Livro: evolução ou revolução

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Evolução do livro.

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Ideias Finais

222 | 01 de Fevereiro de 2013

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Livro: evolução ou revolução

Evandro Morgado - Portugal

A s tecnologias alteraram irremediavelmente o ritmo da sociedade e do mundo. A fluidez da informação é vertiginosa e exige ubiquidade, pelo que as caraterís-ticas atuais intrínsecas à informação exigem novos dispositivos de acesso e um novo modelo para a conceção e para a apresentação – esta tem sido uma das tarefas mais difíceis de cumprir neste processo de mudança de paradigma.

A leitura num registo digital – tablets, e-readers, smartphones, entre outros – tomou as ruas e está a conquistar as salas de aula, as bibliotecas e outros espaços de acesso a informação. Esta ofensiva tecnológica, associada a outras tendências das tec-nologias educativas e comunicacionais, tem estimulado a comunidade científica e esco-lar a repensar o conceito de sala de aula, o paradigma de ensino e de aprendizagem e a forma de proporcionar o acesso à leitura. Por outro lado, o tecido empresarial tem estado atento a esta tendência e tem apresentado lentamente novos produtos adapta-dos a esta metamorfose. Não obstante, a margem de evolução deste mercado é gigan-tesca, dado o seu estado de desenvolvimento.

Os pedagogos, cientes dos riscos desta democratização relativamente à produ-ção e ao acesso à informação, reconhecem as mais-valias dos novos padrões de pro-dução e apresentação de conteúdos digitais: variedade de elementos gráficos, anima-ções, hipertexto, ligação a matérias complementares, apresentação multimodal da infor-mação, reciclagem de conteúdos, acessibilidade, omnipresença, preços normalmente mais baixos, entre muitas outras vantagens.

Neste contexto, urge reconhecer as características do atual processo de comu-nicação e de acesso à informação e perceber a tendência evolutiva das tecnologias associadas, para reformular os processos de produção, apresentação e distribuição e deconteúdos.

A evolução tecnológica a que temos assistido, sem prejuízo da que se antevê, tem dado estrutura ao conceito de sociedade de informação e, simultaneamente,tem levantado questões acerca da natureza, evolução, função e eventual extinção do livro-materializado na formacomo o vemos tradicionalmente – no papel. A WorldWide Web (WWW) tem ampliado a experiência do conteúdo digital em rede, proporcionando e potenciando a ubiquidade, a partilha, a interação,a intertextualidade e a hipertextualida-de.

É certo que, ao longo da história do livro e das formas de comunicação, regista-ram-se grandes transformações. A imprensa, por Gutemberg, revolucionou o acesso ao livro, mas não alterou a estrutura do livro que o códice introduziu. O próprio códice, enquanto evolução do rolo de pergaminho, não alterou os meios de produção de texto. Hoje, assistimos à revolução integral do livro enquanto conceito, já que decorrem trans-formações simultâneas em diferentes vetores: (i) modelos de produção de texto (ii) téc-nicas de reprodução de texto; (iii) recursos de divulgação; (iv) meios de disseminação; (v) forma e materialização do objeto. Segundo José Afonso Furtado (2002), estas alte-rações ficam a dever-se a três revoluções globais: técnica, morfológica e material:

Mas hoje estas três revoluções - técnica, morfológica e material estão perfei-tamente interligadas.” Essa singularidade leva a que enfrentemos uma crise nas categorias que têm permitido a nossa ligação com o livro e com a sua cultura. Por exemplo, (…) as que dizem respeito à propriedade e ao copy-right, que se cristalizaram durante o século XVIII, encontram agora diversas dificuldades face às características do texto electrónico. Mas o mesmo se passa com a noção da identidade do livro, identidade que é simultaneamente textual e material. Até agora, os géneros textuais podiam distinguir-se imedia-tamente pela sua materialidade específica. “Todos sabemos que um livro não é um jornal, que por sua vez também não é uma carta... Mas no mundo dos textos electrónicos esta diferença tende a desaparecer. (Furtado, 2002).

