lugar de incivilidades, brigas, invasões, depredações e, inclusive, mortes, em ocorrência de conflitos entre vários agentes – alunos contra alunos, alunos contra professores e funcionários e estes contra alunos. Araújo e Bomfim (2003) destacam, no entanto, que: [...] a violência praticada por adolescente na escola pode ser um indicativo concreto de protesto contra valores transmitidos nessa instituição, os quais não respondem às suas expectativas e necessidades

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de melhoria para o futuro e não são suficientes para construir relações significativas com a escola. (p. 04).

Nesse sentido, os professores necessitam estar atentos e fazer uma reflexão não só em torno das práticas pedagógicas, dos conteúdos trabalhados, das metodologias empregadas, mas também de suas atitudes, tendo em vista a necessidade de processo educativo por responder às necessidades gerais da pessoa e da sociedade.

Ao discutirmos, de forma conjunta, violência e educação, apostamos na possibilidade de desenvolvimento de uma cultura de paz, que requer esforços no sentido de saber reconhecer indícios de engendramento de violências – conhecimento que possibilitaria investimento em prevenção, em negociação e, quando necessário, em controle da violência. Possíveis contribuições no trato da questão juventude e violência

No Brasil, experiências educacionais não formais têm produzido práticas pedagógicas que podem trazer contribuições para pensarmos dinâmicas no trato educativo da questão juventude e violência.

A realidade de pobreza, exploração e descaso com grande parte da população contribuiu para a constituição de um campo de educação fecundo, envolvendo o desenvolvimento de experiências educativas que ultrapassam os limites da escolarização formal, visando à garantia e à defesa dos direitos humanos e ao exercício da cidadania por parte de segmentos populacionais excluídos socialmente. Tais experiências são fruto, entre outros, de trabalhos desenvolvidos por instituições não governamentais, criadas pela sociedade civil organizada com o objetivo de minimizar as dificuldades encontradas por comunidades vulnerabilizadas econômica e socialmente. Tais experiências vêm constituindo um campo de trabalho profissional no campo da educação da juventude, onde temas como autonomia, protagonismo, exercício da cidadania, capital social, solidariedade e cultura de paz constituem o currículo da educação social.

A corrente teórica que orienta o trabalho de intervenção socioeducativa é a Pedagogia Social fundamentada em Paulo Freire. Este não chegou a utilizar o termo Pedagogia Social, mas é

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considerado, em âmbito mundial, referência importante para esse campo de estudos e de atuação profissional.

A experiência que aqui vamos problematizar diz respeito ao trabalho desenvolvido ao longo do ano de 2007 com uma turma de 16 jovens, com idades entre 16 e 24 anos, participantes de um curso de formação profissional para a área do comércio, em região periférica da cidade de Novo Hamburgo/RS. O curso acontece, anualmente, desde o ano de 2006.

Os dados foram coletados a partir de um processo de pesquisa-formação cujos encontros ocorreram nas reuniões pedagógicas junto aos educadores responsáveis pela formação dos jovens e relatórios de acompanhamento produzidos ao longo desse processo.

A proposta do curso de formação profissional previa duração de um ano com aulas de segunda- a sexta-feira. Em sua estrutura curricular contemplava aulas de informática, de leitura/interpretação/redação, de logística, de técnica de vendas, de postura no trabalho e de educação cidadã. As temáticas foram desenvolvidas por quatro educadores sociais formados em nível de graduação nas áreas de pedagogia, ciências sociais, história e informática, com a participação de uma coordenadora pedagógica. Cabe destacar que, entre os quatro educadores, um deles acompanhava o grupo por mais tempo do que os demais devido à sua carga horária de trabalho junto aos jovens, constituindo-se o educador-referência da turma.

Os jovens participantes do projeto passaram por um processo seletivo que levou em consideração a condição econômica do candidato e a adequação do seu perfil para a área de formação do curso. Além desses critérios, os jovens deveriam estar matriculados na escola regular e apresentar, no decorrer do curso, bom desempenho. Situando o contexto do curso de formação profissional

O curso de formação profissional ocorre nas dependências de uma instituição não governamental, existente há 11 anos. Além do curso de formação profissional são desenvolvidas, nesta instituição, atividades socioeducativas em meio aberto para crianças e adolescentes na faixa etária de 6 a 16 anos. Há, também, projetos de geração de renda e de desenvolvimento local com famílias, bem como outros

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projetos de formação profissional para jovens, em diferentes áreas de atuação.

O perfil do grupo de jovens selecionados para a realização do curso de formação profissional pode ser definido como: jovens que demonstram dificuldades na escrita, na leitura, na interpretação e no raciocínio lógico. Dificuldades na expressão oral, na relação com o outro, na organização pessoal e coletiva.

Nesse cenário, não fica difícil prever que o tema da violência se faz presente no cotidiano, desafiando as práticas educativas a se ressignificarem permanentemente. Nesse contexto, o currículo do curso está estruturado de modo que, nos primeiros três meses, a ênfase é dada à integração entre os membros do grupo e ao processo de vinculação entre educandos-educadores. Os primeiros três meses são considerados cruciais para o desenvolvimento do curso como um todo. Nesse primeiro momento os educadores estão concentrados em atividades como jogos cooperativos, dinâmicas de grupo, atividades lúdicas e desafios coletivos, oportunizando a construção da coesão grupal.

Caba destacar que a instituição, em seus 11 anos de existência, nunca sofreu furto, depredação, tampouco foi alvo de pichação.

Para problematizar essa experiência educativa, elegemos um personagem representativo do perfil dos jovens participantes do curso, que nos ajudará a entender algumas situações de tensão e seus encaminhamentos. O jovem Luís, um menino negro, 16 anos, estudante da 4ª série (EJA), pai desconhecido, mãe ausente, primogênito de mais quatro irmãos e, praticamente, o único responsável pelos cuidados básicos dos demais. Luís já é educando do projeto social há mais de oito anos. Ao completar 16 anos, Luís pensava ter encerrado a sua participação na instituição, pois não acreditava no seu potencial para alcançar o desafio da formação para o trabalho.

Luís, com suas características pessoais – dificuldades na fala, baixa escolaridade, envergonhado – expressava a sua opinião sempre acompanhada de atos violentos, pois não cumpria com o perfil para um suposto candidato ao trabalho na área do comércio, foco do curso de formação profissional ofertado pela instituição. Na avaliação da equipe diretiva, essa poderia, no entanto, ser mais uma oportunidade para Luís permanecer longe das ofertas do mundo da rua.

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Os educadores, em seus relatos, revelaram não estar satisfeitos com a sugestão da equipe diretiva, no sentido de incluir Luís como participante do curso profissional, pois temiam o não atingimento das metas do projeto. Um primeiro tensionamento se estabelece, pois, apesar de as características do grupo de jovens serem semelhantes às de Luís, este se “destacava” e poderia, segundo os educadores, comprometer o andamento do processo educativo. As aulas iniciam e pouco demora para as primeiras situações conflituosas aparecerem. Nessas situações, Luís expressa sua forma de interação com o mundo. Destacamos, a seguir, três conflitos presentes na sala de aula e seus encaminhamentos.

1º conflito: Logo nas primeiras semanas do curso, a educadora desafia o grupo a uma construção textual coletiva, onde cada um escreveria, na mesma folha que circula, uma parte da história. Respondendo rápido ao desafio, Luís se coloca embaixo da mesa. Uma fuga para a sua dificuldade na escrita. Luís permanece ali por alguns minutos. A educadora solicita que ele integre a atividade e ele responde chutando a cadeira. A educadora dá mais um tempo, chama a atenção novamente e a mesa vira. Luís sai da sala batendo a porta e, correndo, passa pela portaria, sem que ninguém possa impedi-lo. A educadora fica muito tensa, pensando ter perdido o aluno e culpa-se. Todos na sala parecem muito chocados com a situação, mesmo aqueles que, em alguns momentos, demonstram comportamento semelhante. Passados três dias Luís, retorna ao curso com a mesma postura reservada. Senta-se na sala e presta atenção na aula. A educadora, sem saber como proceder, dá segmento à aula.

Em reunião, o grupo de educadores opta por esperar uma semana para ver a reação de Luís, no que diz respeito ao seu compromisso com o curso, e na primeira oportunidade de conversa particular, tocar no assunto. A ideia era deixar o tempo passar para ver se a postura do jovem mudaria. Respeitando o tempo individual de cada um, apostava-se que Luís, vendo a postura dos demais, pudesse refletir sobre o seu comportamento.

2º conflito: Em uma atividade coletiva ao ar livre, a educadora solicita a divisão de grupos. Luís é o último a ser escolhido pelos representantes. A atividade previa uma disputa por uma bandeirinha, um tipo de circuito. A atividade inicia e logo dois meninos começam a

brigar. Aos chutes e pontapés, uma frase ecoa: “ Eu vou te matar, seu

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filho da p.” Era Douglas, revidando os desaforos ditos por Luís. Daquele momento em diante uma divergência muito grande começou entre os dois jovens. A todo o momento empurrões e ameaças verbais se faziam presentes.

Na reflexão dos educadores, três alternativas foram pensadas como resolução para o conflito gerado pelos dois jovens. Primeiro, não dar tanta importância para a situação e esperar a “poeira baixar”, apostando que a divergência não passaria dos portões da instituição. Segundo, colocar a dupla frente a frente para esclarecer as partes e chegarem a um acordo e, em terceiro, promover atividades que, em algum momento, os dois precisassem interagir, ou seja, na linguagem dos próprios jovens “forçar a barra”. Cada uma dessas alternativas foi colocada em prática em momentos diferentes, com prazos de dias entre uma e outra.

3º conflito: O grupo de jovens, percebendo o esforço de todos os educadores para a permanência de Luís na turma, começa a demonstrar rejeição e logo buscam alternativas para tirar o jovem-menino do curso, cobrando da educadora uma decisão. Segundo os educadores, este é o momento culminante dessa tensa relação, pois, ao mesmo tempo em que se percebe um amadurecimento do grupo em reivindicar coletivamente aquilo que desejam, por outro lado implicava a exclusão total de Luís desse grupo.

Em várias reuniões de educadores esse tema foi tratado com destaque, sem o grupo chegar a um encaminhamento sobre a questão. Inicialmente, a educadora-referência conversou abertamente com a turma na ausência de Luís, na tentativa de minimizar esse conflito e ganhar tempo. Já se passavam seis meses de duração do curso; neste período, segundo a experiência dos educadores, Luís já deveria ter se “adaptado” à proposta de trabalho ou evadido. Ao contrário, o jovem-menino continuava a frequentar as aulas e, como os demais jovens da turma, sua frequência era excelente.

O diálogo era entendido pelo grupo de educadores como ferramenta fundamental para a prática pedagógica; também foram utilizadas avaliações individuais e coletivas de forma permanente. Desse modo, os educadores poderiam promover momentos de reflexão onde os próprios jovens estariam “cobrando” uns dos outros outras posturas. Tal sistemática permaneceu como prática mensal até o final do curso.

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A hora da virada

Quem já não ouviu falar na expressão popular “– A resposta virá com o tempo”. E foi exatamente o que conseguimos visualizar ao longo daquele ano de curso. Em poucos meses, o grupo de jovens começa a apresentar uma certa coesão e são eles que trazem o jovem-menino Luís para esse coletivo. A autonomia e o protagonismo se expressam no chamamento de Luís, aceitando a sua diferença, para dentro do grupo. Há uma parceria e uma cumplicidade que se revelam. O acolhimento desse grupo transforma a postura do jovem-menino Luís, que começa a responder positivamente. Aos poucos ele começa a interagir, a participar, a demonstrar interesse pela aprendizagem e, principalmente, interesse em estar ativo nesse grupo. Luís, então, adota uma nova postura.

Acolhimento é condição para que os jovens se sintam aceitos pelas pessoas e fator importante para a formação de vínculos, contribuindo para o fortalecimento e desenvolvimento de sua autoestima e autoconfiança (COSTA, 1999, p. 134).

Costa (1999) defende que uma Pedagogia deve ter como princípio a dimensão humana e a crença em uma relação de ajuda, tendo como foco central a relação educador/educando. Foi exatamente essa a aposta do grupo de educadores sociais, conforme a reflexão da educadora-referência: “A nossa preocupação era com a vinculação dos educandos. Eu acho que foi isso que fez com que o Luís fosse aceito pelo grupo, pois foram eles mesmos que o acolheram e dele cobraram uma postura de adolescente (não um comportamento de criança). Eles disseram: - Tu queres, então vai ter de ser diferente. Tu tens que agir diferente e mostrar que realmente queres estar aqui. E foi o grupo que acolheu a diferença dele, mas ele deveria dar um retorno”.

Integração e vinculação são conceitos-chave nas práticas pedagógicas de educação social, que muito têm a nos ensinar sobre o valor humano. Por inúmeras vezes ouvimos discussões entre os educadores sociais a respeito de sua importância na prática educativa junto aos jovens, como se fosse um mantra. Também observamos um respeito ao tempo individual de cada um e um olhar sobre o jovem despido de qualquer preconceito, conforme a fala de um dos educadores:

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“Nós, educadores, precisamos ter olhos desconfiados e, ao mesmo tempo, curiosos aos movimentos da nossa juventude hoje. As nossas representações, elas poderiam ser hipóteses, não pressupostos. Não é isso, quer dizer, eu posso ter uma certa imagem do que é a juventude, mas, no momento em que eu sou educador e que eu vou desenvolver um trabalho com um grupo de jovens, devo colocar sob suspeita a minha imagem da juventude, problematizá-la, ver se não é mero estereótipo. Porque, às vezes, as representações, elas provocam uma operação de silenciamento e de cegueira sobre o que, de fato, os jovens têm a falar e a dizer de si mesmos”. Segundo os educadores, a desconstrução de determinadas representações do que é ser jovem contribui diretamente para a efetivação de práticas pedagógicas que busquem atender às necessidades do grupo. A orientação básica dessa pedagogia está centrada no resgate daquilo que há de positivo no comportamento dos jovens, sem rotulá-los ou classificá-los segundo determinadas categorias, com base apenas nas suas deficiências. Isso implica analisar cada ato do jovem de uma forma mais positiva, procurando atribuir outros significados para suas atitudes, que não discriminatórias e punitivas. Assim, o resgate do positivo na postura dos jovens se constitui em princípio fundamental da proposta de trabalho, tendo o objetivo específico de contribuir para a construção de um projeto concreto de emancipação juvenil. Na perspectiva do trabalho desenvolvido pelo grupo de educadores, o jovem-educando passa a ser visto como fonte autêntica de iniciativa, de compromisso e de liberdade. Segundo Costa (1999), a adoção dessas concepções sobre o educando levaria, necessariamente, à formação do jovem autônomo, solidário e competente (p. 173).

A perspectiva da Educação Social trabalha, prioritariamente, com processos que contribuem para o protagonismo juvenil. Na medida em que o jovem constrói junto, problematiza de forma coletiva e é orientado para o seu desenvolvimento, outro tipo de relação com o aprender se estabelece e outras formas de relação com o outro são externalizadas, expressando-se na forma de respeito mútuo e solidário. Algumas aproximações – outros distanciamentos: a educação social e a escolarizada

Educar é criar espaços Costa (1999)

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O curso de formação profissional, aqui problematizado, se aproxima de algumas características de propostas escolares, na medida em que há um currículo com conteúdos programáticos, há um período de tempo definido para a sua consecução (um ano) e uma carga horária definida (20 horas semanais). Inclui, ainda, um processo de avaliação e uma exigência quanto ao avanço no desempenho individual do sujeito.

Os jovens, as crianças e os adolescentes atendidos em projetos sociais são, no entanto, sempre aqueles cujas demandas são mais intensas, sejam elas pela vulnerabilidade social, econômica ou familiar, ou pelas dificuldades escolares expressas pela defasagem idade/série.

Nesse sentido, a educação social é permanentemente desafiada a ressignificar as suas práticas pedagógicas, tendo como pressuposto os processos de reflexão-ação-reflexão, pois não conta, ainda, com uma teoria científica que dê suporte à sua prática educativa.

Quando, porém, sistematizadas, as práticas socioeducativas passam a evidenciar conteúdos importantes, que, muitas vezes, não são percebidos pelo universo escolar. Em especial, não são percebidos no trato com a juventude, o que tanto tem desafiado os bancos escolares. Conforme afirma Haddad (2001): Um dos maiores desafios da escola brasileira, sobretudo da pública, que atende à maioria da população, é criar novas modalidades educativas que a tornem menos excludente e mais capaz de proporcionar uma formação cultural e científica de teor democrático ao público adolescente e jovem que a freqüenta (p. 3).

Essa dificuldade está expressa, entre outras, na maneira como a escola está organizada. Reivindicando uma função ampliada da educação escolarizada, Corti, Freitas e Spósito (2001) argumentam que: [...] a escola passa a agir como se os indivíduos à sua frente estivessem ali exclusivamente para aprender e, mais ainda, para aprender aquilo que está nos currículos formais e de acordo com o que a organização permite (p. 8).

Tal dificuldade torna invisíveis os traços propriamente juvenis, tornando a tensa relação juventude-escola difícil de ser solucionada. Em relação a essa questão, Costa (1999), desenvolvendo reflexão sobre a liberdade como produto da ação educativa, afirma: Um regimento claro, onde as relações de poder se expressam, onde direitos e deveres são nitidamente delimitados, instaura o “estado de direito” na comunidade educativa em graus de verdade e justiça mais

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elevados que no “faz-de-conta” de relações pretensamente horizontais, insustentáveis para o conjunto do processo educativo em curso (p. 35).

Os educadores sociais, aqui ouvidos, vão buscar respostas a esse desafio na aproximação com o próprio jovem, procurando entender os modos de ser jovem na atualidade. Conforme os educadores, existem poucos espaços de discussão que problematizem a realidade e os desafios de “ser jovem” nos dias atuais, de tal modo que se possa agir de modo mais consequente com esses jovens. Segundo a fala de uma educadora: “Enxergamos aquilo que queremos ver. Se dizemos que os jovens são baderneiros os vemos assim, pois eles acabam ocupando esse lugar, que foi o único que encontraram. Eu não estou aqui querendo defender. Penso que existam sim jovens que são baderneiros, violentos, mas não são todos. Ninguém pensa – Porque será que ele está assim agitado. O que será que está acontecendo na vida dele. Não, as pessoas logo pensa: - Os jovens são assim mesmo, baderneiros e violentos. Nós, educadores, pensamos diferente. Apostamos no potencial de cada um. E, quem sabe, seremos os únicos a fazer isso. Que bom se todos os jovens tivessem a oportunidade de encontrar alguém que aposte neles. Talvez teríamos uma realidade bem diferente”.

Na educação social ou, ainda, em projetos sociais, a dinâmica educativa tem como pressuposto o sujeito como um todo. E, para isso, conforme referem os educadores sociais, é necessário se despir de “pré-conceitos” e olhar o jovem em suas peculiaridades. Jovens são sujeitos de direitos e de deveres e não culpados de sua condição juvenil.

Nas palavras de Costanzi (2009): É fundamental reconhecer que os jovens são sujeitos de direitos e deveres e portadores de necessidades legítimas. Por esta razão, o fortalecimento dos grupos de jovens como espaços privilegiados de construção da identidade juvenil desempenham papel central ante os vazios decorrentes da inadequação das instituições e políticas tradicionais de atendimento das demandas da juventude (p. 24).

Nesse sentido, as experiências educativas desenvolvidas no âmbito da Educação Social têm muito a ensinar aos processos educativos escolarizadas, pois desenvolvem proposta fundamentada na construção de raízes com o seu entorno social, buscando contribuir para o desenvolvimento local, mantendo sempre uma relação com a comunidade. Para isso, se utiliza de atividades como a organização de grupos de convivência, jogos cooperativos e avaliação coletiva, lidando com estabelecimento de vínculos entre os sujeitos, mediante estímulo

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ao respeito, à cooperação e à coesão social, aceitando e apostando no outro-jovem.

E o tema da violência juvenil na experiência problematizada? Esse passou a ser transversal, de modo que a centralidade foi dada ao comprometimento e à solidificação das relações. Entretanto, mesmo considerando o resultado alcançado nesse grupo, situações de violência se faziam presentes, em especial a simbólica. Minimizar tais situações envolvendo jovens não se dá através de uma única prática pedagógica ou de uma “conversa franca” com eles, mas envolve um processo educativo sistemático.

Destacamos, como fator fundamental para a mudança de postura do grupo de jovens, a parceria construída ao longo dos meses de aula. Essa parceria minimizou os conflitos, na medida em que o educador colocou o grupo como responsável por resolver as suas divergências. Então, não é mais o educador que faz o papel de “disciplinador”, mas, sim, o grupo que “vai exigir” determinada postura, por parte do outro. Há uma construção coletiva.

Em que pese a extensão do fenômeno da violência junto ao segmento juvenil em diferentes países, Rodriguez (2001) e outros autores apontam que as especificidades nacionais devem ser consideradas para o desenho de políticas, enfatizando, contudo, a importância da educação formal e informal e serviços de atenção especializados voltados para uma “convivência cidadã”, conjugando participação com responsabilidades sociais, resgate da confiança nas instituições, espaços de socialização e abertura de oportunidades para atividades culturais, integração comunitária e trabalhos com a família, entre outros, além da clássica fórmula: emprego e matrícula escolar. Em relação à educação, há uma preocupação com propostas pedagógicas mais atraentes às linguagens juvenis; por outro lado, também se enfatiza a importância de enfoques integrais, ou seja, propostas que lidem com diversos campos de vida do sujeito, e que considerem os jovens tanto como destinatários de políticas, como protagonistas dessas mesmas políticas. Conforme Rodriguez (2001) destaca: El impulso a diversas formas de voluntariado juvenil, la promoción del uso responsable de los médios masivos de comunicacion como agentes privilegiados de socializacion juvenil, y el acercamiento de la cultura juvenil y la cultura escolar (significativamente distanciados en los últimos tiempos), podrian colaborar significativamente en estas

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materias, fortaleciendo - en definitiva - los activos de los próprios jovenes y disminuyendo los riesgos a los que éstos se ven sometidos (p. 14).

Caberia, portanto, educar para cidadania e para a democracia, fazendo nexos entre autoridade e a responsabilidade ética. Os que trabalham com os jovens necessitam fazer escolhas pela ética e pela garantia de direitos sobre a lógica do mercado e a linguagem de excessivo individualismo. Assim talvez conseguiríamos, nos processos educativos aos quais nos dedicamos, resultados mais expressivos e jovens capazes de dialogar e protagonizar a sua juventude.

Referências Bibliográficas

ABRAMOVAY, Miriam; RUA, Maria das Graças. Violências nas escolas. Brasília, UNESCO, 2002. ARAÚJO, Vila Dias; BOMFIM, Maria do Carmo Alves. Escola, violência e representações sociais. In: XVI Encontro de Pesquisa Educacional do Norte e Nordeste. São Cristóvão. Anais. EPENN 2003. Junho. CD ROM. CORTI, Ana Paula; FREITAS, Maria Virgínia de; SPOSITO, Marília Pontes. O encontro das culturas juvenis com a escola. São Paulo: Ação Educativa, 2001. COSTA, Antônio Carlos Gomes da. A pedagogia da presença. São Paulo: Global, 1999. COSTANZI, Rogério Nagamine. Trabalho decente e juventude no Brasil. Organização Internacional do Trabalho. Brasília: OIT, 2009. INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA. Disponível em: <http://www. ipea.gov.br/portal>. Acesso em: 1º ago. 2010. NAÇÕES UNIDAS. Asamblea General. Consejo Económico y Social.Cuestiones sociales y de derechos humanos: desarrollo social. Informe sobre la juventud mundial. 2005. RODRÍGUEZ, Peter. Juventud, desarrollo y democracia en América Latina. El futuro ya no es como antes. Ser jovem en América Latina. Nueva Sociedad. n. 200, pp. 53-69, Nov/Dez, 2005. UNESCO. Políticas públicas de/para/com juventudes. Brasília. UNESCO: 2004.

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O CAPITAL SOCIAL COMO INSTRUMENTO DE

ENFRENTAMENTO DA VIOLÊNCIA INFANTOJUVENIL EM ESCOLA DE PERIFERIA

Rosana Katia Nazzari Paulino Pereira da Luz

Introdução

Reação agressiva, alguns minutos após a conversa com o

caseiro. Em seguida se ouviram barulhos de vidros sendo estilhaçados. Meninos apareceram, correndo assustados: por vingança ou raiva, eles tinham jogado pedras nas janelas do colégio, destruindo as vidraças que ainda existiam. Há perplexidade diante da cena. O que fazer? Chamar a policia? Chamar os pais? Chamar a imprensa? Organizar a APMF – Associação de Pais, Mestres e Funcionários? O conselho escolar? O grêmio estudantil? Enfim, necessitava-se de uma atitude rápida? Mas qual? Repreensão... Reparo às perdas e aos danos ao patrimônio público... Ou procurar uma aproximação com os agressores e conversar sobre o que propor?

Essa é uma cena do cotidiano de uma escola de periferia no meio urbano. A decisão da escola foi dar início a uma proposta de mudanças, colocando em prática o Projeto “Transparência e Democracia”, com o objetivo de problematizar, junto aos jovens, a ideia de pertencimento da escola, de trabalho coletivo e cooperação, incentivando a responsabilidade dos alunos com a coisa pública. A tarefa exigia também um trabalho de desconstrução de representações sociais a respeito desses adolescentes por parte da comunidade, que os estigmatizava como “jovens-problema”.

