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COMUNICAO MIDITICAMATIZES, REPRESENTAES E RECONFIGURAES

Organizadores Dafne Pedroso Lcia Coutinho Vilso Junior Santi

COMUNICAO MIDITICAMATIZES, REPRESENTAES E RECONFIGURAES

GEISC\PUCRS

Porto Alegre 2011

EDIPUCRS, 2011

Capa: Rodrigo Oliveira Diagramao: Rodrigo Valls Reviso Lingustica: Julia Roca dos Santos

EDIPUCRS Editora Universitria da PUCRS Av. Ipiranga, 6681 Prdio 33 Caixa Postal 1429 CEP 90619-900 Porto Alegre RS Brasil Fone/fax: (51) 3320 3711 e-mail: [email protected] - www.pucrs.br/edipucrs

Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) C741 Comunicao miditica : matizes, representaes e reconfiguraes [recurso eletrnico] / org. Dafne Pedroso, Lcia Coutinho, Vilso Junior Santi. Dados eletrnicos. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2011. Modo de acesso: World Wide Web ISBN 978-85-397-0074-5 1. Comunicao. 2. Imaginrio. 3. Cultura. 4. Sociedade. I. Pedroso, Dafne. II. Coutinho, Lcia. III. Santi, Vilso Junior. CDD 301.161Ficha Catalogrfica elaborada pelo Setor de Tratamento da Informao da BC-PUCRS. TODOS OS DIREITOS RESERVADOS. Proibida a reproduo total ou parcial, por qualquer meio ou processo, especialmente por sistemas grficos, microflmicos, fotogrficos, reprogrficos, fonogrficos, videogrficos. Vedada a memorizao e/ou a recuperao total ou parcial, bem como a incluso de qualquer parte desta obra em qualquer sistema de processamento de dados. Essas proibies aplicam-se tambm s caractersticas grficas da obra e sua editorao. A violao dos direitos autorais punvel como crime (art. 184 e pargrafos, do Cdigo Penal), com pena de priso e multa, conjuntamente com busca e apreenso e indenizaes diversas (arts. 101 a 110 da Lei 9.610, de 19.02.1998, Lei dos direitos Autorais)

COLABORADORES Ana Carolina Escosteguy Professora do Programa de Ps-Graduao em Comunicao Social da PUCRS/RS/BR. E-mail: [email protected] Bruna do Amaral Paulin Jornalista. Mestre em Comunicao Social pela PUCRS/RS/BR. E-mail: [email protected] Camila Garcia Kieling Jornalista. Mestre em Comunicao Social pela PUCRS/RS/BR. E-mail: [email protected] Camila Pereira Morales Publicitria. Mestre em Comunicao Social pela PUCRS/RS/BR. E-mail: [email protected] Caren Adriana Machado de Mello Jornalista. Mestre em Comunicao Social pela PUCRS/RS/BR. E-mail: [email protected] Carolina Conceio e Souza Publicitria. Mestre em Comunicao Social pela PUCRS/RS/BR. E-mail: [email protected] Caroline Delevati Colpo Relaes Pblicas. Doutoranda em Comunicao Social pela PUCRS/ RS/BR. E-mail: [email protected] Cristiane Freitas Gutfreind Professora do Programa de Ps-Graduao em Comunicao Social da PUCRS/RS/BR. E-mail: [email protected] Dafne Reis Pedroso da Silva Jornalista. Doutoranda em Comunicao Social pela PUCRS/RS/BR. E-mail: [email protected]

