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Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes
Departamento de Artes
Curso de Licenciatura em Artes Visuais
MAYARA SUELLEN DE ARAÚJO SILVA
LIVRO E IMAGEM:
UMA ABORDAGEM DO LIVRO COMO OBJETO DE ARTE NO
ENSINO FUNDAMENTAL
NATAL
2015
MAYARA SUELLEN DE ARAÚJO SILVA
LIVRO E IMAGEM:
UMA ABORDAGEM DO LIVRO COMO OBJETO DE ARTE NO
ENSINO FUNDAMENTAL
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Universidade Federal do Rio Grande do Norte como requisito parcial para obtenção do título de Licenciado em Artes Visuais.
Orientadora: Profa. Dra. Evanir de Oliveira Pinheiro.
NATAL
2015
MAYARA SUELLEN DE ARAÚJO SILVA
LIVRO E IMAGEM:
UMA ABORDAGEM DO LIVRO COMO OBJETO DE ARTE NO ENSINO
FUNDAMENTAL
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à
Universidade Federal do Rio Grande do Norte como
requisito parcial para obtenção do título de Licenciado
em Artes Visuais.
Orientadora: Profa. Dra. Evanir de Oliveira Pinheiro.
Aprovada em ___/___/ 2015.
BANCA EXAMINADORA
_____________________________________________________________ Profa. Dra. Evanir de Oliveira Pinheiro
Orientadora Universidade Federal do Rio Grande do Norte
_____________________________________________________________
Profa. Dra. Laurita Ricardo Salles Examinadora Interna
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
_____________________________________________________________ Profa. Dra. Nivaldete Ferreira da Costa
Examinadora Convidada Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Aos meus pais, Eriberto e Marilene.
AGRADECIMENTOS
À minha orientadora, Profa. Dra. Evanir de Oliveira Pinheiro, pelo incentivo para
o desenvolvimento do trabalho e por contribuir de maneira efetiva para este estudo,
direcionando e iluminando certas passagens que estavam obscuras em minha mente.
Aos demais professores do curso que contribuíram de maneira direta ou
indireta para a realização desta pesquisa, me beneficiando com os seus ensinamentos
sobre Pintura, Arte Gráfica, Ensino e História das Artes. Em especial, Prof. Dr. Vicente
Vitoriano, Profa. Dra. Laurita Ricardo Salles e Prof. Dr. Everardo Ramos.
Aos meus colegas de curso, especialmente Leíze, Cristiane e Alana, que
compartilharam comigo dificuldades e conquistas.
Aos meus pais, que sempre confiaram e compreenderam as adversidades do
percurso, toda a minha gratidão.
É transgressor conceber uma obra aberta,
onde várias leituras possam se relacionar. É
transgressor propor uma narrativa somente
por elementos visuais. E é transgressor
considerar que o livro sem texto,
aparentemente um objeto lúdico, também
oferece uma narrativa literária para diferentes
leitores, sejam eles crianças ou adultos.
(Marilda Castanha)
RESUMO
Este trabalho é pautado em uma pesquisa sobre Arte cuja abordagem é o livro enquanto suporte artístico, em uma primeira perspectiva, a partir de investigações sobre a imagem no livro ilustrado, fundamentadas nos estudos das pesquisadoras Linden, Nikolajeva e Scott, no campo da Literatura, e nos estudos sobre livro como objeto de arte, de Plaza e Silveira, para examinar quais as proximidades da imagem pensada para o livro com as artes visuais. Baseando-se nos estudos de Aumont, Calvino, Flusser e Merleau-Ponty, a pesquisa analisa o papel da imagem e da imaginação no processo criador, bem como as maneiras com as quais a imagem se configura neste suporte. O trabalho estabelece o livro ilustrado como veículo educativo para a abordagem da linguagem visual na escola, colaborando para o processo de construção do repertório imagético da criança nos anos iniciais, tomando como base o método de leitura de imagem de Edmund Feldman a partir dos esclarecimentos de Ana Mae Barbosa, que o apresenta como uma análise comparativa consolidada em quatro processos: a descrição, a análise, a interpretação e o juízo, com o intuito de favorecer a compreensão do livro ilustrado como objeto fomentador positivo para o desenvolvimento da alfabetização visual em consonância com o letramento verbal da criança, e do aprimoramento da inteligência visual do leitor em qualquer idade. Desse modo, a experiência projeta novos olhares sobre o livro na sala de aula e revela a importância da ilustração em sua construção e significação, coletando informações que possam contribuir para o universo amplo que é o estudo da imagem no campo da Arte, principalmente quando aplicada no âmbito do Ensino Fundamental.
Palavras-chave: Livro. Imagem. Alfabetização visual. Ensino de Arte.
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 - Dieter Roth, Children’s book (Kinderbuch), 1957. ..................................... 17
Figura 2 - Suzy Lee, Onda, 2009. Livro-imagem........................................................17
Figura 3 - Ziraldo, Flicts, 1969.................................................................................... 19
Figura 4 - Suzy Lee, Onda, 2009. Livro-imagem. ...................................................... 21
Figura 5 - Suzy Lee, Espelho, 2010........................................................................... 21
Figura 6 - Suzy Lee, Sombra, 2011. .......................................................................... 21
Figura 7 - Gabrielle Vincent, La Petite Marionnette (A Pequena Marionete), 1992.
Crayon lithographique. .............................................................................................. 22
Figura 8 - Rui de Oliveira, O Barba Azul, 2002..........................................................23
Figura 9 - Rui de Oliveira, Uma História de Amor sem Palavras, 2011 ..................... 23
Figura 10 - Rui de Oliveira, Uma história de amor sem palavras, 2009..................... 33
Figura 11 – Turma na Biblioteca................................................................................37
Figura 12 – Reconhecendo os livros.......................................................................... 37
Figura 13 - Leitura coletiva de livro de imagem..........................................................37
Figura 14 -. Uma História de Amor sem Palavras...................................................... 37
Figura 15 - Na sala de aula........................................................................................37
Figura 16 - Fazendo autorretrato. .............................................................................. 37
Figura 17 - Produção das pinturas.............................................................................38
Figura 18 - João e seu autorretrato............................................................................ 38
Figura 19 - Passando cola no verso da pintura..........................................................39
Figura 20 - Colando as pinturas no livro suporte. ...................................................... 39
Figura 21 - Capa e primeiras páginas do livro “Todo mundo é todo mundo”............. 40
Figura 22 - Outras páginas e combinações de rostos................................................ 40
Figura 23 - Outras páginas e combinações de rostos................................................ 41
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 10 1. O livro e a Arte ..................................................................................................... 14 2. O livro, a imagem e a imaginação ...................................................................... 26 3. Buscando um processo criativo para abordagem da leitura de imagem na escola ................................................................................................... ....................30 3.1 O contexto escolar ......................................................................... ....................31 3.2 O fazer artístico ................................................................................................... 32 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................. 42 REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 45
10
INTRODUÇÃO
Quando criança, ainda muito pequena, eu carregava para lá e para cá um
livrinho com a estória de A Pequena Sereia. Tratava-se de uma edição barata, e não
era a história contada pela Disney, e sim o conto de Hans Christian Andersen, numa
versão simplificada, mas ainda dramático e consistente. Em virtude de uma memória
falha, não recordo exatamente se o livro foi adquirido antes ou depois de eu ser
alfabetizada, mas posso lembrar que não era apenas a estória que exercia atração.
As ilustrações eram fascinantes. Ainda hoje, recordo a página dupla onde a sereia e
suas irmãs se divertiam em alto mar, com seus cabelos coloridos e enfeitados de
conchas se movimentando de acordo com a água (tudo, pela lembrança,
singelamente pintado à aquarela). Eu gostava de desenhar por cima das imagens e
de tentar reproduzi-las em outros papéis, até que o livro se desgastou, outros
interesses vieram, e ele foi perdido de vista. Apesar dos outros interesses,
mantiveram-se a mania de desenhar e o gosto por livros e ilustrações.
Como artista visual, educadora e ilustradora em formação, busquei tomar um
caminho da pesquisa que pudesse conciliar tais interesses, inter-relacionando-os,
assim como cada fazer está ligado ao outro. A ilustração instrui, conta histórias, emite
mensagens e, assim como uma obra de arte, admite reflexões críticas, técnicas e
educacionais. Sendo assim, o livro ilustrado constituiu o ponto de partida para
repensar o livro como forma de arte e como recurso didático.
As investigações deste tema surgiram com o interesse inicial nos livros
ilustrados da literatura para crianças, com atenção especial aos “livros de imagem” –
também chamados de “livros-imagem”, “narrativas-imagéticas”, “histórias sem
palavras”, dentre outros termos –, que são livros em que a narrativa visual se sobrepõe
à narrativa verbal.