Nesse contexto, este trabalho busca problematizar a experiência do Projeto “Transparência e Democracia” junto a uma escola pública de periferia, situando, inicialmente, questões de violência social e a violência na escola, para, num segundo momento, discutir as representações sociais da comunidade sobre os jovens da escola da cena relatada e analisar os efeitos do referido projeto em termos de construção do capital social.

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A violência é um tema explorado pela mídia mundial. Ao tema se dedicam horas diárias em horário nobre, para comunicar a violência entre e com os jovens brasileiros. Na maioria das vezes, a imprensa mercantiliza a violência e a sociedade naturaliza tal fenômeno, passando a ser consumido como outra mercadoria qualquer. O estigma da violência exclui agrupamentos humanos e desenha outra geografia social, pois constrói bairros e regiões marginalizadas.

Diante da banalização da violência que prevalece na sociedade brasileira, a violência infantojuvenil é um dos temas contemporâneos que merece atenção especial dos cientistas sociais.

A evidência da expansão da violência nos contextos metropolitanos, nas últimas duas décadas, em íntima associação às questões sociais, desvela o percurso histórico de ampliação da desigualdade social, apresentando características diversas de acordo com as especificidades territoriais e urbanas. Por isso, torna-se fundamental ampliar a compreensão a respeito desses espaços urbanos e da complexidade envolvida no fenômeno da violência urbana. (HUGHES, 2009, p. 1).

Os jovens são os mais afetados pela expansão da violência no Brasil, principalmente os homens. “As mortes por causas externas afetam desproporcionalmente os jovens na faixa etária de 15 a 24 anos”, segundo Escossia citado por Hughes (2009, p. 2). Conforme dados do IBGE (2009), os assassinatos, os suicídios e os acidentes de trânsito são responsáveis por 67,5% das mortes de homens e por 34,1% de mulheres. Houve queda nos índices masculinos e elevação dos índices femininos comparando-se com a pesquisa de 2002 na mesma faixa etária.

O indicador de mortes violentas de jovens (provocadas por assassinatos, acidentes de trânsito ou suicídios) aumentou de maneira generalizada em todo o país, entre 1991 e 2002. No Estado de São Paulo aumentou em 51% (233,95 mortes para cada grupo de 100 mil habitantes. [...] A situação é mais

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grave ainda: de acordo com a Organização Mundial da Saúde, o Brasil é o campeão mundial absoluto em número de homicídios, com uma pessoa morta a cada 12 minutos, ou um total de 45 mil por ano. Com 3% da população mundial, o Brasil responde por 13% dos assassinatos. Em 20 anos, a taxa de homicídios cresceu 230% em São Paulo e no Rio de Janeiro. (Raymundi; Kawaguti; Lopes citados por HUGHES, 2009, p. 3).

A violência desvela as contradições da desigualdade social presentes na sociedade brasileira. Segundo Hughes (2009), as desigualdades têm a ver com a polarização social devido à concentração da renda e pela ausência histórica do Estado nas áreas pobres e desassistidas. A violência tem afastado as expectativas de ampliação da qualidade de vida para uma parcela significativa da juventude brasileira. Especificamente no que diz respeito à violência na escola, pesquisa realizada pela UNESCO (2009) identificou que:

[...] existe violência em 83,4% das escolas brasileiras. Os furtos ocorrem em 69,4% delas. Cerca de 60% disseram ocorrer roubo em sua sala de aula, 37% declara que já foi furtado e 69% não sabe a razão. [...] Enquanto a depredação do patrimônio é fenômeno que expõe o vandalismo, os casos de bullying e a violência moral ainda são considerados simples “brincadeiras de mau gosto”. Os professores devem ficar atentos para reconhecer os indícios e agir preventivamente contra a violência psicológica. Estudos, palestras e debates ajudam a desenvolver uma consciência crítica e geram cobranças de medidas preventivas que beneficiam a vítima e o coletivo da escola. Mas, são necessárias medidas criativas e efetivas que revertam o desenvolvimento da barbárie. (LIMA, 2009, p. 3).

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A Unesco (2009) destaca que a pobreza e as crises econômicas são fatores responsáveis pela vulnerabilidade dos jovens à violência. Jovens que não encontram espaço no mercado de trabalho evadem-se das escolas por diversos motivos: medo social e ausência de objetivos ou de estímulos pessoais. Esses motivos fomentam a exclusão e a desigualdade social que remetem à necessidade de promoção de políticas públicas que modifiquem esse cenário, que desenha nesses indivíduos o rótulo da culpabilidade (preguiçosos, dolentes, desinteressados, entre outros marcadores sociais). Dessa forma, os jovens, de vítimas passam a culpados, ampliando a marginalização. Diante disso, torna-se fundamental a existência de políticas públicas visando promover a prevenção da marginalização e da exclusão de parcela da população infantojuvenil no Brasil, ou seja, com propostas de prevenção e de qualidade que se preocupem efetivamente com a reintegração dos jovens e com a ampliação de oportunidades de reinserção social. Nesse sentido, o objetivo geral deste estudo busca problematizar as experiências educativas no trato da questão da violência em escola da periferia em Cascavel no Paraná. E, para tal, tem como objetivos específicos: a) analisar a violência social e na escola relacionados à formação infantojuvenil na sociedade brasileira, em especial nas escolas públicas; b) interpretar os índices de capital social dos jovens nas escolas; e c) verificar, por meio de entrevistas, as representações sociais da comunidade e dos jovens estudantes sobre a aplicação do Projeto “Transparência e Democracia” na escola. Violência social e violência na escola

A realidade aponta para a vulnerabilidade dos excluídos socioeconômicos e para as condições materiais e simbólicas de comunidades pobres. Assim, é fundamental, examinar as condições sociais a que são submetidos esses indivíduos, em quais circunstâncias agiram e quais mecanismos utilizam para sobreviver no ambiente. Sendo assim, a violência com a qual se preocupa este estudo é aquela que prejudica a vida, o bem-estar de toda a população e, de modo especial, a juventude no contexto da escola. Os números significativos da educação (IBGE, 2009) demonstram que 51,4% dos jovens do Brasil

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não frequentam a escola, que 1,2 milhões de jovens brasileiros são analfabetos e que 17 milhões de jovens não estudam. Para apontar possíveis causas das atitudes violentas dos adolescentes na escola que possam colaborar para a definição de políticas públicas para os jovens no Brasil, é necessária uma reflexão sobre o contexto histórico em que a questão está inserida, sobre as crenças e os valores que formam a sua cultura e sobre as condições individuais, interpessoais e sociais.

Um importante referencial sobre a infância e a adolescência no Brasil é, por um lado, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). A publicação da Lei Federal nº 8.069/1990, que oficializou o ECA, passou a considerar as crianças e os adolescentes como cidadãos em desenvolvimento, ancorados numa concepção plena de direitos. Por outro lado, há que se questionar a necessidade de um Estatuto para respeitar crianças, jovens e demais categorias sociais vulneráveis.

A construção de políticas públicas de juventude esbarra na falta de uma agenda que inclua, de fato, as temáticas e os problemas juvenis, e que também contemple os jovens como participantes desse processo, dos quais serão beneficiários. O que se busca é uma aproximação entre os direitos garantidos e o seu cumprimento na prática social.

A violência é um sintoma da modernidade e de todas as nações, no entanto o aumento da violência cometida contra e dos jovens levou a reações sociais, colocando o foco do problema na juventude diante das consequências das intensas mudanças da vida moderna.

Os avanços tecnológicos tornam miserável a massa de trabalhadores, desnecessária e socialmente um obstáculo. Assim, a exclusão coloca à margem determinado grupo social, fenômeno que pode ser relacionado ao não reconhecimento do outro, à rejeição e à intolerância com as diferenças, aproximando o outro do não ter direitos e da expulsão da esfera social, segundo Castel (1995). Na história observa-se o extermínio de diversos grupos sociais, de índios de vários continentes, de judeus. Os excluídos modernos são um grupo de pessoas desnecessárias, com demandas políticas próprias e incômodas e se constituem em grave ameaça para a ordem social e mercadológica vigente. Podem, portanto, ser fisicamente eliminados. As desigualdades sociais e os problemas econômicos contribuem para que os desequilíbrios, as diferenças e as frustrações

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apareçam associadas à negação dos direitos, dos ideais de democracia (justiça, liberdade, igualdade, solidariedade, respeito às leis e bens públicos).

No Brasil, a violência tem sido problematizada a partir do desemprego e da pobreza em uma perspectiva econômica das dinâmicas sociais. Tem sido justificada em função das crises econômicas, das desigualdades sociais e, também, da ausência de democracia. Segundo Pinheiro citado por Abramovay (2002, p. 230),

[...] haveria uma violência de caráter endêmico relacionada a assimetrias sociais que se traduzem em autoritarismos de várias ordens como o subdesenvolvimento territorializado (ex: das populações no Norte e no Nordeste e de áreas urbanas e rurais nas demais regiões); impunidade, corrupção, abusos das forças policiais, principalmente contra os pobres e os não-brancos; as violações dos direitos das pessoas presas pobres; discriminação racial.

Entre 1980 e 1997 houve, no Brasil, um aumento dos crimes de sangue, no período pós-ditadura. Naquele período cresceu a oferta de armas de fogo, o narcotráfico e a crise econômica. Na década de 1990, o foco dos estudos sobre violência volta-se para o Estado e a mídia, relacionado ao combate do trabalho escravo, à violência contra as crianças e os adolescentes, meninos e meninas de rua, prostituição infantil, a tortura, a discriminação de raça e de gênero, e consequente defesa dos direitos humanos. Por fim, na virada do século, Peralva (2000) traça o cenário da violência no Brasil e destaca como principais fatores: 1) aumento do acesso a armas; 2) a juvenilização da criminalidade; 3) aumento da violência policial contra os pobres da periferia; 4) ampliação do mercado de drogas; 5) cultura individualista e de consumo, expectativas frustradas de ascensão social diante dos valores ditados pelo mercado. Nesse contexto, dissemina-se a privatização da violência, com a ampliação das empresas de segurança, de grupos, de galeras, de redes de organizações criminosas, principalmente envolvidas com ilícitos, tais como tráfico de drogas e contrabando.

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Importante é destacar que a elevação de estudos sobre a violência no país foi incentivada pelo “Caso Galdino”, um caso que comoveu todo o país em 1998. Trata-se do assassinato do índio pataxó Galdino por jovens de classes altas em Brasília. Esse fato rendeu estudos importantes sobre a violência no país. Waiselfisz (1998, p. 121) problematiza o tema da violência relacionada com a cidadania e com alteridade social, discutindo “[...] como a sociedade representa e trata as diferenças sociais, raciais, culturais e os preconceitos existentes na elaboração das identidades – o eu e os outros.” O autor observou também, face ao fato referido, “[...] que as famílias em Brasília se encontram perplexas e despreparadas para compreender e responder aos problemas da juventude” (p. 121).

Nesse cenário, a escola tem assumido um papel instrumental, preparando o jovem para a aquisição de capital humano para o mercado de trabalho, sem priorizar a construção de uma visão crítica dos valores da modernidade. Há, em nossa sociedade, uma grande lacuna quanto a redes associativas, comunitárias e sociais; em decorrência não há o fortalecimento da identidade, tampouco se amplia o compromisso dos jovens com a sociedade, não ocorrendo o desenvolvimento da autodisciplina e do autocontrole, a partir de um conjunto de valores éticos e universais, incluindo aspectos relevantes de capital social.

Em geral, os jovens são vistos como um problema ou um risco. Os programas públicos para os jovens no Brasil são, em geral, dispersos em múltiplas áreas e ministérios e são associados às crianças principalmente das classes populares, apresentando as seguintes características: a) voltam-se para o atendimento dos adolescentes em situação de risco social, ou infratores; b) visam principalmente à diminuição das dificuldades de integração social; c) promovem a capacitação profissional para inserção no mercado de trabalho; e d) preocupam-se com a melhoria na saúde, especificamente, com DST/AIDS, gravidez na adolescência e violência intrafamiliar.

Segundo Waiselfisz (1998, p. 134), “[...] fatores individuais, grupais, culturais, sociais, econômicos e políticos conjugam-se na explicação de cada situação concreta”. Entre os fatores gerais observa-se: disponibilidade de armas, cultura criminosa, desorganização da comunidade e áreas de extrema privação. Entre os fatores de origem na família, observa-se que

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A dinâmica e a estabilidade familiar têm um papel relevante nos comportamentos dos jovens. Neste campo, constituem-se em fatores de risco: deficiências e limitações na dinâmica familiar, como falta de expectativas claras sobre o comportamento dos jovens, punições severas ou inconsistentes, falta de interesse ou acompanhamento das atividades dos jovens; conflitos familiares; envolvimento familiar em atividades violentas e/ou criminosas. (WAISELFISZ, 1998, p. 137).

O autor destaca que, na escola, deficiências e vazios no processo de socialização são fatores que influenciam na reprodução da delinquência juvenil. Conforme Waiselfisz (1998), a vida moderna tem levado à necessidade de autodisciplina e de respostas autônomas. Evidenciam-se, no entanto, as lacunas no modelo da escola em relação ao desenvolvimento da identidade pessoal e do estabelecimento de compromissos coletivos entre os jovens.

As estratégias de controle da violência são eficientes em situações normais, mas estão perdendo sua eficácia com o aumento da mesma violência, com o pessimismo, com sentimento de impotência, com a desconfiança generalizada e o descontentamento presente no tecido social. Assim, questionam-se os fatores que levam ao risco social.

Segundo Nazzari (2206a), em relação à questão democrática e de governabilidade, observa-se a ineficiência das políticas públicas junto aos jovens. Observa-se, por exemplo, a disseminação das armas e das drogas em todo o país, sem que se realize ou se visualize um controle efetivo. Aliada a esses problemas está a incerteza dos jovens em relação ao futuro, a falta de credibilidade e de confiança nas instituições. Os baixos estoques de capital social e os conflitos institucionais enfraquecem a justiça e a possibilidade da ampliação do protagonismo juvenil, como alternativa para a promoção do desenvolvimento social.

Capital social na escola

Para Nazzari (2006a), a educação é a área onde os governos têm probabilidade direta de gerar maiores estoques de capital social. As

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instituições educacionais não somente são transmissoras de capital humano, mas também de capital social na forma de regras, de valores e de normas sociais e éticas.

O capital social na educação está composto por um conjunto de normas, de comportamentos, de práticas, de atitudes, de normas de conduta e de valores, e redes de organizações engajadas civicamente. Nessa direção, o capital social apresenta-se como uma alternativa para superar os valores sociais e culturais que impedem a construção de políticas educacionais de combate à violência na escola.

A reciprocidade e a confiança são conceitos fundamentais para a elevação dos estoques de capital social entre os jovens na comunidade circundante. A escola poderia incentivar o capital social e ampliar as expectativas em relação à socialização política dos jovens na transmissão de crenças e de valores que promovam o bem-estar coletivo.

A experiência do projeto Segundo Teixeira (2003, p. 6), alguns elementos do capital social na educação não formal, ou seja, fora das salas de aula, podem, por meio de estratégias diferenciadas, produzir conhecimento e conscientizar os cidadãos dos seus direitos e do seu papel transformador. Assim, as experiências educacionais em práticas sistemáticas e inovadoras podem contribuir para a ampliação da educação popular.

Estas experiências podem envolver elementos comuns ao cotidiano dos jovens, tais como as redes territoriais que envolvam os setores marginalizados e sejam agentes motivadores da consciência crítica na juventude. A promoção e a auto-valorização dos indivíduos deve ser acrescida ao respeito, à identidade e à cultura popular, adaptando-se metodologias inseridas na realidade vivida. (NAZZARI, 2006a, p. 85).

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A partir de reflexões da realidade em que vivem os jovens da comunidade e, de modo especial, os alunos da escola em análise, foi que os educadores, os funcionários, os pais, os membros da APMF (Associação de Pais, Mestres e Funcionários), o grêmio estudantil, o conselho escolar e os voluntários da comunidade (tais como ONGs e igrejas), partiram para a ação no sentido de desenvolver projetos que buscassem a conquista e a cumplicidade desses adolescentes com objetivo de atraí-los para dentro do colégio e de forma que deixassem de praticar ilícitos, violências. E também atraí-los como incentivo para o envolvimento com a instituição, no sentido de fortalecer os sentimentos de pertencimento a escola.

Neste sentido, as associações comunitárias, ONGS e setores públicos e privados podem colaborar para catalisar recursos da comunidade, da organização da sociedade civil, promovendo ações de solidariedade e reciprocidade, sem dispensar os recursos governamentais. (NAZZARI, 2006a, p. 85).

No início, as estratégias foram pensadas para diminuir a depredação ao patrimônio da escola, pois era comum ver alunos envolvidos em brigas entre gangues, entre eles mesmos e, de forma deliberada, destruindo o próprio colégio. Assim, a partir de 2004, teve início uma gestão pedagógica, fundamentada filosoficamente na pedagogia crítica.

A metodologia de Freire (1987) serviu de base para o resgate educacional das camadas marginalizadas, envolvendo associações, meios de comunicação e sindicatos, entre outras esferas da comunidade. Para o autor, a educação brasileira bancária dá prioridade à quantidade de conhecimentos em detrimento da educação emancipatória e da formação do cidadão crítico. Segundo Moreira (2008, p. 163), “[...] a emancipação humana aparece, na obra de Paulo Freire, como uma grande conquista política a ser efetivada pela práxis humana”, para a libertação das pessoas oprimidas e dominadas, na intenção política declarada para a transformação social, que contempla a educação baseada no diálogo.

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[...] Freire coloca que a educação brasileira tem sido domesticadora e não tem construído indivíduos críticos. Ou melhor, não tem contribuído para libertar os oprimidos e opressores, a fim de que possam vislumbrar uma "Educação Dialógica", ou seja, baseada no diálogo, e rompa definitivamente com a concepção da "Educação Bancária", onde o estudante é um depósito de informações, sem senso crítico. (NAZZARI, 2008, p. 145).

A partir da leitura da realidade, dos atores sociais da escola (gestores, professores, funcionários e alunos) estruturou-se um planejamento pedagógico com vistas a mudar aquela realidade. Os professores foram estimulados a criarem, em suas disciplinas, novas formas de abordagens que envolveriam o lúdico: teatro, música, dança, oratória, poesias, gincanas, leitura e outros. Para os alunos também foram criados projetos no contraturno escolar na área do esporte, cultura e lazer. E para a comunidade, de forma mais efetiva nos fins de semana, foram iniciadas atividades de modo que se envolvesse a participação de pais, de alunos, de amigos, enfim, uma escola aberta para todos -- uma escola plural como meta.

Considerando-se os problemas enfrentados pela educação brasileira, percebe-se a socialização política como um mecanismo para a juventude adotar e internalizar orientações políticas diferentes das estruturas verticais de poder verificadas nos países da América Latina. A socialização política funciona como difusora do sistema político democrático. (NAZZARI, 2006a, p. 84).

Para Baquero (1997), a eficácia política é a autopercepção da possibilidade de influenciar nas decisões políticas, ou seja, nesse caso, os envolvidos no projeto da escola acreditam que são efetivamente participantes, ou imaginam que, se fosse necessário, sua participação teria alguma influência na escola e na comunidade, ou seja, na esfera política.

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Em particular o projeto promoveu sentimentos de eficácia política na comunidade, que passou a conviver com índices baixos de violências contra o patrimônio, contra indivíduos e elevou-se o gosto pelo estudo dos jovens em geral. O reconhecimento do trabalho em nível de comunidade também foi significativo. As lideranças locais, presidentes de associações de moradores, o comércio local, as famílias de forma geral, se orgulham de terem na comunidade uma boa escola, que propagam aos interessados em negócios e às pessoas que buscam um local para morar, estabelecer comércio, entre outras atividades promotoras de desenvolvimento local.

Ao mesmo tempo aumentaram as oportunidades de crescimento dos adolescentes e dos jovens em geral, na medida em que desenvolvem uma elevação nos sentimentos de autoestima, de compromisso e de respeito em relação ao outro, bem como, em consequência, se promoveu o zelo com as coisas públicas.

A representação coletiva dos jovens da escola passa pela compreensão da estrutura de poder e de autoridade. Com vistas a buscar um entendimento da representação juvenil, utilizou-se o conceito de representação social, de Guareschi (1993 apud NAZZARI, 2008, p. 112) como sendo a modalidade específica de conhecimento que tem por função a elaboração de comportamentos e a comunicação entre os indivíduos, tendo em vista a plasticidade, a mobilidade e a circulação das representações contemporâneas emergentes, como fenômenos que devem ser eles próprios explicados.

Os jovens passam a perceber sua importância e a se sentirem valorizados na comparação com jovens de bairros nobres ou aos que estudam no centro da cidade. Com o trabalho do qual participaram tornam-se referência no empoderamento político da juventude na comunidade, questão equacionada por Rua e Abramovay (2001) da seguinte forma:

O primeiro ponto compreende os atributos pessoais de cada indivíduo, a quantidade e a qualidade das informações de que dispõe e o grau em que as incorpora ao seu cotidiano. O ponto importante inclui o acesso aos meios de comunicação e à informação, à escolaridade e aos recursos materiais e culturais, inclui o sentimento

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de eficácia e participação política e inclui a consciência de cidadania, juntamente com seus componentes estruturais, como os direitos humanos, a qualidade de vida, o emprego e a inserção social, quesitos potenciais para ampliação dos espaços democráticos. (p. 80-1).

Cada um das dimensões mencionadas pelos autores tem problemas a serem enfrentados. Em relação ao comportamento individual, o jovem passa por um período de indefinição de identidade, com conflitos entre a razão e os sentimentos, gerando indecisão. Os problemas de cunho social envolvem a influência da moda, da pressão e da afirmação perante os amigos e o grupo, da dependência financeira dos pais, da frágil consciência de cidadania e da falta de solidariedade delineada pela cultura que favorece o individualismo. Entre os problemas institucionais que se referem ao capital social e empoderamento dos jovens, pode se destacar, conforme Nazzari (2006a, p. 46):

[...] a incompetência das instituições responsáveis para fazer projetos eficientes para inclusão dos jovens na vida social e política do País, por um lado, e a falta de organização e representação política da juventude, que não é socializada para o convívio coletivo, mas para adquirir capital humano apenas para ascensão profissional no mercado de trabalho. Estes problemas colaboram para ampliar as desigualdades sociais e diminuir os laços sociais de solidariedade e confiança, quesitos necessários para ampliação do capital social e desenvolvimento de uma nação.

Para enfrentar essas questões é necessário o empoderamento (empowerment) dos jovens por meio da socialização política crítica e do rompimento de estruturas culturais autoritárias. Essas são alternativas elementares para a inclusão dos jovens na sociedade e para a participação política dos jovens nos espaços decisórios e democráticos.

A influência dos grupos de referência no êxito da inserção dos

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jovens na sociedade atual remete à evidência de que fatores de socialização influenciam na área política, econômica e social. Os impactos das mudanças sociais podem indicar algumas modificações nas atitudes e nos comportamentos dos jovens.

As diversas mudanças nas representações sociais contemporâneas influenciam a socialização política dos jovens. Por isso é preciso propor alternativas viáveis para a inserção deles na sociedade visando à ampliação dos espaços democráticos. Durante as décadas de 1980 e 1990, os movimentos populares lutaram para garantir em lei o direito à comunidade escolar de eleger, por meio do voto direto, seus representantes a diretores de escolas de Estado do Paraná. Nessa trajetória, os educadores estavam comprometidos com o fortalecimento da democracia nas escolas paranaenses. Por meio das entidades APP-Sindicato, Associação de Professores, entidades estudantis e movimento popular comprometidos com a ampliação da cidadania nas escolas, foi possível a conquista da Lei Estadual no 14.231, em 2003, lei que orienta a eleição para diretores de escola, de forma direta, ou seja, com o voto de todos os membros da comunidade.

O Colégio objeto do presente estudo apresentou quatro chapas para concorrer ao pleito em 2003. A proposta eleita foi aquela que propunha transformar a realidade do colégio e da comunidade, uma proposta ousada que objetivava democratizar a participação da comunidade escolar: pais, alunos, funcionários, professores e comunidade externa. Essa proposta tinha, em seu bojo, o compromisso social de contribuir com uma outra visão de escola, inserida em uma nova sociedade já a partir das relações intraescolares no que diz respeito à sua gestão. O colégio devia ser uma célula de resistência à exclusão social e fomentaria a formação cidadã, alunos críticos, participativos, responsáveis e atentos aos problemas socioeconômicos e políticos de forma efetiva, e na construção humana. A campanha das chapas e a propaganda eleitoral foram educativas de tal forma que os eleitores se tornaram militantes na defesa das propostas e, posteriormente, na cobrança das mesmas propostas, tendo a consciência de que a escola pública de qualidade é um direito do cidadão e dever do Estado. As expectativas para o início da nova gestão eram aguardadas com esperança, pois os problemas eram um grande desafio para equipe gestora.

