LIVRO I · 2018-04-17 · crédito às palavras de Tissafernes, prendeu Ciro, ... tão grande...

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A EXPEDIÇÃO DOS DEZ MIL 1 LIVRO I I Dario e Parisátis tiveram dois filhos: ao mais velho chamou-se Artaxerxes e ao mais novo Ciro. Encontrando-se Dario doente e sentindo que se aproximava o fim da sua vida, desejou que ambos os seus filhos estivessem com ele. Quis a sorte que o mais velho já lá estivesse, mas precisou de chamar Ciro desde a província em que este fora nomea- do sátrapa e general de todas as forças que se concentram na planície de Castólio 7 . Ciro partiu então na direcção da capital, levando consi- go Tissafernes, a quem tinha como amigo, acompanhados por uma escolta de trezentos hoplitas gregos sob o coman- do de Xénias de Parrásia. Mas, após a morte de Dario, quando Artaxerxes já esta- va instalado no trono, Tissafernes acusou Ciro perante o seu irmão, o Rei, de conspirar contra ele. Artaxerxes, dando crédito às palavras de Tissafernes, prendeu Ciro, desejando condená-lo à morte. Sua mãe, no entanto, intercedeu junto dele, pelo que a vida de Ciro foi salva e este foi enviado de volta para a sua província. Tendo escapado com desonra e muito perigo, Ciro começou a considerar não apenas como poderia evitar ficar novamente em poder do seu irmão, mas também como se poderia tornar Rei em vez dele. Recorreu em primeiro lugar a sua mãe, Parisátis, pois ela tinha mais amor por si do que por Artaxerxes. Para além disso, cortejava de tal maneira todos aqueles que vinham da corte do Rei que, quando par- tiam, eram mais amigos seus do que do Rei seu irmão. Também não negligenciou os bárbaros 8 ao seu serviço, assegurando-se que se tornavam guerreiros capazes e seus devotos partidários. Por fim, começou a reunir as suas tro- 7 Esta ficava situada perto de Sardes e era o ponto de reunião de todas as forças persas do ocidente da Ásia Menor. 8 Os gregos chamavam bárbaros a todos os povos que não eram gregos.

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A EXPEDIÇÃO DOS DEZ MIL 1

LIVRO I

I Dario e Parisátis tiveram dois filhos: ao mais velho

chamou-se Artaxerxes e ao mais novo Ciro. Encontrando-se Dario doente e sentindo que se aproximava o fim da sua vida, desejou que ambos os seus filhos estivessem com ele. Quis a sorte que o mais velho já lá estivesse, mas precisou de chamar Ciro desde a província em que este fora nomea-do sátrapa e general de todas as forças que se concentram na planície de Castólio7.

Ciro partiu então na direcção da capital, levando consi-go Tissafernes, a quem tinha como amigo, acompanhados por uma escolta de trezentos hoplitas gregos sob o coman-do de Xénias de Parrásia.

Mas, após a morte de Dario, quando Artaxerxes já esta-va instalado no trono, Tissafernes acusou Ciro perante o seu irmão, o Rei, de conspirar contra ele. Artaxerxes, dando crédito às palavras de Tissafernes, prendeu Ciro, desejando condená-lo à morte. Sua mãe, no entanto, intercedeu junto dele, pelo que a vida de Ciro foi salva e este foi enviado de volta para a sua província.

Tendo escapado com desonra e muito perigo, Ciro começou a considerar não apenas como poderia evitar ficar novamente em poder do seu irmão, mas também como se poderia tornar Rei em vez dele. Recorreu em primeiro lugar a sua mãe, Parisátis, pois ela tinha mais amor por si do que por Artaxerxes. Para além disso, cortejava de tal maneira todos aqueles que vinham da corte do Rei que, quando par-tiam, eram mais amigos seus do que do Rei seu irmão. Também não negligenciou os bárbaros 8 ao seu serviço, assegurando-se que se tornavam guerreiros capazes e seus devotos partidários. Por fim, começou a reunir as suas tro-

7 Esta ficava situada perto de Sardes e era o ponto de reunião de todas as forças persas do ocidente da Ásia Menor. 8 Os gregos chamavam bárbaros a todos os povos que não eram gregos.

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2 LIVRO I pas gregas, mas com muito secretismo, de modo a que pudesse surpreender o Rei.