Eduardo Campos Pellanda Professor do Programa de Ps-Graduao em Comunicao Social da PUCRS/RS/BR. E-mail: [email protected] Isabel Almeida Marinho do Rgo Publicitria. Mestre em Comunicao Social pela PUCRS/RS/BR. E-mail: [email protected] Karine dos Santos Ruy Jornalista. Mestre em Comunicao Social pela PUCRS/RS/BR. E-mail: [email protected] Lcia Loner Coutinho Jornalista. Mestre em Comunicao Social pela PUCRS/RS/BR. E-mail: [email protected] Samara Kalil Jornalista. Mestre em Comunicao Social pela PUCRS/RS/BR. E-mail: [email protected] Sandro Adalberto Colferai Graduado em Letras. Mestre em Comunicao Social pela PUCRS/RS/ BR Email: [email protected] Vilso Junior Santi Jornalista. Doutorando em Comunicao Social pela PUCRS/RS/BR. E-mail: [email protected]

AGRADECIMENTOS Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul e ao Programa de Ps-Graduao em Comunicao Social pela estrutura e apoio oferecidos. Aos professores do PPGCOM/PUCRS Ana Carolina Escosteguy, Cristiane Freitas Gutfreind, Eduardo Campos Pellanda, Antnio Hohlfeldt e Juremir Machado da Silva pelas contribuies, incentivo e inspirao. EDIPUCRS pelo acolhimento da proposta.

SUMRIOPrefcio ................................................................................................10 Parte I Matizes do cinema brasileiro e sociedade 1. A multiplicidade da pesquisa em cinema ..........................................13 Cristiane Freitas Gutfreind 2. Circuito de exibio perifrico: cineclubismo e itinerncias ..............16 Dafne Reis Pedroso da Silva 3. Traos da indstria do cinema brasileiro contemporneo .................31 Karine dos Santos Ruy 4. O jogo cinematogrfico de Cama de Gato ........................................45 Isabel Almeida Marinho do Rgo Parte II Cultura e representaes miditicas 5. Em defesa de uma perspectiva analtica scio-cultural .....................63 Ana Carolina Escosteguy 6. Favela-Movies e Favela-Series: novas representaes na produo audiovisual brasileira ............................................................................66 Lcia Loner Coutinho 7. Esteretipos do Britpop atravs dos enquadramentos da revista New Musical Express ...................................................................................82 Bruna do Amaral Paulin 8. Amaznia margem da sociedade em rede: imigrantes em busca de comunidades imaginadas ...................................................................103 Sandro Adalberto Colferai

9. A fotografia de moda e a produo de sentidos ..............................118 Samara Kalil 10. Revoluo Farroupilha: uma leitura do manifesto de 1838 atravs da Poltica de Aristteles ..........................................................................134 Camila Garcia Kieling 11. O pensamento complexo e os estudos culturais na pesquisa em Jornalismo: por uma interseco terico-metodolgica ...........................148 Vilso Junior Santi Parte III Imaginrio e reconfiguraes da publicidade 12. Consumo e experincia de uso em um contexto de ubiqidade de informao ..........................................................................................172 Eduardo Campos Pellanda 13. Pistas hipermodernas para alteraes da mensagem publicitria contempornea ...................................................................................182 Camila Pereira Morales 14. A teoria culturolgica na campanha da Arezzo .............................198 Carolina Conceio e Souza 15. A convergncia de funes: publicidade e entretenimento. Duas indstrias, um fim: o game ..................................................................213 Caroline Delevati Colpo 16. A hiptese de agenda-setting no comercial da Brahma Caren Adriana Machado de Mello ...........................................226

