Livro Giant steps - jornaldepoesia.jor.br · como uma lua para dois ou o fantasma de Charles Ives...

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GIANT STEPS

2010-2011

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ALBERT AYLER

algum erro houve na entrada talvez no ingresso ainda tenho comigo o bilhete que reza todos são bem-vindos o verbo que era a princípio foi perdendo a argamassa do desejo a pronúncia do mundo desconhecendo o lábio de quem a ele ofertara a vida espíritos crianças fantasmas mágicos quando cruzo a soleira de certos mitos seus vultos angelicais se tingem com uma obscura tinta

que não reconhece a firma da inocência a carne dos santos não apodrece as mães são uma prece inconfundível eu fui doado a tantos enganos como um sermão perdendo a crença as pernas que dei a meus sonhos me puseram no egito de Sun Ra fiz ali com que minhas vozes fossem o choro mais agônico e quando desacreditei no que vi não era ainda uma mordaça o mundo se renova e seguiremos todos bem-vindos como uma lua para dois ou o fantasma de Charles Ives me visitando no teatro de meus improvisos não houve nunca como decifrar o erro incógnita voraz da existência ainda suponho que seja o bilhete e que eu tenha ido parar em outra fábula

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ALBERTA HUNTER

cave cave bem fundo mesmo sem encontrar nada continue cavando não há como devolver riso ao choro ou como guardar a vida na algibeira do morto certas vozes nunca se encontram sinais de fumaça lendas ensopadas lanternas vesgas cave mais fundo nunca se sabe onde o amor pode acabar os primeiros rascunhos comidos pela terra não importa quanto custe a alma sem ela o corpo nada vale jamais confie na memória com os olhos devorados pela névoa quem pode ler o que o amor soprou no interior de seus globos? quem pode ouvir os rasgos do silêncio? tráfico de planos pernas escritas de trás para a frente siga cavando ninguém sabe onde a terra cavada se esconde não há o fim certo ou a espera justa nem dor mais profunda que o tempo perdido no piano de Eubie Blake soletrei essas máximas quem sabe um dia elas brotassem nos dedos de Keith Jarrett todas as fontes ressequidas contas quebradas modinhas gastas não ficaram para trás

estão bem ali à frente onde eu teimo sozinha cave mais

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ART TATUM

o peixe queria mais boca por onde lhe beijasse o mar queria um trevo de estrelas um pandeiro de alegorias queria um céu transcrito na pele a pedra flutuante sorridente quimera nada que o mar pudesse lhe dar continha o mesmo segredo que a boca sabia acalantar o peixe tocava como um banquete de azuis uma rua repleta de sonhos a luva inquieta deixada sobre o piano a lua cantarolando em seu dorso quem ficaria ali até que a noite se fosse? o peixe com seu museu de sombras náuticas na esfera metálica dos argumentos duelo de pássaros na coxa de um deus tudo foi sendo deixado pela manhã até que o amor não mais distinguisse corpo e alma o peixe ria desse emaranhado de conflitos e ideais perdidos recordava antigo endereço da vertigem onde residira Jelly Roll Morton ninho de acidentes sortilégios polêmicas e antes que se pusesse a improvisar elegias nos lábios do mar sentou-se para um piano com Ben

Webster fizesse sol ou chuva a intuição dilatasse até onde o acorde a suportasse a perda vibrasse com a intensidade de um mundo por aprender nem céu nem mar a emoção não saberia que nome dar a si mesma nem sei onde estaríamos agora quem ficaria aqui até que a dúvida se fosse?

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ASTOR PIAZZOLLA qual música tocamos no deserto? como emprestamos a deus uma alma despida de presságios? pobre alma tão gentil que o abençoe o silêncio indecifrável nos aguarda detrás de cada olhar aquele tipo de silêncio que não deixa sobre a mesa qualquer displicência que possa ser usada como transporte para longe daqui qual música dedicamos à amplidão do que nos falta? talvez possamos começar com alguns milagres pela manhã alguém anotará as passagens ilegíveis no livro de areia tumulto de corpos desencontrados passagens que imaginamos possam levar de um tomo a

outro o livro sagrado e seu catálogo de avarias alguém dirá ao meu coração que nunca tenha forças para me abandonar desertos podem saltar páginas todo um capítulo dedicado à melancolia cadáveres desenterrados pela ventania cenários congelados dentro do sonho mesmo algo impossível de se aprender antes de uma boa refeição quando as dores se foram não pude escutar senão as cores delicadas de uma antiga profecia um dia eu viria aqui e apenas o deserto saberia que estive bebendo lágrimas a noite inteira quem suporta esses calafrios da alma emprestada a deus? quem toca a própria pele e por toda ela identifica a música de Coleman Hawkins? desertos despertam transfigurados alguém espere meu coração adormecer até que ele respire os acordes que nos levarão à última