O modo como recrutou as suas tropas foi o seguinte: em primeiro lugar, Ciro ordenou aos comandantes das guarnições nas cidades às suas ordens que reunissem um tão grande número de tropas do Peloponeso quantas fos-sem capazes, sob o pretexto que Tissafernes conspirava contra as suas cidades. E, na verdade, estas cidades da Iónia tinham originalmente pertencido a Tissafernes, sen-do-lhe dadas pelo Rei, mas por esta altura, com a excepção de Mileto, todas o tinham abandonado em favor de Ciro. Em Mileto, tendo Tissafernes sido avisado de semelhantes intenções, tinha frustrado os conspiradores, executando uns e banindo os restantes.

Ciro, por seu lado, recebeu esses fugitivos, reuniu um exército e pôs cerco a Mileto por terra e mar, procurando restabelecer os exilados. Tal acabou por lhe fornecer ainda mais pretextos para continuar a recrutar forças. Ao mesmo tempo, apelou para Artaxerxes e argumentou que, sendo irmão do Rei, estas cidades lhe deveriam ser entregues a si e não a Tissafernes, no que teve o apoio da rainha sua mãe. Deste modo, o Rei não só não foi capaz de ver a conspira-ção que existia contra ele, como também concluiu que Ciro estava a gastar o seu dinheiro a equipar um exército para lutar com Tissafernes. Nem o incomodava grandemente que os dois se encontrassem em guerra, sobretudo porque Ciro tinha sido cuidadoso ao ponto de lhe enviar o tributo que lhe era devido relativo às cidades que tinham sido per-tença de Tissafernes.

Estava a ser reunido para Ciro um terceiro exército no Quersoneso9, em frente de Ábidos, o qual tinha a seguinte origem: existia um exilado espartano de nome Clearco que Ciro tinha conhecido. Ciro ficara impressionado com este homem e presenteou-o com dez mil dáricos10. Clearco rece-beu o ouro, com ele mobilizou um exército e, usando o

9 A actual península de Galipoli na Turquia. 10 O dárico era uma moeda de ouro persa, que pesava 8,3 gramas. Equivalia a 25 ou 26 dracmas áticas. Vide Pierre Briant, Histoire de L’empire perse de Cyrus à Alexandre (Leiden, 1996), vol.I, pp.420.

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A EXPEDIÇÃO DOS DEZ MIL 3 Quersoneso como base de operações, começou a lutar com os trácios a norte do Helesponto11. Tal ia de encontro aos interesses dos Gregos, e fê-lo com tanta felicidade que as cidades helespontinas, de sua livre iniciativa, contribuíam com fundos para sustentar as suas tropas. Deste modo, um outro exército estava a ser mantido para Ciro sem levantar suspeitas.

Ciro era também amigo do tessálio Aristipo. Este, em dificuldades devido à facção política rival na sua cidade, tinha vindo juntar-se a Ciro e pediu-lhe os fundos necessá-rios para pagar dois mil mercenários durante três meses, o que lhe permitiria, segundo dizia, vencer os seus adversá-rios. Ciro ofereceu-lhe o soldo de seis meses para quatro mil mercenários, estipulando apenas que Aristipo não esta-belecesse acordos com os seus adversários sem que o con-sultasse. Deste modo, um quarto exército estava secreta-mente a ser mantido na Tessália.

Por fim, instruiu Próxeno, um beócio, seu amigo, que reunisse o maior número de homens que pudesse e que se lhe juntasse numa campanha que planeava realizar contra o território dos Pisídios, os quais estavam a causar proble-mas nos seus domínios. De modo semelhante, ordenou a outros dois amigos seus, Soféneto, o estinfálio e Sócrates, o aqueu, que reunissem o maior número possível de homens e se lhe juntassem, uma vez que ele se preparava para ini-ciar uma campanha, com os exilados de Mileto, contra Tis-safernes. Estas ordens foram prontamente cumpridas pelos oficiais em questão.

II Quando lhe pareceu que tinha chegado o momento cer-

to para iniciar a sua expedição para o interior, usou como pretexto o seu desejo de expulsar os Pisídios do seu territó-rio e começou a reunir os seus exércitos bárbaros e gregos como se fosse marchar contra aquele país.