A relação da leitura e da imagem no livro ilustrado é vista, nos estudos de
Linden (2011) e Nikolajeva e Scott (2011), como um processo indissociável de uma
situação ampla em que se lê muito mais do que a imagem. Ler é prestar atenção nos
detalhes da imagem e compreender os signos icônicos apresentados, mas também
significa interpretar o livro em sua forma e composição, e, além disso, estabelecer
paralelos com o próprio repertório visual. Dessa forma, as imagens são
compreendidas como um importante elemento de expressão. As ilustrações contam
11
histórias e estão lá para serem lidas e interpretadas, e não somente para
acompanharem a mensagem expressada textualmente, como subentende o senso
comum.
Nas considerações de Plaza (1982) e Silveira (2008) sobre livro de artista,
observou-se que, muitas vezes, o processo criativo e o resultado plástico de um livro
ilustrado aproximam-se dos conceitos de livro de artista, quando o projeto se apropria
de linguagens artísticas variadas e promove experimentações poéticas, gráficas e
plásticas, como também uma leitura aberta a significados diversos.
Ao articular as reflexões de Aumont (1993) sobre imagem e as ideias de Calvino
(1990) sobre visibilidade, percebe-se que todo o conjunto de informações referentes
às circunstâncias a que se tem acesso a imagens e o contexto social em que se vive
têm influência direta à maneira que se lê a imagem. Desse modo, a leitura de mundo
e os parâmetros visuais repassados pela comunicação – e demais meios culturais e
sociais que o indivíduo de determinada época vivencia – refletem significativamente
no resultado de uma leitura visual. Conforme os estudos de Aumont (1993), observou-
se que o autor acredita que ler uma imagem é observá-la de um espaço real e contatá-
la de uma dimensão diferente, ou seja, um espaço próprio a ela. Por outro lado, para
Merleau-Ponty (2004), o mundo visível e o físico, como o próprio corpo do observador,
não se dividem: estando juntos, formam o indivíduo em sua totalidade.
Refletindo sobre as ideias de imagem e imaginação, observou-se que, tanto
Flusser (1985) quanto Calvino (1990) compreendem que as imagens têm origem na
imaginação. Sob esse aspecto, Calvino (1990) desenvolveu a ideia de pensar por
imagens, o que ele define como a capacidade mental de criar formas, linhas, textos e
cores. Para Flusser (1985), é a partir da imaginação que se consegue abstrair apenas
as duas dimensões do plano para a configuração de uma imagem.
Os autores estudados concordam, em geral, que a experiência visual do mundo
esteve avançando e tem avançado cada vez mais, a partir do surgimento de meios
gradativamente mais diversificados de dissipação da imagem. A imagem, por sua vez,
já é um meio plural. No panorama da ilustração, foi observado que a imagem tem sido
utilizada há bastante tempo no livro ilustrado, mas que só no período mais recente da
história conquistou maior status na literatura, o que ainda assim revela que a
importância da imagem no livro vem sendo reconhecida, fato que é refletido também
nos crescentes estudos e publicações a respeito deste tema.
12
Ao refletir sobre as possibilidades de leituras de imagem e de fazer criativo
tendo o livro como suporte artístico, surgiram questões como: quais proximidades
poderiam ser identificadas entre o livro de artista e o livro ilustrado? Como a imagem
é pensada dentro de um projeto de narrativa imagética? Qual método de abordagem
do livro na sala de aula seria mais efetivo para auxiliar o desenvolvimento do
alfabetismo visual dos leitores?
Partindo dessas inquietações, a presente pesquisa tem como objetivos: 1.
Analisar o papel da imagem no livro ilustrado como objeto estético da linguagem
gráfica; 2. Analisar o livro ilustrado como veículo educativo para abordagem da
linguagem visual e identificar suas aplicações pedagógicas.
Sendo assim, para compreender a relação da leitura e da imagem no livro
ilustrado, fez-se um diálogo com os estudos de Linden (2011) e Nikolajeva e Scott
(2011), buscando fundamentação, também, nas considerações de Plaza (1982) e
Silveira (2008) sobre livro de artista. Para sistematizar as ideias sobre imagem e
imaginação, articulou-se as reflexões de Aumont (1993), Calvino (1990), Flusser
(1985) e Merleau-Ponty (2004). O método de abordagem empregado para a
interpretação da imagem na leitura de livros é o “Método comparativo de análise de
obras de Arte”, de Edmund Feldman (apud BARBOSA, 2009), que, de acordo com as
considerações de Barbosa (2009), baseia-se numa análise desenvolvida por meio de
quatro processos: descrição, análise, interpretação e julgamento.
Nessa perspectiva, Livro e Imagem – Uma abordagem do livro como objeto de
arte no Ensino Fundamental é uma pesquisa sobre arte que aborda o livro, em uma
primeira perspectiva, como suporte artístico, a partir de investigações sobre a imagem
no livro ilustrado; seguindo assim, analisa o papel da imagem e da imaginação no
processo criador, e as maneiras com as quais a imagem se configura neste suporte.
Esta pesquisa pretende contribuir para o estudo da imagem no campo da Arte,
buscando visualizar diálogos entre a imagem e o livro no contexto do livro de imagem
da literatura infantojuvenil, assim como pretende inserir-se nas discussões sobre
linguagem e alfabetização visual no âmbito da Educação Infantil e da Educação
Básica, utilizando a abordagem comparativa de imagem de Edmund Feldman como
proposta metodológica correspondente a esses interesses.
O presente estudo está estruturado em três capítulos que pretendem interligar
as investigações e promover um diálogo sobre o livro com a arte, com a imagem e
13
com a experiência de abordagem didática, focalizando, em cada um, as
fundamentações teóricas analisadas.
No capítulo um, procura-se analisar a relação do livro com a arte, observando
os aspectos que delineiam a história do livro, as transformações como objeto de
linguagem e sua ressignificação na arte. Desse modo, reflete-se sobre as
possibilidades de aproximação entre o fazer artístico do livro de artista e do livro
ilustrado, analisando alguns aspectos constituintes da utilização da imagem na
ilustração.
Em seguida, no capítulo dois, abordam-se as circunstâncias da imagem e da
imaginação para o olhar do espectador e do criador de imagens, ressaltando a
fundamentação teórica que norteou o estudo e centrando-se nas interações que
decorrem do processo de ver, pensar e produzir imagens, contidos no ato de ler.
Contextualiza-se, também, a metodologia estabelecida para a atividade de leitura de
imagens nos livros ilustrados desenvolvida na escola.
No capítulo três reflete-se sobre a abordagem do livro na escola, discutindo o
processo criativo e a aplicação do método de leitura escolhido com as crianças. O
capítulo subdivide-se nos relatos sobre contexto escolar e sobre as impressões a
respeito da ação desenvolvida com os alunos, descrevendo as etapas de
contextualização e apreciação dos livros de imagem, da prática de produção imagética
e de construção manual do livro.
Por fim, nas considerações finais, temos uma análise da importância do
exercício de leitura imagética na construção da linguagem visual das crianças,
destacando as situações decorridas da atividade, os êxitos e as dificuldades
encontradas pelas crianças durante os processos de leitura e feitura do livro, como
também as reflexões ocasionadas pelo estudo no que concerne à relação livro e
imagem, evidenciando as contribuições e perspectivas que se busca abranger.
14
1 . O Livro e a Arte
Gosto de observar as ilustrações, de perceber a trama das retículas
de impressão, de encontrar um desajuste nas cores: descobrir o
magenta e o amarelo por detrás do vermelho. (...) as páginas
amareladas, manchas de uso, anotações nas margens, os nomes em
esferográfica de seus donos.1
O que pode ser evidenciado em um livro ilustrado? Um objeto criativo de
artistas, que vai além de simples obra literária, diria Silveira (2001), visto que, para o
autor, uma obra literária é de escritores, pesquisadores e publicadores, enquanto que
o livro é de artistas, artesãos e editores, e se constitui das linhas e formas, tons e
subtons que dialogam, ensinam, atraem e envolvem seus leitores em processos
comunicativos inimagináveis.
O livro tradicional, assim como é conhecido desde o advento dos códices, é um
veículo de comunicação que atravessa séculos de maneira firme, seja como
documento de registro histórico ou como fonte de entretenimento e apreciação da
literatura.
Em 1985, em suas Lições americanas2, Italo Calvino (1990) reflete sobre o
último milênio como um longo período em que surgiram e se consolidaram as línguas
ocidentais modernas, e, como consequência, as literaturas, descobrindo e se
utilizando de suas possibilidades “expressivas, cognoscitivas e imaginativas”
(CALVINO, 1990, p.11).