página do livro à ressurreição da ampulheta

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BEN WEBSTER coisas para chamar dentro de si antes que a realidade mude de planos eu chamo a folhagem do sol ela chama um vislumbre prolongado quem chama um ramo de

palavras desconexas? lavatório de signos nada de adeus apenas a mímica da semelhança tu bem que poderias chamar a ilusão para um jogo de adivinha nós chamaríamos o nome

coberto de azinhavre para que se esquecesse de si falta um pronome aqui? alguém bate à porta à procura da fatalidade nenhuma perda suporta o abismo que evocou uma prenda na margem iluminada outra talvez

nas pernas trêmulas do beijo que se foi toque o trevo toque a treva um trago saltita a escala ampliada de Art Tatum onde a alegria

guarda consigo nome espírito reza e desvario a noite alcançada longe não a encontrei pensando em céu ou inferno improvisava interlúdios enquanto dormia teatro luminoso charada vista através da água miragem elétrica o mistério não sabe evitar a si mesmo como a chama do candeeiro eu chamo a chave de tua

música

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CANNONBALL ADDERLEY

o que amo não se repete ou busca ser entendido o fruto de sua avidez serena não vê motivo no regresso o destino melhor se reconhece em uma sala de espelhos o que amo não envelhece ou formula fragmentos fixos da viagem ardente do instante e sua árvore

de ecos quando o encontro está no interior da centelha inesperada visita que faz a mim mesmo transfigurado diálogo do orgasmo mergulho na tempestade corpo e espírito reconciliados

a noite queimando em sonhos o que amo descarna o estrondo do silêncio e o risco de escutá-lo queda dedicada ao abismo em todas as direções o que amo não tem uma única verdade possível percorro a origem das desfigurações a areia submersa dos desastres desconheço o número total de estátuas mortas não sei como tais símbolos poderiam viver de

outro modo talvez no palco com as sombras renegadas pudesse Frank Zappa encarná-los em risível esgar

supliciado a imaginação roendo as próprias unhas ele saberia o que amo é uma alegoria irrequieta um pronome desprendido da linguagem o que amo é uma conta de risos e não exige nada de mim o que amo por sorte não sei onde se encontra livro que começa no epílogo a salvo de si mesmo

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COLEMAN HAWKINS o teu olho me espera no centro da noite cravejado de lume improvisado na capela dos ventos onde rezo um mistério lacrado na pedra

como um autorretrato o teu olho eu não esqueço a ventania com que lapida cada pétala de seus truques a pequena roseta azul que fulmina a visão como um disparo a seco a pele delicada no varal do desejo body and soul cocktails for two lover man poor butterfly quando o teu olho começa não se pode alcançá-lo eu o vi certa vez em uma das meninas de Picasso a outra estrela sussurrava como se um véu a descerrasse o olho ao revés deixava entrever a silhueta de Gato Barbieri mesclada à folhagem alma para dois coquetel de espelhos sombras submersas minhas memórias foram rabiscando teu olho no escuro até que ouvimos a estrada chamar o que houve depois é impossível dizer a quem pertence

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FRANK ZAPPA

como abrir o olho da noite a história do olho cravejado de visões o espetáculo da lágrima tropeçando na verdade de seus mitos olimpo desgarrado pranto de máscaras recriadas a partir das cicatrizes o olho que faz rir o olho que cobra em riso a função teatral a cada noite debruçada na corcova do mistério nada está fora do precipício da balança da lixeira de pedra o olho implacável diz que tudo

é humano que ele próprio é humano que o humano não faz ideia do que não seja humano que o homem chora e ri no deserto de suas indagações aparência é renúncia a lâmpada crescendo no centro do olho é a essência pendular de todas as ilusões os músicos recortam o cenário para estimular a ironia o olho transbordando fagulhas pérola em chamas bosque recostado em cada pupila chora a terra o húmus de sua dor o homem mastigando a raiz do desvario besta recriada por si mesma deus protetor apenas do chapéu do invisível olá minhas musas por onde andaram com seus romances de falos enlutados? minhas carolinas que graças ao segredo da pilha nunca souberam o que é ficar sem nada na vida facho de luz cacarejando como uma velha índia bêbada que rasga as entranhas do destino e dali

retira ainda quente o instante em que o homem se perde de si e se põe a rir fatigada não há música fora do palco trevo de angústia trevo de remorsos trevas mordidas não há café expresso camisinha com sabor framboesa música de Albert Ayler nada fora do

empório da relutante espécie perdida os deuses se riem de suas potências obscuras o rock não me ouviu muito bem o blues muito menos jazz por onde andei a caixa de luzz deixada na soleira do fabricante de fogos de artifícios o sexo tem uma pontinha preta de orgulho onde fica? onde fica? no olho sagrado da noite que

planeja os melhores furtos ao contrário do que possam pensar todos vocês eu sou mesmo daqui