11 O estreito dos Dardanelos.

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4 LIVRO I

As suas ordens emanaram de Sardes em todas as direc-ções: para Clearco, que se lhe juntasse ali com a totalidade do seu exército; para Aristipo, que chegasse a acordo com os seus adversários e lhe enviasse todas as tropas que tivesse sob seu comando; a Xénias, o arcádio, que tinha sob seu comando todas as guarnições mercenárias nas cidades, que se lhe apresentasse com todos os homens disponíveis, exceptuando apenas aqueles que fossem estritamente necessários à guarnição das cidadelas.

Em seguida convocou as tropas que se encontravam ocupadas no cerco de Mileto e apelou aos exilados desta cidade para que o seguissem na expedição que pretendia realizar, prometendo-lhes que, se fosse bem sucedido no seu objectivo, não descansaria enquanto não os tivesse reinstalado na sua antiga cidade. Este apelo foi acolhido com entusiasmo, pois os exilados confiavam nele, e apre-sentaram-se com as suas armas em Sardes.

Também Xénias se apresentou em Sardes com o contin-gente das cidades, cerca de quatro mil hoplitas; também o fez Próxeno, com mil e quinhentos hoplitas e quinhentos homens de infantaria ligeira; Soféneto, o estinfálio, apre-sentou-se com mil hoplitas; Sócrates, o aqueu, com cerca de quinhentos hoplitas; enquanto Pásion, de Mégara, trouxe trezentos hoplitas e trezentos peltastas. Sócrates e este último oficial pertenciam às forças empregues no cerco de Mileto. Todos estes comandantes se juntaram a Ciro em Sardes.

Mas Tissafernes não deixou de tomar conhecimento destes preparativos, nem de reparar que um exército tão grande tinha de ter outro objectivo sem ser a invasão da Pisídia. Partiu então com toda a velocidade que pôde para avisar o Rei, acompanhado por cerca de quinhentos cavalei-ros. Este, por seu lado, assim que Tissafernes lhe contou dos grandes preparativos de Ciro, começou a preparar-se para o enfrentar.

Ciro partiu então de Sardes com as tropas que indiquei e marchou três dias através da Lídia, percorrendo cento e dezassete quilómetros até chegar ao rio Meandro. Este rio tem sessenta metros de largura e era atravessado por uma ponte de sete barcos. Transpondo-o, marchou através da

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A EXPEDIÇÃO DOS DEZ MIL 5 Frígia, percorrendo quarenta e três quilómetros num só dia, até chegar à grande e próspera cidade de Colossas. Aqui se deteve sete dias, tendo-se-lhe juntado Ménon, o tessálio, com mil hoplitas e quinhentos peltastas, dólopes, enianen-ses e de Olinto12.

A partir deste lugar marchou três dias, cento e seis qui-lómetros no total, até Celenas13, uma grande, próspera e populosa cidade da Frígia. Aqui Ciro possuía um palácio e uma grande propriedade, cheia de animais selvagens. Cos-tumava aqui caçar a cavalo sempre que se queria exercitar ou desejava fazer o mesmo aos seus cavalos. O rio Meandro passa através da propriedade, tendo a sua nascente dentro do complexo do palácio, e corre através da cidade de Cele-nas.

O Grande Rei também tem um palácio fortificado em Celenas, nas nascentes de outro rio, o Mársias, aos pés da cidadela. Este rio passa também através da cidade, desa-guando no Meandro, e tem sete metros e meio de largura. Diz-se que este é o local em que Apolo esfolou Mársias depois de o vencer numa disputa de habilidade. Apolo pen-durou a pele do vencido na caverna onde o rio nasce e daí o nome do rio, Mársias. Xerxes, segundo o que nos diz a tra-dição, construiu aqui este palácio e a cidadela na sua reti-rada da Grécia após ter perdido essa famosa campanha14.

Ciro deteve-se aqui durante trinta dias, durante os quais chegou o espartano Clearco com mil hoplitas, oitocentos peltastas trácios e duzentos arqueiros cretenses. Ao mesmo tempo chegou também o siracusano Sósis com três mil hoplitas e o arcádio Ágias15 com mil hoplitas. Ciro passou então revista às tropas e contou os gregos na sua proprie-

12 Este é o contingente enviado por Aristipo. A luta na Tessália era tão intensa que Aristipo apenas enviou estes homens. Os mercenários que não foram enviados a Ciro foram mais tarde massacrados numa batalha na Tessália. 13 Esta rota não era a mais directa para Ciro seguir. No entanto, Ciro tê-la-á adoptado para manter o pretexto de uma invasão da Pisídia 14 Após a batalha de Salamina em 480 a.C. 15 O texto refere Soféneto, o Arcádio, mas este já foi referido mais acima. Vide Maurice Mather e Joseph Hewitt, Xenophon’s Anabasis (Nova Iorque, 1910), pp.242

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6 LIVRO I dade: estes totalizavam onze mil hoplitas e cerca de dois mil peltastas.