Nesta medida, o autor afirma que aquele foi o milênio do livro, tendo o livro
nascido e evoluído para tomar a forma que se conhece. Na década de 80, quando
Calvino escreveu tais passagens, ele já questionava os rumos do livro e da literatura
relacionados ao desenvolvimento tecnológico.
Conforme evidenciou Calvino, naquele tempo, a indústria literária não deixa de
acompanhar os avanços tecnológicos, e, hoje em dia, livros eletrônicos (ou e-books)
1 (SILVEIRA, 2001, p.13). 2 CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio: lições americanas. São Paulo, Companhia das Letras, 1990.
15
encontram-se à venda nas prateleiras virtuais das livrarias. Mas, diferente da contínua
substituição de antigos dispositivos eletrônicos de outras linguagens (como música e
vídeo, por exemplo), o livro, em seu formato habitual – constituído de papel, tinta,
textura e aroma –, ainda é tão importante quanto a sua versão eletrônica,
estabelecendo-se entre ambos os formatos (físico e digital) uma relação de
coexistência. Dessa forma, a cultura do livro – como o é, desde a Antiguidade –
habilmente persiste e continuamente se adapta.
Além das transformações decorrentes dos avanços tecnológicos, o livro e a
leitura, de um modo geral, recebem uma constante influência dos meios de
comunicação e de todo o conjunto de mundo visual e cultural que se estabelece na
sociedade através dos tempos. Essa influência é refletida diretamente nos modos em
que este material pode se apresentar, adaptando-se aos interesses visuais, os quais
o leitor de cada época vivencia. Plaza (1982) reforça esse pensamento quando afirma
que a leitura do mundo cotidiano se amplificou e se amplifica cada vez mais. Para ele,
o homem recebe influência significativa das imagens de publicidade, dos textos e
imagens espalhados pela cidade, e de todo o conjunto de informações visuais
evidenciados massivamente pelos meios de comunicação, que, conforme ele explica,
“fornecem-nos dados culturais que correspondem aos módulos de nossa época,
criando, por outro lado, inter-relações não somente intermedia como interlínguas”.
Plaza (1982) ainda enfatiza que se livros são objetos de linguagem, também
são matrizes de sensibilidade. Ele afirma que o fazer-construir-processar-transformar
e criar livros implica em determinar relações com outros códigos e, sobretudo, apelar
para uma leitura sinestésica com o leitor. Em outras palavras, livros que instigam os
sentidos e que não são apenas lidos, mas cheirados, tocados, vistos, jogados e
também destruídos, visto que o livro dialoga com diversos códigos. O seu peso, seu
tamanho, seu desdobramento espacial-escultural e todos os aspectos de sua
construção são levados em conta, possibilitando novas descobertas.
Em meio a um campo aberto de possibilidades, ao livro é permitido inovar,
experimentar, relacionar-se com outras linguagens e reestruturar-se. Fazendo uma
ponte da literatura para as artes visuais, no universo da Arte o livro deixa de ser
apenas literário e pode se estabelecer como obra, e ao considerar um propósito
artístico o livro subverte a sua condição cotidiana, adquire e emite novas significações.
16
Dessa maneira, “a criação do livro como forma de arte comporta um distanciamento
crítico em relação ao livro tradicional” (PLAZA, 1982).
Como objeto de arte, o livro se instaura reconhecidamente como obra de arte
apenas na segunda metade do século 20. No entanto, o conceito de livro de artista
pode ser empregado a trabalhos de períodos anteriores à arte contemporânea. De
acordo com Silveira (2001), é possível retroceder “quase que indefinidamente no
tempo na busca da origem do livro de artista” (SILVEIRA, 2001, p. 30). Ele traz
exemplos como o livro-objeto A Caixa Verde, de Marcel Duchamp (1934), os livros de
William Blake, publicados entre 1788 e 1921, e também os cadernos de Leonardo da
Vinci, produzidos entre o século 15 e começo do século 16.
Os livros de artista são, de fato, designação de uma categoria que se abre em
diversos meios de experimentação no campo das artes visuais. Para Silveira, o livro
de artista “é uma categoria (ou prática) artística que desenvolve tanto a expressividade
das linguagens visuais como a experimentação das possibilidades expressivas dos
elementos constituintes do livro ele mesmo” (SILVEIRA, 2001, p. 77). Plaza propõe
um quadro que esmiúça a classificação de livros de artista em subcategorias a partir
de sua linguagem e intenção criativa, que vão de Livro ilustrado, Poema-livro, Livro-
poema/Livro-objeto ou Livro-obra, Livro-conceitual, Livro-documento e Livro
intermédia, até Antilivro, quando “a ideia do livro se esvai e extrapola para outra
linguagem” (PLAZA, 1982), sendo este considerado uma paródia de livro e já uma arte
tridimensional.
Com trabalhos e produções tão diversificadas, o livro de artista transita
convenientemente entre linguagens distintas, habitando um contexto híbrido de largo
campo de ação. Posiciona-se, principalmente, como uma instância que requer a
interação do leitor, à medida que solicita a sua compreensão sensorial – como
evidenciou Plaza –, como também a sua interpretação como poética. Um exemplo é
o “Livro infantil” (Figura 1, p. 17), do artista alemão Dieter Roth.
17
Figura 1 - Dieter Roth, Children’s book (Kinderbuch), 1957.
Fonte: Site Daddytypes.
Conforme explicado anteriormente, as investigações deste relatório surgiram
com o interesse inicial nos livros ilustrados da literatura para crianças, especialmente
os livros de imagem e/ou livros de narrativa visual. Neles, as imagens são
compreendidas como elemento principal de expressão, com semelhante relevância
poética às palavras. Sob esse aspecto de narrar histórias utilizando-se da
sequencialidade de imagens, esses livros se aproximam das linguagens dos poemas
visuais, das histórias em quadrinhos, dos storyboards e do próprio cinema.
Figura 2 - Suzy Lee, Onda, 2009. Livro-imagem.3
Fonte: Blog da Cosac Naify.
Nesse tipo de livro, dada a importância da imagem, do design, da montagem,
da diagramação e de todos os respectivos elementos correspondentes à sua feitura
material, há um final criativo que muitas vezes sustenta tanto a forma quanto o
significado. Sendo assim, mesmo não possuindo caráter de arte, as preocupações e
3 Sequência de duas páginas duplas do livro-imagem Onda, da autora coreana Suzy Lee, publicado pela Cosac Naify.
18
explorações estéticas do livro ilustrado podem se aproximar das questões da
produção de um livro de artista, no que concerne a seus aspectos técnicos. Segundo
Plaza,
O “livro de artista” é criado como um objeto de design, visto que o autor se preocupa tanto com o “conteúdo” quanto com a forma e faz desta uma forma-significante. Enquanto o autor de textos tem uma atitude passiva em relação ao livro, o artista de livros tem uma atitude ativa, já que ele é responsável pelo processo total de produção porque não cria na dicotomia “continente-conteúdo”, “significante-significado” (PLAZA, 1982, grifo nosso).
Essa reflexão acerca da atitude ativa do autor/artista de livros pode ser
estendida à relação do leitor/observador com o livro, e sua interação com o objeto é
parte importante da sua significação, seja referente ao seu manuseamento,
explorando as possibilidades do objeto, seja envolvendo a percepção do conteúdo, a
leitura e a interpretação dos significados. O livro existe para que o leitor interaja com
ele e tente refletir todos os sentidos implícitos e explícitos.
Quando o autor se faz artista do livro e cria projetos que favorecem a fluência
entre as linguagens, com diferenciais que vão de trabalhos gráficos ricamente
pensados à introdução de uma poética visual mais aguçada, é possível observar os
indícios da influência da arte contemporânea sobre o livro ilustrado. Contudo, o livro
ilustrado também não é necessariamente algo novo. Segundo Aguiar (2011), há livros
datados dos séculos 18 e 19, entre eles “O livro inclinado e O livro do foguete, de
Peter Newell, exemplos de interação entre conteúdo e suporte, que foram publicados
pela primeira vez em 1910 e 1912”. No Brasil, as experimentações com o livro (na
indústria literária) foram mais tardias. A autora ressalta alguns nomes pioneiros neste
tipo de publicação no país, como Ziraldo, que publicou Flicts em 1969, e Juarez
Machado, com Ida e volta, em 1976. Na década de 1980 destacam-se as autoras Eva
Furnari e Ângela-Lago, produzindo livros ilustrados de imagem ou de palavra e
imagem.
São estes, os livros ilustrados: livros nos quais “ou se prescinde da palavra
escrita ou ela atua juntamente com a ilustração”4. Nesta pesquisa, o livro ilustrado é
4 Definição de livro ilustrado pela Revista Educação. Disponível em: <http://revistaeducacao.uol.com.br/textos/170/o-poder-das-imagens-234958-1.asp>. Acesso em 8 abr 2014.