PREFCIOA proposta deste livro surge a partir da ideia de estimular a divulgao e a circulao de pesquisas realizadas por estudantes de psgraduao. A publicao inclui-se no mbito das atividades do Grupo de Estudos sobre Imaginrio, Sociedade e Cultura (GEISC/PPGCOM/ PUCRS), o qual procura estimular a autonomia e a cooperao direta entre os acadmicos. O grupo, que organizado e coordenado pelos prprios alunos, surgiu em 2008 com o propsito de compreender os efeitos dos processos miditicos e suas implicaes culturais sobre o imaginrio nas reas de jornalismo, publicidade, relaes pblicas e produes audiovisuais. Nele, tem destaque a socializao contnua e sistemtica dos projetos de investigao do corpo discente, promovida atravs de encontros quinzenais, onde so realizadas discusses de textos, apresentaes e debates relacionados s pesquisas desenvolvidas. Os participantes do grupo tm conscincia da necessidade de divulgao e circulao de textos acadmicos e por isso deram incio organizao coletiva desta obra. Durante o processo de organizao da publicao, os artigos circularam entre os membros do grupo, os quais revisaram as produes dos seus pares e deram sugestes aos seus colegas-autores. A multiplicidade de olhares marca esta obra, j que os interesses de pesquisa dos integrantes do grupo so bastante diversos. De todo modo, h elementos em comum que permeiam esses escritos, sejam temticas, objetos e/ou perspectivas de anlise. Ao todo so 13 artigos, os quais foram agrupados em trs eixos, cada um apresentado por um professor do PPGCOM/PUCRS. A primeira parte, Matizes do cinema brasileiro e sociedade, apresentada pela Profa. Dra. Cristiane Freitas Gutfreind, conta com trs textos: Circuito de exibio perifrico: cineclubismo e itinerncias, de Dafne Reis Pedroso da Silva; Traos da indstria do cinema brasileiro contemporneo, de Karine dos Santos Ruy; e O jogo cinematogrfico de Cama de Gato, de Isabel Almeida Marinho do Rgo. O segundo eixo, Cultura e representaes miditicas, apresentado pela Profa. Dra. Ana Carolina Escosteguy, conta com seis textos: Favela-Movies e Favela-Series: novas representaes na produo

Prefcio

audiovisual brasileira, de Lcia Loner Coutinho; Esteretipos do Britpop atravs dos enquadramentos da revista New Musical Express, de Bruna do Amaral Paulin; Amaznia margem da sociedade em rede: imigrantes em busca de comunidades imaginadas, de Sandro Adalberto Colferai; A fotografia de moda e a produo de sentidos, de Samara Kalil; Revoluo Farroupilha: uma leitura do manifesto de 1838 atravs da Poltica de Aristteles, de Camila Garcia Kieling; e O pensamento complexo e os estudos culturais na pesquisa em jornalismo: por uma interseco terico-metodolgica de Vilso Junior Santi. A terceira e ltima parte do livro, Imaginrio e reconfiguraes da publicidade, apresentada pelo Prof. Dr. Eduardo Campos Pellanda e conta com quatro textos: Pistas hipermodernas para alteraes da mensagem publicitria contempornea, de Camila Pereira Morales; A teoria culturolgica na campanha da Arezzo, de Carolina Conceio e Souza; A convergncia de funes: publicidade e entretenimento. Duas indstrias, um fim: o game, de Caroline Delevati Colpo; e A hiptese de agenda setting no comercial da Brahma, de Caren Adriana Machado de Mello. para o exerccio deste olhar mltiplo sobre a comunicao que convidamos os leitores a passear pelas contribuies aqui apresentadas. Boa leitura a todos! Os organizadores.

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Parte IMatizes do cinema brasileiro e sociedade