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O dia da posse foi 5 de janeiro de 2004, data designada legalmente para que a chapa vencedora assumisse a instituição. Estavam diretor e diretor auxiliar no saguão do colégio, aguardado o ex-diretor, para que “passasse as chaves” do estabelecimento, enquanto observavam as condições estruturais do colégio e conversavam sobre o propósito de cumprirem o programa de “construção” de uma “nova escola”, escola cidadã. Um grupo de meninos “desocupados” pulou o muro do colégio, dirigindo-se para a casa do caseiro, um militar, solicitando a permissão para jogar bola na quadra do colégio. Diante da resposta negativa do caseiro, que costumeiramente impedia os alunos de praticarem esportes, houve uma reação arbitrária dos jovens. No mesmo dia, conseguiu-se contato com os meninos e se propôs uma reunião com eles e a direção do colégio. O propósito foi oferecer as estruturas existentes naquele momento, quadras de esporte, salas de aula, saguão do colégio, rádio toca CD, enfim os muros para pinturas, algumas horas de trabalho voluntário da direção e de pessoas da comunidade, ex-alunos, pais, para ajudá-los na organização do contraturno, nos feriados e fins de semanas, atividades que eles definiriam, podendo ser: futsal, vôlei, dança, teatros, entre outras atividades.

A proposta partiu do princípio da coparticipação e da cumplicidade, no sentido da organização e da viabilização da comunidade. Todos assumiriam o compromisso de zelar e de recuperar as instalações depredadas por vandalismo e cobrar do Estado os compromissos constitucionais, a garantia da escola pública gratuita, universal e laica para todos, universalizando as condições materiais, estruturais e de acesso ao conhecimento. Foi um início de ano conturbado, pois era como construir em terreno íngreme. Era como se tivesse passado uma tempestade, tamanhos eram os estragos e os resultados de violência contra o patrimônio público e o grau de agressões entre as pessoas. Os alunos eram extremamente violentos. Houve caso de agressão física aos professores, a ponto de um deles ter o supercílio cortado ao receber uma “bofetada” de um aluno com 14 anos da 5a série, repetente, desistente por várias vezes.

Necessitou-se construir um clima ameno, um local de respeito, de cumplicidade, de companheirismo, de justiça, de amor ao próximo, de solidariedade, de fraternidade e de respeito ao compromisso

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assumido em programa da chapa eleita, ressaltando a proposta de construção de uma escola democrática. Devia-se coletivamente construir o projeto político-pedagógico e que de fato contemplasse as necessidades da comunidade escolar. Para a direção do colégio havia muita vontade de realizar. Para a comunidade havia muitas perspectivas e cobranças e certo grau de descrença. Necessitava-se fazer a diferença, ser propositivo, cumprir o que foi assumido em campanha, na defesa do projeto eleito.

A direção colocou em prática uma proposta, mas, com exceção de alguns militantes, de professores, de funcionários e de alunos, muitos outros se mantinham inertes aos propósitos de mudanças, pois muitos não acreditavam em mudança diante das crenças negativas construídas na escola.

A maioria dos envolvidos acreditava que os adolescentes e as crianças são violentos por natureza e não poderiam mudar. Era necessário despertar para a necessidade de mudanças nas crenças e incentivar sentimentos de possíveis mudanças na escola. Buscou-se apoio junto aos comerciantes da região, autoridades eclesiásticas, clubes de serviços, associação de moradores e cobrou-se a responsabilidade do poder público, e, em conjunto, pôde-se conquistar apoio, ampliar os espaços de boa convivência, formar a consciência coletiva e crítica propositiva no sentido da cooperação.

Segundo Nazzari (2006b), a cooperação é um conceito importante para os estudos do capital social. É também uma característica constitutiva do ser humano. O debate sobre a propensão cooperativa ou competitiva do homem assinala que a competição pode ser útil para dinamizar ambientes econômicos, mas isso não quer dizer que a competição seja inerente à natureza humana.

Quando as estruturas são hierárquicas e verticais, autoritárias e autocráticas, estimula-se a competição. No entanto, quando “os espaços são democráticos, favorecendo a participação e a organização em redes, a tendência é do desenvolvimento de procedimentos que estimulem a cooperação”. Neste sentido, observa-se, por exemplo, que, “na área econômica o capital gerado pela cooperação e pelas relações horizontais

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estimula a fluência de informações [...]”, promove a inovação, a criatividade e a produtividade. (AED, citado por NAZZARI, 2006b, p. 134).

Para mobilizar a comunidade, a primeira tarefa foi apresentar um relatório, informando a situação estrutural e de conservação do prédio e as condições de materiais pedagógicos disponíveis. Isso feito, posteriormente coube relatar as propostas de mudanças, de recuperação e de construção. Era necessário elevar a autoestima das pessoas e promover valores tais como: solidariedade, humanidade, respeito, amor próprio, cidadania, cooperação, cumplicidade, ética, e estímulo ao esporte, ao lazer e à cultura – e, acima de tudo, se fazer gente, amar e ser amado, ser feliz e demonstrar que a escola pública é da comunidade e cabe a todos zelar, cobrar e exigir a escolarização de qualidade para todos, ou seja, a universalização da escola pública de fato.

Era também necessária a manifestação da importância que cada indivíduo tem na comunidade, no bairro, e, por isso, a melhora das condições de ensino e aprendizagem era uma tarefa coletiva. O valor e o respeito seriam conquistados na medida em que atitudes e crenças coerentes de respeito a si próprio e aos outros acontecessem. Somente coletivamente se poderiam conquistar os objetivos perseguidos. Foram convocados os pais para compor a APMF (Associação de Pais, Mestres e Funcionários). Estimulou-se a organização dos estudantes através do grêmio estudantil e compomos o conselho escolar. Após a organização dessas instâncias, foram estabelecidas as prioridades: a) garantir a qualidade de ensino e formular uma proposta pedagógica que contemplasse as nossas necessidades; b) eliminar os focos de violência; c) estimular projetos que envolvessem a comunidade externa à escola, inclusive ONGs, igrejas, autoridades que tivessem compromisso com a transformação social da comunidade e, de modo especial, com os nossos adolescentes.

Depois das prioridades definidas, necessitava-se de mobilização. Sabe-se que a educação é um compromisso do Estado, mas o papel da escola e dos professores é fundamental, pois é no cotidiano da sala de aula que se podem revelar crenças e valores democráticos e fomentar nos alunos o senso da conservação e da manutenção das estruturas públicas.

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Paralelamente a isso, mobilizou-se a comunidade para cobrar do Estado as melhorias e convocaram-se como voluntários: alunos, pais, empresas e comunidade civil organizada. Em forma de mutirão passou-se a recuperar pinturas das salas, colocação de vidros, limpeza de pátio, entre outras atividades e tarefas. Com a comunidade infantojuvenil (alunos e não alunos) foi estabelecido o contrato de manter o colégio aberto nos fins de semana e nos contraturnos durante a semana. Também se formalizaram convênios com escolinhas de futebol. Os projetos para treinamento deviam incluir, de modo especial, aqueles com sintomas “violentos”, que, geralmente, se desenvolvem positivamente em atividades desportivas. Nesses convênios dever-se-ia ter a contrapartida de que os alunos deveriam apresentar bom rendimento na escola como pré-requisito para se manterem no projeto da escolinha de futebol. Dessa forma, procurou-se estimular outros projetos coordenados pelos próprios adolescentes, como dança, hip-hop, rap, futsal, teatro, entre outros. Formalizou-se o convênio com a ONG Escola Brasil, que tem parceria com uma instituição bancária que estimula a participação da comunidade e da sua participação financeira, colabora na organização de trabalhos voluntários. Em primeiro momento, contribuiu com materiais desportivos, tais como: bolas, camisetas, coletes, mesa e tênis de mesa, redes para traves de futebol, demarcação de quadras, pinturas nas quadras de futsal, bem como doação de computadores onde se realizaram cursos básicos de informática para alunos e para membros de nossa comunidade (pais, mães, irmãos e outros).

Outro projeto que se consolidou foi a instalação de equipamentos para uma rádio interna. Este foi um investimento feito por voluntários de uma ONG local comprometida com a melhora das estruturas educacionais. Nesse sentido, os instrumentos de comunicação são usados para o enriquecimento pedagógico e cultural dos alunos. Enfim, como pano de fundo, todos esses projetos visavam construir uma cultura da não violência e de paz. O lema da escola é: “Colégio [...] educando para a justiça, respeito e paz”.

Outra iniciativa foram projetos na área do esporte que ocorreram nos horários de intervalo das aulas, uma forma de envolver a comunidade estudantil em atitudes saudáveis, afastando-os das tentações do uso de entorpecentes. Trata-se de dar o que fazer para os

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adolescentes, que eles vão, aos poucos, se afastando da violência e das drogas. Diante disto, foram iniciados convênios com o governo para aplicação dessas políticas públicas na escola. Um exemplo disso foi o Projeto “Segundo Tempo”, que, com recursos do governo federal em parceria com a Secretaria de Estado da Educação, como o próprio nome indica, ocorre no contraturno escolar e não é só para alunos do colégio, pois inclui também alunos circunvizinhos. O projeto visa dar ocupação à juventude ociosa e tirá-los das ruas, proporcionando-lhes atividades saudáveis e, ao mesmo tempo, compromisso político, despertando o desejo de lutar pelos seus direitos e de estabelecer cumplicidade com a coisa pública. Também pode ter parceira com o setor privado. No caso, o professor é afastado para treinar uma turma ou equipe em alguma atividade esportiva, científica ou cultural, inclusive com premiações e láureas. Essas ações se têm se mostrado oportunas para o bom desempenho institucional das escolas públicas. O projeto político-pedagógico do colégio contempla hoje muitos projetos de iniciativa da própria comunidade, entre eles: “A hora da Leitura”, a obra “Portas para a Imaginação”, projetos sobre o meio ambiente, Projeto “Fazendo Arte na Escola”. Entre todos, consideramos também importante o compromisso dos nossos educadores com os projetos do colégio. É de fundamental importância a identificação da comunidade estudantil com os projetos. Fundamental também é a mudança de postura dos nossos funcionários em relação aos projetos, ou seja, a compreensão de que não existe um dono nos projetos, mas, sim, que há uma cumplicidade do coletivo. Atender bem ao público é o compromisso de todos e o reflexo disso é uma comunidade mais feliz.

Como conquista principal, pode-se destacar o direcionamento da comunidade para a defesa dos objetivos coletivamente definidos. Aqueles jovens que participaram dos projetos compuseram o grêmio estudantil, juntamente com APMF. De posse de fotos e documentos e de abaixo-assinados que comprovam a precariedade das estruturas de seu colégio, passaram a fazer cobranças públicas às autoridades de direito. O Grêmio Estudantil, a APMF e o Conselho Escolar encaminharam as lutas em busca dos objetivos traçados. O importante nesta relação é que, na medida em que esses adolescentes “violentos”

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passaram a engajar-se nas lutas em defesa de seu colégio, cobranças de reformas, melhorias da estrutura física, puderam perceber-se respeitados e ouvidos até mesmo pela mídia local (TV, rádios, jornais e boletins da própria entidade). Valorizados, tornaram-se coparticipativos e passaram a valorizar e a defender as estruturas públicas. Na medida em que recuperavam uma pintura, exigiam os mesmos cuidados de seus colegas.

As trajetórias juvenis, em função de classe, sexo ou etnia, concretizam-se de forma diferenciada no interior de uma dada sociedade, e na maturidade as múltiplas formas de inserção na estrutura social. Os jovens irrompem na sociedade moderna com a ânsia de serem notados, levados em conta e desejosos de contestar as normas sociais. Nesta tentativa de afirmação de si mesmos, ultrapassam os limites pela busca do sentido da vida. (NAZZARI, 2006a, p. 50-1).

Esses adolescentes “violentos” convivem em comunidade e alguns são líderes estudantis, comunitários, e são aqueles que alcançam “sucesso” em concursos públicos, em vestibulares e os “melhores” postos de empregos. E são eles que auxiliam a escola para a mobilização em projetos coletivos. O otimismo do projeto não foi completo, pois circunstâncias sociais e a nossa limitação socioeconômica levaram à perda de três alunos para o mundo do crime, um homicídio, um detento e outro foragido da polícia. O importante, porém, é que, no convívio com o colégio e no respeito àquele espaço coletivamente construído por eles, mantiveram convivência pacífica, defendendo colegas, amigos e as estruturas do público. Em 2009, o colégio tem um dos melhores índices de aprovação nos vestibulares das universidades públicas regionais, além de que os índices de violência diminuíram significativamente. Há um coletivo de professores e de funcionários, juntamente com a APMF e o Conselho Escolar, promovendo um ambiente de trabalho melhor, assim como o grêmio estudantil se mantém sempre mobilizado. Esses coletivos fazem a diferença, inclusive no grau mais enriquecido de debate das propostas

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apresentadas em época de eleição de chapas para formar as diretorias. Nota-se um alto grau de politização comparando-se com anos anteriores e com as demais escolas. Pode-se observar a elevação dos índices de empoderamento dos estudantes tendo em vista a ampliação da participação na política estudantil. A dificuldade principal é em relação à mobilização dos pais, seja ela para a composição da diretoria da associação APMF ou mesmo no dia a dia da escola. Por mais estímulo que possa ter a participação desse segmento tão importante, muitas vezes é deficitário. Assim sendo, há dificuldades até mesmo para compor as diretorias, pois se trata de trabalho voluntário. Então o que dizer da participação dos pais em reuniões e em assembleias da entidade. Os que participam devem ser muito bem reconhecidos pelo seu ato de desprendimento e de dedicação a um trabalho sem remuneração, mas de grande significado na construção de uma nova sociedade, que passa pela escola pública gratuita e de qualidade e que, de fato, ela só acontecerá se cada um fizer a sua parte. Os docentes do colégio continuam mobilizados, tanto em relação às cobranças para as melhorias pedagógicas quanto na busca de estruturas, materiais e no sentido da conscientizarão dos alunos na busca de valores, na resolução de problemas. Ao mesmo tempo, como o colégio faz parte de uma região que oferece grandes dificuldades socioeconômicas, é fundamental que os professores, com base em no projeto político- pedagógico, se esforcem para dar conta dessas demandas. Considerou-se de fundamental importância para o empoderamento político dos estudantes a participação efetiva de seus professores, bem como para a manutenção do clima de mobilização da comunidade. Desta forma, o exercício reflexivo continua em relação ao contrato moral feito há cinco anos com a comunidade e com os remanescentes daquele grupo de “violentos”. A conclusão a que a comunidade chega é que, como no “Mito da Caverna de Platão”, muitas pessoas emitem opinião a partir do universo em que vivem “suas cavernas sociais” e que quem produz o medo não é o monstro, mas, sim, são os comentários que se fazem a seu respeito.

Conforme se observou, a educação das crianças em todas as sociedades sempre se pautou no sentido de atender à necessidade premente da sociedade em que viviam. E, de modo especial, esteve

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sempre ligada ao modelo de economia em vigência e ao sistema ideológico em que se contextualizava tal formação.

Não dá para atribuir a uma parcela da população infantojuvenil o adjetivo de violentos. Os adolescentes são o reflexo da nossa sociedade adulta de consumo (consumo de filmes nos cinemas e na TV importados dos EUA e de outros impérios culturais). As programações são impostas às nossas crianças, adolescentes e jovens, formam uma população alienada e consumidora de armas, e subserviente ao narcotráfico e a outras mazelas a mais. Isso gera violência, sem contar as disputas pela sobrevivência.

O sistema capitalista divide a população entre incluídos e excluídos dos meios de produção e favorece disputas e conflitos ideológicos e de classes sociais. E, como o arcabouço jurídico foi formulado pelos donos do poder econômico, é mais pertinente então para os favorecidos contratarem e investirem em segurança privada, do que orientar suas ações para projetos coletivos que emancipem os excluídos.

Os dados da exclusão se refletem no emprego e na renda. Segundo a OIT (2009), 88 milhões de jovens estão fora do mercado de trabalho no mundo. Nos países latino-americanos, o número absoluto de jovens sem emprego passou de 6,5 milhões em 1993 para 9,4 milhões em 2003. Segundo o PNAD (2009), há 3,7 milhões de jovens brasileiros sem trabalho, o que representa 47% do número total de desempregados no Brasil.

Diante de tais circunstâncias, os jovens são impelidos para a marginalidade e a exclusão. Assim, as atitudes violentas são consideradas originárias, principalmente, daqueles oriundos das classes menos favorecidas economicamente, o que é um engodo social, que promove a vulnerabilidade das camadas populares, carentes de políticas públicas. Desencadeia ainda o medo social, construído pela sociedade capitalista e pela mídia, notadamente medo contra os jovens das periferias das cidades brasileiras.

O capital social apresenta-se como alternativa viável para promover a cidadania nas classes vulneráveis, dotando os jovens de sentimentos de confiança nas pessoas e nas instituições que, por sua vez, poderão potencializar as redes de cooperação na comunidade e levando à ampliação da participação política efetiva, elementos necessários para a consolidação democrática. Tendo em vista essas

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questões, busca-se entender as reperesentações sociais dos jovens e da comunidade de periferia urbana, tema do presente estudo.

Representações sociais da comunidade sobre o projeto

Para conhecer as representações sociais da comunidade sobre os jovens, foi realizada pesquisa qualitativa nas residências e nas empresas comerciais em torno da escola. As perguntas relacionavam-se às possíveis mudanças dos jovens antes e após o Projeto “Transparência e Democracia”. O conjunto de respostas revelou que a comunidade percebeu de forma positiva os resultados do projeto. O conjunto dos entrevistados concorda que houve diminuição dos índices de violência depois que os jovens foram envolvidos em atividades coletivas na escola e que desenvolveram um sentimento de pertencimento com a instituição. Na entrevista com uma mãe de aluno destaca-se o envolvimento dos jovens no projeto via grêmio escolar: Muitos se uniram com o grêmio para reformar a escola, passaram a ver a escola como deles. Um relato da funcionária que trabalha na escola há 15 anos destacou que:

“O projeto se baseou no diálogo, no sentido de identificar e combater os focos de drogas. Recebeu ajuda da patrulha escolar. Foram feitas reuniões com os funcionários e professores com o lema “Nesta escola se cultiva o respeito e a paz” [...] Um detalhe importante, emociona entrar em uma escola com uma faixa com estas palavras” (Funcionária da Escola).

Um detalhe importante da entrevista feita com uma professora da escola e pai de aluno está relacionado com a ampliação do capital social é de que:

“O trabalho era feito em conjunto, quase imperceptível, cada um contribuía com suas habilidades e envolviam os pais e a comunidade em geral, como se fosse algo invisível (Professora da escola). Quando a gente via já estava executando tarefas e bem disposto, valia à pena!” (Pai de aluno).

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Houve uma reclamação relacionada com a atuação da mídia sobre a escola, e de como o espaço midiático prioriza a visão do jovem-problema na sociedade em detrimento das muitas boas atividades que são organizadas nas várias escolas das cidades brasileiras. Como se destaca na percepção da adolescente entrevistada:

“A TV tenta passar uma ideia negativa da escola, focaliza as coisas que acontecem na rua, no bairro e nas proximidades da escola como se fossem dentro da escola, mas é muito difícil filmarem uma boa ação que os alunos fazem na escola, só querem mostrar a maldade”. (Adolescente).

O atual diretor da escola salientou que a continuidade dos projetos exige muita persistência, pois os grupos se alternam e se faz necessária atualização dos projetos, incentivando novas pessoas a participarem, para que não sejam sempre os mesmos agentes que atuem junto aos grupos de alunos. O diretor alerta e destaca que:

“As escolas devem estar atentas e verificar as novas políticas juvenis no país que podem colaborar para fortalecer as boas ações na escola. Tal como, o apoio oficial pelas ações do Pró-Jovem, que procura orientar o jovem para o mercado de trabalho. [...] Mas, não se pode esquecer também da dimensão cultural e recreativa, tal como: a dança, os esportes, os passeios, as festas, as feiras entre outras. [...] Nós devemos destacar a promoção dos jovens! Das coisas boas que eles fazem! Valorizar! [...] Já se tem bons frutos, mas projetos assim terão resultados positivos em médio e longo prazo”. (Diretor da escola).

Na fala do diretor da escola pode-se perceber que, em geral, a

sociedade tende a enfatizar aspectos negativos ligados às ações dos jovens de periferia em detrimento de suas qualidades e conquistas positivas:

“[...] quando a ação é positiva, pouco se destaca na mídia, não falam das coisas boas da escola, exceto quando vieram cobrir o projeto da rádio comunitária. [...] No segundo semestre de 2009 houve dois tiros e brigas nos arredores da escola, isto foi amplamente

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divulgado pela mídia, que enfatizava o nome da escola. A imprensa prefere divulgar aspectos negativos dos jovens”. (Diretor da escola).

Um professor revela que, para resolver a questão da violência

na escola, foi necessário envolver a comunidade.

“Atualmente troca-se os vidros para a manutenção, mas não por vandalismo, os problemas ocorrem fora da escola, à depredação e a evasão diminuiu. [...] Além disso, o projeto desencadeou uma interação entre as escolas vizinhas: fortaleceu-se o Comitê Pedagógico e promoveu-se o incentivo ao Comitê em Defesa da Vida para dar apoio aos jovens e famílias vítimas da violência, neste Comitê participaram as escolas estaduais da região norte da cidade, foi feita audiência pública na Câmara de Vereadores. [...] Observa-se, porém, é que qualquer ação que se faça sobrecarrega algumas pessoas de boa vontade, quase sempre as mesmas, por isto que os projetos, em geral, não têm continuidade”.

Segundo Waiselfisz (1998), deve-se em conjunto localizar

instituições e programas e envolver as agências de socialização (famílias, grupos de amigos, associações, igrejas e escolas), para desenvolver estratégias preventivas de redução dos fatores de violência. Em entrevista da mãe de uma das alunas da escola, destacou-se a possibilidade de associar o esporte, a mídia, a cultura, a educação e capacitar profissionais. Promover debates nas escolas sobre cidadania, direitos humanos, violência, discriminação social e drogas é essencial para melhorar a qualidade de vida e a ampliação dos estoques de capital social da comunidade.

“Convidavam todos, e estes participavam e incentivavam as ações da escola dentro do bairro [...] veio muita coisa para a escola, durante os cinco anos que minha filha estudou, nunca aconteceu violência [...] as meninas gostavam de participar das feiras de ciência [...] apreenderam a dividir e formaram um grupo que coopera entre si, principalmente, entre as que têm mais intimidade e amizade. [...] O trabalho em grupo favorece, vamos supor ações coletivas, pois, no

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computador os jovens não querem conversar com ninguém e tem uma falta de diálogo e comunicação com os outros”. (Mãe de aluna).

Sob outra ótica, a mãe de um aluno que se mudara

recentemente para o bairro observou que o filho encontrou resistência inicial de adaptação na escola, mesmo assim destaca também aspectos positivos posteriores:

“[...] um menino de 15 anos bateu no meu filho, não ouviu falar? [...] Lá no bairro que morei a escola tinha projetos de ginástica, tinha mais atividades [...] aqui ele se sente bem na escola e recebe apoio dos professores e colegas”. (Mãe de aluno).

Também em entrevista concedida por um empresário da

comunidade, quase todo o comércio nos arredores da escola identificara o impacto positivo e a aprovação da gestão do projeto:

“Melhorou, pararam de pular o muro e beber, no ginásio aumentaram os muros e com as atividades não ficaram mais desocupados [...] depois da mudança da diretoria melhorou muito!” (Empresário da comunidade).

Um morador fez um destaque pertinente, sobre possíveis distorções em relação ao foco da violência na escola, como se destaca a seguir:

“Estes tempos teve tiros no colégio, mas não na frente, nos arredores, fora do colégio [...] não se ouve falar em violência, quando tem é bem comentado”. (Morador).

Na entrevista, uma funcionária e ex-aluna da escola observou que:

“[...] os anos de 2002, 2003, 2004 e 2005 foram muito difíceis, havia gangs, grupos, roubo de computadores, depois de 2005 melhorou muito, antes as brigas se davam pelo confronto com a direção e a truculência de alguns funcionários (que foram afastados), neste período dramático inclusive, teve um suicídio de um menino do

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grupo que fazia parte da escola. Creio que se poderia fazer algo para evitar”. (Funcionária e ex-aluna da escola).

A reciprocidade, um elemento-chave para a ampliação dos estoques de capital da juventude, é também considerado por Piaget (1983) como indispensável para o desenvolvimento moral da criança, que se estabelece até a idade de doze anos. Assim, é na escola que os adolescentes e os jovens em geral poderão ser socializados para ampliarem seus laços de confiança, de cooperação e de reciprocidade, ampliando seu interesse e sua participação na vida política, e a escola pode dar uma importante contribuição para desenhar o futuro cidadão.

Efeitos do projeto na construção do capital social junto aos jovens da escola

É importante observar que, por um lado, o Brasil é o 2º lugar no ranking do pessimismo dos jovens em relação ao futuro (UNICEF, 1999), por outro lado, segundo Instituto Cidadania (2005), 84% dos jovens pesquisados acreditam no próprio poder de transformar o mundo. Nos estudos de Nazzari (2006b), 55,5% dos jovens veem com otimismo as perspectivas em relação ao futuro e 75,8% acreditam na possibilidade de mudanças decorrentes de participação em atividades associativas.