O livro é ainda ícone de verdade, fonte de conhecimento – é lei, doutrina, políti-ca, história, literatura, saber – e espelho das criações e das invenções, o que lhe confe-re uma imagem de autoridade que torna difícil o processo de relação entre o conceito livro e a associação à sua imagem enquanto objeto.

A destruição de um livro era a destruição do seu autor, pois enquanto objeto era o legado das suas ideias e da sua visão do mundo, fazendo o com que o livro se confundisse com o seu conteúdo. Referências Bibliográficas Furtado, J. A. (2002). “Livro e Leitura no novo ambiente digital” in Projecto Enciclopédia e Hipertexto. FCUL, Lisboa. Acedido no dia 2 de março de 2012 em http://www.educ.fc.ul.pt/hyper/resources/afurtado/index.htm

Retalhos A crónica que nunca

escrevi sobre meu pai

Eduardo Quive - Moçambique [email protected]

N asce o dia. É bom dia – mandam as nossas origens –

na dúvida do que os próximos tempos nos darão. Não importa.

Quando se acorda o dia é mesmo bom – bom dia! Meu pai sentado

na sala, tão imóvel quanto seu corpo! Um televisor ligado a barru-

lhar, uma mesa dos anos 80 encostada a parede, rompe de quando

em vez, a escuridão. Os ratos circulam sem temer. Uma secretária

que apenas guarda um prato com a comida de ontem apodrecida.

Um copo cheio de nuvens de poeira quase que cinzento. Um reci-

piente de dois litros contendo água quase aquecida pelo calor. De

onde se encontra, contempla a luz do dia que vai buscando horizon-

te. Vê tudo de lá. As pessoas que da rua passam, seus filhos que

não o saúdam, seus netos, galinhas, plantas, e a mafurreira. O seu

desejo é de contemplar tudo isto de perto. Tenta se levantar. Força

um movimento. Volta a cair na cadeira. Agora com a mão segura a

secretária onde encosta uma parte do corpo. Agora com mais força

se empurra o corpo para frente. Eis que consegue com mais sacrifí-

cio. Seu pé direito é aleijado. Sofre. A ferida verte sangue e pus. Às

vezes caem, enquanto anda, bichinhos. Cheira a merda e se prolife-

ra por toda a sala. Porém, quando a abre para a lavar, trata-a com

gosto. Lambe-a. Acaricia-a. são os seus vermes. Seus males. Suas

dores. Sua herança. Seu passado. Seu futuro. Uma ferida que se

alonga pelo corpo. Dá alguns passos modestos. Tudo no reforço a

moribundice. Contemplo-o. Olho sem piscar. Enfrenta cada paço

com meta e desafio. É doloroso. Mas enfrente é o caminho. Só não

sabe que os caminhos são vários. Ou há vida ou há morte neles.

Desta vez escolhe o da morte. Galga com gosto. Antes caiu, levan-

taram-no, tomou o chá de silêncio. Calou-se. Gesticulou. Tudo se

calou, apenas os olhos falaram. Mas como entender os desejos de

um olhar? Como ouvir a voz que nos olha? Agora está mais imóvel

ainda. Seu corpo quente e mais aquecido ao calor da urina na cama

onde aguarda sua morte, arde. Saem-lhe feridas. É muita dor. Mas

como expressar? Chora meu pai. Chora!. Não, os homens não cho-

ra. Não chora meu pai. Só os gestos dos que o vigiam tendem a

comunicar. Há lágrimas. Há sorrisos desesperados. Há visitas de

última hora. Há amigos instantâneos. Padres e madres, ausentes.

Minha mãe, reza. Reza, a sagrada tarefa das mulheres prestes a

ser viúvas. Não é um exercício de pedir saúde. É uma preparação

ao luto. Nenhuma lágrima contornará o percurso. O horizonte está a

espreita. Agora é por todos conhecidos. Levá-lo à medicina 2? Não.

É morte certa. Mas o que é morte certa? Ele já está morto. É tudo

suspiro das almas. Os olhos ainda movem. As feridas ainda abrem-

se. Com sua única mão sobrada da paralisia já não pode acaricia-

las, beija-las, cura-las. Já não é vida. Morrer é solução – disse meu

pai. Ninguém mais merece um eterno descanso.