A MULTIPLICIDADE DA PESQUISA EM CINEMACristiane Freitas Gutfreind Professora do PPGCOM/ PUCRS e pesquisadora do CNPq. O Grupo de Estudos sobre Imaginrio, Sociedade e Cultura GEISC - um dos grupos de pesquisa do Programa de Ps-Graduao em Comunicao da PUCRS, gerenciado pelo corpo discente. Fundado em 2008, o GEISC se consolidou ao longo desses anos com estudos e pesquisas relevantes acerca de trs eixos temticos: imaginrio, sociedade e comunicao, que se relacionam com a linha de pesquisa do PPGCOM intitulada Prticas culturais nas mdias, comportamentos e imaginrios da sociedade da comunicao. Por esses eixos temticos perpassam os estudos de cinema que no PPGCOM acolhem um importante nmero de dissertaes e teses, que tem os seus projetos, mtodos e textos discutidos junto ao grupo do GEISC. Entre alguns desses trabalhos merece destaque as pesquisas aqui apresentadas: Circuito de exibio perifrico: cineclubismo e itinerncias de Dafne Pedroso (doutoranda), O jogo cinematogrfico de Cama de Gato de Isabel Marinho (mestre) e Traos da indstria do cinema brasileiro contemporneo de Karine Ruy (mestre). Trs pesquisas que representam a diversidade do campo do cinema em seus diferentes interesses e formas de compreenso e apreenso metodolgica. Em Circuito de exibio perifrico: cineclubismo e itinerncias, Dafne Pedroso nos apresenta uma discusso sobre a exibio perifrica dentro do contexto cinematogrfico brasileiro atravs das sesses itinerantes e suas relaes com o cineclubismo. Para percorrer esse caminho, a autora serve-se do aporte terico empreendido por Joo Guilherme Barone no texto Exibio, crise de pblico e outras questes do cinema brasileiro, onde discutida a clssica questo do cinema brasileiro: a receptividade do pblico em relao ao filme nacional. Pedroso recorre aos primrdios do cinema para contextualizar as apresentaes itinerantes atuais no Brasil, objeto de sua pesquisa de doutoramento, o que permite a construo de um imaginrio que reflete na maneira diversificada de se assistir filmes na atualidade, como afirma a autora:

Cristiane Freitas Gutfreind

Contemporaneamente, a experincia de recepo cinematogrfica pode se dar nas salas comerciais de cinema, em casa, em cineclubes, mostras itinerantes, festivais, entre outros. E a reconfigurao do mercado cinematogrfico passa a refletir-se na construo do espectador, nas suas maneiras de consumo, nos seus gostos e na recepo dos filmes.

Em seguida, Pedroso desenvolve uma reflexo sobre cineclubismo e itinerncia, ilustrados com exemplos de experincias concretizadas na rea para finalizar com provocaes e tensionamentos sobre a formao do pblico. Percebemos, ento, a complexidade da formao de um pblico que tem encontros espordicos com o filme e a necessidade da construo do mesmo de forma pragmtica com o que possvel. Passa-se do espectador para anlise flmica, o que evidencia O jogo cinematogrfico de Cama de Gato. O texto de Isabel Marinho reflete sobre o jovem contemporneo tendo como caso emblemtico o filme Cama de Gato (Alexandre Stockler, 2002), apropriando-se da anlise flmica para compreender, atravs da hibridizao da linguagem cinematogrfica, a ideia de tribalizao (Michel Maffesoli). A escolha do filme justificada pela sua linguagem, comprovada na seguinte afirmao: no mesmo filme h a sensao de ter assistido a vrios tipos de obras e experimentado uma diversidade de linguagens. A relao com a tribalizao aparece nessa nova forma comunitria contempornea que reflete a efemeridade e a diversificao dos laos sociais alterando conceitos como indivduo e identidade, promovendo uma hibridizao cultural pela tecnologia. O texto mostra a sua atualidade, principalmente, em uma poca em que o cinema brasileiro volta-se para a temtica jovem, algo esquecido no nosso cinema desde os anos 80, iniciado por Deu Pra Ti Anos 70 (Nelson Nadotti e Giba Assis Brasil, 1980). Finalmente, essa sesso intitulada Matizes do cinema brasileiro e sociedade fechada com Traos da indstria do cinema brasileiro contemporneo. Karine Ruy reflete sobre os filmes brasileiros de maior bilheteria nas salas entre 2003 e 2008, tentando compreender o porqu, sob o ponto de vista do mercado, alguns filmes brasileiros possuem visibilidade em detrimento de outros. A autora sugere uma pista importante para esse panorama, que pode ser resumida na seguinte ideia:14

A multiplicidade da pesquisa em cinema

A formulao de polticas pblicas especficas deu suporte ao setor e vem viabilizando sua produo atravs de mecanismos como mecenato e renncia fiscal. A distribuio e exibio, contudo, no foram abarcadas pelo Estado, deixando a grande maioria dos filmes nacionais desprovidos de qualquer espcie de auxlio estratgico para se inserir no disputado circuito de exibio tradicional.