Passeios foram as atividades assinaladas pela maioria dos entrevistados (34,7%), as festas dançantes apareceram em segundo lugar, com 26,3 % na freqüência da participação dos jovens em atividades associativas” [...]. (NAZZARI, 2006b, p. 154).

Seguidos das associações desportivas, religiosas e atividades ligadas às associações de estudantes, esses índices se tornam bem baixos quando relacionados à esfera política. Segundo a UNESCO (2009), 13 milhões de jovens brasileiros já participaram ou participam de alguma forma associativa (movimentos sociais, ONGs, sindicatos, partidos políticos, entre outros). Entretanto, apenas 2% dos jovens pesquisados

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pelo Instituto Cidadania (2005) participam de algum trabalho social ou no bairro; 20% querem participar; 10% pensaram nisso, mas desistiram; 68% nunca pensaram em fazer nada nesse sentido.

Observa-se que 25% dos entrevistados NS/NR sobre os principais problemas da educação brasileira, enquanto 24,5% apontaram problemas de ordem econômica, 11,4% de ordem política, 11,2% de ordem pedagógica, 7,8% violência e drogas, 5,2% falta de interesse dos alunos e 6,1% destacaram outros problemas enfrentados por suas escolas. Destaca-se que os problemas econômicos são os que mais afligem os jovens, tendo em vista as dificuldades de inserção no mercado de trabalho e a contínua crise econômica do País. (NAZZARI, 2006a, p. 87).

Na pesquisa do Instituto Cidadania (2005) destaca-se que, para 74% dos jovens, a escola é importante para entender a realidade. Considerando-se esses dados e essas crenças, este estudo procurou conhecer a representação social dos jovens sobre o Projeto “Transparência e Democracia”. Foi realizada pesquisa qualitativa na escola no período de intervalo entre as aulas dentro da escola. As perguntas relacionavam-se às possíveis mudanças nos comportamento dos mesmos antes e após a realização do projeto. As respostas revelaram o caráter positivo de como os jovens estudantes internalizaram o projeto e deram bases para a construção do capital social. Esses elementos se refletiam nas pesquisas em nível nacional, segundo Nazzari (2006a, p. 87):

Perguntados sobre o seu engajamento na discussão dos problemas da escola, entre os entrevistados, 56,2% costumam discutir os problemas com os colegas às vezes, 31,4% regularmente, 11,9% não e NS/NR 0,5%. [...] No geral, a percentagem de jovens que

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discute os problemas vem se ampliando consideravelmente, indicando uma propensão na elevação dos níveis de eficácia política na escola.

O conjunto dos jovens entrevistados concorda que houve diminuição das atitudes violentas entre eles e veem a escola como se fosse continuação de sua própria casa, como se apresenta na entrevista com aluna de o ensino médio vespertino a seguir:

“[...] me sinto bem na escola, as aulas são interessantes e tenho aprendido muito com os professores, sobre a importância de se ter uma visão coletiva. [...] não tenho pai e nem mãe, vivo com uma tia, e sempre senti falta de conversar com os professores e saber suas idéias sobre a vida, eles são importantes para mim”. (Aluna).

Segundo Nazzari (2006a, p. 102), “[...] são os níveis de

participação e de organização de uma sociedade que denotam os estoques de capital social desta”. Assim, percebe-se que, “[...] se a sociedade não está organizada e não tem iniciativa, se não existe confiança social entre os grupos, não se pode ter desenvolvimento ou implementação de qualquer projeto que possa levar à ampliação do bem público” e do desenvolvimento coletivo. Entre os aspectos positivos do impacto do projeto, um aluno destaca que:

“[...] a escola hoje é aberta para todos, é parte de nossas vidas, a depredação diminuiu, o que existe são problemas comuns das escolas [...] Sim, tenho uma visão boa, teve muita mudança! Ajudou a trazer material, arrumar a escola. Traziam tijolos, etc. [...] Começaram a fazer eventos, como o dia do sorvete, o dia do cachorro quente. Nos esportes, fizeram campanhas, torneios e jogos de futsal”. (Aluno).

Entre as propostas de alternativas para conter a violência no

Brasil, Waiselfisz (1998) coloca a necessidade de construção de uma rede nacional de luta contra a violência ou a favor da paz, onde se estruture uma rede de informações dirigida ao público, sobre programas públicos e privados. Trata-se de alternativas que promovam

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as formas de fomentar projetos de combate à violência em suas diversas formas (drogas, abuso sexual, violência infantil, adolescentes, grupos minoritários, entre outras) e sobre o acesso aos programas, removendo as barreiras que impedem o conhecimento dos interessados na promoção de projetos de inserção social e política dos jovens.

De acordo com aluno entrevistado, a violência estava nos arredores na escola e quando ocorria era porque se encontravam na frente da escola. O entrevistado observou também uma percepção relacionada ao conflito de classe social:

“Acredito que a escola após o projeto melhorou, diminuiu a violência [...] neste lugar residem pessoas muito carentes e com a expansão do capitalismo e das empresas houve um choque de classes [...] A violência está fora da escola e se reflete dentro por ser um ponto de encontro dos jovens”. (Aluno).

Sendo assim, a educação escolar, segundo Dubet e Martuccelli, “[...] não seria só conformista, mas passível também de produzir um sujeito ético, capaz de crítica, convicção e de distância em relação a si mesmo”. Isso ocorre numa abordagem paralela entre desenvolvimento moral e desenvolvimento cognitivo (SOUZA, 2002, p. 49-50). Sobre isso, é pertinente analisar a fala da entrevista de uma aluna.

“Sinto que, com a invenção das atividades, a escola ficou mais amiga, mesmo com as diferenças, procuro ser amigo e conservar a escola, se fizer bem feito meu futuro será melhor. Os encrenqueiros caíram de moda”. (Aluna).

O capital social é uma teia invisível que sustenta todas as

relações sociais. Se a sociedade não for organizada e se seus níveis de confiança forem baixos, as pessoas não vão confiar umas nas outras, não vão associar-se, não vão cooperar e nem participar das questões políticas emergentes para o desenvolvimento das comunidades em que vivem. Nazzari (2006b) observa que comunidades com níveis baixos de capital social positivo são desorganizadas e não possuem indices positivos de participação coletiva, tornam-se, na maioria das vezes, pobres e incapazes de afirmar sua identidade.

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À guisa de conclusão

Segundo estudo da Unesco (2009), a escola no Brasil apresenta-

se como um ambiente inseguro para os alunos. Dos alunos entrevistas, cerca de 61% nas escolas privadas e cerca de 65% nas escolas públicas assinalaram percepções de constrangimento e algum tipo de medo social. Cerca de 4% dos estudantes entrevistados disseram que têm ou tiveram uma arma de fogo, e 70% (aproximadamente 130.000 estudantes) responderam que as armas eram para uso nas escolas.

Esses dados demonstram a crescente necessidade de se tentarem métodos e ações alternativas para reverter a ascensão da violência nas escolas brasileiras.

Nesse sentido, é fundamental, para se obter uma sociedade menos violenta, o compromisso continuado da educação que trate sem descriminação as crianças, os adolescentes e os jovens em geral. Para tal, faz-se necessário também que o poder público, de forma geral, garanta políticas públicas de inclusão social em períodos complementares às aulas. Neste estudo, viu-se a importância do contraturno das atividades escolares, atividades tais como práticas desportivas e culturais, entre outras. A ampliação dos estoques de capital social, nas dimensões individual, cooperação social e bom desempenho institucional podem promover políticas públicas eficazes.

Nesse sentido, para os setores sociais excluídos, o capital social pode promover a defesa da afirmação da identidade cultural e local, a ampliação da autoestima, a transmissão de valores coletivos que promovam as atividades associativas, a integração da sociedade por objetivos comuns, o respeito ao patrimonio público e o sentimento de pertencimento e de envolvimento local.

As representações sociais da comunidade sobre os jovens antes e após o Projeto “Transparência e Democracia” foram positivas tanto na construção de uma rede cooperativa quanto sobre o cuidado com o patrimônio público. Nos jovens, os efeitos do projeto foram importantes para a elevação dos índices de capital, para o aprimoramento individual e para conquistas materiais e sociais.

Experiências como essas são importantes de serem acionadas nas escolas para a promoção da participação dos jovens e o envolvimento da comunidade no sentido de diminuir os índices de

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violência infantojuvenil em todo o país. Algumas propostas e iniciativas localizadas podem mudar o rumo da história dos alunos, das famílias e da comunidade. Assim, o Projeto “Transparência e Democracia” se apresenta como uma ação local importante para a diminuição das atitudes e dos comportamentos violentos das crianças, dos adolescentes e dos jovens em geral. Referencias ABRAMOVAY, Miriam et alii. Gangues, galeras, chegados e rappers: juventude, violência e cidadania nas cidades da periferia de Brasília. Rio de Janeiro: Garamond, 2002. p. 198. BAQUERO, Marcello. O papel dos adolescentes no processo de construção democrática no Brasil – um estudo preliminar de socialização política. In: Cadernos de Ciência Política. Programa de Pós-Graduação em Ciência Política, IFCH, UFRGS. Porto Alegre, RS: Evangraf, 1997. p. 34. CASTEL, Robert. Les métamorphoses de la question sociale: une chronique du Salariat. Paris: Fayard, 1995. DAYRELL, Juarez. Juventude e escola. In: Juventude e escolarização (1980-1998). Brasília: MEC/Inep/Comped, 2002. p. 67-93 (Série Estado do Conhecimento). FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 22. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. (Coleção: O Mundo Hoje. Vol. 21). HUGHES, Pedro Javier Aguerre. Segregação socioespacial e violência na cidade de São Paulo: referências para a formulação de políticas públicas. In: São Paulo em Perspectiva, vol. 18, no. 4, São Paulo, out./dez. 2004. Disponível em: <http://www. scie lo.br/scielo.php?pid=S0102-88392004000400011&script=sci_arttext>. Acesso em: 30 nov. 2009. IBGE. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. IBGE Teen. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/ibgeteen/index.htm>. Acesso: 22 nov. 2009. INEP, Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais. MEC, Ministério da Educação. Disponível em: <www.inp.gov.br>. Acesso: 30 nov. 2009.

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DIMENSÃO POLÍTICA E DIMENSÃO ESTÉTICA NAS

EXPERIÊNCIAS EXPRESSIVAS JUVENIS: (RE)FLEXÕES PARA UMA EDUCAÇÃO DO SENSÍVEL

Daniela Longoni

Ser jovem no Brasil significa estar particularmente afetado

pelas crises que se desenrolam na sociedade, embora existam diferentes modos de vivenciar a juventude, de acordo com as condições de vida e de sociabilidade experenciadas. Pensar a educação de jovens a partir do pressuposto da necessidade de revisão de processos educativos voltados para a(s) juventude(s), acolhedores dos jovens do presente, significa estar atento a questões que dão contornos ao “ser jovem” na atualidade, bem como, aos tencionamentos da relação juventude e escola. A investigação de tais processos educativos significa também refletir e revisar o próprio papel da educação num mundo que reclama sensibilidade. Uma experiência expressiva de Intervenção Urbana, realizada por um grupo de jovens em Novo Hamburgo-RS, a partir das provocações de uma pesquisa realizada com este grupo, dá os subsídios para as reflexões propostas por este texto que, transitando pelos recortes “Juventude, Contornos Sociais e Políticos: implicações para a educação política”, “Juventude, Arte e seu Ensino” e “Uma Intervenção Urbana no Meio d(O Caminho)”, visa problematizar a dimensão política e a dimensão estética nas experiências expressivas juvenis e sua relação com a educação do sensível.

Juventude, Contornos Sociais e Políticos: implicações da

educação política A pesquisa “Perfil da Juventude Brasileira” (2004), iniciativa do

Projeto Juventude/Instituto Cidadania, investigou a faixa etária entre 15 e 24 anos, entrevistando 3.500 jovens em 198 municípios, e apontou que 32% dos jovens em idade para trabalhar estavam desempregados. Além deles, 8% dos jovens brasileiros nunca haviam trabalhado e estavam procurando emprego. Dos 36% que estavam trabalhando, 60% ocupavam o mercado informal. A pesquisa indicou também que 42%

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dos jovens brasileiros viviam em famílias com renda mensal de até dois salários mínimos e que 42% dos jovens pararam os estudos no ensino fundamental. Se a juventude foi afetada pelas transformações econômicas e sociais das décadas de 1980 e 1990, e pelo processo de desestruturação do mercado de trabalho, por outro lado, segundo dados da OIT (2009), o cenário de recuperação do emprego formal e de redução da informalidade, característico dos anos 2004 a 2008, não beneficiou os jovens da mesma forma que os adultos. O estudo realizado pela OIT afirma, diante da heterogeneidade que caracteriza a situação dos jovens no Brasil, que as mulheres jovens, os jovens negros de ambos os sexos, assim como os jovens das áreas metropolitanas de baixa renda, ou de determinadas zonas rurais, são afetados de forma mais severa pela exclusão social, pela falta de oportunidades e pelo deficit de emprego de qualidade.

As crises que se desenrolam na sociedade afetam particularmente os jovens, tendo em vista diferentes dados sobre o cenário juvenil no Brasil, e tornam legítima a discussão sobre a educação política de jovens nesse cenário. Corroborando essa informação, pesquisas que focalizam a participação juvenil apontam para baixos índices de participação em atividades políticas de natureza convencional e não convencional e em movimentos de orientação claramente política. Revelam, no entanto, um envolvimento crescente na participação comunitária, um crescimento gradativo nos novos movimentos sociais, bem como o aumento de interesse pelos movimentos de caráter cultural. Segundo Baquero, parecem estar surgindo novos padrões de participação juvenil, que se encaminham na construção de um novo paradigma, baseado não mais em parâmetros político-ideológicos, mas em parâmetros ético-existenciais, nos quais a mudança pessoal faz parte da mudança coletiva (2008, p. 139).

Há uma aparente descrença nas instituições políticas e nos políticos. Ao discutir sobre a socialização política de jovens universitários, focalizando alguns dos seus desejos e formas de participação no espaço público, Keil (2004) indica que os jovens investigados apresentam, na sua maioria: um grande desinteresse pela política; pouca ou nenhuma confiança nos políticos; descrédito nas grandes transformações sociais e confiança em pequenas ações voluntárias de ajuda social.

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Maffesoli (2005) identifica o surgimento de um movimento subterrâneo baseado na não ação, na atualidade, onde o político cede lugar à contemplação, numa espécie de orientalização do mundo. Este seria um tempo social mais descontraído, que deixa correr as coisas e permite também a cada um ser a si mesmo. O fim e o sentido da existência humana não seriam mais procurados numa utopia exterior, mas seriam encontrados no presente, na vida cotidiana. Trata-se menos de agir sobre o mundo e mais de aceitá-lo como é. Para o autor, o consentimento é um desprezo discreto à opressão e dinamita um elemento central da sustentação do poder através dos tempos, a fascinação. Isso estaria acontecendo com os regimes democráticos, uma reação orgânica do corpo social que não se reconhece mais nos seus representantes e busca um novo equilíbrio capaz de traduzi-lo melhor. O autor nos fala sobre a saturação do político e a reatualização do doméstico (MAFFESOLI, 1995). Cabe interrogar, no entanto: – Se o indivíduo não é mais considerado como entidade estável, provida de identidade intangível, e sua pulsão gregária o faz participar dos grupos de identificações escorregadios, os quais o autor chama de tribos (1987), não haveria, nessa socialidade, um modo diferenciado de viver o político, se entendermos este termo numa acepção ampla, relativa à condução das relações humanas?

Baquero (2008) salienta que não se trata de reforçar o discurso recorrente de que os jovens não participam, contrapondo a representação de um jovem politizado (décadas de 60 e 70) à representação atual de um jovem alienado e desinteressado (p. 142). Ao invés disso, o que está em jogo é a crise do sentido da participação política. Sandoval (2002) questiona o sentido atribuído à participação pelo jovem em uma sociedade que insiste em compreender a juventude atual por parâmetros das décadas de 1960 e 1970. Os apontamentos de Medeiros (2009) nos ajudam a sublinhar tendências contemporâneas e a pensar a emergência de um novo padrão de participação juvenil.

Dentre os novos temas de debate democrático surgem com força as reivindicações pelo reconhecimento das diferenças culturais, raciais, étnicas, teorizadas pelo multiculturalismo. Há um movimento de dar visibilidade ao caráter multicultural e

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complexo das sociedades contemporâneas. (MEDEIROS, 2009, p. 25).

Face à expressividade numérica dos jovens no Brasil e no

mundo e a situações de desvantagem social vivenciada por esse grupo da população, é possível, contudo, compreender a importância da discussão da educação política de jovens, não no sentido de resgatar um determinado padrão de participação, mas de ressignificar com o jovem a sua participação social, ao mesmo tempo em que ele se perceba como ator da história. A quantidade de jovens que estão à margem dos direitos sociais justifica a importância de problematizar como o jovem vivencia a sua participação. Na perspectiva freireana, toda a educação é política, assim como toda a política é educativa, não existindo neutralidade.

Como experiência especificamente humana, a educação é uma forma de intervenção no mundo. Intervenção que [...] implica tanto o esforço de reprodução da ideologia dominante, quanto deu desmascaramento. (FREIRE, 1996, p.98, grifo do autor).

Por outro lado, a construção da cidadania não é algo que acontece naturalmente, desafiado-nos a pensar a educação política, sem o receio da redundância. Sem dúvida, falar em educação política de jovens é um processo complexo, que pressupõe estar atento às expressões e novas demandas dos grupos juvenis, identificar o que faz sentido ao jovem na atualidade, sem idealizar o comportamento juvenil, mas, sim, contribuir para o processo de autorreconhecimento do jovem como membro de uma sociedade na qual ele pode agir ou ser expectador. Um desafio aos processos educativos é identificar as estratégias e os diálogos possíveis nesse investimento.

Juventude, Arte e seu Ensino

Ao identificar assuntos de interesse entre os jovens de diversos municípios brasileiros, a pesquisa “Perfil da Juventude Brasileira” (2004) apontou a cultura e o lazer como os assuntos que mais interessam aos jovens depois da educação e do emprego, representando

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27% das indicações. O levantamento identificou que 15% dos jovens entrevistados participam de grupos de jovens e que as atividades musicais estão entre as mais recorrentes, entre as desenvolvidas. Com frequência vemos uma forte presença da arte nos espaços educativos não escolares, sob o formato de oficinas de arte nos projetos sociais, explorando diferentes linguagens: o teatro, a música, as artes visuais. A capacidade de a expressão artística chegar no jovem e mobilizá-lo parece ser percebida e valorizada. Ocorre, contudo, que o papel que o ensino da arte tem assumido nesses espaços tem sido o de “ferramenta” para o desenvolvimento de outros fins pedagógicos.

Pensar sobre a arte e seu ensino significa entrar em contato com questões que vêm sendo cada vez mais problematizadas nos últimos anos. Uma das motivações do debate é a carência, nesse campo, de maiores investimentos e reconhecimento adequado nos espaços educativos. O que é arte? Qual é o seu papel nos processos educativos?

É difícil definir o que é Arte, embora as pessoas, em geral, tenham alguma noção sobre a que se refere a palavra quando a ouvem. Ao percorrer a história que chega até nós, através dos registros ou dos próprios objetos artísticos, é possível identificar alguns papéis assumidos pela arte: como parte de rituais mágicos na pré-história; como glorificação da morte, na arte egípcia; como elaboração intelectual e busca de ideais, na arte da Antiguidade Clássica. Cada momento da História da Arte nasce da proposição de romper com as propostas para a arte do período precedente. A Arte Contemporânea faz a ruptura com o modo de pensar a arte em categorias como "pintura" ou "escultura", na arte moderna; articula diferentes linguagens, desafiando as classificações habituais e o modo contemplativo e passivo como o espectador se relaciona com a arte moderna. A partir de artistas como Duchamp, a arte passou a questionar o espectador e chamá-lo a pensar e a posicionar-se sobre a obra. Esta, colocando em questão a própria definição de arte, reinventa tendências e orientações artísticas que, apesar de distintas, partilham um objetivo comum: buscam dirigir a arte às questões do mundo vivido, à natureza, à realidade urbana, à tecnologia, questionando-as.

A aproximação da arte à vida cotidiana tornou-se o objetivo de muitos artistas no século XX, assim como a ampliação do conceito de Arte. Nesse contexto,

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Na arte contemporânea são inúmeros os cruzamentos que criam novos sentidos entre linguagens, procedimentos e processos criativos, relações espaço-temporais, formas, suportes, objetos e elementos diversos constituintes das obras, e até mesmo entre os processos de instauração das mesmas. [...] Esses cruzamentos tensos são os que constituem as mestiçagens nos processos artísticos atuais. (CATTANI, 2007, p. 11).

A ideia de mestiçagem ajuda a compreender a estética presente na arte produzida nos dias atuais. Entretanto, sabemos que, embora esta tenha se voltado para a vida e para a cotidianeidade, as pessoas não estão preparadas para dialogar com as suas formas contemporâneas – não raro, vemos a interrogação, em tom de espanto: Isto é arte?

A explicação de tal estranhamento talvez se encontre no que Duarte Jr. (2001) denomina de crise da modernidade, de um dado modo de conhecer (e se relacionar com) o mundo, característico dos tempos modernos. Diversos autores vêm questionando o tipo de conhecimento que se edificou na modernidade, pautado na constituição da razão instrumental, que envolve a matematização do mundo (e a maior confiabilidade em descrições quantitativas que qualitativas) e a fragmentação (bem representada pela dicotomia cartesiana, que separa corpo e mente e estabelece a prioridade da segunda sobre a primeira). O que importa na modernidade é conhecer para dominar a natureza e obter mais lucros e vantagens. Os avanços científicos e tecnológicos podem ser, por um lado, responsáveis por um importante desenvolvimento na História humana, mas, por outro lado, acarretaram muitos problemas. Assistimos à aplicação do conhecimento científico e tecnológico na destruição do ser humano através das guerras. Além disso, dia a dia, a destruição do planeta e os problemas sociais vêm se agravando. O corpo, reeducado numa lógica produtivista e fragmentado pela ciência, traz desafios que interpelam o modo de intervir da medicina e da psicologia.

Frente a tal realidade, Duarte Jr. (2001) propõe a identificação

da crise da modernidade – caracterizada pela visão parcializada que

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temos do mundo e da vida – com a crise desse tipo de conhecimento que a engendrou e a sustentou, em detrimento de outros tipos de saberes, em especial o saber sensível. Para o autor,

O exponencial desenvolvimento tecnológico a que estamos assistindo vem se fazendo acompanhar de profundas regressões nos planos social e cultural, com um perceptível embrutecimento das formas sensíveis de o ser humano se relacionar com a vida (p. 70).

A crítica ao modo como o mundo atual desestimula o refinamento dos sentidos humanos e promove sua deseducação mereceu a atenção também de outros autores. Assim,

voltamos à questão: Qual é o papel da arte nos processos educativos?

Conforme algumas pesquisas na área, é possível verificar que diferentes concepções de ensino de arte não estão limitadas aos períodos históricos em que surgiram. Assim, nos dias atuais, convivem diferentes concepções que surgiram como tendências em momentos anteriores.

Na realidade educacional brasileira, conforme Silva e Araújo (2007), estão presentes distintas concepções de ensino de arte: como técnica (na tendência pré-modernista), que vem se manifestando através do ensino dos elementos da linguagem visual, de forma descontextualizada, do ensino do desenho geométrico, entre outros; como expressão (na tendência modernista) – baseada no desenvolvimento da livre expressão; como atividade (também como tendência modernista), desenvolvendo práticas e procedimentos; e a concepção de ensino da arte como conhecimento (na tendência pós-modernista) – enquanto construção social, histórica e cultural –, compreendida como importante por si mesma, e não como instrumento para fins de outra natureza.

Com um olhar voltado às práticas na educação infantil, Cunha (2008) identificou que o ensino de arte na educação infantil ainda está baseado em concepções expressivistas e pragmáticas. Logo, as aulas reproduzem, respectivamente, a visão de que as crianças são portadoras

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inatas de criatividade e inventividade (concepção expressivista) ou de que as atividades em artes deveriam desenvolver habilidades visando o controle visual e manual para preparar para a escrita (concepção pragmática). Tal constatação nos dá a dimensão de como se dão os primeiros contatos das crianças com a arte, promovidos pela escola. Duarte Jr. faz parte de um grupo de pesquisadores que vêm apresentando um pensamento fluído em relação ao papel da arte na educação. Desenvolver e refinar os sentidos, eis a tarefa, tanto mais urgente quanto mais o mundo mergulha numa crise sem precedentes na história da humanidade (2001, p. 14). Nesse sentido, o autor insiste na necessidade atual de se dar maior atenção a educação do sensível, a uma educação do sentimento que se pode denominar educação estética (DUARTE JR., 2001). Esta não seria apenas tarefa da educação em arte, embora a educação do sensível não possa prescindir da arte.

O sentido de educação estética, para Duarte Jr. (2001), remete ao retorno à raiz grega da palavra – aisthesis, indicando a primordial capacidade do ser humano de sentir a si próprio e ao mundo num todo integrado (p. 12). Parafraseando Merleau-Ponty, o autor fala num retorno às coisas mesmas (p. 13), que pressupõe dedicar-se ao desenvolvimento e refinamento de nossos sentidos, que nos colocam face a face com os estímulos do mundo (p. 13). Contribuindo para a compreensão de estética, Meira (2003) refere que a estética tem como consciência e reflexão o universo que chega até nós pelos sentidos, sentimentos, linguagem afetiva, o que chega pelo mundo histórico, pessoal e radical, em termos de vida (p. 24).