Deste sítio marchou dois dias – cinquenta e três quiló-metros – até à populosa cidade de Peltes, onde se deteve três dias, durante os quais Xénias, o arcádio, celebrou as festas de Liceia16 com os respectivos sacrifícios e instituiu jogos. Os prémios foram coroas de ouro e o próprio Ciro foi um dos espectadores.

Deste local a marcha continuou mais dois dias, sessenta e quatro quilómetros até Ceramon-ágora 17 , uma cidade populosa, a última antes da fronteira com a Mísia. Desde esse sítio três dias de marcha – cento e sessenta quilóme-tros – levaram-no até Caistro, uma cidade populosa.

Aqui Ciro deteve-se cinco dias. Os soldados, cujo pagamento já se encontrava com três meses de atraso, vie-ram aqui várias vezes até à sua tenda exigindo os seus sol-dos. Ciro afastava-os com belas palavras e promessas; esta-va obviamente envergonhado, pois não era seu costume esquivar-se a pagamentos quando tinha os meios para o poder fazer. Então Epiaxa, a mulher de Siénesis, rei18 da Cilícia, veio visitar Ciro; disse-se que Ciro recebeu dela uma grande oferta de dinheiro. Em todo o caso, Ciro deu nesta altura ao seu exército o soldo de quatro meses. A rainha vinha acompanhada de uma escolta de cilícios e aspendia-nos e, a acreditar nos boatos, Ciro e a rainha dormiram juntos.

Deste lugar marchou mais dois dias – cinquenta e três quilómetros – até Timbra, uma cidade populosa. Aqui, à beira da estrada, fica a fonte a que se dá o nome de Midas, o rei da Frigia, e onde este, segundo reza a lenda, capturou o sátiro19 misturando vinho na água da fonte. Deste sítio 16 A Liceia era um festival Arcádio em honra de Zeus, semelhante à Luper-cália romana. 17 Ou Mercado de Oleiros. 18 Rei apenas em nome, pois era vassalo de Artaxerxes. “Siénesis” é de facto o título hereditário dos reis nativos da Cilícia. Este soberano, como se perceberá na narrativa, jogava um jogo duplo, procurando manter boas relações tanto com Ciro como com Artaxerxes. Vide Diodoro Sículo 14.20.3 para os seus avisos a este último. 19 Na mitologia grega, os sátiros eram os companheiros de Pã e de Dionísio. O seu corpo era em parte humano e em parte animal.

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A EXPEDIÇÃO DOS DEZ MIL 7 alcançou Tireu, uma cidade populosa, em mais dois dias de marcha – cinquenta e três quilómetros.

Aqui permaneceu três dias e a rainha da Cilícia, de acordo com os boatos, pediu a Ciro que exibisse o exército para seu deleite. Ciro, mais que pronto para efectuar tal exibição, realizou na planície uma revista aos gregos e às tropas bárbaras. Ordenou aos gregos que alinhassem na sua formação tradicional, cada general comandando a sua própria divisão.

Neste sentido, estes formaram linhas com quatro solda-dos em cada fileira. À direita encontravam-se Ménon e os seus comandados; à esquerda Clearco e os seus homens; ao centro os restantes generais e as suas tropas. Ciro inspec-cionou em primeiro lugar os bárbaros, que marcharam em esquadrões de cavalaria e companhias de infantaria. Depois inspeccionou os gregos, passando pelas suas formações no seu carro de guerra, acompanhado pela rainha da Cilícia numa carruagem coberta. Todos eles estavam armados com capacetes de bronze, túnicas vermelhas e grevas, e tinham os seus escudos destapados20.

Após ter passado por todo o exército, situou o seu carro de guerra no centro da linha de batalha e enviou o seu intérprete Pigres aos generais dos gregos, com ordens para apresentarem armas e realizarem um avanço generalizado de toda a linha.