Assim, os filmes que apresentam um diferencial justamente em termos de produo e exibio so, segundo Ruy, aqueles que contam com uma presena representativa do pblico nas salas. Essa ideia sustentada por uma amostra de seis filmes que se associaram a majors, ou a Globo Filmes, para efetivar a ponta da cadeia cinematogrfica, a exceo de um deles, que tambm tem a sua singularidade analisada. A bilheteria dos filmes nacionais estaria, ento, vinculada ao apelo miditico que passa pelo espetacular e pelo consumo. Porm, a autora afirma a importncia de se manter uma indstria com diversidade em termos de produo e esttica. A leitura desses textos oriundos de pesquisas sobre o cinema torna-se necessria medida que nos deparamos com objetos diversos que se complementam: a experincia apaixonada da itinerncia de filmes, o interesse pela linguagem e as escolhas do mercado refletem questes que compem toda a cadeia cinematogrfica - produo-distribuio-exibio - e suas questes tcnicas e estticas. Percebamos, assim, a multiplicidade da pesquisa em cinema, que a primeira vista parece tratar de temas especficos, mas que so imbricados entre si e que, finalmente, nos coloca sempre diante de uma questo maior, que segundo Kracauer, a relao do cinema com o mundo, portanto com o social e o imaginrio, temas que fazem do GEISC um interessante grupo de pesquisa com textos como esses que em muito contribuem para o avano da rea. tima leitura!

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CIRCUITO DE EXIBIO PERIFRICO: CINECLUBISMO E ITINERNCIASDafne Reis Pedroso da Silva Jornalista. Doutoranda em Comunicao Social pela PUCRS/RS/BR. E-mail: [email protected] RESUMO O trabalho problematiza e discute alguns elementos do contexto cinematogrfico brasileiro, considerado como base constituinte e geradora de certas condies que configuram o fenmeno pesquisado: a prtica dos cineclubes e das sesses itinerantes de cinema. A contextualizao aqui traada procura abarcar e definir essas duas atividades (cineclubista e itinerante) estabelecendo relaes com a discusso proposta por Barone (2008) a respeito do circuito de exibio perifrico. Dentre os resultados, evidencia-se que essas duas prticas surgiram em decorrncia e em reao ao cenrio comercial cinematogrfico que se instituiu no pas. PALAVRAS CHAVE Itinerncias Cineclubismo Contexto cinematogrfico brasileiro ABSTRACT This paper discusses and reviews some aspects of the Brazilian cinema context, considered as a constituent base and generating certain conditions that shape the studied phenomena: the practice of film clubs and itinerant film sessions. The context here looks to draw cover and set these two activities (film clubs and itinerant exhibitions) establishing a relationship with the discussion proposed by Barone (2008) about the exhibition circuit device. Among the results, it is evident that these two practices arose as a result and reaction to the film business scenario instituted in the country. KEYWORDS Film itinerant exhibitions Film Clubs Brazilians context cinema