Desse modo, uma experiência estética pode ser considerada aquilo que

[...] coloca a cognição em permanente desconstrução e reconstrução, pela vulnerabilidade aos acontecimentos, estados de espírito, relações com a cultura, saberes múltiplos vindos do corpo, do ambiente, da memória e da ficção. (MEIRA, 2003, p. 32).

Reflexões sobre o ensino da arte que dialogam com as ideias de Duarte Jr. e Meira orientaram a concepção de educação em arte que fundamentou uma proposta de investigação, realizada em 2008, com um grupo de 8 jovens, denominada “A Arte de Intervir no Espaço Urbano:

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educação do sensível e educação política de jovens em Novo Hamburgo – RS”. Essa

investigação buscou responder à questão seguinte: Como uma experiência expressiva de intervenção urbana, construída dentro de um processo formativo em arte, pode contribuir com a educação política de jovens em Novo Hamburgo-RS? Para tanto, foi desenvolvida uma experiência de formação situada na interface dos campos do ensino da arte e da educação política, analisando o processo de problematização de noções sociopolíticas partilhadas pelos jovens ao longo do processo. A pesquisa situou a importância de ambas no processo formativo juvenil, não elegendo a prioridade de uma sobre a outra.

Os participantes da investigação eram jovens integrantes do projeto Vencer-Comércio, um projeto de formação para o trabalho com o qual essa pesquisa se articulou por meio de uma oficina semanal. Embora 11 jovens tenham concluído o projeto, nessa pesquisa trabalhamos com 8 jovens, com idade entre 15 e 17 anos, considerando o critério de participação do início ao término do processo de 5 meses, na oficina denominada “Arte, Intervenção e Cidadania”. Participaram do estudo 5 jovens do sexo masculino e 3 jovens do sexo feminino. O projeto Vencer-Comércio é uma iniciativa da Fundação Semear, que se realiza desde 2004, no Centro de Vivência Redentora.

Através das oficinas e do convite à construção de uma Intervenção Urbana, buscou-se provocar o olhar sensível sobre o entorno e o cotidiano vivenciado pelos jovens, através dos sentidos – tudo o que está à sua volta, mas, muitas vezes, não é percebido devido à anestesia em que estamos submersos, na atualidade. A intervenção formativa dessa pesquisa buscou a educação do sensível a partir de provocações ao exercício de leitura de imagens e percepção do contexto que convidem à experiência estética dos educandos. Segundo Barilli (apud MEIRA, 2003), uma experiência estética envolve as vivências e as transformações sensíveis e cognitivas que um sujeito elabora a partir dessas vivências (p. 32). A ênfase na leitura de imagens e percepção de contexto, de forma relacionada, nos faz retornar ao princípio de Freire (1984) sobre a leitura da palavra como leitura de mundo: [...] (o ato de ler) não se esgota na decodificação pura da palavra escrita ou da linguagem escrita, mas se antecipa e se alonga na inteligência do mundo. A leitura do mundo precede a leitura da palavra, daí que a posterior leitura desta não possa prescindir da continuidade da leitura

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daquele. Linguagem e realidade se prendem dinamicamente. A compreensão do texto a ser alcançada por sua leitura crítica implica a percepção das relações entre o texto e o contexto. (p. 11-12).

No caso do estudo descrito, a mesma perspectiva foi assumida em relação à leitura de imagem. Ao propor a leitura de imagens contextualizada, dialogamos com a compreensão em Freire (1986) de ensino situado.

O fazer expressivo, no sentido assumido na intervenção formativa junto aos jovens, voltou-se para a ideia de elaboração de formas e de linguagens expressivas, que representassem as relações singulares dos jovens com o mundo, a partir do seu entorno e a partir das percepções do presente partilhadas no coletivo. Isso implica uma experiência estética que se comunica com uma perspectiva proposta por Maffesoli (1995): a compreensão da palavra estética em seu sentido mais amplo, o da empatia, do desejo comunitário, da emoção ou da vibração comum (p. 11). Uma Intervenção Urbana no Meio d(O Caminho) Provocados a pensar criticamente sobre seu entorno, a partir de diferentes instrumentos de formação e pesquisa, bem como, por meio de um fazer-expressivo-pensante, problematizado, e de produções expressivas coletivas, os jovens aceitaram o desafio de realizar uma Intervenção Urbana na cidade de Novo Hamburgo-RS, em 2008. A culminância do processo formativo, com a experiência de realizar uma intervenção urbana na cidade, era uma proposta, um convite, mas não uma obrigatoriedade. Fazia parte do próprio processo, observar de que modo o grupo lidaria com a questão, se optariam por propor projetos de intervenção e não realizá-lo ou se sugeririam outras formas de fechamento do processo. Após aceitarem o desafio, uma visita do grupo de jovens ao centro da cidade, bem como a fruição de vídeos de intervenções, isso colaborou na construção da intervenção pelo grupo, levando em conta que intervir é interagir, causar reações diretas ou indiretas, em síntese, é tornar uma obra inter-relacional com o seu meio, por mais complexo que seja (BARJA, 2006). O grupo optou pela questão ambiental como mote para a construção do projeto expressivo. A ideia assumida pelo grupo

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focalizou a questão do lixo, pensando-a em termos do seu tratamento na cidade, pensando nos hábitos de quem percorre apressadamente as ruas do centro, entre outros. Uma aproximação com a temática do lixo foi feita com um olhar especial para dados da cidade, a partir de reportagens e de uma atividade proposta pelo grupo, em formato de gincana.

A Intervenção Urbana, que recebeu do grupo o título “O Caminho”, foi realizada no 27º encontro da oficina. O grupo atribuiu esse título em face da proposta de pegadas que sugeriam um caminho até os tonéis que são comumente usados para armazenagem de lixo. Ocorre, contudo, que, ao se aproximarem dos tonéis, as pegadas se separam, levando a um ou outro tonel. Olhando para o interior deles, o espectador encontraria ou uma imersão em imagens que remetem a um ambiente limpo e bem cuidado ou uma imersão em imagens de um ambiente adoecido. Tal imersão era possível pelos espelhos colados na base interna dos tonéis e pelas frases que se encontram dentro de um e de outro: Onde você quer viver? (dentro do ambiente adoecido) e Separe o Lixo (dentro do ambiente sadio).

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O Caminho (Intervenção Urbana) – Imagens diversas (com a

autorização dos sujeitos)

A Dimensão Política e a Dimensão Estética nas Experiências Expressivas Juvenis e a Educação do Sensível

Quem diz olhar diz, implicitamente, tanto

inteligência quanto sentimento. (BOSI)

O mundo chega até nós através dos sentidos. A primordial

capacidade do ser humano de sentir a si próprio e ao mundo num todo integrado constitui um saber primeiro que foi sistematicamente preterido em favor do conhecimento intelectivo. Estamos, na atualidade, submersos numa anestesia. Esse é o sentido de nossa crise, segundo Duarte Jr. (2001).

No caso de uma pessoa mais sensível aos signos da arte, estará ela mais sensível aos signos do mundo?

Ao analisar os dados da pesquisa “A Arte de Intervir no Espaço Urbano: educação do sensível e educação política de jovens em Novo Hamburgo – RS”, a busca por entender o que faz os jovens ressignificarem suas noções sociopolíticas dentro das vivências nas

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oficinas de arte apontou que as problematizações das compreensões iniciais, expressadas pelos jovens em uma entrevista, foram mediadas pela produção expressiva que pensa o cotidiano; pela tomada de decisões do coletivo na produção expressiva coletiva; pelos atravessamentos da atualidade trazidos para o espaço da oficina; pela leitura de imagens que fazem pensar o cotidiano; pela apropriação de informações e pelo sentido da produção expressiva construída no coletivo.

Para ilustrar um processo de problematização durante os trabalhos em oficina que visavam à construção de olhares sobre a cidade, podemos referir que, ao desenharem mapas afetivos, criando uma relação cartográfica entre o lugar de que mais gostam e o de que menos gostam na cidade, a escola ganhou destaque entre os indicados como lugar de que menos gostam. Ao ser questionado sobre o motivo de não gostar da escola, o jovem Cristian respondeu que os professores são chatos e as aulas também, abrindo caminho a outras interações. Na fala dos jovens, foi reafirmado um saldo negativo à escola, apontada como desinteressante e com pouca possibilidade de participação dos alunos nas decisões. Na maioria das vezes a gente não decide nada. A gente só decide coisas sem importância” [...]. Nem nos grêmios estudantis [...]. Na minha escola o grêmio funciona mal e não tem poder sobre coisas importantes [...] em muitas escolas nem existe grêmio (Andreia).

Os jovens foram questionados se entendiam estar falando sobre democracia ao discutirem o seu poder de decisão na escola e defenderem que o mesmo deveria estar nas mãos dos estudantes. Após responderem positivamente, foram questionados sobre quem são os responsáveis pela inexistência de uma escola mais democrática. O grupo dividiu-se em torno de duas posições: para uns, a responsabilidade é atribuída exclusivamente à direção; para outros, a responsabilidade é atribuída à direção e aos professores. Apenas uma jovem disse: Os alunos são muito responsáveis também, porque a maioria não se interessa em participar de tudo que seja sério (Débora).

Esse exemplo é trazido aqui, por ser possível, através dele, ilustrar um processo de problematização da noção de democracia, pois, inicialmente, em entrevista sobre noções sociopolíticas, os jovens demonstraram uma visão preponderantemente liberal em relação ao

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termo. Na visão liberal, a ênfase está na proteção da vida privada e dos direitos individuais. Consoante com essa visão está a promoção de uma democracia representativa. A dimensão de participação relacionada à democracia ganha espaço na discussão sobre a produção expressiva que fez pensar o cotidiano escolar, assim como por outras situações apontadas na pesquisa, permitindo afirmar que ocorreu um trânsito pelos pressupostos da democracia participativa, promovida pelo republicanismo.

Um exercício de leitura de imagens, realizado com os jovens a partir da observação das imagens de intervenções de Leandro Selister, nas 17 estações e em vagões do metrô de superfície Trensurb (projeto intitulado “Cotidiano”), desencadeou uma reflexão, entre os jovens, sobre a percepção das pessoas sobre suas ações – sobre o que fazem e o que deixam de fazer, sem perceber.

Cotidiano (SELISTER, 2002)

A reflexão viabilizou um paralelo com a ação do cidadão. A

baixa participação das pessoas foi evidenciada. Na discussão dos jovens, palavras como dizer, opinião, ideias e decisão fizeram emergir uma concepção de cidadania vinculada a ter voz em campo de debate, de discussão e de decisão. O diálogo reforçou a ideia de cidadania enquanto exercício de participação e, naquele momento, as falas se desacomodaram da concepção que situava a cidadania refletida prioritariamente em ações de colaboração comunitária, expressada na entrevista inicial. Às vezes não adianta dizer nada, não vai ser considerado (Cristian). [...] Mas tem gente que não diz nada e quer que sua opinião vença. Daí é impossível (Débora).

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Fica evidenciada a leitura de imagens que fazem pensar o cotidiano como um canal que contribui na ressignificação de compreensões sociopolíticas.

Para visualizarmos uma terceira situação, podemos tomar um exemplo de problematização da noção de participação partilhada pelos jovens. A entrevista inicial sobre noções sociopolíticas questionou: – O que entendo por participação? Diante da interrogação, os jovens se dividiram entre dois grupos: um demonstrou dificuldade diante do termo, situando-o numa dimensão ampla em que participação é interpretada como tudo e qualquer coisa, e atrelada a uma noção assistencialista. O segundo grupo apresentou proximidades com a corrente comunitarista. Conforme essa corrente de pensamento, os valores da solidariedade, da reciprocidade e os laços comunitários prevalecerão, naturalmente, sobre as leis do mercado e a lógica da política.

No encontro seguinte à realização da Intervenção Urbana, um momento de avaliação realizado com o grupo possibilitou observar o sentido da produção expressiva construída no coletivo, produzido pelos jovens. Como avaliação, foi proposto ao grupo pensar a experiência vivenciada no dia da intervenção, a partir das provocações: o que senti e o que percebi na realização da Intervenção Urbana? O que senti e o que percebi nas reações que o trabalho causou nos espectadores? O que poderia ter sido diferente?

A experiência inusitada, a diversidade de níveis de aproximação e distanciamento que as pessoas se permitiram, bem como o estranhamento ou indiferença em relação ao trabalho realizado, além da satisfatória colaboração e responsabilidade do grupo, foram aspectos destacados pelos jovens em suas falas.

Sobre o que os jovens avaliaram que poderia ter sido diferente, a seguinte fala despertou um debate: Se nas oficinas todos estivessem sempre juntos nas horas que a gente estava planejando, como aconteceu no dia da intervenção, poderíamos ter tido mais tempo de resolver um problema que só vimos no final (Débora).

A partir da avaliação do que poderia ter sido diferente, alguns jovens reconheceram a importância do planejamento e, por consequência, dos momentos de decisão no coletivo. Isso é um grande desafio no trabalho com os jovens, pois, muitas vezes, eles abrem mão dos processos participativos para atenderem a seus desejos mais imediatistas. Ao relacionarem a experiência expressiva no coletivo com

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suas noções de participação, alguns jovens demonstraram transportar o sentido daquela para uma compreensão mais politizada de participação. Na elaboração das respostas à entrevista final sobre concepções sociopolíticas, ao tentarem redefinir o termo participação, os jovens apropriaram-se de elementos que surgiram na problematização da experiência na oficina. Participação é se envolver num projeto ou atividade, participar dando opiniões e ficar no projeto até o fim, mesmo porque tu tem que se comprometer com o projeto (Andreia). Quando você participa de alguma coisa, como, por exemplo, a intervenção. Quando várias pessoas se juntam para realizar uma ação, ou quando você entra para um grupo que já exista (João). É ser uma pessoa ativa. Acho que participação também tem a ver com fazer política. Que, como a gente estava falando, não é só coisa de político. Quando a gente participa de um grupo que defende um interesse, a gente está ajudando a construir uma mudança que pode afetar muita gente (Débora).

Em síntese, foi possível analisar que conviviam diferentes orientações – liberal, comunitarista e republicana – nas noções sociopolíticas juvenis. Durante o processo, houve um trânsito entre essas correntes do pensamento político, com um direcionamento maior às bases do republicanismo e aos pressupostos democráticos participativos.

A existência dos trânsitos entre modos de compreender enquanto desacomodação necessária é o que procuro evidenciar, e não um “lugar” de chegada dos jovens em termos de concepções, pois os pontos de chegada são também pontos de partida. Para onde os jovens irão a partir dali? Retornarão ao ponto de partida inicial? Encontrarão novos pontos? São muitas as possibilidades.

O jovem, que vivencia com impacto as crises do mundo atual, atrai expectativas, enquanto busca o modo de lidar com suas aflições e novas formas de estar no mundo. Os processos educativos que trabalham com esse segmento necessitam despir-se de modos fechados de enxergar a juventude e voltar o olhar para o seu modo de vivenciarem o período juvenil, construindo com eles possibilidades que colaborem na construção da inteligibilidade do mundo e que ressignifiquem sua participação sociopolítica enquanto atribuem novo significado aos próprios espaços formativos.

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A dimensão política e a dimensão estética nas experiências expressivas juvenis são aspectos potencialmente transformadores da relação juventude e espaços de educação (escolares ou não escolares). A arte, e seu ensino como um valor em si, tem um papel importante na educação no que diz respeito a um horizonte que a educação como um todo deveria assumir, conforme as palavras de Duarte Jr. (2001): Desenvolver e refinar os sentidos (p.21). Dar maior atenção à educação dos sentidos pode significar novas leituras sobre o mundo e a construção de outros modos de nele estar e sobre ele agir. Referências

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AÇÕES CULTURAIS DE JUVENTUDE EM PROJETOS DE

DESENVOLVIMENTO RURAL Eliane Brenneisen

A tarefa primeira da sociologia é, talvez, a de reconstituir a totalidade a partir da qual se pode descobrir a unidade entre a consciência subjetiva que o indivíduo tem do sistema social e a estrutura objetiva desse sistema. (Pierre Bourdieu).

Introdução

Raymond Williams (1989), em seu clássico estudo “O Campo e

a Cidade na História e na Literatura”, demonstra que certas imagens da vida campestre remontam à escrita de Hesíodo, mais precisamente referindo-se à obra poética “Os Trabalhos e os Dias”. É somente seis séculos após essa obra – século III a.C. – que a vida campestre recebe ênfase redobrada a partir da escrita dos poetas bucólicos gregos como Teócrito, seguidas de Virgílio, os quais descreviam o cotidiano laboral e as condições de vida do homem do campo de suas respectivas épocas. Essas condições de vida apresentavam-se ameaçadas pelas situações de guerra, de confiscos de suas terras e a consequente migração em busca de novos meios de vida. Nas descrições desses poetas, e de outros seus contemporâneos, ao mesmo tempo em que se lamentava uma situação incerta, também, contudo, se faziam celebrações de um modo de vida de uma perspectiva idealizada, quando evocavam o campo como lugar de refúgio, de tranquilidade e de abundância. Sendo assim, proliferam, nesses poemas, alguns de autoria desconhecida, imagens míticas e poéticas da vida do campo, contrastando com a vida nas cidades.

A compreensão das representações sociais sobre a cidade e o campo, mesmo nos dias de hoje, passa por essas construções formuladas historicamente, cujas raízes remontam aos tempos referidos, tendo sido, contudo, atualizadas, respondendo a uma dinâmica própria do desenvolvimento histórico. Talvez o mais correto

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seja dizer que certas imagens estabelecem uma relação de coexistência com os processos de transformação inerentes ao desenvolvimento histórico (WILLIAMS, 1989, p. 389). Se, por um lado, foram construídas, historicamente, imagens idílicas sobre o campo, como lugar de tranquilidade e de sossego, em contraposição a elas formaram-se imagens sobre a cidade como lugar de excesso de barulho e de insegurança.

Aspectos como esses, entre outros, puderam ser observados em pesquisa realizada com jovens moradores de uma comunidade rural participantes do projeto de desenvolvimento rural sustentável denominado “Vida na Roça”. A inserção dos jovens nesse projeto – cuja dimensão se estende para além dos aspectos aqui tratadosi – deu-se, principalmente, por meio da formação de um grupo de teatro político-educativo. Esse grupo foi formado a partir da percepção da necessidade, por parte dos agentes do próprio projeto, de criar oportunidades econômicas e, também, de oferecer, a esses jovens, oportunidades culturais e de lazer, visando a sua permanência no campo e a própria reprodução da agricultura familiar.

Por sua vez, as reflexões feitas pelo presente estudo tomam, como referência, somente dados colhidos junto ao grupo de teatro e têm como fonte 10 entrevistas realizadas com jovens, de ambos os sexos, participantes do grupo de teatro da comunidade Jacutinga, cuja faixa etária compreende dos 14 aos 24 anosii. As entrevistas, realizadas de março a abril de 2006, tiveram o objetivo de colher dados qualitativos e foram pautadas por um roteiro semiaberto. Foram, ainda, feitas duas outras entrevistas: a primeira realizada com um agente da Associação de Serviço e Orientação Rural (Assesoar) e a segunda, com o coordenador do grupo de teatro.

As entrevistas realizadas tiveram por objetivo colher aqueles aspectos mais subjetivos os quais, por constituírem o campo das ideias, do simbólico e das representações sociais, parecem melhor acenar para a compreensão sociológica dos processos sociais pertinentes ao objeto deste estudo. Desta forma, a metodologia utilizada, considerando sempre o contexto em que as falas ocorrem, associada à interpretação sociológica, constitui os aspectos basilares desse estudo, sem o que não seria possível açambarcar a unidade entre as “estruturas objetivas” e a “consciência subjetiva”, condição em que os sujeitos sociais se apercebem e vivenciam o mundo que os cerca.

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O projeto “Vida na Roça” no horizonte de vida dos jovens rurais. O projeto “Vida na Roça” é desenvolvido desde o ano de 1996,

em uma comunidade rural situada no município de Francisco Beltrão, sudoeste do Estado do Paraná e foi criado por iniciativa da organização não governamental denominada Associação de Serviço e Orientação Rural (Assesoar), localizada no mesmo município. Objetivando selar um trabalho de desenvolvimento rural sustentável na comunidade rural Jacutinga, esse projeto propôs o estabelecimento de parcerias, inicialmente com o sindicato de trabalhadores rurais e, depois, com uma instituição de ensino superior municipal (hoje integrada à Universidade Estadual do Oeste do Paraná – Unioeste); posteriormente, outras organizações civis e públicas foram incorporadas ao projeto, como a Empresa Brasileira de Extensão Rural e a Prefeitura Municipal de Francisco Beltrão.

A comunidade Jacutinga situa-se a 35 km da sede do município de Francisco Beltrão e é composta por 133 famílias de agricultores familiares. Esse traço da comunidade não é uma exceção, pois toda a região, onde está localizado o município, caracteriza-se pela predominância da agricultura familiar.iii A comunidade é composta por agricultores que migraram para a região oeste do Paraná na década de 1950, provenientes do oeste catarinense, mais precisamente de dois municípios daquela região; possuem predominantemente ascendência alemã e professam a religião católica. Suas histórias de vida são comuns e a comunidade surpreende pelo alto grau de coesão social e estabelecimento de laços de parentesco entre seus membros, justamente por serem oriundos de uma mesma região, e essa foi uma das razões apresentadas pela Assesoar para desenvolver o projeto naquela localidade. Ou seja, a comunidade já possuía os pré-requisitos necessários para o desenvolvimento do projeto que se pretendia inovador, por conta de suas premissas, concepção e abrangência.

A comunidade em que se desenvolve o referido projeto possui um aglomerado de residências no qual habitam cerca de 30 famílias, denominado Vila, onde se encontram instalados alguns equipamentos sociais, como uma escola de ensino básico e fundamental (Escola Municipal “Parigot de Souza”), uma igreja católica, um campo de

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futebol, um posto de saúde, um posto telefônico e pequenos estabelecimentos comerciais, como bares, mercearias e farmácia. Os moradores da Vila são predominantemente agricultores familiares que preferem morar naquela localidade que nas suas próprias propriedades e pequenos comerciantes, que, via de regra, também são agricultores familiares. Entre os moradores da Vila, também encontramos aposentados e funcionários públicos.iv Além da Vila, que constitui uma região – considerando tanto seus moradores quanto os dos arredores –, a comunidade está subdividida, para fins organizacionais, em outras quatro delimitações denominadas linhas: Korb, Cemitério, Macaco e Gruta. Encontram-se ainda formalmente organizadas nessa comunidade a Associação de Pais e Mestres, a Associação de Moradores da Comunidade Jacutinga, a Sociedade Esportiva Guarani e o Conselho Pastoral da Igreja de Santo Alberto Magno.

Desde a sua formulação inicial, o projeto “Vida na Roça”, desenvolvido na comunidade, fora idealizado tendo por referência as quatro dimensões fundamentais do desenvolvimento rural sustentável: econômica, ambiental, política e social. A partir dessas dimensões, por sua vez, à medida que ocorria a adesão de parceiros ao projeto, foram definidas linhas de ação no campo econômico-produtivo-ambiental, de saúde e saneamento, no campo educacional e no campo cultural e de lazer. O referido projeto tinha por prerrogativa o desenvolvimento de ações multidimensionais, as quais eram realizadas com a participação da população nos assuntos que diziam respeito às suas vidas. É, no entanto, importante ressaltar a existência de dificuldades interpostas para que as políticas participativas que visam à emancipação social sejam, de fato, realizadas, pelo menos, na sua concretude, tendo em vista as dificuldades que lhe são inerentes associadas às relações autoritárias e clientelistas estabelecidas historicamente na sociedade brasileira.

Em vista disso, poder-se-ia, então, afirmar que aqueles agentes se encontravam referenciados por ideais participativos e de emancipação social, quando – percebendo a necessidade de oferecer, principalmente aos jovens, oportunidades culturais e de lazer –, criam propostas de ações compatíveis a essas demandas. Tais ações – ou antes delas, a própria ideia do projeto – nos campos cultural e de lazer, em si, estavam relacionadas à constatação de que estaria ocorrendo o abandono das áreas rurais, principalmente por parte dos jovens, rumo

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às cidades, em busca de outros meios de vida. Os jovens entrevistados demonstraram conhecer as razões que subjaziam à formulação do projeto, fato que pode ser observado nos seus depoimentos: “É que muita gente estava saindo daqui, muitos achavam que não tinha futuro aqui, as pessoas tinham pouca terra. Então eles mostravam pra gente que era possível tirar um bom dinheiro mesmo de um pedaço pequeno de terra” (G., 17 anos). Os agentes responsáveis, principalmente os vinculados à Associação de Serviço e Orientação Rural (Assesoar), avaliavam que as oportunidades econômicas eram fundamentais à permanência do jovem no campo, e, por esse motivo, ações nesse sentido foram estimuladas, como iniciativas no campo dos processos de agroindustrialização, mas, por si só, como já foi mencionado, consideravam-nas parciais. Pelo menos três aspectos foram, inicialmente, considerados fundamentais para que os filhos permanecessem nas suas respectivas propriedades ao lado dos pais: o acesso à educação específica para o homem do campo, o desenvolvimento de políticas culturais de juventude e a criação de oportunidades de lazer.