19
compreendido principalmente como recurso para o exercício de leitura visual na
escola. Inserido no universo do ensino de Arte, e sendo levado para a sala de aula
como objeto de linguagem artística, é possível explorá-lo de diversas maneiras,
percebendo-o além de sua natureza literária formal. Como material plástico, o livro
pode ser discutido e experimentado como “forma-significante” (PLAZA, 1982), se
transformando num objeto que promove uma leitura ainda mais ampla. De acordo com
Linden (2011), ler um livro ilustrado não é um ato simples, como se presume. Não se
trata apenas de ler texto e imagem, “é também apreciar o uso de um formato, de
enquadramentos, da relação entre capa e guardas com seu conteúdo; é também
associar representações, (...) afinar a poesia do texto com a poesia da imagem”
(LINDEN, 2011, p. 8-9). Ler depende indiscutivelmente da formação do leitor e do
repertório que carrega.
Figura 3 - Ziraldo, Flicts, 1969.
Fonte: Site Choco La Design.
Flicts (Figura 3), do autor e artista Ziraldo, foi editado e publicado pela primeira
vez em 1969. Livro de literatura infantil brasileira – que em verdade é apreciado por
todas as idades –, propôs inovações em diversos aspectos. Ele narra a história de
uma cor que não encontra seu lugar entre as cores do arco-íris, e seu projeto gráfico
é pensado de maneira a contribuir para a história e a narrativa, o que realiza com
sucesso, imprimindo ao livro uma diagramação moderna para a época, com quadros
de cores que sangram as margens5, ao mesmo tempo em que elas, as cores, são
5 Termo gráfico que se refere à imagem quando impressa até a borda do papel, ou seja, sem deixar margem.
20
apresentadas ao leitor como personagens ricos em vida, findando por ser um exemplo
notável desse limiar entre livro como objeto de arte e de literatura.
O livro Flicts foi um dos títulos à mostra na 1ª Exposição Nacional de Livro de
Artista (SILVEIRA, 2001, p. 56), que aconteceu em Recife, em 1983, organizada por
Paulo Bruscky e Daniel Santiago. O evento reuniu 82 artistas e um total de 155 obras
expostas.
Há, também, livros em que os espaços das páginas são importantes elementos
para a construção da narrativa. As páginas acabam exercendo uma função
significativa na história. Um exemplo disso é a série chamada pela autora, a coreana
Suzy Lee, de “Trilogia da Margem”. Composta por Onda, Espelho e Sombra, a trilogia
coloca a dobra das páginas duplas (a área de junção entre as folhas) também como
o problema central de cada história (histórias estas contadas apenas por imagens).
Sobre a dobra, é fato que ela deve sempre ser considerada durante a feitura de um
livro. Seja de qual espécie for o projeto de livro, as margens internas devem ser
pensadas previamente, de modo a evitar quaisquer erros de impressão. Mas a dobra
também sugere possibilidades criativas, como recorda Linden, ao afirmar que
No livro ilustrado, como também no livro de artista ou algumas coletâneas de poemas – depois que Stéphane Mallarmé fez com que o texto transpusesse a margem interna com seu ‘Um lance de dados jamais abolirá o acaso’ (1897/1914) –, a organização das diferentes mensagens não necessariamente respeita a compartimentação por página. Textos e imagens se dispõem livremente na página dupla. A possibilidade que os criadores têm de se expressarem nela faz da página dupla um campo fundamental e privilegiado de registro (LINDEN, 2011, p. 65).
Conforme assevera Linden (2011), os criadores de livros podem se utilizar da
encadernação do livro e ressignificá-la com um projeto diversificado, criando
“correspondências ou ecos de uma página para outra” (LINDEN, 2011, p. 66). É
precisamente isso que Suzy Lee trabalha em seus livros. Em Onda (Figura 4, p. 21),
A divisão central das páginas demarca o espaço de separação entre a personagem e
o mar.
Para chegar até ele, a menina protagonista precisa atravessar de uma página
a outra. Em Sombra (Figura 6, p. 21), a autora propõe um jogo de simetria entre as
21
páginas, e o limite central é também o divisor entre um mundo e outro: o da menina e
dos objetos em uma sala, e o de suas respectivas sombras, cenário para os devaneios
da personagem. Em Espelho (Figura 5), uma página é espelho da outra; a
personagem se duplica, e sempre há a dúvida sobre qual garotinha é a real e qual é
o reflexo.
Figura 4 - Suzy Lee, Onda, 2009. Livro-imagem.
Fonte: Blogspot.
Figura 5 - Suzy Lee, Espelho, 2010. Figura 6 - Suzy Lee, Sombra, 2011.
Fonte: Site Garatujas Fantásticas. Fonte: Site Geek Vox.
A composição das imagens em cada história é simples, com poucas cores e
traços igualmente simples, porém significativos, o que favorece a visão do espaço do
livro como cenário. Seguindo essa mesma proposta, o livro A pequena marionete
(Figura 7, p. 22), de Gabrielle Vincent (pseudônimo da artista plástica Monique
22
Martin6), constrói uma narrativa visual com desenhos a lápis carvão, bastante suaves
e gestuais, que se enquadram em cada página como cenas sequenciais. A artista
garante a expressividade dos personagens com poucos traços: um menino, um velho
titeriteiro e uma boneca marionete. Algumas vezes, apenas o rosto do menino
(protagonista) aparece no centro – com expressão bem marcada, para enfatizar a sua
emoção –, em um corpo inacabado, abraçado pelo branco da página.
Figura 7 - Gabrielle Vincent, La Petite Marionnette (A Pequena Marionete), 1992. Crayon lithographique.
Fonte: Fondation Monique Martin.
Linden (2011) considera diversos aspectos, além da margem interna, que
podem ser explorados nas páginas e espaços de um livro. A moldura, o
enquadramento e até mesmo o desenquadramento estão entre eles, como também a
montagem das imagens e as variações de diagramação. E isso se dá quando os
criadores, para o emprego das imagens, trazem para os livros códigos de outras
linguagens visuais. É o que acontece em “A pequena marionete”, que se assegura da
qualidade de sucessão contínua de páginas para realizar um processo semelhante ao
passar de cenas da montagem cinematográfica.
O livro ilustrado tem experimentado opções variadas de diagramação à medida
que evolui em sua história, e isso se dá, segundo a autora, principalmente porque
6 Monique Martin, famosa ilustradora Belga. Disponível em: < http://www.fondation-monique-martin.be/>. Acesso em 16 abr 2014.
23
(...) dominando os códigos do livro ilustrado e reinvestindo nos de outros veículos – entres os quais há que mencionar a história em quadrinhos –, o livro de artista, o cartaz ou mesmo os games, os criadores contemporâneos não cessam de produzir organizações inovadoras, abrindo novos caminhos de expressão para o livro ilustrado (LINDEN, 2011, p. 70).
O modo como a narrativa vai de uma página a outra pode, então, fixar-se no
seguir do livro, mas o espaço do livro aberto (a página dupla) também pode funcionar
como um suporte bastante expressivo e independente do encadeamento das folhas.
Isso possibilita trabalhar o intervalo da página como um espaço individual, indiferente
à sequencialidade do livro. Desse modo, o livro não precisa ser trabalhado apenas
visualizando-se as páginas em sua sucessividade, mas também em sobreposições. É
diferente de olhar seguida da outra: há um espaço de uma página para a outra, “e
cada página dupla propõe uma reconfiguração do universo gráfico e narrativo da
página anterior” (LINDEN, 2011, p. 79).
A maneira como a imagem se apresenta dentro da página (ou da página dupla)
lhe confere a tensão plástica desejada e implica no exercício da percepção do leitor.
Em um livro ilustrado, se a imagem é delimitada por uma moldura (Figura 8), entende-
se que foi definido um espaço para a imagem dentro de uma margem, a qual ela deve
pertencer, inserida no suporte da página. Do mesmo modo, há projetos gráficos em
que a imagem sangra as margens das páginas (como o já citado, Flicts), conferindo-
lhes um preenchimento total (Figura 9). A imagem tende então a anular o suporte.
Figura 8 - Rui de Oliveira, Figura 9 - Rui de Oliveira, Uma História de
O Barba Azul, 2002 – Livro de imagem. Amor sem Palavras, 2011 – Livro de imagem
FONTE: Site de Rui de Oliveira. FONTE: Rui de Oliveira Blogspot.