Esta ordem foi repetida pelos generais aos seus homens e, ao som da trombeta, com escudos à frente e lanças em riste, eles avançaram como se para enfrentarem o inimigo. O passo acelerou, e com um grito os soldados iniciaram espontaneamente uma corrida, dirigindo-se para o acam-pamento: foi grande o pânico entre os bárbaros; a rainha da Cilícia fugiu na sua carruagem; os comerciantes no merca-do largaram as suas mercadorias e puseram-se em fuga, enquanto os gregos entraram no acampamento rindo à gar-galhada. Aquilo que mais espantou a rainha da Cilícia foi o

20 Isto é, prontos para o combate. Era costume aos hoplitas gregos serem ajudados por um ordenança que lhes carregava as pesadas armas até ao último momento antes do combate. Vide V.D. Hanson, The Western Way of War (Nova Iorque, 1989), pp. 55-71.

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8 LIVRO I esplendor e a disciplina do exército, e Ciro ficou maravi-lhado por ver o terror inspirado pelos gregos nos corações dos bárbaros.

Deste lugar marcharam três dias – cento e seis quilóme-tros - até Icónio21, a última cidade da Frígia, onde permane-ceram também três dias. Daqui marchou até Licaónia em cinco dias – cento e sessenta quilómetros. Como este era território hostil22, Ciro entregou-o aos gregos para que o pilhassem.

Nesta altura Ciro enviou a rainha da Cilícia para o seu próprio país pela rota mais rápida, escoltada por Ménon e pelos soldados às suas ordens. Ciro prosseguiu a sua mar-cha através da Capadócia durante quatro dias com o resto das tropas, percorrendo cento e trinta e três quilómetros até Dana, uma cidade populosa, grande e próspera. Aqui parou três dias, durante os quais Ciro mandou executar, sob acusação de conspiração, um nobre persa de nome Megafernes, que era secretário real, juntamente com uma outra pessoa poderosa entre os seus subordinados.

Deste lugar prosseguiram para tentar forçar a passagem até à Cilícia. A entrada fazia-se através de uma estrada pavimentada extremamente íngreme, impraticável para um exército que enfrentasse resistência. Informações davam conta que Siénesis estava no topo do passo, guardando o caminho e, de acordo com estas notícias, Ciro parou um dia na planície que o precedia. No dia seguinte chegou um mensageiro informando-o que Siénesis tinha abandonado o passo, sem dúvida após perceber que o exército de Ménon já tinha entrado na Cilícia e atravessado as montanhas. Também teria sido avisado que navios de guerra, perten-centes aos Espartanos e a Ciro, com o almirante Tamos a bordo, navegavam ao longo da costa da Iónia em direcção à Cilicia.

Fosse qual fosse a razão, Ciro efectuou a passagem pelas montanhas sem estorvo, e pôde observar o acampa-mento onde os cilícios tinham estado de guarda.

21 Actualmente a cidade de Konya na Turquia. 22 Um território autónomo no interior do império persa, como a Pisídia.

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A EXPEDIÇÃO DOS DEZ MIL 31

Mapa 2 – A Batalha de Cunaxa Plutarco dá-nos o nome da localidade em que se travou a batalha e também é ele que nos diz que Cunaxa ficava a cerca de noventa e dois quilómetros de Babilónia (Plutarco, Artaxerxes, 9.2). A rápida marcha de Ciro até ao campo de batalha surpreendeu estrategicamente Artaxerxes. Este, que tinha ordenado uma concen-tração das suas tropas em Ecbátana, preparava-se para não contestar a importante cidade de Babilónia porque a rapidez de Ciro não lhe permitiu concluir os seus preparativos. Tiribazo, governador da Arménia, convence no entanto Artaxerxes a não retirar mais para o interior do império e a enfrentar o seu irmão imediatamente, pois a sua superioridade já seria suficiente (Plutarco, Artaxerxes, 7.2). Ciro é então, por sua vez, apanhado de surpresa pelo inesperado avanço do exército do Rei e forçado a dar batalha com a sua ala esquerda ainda em marcha para o campo de batalha. A sua ordem a Clearco é uma tentativa de última hora de resolver este problema, mas Clearco não executa o ataque num ângulo tão oblíquo quanto Ciro pretenderia, por medo de expor demasiado o seu flanco direito.

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A Expedição dos Dez Mil