Os jovens se apercebiam, também, do empenho dos agentes, para que permanecessem no campo junto aos seus pais: “Eles pensam que o jovem terminando o segundo grau vão tudo para a cidade, então eles tão fazendo de tudo para que isso não aconteça. A gente percebe isso... Eles querem mostrar para a gente que a vida no campo pode ser boa também” (D., 18 anos). E foi procurando contemplar os campos específicos da cultura e do lazer, os quais, como se sabe, encontram-se relacionados – que, no ano de 2000, objetivando oferecer aos jovens oportunidades dessa natureza, formou-se, na comunidade, o referido grupo de teatro educativo.

Os jovens participantes do grupo de teatro eram moradores da comunidade e haviam cursado o ensino fundamental na Escola Municipal “Parigot de Souza”, localizada na comunidade, e à época da pesquisa cursavam o ensino médio nas escolas estaduais do município de Francisco Beltrão. Seguiam para essas escolas no período noturno; o translado era feito por ônibus da prefeitura. Durante o dia colaboravam com seus pais nas suas atividades laborais: aqueles que possuíam propriedades familiares colaboravam com seus pais nos afazeres da lavoura e do entorno da moradia, e aqueles cujos pais possuíam pequenos comércios na Vila, como farmácia e a bodega, colaboravam

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com os trabalhos exigidos pelo empreendimento. Por sinal, a bodega era algo visto como prejudicial à juventude, não aos adultos, mas aos jovens, que, à maneira dos jovens urbanos de hoje, encostavam seus carros cuja potência do som indicava alguns decibéis além do aceitável pelos adultos e passavam a ouvir músicas enquanto tomavam alguma bebida. Percebendo que era preciso encontrar divertimentos mais saudáveis para os jovens, é que se formou o referido grupo de teatro. A ocupação lúdica, cultural e de lazer oferecida não atingia, no entanto, a todos os jovens, mas aproximadamente a 15 jovens no grupo de teatro e 15 jovens em outro grupo formado de dança folclórica alemã, criado quase paralelamente ao grupo de teatro. Havia o que chamavam de rotatividade em ambos os grupos, alguns saíam, outros entravam, ou seja, os integrantes, tanto de um grupo quanto de outro, não permaneciam os mesmos desde o início das atividades. Fora isso, esses jovens possuíam restritas oportunidades de lazer, resumindo-se aos bailes e às festas ocasionais, e à frequência à igreja local, ocasião em que tanto se reafirmavam suas convicções religiosas, como também se promoviam encontros propícios ao exercício da sociabilidadev. Entre essas festas havia as festas religiosas, como quermesses e celebrações de dias santos específicos, como, por exemplo, o do dia do padroeiro da igreja local.

No que se refere ao grupo de teatro, objeto específico deste estudo, a pesquisa revelou que, para a formação do grupo, foi criada, inicialmente, uma oficina voltada à aquisição de conhecimentos específicos, seguida de sucessivas reuniões, as quais ocorriam geralmente aos sábados, uma vez que durante a semana estavam envolvidos com as atividades estudantis e de trabalho. Os jovens da comunidade estudada, referenciados pelas mencionadas metodologias participativas, foram envolvidos desde o processo de criação e de redação da peça a ser encenada à escolha do figurino. A Assesoar designou – para coordenar o grupo – um agente, que se responsabilizaria pelos ensaios e pela condução das demais decisões, as quais, segundo nos informou, eram tomadas sempre em conjunto com os participantes. O objetivo da formação do grupo era o de levar os seus integrantes à reflexão, tanto no que se refere àqueles que atuariam nas peças, como àqueles que as assistiriam. E foi por isso que, desde o início, deu-se a opção pela criação e redação das peças pelo próprio grupo, o qual buscava, por meio do teatro, uma educação política. Tal

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opção vincula-se à recusa, por parte do grupo, de se limitarem a ser tão somente intérpretes do pensamento e da sensibilidade alheia. Não que essa recusa se desse em absoluto, pois havia um reconhecimento pelo valor estético e conteúdo social dessas peças, mas as mesmas eram consideradas distantes da realidade e dos objetivos pretendidos pelo grupo, além do fato de as mesmas impedirem algo também considerado educativo: o processo de criação. Independentemente, porém, de a peça ser ou não criada pelo próprio grupo, a encenação teatral, em si, sob o ponto de vista de Cardoso (1999), “[...] contribui para exercitar as potencialidades e o auto-conhecimento do indivíduo, possibilitando que este contribua para a manifestação coletiva, com respeito, criticidade e fortalecimento da identidade própria e cultural” (CARDOSO, 1999, p. 128). A autora citada considera ainda que a forma dramática acaba por refletir, através da arte, as necessidades sociais e ritualísticas da humanidade e que contribui não só para a expressão individual, mas também para a experiência coletiva. Isso, por si só, já demonstra a importância do teatro no processo de formação educacional, político e social dos sujeitos envolvidos.

A primeira peça redigida pelo grupo intitulava-se “Vida na Roça”, a qual ressaltava aspectos do próprio projeto e da qualidade de vida no campo e a segunda, “Água Viva”, abordando aspectos da natureza com um bem divino, portanto inalienável, ambas inseridas, assim, na perspectiva do teatro político-educativo.

À medida que o grupo formulava e ensaiava suas próprias peças teatraisvi, e com isso alcançava certo amadurecimento, passou a viajar para apresentações individuais ou em Mostras de Teatro Rural em outras localidades, tanto da própria região como em locais mais longínquos, como na capital do Estado. Essas viagens proporcionaram aos jovens a ampliação de seus horizontes de vida, uma vez que puderam, por meio delas, conhecer outras localidades rurais ou urbanas, como também estabelecer contatos com outros jovens que se encontravam nas mesmas faixas etárias que eles. Seus depoimentos são representativos das mudanças ocorridas nas suas vidas a partir da inserção no grupo de teatro e sempre mencionam as viagens como algo positivo “Eu fui convidado e fui entrando, já que a gente não saia muito... e o grupo de teatro... nós já fomos para um monte de lugar. A gente entrou para gente não ficar meio excluído, meio sem fazer nada. Com o grupo a gente viaja bastante” (L., 24 anos).

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Dos jovens entrevistados, três enfatizam contribuições como uma maior desenvoltura na maneira de se expressar em público: “Quando você participa do teatro, você consegue... perde um pouco a timidez, consegue falar um pouco melhor em público, mesmo que você erre, você não tem aquela insegurança. Se você erra, errou. Pra falar, antes eu não conseguia, tinha toda aquela barreira, medo de fala errado” (M., 17 anos). “Ah, mudou o meu conhecimento, né? Eu quase não conhecia nada. Se eu ia apresentar alguma coisa no colégio, eu morria de vergonha, agora eu fiquei mais solto” (E.; 18 anos). “Mudou minha autoestima e a forma de se expressar também” (D., 18 anos).

Outros depoimentos mencionam as mudanças positivas ocorridas e enfatizam o empenho dos agentes do projeto para que os jovens permaneçam no campo – um dos objetivos da formação do grupo de teatro – porém apontam também dificuldades para que isso ocorra: “Quando o projeto entrou assim na cultura, formou o grupo de teatro, o grupo de dança, deu uma diferença muito grande. A gente consegue assim segurar os jovens, porque tá difícil” (E., 17 anos). Esta mesma jovem – uma das líderes do grupo – deixa entrever uma postura ambígua, pois, ao mesmo tempo em que procura motivar os demais jovens desse grupo a permanecerem no campo junto aos pais, tem outros planos para si. Quando perguntada sobre seus planos para o futuro, responde: “Porque eu não penso em morar aqui pro resto da minha vida, digamos assim, né? Penso em sair, fazer faculdade, trabalhar, e aqui, não tem onde você trabalhar. [Aqui] você não tem um lugar assim onde você possa trabalhar, estudar, ter o seu. Eu não vou sempre depender da minha mãe, né? Eu tenho que ter o meu também. Então eu penso em sair e fazer a minha vida” (E., 17 anos). Percebendo certa contradição na própria fala, acrescenta: “Olha, assim se eu gostasse da roça, se eu gostasse de trabalhar na terra, eu até pensaria em ficar. Eu até tinha pensado em fazer agronomia, mesmo pra fazer assistência aqui para os outros, porque eles pegam pessoal de fora para dar assistência pra eles, né? Só que eu não... não... é uma coisa que não diz nada, eu não gosto, não sei por que, mas eu não gosto. Então eu penso em seguir...” (E., 17 anos).

O depoimento dessa jovem é, certamente, significativo em diversos aspectos, mas um deles chama a atenção: o desejo expresso de autonomia, de romper literalmente com o “cordão umbilical” da dependência dos pais, no caso, da dependência materna, quando diz “eu não vou sempre depender da minha mãe” e acrescenta “eu tenho que ter o meu também”. Esse desejo de autonomia, como se sabe, não é restrito ao jovem rural, mas inerente a essa etapa cronológica na qual se encontram

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os jovens de maneira geral, o que faz com que os mesmos acalentem o sonho de construir as suas próprias vidas, independente da dos seus pais. Helena Abramo (2005) demonstra, no mais amplo estudo realizado sobre juventude brasileira, que é nesse período pós-infância que os jovens se preparam para o exercício da cidadania, para participar dos regulamentos sociais referentes aos direitos, deveres e a tomadas de decisões, além da busca de meios para o próprio sustento. Embora considerando as similitudes, a autora alerta para o fato de que não se pode hoje falar de juventude no singular, mas juventudes, uma vez que esse conceito abriga situações muito específicas, como, por exemplo, as situações definidas pela classe social a qual pertence esse jovem (ABRAMO, 2005, p. 42-44).

O horizonte de vida dos jovens rurais no âmbito do projeto “Vida na Roça”

Não obstante os ganhos de diversas naturezas oportunizados

pelo grupo de teatro – na ampliação dos espaços de socialização, nas formas de expressão, de realização individual e coletiva, na descoberta das potencialidades humanas, na construção de identidades – observou-se que aqueles jovens – ao menos os que foram entrevistados – continuavam com a intenção de sair em busca de novas oportunidades de trabalho e de vida. O fato de terem tido a oportunidade de viajar com o grupo, de conhecer novos lugares e pessoas, fez também com que pudessem sonhar mais alto – para além dos espaços em que nasceram e foram criados. Sobretudo, reforçou neles a percepção de que lá fora existe um mundo a ser desvendado. Um depoimento de um jovem é representativo do que ora afirmamos quando vê até mesmo no teatro a possibilidade de uma profissão no futuro: “Já fomos para Curitiba apresentar nossa peça, estamos levando muito a sério, porque a gente viu que pode ser um futuro para nós mesmos. Eu penso em fazê psicologia, mas vai que numa dessas meu futuro seja de seguir o teatro ou qualquer coisa relacionada a isso!? A gente tá andando, tem o professor que vem dar aulas pra gente, temos um acompanhamento que é relacionado ao projeto” (G., 17 anos).

É importante, ainda, mencionar que a aproximação do mundo urbano não se dá tão somente por meio da formação do grupo de teatro na comunidade rural, mas é um estreitamento que já vem ocorrendo desde os anos 1970 com o desenvolvimento dos meios de

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transporte e comunicação. Na comunidade estudada, essa quebra de isolamento é facilitada especialmente pela proximidade com a cidade, cerca de 30 km; por um eficiente serviço de transporte ligando a comunidade à cidade e o acesso ao telefone (na comunidade existe um posto telefônico instalado). Esses fatores, somados, facilitam a incorporação de valores urbanos por parte da população do campo e também suscitam novas necessidades, tanto no campo do lazer, como no campo do consumo. Além, é claro, das novas possibilidades profissionais por meio do acesso a uma universidade, sonho de todos os jovens entrevistados, cujas carreiras almejadas – algumas não convencionais – eram psicologia, mecatrônica, turismo, hotelaria e veterinária.

Com essas observações não se quer dizer que a formação do grupo de teatro tenha motivado esses jovens a deixar o campo, mas tão somente que não os fez abandonar os planos e sonhos que já possuíam, os quais, por sua vez, foram formulados tendo em vista, além dos aspectos de ordem prática, aqueles de ordem mais subjetiva, relacionados às históricas representações sociais sobre o campo e a cidade. De outro modo, certamente há muitos aspectos positivos de ser componente de grupo de teatro, tanto que se percebe que o teatro permitiu, a esses jovens, que os vínculos com o lugar em que viviam fossem estreitados. Todos diziam gostar do lugar em que moravam, como se pode observar pelo depoimento a seguir: “Gosto de ficar no grupo de teatro, de ajudar na igreja, de ajudar na escola. Gosto da água, do ambiente, das frutas, da qualidade de vida” (M., 24 anos). Por apreciarem o lugar onde moravam, estabeleciam uma relação ambígua diante da opção por permanecer no campo ou sair em busca de novas oportunidades de vida. Era um sair e ficar ao mesmo tempo. Ou seja, planejavam sair em busca de outras oportunidades – ressaltam-se, oportunidades vinculadas a uma maior remuneração em termos monetários e vinculadas a um trabalho considerado menos penoso –, mas com a possibilidade de um dia retornar, e, embora esse retorno se apresentasse de maneira parcial, não demonstravam o desejo de retornar para viver tão somente do trabalho na terra: “Ah, eu gosto de morar aqui, mas a intenção é de... daqui mais uns anos, eu quero estudar, sair pra fora, ganhar dinheiro e depois voltar. Mas não tão já assim” (D., 18 anos).

Um outro jovem, apontando para aspectos positivos de se morar ali com os vínculos estabelecidos, expõe o fato de viverem em

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comunidade e de se conhecerem de longa data, após demonstrar a intenção de sair em busca de novas oportunidades de vida, assim se expressou: “Por mais que a gente saia, a gente sempre acaba voltando para cá. Aqui cada um conhece cada um desde pequeno, então é difícil abandonar um lugar assim” (S., 19 anos).

Observa-se que os laços estabelecidos com o lugar em que esses jovens vivem dizem respeito aos vínculos familiares, aos vínculos comunitários e ao fato de morarem em lugar “bom pra se viver”, como tantas vezes se expressaram. Nesse sentido, o projeto “Vida na Roça”, de uma maneira geral, reforçou os laços identitários dos moradores da comunidade e permitiu o reencontro dessa população com sua própria cultura. Sobretudo, reforçou neles o sentimento de pertencimento aos seus lugares de origem. Os jovens, especialmente por meio do grupo de teatro, das peças que encenavam, do envolvimento nas atividades do grupo, passaram a valorizar mais a vida no campo, considerando-a mais saudável. Como visto, continuavam, no entanto, vislumbrando um futuro longe dali, ou seja, permanecia uma tensão latente entre o seguir em frente, em busca de novas oportunidades de vida, ou o permanecer no campo, local que demonstravam apreciar. Sobre essas relações ambíguas vivenciadas por esses jovens, não somente pelos aspectos apontados, mas por essa situação de mobilidade campo-cidade, Maria José Carneiro (1998) apropriadamente assinala:

Essa situação de mobilidade material e simbólica seria responsável também por novas tensões e conflitos entre os diferentes níveis de realidade, o que seria característico da modernidade. Ao contrário da referência exclusiva a um único sistema cultural – atualizado pela organização social camponesa – definidor de uma identidade tradicional, esses jovens estariam vivenciando uma situação complexa, resultante da combinação singular de sistemas simbólicos particulares e universos culturais distintos, onde novas identidades estariam sendo elaboradas com interferência na formulação de projetos e trajetórias individuais. (CARNEIRO, 1998, p. 14).

Tal situação é verificada também quando demonstravam apreciar o lugar onde moravam, sem deixar, no entanto, de ressaltar os

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aspectos penosos de se viver no campo: “Vamos dizer assim: morar é bom, pra trabalhar não é tanto, né? Porque você trabalha na roça e ganha pouco, muito pouco e trabalha bastante” (L., 24 anos). E é justamente por isso que pensam em sair, “ganhar o mundo” e um dia voltar. Trata-se, porém, de um voltar, como já mencionado, apenas para desfrutar das coisas boas que o campo oferece, talvez se dedicando ao plantio para consumo de produtos saudáveis, fazendo do local um lugar tão somente de moradia, mas não dele prioritariamente ganhar o seu sustento.

A autora anteriormente citada assinala, ainda, que, ao estabelecer com a terra novas relações, há uma ruptura no universo de significações desses jovens, o que conduz à “[...] elaboração de novas identidades no meio rural não mais sustentadas exclusivamente na atividade agrícola.” Acrescenta que “A terra, deixando de ser meio de produção para se transformar em um bem de consumo, passa a ocupar outro lugar nas preocupações e nos projetos da juventude rural de origem agrícola” (CARNEIRO, 1998, p. 17). É importante ressaltar, no entanto, que a decisão de sair ou ficar no campo está ainda relacionada às representações sociais e às imagens que se criaram historicamente da vida no campo e da vida citadina.

Essas imagens, sobre a cidade e o campo, como visto, também apareciam nos depoimentos dos jovens quando eram indagados se apreciavam o lugar em que viviam. A esse respeito, dois deles assim se expressaram: “[...] aqui as pessoas são mais de confiança, todo mundo se conhece, é bom...” e “o lugar é calmo, não tem violência nenhuma, não tem roubo, nada. Fica tudo aberto pra dormir a noite, com a janela aberta” (E., 17 anos). Essas oposições incluem outras imagens, opostas entre si, como as que se referem ao trabalho no campo, realizado no sol a sol, o mais pesado e, por isso, mais penoso, e o trabalho realizado na cidade o mais leve e, por isso, menos laborioso: “Aqui é mais tranquilo, mais fácil que a vida na cidade. É mais sofrido, só que é mais fácil” (F., 17 anos). Essas respostas, bem como as anteriormente citadas, eram, no geral positivas; outras, no entanto, mais ponderadas, como a desse jovem demonstrando conceber o trabalho no campo como mais penoso. O depoimento transcrito a seguir é também representativo da referida relação ambígua que esses jovens demonstram estabelecer com os seus lugares de origem:

É bom e é ruim, durante a semana assim, nossa! Eu adoro morar aqui. É calmo, sossegado, tranquilo, faço (as coisas) se quero, se não quero, não faço. Durante a semana é bom, só que assim eu sou

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jovem, preciso sair, preciso me divertir. Daí assim, nesse lado, é um pouco ruim. Mas fora disso, nossa! Fora disso eu gosto de morar aqui (E., 17 anos).

O depoimento acima sinaliza aspectos positivos e negativos de

se morar no campo: o positivo ressaltando a tranquilidade do lugar e a autonomia de decisão daquele que administra seu próprio trabalho e, consequentemente, o seu horário; e o lado negativo, representado pela ausência de locais específicos para a realização do lazer no final de semana. O recorte sugere uma fala denotativa da percepção da vida na cidade em contraposição à do campo, ou seja, a cidade seria um local marcado pela ausência de tranquilidade, cujo trabalho é regido pelo horário e administrado por outrem, mas que, por compensação, oferece oportunidades de lazer não encontradas no campo.

Observou-se, pelas entrevistas realizadas, que a queixa pela insuficiência nas oportunidades de lazer partia principalmente das mulheres. Esses dados estão diretamente relacionados ao espaço reservado à mulher no meio rural, os quais são definidos a partir das relações de poder estabelecidas no campo e das assimetrias de gênero historicamente construídas, quando às mulheres é reservado o espaço privado da casa e seu entorno, enquanto que ao homem o espaço público, das negociações com bancos, da comercialização e do mundo da política. Por isso os jovens do sexo masculino não se ressentiam tanto da ausência de contato com o mundo externo, pois acompanhavam seus pais nos assuntos da esfera pública ou eles mesmos se encarregavam de afazeres dessa natureza. No que se refere especialmente às atividades de lazer, constatou-se, por meio das entrevistas, que esses tinham a liberdade – não concedida às mulheres – de sair no fim de semana para bailes e festas na cidade. Às mulheres cabia se contentarem com os bailes eventualmente organizados na própria comunidade. É importante ainda mencionar que as assimetrias de gênero se estendem aos padrões sucessórios no meio rural, pois são os filhos que geralmente herdam a propriedade familiar e não as mulheres.vii A elas têm sido reservado o acesso à propriedade por meio do casamento ou a busca de novos horizontes de vida por meio do estudoviii.

Mesmo diante desse quadro específico favorável aos agricultores do sexo masculino, na prática, o que os pesquisadores têm

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avaliado hoje é a possibilidade de, num futuro próximo, a ausência de um sucessor em muitas propriedades, dada à migração dos jovens rurais de ambos os sexos para a cidade: os homens seguindo para trabalhar como assalariados nas indústrias localizadas em polos industriais até mesmo de outros Estados (fato observado na comunidade estudada com a ocorrência de jovens de ambos os sexos se encaminhando para a cidade de Joinville, polo industrial do Estado de Santa Catarina) e as mulheres seguindo para trabalhos como empregadas domésticas, seja nos grandes polos ou nas cidades circunvizinhas à comunidade (SILVESTRO et alii, 2001). Esse fato torna-se relevante uma vez que, muito provavelmente, na ausência de sucessores, essas propriedades serão, num tempo relativamente curto, incorporadas, por meio da compra, às de médio e grande porte, como bem demonstram os pesquisadores em estudo mais abrangente sobre o tema na região oeste de Santa Catarina. Observam os pesquisadores que a migração por parte dos jovens rurais provocaria, nesses locais, a extinção de toda uma rede de sociabilidade previamente construída, bem como o desmonte dos equipamentos residenciais e sociais ali instalados para dar lugar a atividades agropecuárias que deles prescindem, como, por exemplo, a de gado de corte (SILVESTRO et alii, 2001, p. 20). Além disso, é muito provável, também, que esses jovens que abandonaram a propriedade de seus pais se encontrem em ocupações precárias nas cidades, fato que já temos constado, desperdiçando, como apropriadamente assinala José de Souza Martins, no prefácio do referido livro, todo um saber afeto ao campo, acumulado desde a mais tenra idade.

Não obstante as atividades desenvolvidas na comunidade, tanto as propriamente econômicas como aquelas voltadas ao campo cultural e de lazer, os agentes envolvidos no projeto “Vida na Roça”, sobretudo os vinculados à Assesoar, continuavam a demonstrar preocupação quanto à migração campo-cidade por parte dos jovens. Cientes de fatos dessa natureza – por já terem tido acesso a estudos que confirmavam esses fatos – esses agentes procuraram, em primeiro lugar, compreender esse complexo processo, para então vislumbrarem as possíveis alternativas por meio do desenvolvimento de ações que julgavam adequadas, como se pode observar pelo depoimento do agente da Assesoar entrevistado:

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Então o problema não está só na dimensão econômica. O problema tá nas oportunidades outras que a comunidade oferece e ai uma delas é o lazer. E tem outra ainda: por dentro da estrutura familiar, as famílias são por tradição autoritárias. São hierárquicas. Os jovens não têm voz, têm dificuldades e isso é muito... nas escolas comunitárias, no pós-médio, agora você vai ver que 80% dos jovens que têm uma idéia inovadora pra implementar têm um grande limite da autoridade paterna e isso é um grande nó para avançar o trabalho.

Certamente que as oportunidades econômicas são

fundamentais e o agente entrevistado, bem como as demais instituições envolvidas no projeto, demonstraram ciência disso, tanto é que as primeiras ações desenvolvidas na comunidade foram as afetas ao campo econômico-produtivo. A ênfase na sua fala talvez tenha sido no intuito de chamar a atenção para a necessidade de conscientizar, principalmente pela experiência reunida desde o início do projeto “Vida na Roça”, de que esse aspecto, embora fundamental, precisa estar vinculado a outras ações, como as culturais e de lazer já pressupostas na criação do grupo de teatro e dança. Sendo essas relevantes, porém insuficientes, é que esse agente aponta para mais um fator que dificulta a permanência dos jovens junto a seus antecessores: a relação hierárquica e autoritária estabelecida entre pais e filhos:

Por isso no “Vida na Roça” a gente começa a fazer aquela abordagem, que se transforma numa dimensão: a dimensão das relações interpessoais e intrafamiliares, as relações pais e filhos. Tanto é que a gente na escola tematiza as relações pais e filhos, porque a sociedade está atribuindo à escola a responsabilidade absoluta de educar os filhos e as famílias jogavam também para a escola e os pais não dão conta de seus filhos. Então o que está acontecendo? [...] Por isso que esse tema das relações começa a ganhar força devido a essa percepção. Porque mesmo que você tenha atividades produtivas, mesmo que você tenha atividades culturais no âmbito da comunidade, isso são avanços, mas tem o problema interno no âmbito das famílias.

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No que se refere a esse aspecto específico, ou seja, o das relações intrafamiliares, Anita Brumer (2001) realizou um estudo voltado à possibilidade de fixação do jovem no campo, especialmente verificando quais seriam as perspectivas de permanência desse jovem na própria propriedade familiar ou em outro estabelecimento. O trabalho foi focado na divisão do trabalho e na unidade produtiva considerando o sistema de produção ou o grau de diversificação, a renda das atividades agrícolas, as formas de comercialização e a organização do trabalho familiar. O ponto de partida inicial era o de que quanto maior incidência desses aspectos maior probabilidade de o jovem permanecer no campo. O estudo conclui que fatores como a adoção da divisão do trabalho no interior da propriedade familiar, atribuindo ao jovem maior autonomia, maior poder de decisão e, sobretudo, rendimento próprio, são fatores que contribuem para a permanência do jovem no campo. Essa relação não é, porém, automática; além disso, os dados apontam para a inexistência de um único fator causal ou explicativo.