24
É como se a imagem sangrada fizesse da página dupla uma tela; o livro seria,
então, uma espécie de moldura, conforme a ideia de Linden (2011). Enquanto tela, é
compreendida como uma espécie de recorte de uma imagem que se expande no
universo imaginativo, diferente da imagem emoldurada de fato, que direciona a
percepção da imagem apenas para o que se insere dentro das margens. Linden cita
essa diferenciação realizada por Bazin, ao dizer que
Os limites da tela não são, como o vocabulário técnico pode às vezes sugerir, a moldura da imagem, e sim um esconderijo que pode revelar apenas parte da realidade. A moldura polariza o espaço para dentro; e, ao contrário, tudo o que é mostrado na tela supostamente deve se estender indefinidamente no universo. A moldura é centrípeta, a tela é centrífuga (BAZIN apud LINDEN, 2011, p. 74).
Ao analisar as funções da moldura na imagem, Aumont (1993) menciona a sua
contribuição quando utilizadas em imagens de caráter representativo e narrativo. Para
ele, a moldura estabelece que a imagem é um mundo à parte, e que “ainda se reforça
quando a imagem é representativa e até mesmo narrativa de um valor imaginário
notável. De fato, a moldura aparece mais ou menos como uma abertura que dá acesso
ao mundo imaginário, à diegese figurada pela imagem” (AUMONT, 1993, p. 147). Para
ele, as bordas da imagem são o campo, e o seu prolongamento imaginário o fora-de-
campo.
A diagramação do livro retorna aos conceitos do cinema quando se observam
as variações de enquadramento nas páginas. Nos livros infantis o ponto de vista do
leitor pode ser explorado, e os planos e ângulos de enquadramento podem ser
emprestados da linguagem cinematográfica: o plano aberto, o plano médio, o plano
fechado, o plongée, o contra-plongée e os demais. Aspecto digno de interesse na
construção de um livro, alguns projetos visam imprimir um olhar semelhante ao das
crianças no próprio enquadramento das imagens, aplicando às cenas uma visão de
baixo para cima (o contra-plongée).
Além de seus aspectos visuais e gráficos, é importante refletir sobre a relação
entre palavra e imagem no livro e compreender que os valores do texto verbal e do
texto visual são equiparáveis, de modo que o ilustrador é tão autor quanto quem
25
escreve a história. Além disso, é necessário apontar que o livro ilustrado se
desmembra em algumas categorias, em que “os dois extremos na dinâmica palavra-
imagem são um texto sem imagens e um livro-imagem” (NIKOLAJEVA; SCOTT, 2011,
p. 14) e que
O caráter ímpar dos livros ilustrados como forma de arte baseia-se em combinar dois níveis de comunicação, o visual e o verbal. Empregando a terminologia semiótica, podemos dizer que os livros ilustrados comunicam por meio de dois conjuntos distintos de signos, o icônico e o convencional (NIKOLAJEVA; SCOTT, 2011, p. 13).
As pesquisadoras Nikolajeva e Scott (2011) explicam que nos livros ilustrados
os signos icônicos são as figuras, e os signos convencionais, as palavras. Enquanto
a função das figuras é representar, a função das palavras é principalmente narrar
(NIKOLAJEVA; SCOTT, 2011, p. 14). Desse modo, o signo icônico é uma
representação direta do seu significado, uma imagem, na maioria das vezes, capaz
de ser lida e compreendida universalmente. Já a palavra (ou texto verbal), o signo
convencional, somente é compreendida se o leitor for capaz de decodificá-la, ou seja,
saber o que ela representa.
26
2 . O livro, a imagem e a imaginação
A fantasia do artista é um mundo de potencialidades que nenhuma obra
conseguirá transformar em ato; o mundo em que exercemos nossa
experiência de vida é um outro mundo, que corresponde a outras formas de
ordem e de desordem; (...) os estratos de cores sobre a tela são ainda um
outro mundo, também ele infinito, porém mais governável, menos refratário a
uma forma.7
Refletindo sobre o pensamento acima, compreende-se que o autor evidencia o
quanto o ato imaginativo é amplo e indefinível, e que mais indefinível ainda é a relação
entre esse mundo imaginativo e o mundo dito real. Trazendo essa reflexão para a
visualidade, percebe-se que entre o ato de olhar uma imagem – a contemplação –, e
a imagem propriamente materializada, há o processo de imaginação que, como define
o Dicionário de Língua Portuguesa Ática Larousse, trata-se da “faculdade que permite
elaborar ou evocar, no presente, imagens mentais” por parte do homem. É um
processo que articula a cognição, as experiências vivenciadas e as percepções de
mundo do indivíduo observador, permitindo que ele possa perceber e refletir sobre
determinada imagem de acordo com sua propriedade.
Estabelecendo um paralelo e adequando a imaginação do artista – criador de
imagens – com a ideia de pensar por imagens desenvolvida por Ítalo Calvino em seu
texto sobre a Visibilidade, a qual ele define como “a capacidade de pôr em foco visões
de olhos fechados, de fazer brotar cores e formas de um alinhamento de caracteres
alfabéticos negros sobre uma página branca” (CALVINO, 1990, p. 107-108) que o ser
humano possui, é importante refletir sobre o fato de que o artista elabora mentalmente
uma imagem para só depois imprimi-la sobre a superfície desejada. Sendo assim,
conclui-se que a imagem nasce da imaginação, abarcada por todo o contexto cultural
e social já experienciado pelo indivíduo, se expressa materialmente e retorna à
imaginação de outrem no momento em que o outro/espectador a lê e interpreta (de
acordo com as suas particularidades).
7 (CALVINO, 1990, p.113).
27
Além disso, se Calvino (1985) admite que a sua formação inicial foi a de um
filho da “civilização da imagem”, ainda em seu início e distante da inflação atual
(CALVINO, 1985, p. 108), as gerações seguintes nasceram em meio a essa inflação
crescente, de modo que é fato conhecido que o ser humano jamais teve acessibilidade
maior à imagem do que na contemporaneidade.
O ato de ler está intimamente ligado à faculdade de imaginar do homem. Ler,
para Paulo Freire (1989), vai além da decodificação de letras e palavras impressas
em papel; ler é perceber e interpretar o mundo de maneira crítica, conforme a própria
experiência vivenciada. É como se, para compreender algo que se observa, o leitor
buscasse em um imenso catálogo mental as referências do que já se viu, leu e
vivenciou no geral, para interpretar esse “algo”. Ou seja, a capacidade de percepção
de espaço, formas e movimento e as relações entre imagem e espectador são
influenciadas por esses múltiplos contextos sociais em que o indivíduo se insere. No
caso da leitura de imagem, nessas determinações sociais estão compreendidos os
diversos “meios e técnicas de produção e reprodução de imagens, além dos modos
de circulação e lugares onde se tem acesso a elas” (AUMONT, p.135), todo um
conjunto de informações a que Aumont chama de dispositivo.
Segundo Flusser (1985), “imagens são superfícies que pretendem representar
algo” (FLUSSER, 1985, p. 7). Este “algo” está, quase sempre, compreendido no
espaço e no tempo – como o mundo –, e as imagens, tendo a intenção de representá-
lo, tornam-se mediações, permeando a relação entre homem e mundo. Flusser
também afirma que as imagens têm origem na imaginação (que ele chama de
“capacidade de abstração específica”), e é a partir da imaginação que se consegue
abstrair apenas as duas dimensões do plano (para a configuração da imagem), dentre
as quatro dimensões espaço-temporais. Ele designa, ainda, alguns aspectos da
imaginação:
(...) se de um lado, permite abstrair duas dimensões dos fenômenos, de outro permite reconstituir as duas dimensões abstraídas na imagem. Em outros termos: a imaginação é a capacidade de codificar fenômenos de quatro dimensões em símbolos planos e decodificar as mensagens assim codificadas. (Imaginação é a capacidade de fazer e decifrar imagens (FLUSSER, 1985, p. 7).
28
Para Aumont (1993), olhar uma imagem é entrar em contato com a sua
superfície, que se configura num espaço de natureza diferente do “espaço real”, sendo
este a dimensão em que vivemos e de onde se pode observar (no caso, contatar) a
imagem em seu tipo de dimensão. Para isso o dispositivo funciona como um
facilitador, sugerindo soluções concretas para esse contato antinatural entre o espaço
do espectador e o espaço da imagem (ou espaço plástico). Em contato com a imagem,
o espectador está sujeito aos variados elementos plásticos que a constituem: “sua
superfície e organização, sua gama de valores, sua gama de cores, seus elementos
gráficos simples e sua matéria” (AUMONT, p. 136).
Diferente desse posicionamento de que o espectador e a imagem estão em
espaços desiguais, Merleau-Ponty (2004) traz o corpo do observador como ser
presente, alguém que não só vê a imagem, mas que a vivencia, num processo
indissociável. Ele afirma que “o mundo visível e de meus projetos motores são partes
totais do mesmo Ser” (MERLEAU-PONTY, 2004, p.16), e continua afirmando que
Essa extraordinária imbricação (...) proíbe conceber a visão como uma operação de pensamento que ergueria diante do espírito um quadro ou uma representação do mundo, um mundo da imanência e da idealidade. Imerso no visível por seu corpo, ele próprio visível, o vidente não se apropria do que vê; apenas se aproxima dele pelo olhar, se abre ao mundo (MERLEAU-PONTY, 2004, p. 16).