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GATO BARBIERI

espíritos assobiando nas árvores somente um cego pode revê-los enquanto a lua traquina se agita na pele do rio novena de encantos mandrágora insepulta manto de enigmas sítio sem nome onde apenas um de nós poderá vir beber as lágrimas do mundo templo onde a pedra saiba cantar dia passado em muitas águas febre em que o mito possa gastar-se somente assim todo oposto será possível espelho sangrando até a morte esquecimento com seu cálice inesgotável feitiço reescrito enquanto percorres a floresta o cego a guiar teus passos eu sou a noite escancarada na vastidão de tua mente eu sou o cego e a serpente cuspindo a si mesma pranto inevitável colmeia de conflitos porção de tudo quanto temes eu sou o deus que Morgana jamais encontrou a adaga desfigurada do caos a música que escondi dentro da voz de Alberta Hunter antes que um outro presságio pusesse o mundo novamente fora de esquadro antes que as lágrimas se escondessem em outro charco antes que a névoa voltasse a ser apenas dor e eu recobrasse o que jamais tive

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HERMETO PASCOAL o tocador quer beber um chá de vísceras as entranhas do mito passarinho aboiando nuvens franzindo a testa do acaso eu juro que vi o que ninguém podia o universo soprado ao revés a

tarde costurada na boca do sapo silhueta do som que só podemos fazer juntos eu fico assim só de ver o céu desfolhado por dentro o trevo de quatro quimeras que era para ser e não foi escondeu a pastagem dentro do bolso onde eu fui te buscar a surpresa havia encantado outro nome um tufo de luz matutando na escuridão a festa peneirando ritmos por todo o casario eu criei os meus meninos para que a viagem devore a própria cauda a flauta que soprei no coração indo embora de Cannonball Adderley foi para dizer que ele se

sentisse livre para ir ou ficar e dizem que deus é intocável quem quer uma capelinha plantada no varal que venha beber o sol na palma da minha mão eu toquei tuba dentro da escaleta a chaleira imitando um coreto místico cigarras solfejando o

milagre da existência eu fui pegando os pedaços do mundo que ninguém soube mascar soletrando o pavio dos desencontros ouvindo a sinfonia que alguém deixara de escrever nunca soube amar a vida de outro jeito ela sempre me dizendo toque mais um pouquinho

eu fui o seu bebê em tudo irredutível sede não sei parar de nascer

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KEITH JARRETT dar ao tempo o que mais lhe fadiga espaço sinais de fumaça em uma cordilheira sonora quem mais saberia o que está além das palavras? nada que nos faça encontrar o que apenas está perdido rostos de água máscaras de fogo furtivo desembarque de pétalas a partitura do abismo anota os movimentos com a mais invisível das tintas onde se lê que ela não gostaria jamais de ser surpreendida pela memória adágio mantra fuga o outro nome de cada notação falar com os pássaros dar à luz um gole da própria vertigem ao tempo o inesperado espaço deixá-lo à deriva até que desaprenda a relatividade de seu curso dizer o nome daquele que saiba ler o feitiço embaralhando as letras de Astor Piazzolla para que o

dia volte a ser noite teu piano alimenta as chances do caos dissipa suas impossibilidades insinua com quantos enigmas desorientar velhos hábitos sempre uma tecla com a qual ninguém contava

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SUN RA dez pianos esquisitos e um cadáver egípcio uma marimba de plumas e a famosa navalha de sete notas batuque de arco-íris eclipsado e a escolha de faces para o avulso epigrama da noite deus do sol da queda da flâmula de vertigens por onde averbas a dança a conversão o sacrifício tambor de nuvens um verso em nome de outro uma sombra inversa taquigrafando sonhos sete vozes na chuva e uma dançarina escada abaixo mezzanino do abismo em suas horas privadas escuto o teu piano como se fosses meu Hermeto Pascoal de outras eras tema recoberto de enigmas e o cadarço do delírio tropeçando nota adentro uma orquestra de orgasmos e as cinco estrelas de teu nome secreto deus da ilusão primitiva do pronome encoberto da cadência do imprevisível oremos

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