No campo, as relações sociais encontram-se mais profundamente marcadas pela tradição, em vista disso, as decisões que dizem respeito ao patrimônio familiar e à família, ainda que se possam observar, em alguns casos, sensíveis alterações, são ainda culturalmente referenciadas pela autoridade paterna. É nesse sentido que os agentes, nesse projeto específico, buscam meios para que ocorram mudanças nas relações hierárquicas historicamente dadas no meio rural, as quais seriam obtidas por meio de um diálogo mais fecundo entre pais e filhos, visando com isso o estabelecimento de relações sociais mais democráticas no meio rural.

Pierre Bourdieu (2002), em meados dos anos 1960, realizou pesquisa na localidade de Bèarn, França, onde passou sua infância, constatando toda uma reestruturação de um modo de vida camponês, especialmente no que se refere ao sistema de trocas matrimoniais, em decorrência das modificações que ocorriam na sociedade global, a partir do advento dos processos de modernização desencadeados nos anos 1950. Tais processos apresentam semelhanças com o que tem ocorrido no contexto rural brasileiro dos anos recentes, em termos de processo sucessório.

Na França dos anos 1950/1960, os valores urbanos passam a exercer influência sobre as mulheres na busca de um parceiro, desencadeando assim o fenômeno celibatário no campo. Na França ao

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filho mais velho caberia a herança da terra; à mulher esta condição só ocorreria no caso de ausência de filhos do sexo masculino; e eram justamente os filhos primogênitos, herdeiros da propriedade de seus pais, que se encontravam alijados das trocas matrimoniais.

Os bailes, os quais aconteciam nos vilarejos circunvizinhos ou no bourg, constituíam-se no local socialmente aprovado para o encontro entre os sexos e, observando um deles, Bourdieu assinala: “Nele é todo mundo da cidade, com seus modelos culturais, suas músicas, suas danças, suas técnicas corporais, que irrompe na vida camponesa. Os modelos tradicionais dos comportamentos em festas se perderam e deram lugar a modelos urbanos. Nesse domínio, como em outros, a iniciativa é das pessoas do bourg. As danças de antigamente, que traziam as marcas do campo em seus nomes [...] em seus ritmos, em sua música, nas letras das músicas foram substituídas por danças importadas das cidades.” Inserido num mundo que lhe era estranho, o homem “rústico”, já se sentindo velho para aquelas inovações, comportava-se de maneira desajeitada nessas ocasiões, resignando-se a apenas olhar os demais dançarem.

Vitimados por estereótipos – criados social e culturalmente –, definidos como grosseiros e desajeitados, os rapazes eram desvalorizados pelas moças, as quais aderiam mais facilmente aos valores da cidade, inclusive no que se referia à maneira de vestir. De outro modo, os camponeses solteiros assimilavam a autoimagem que deles se tinha, fato que contribuía para o seu isolamento, desconforto e timidez, impedindo-os de tomar iniciativas. Para as moças camponesas, o homem ideal era o oposto do camponês, que consideravam rústico e desatualizado, ainda que este tivesse aderido, em suas propriedades, às técnicas modernas. Diante disso, restava a eles o celibato, que era vivido, pelo menos na aparência, resignadamente. Sobre o fenômeno celibatário vivido no campo, Bourdieu (2002) assinala:

O celibato é a ocasião privilegiada para se verificar a miséria da condição camponesa. Se o solteiro, para expressar seu infortúnio, diz que „a terra está arruinada‟, é porque não pode furtar a compreender sua condição de celibatário como determinada por uma necessidade que pesa sobre toda a classe camponesa. O celibato dos homens é vivenciado por todos como indício da crise

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moral de uma sociedade incapaz de assegurar aos primogênitos, depositários do patrimônio, mesmo aos mais inovadores e audaciosos, a possibilidade de perpetuar a linhagem. Em resumo, uma sociedade incapaz de proteger os próprios fundamentos de sua ordem e, ao mesmo tempo, de adaptar-se de maneira inovadora.

Champagne (2002), na mesma França rural, mas em pesquisas realizadas nas décadas seguintes (1970/1980), constata o acirramento da crise pela falta de sucessores nas propriedades familiares em decorrência dos processos de modernização. O autor atribui à supremacia, à dominação simbólica do mundo urbano e aos atrativos do trabalho na cidade que oferecem salários mensais e férias remuneradas, fatores decisivos para o desinteresse dos jovens rurais pelas atividades de seus antecessores e a consequente migração para as cidades. Se a modernização agrícola nas décadas recentes – seja dos países europeus, seja do Brasil – tem acirrado processos dessa natureza, sobretudo no que se refere à dominação simbólica do mundo urbano sobre o mundo rural, pode-se dizer que isso não se constitui em um fenômeno isolado, mas, sim, em um fenômeno histórico, vinculado às também históricas representações sociais sobre o campo e a cidade.

Raymond Williams (1989), citado no início desse trabalho, demonstra que tais representações, historicamente e também na literatura, têm sido uma combinação de apresentação de aspectos positivos e outros, nem tanto. O autor, referindo-se à Inglaterra do século XVI ao século XX, demonstra como a cidade esteve, desde os tempos remotos, associada ao lugar do dinheiro, do luxo e da riqueza, da usura, da corrupção e da intriga. Mais que associadas ao lugar onde circulam moedas, as cidades estiveram, em decorrência das grandes transformações ocorridas, principalmente nos séculos XVIII e XIX, associadas, pois, à emergência e à consolidação do capitalismo. As cidades estiveram, também, historicamente vinculadas à ideia de mobilidade, enquanto o campo, à ideia de isolamento e de refúgio:

É muito comum dizer-se a cidade para se referir ao capitalismo, à burocracia ou ao poder centralizado; e campo, como já vimos, em cada época tem um significado diferente, associado a

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idéias tão diversas quanto a independência da pobreza, o poder da imaginação ativa e o refúgio da inconsciência. A cada momento, é necessário confrontar estas idéias com as realidades históricas, que por vezes as confirmam, outras vezes as negam. (WILLIAMS, 1989, p. 389).

São imagens que podem ser percebidas na fala dos jovens entrevistados, quando reiteradamente mencionam os perigos da cidade, o trânsito desenfreado, as inseguranças de toda sorte que levam as crianças a ficarem trancafiadas em apartamentos. De outro lado, observa-se, nessas falas, o reconhecimento dos benefícios da vida citadina, inclusive como local de oportunidades econômicas não vislumbradas no campo, como se pode observar pelo depoimento a seguir: “Na cidade tem sempre que estar se cuidando... aqui é bem melhor de viver, é mais calmo, não tem perigo de ser atropelada [risos]. O que eu mais gosto daqui é a liberdade. Na cidade as crianças pequenas vivem dentro das casas, aqui não, você sai e brinca onde quiser, faz o que quiser. Por outro lado, é bom morar na cidade, tem mais emprego, mais salário, mais estudo”(F., 18 anos).

O autor aborda, ainda, outras imagens que estão também associadas ao campo e àquele que nele vive, as quais foram reforçadas pela expressão preconceituosa, usada justamente pelos críticos do sistema capitalista, Marx e Engels, ao referirem-se ao campo, no “Manifesto Comunista”, como um espaço subjugado pela burguesia que, desse modo, “[...] havia salvado uma parte considerável da população da idiotia da vida rural.” Tal argumentação tinha como fundamento a superação do sistema capitalista e a crença na supremacia do proletariado como agente das transformações sociais. A esse respeito Williams assinala:

[...] nessa denúncia estava implícito um outro conjunto de julgamentos de valor. [...] Assim com base nesse tipo de confiança nos valores singulares da modernização e da civilização, foi criada uma distorção fundamental na historia do comunismo. [...] Mas, se as formas de desenvolvimento burguês continham, apesar de suas contradições, valores superiores à “idiotice rural” e à “barbárie”, então praticamente qualquer programa em nome do proletariado urbano podia ser justificado e

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imposto. A ironia terrível disto tudo é que os processos concretos da prioridade absoluta dada à cidade e à indústria, bem como a conseqüente prioridade dada as nações avançadas e civilizadas, tiveram o efeito de prejudicar não apenas os “idiotas rurais” e “bárbaros e semibárbaros” coloniais, mas também os próprios proletários urbanos, bem como as sociedades avançadas e civilizadas sobre as quais, por sua vez, as prioridades exerceram sua dominação, numa estranha distorção dialética. Ver que a pobreza gerava a revolução era uma coisa; achar que mais pobreza geraria algo completamente diferente era, na melhor das hipóteses, uma esperança apocalíptica. (WILLIAMS, 1989, p. 405).

Não se tem a pretensão de dizer aqui que essa imagem preconceituosa tenha sido provocada pelos julgamentos de valor e acepções de Marx e Engels, mas que tais disposições contribuíram para reforçar a distorcida imagem que os citadinos teriam do homem do campo, principalmente se levarmos em consideração o movimento comunista mundial, que relegou o campo ao esquecimento, ao eleger o proletariado como agente da história. Os jovens se apercebiam de que eram vistos pelos homens da cidade como diferentes e incultos; a diferença, em termos culturais, era por eles aceita; contudo serem menosprezados ou considerados incapazes, não.

Quando você estuda no meio de pessoas urbanizadas, você vai daqui do mato, você tem que conquistar um espaço e mostrar que nós aqui do mato somos pessoas iguais a eles, que não somos menos espertos que eles. Claro que já mudou muito, a gente já conseguiu dizer que somos agricultores e temos nossos valores. Temos as nossas diferenças, mas não em conhecimento, que eles acham que têm a mais que nós e eles não têm. Não são diferentes de nós, não é? E a gente não é... aquelas pessoas que... que... não têm capacidade. Não é porque eu moro no mato que não tenho capacidade! (M., 24 anos).

As representações sociais sobre o campo e a cidade mobilizam

determinadas “atitudes emocionais” (WILLIAMS, 1989, p. 11), sendo que algumas delas, no caso específico desse estudo, foram reforçadas pelo projeto “Vida na Roça”, notadamente naqueles aspectos

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considerados mais positivos, conforme sugerido pelo depoimento acima, ou seja, na valorização da vida no campo e no que se refere à autovalorização dos moradores da comunidade. Não obstante esses aspectos, o que se percebe é que essas significativas imagens – que vinculam o campo ao atraso, à falta de perspectivas e de lazer –, associadas à insuficiência de políticas públicas específicas para esse segmento social, têm contribuído para que os jovens continuem rumando em direção às cidades.

Considerações finais

As análises aqui realizadas são demonstrativas da necessidade

de outros estudos visando à compreensão sociológica do tema tratado, dada a sua complexidade, uma vez que se apresenta entrecortado por nuances diversas, desde aquelas de ordem cultural e econômica ou aqueles aspectos mais subjetivos relacionados às históricas representações sobre a cidade e o campo. Nesse sentido, enfatiza-se o que afirma Pierre Bourdieu, em epígrafe no início desse artigo, sobre a tarefa da sociologia: “[...] a de reconstituir a totalidade a partir da qual se pode descobrir a unidade entre a consciência subjetiva que o indivíduo tem do sistema social e a estrutura objetiva desse sistema”. De qualquer forma, ao se procurar fazer aproximações nesse sentido, percebe-se quão aberto continua esse caminho.

No que se refere à dualidade campo/cidade, é importante registrar que ela já não é tão demarcada assim (ou nunca tenha sido, tendo em vista essas relações estarem umbilicalmente ligadas, sobretudo por meio das transações econômicas), levando-se em consideração não só as mudanças ocorridas no mundo rural nas últimas décadas, mas também as perspectivas ao homem do campo e à sua família de novas oportunidades de trabalho por meio da pluriatividade ou de atividades não agrícolas, como o turismo rural, entre outras.

Os aspectos aqui apontados demonstram, ainda, a necessidade de se levar em conta, ao se elaborar ações visando à permanência do jovem no campo, as representações sociais que colaboram para a definição dos horizontes de vida desses jovens. Sobretudo é necessário que sejam ofertadas as oportunidades necessárias, por meio de efetivas políticas públicas (econômicas, educacionais, culturais e de lazer) àqueles jovens que desejam permanecer no campo dando sequência à

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atividade laboral de seus pais. Certamente não será de todos o desejo da permanência no campo. Alguns seguirão outros caminhos, mas aqueles que nele permanecerem, que assim o façam por meio da oportunização de uma existência digna.

Notas 1. Abordei, em artigo recente, as dimensões econômico-ambientais e educacionais do projeto “Vida na Roça”: BRENNEISEN, Eliane. “Vida na Roça”: um projeto multidimensional de desenvolvimento rural. Estudos Sociedade e Agricultura, Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade (CPDA),UFRRJ, vol. 13, nº 2, outubro de 2005. 2 Opta-se, nesse trabalho, visando preservar as identidades dos jovens entrevistados, por não identificá-los nominalmente. Indica-se somente a idade de cada depoente. 3 Vale ainda lembrar que foi nessa região que aconteceu a luta dos colonos nos anos 1950, conhecida como a “Revolta de 1957”. Sobre o assunto, consulte-se: Gomes, 1987. José de Souza Martins (1981), em seu livro Os camponeses e a política no Brasil, também aborda esse conflito, entre outros que aconteceram no país no pré-64. 4 A comunidade rural Jacutinga revelou-se um laboratório de estudos para o que tem sido chamado pela literatura de nova ruralidade ou das identidades rurais em transformação, ainda que a ocorrência do fenômeno se dê em menor escala no Brasil em relação a outros países, como a Franca e o Canadá. Nesta comunidade foi possível encontrar famílias pluriativas, famílias desenvolvendo atividades produtivas não agrícolas e moradores que escolheram aquele local para moradia, dada a proximidade ao centro urbano, em busca de uma vida mais saudável e tranquila no campo. Sobre o assunto, consulte-se: Ferreira, 2002. 5 Sobre aspectos como os apontados, ou seja, sobre o envolvimento dos jovens no dia a dia de uma comunidade rural, só que na França, consulte-se: FABRE, Daniel. Ser jovem na aldeia. In: LEVI, Giovanni; SCHMITT, Jean-Claude (Orgs.). História dos jovens: a época contemporânea. São Paulo; Companhia das Letras, 1996. 6 Sobre o teatro como estratégia político-educativa, consultem-se: CARDOSO, Rosane. Para ver e atuar: teatro para crianças e adolescentes. Revista Signos, ano 20, nº 1, p. 113-130, Lajeado, RS, 1999; BENTLEY, Eric. O teatro engajado. Rio de Janeiro: Zahar, 1969; LOPES,

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Joana. A encenação do didático (ou uma maneira de ser estética numa perspectiva didática). In: Barder, Wolfgang (Org.). Brecht no Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. 7 Esse tem sido um dos fatores que levou os pesquisadores a perceberem um caráter seletivo da migração no campo. Esse caráter seletivo, por sua vez tem sido um dos responsáveis pelo fenômeno que tem sido denominado de “masculinização do campo”: ABRAMOVAY, Ricardo; CAMARANO, Ana Amélia. Êxodo rural, envelhecimento e masculinização no Brasil: panorama dos últimos cincoenta anos. Revista Brasileira de Estudos de População, v. 15, n° 2, p. 45-66, jul./dez. 1999. 8 Sobre esse assunto, consulte-se o importante estudo desenvolvido por: STRAPASOLAS, Valmir Luiz. O valor (do) casamento na agricultura familiar. Revista Estudos Feministas, v. 12, nº 1, Florianópolis, jan./abr. 2004.

Referências

ABRAMOVAY, Ricardo et alii. Juventude e agricultura familiar: desafios dos novos padrões sucessórios. FAO/INCRA, EPAGRI, CPPP, Chapecó/Brasília, 1997. ABRAMOVAY, Ricardo; CAMARANO, Ana Amélia. Êxodo rural, envelhecimento e masculinização no Brasil: panorama dos últimos cinqüenta anos. Revista Brasileira de Estudos de População, v. 15, n° 2, p. 45-66, jul./dez. 1999. ABRAMOVAY, Ricardo.,O capital social dos territórios: repensando o desenvolvimento territorial. Economia Aplicada, volume 4, nº 2, abr./jun. 2000. ABRAMO, Helena Wendel; BRANCO, Pedro Paulo Martoni. Retratos da juventude brasileira. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2005. ALMEIDA, Jalcione. A construção social de uma nova agricultura. Porto Alegre, RS: UFRGS, 1999. ASSESOAR. Projeto Vida na Roça. Francisco Beltrão, 1996, v. 01. BENTLEY, Eric. O teatro engajado. Rio de Janeiro: Zahar, 1969. BRENNEISEN, Eliane. “Vida na Roça”: um projeto multidimensional de desenvolvimento rural. Estudos Sociedade e Agricultura, Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade (CPDA),UFRRJ, vol. 13, nº 2, 2005.

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PARTICIPAÇÃO, CONSTRUÇÃO DE NORMAS E FORMAÇÃO PARA CIDADANIA: UMA EXPERIÊNCIA COM

ADOLESCENTES NA ESCOLA

André Ricardo Gonçalves Dias Maria Augusta Salin Gonçalves

A violência crescente com que nos deparamos atualmente em

todas as instâncias da vida social é uma preocupação de todos nós. Essa violência passou a habitar também o cotidiano da escola, no qual, a todo o momento, afloram graves conflitos de interação social. Trocas ásperas de palavras, agressões físicas entre os alunos, conflitos entre alunos e professores são acontecimentos que se manifestam com grande freqüência no ambiente escolar.

Por outro lado, a escola é um dos espaços onde o indivíduo pode aprender, de forma intencional e sistemática, normas sociais construtivas. A escola se constitui nesse espaço, no qual diversos pontos de vista se entrecruzam e podem ser analisados e discutidos em clima de respeito ao outro, visando à solução de conflitos através do diálogo e possibilitando a aquisição de um saber que propicie as condições para o exercício da cidadania.

O que pode a escola fazer para minimizar os problemas de violência, contribuindo para a formação de indivíduos críticos e participativos?

Este trabalho relata e discute os resultados da investigação de uma experiência que busca uma resposta a essa questão. A experiência foi realizada em escola municipal de bairro periférico, com alunos adolescentes da 5ª série, apontados pelas professoras como apresentando graves problemas de interação social, como atitudes agressivas em relação aos colegas e às professoras e não-atendimento às normas da escola. Esses alunos foram colocados anteriormente, por decisão da escola da qual não participamos, em uma classe especial. O objetivo da experiência foi intervir, trabalhando com esse grupo de alunos na produção de um vídeo sobre os aspectos culturais da escola, visando ao desenvolvimento da capacidade de diálogo, da solidariedade, do respeito mútuo e da cooperação e à vivência de normas sociais. O objetivo da investigação foi compreender as possibilidades e limites dessa experiência para a emergência de interação social construtiva,

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buscando entender como os alunos vivenciaram o processo de compreensão e construção das normas sociais no grupo. Realização da experiência

A seguir, relatamos a experiência, iniciando com uma reflexão sobre as idéias pedagógicas que nortearam o seu desenvolvimento. Em seqüência, descrevemos o contexto da escola e as condições gerais de realização da experiência Princípios teórico-metodológicos

Para a realização da experiência, buscamos fundamentação em diferentes autores. Apontamos, como principais fontes inspiradoras na realização da experiência, Freire (1980a, 1980b,1983, 1989, 1990, 1991, 1999) e Piaget (1961, 1966, 1971, 1978, 1987, 1994). Para um entendimento de como trabalhar com projetos, pois a experiência pode ser identificada com essa ação pedagógica, nos apoiamos em idéias de autores como Hernandez (1998a, 1998b, 1998c) e Braggio (1992), entre outros. Paulo Freire

A experiência teve como uma de suas fontes inspiradoras idéias

de Paulo Freire. Isto significa visualizar o homem como ser consciente em permanente relação com o mundo, vivendo em uma determinada cultura e em uma determinada época histórica. Para compreendê-lo, portanto, é preciso concebê-lo em interação com a realidade na qual ele vive, sente e pensa e sobre a qual pode exercer sua prática libertadora.

O mundo humano é um mundo de comunicação. Para Freire, o homem atua, pensa e fala sobre uma realidade que é a mediação entre ele e outros homens, que também atuam, pensam e falam. A formação de uma consciência crítica e a internalização de valores que visam à humanização do homem se concretizam através da comunicação. Na comunicação, não há sujeitos passivos e “o que caracteriza a comunicação enquanto este comunicar comunicando-se, é que ela é diálogo, assim como o diálogo é comunicativo” (Freire, 1980, p.67).

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Formação da cidadania envolve assim o desenvolvimento da capacidade de pensar a realidade de forma crítica, e, ao mesmo tempo, da competência comunicativa, pois a participação comunitária se dá através de diálogo, em que os indivíduos expressam e justificam posicionamentos,

Referindo-se à importância do diálogo na educação, Paulo Freire diz: “Precisávamos de uma Pedagogia de Comunicação, com que vencêssemos o desamor acrítico do antidiálogo. Há mais. Quem dialoga, dialoga com alguém sobre alguma coisa” (Freire, 1989, p. 108). Sem a relação comunicativa entre sujeitos cognoscentes em torno do objeto cognoscível, todo o ato cognoscitivo desapareceria.. O sujeito pensante não pode pensar sem a participação de outros sujeitos no ato de pensar sobre o objeto. Na realidade, não há um pensar sobre o objeto, porque não há um “penso”, mas, sim, um “pensamos”.

A dimensão crítica da consciência possibilita que o ser humano, ainda que condicionado pela estrutura social, seja capaz de reconhecer-se como tal - condicionado. Porque não é próprio do ser humano simplesmente adaptar-se ao mundo para sobreviver, ele o transforma de acordo com as finalidades a que se propõe, agindo sobre ele para humanizá-lo, isto é, marcá-lo como um mundo de homens e mulheres. Nessas ações, além de transformar o mundo, transforma a si mesmo e, com sua presença criadora, o impregna com as marcas de seu trabalho. Jean Piaget

O pensamento de Piaget nos auxiliou a compreender os

processos cognitivos que ocorrem na adolescência e a sua relação com processos de interação social. A importância da interação social para o desenvolvimento intelectual é contínua e Piaget destaca seu efeito também no estágio da adolescência. Ele afirma:“sem intercâmbio de pensamento e cooperação com outros, o indivíduo nunca chegaria a agrupar suas operações em um todo coerente” (Piaget, 1961, p.164).

Piaget considera a participação do indivíduo em um grupo como uma poderosa influência na mudança das estruturas intuitivas para as estruturas operacionais. Ser membro de um grupo encoraja o comportamento cooperativo e proporciona um modelo concreto de relações recíprocas. No grupo, o indivíduo precisa descentralizar seu ponto de vista a fim de compreender e explicar os pontos de vista

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alheios. Dessa forma, é convidado a verificar seus pensamentos, experimentando-os socialmente e, assim, resolver as contradições que neles descobre. Isso auxilia a transformação de estruturas mentais em sistemas operacionais mais complexos. Piaget sugere que as propriedades inerentes a um grupo social são semelhantes às propriedades dos agrupamentos operacionais de estrutura mentais. Ambas apresentam: coordenação de ações, relações em mudança que, apesar disso, mantêm um todo conservado e a reversibilidade de ações (Piaget, 1994).

O pensamento formal permite ao adolescente examinar seu próprio estilo de vida e o da sociedade em que se encontra, pôr em dúvida e debater as suas crenças e valores. A interação social contribui para isso, pois o adolescente submete seus pensamentos à prova ao discuti-los com seus iguais. Piaget e Inhelder sustentam que esses pensamentos têm "uma espécie de forma messiânica tal que as teorias usadas para o mundo se centralizam no papel de reformador que o adolescente se sente chamado a representar no futuro” (1966, p. 343-4). O adolescente, destaca o educador inglês Richmond (1995), ao colocar suas idéias à prova em confronto com seus iguais, freqüentemente afasta-se da realidade social, sendo isso, exatamente, o que seria de esperar como produto de operações formais não acomodadas, que vão progressivamente durante esse período se transformando na busca do equilíbrio . Interação social, no sentido de desenvolvimento, implica em pertencer a um grupo social, no qual cada indivíduo contribua para o funcionamento desse grupo como um todo e esteja individualmente envolvido nos desvios e mudanças de equilíbrio que ocorram dentro dele. Em grupos de alunos, envolvidos em atividades com um objetivo comum, como no caso desta experiência, há necessidade de expressar pontos de vista, trocar idéias e discutir meios e modos de proceder para chegarem a um acordo. "No que concerne à inteligência, a cooperação é assim uma discussão objetivamente conduzida da qual decorre discussão internalizada, isto é, deliberação e reflexão" (Piaget, 1961, p. 162).