De acordo com os aspectos estudados, o leitor/espectador baseia-se
fortemente na sua inteligência visual, reunindo todo o aparato de conhecimento que
possa lhe auxiliar a reconhecer a imagem a que olha, em um processo subjetivo e
peculiar a cada um. Analisando, então, a importância da imagem no aspecto geral e,
evidentemente, no que interessa à leitura de imagem no livro, refletiu-se sobre a
necessidade de aprimoramento para compreender e ler de modo eficiente uma
imagem. Diante disso, Aumont (1993), ao analisar as funções da imagem, elabora a
seguinte hipótese, “formulada na linha de E. H. Gombrich”:
A imagem tem por função primeira garantir, reforçar, reafirmar e explicitar nossa relação com o mundo visual: ela desempenha papel de descoberta visual. (...) essa relação é essencial para nossa atividade intelectual: o papel
29
da imagem é permitir que essa relação seja aperfeiçoada e mais bem dominada (AUMONT, 1993, p. 81).
Sendo assim, a imagem é um mecanismo de intermédio na relação do
leitor/observador com o mundo visual e fornece meios favoráveis ao desenvolvimento
do conhecimento e da linguagem visual, à medida que se torna fonte de significados
e solicita interpretações mais perspicazes sobre seus conteúdos e conceitos. A
inteligência visual é sempre suscetível de aperfeiçoamento, e o exercício contínuo de
leitura e crítica da imagem contribui positivamente para essa relação.
30
3 . Buscando um processo criativo para abordagem da imagem e do livro na
escola
O fomento ao estudo da imagem e de conteúdos referentes ao alfabetismo
visual, como os códigos de formas, linhas, cores e demais meios de representação
presentes nas imagens, além do desenvolvimento de uma opinião crítica desde cedo,
são considerados essenciais, de modo que uma abordagem mais eficaz sobre leitura
visual na escola é determinante para uma experiência visual mais completa. Contudo,
no âmbito educacional, as aplicações dos estudos relativos à leitura visual ainda são
pouco eficientes. No ambiente escolar, a criança não tem muito contato com obras de
arte (quando o tem), assim como não se discute os conteúdos da linguagem visual do
mesmo modo como se dedica ao letramento verbal. Desse modo, o papel do arte-
educador é discutir métodos de leitura visual e buscar meios de implantá-los na sala
de aula.
Nesta perspectiva, este estudo busca um processo de abordagem da imagem
na escola, se utilizando do livro como suporte criativo e meio diversificado de uso da
imagem. O método de abordagem empregado para a interpretação de imagem é o
“Método comparativo de análise de obras de Arte”, de Edmund Feldman (apud
BARBOSA, 2009), o qual se baseia numa análise desenvolvida a partir da leitura
comparativa de duas ou mais obras de arte.
A metodologia de Feldman, estudada a partir de Barbosa (BARBOSA, 2009, p.
45-46), propõe que o desenvolvimento da capacidade crítica é associado às
“dimensões sociais, culturais, criativas, psicológicas, antropológicas do homem”. A
proposta de Feldman é a de que o indivíduo, estando de posse desses princípios,
pode desenvolver uma crítica sobre alguma imagem (ou qualquer objeto artístico) a
partir de um método comparativo de análise, constituído de quatro processos:
descrição, análise, interpretação e juízo.
Cada processo se baseia em um momento de reflexão: na “descrição”, o leitor
se concentra no visível, ou seja, o que está evidente; na “análise”, o leitor observa o
objeto e atenta para os seus elementos e sobre como eles se compõem e se
relacionam; na “interpretação”, o leitor busca por sentidos e significados no trabalho;
por fim, no “juízo”, julga o valor estético ou o desmerecimento da obra. Este exercício
31
de apreciação mais detalhada promove a formação de um olhar crítico e contribui para
o discernimento sobre qualidade estética.
Desse modo, identificou-se que os processos de leitura de imagem
constituintes da metodologia de Feldman seriam a orientação mais adequada para
utilizar nas ações na escola visitada, aplicando esses conceitos dentro dos interesses
da pesquisa e empregando-os à leitura e reconhecimento da imagem nos livros.
Utilizando esses métodos de reflexão, buscou-se comparar diversas expressões de
livros e analisá-los de maneira mais instigante, procurando ir além de sua superfície
e, a partir desses critérios, compreender a pluralidade das formas, cores, materiais,
dimensões e todos os aspectos variáveis do livro, bem como dos aspectos correlatos
à imagem nele contida.
Fundamentando-se nas análises realizadas sobre o livro ilustrado como objeto
da linguagem gráfica e suporte para narrativas pictóricas, é necessário contextualizar
o papel educativo do livro de imagem e sua proximidade com as artes visuais,
investigando-o como recurso de alfabetização visual na escola. Tomando como base
as principais etapas de sua feitura – fabricação plástica, aspectos estéticos e
possibilidades de leitura visual –, é proposta uma experiência didática complementar
à pesquisa, na qual se realizou um trabalho com crianças de 5 a 6 anos (1º ano do
Ensino Fundamental) para a produção de um livro artístico/artesanal.
3.1 O contexto escolar
A atividade foi realizada no Centro Educacional Raio de Luz, escola privada de
Ensino Infantil e Fundamental I, situada no bairro do Alecrim, Região Leste da Cidade
de Natal. No bairro há mais 11 escolas particulares, sendo algumas destas de
pequeno porte, assim como a escola escolhida.
O bairro do Alecrim é conhecido por ser um dos bairros mais antigos da cidade,
e também por sua tradicional atividade comercial. O CERL (como se chamará a escola
a partir daqui) localiza-se próximo ao Mercado da 6, como é conhecido o Mercado
Público Antônio Carneiro, em razão do número pelo qual a Rua dos Canindés é
chamada – também por tradição –, e do Mercado da 4, situando-se na rua lateral a
ele, perto da quadra de esportes do bairro.
32
O quadro socioeconômico da localidade é bastante desigual, segundo dados
recolhidos pela SEMURB, que se baseiam no último censo realizado (SEMURB,
2008)8. Em sua maioria, a população vive de uma renda baixa a média, além de a
região abrigar dois assentamentos precários. Nas proximidades da escola as ruas
ainda não foram saneadas, porém são bem habitadas. A maior dificuldade é a
insegurança, principalmente pelo fato de haver um terreno baldio atrás da quadra de
esportes, além de ser mal iluminado à noite.
O Centro Educacional Raio de Luz foi inaugurado como instituição de Ensino
Infantil no ano 2000, ainda com o nome de Jardim Escola Raio de Luz. Funcionava
em uma casa pequena, mudando-se em 2003 para um prédio maior, na rua próxima.
A escola oferece 5 (cinco) salas e uma Biblioteca, que também funciona como Sala
de Ballet, além de uma sala de descanso; funciona nos turnos matutino e vespertino,
atendendo aos níveis iniciais da Educação Infantil e ao Ensino Fundamental I, além
do serviço de Período Integral, que se popularizou entre as escolas da região. O local
também possui área externa para atividades recreativas, com um parque e uma mini
quadra de esportes sem cobertura.
O trabalho, realizado com crianças de 5 a 6 anos (1º ano do Ensino
Fundamental – turma vespertina, com 18 componentes), procedeu entre os dias 4 e 5
de maio de 2014, contabilizando 8 horas-aula. A turma escolhida para a atividade
investigativa foi a da professora Elizete Grilo. A classe é composta por alunos recém-
alfabetizados e que, portanto, iniciam as suas práticas de leitura verbal. A professora
Elizete tem 50 anos de idade, mora no bairro do Alecrim e trabalha há 13 anos no
CERL. Formou-se em Pedagogia pela Universidade Estadual Vale do Acaraú. É uma
professora dinâmica e demonstra interesse em participar.