Com base nessas déias de Piaget, que fundamentam a experiência em estudo, ao possibilitar a discussão, a troca de idéias e a cooperação, estimulamos o aluno para a reflexão e o agir autônomo. Durante as diferentes etapas de confecção do vídeo com as atividades culturais da escola surgiram muitas situações em que o aluno precisou ser ativo, transformador da realidade, planejando e executando suas

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próprias ações e refletindo sobre aquilo que estava construindo. As situações de aprendizagem procuraram dar ênfase à interação social nos diversos grupos menores que foram formados para a execução das diferentes tarefas. Nesses grupos, surgiu frequentemente a necessidade de verificar fatos, justificar idéias, superar contradições, desempenhar diferentes papéis e ajustar atitudes para atingir os objetivos do grupo e propiciar a emergência de uma interação social construtiva. Trabalhando com projetos

Conforme Hernández (1998a), métodos de projetos, centros de interesse, trabalho por temas, pesquisa do meio, projetos de trabalho são denominações que são utilizadas de maneira indistinta, mas que respondem a visões com importantes variações de contexto e de conteúdo.

Optar por uma atividade pedagógica em forma de projetos foi o resultados de uma decisão que tomamos para proporcionar aos alunos aprendizagens significativas de atitudes construtivas de interação social. Nesse sentido, pensar em projetos é entender o espaço de aula como um espaço de cooperação, é “fazer a escolha de um processo que leva a turma a se organizar, a dar-se as regras de vida e de funcionamento, gerir seu espaço, seu tempo e seu orçamento” (Jolibert, 1994, p. 20).

Tendo como suporte a concepção de projeto como atividade educativa essencialmente comunicativa, privilegiamos o diálogo nas decisões conjuntas quanto à descoberta, seleção e utilização daquilo que o aluno já sabia, à elaboração e execução do plano das atividades do dia e à construção de normas e regras de interação social na sala de aula.

Em atividades com projetos, como coloca Hernandez (1984b), a relação educativa baseia-se na cooperação responsável em sala de aula, na escola e na comunidade, portanto, na não-marginalização das formas de saber dos excluídos e na construção de um novo sentido de cidadania que favoreça a solidariedade e o respeito à diversidade.

Na realização da experiência, buscamos desenvolver uma prática que fizesse do aluno um participante ativo do processo, um descobridor de conhecimento. Pensamos que realizar projetos é entender a aula como um lugar de cooperação, é fazer a escolha de um processo que leva a turma a se organizar, a construir regras de funcionamento e interação e a gerir seu espaço e seu tempo.

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Contexto da escola

A experiência foi desenvolvida em 14 encontros, que ocorreram semanalmente. O grupo que participou das atividades era composto por 17 alunos da 5. série da escola: 14 desses, por motivos de disciplina, haviam sido retirados anteriormente, por decisão da escola, de suas classes de origem, para provisoriamente formarem um novo grupo; três dos participantes eram oriundos de turmas diferentes e manifestaram interesse em participar.

A vila, próxima a uma cidade de porte médio da região da Grande Porto Alegre, em que está inserida a escola é pequena, possuindo aproximadamente quatro mil e duzentos pessoas; é habitada basicamente por população pobre, com vários problemas sociais. Apesar da ocorrência de fatos marcantes; como assaltos, assassinatos, contrabandos, venda de drogas, a vila parece buscar a sua própria expressão como comunidade urbana, com aquilo que caracteriza um lugar com status de bairro: saneamento básico, água, energia elétrica, segurança pública, serviço médico. A escola situa-se em uma parte central da vila. Está cercada por telas. Desde 1990, o espaço físico contava com dois pavilhões com oito salas de aula, uma cozinha, uma secretaria, uma biblioteca, uma sala de professores e uma sala de diretoria. Há três banheiros, um para as professoras, um para as meninas e um para os meninos. Atualmente há mais um pavilhão com salas de aula.

A escola tem aproximadamente 500 alunos, divididos entre os turnos diurno e noturno, sendo que 400 alunos estudam durante o dia e 100, à noite. No total, nos três turnos, a escola possui 37 professores. Condições da realização da pesquisa

A colocação dos alunos que as professoras consideravam como os que mais perturbavam as aulas em uma classe especial gerou a manifestação de sentimentos de insatisfação, discriminação e baixa auto-estima por parte desses alunos. Segundo as professoras, a intenção não era excluí-los, mas, sim, trabalhar mais intensamente com eles.

Dessa situação, surgiu a idéia deste trabalho: realizar uma experiência, que possibilitasse a esses alunos desenvolver uma auto-

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estima positiva e obter o reconhecimento dos outros e, ao mesmo tempo, proporcionasse uma vivência de trabalho conjunto, realizado cooperativamente, para o qual seriam necessárias a constituição de normas de interação social, que seriam discutidas e construídas pelos alunos, com a participação de todos. Desse modo, configurou-se a idéia de realizar a experiência de construção conjunta de um vídeo com as atividades culturais da escola. A direção da escola e as professoras apoiaram o nosso trabalho, possibilitando condições favoráveis para a sua realização. Os encontros com os alunos ocorreram em horários em que não tinham aulas. As operações com o vídeo foram realizadas no laboratório de informática da universidade.

Durante a realização das atividades pedagógicas, nas diferentes etapas da produção do vídeo sobre os aspectos culturais da escola, investigamos as possibilidades e limites dessa experiência, destacando momentos pedagógico significativos para o desenvolvimento da capacidade de diálogo, para a aquisição de atitudes de solidariedade, respeito mútuo e cooperação e para a vivência de construção e efetivação de normas de interação social. Apresentamos a seguir reflexões sobre esses momentos. Momento investigativo

A análise do material coletado durante a experiência – diário de campo, registros de observações, depoimentos de alunos e entrevistas realizadas com professoras e pais – nos possibilitou compreender, à luz das teorias que serviram de base para as nossas reflexões, processos de interação social que pudemos perceber durante a construção do vídeo.

Apresentaremos, a seguir, momentos da experiência que destacamos como significativos para a emergência de interação social construtiva. Planejando participativamente

O planejamento de cada dia de trabalho era feito em conjunto

no início de cada encontro e, muitas vezes, modificado para adaptar-se a circunstâncias imprevistas.

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O planejamento, numa perspectiva crítica, envolve a participação de todos, professores e alunos, em um processo coletivo, em que esse é amplamente discutido. O diálogo é a estratégia mais adequada para que se atinja o consenso e se encontre a solução dos problemas ou conflitos que surgem no grupo..

Durante o planejamento participativo, os alunos tinham oportunidade de trocar seus pontos de vista e defendê-los, de tentar convencer os demais, através de argumentação, sobre a seqüência das atividades ou mesmo sobre a inclusão de outras atividades que gostariam de realizar. Esses momentos favoreciam a superação do egocentrismo, visto que eles necessitavam compreender as idéias dos outros e a coordenar os diferentes pontos de vista. Além disso, essa atividade auxiliava o aluno a tomar decisões e assumi-las com responsabilidade, colaborando para o desenvolvimento da autonomia pessoal e do grupo.

No planejamento de algumas atividades, como filmar os grupos de capoeira, por exemplo, foi decidido em conjunto que os alunos fizessem um revezamento e que cada um exerceria a função principal em diferentes momentos, sendo as atividades coordenadas de forma independente e avaliadas conforme a orientação de como fazer melhor, segundo critérios por eles definidos. A nossa postura foi de não-intervenção direta, ou seja, atuávamos fazendo perguntas sobre o que iriam fazer, como iriam fazer e apresentávamos opções, o que permitia a eles exercitarem a autonomia e assumirem os riscos de suas decisões. Na fala de um dos alunos, é possível perceber esse entendimento: “Todo mundo pode ajudar, ninguém tem a resposta certa pra tudo, alguns até podem ter, outros não, mas o que importa é a gente sentar pra discutir juntos aquilo que se quer” (JO, 14). Foi um trabalho em grupo que se traduziu em uma oportunidade que os alunos tiveram para partilhar suas idéias, trocar pontos de vista e expressar sentimentos, tomando consciência de que as idéias e sentimentos dos outros nem sempre coincidem com os seus, o que ajudou-os a superar pouco a pouco o egocentrismo de seu pensamento. Buscando reconhecimento

Houve momentos em que os alunos manifestaram ao grupo sentimentos de sentirem-se discriminados na escola e fora dela pela sua condição social, como podemos perceber na fala de um aluno: “Olha,

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meu, é tudo assim, não é somente aqui que a gente é botado pra fora. Se o cara vai no banco com qualquer roupa todo mundo te olha assim, dos pés à cabeça, sabe, não é bem tratado. Mas tudo bem, não te mandam pra fora, a não ser que esteja armado. Se tu não estás nos conformes, não estás com aquela pastinha de office boy, ou então de gravata ou com roupa de marca, então tu estás fora, não cumpriu as regras da vestimenta. Ou tu cumpre ou então vai ser tratado diferente. Mas olha, quando a gente está lá no centro, na calçada do Factory, lá eles grudam na gente e despistam” (JU,14). Comentando a exclusão na própria escola e manifestando sentimentos de baixa auto-estima, um aluno do grupo diz: “Quando elas tiraram a gente, elas acabaram só beneficiando os outros alunos. Elas quiseram dizer que somente eles é que valem, que nós não valemos nada, porque era com a gente a bronca. Só que se nós fugimos das regras da escola, então temos que rever essas regras, porque só a gente foi ruim..." (VS, 15).

Outro aluno em sua manifestação expressa a idéia de que as normas do grupo social no qual eles vivem diferem das normas da escola, mas, ao mesmo tempo, refletem os valores individualistas que são reforçados na nossa sociedade – “levar vantagem em tudo”: “Não sou eu que vou mudar o mundo. Ele existe, independente de mim. Eu é que tenho que me adaptar. Olha, por exemplo, aquele dia da carteira de dinheiro, eu não teria entregado. Tá...., de repente eu via se tinha dinheiro, mas se não tinha, tudo bem. Mas então, tirava o dinheiro e depois entregava os documentos, dizia que achei assim. E daí, qualquer um que não é trouxa faria o mesmo, antes que outro faça, eu faço na frente (VM,14).

A visão de mundo desses adolescentes é permeada por sentimentos de frustração, revolta e falta de perspectiva, como constatamos na fala de um aluno: Quem é que valoriza um ato nobre? Será que você reconheceria uma pessoa agindo honestamente? Ou iria pensar em como tirar o proveito dessa situação? Claro que iria pensar em tirar o proveito próprio da situação. ... Ninguém tá interessado na gente, ninguém. Acho que vai ser assim, até cada vez pior. O que adianta estudar, se depois não se consegue nem emprego? Os caras perguntam se a gente tem experiência e onde mora. Porque o cara mora na vila, eles acham que somos todos marginais. Até as professoras falam isso. Então tem que dar o troco. Mostrar que somos isso mesmo, porque, do contrário, nem isso seremos. Antes ser marginal, cara”.

Por outro lado, eles expressam o quanto é importante sentirem-se reconhecidos e não vistos como marginais. Referindo-se ao pesquisador que conduziu a experiência um aluno diz: Olha só o A..,o que fez e está fazendo: aqui é tudo certo. Ele nunca nos tratou mal, nunca nos

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humilhou. Ele compreende a gente, pergunta as coisas e não fica chamando a gente disso e daquilo, nem gritando. Ele, falando, a gente quase não se escuta, de tão baixinho que ele fala. Nunca ele gritou com a gente e não é porque ele está aqui na frente que estou falando isso. Outro dia, até a gente estava discutindo isso: como foi legal te conhecer. Foi mesmo. Mas é só tu que faz isso com a gente. O resto é tudo (...). não vale nada. Então temos que bancar o esperto e cada um por si, o resto que se dane. Se tu não passar a perna no outro, o outro é que te passa. E passa e acaba te amassando" (DA, 13). Essa fala revela, sem dúvida, o quanto essa experiência foi significativa no sentido de proporcionar a eles a vivência do reconhecimento e do respeito do outro. Ao mesmo tempo, revela a dificuldade dos adolescentes de colocar-se no lugar do professor e compreender a situação a partir de outro ponto de vista. A realização de dinâmicas envolvendo troca de papéis podem auxiliar nesse sentido. Aprendendo a trabalhar em equipe

A avaliação da experiência sobre a produção do vídeo feita pelos alunos revelou que eles sentiram um crescimento em relação à capacidade de trabalhar em equipe e aceitar a opinião do outro. Revelou também que reconheceram a importância do diálogo para se chegar ao consenso na realização de objetivos comuns. Manifestaram sentir necessidade de limites, e valorizaram a nossa atitude em relação a eles, de respeito e amizade.

Apesar de as atividades exigirem a participação efetiva dos alunos de modo cooperativo, nem sempre isso se dava de maneira tranqüila, surgindo conflitos. Dessa forma, em vários momentos, as atividades exigiam a aprendizagem de aceitar a opinião do outro como elemento importante para a realização das mesmas, como mostram as falas a seguir: “Aqui a gente teve que respeitar a opinião do colega, se não, não iria para frente. Deixa de ser um trabalho de um para ser um trabalho de vários. Todos têm que cooperar, caso contrário só um anda, só um faz e os outros ficam olhando” (FF, 15). “As vezes sempre tem quem quer ser a estrela, mandar nos outros, porque pensa que é melhor que os outros, mas não é. Sempre que isso ocorre, até porque daí o grupo vai ser contra esse, tem que se dar conta disso” (AD, 14). “Aceitar perder, é isso o que ocorre, porque nem sempre se vai ganhar quando está num grupo” (JO, 14).

Na fala a seguir, o aluno expressa a vivência de que nem sempre é fácil aceitar o ponto de vista do outro, mas que o consenso é

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necessário para a realização de tarefas comuns: “...porque tu tem que aprender a dizer „não‟ e tem que aprender a deixar o outro fazer; aí se tu não estás acostumado com isso, fica duro para o cara... muito complicado. Isso tem que vir aos poucos, é um aprendizado que começa aos pouquinhos. É como num jogo que o cara só quer ganhar...Ninguém é dono da verdade” (VS, 15).

As palavras de um aluno ilustram o reconhecimento da importância de coordenar ações para alcançar objetivos: “Trabalhar em equipe...saber que tudo tem uma ordem. Não adianta atropelar, tudo tem que ter a sua vez. Tem que ter ordem, disciplina, senão não funciona” (JC, 14). No depoimento de outro aluno, percebe-se o reconhecimento do resultado coletivo de um trabalho de equipe: “...é um trabalho que começou numa ponta, tem o meio com todos fazendo e, no final, vai ser um trabalho que não vai ser de ninguém sozinho, mas um trabalho de todos que estão ali” (JO, 14). Diálogo e consenso

Em suas falas, os alunos mostraram reconhecer o diálogo como um dos aspectos importantes dessa experiência, tanto para a coordenação das ações conjuntas para a produção do vídeo quanto na interação social e solução de conflitos surgidos durante essa produção. Parecem ter percebido a necessidade do diálogo para atingir os objetivos do grupo como um todo, colocando o interesse do grupo acima do interesse de cada um, conforme expressa a fala de um aluno: “...conversar primeiro, mostrar que nem sempre se tem tudo o que se quer, que tem que ver o que é melhor para o grupo... não vai dar para atender o interesse de cada um sempre, daí não iríamos sair do lugar (...) Vem um e dá uma idéia, vem outro e dá outra, acaba a gente reunindo todas as idéias de cada um e faz uma outra que nem a gente sabia que dava no início, que acaba sendo uma idéia maior que aquelas outras primeiras - e sai uma outra maior, com ajuda de todo mundo” (VA, 14).

O consenso, muitas vezes alcançado pelos alunos, parece não ter sido visto apenas como uma necessidade estratégica para chegarem a solução dos conflitos no grupo, mas também como uma opção frente aos desafios que se apresentavam nos vários momentos em que surgiram situações novas, que não eram previstas no planejamento. Isso é possível perceber na seguinte falar: “Cada um tinha o direito de fazer uma pergunta, depois juntamos todas as respostas, foi assim que deu pra fazer” (FF, 15).

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Vivenciando a cooperação

Toda a experiência foi embasada em uma idéia de possibilitar vivências de trabalho cooperativo. Ilustrando um desses momentos, relatamos a situação em que dois grupos estavam realizando a produção de um texto para ser lido no vídeo: o grupo de escritores e o grupo de editores. O grupo de escritores gerava as idéias, criando um texto. O grupo de editores lia e comentava o texto, sugerindo acréscimos, cortes e, às vezes, mudanças na redação. Referindo-se a esse momento da experiência, ocorreram essas falas: "Cada um depende do outro e, quando um ajuda o outro, a coisa fica melhor” (DA, 13). “E tem que entender que o que a gente não gostou é porque temos outras idéias que podem ficar melhor, esse é o nosso papel” (FF,15). “É verdade, senão vocês podiam fazer o trabalho todo sozinhos e não precisariam da gente, por isso que é um trabalho em equipe” (VS,15).

Solicitados a fazer uma reflexão, após os trabalhos do dia, sobre o que significou trabalhar em equipe, os alunos mostraram, como podemos observar em algumas falas, uma compreensão do papel da cooperação no trabalho realizado em grupo: “Trabalhar em grupo significa trabalhar com os outros, dando ajuda no que eles estão pedindo. Assim se se trabalha junto, daí vai atingindo o nosso objetivo de fazer esse texto e apresentar no vídeo” (AD,14).

O entendimento de que a competição entre os integrantes de um grupo deve ceder espaço para a cooperação com vistas a um entendimento mútuo é expresso na fala do aluno: "Quando a gente trabalha junto, como agora, temos mais chance de conseguir o que a gente quer do que quando a gente trabalha cada um pra si, sem ver o que o outro está dizendo"(JO,14).

A compreensão de que é necessário haver diálogo entre os integrantes de um grupo foi ressaltada pelo aluno V. "É, mas para funcionar o trabalho da gente, com todo mundo participando e tendo idéias diferentes, é preciso uma boa comunicação, para que haja cooperação de todos e dê um bom trabalho"(VA,14).

Refletindo sobre as atividades que estavam realizando, alguns alunos discutiram as dificuldades de trabalhar em grupo. Manifestaram, no mesmo momento, o reconhecimento da importância, para o desenvolvimento de um trabalho cooperativo e para a integração do grupo, de que cada um incorpore um papel e assuma com responsabilidade as suas funções,. As falas a seguir ilustram esses fatos:

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"As vezes é mais difícil fazer alguma coisa com poucos do que com muita gente" (TO,12). "É, porque sempre fica uma competição interna, sabe, sempre um querendo ou dominando tudo, porque não sabe fazer a partilha" (JF,12). "Aí acaba se desintegrando essa equipe... É o que muitas vezes acaba ocorrendo e, por causa disso, é que uma pessoa sempre acaba ficando de fora. Para trabalhar em equipe, o pessoal deve estar atento que nem ele nem os outros são mais importantes do que o outro" (AC,15). Vivenciando decisões coletivas

Em vários momentos, em sala de aula ou em atividades realizadas no pátio da escola, foram feitas algumas tentativas para escolher o líder dos grupos. Observamos que, quando um aluno era designado como líder daquele grupo e se recusava a liderar, o grupo acabava rebelando-se contra ele e escolhia um novo líder. A troca de palavras, apresentada a seguir, ilustra esse fato: "Eu não quero mandar no grupo, cara, não entende?"(FF,15). "Mas não é mandar no grupo, cara, não seja burro, é ser o chefe, ou seja, comandar as coisas. Daí, o cara tem mais condições de perceber o que todos precisam. Não dá certo todo mundo mandando ao mesmo tempo" (JC,14). "A coisa tem que ter um caminho. Não significa que tu vai ficar mandando em tudo e em todos toda a hora, mas é só uma coisa de liderar, de comandar, só isso" (FF,15). "Não, não adianta, acho que não pode ser assim, começa assim de mansinho e depois vai ficando um mandão" (JB,14).

Um aluno (DA,13) expressa o receio de indicar alguém como líder e não dar certo: "Acho que é muito arriscado eu ou outro indicar quem vai ser o chefe e daí dar errado, daí tem que tirar o cara e fica tudo desmoralizado. Acho que tem que ser uma escolha pela maioria, e não uma escolha de um".

A escolha de um líder pelos alunos somente se concretizou depois da interação construída pela discussão do grupo, em que o grupo atuando como um todo assumiu o risco da escolha. As razões para a escolha de um líder basearam-se em argumentos que visualizavam o grupo como um todo: deveria ser alguém ativo, e, ao mesmo tempo, conciliador, sendo valorizada a capacidade de diálogo. Por exemplo, quando o aluno (JO,14) decide pela escolha de um colega para ser líder do grupo, diz: "Eu voto no DA, porque ele é um cara „ faz tudo‟;, ele é atento para várias coisas, não tem problema algum. Não pode ser um mosca morta para ser líder... para o cara ser o líder ele não pode ser esquentadinho também, (TO,12). Outro diz: "O cara tem que ter, na real, um equilíbrio de

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várias qualidades, e pode também ter um equilíbrio de vários defeitos também. O importante não é pulso forte, nem ser morninho, mas fazer esse diálogo com todo mundo. O cara não pode ser alguém que não gosta de diálogo, tem que participar de tudo pelo menos tentar compreender os problemas. Porque não é o cara que vai resolver os problemas. O cara que vai ser líder, vai ser, na verdade, um canal que vai dos pontos, dos diversos pontos trazendo até aqui, o centro, e daí, sim, vai montar a ação dele” (LN,16).

Quando os membros do grupo se reuniam para discutir e tomar decisões procuravam criar uma atmosfera que favorecia a participação de todos. Os que não se manifestavam eram solicitados a expressar a sua opinião e a defendê-la com argumentos. Vivenciando solidariedade

Uma interação social construtiva envolve saber como agir a partir de uma reflexão sobre esse agir. Algumas relações interpessoais estão baseadas apenas na coação, enquanto outras apresentam um grau considerável de reciprocidade e cooperação. Aprender a levar em conta o outro depende muito do tipo de relações sociais vigentes na sociedade em que o grupo está inserido. Relações que tenham presente apenas o respeito unilateral não favorecem a formação de consciência crítica; apenas levam à conformidade ou à revolta.

Na escola, muitas vezes, encontramos, em várias situações, um clima favorável ao desenvolvimento da solidariedade, que deve ser aproveitado para a reflexão sobre valores e normas que trazem em seu cerne essa qualidade.

A seguir, relatamos algumas manifestações de solidariedade, ocorridas ao longo de todo o trabalho, e que se tornaram mais freqüentes à medida em que a experiência chegava ao fim.

No pátio, dois alunos arrastavam uns cavaletes para montar um palco para a leitura do texto produzido pelos grupos "escritores" e "editores". Durante essa atividade, um dos alunos teve o seu pé preso por uma tábua, o que lhe provocou muita dor. Um colega que estava próximo largou o que estava fazendo e correu para auxiliá-lo, dizendo: "O que foi cara, o que foi, posso ajudar?" (VS,15). Atitudes solidárias não se restringiram somente ao espaço da escola. No momento da confraternização pelo encerramento da produção do vídeo, em uma pizzaria, um dos alunos tinha um dos braços quebrado.

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Sentado em sua frente, um outro aluno tomou o seu prato e os talheres, e, em atitude de solidariedade, cortou a pizza para ele. No fim da confraternização, o mesmo aluno teve auxílio dos colegas na abertura do invólucro do sorvete.

A solidariedade pode e deve ser construída em sala de aula. Para isso, ela não deve ser vista pelos professores como algo a ser vivenciado somente em situações extraordinárias. No cotidiano da escola, surgem seguidamente situações em que a solidariedade pode ser promovida e valorizadas as atitudes solidárias quando surgem espontaneamente no grupo de alunos. Considerações finais

Durante a experiência de produção do vídeo, os alunos mostraram ter compreendido e vivenciado aspectos importantes para a formação de uma consciência moral autônoma, como: respeito ao outro, solidariedade, capacidade de diálogo e cooperação. Participar de um trabalho de equipe, realizar esforços para obter consenso e estabelecer entendimento mútuo foram resultados de esforços individuais e coletivos, muitas vezes ausentes no cotidiano escolar, mas que se tornaram possíveis na experiência realizada, trazendo a abertura de caminhos para realizações futuras.

Durante todo o desenvolvimento do trabalho, foi possível perceber que os alunos valorizaram as atividades em grupo, manifestando, em vários momentos, sentimentos positivos por pertencer a ele, reconhecendo que é necessário um certo grau de tolerância para uma convivência construtiva, pois obstáculos são inerentes a esse tipo de interação. Conseguiram também, em muitos momentos, superar conflitos e aceitar opiniões dos colegas, mesmo quando essas eram contrárias às suas, argumentando.as suas idéias.

Destacamos, neste trabalho, momentos pedagógicos significativos, em que foi possível aos alunos perceberem a reciprocidade nas relações sociais, participando dialogicamente e buscando estabelecer consenso no grupo. Neste trabalho, a troca de papéis na realização de ações técnicas oportunizou a discussão dos alunos a respeito da definição do desempenho em cada função, contribuindo para o desenvolvimento da capacidade de coordenar ações coletivas através do diálogo.

Em relação à experiência de um modo geral, alunos, professoras e pais manifestaram, em seus depoimentos, que os

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integrantes do grupo mostraram entusiasmo com a realização do trabalho, melhoraram no convívio social, parecendo ter desenvolvido a capacidade de diálogo e cooperação.

Esta experiência aponta para a possibilidade de a escola realizar atividades educativas que promovam a formação de indivíduos críticos e participativos, capazes de exercer o seu direito à cidadania e de cooperar em decisões coletivas. Referências

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