3.2 O fazer artístico
O trabalho seguiu, em primeiro ato, com o intuito de descobrir o que as crianças
conhecem sobre livro e leitura. Como exercício inicial, os alunos foram direcionados à
biblioteca da escola (Figuras 11 e 12, p. 37) para entrarem em contato com livros
diversos, e convidados à tentativa de apreciá-los sob um novo viés. Buscou-se
8 Disponível em: <http://www.natal.rn.gov.br/semurb/paginas/ctd-106.html>. Acesso em 30 abr 2015.
33
examinar as suas formas, suas dimensões, suas cores, suas dinâmicas de leitura,
suas muitas (ou poucas) ilustrações, seus diferentes traços, seus pesos, e todo o
conjunto de aspectos constituintes dos livros em mãos. Foram descobertas e
discutidas algumas das diversas manifestações do livro e suas possibilidades
criativas. Em seguida, contrapondo a ideia de que histórias são exclusivamente
narrativas verbais, foram apresentados à turma alguns livros ilustrados selecionados
para análise. São eles: Uma história de amor sem palavras9 e Chapeuzinho Vermelho
e outros contos por imagem10, livros que, como sugerem seus títulos, narram contos
fantásticos apenas com imagens. Além deles, A pequena marionete, também como
exemplo de livro-imagem, o livro ilustrado Sandman: a história de Sanderson Soneca11
e a história em quadrinhos Simon’sCat: as aventuras de um gato travesso e comilão12,
oriundo do trabalho de animação que o autor, Simon Tofield, publicou no You Tube.
Figura 10 - Rui de Oliveira, Uma história de amor sem palavras, 2009.
FONTE: Rui de Oliveira Blogspot.
Sistematizando a atividade de acordo com a metodologia de análise
comparativa de Feldman e, evidentemente, ajustando as ideias ao interesse da
pesquisa, foram analisadas as semelhanças e diferenças entre livros ilustrados (livros
apenas com imagens e livros com imagens e palavras) e, principalmente, o modo
9 OLIVEIRA, Rui de. Uma história de amor sem palavras. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009. 10 OLIVEIRA, Rui de. Chapeuzinho e outros contos por imagem. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2002. 11 JOYCE, William. Sandman: a história de Sanderson Soneca. Rio de Janeiro: Rocco Pequenos Leitores, 2013. 12 TOFIELD, Simon. Simon’sCat: as aventuras de um gato travesso e comilão. Porto Alegre: L&PM, 2012.
34
como cada narrativa foi empregada, verificando a possibilidade de ler/interpretar as
histórias mesmo quando não há texto verbal.
Dispondo desse plano de análise, lançaram-se questões que pudessem
perpassar pelos quatro processos de reflexão estabelecidos por Feldman – descrição,
análise, interpretação e julgamento – como uma maneira de contribuir para cada
experiência de leitura. As questões foram: o que se encontra visível em cada trabalho?
Qual a relação entre os elementos que compõem os livros e as imagens? Quais os
temas e os significados descobertos? O que se acha do trabalho? Foi fácil interpretar
os textos visuais? Baseando-se nessas questões, será relatado um dos momentos da
atividade com as crianças, quando foi utilizado o livro Uma história de amor sem
palavras, de Rui de Oliveira13.
O autor resgata um tema clássico dos contos de fadas, trazendo o herói que
enfrenta uma jornada em busca de sua donzela, aparentemente, sob custódia de um
ser mágico. A narrativa emprega o uso de alguns signos: Estrela, Lua e Sol –
elementos que o personagem deve conseguir durante o percurso da história, e que,
segundo a sinopse do livro, também significam três palavras: “eu te amo”. O livro
apresenta apenas uma página com texto verbal, onde mostra uma figura masculina
que parece ser a mistura de homem com planta, acompanhado dos símbolos do Sol,
da Lua e da Estrela, e da legenda: “O guardião das três palavras mágicas”. Em alguns
momentos do livro, o autor/ilustrador utiliza a página dupla para compor uma cena,
mas, na maior parte, existe uma mudança de momento da história passando de uma
página para a outra.
A leitura do livro foi feita em grupo (Figuras 13 e 14, p. 37) e, de início, as
crianças souberam, principalmente, reconhecer as emoções dos personagens
demonstradas pelas expressões. Algumas designaram a figura de um jovem de
armadura e coroa como sendo o “Príncipe”, e quiseram dar nomes a outras
personagens também, como “o Senhor Folha”, “a Fada Ervilha” e “a Montanha-
Caverna”, por causa de suas aparências nas ilustrações. É interessante perceber
como a leitura do livro de imagem flui para os alunos, pois mesmo não havendo
palavras para nomear ou descrever cada personagem, eles se dispuseram a distingui-
los e entender o papel de cada um. Também é importante atentar para o fato de que
a personagem a quem chamaram de “Príncipe” foi intitulado assim devido ao próprio
13 Artista Gráfico, Autor e Ilustrador de literatura infantil.
35
repertório imagético das crianças. Tendo conhecido a figura do príncipe em outros
contos, histórias e filmes de animação, elas naturalmente relacionaram a personagem
do livro às figuras que tinham em mente. O mesmo aconteceu com a figura da
“Princesa” no final da história.
Acredita-se, também, que o fácil reconhecimento dessas personagens se dá
de modo mais efetivo por que são as figuras que têm o aspecto mais humano na
história, isto é, é fácil identificá-las como homem e mulher, de modo que as outras
personagens são mais estranhas ao olhar do leitor. São seres humanizados, mas que
misturam elementos da natureza (fauna e flora), sendo muitos deles gigantescos,
como o primeiro ser que o “Príncipe” encontra: uma folha verde e muito maior que ele,
que o leva voando até outra região distante. O traço dos desenhos não é algo
simplificado, e difere bastante do que as crianças geralmente costumam ver em livros
infantis mais corriqueiros e em desenhos animados. Até então, essa foi a única
dificuldade encontrada para o discernimento da história.
As crianças entenderam que o “Príncipe” sofria com saudade da “Princesa”. A
primeira página do livro lhes contava isso: a figura do rapaz estava só e com uma
expressão triste, e acima de sua cabeça aparece a imagem de uma moça (apenas a
cabeça) de cabelos esvoaçantes, como a representação de um pensamento dele.
Compreenderam que o príncipe sai numa viagem em busca da princesa, pois na
segunda página ele parece interrogar o “Senhor Folha” sobre algo (com uma
expressão questionadora, braços erguidos e mãos abertas), e este o leva
dependurado para algum lugar com a ajuda do vento, visível pelo modo como alguns
seres (parecidos com flores) se curvam para uma direção. Elas também
compreenderam que ele enfrenta dificuldades e que em determinados momentos ele
recebe algo de alguém que ele encontra: os elementos que ele deve reunir (a Estrela,
a Lua e o Sol), mas só identificaram o fato de que ele perguntava aos outros
personagens por esses elementos quando apareceu com um balão de fala, como nas
histórias em quadrinhos, com a lua desenhada no lugar de uma palavra.
Os aspectos visíveis do trabalho, correspondentes ao primeiro critério de
Feldman para interpretação de imagens, são as descrições que as crianças puderam
fazer sobre as situações relacionadas ao “Príncipe”. A personagem seguiu em busca
da figura feminina em um mundo que não corresponde ao universo real, repleto de
criaturas estranhas. A análise, a partir disso, é a de que o “Príncipe” foi auxiliado por
36
certos personagens a seguir com a viagem, e que recebia de alguns deles os signos
da Estrela, Lua e Sol.
Na etapa da interpretação, os alunos também discerniram sobre o tema,
explícito no título e nas ilustrações. Como explicado antes, as crianças entenderam
que o “Príncipe” tinha saudades da “Princesa”. Puderam interpretar que se trata de
uma história de amor; contudo, não puderam identificar os sentidos dos signos que o
“Príncipe” recebia no caminho, que, segundo a sinopse do livro, significam a frase “eu
te amo”.
As crianças afirmaram gostar do livro e avaliaram que a história foi diferente do
que já tinham visto. Com toda certeza o livro é diferente para elas, e não apenas por
se tratar de uma narrativa imagética, mas pelos aspectos da própria ilustração do
autor, como seus personagens estranhos, seus traços e cores leves, incomuns ao
olhar que elas têm do livro ilustrado. A experiência, no entanto, foi bastante válida,
compreendendo que antes não havia sido feita nenhuma atividade focada na leitura
de texto visual com a turma, e que a linguagem empregada não é simplificada. Sendo
assim, vê-se que é necessário empreender mais exercícios de leitura de livros de
imagem e abrir espaço para a leitura de imagem numa perspectiva geral.
A segunda parte da atividade foi na sala de aula, com a proposta de construírem
todos juntos um livro de imagens que também funcionaria como um livro-jogo. A
intenção foi tornar a atividade ainda mais lúdica e examinar as ideias que pudessem
reverberar do livro ao obter o resultado. A proposta foi a seguinte: respeitando a
capacidade das crianças, a turma deveria criar um livro em conjunto, de maneira
artesanal, de modo a ocupar as páginas com autorretratos pintados por elas e, a partir
disso, criar um jogo com as imagens inseridas: um recorte central, fatiando a página
em duas partes (superior e inferior), permitindo que estas sejam folheadas em tempos
e sequências diferentes, e que metade de um rosto se una a outra metade de modos
variados.
As crianças foram instigadas a fazer um retrato de si mesmas com tinta guache
(Figuras 15 e 16, p. 37), pintando-se como imaginam ser. Refletindo sobre sua
aparência, foram criadas as cores necessárias para abranger os tons de pele da
turma, misturando tintas. Com a ajuda da professora Elizete, íamos a cada turma de
três ou quatro alunos com a tinta que era necessária, para manter a organização.
37
Terminadas as pinturas, estas foram deixadas para secar para só depois dar
continuidade ao trabalho, o que aconteceu no dia seguinte.
Figura 11 – Turma na Biblioteca. Figura 12 – Reconhecendo os livros.
Figura 13 - Leitura coletiva de livro de imagem. Figura 14 -. Uma História de Amor sem Palavras.
Figura 15 - Na sala de aula. Figura 16 - Fazendo autorretrato.
38
Figura 17 - Produção das pinturas. Figura 18 - João e seu autorretrato.
Com as pinturas secas, o material para a construção do livro foi reunido e deu-
se início à produção. O projeto foi desenvolvido para criar uma espécie de livro-
suporte, no qual as crianças pudessem colar as pinturas em cada página. Para isso,
seria necessária a utilização de um papel de gramatura mais pesada, para que
pudesse sustentar todo o material colado e a costura sem desmanchar ou se danificar
de alguma forma. Utilizando cartolinas brancas, verificaram-se as medidas
necessárias para recortar e encaixar as folhas das pinturas exatamente nas suas
dimensões. As cartolinas foram recortadas em retângulos de 30 x 46 cm (espaço de
página dupla) e dobradas ao meio, de modo a ficarem marcadas na margem central,
onde as folhas seriam unidas e costuradas com um barbante. O recorte das cartolinas
foi feito com o auxílio das crianças e a costura foi a única parte do processo de
construção do livro em que as crianças não participaram, mas, estando com o livro
em seu formato ideal, as folhas com os autorretratos pintados foram coladas uma por
uma (Figuras 19 e 20, p. 39), cada aluno com a sua pintura. Depois, houve um tempo
de espera para deixar o trabalho secar.
Quando ficou seco, apreciou-se o resultado antes de seguir para a próxima
etapa, o momento de delimitar o centro de cada página e fatiar ao meio. As crianças
ficaram um pouco avessas à ideia de fazer um recorte em suas pinturas, mas depois
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acharam o resultado divertido. Utilizando uma régua, marcaram-se os locais para
depois recortá-los. Foi um trabalho preciso, e mais uma vez sem o auxílio das
crianças.
Figura 19 - Passando cola no verso da pintura. Figura 20 - Colando as pinturas no livro suporte.
O livro resultado foi intitulado de “Todo mundo é todo mundo”, por sugestão da
professora Elizete, e chama a atenção, de forma lúdica e despretensiosa, para a
diversidade das pessoas que o preenchem, como também para a diversidade das
pessoas no geral, ao mesmo tempo em que mistura e recombina os rostos, revelando
a percepção de características de cada um que antes poderiam passar
despercebidas, e favorecendo discussões que vão além do trabalho como linguagem
artística. Esta foi a leitura feita em conjunto depois do processo, mas é possível que
outras leituras sejam feitas, configurando o trabalho como uma obra aberta. Ao fim, o
livro foi para a biblioteca da escola, onde ficou disponível para outras pessoas
observarem.
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Figura 21 - Capa e primeiras páginas do livro “Todo mundo é todo mundo”.
Figura 22 - Outras páginas e combinações de rostos.
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Figura 23 - Outras páginas e combinações de rostos.
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4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nesta pesquisa, colocou-se em foco o objeto livro, buscando refletir sobre o
modo como este interage e se relaciona com outras linguagens que vão além da
literatura. Investigou-se as ocasiões em que o autor se torna artista do livro, e como
alguns aspectos de sua linguagem gráfica se relacionam com as Artes Visuais,
incluindo a Fotografia, o Cinema e, evidentemente, as Histórias em Quadrinhos.
Focalizando o papel da imagem no livro para quem a produz e para quem a lê, buscou-
se compreender os aspectos da imagem para a percepção e refletir sobre a leitura da
imagem narrativa. Nessa perspectiva, abordou-se o livro como meio didático, levando-
o para a sala de aula com o intuito de ressignificar a leitura imagética das crianças –
pondo em prática as referências teóricas estudadas – e criar um espaço para a
experiência de construção plástica do livro.
Conforme apresentado anteriormente, os objetivos deste estudo foram analisar
o papel da imagem no livro ilustrado como objeto estético da linguagem gráfica e
analisar o livro ilustrado como veículo educativo para abordagem da linguagem visual,
identificando suas aplicações pedagógicas. Ao analisar a imagem no livro ilustrado,
foi possível compreender suas proximidades com muitas linguagens e, ao mesmo
tempo, a verificação de uma linguagem muito própria. Assim como os livros de artista,
os livros ilustrados se utilizam de diversos meios de experimentação, abrindo espaço
para uma reflexão mais efetiva sobre a imagem e repensando suas formas plásticas
e maneiras de promover a leitura. Foi possível constatar que a imagem narrativa é
uma das mais antigas expressões artísticas e, ao mesmo tempo em que o livro
ilustrado retoma princípios antigos, também é bastante influenciado pela arte
contemporânea.
Ao levar o livro para a escola com uma nova abordagem de leitura, pôde-se
observar a naturalidade com que as crianças do 1º ano do Ensino Fundamental
puderam ler certas imagens, em contraponto com outras que lhe eram mais estranhas
e diferentes do que já haviam experienciado, uma evidência de que a capacidade
crítica é alicerçada nas vivências anteriores, assim como indica Edmund Feldman e
aponta Ana Mae Barbosa, como também Paulo Freire, quando examina o ato de ler.
A busca pelos elementos e detalhes nas ilustrações contribuiu para um exercício mais
completo do olhar, que muitas vezes não acontece quando a história se divide em
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texto verbal e imagem. Logicamente, este estudo não pretende desmerecer o
emprego de texto escrito nos livros, apenas tem o intuito de trazer para o foco os livros
em que a ilustração é a narrativa, o que, de certo modo, requer do leitor um olhar
ainda mais atento.
Ao propor um exercício de construção de um livro com as crianças, esteve-se,
de maneira simultânea, reconstruindo a ideia de livro com elas. Foi possível colocar
em prática as reflexões sobre como a imagem se insere na página, refletindo sobre a
sequencialidade e o modo incomum de recorte. Além disso, provocou o exercício de
pensarem na sua própria imagem (aparência física) e de visualizarem o livro como um
jogo, brincando com as partes de rostos diferentes, ao passar as folhas
desencontradas.
Na perspectiva arte-educadora, o processo de investigação configurou-se
também em novas descobertas, ao retomar um interesse da própria infância (os livros
ilustrados) e trazê-lo sob um novo aspecto para a sala de aula do Ensino Fundamental,
firmando-se em um embasamento teórico-metodológico mais efetivo e desenvolvendo
uma prática mais reflexiva.
Considerando que a imagem é, e se torna cada vez mais influente a cada
geração que passa, é imprescindível direcionar o olhar para a inclusão, no currículo
escolar, de um trabalho mais consistentemente focado na linguagem visual. Deste
modo, este estudo se constitui em um primeiro passo na busca de um saber mais
aprofundado, esperando repercutir em discussões e pesquisas futuras sobre leitura
imagética.
Avaliando a experiência calcada na tríade Livro – Imagem – Ensino de Arte,
revelou-se o quanto é importante que sejam realizados estudos sobre os aspectos da
imagem no livro, quando se coloca sozinha para contar a história ou quando está
acompanhada de palavras. É importante compreender que a ilustração no livro tem a
mesma força, mesmo valor e relevância das palavras na narrativa, e que, por isso, os
livros de imagem vêm conquistando um status cada vez mais significativo no mercado
da literatura infantil. Mas, além disso, também projeta reflexões muito amplas para
estudos no campo da arte de um modo geral, como exemplificado nesta pesquisa,
seja no âmbito gráfico ou pedagógico.
É preciso acrescentar, também, que o livro ilustrado, apesar de ser inserido na
categoria de livro infantojuvenil, muitas vezes desperta o interesse de outros públicos,
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estimulando, também, a experiência de leitura imagética do adulto, de modo que é
sempre um fator favorável e enriquecedor para a ampliação da inteligência visual.
Certamente há muito mais o que se analisar sobre este tema, principalmente
avaliando a relação palavra-imagem nos livros. A principal conclusão é a de que o
livro é um objeto ricamente aberto à criatividade. É simples olhar para trás e ver o
quanto ele veio mudando e se adaptando na história, ao mesmo tempo em que
conserva suas raízes. Também é fácil imaginar o quanto ainda se transformará com
as possibilidades que vierem a aparecer no futuro, ressurgindo com novas ideias e
experimentações, sejam visuais ou verbais.
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