Circuito de exibio perifrico

A proposta deste artigo a de discutir elementos do contexto cinematogrfico brasileiro, problematizando acerca do chamado circuito de exibio perifrico (BARONE, 2008)1, estabelecendo relaes com as sesses itinerantes de cinema e o cineclubismo. A escolha destas duas prticas se deu pelo meu interesse de pesquisa, pois desde o mestrado2 venho abordando tais questes e sigo nesta perspectiva em minha tese de doutorado. Para alm de um interesse pessoal/acadmico, penso que so prticas de exibio e de consumo relevantes, com uma trajetria histrica de experincias no Brasil, e que so importantes para reflexo sobre as transformaes da indstria audiovisual nacional. A inteno discutir e levantar questes a respeito de outros possveis desenhos da clssica trade produo-distribuio-exibio de cinema no cenrio brasileiro. Barone (2008) nos lembra que a trade produo-distribuioexibio necessita ser compreendida a partir das atividades correspondentes aos campos fundadores do espao audiovisual. Esses campos estabelecem relaes que no so lineares, mas sim processos onde se do tensionamentos, antagonismos, assim como interdependncias. A exibio, por sua vez, funciona em torno do ato essencial que seria a projeo na tela para o consumo/desfrute do espectador. Para isso, elaopera os meios fsicos e os sistemas necessrios ao consumo final do produto audiovisual. Neste esquema simblico, o setor de exibio corresponde ao campo responsvel pela ltima mediao entre o produto e o pblico (BARONE, 2008, p. 4-5).

A exibio de cinema, como a entendemos hoje, possui dois marcos fundadores. Um, que data do incio da dcada de 1900, nos Estados Unidos, onde havia os nickelodeons (se pagava um nquel como ingresso) e os filmes eram exibidos em grandes galpes e depsitos. O segundoAproprio-me da expresso circuito de exibio perifrico, utilizada por Barone (2008), em texto que serviu como base para esse artigo, intitulado Exibio, crise de pblico e outras questes do cinema brasileiro. O autor, entretanto, utiliza ainda o termo digital (circuito de exibio digital perifrico) e se refere s experincias baseadas na tecnologia do vdeo domstico, tais como os Pontos de Cultura, a Programadora Brasil, as pequenas salas, os cineclubes, entre outros. Optei por retirar o digital, j que algumas propostas de itinerncias, tais como Cine Tela Brasil e Rodacine RGE ainda projetam filmes em 35mm. De todo o modo, a expresso parece manter sua proposta inicial. 2 Mestrado em Cincias da Comunicao pela UNISINOS, com dissertao intitulada Hoje tem cinema: a recepo das mostras itinerantes organizadas pelo Cineclube Lanterninha Aurlio (2009), sob a orientao da Prof. Dr. Jiani Bonin.1

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Dafne Reis Pedroso da Silva

marco, a partir de 1925, refere-se s exibies nos chamados cines-teatro, j ento elitizadas. Entretanto, antes que as sesses de cinema e o mercado exibidor se institussem, havia as itinerncias. As primeiras exibies caracterizavam-se pelo nomadismo, e nas projees em cafs, parques de diverses e feiras o cinema foi sendo conhecido. Nos fins do sculo XIX, os filmes eram exibidos de forma improvisada pelos ambulantes, sendo que no havia a separao e a autonomizao dos campos de produo, distribuio e exibio. O empreendedor detinha todos os mbitos do processo, dominava as tcnicas, filmava, revelava, copiava e exibia os filmes. nos primrdios do cinema que as atuais sesses itinerantes se inspiram, porm com objetivos reformulados. Atualmente, grupos ambulantes passam de cidades em cidades, ou de bairros em bairros, projetando nos mais diversos espaos. O pblico destinado so pessoas que, em tese, no tm acesso ao cinema nacional. So projetos que surgem por iniciativa de coletivos, compostos por cineclubistas, cineastas, produtores culturais, entre outros, e muitas vezes so financiados por projetos pblicos ou leis de incentivo cultura. Alm das itinerncias, o cineclubismo brasileiro, que completar 83 anos em 2011, reafirma sua proposta ancorada na cinefilia, ou seja, no gosto pelo cinema, e tambm busca a formao de demanda para o cinema nacional. Para abordar essas duas prticas de exibio de cinema, me parece importante compreender as condies ambientais em que elas surgem e funcionam. Barone (2008) elenca uma srie de constataes sobre o cenrio de circulao e de exibio no Brasil, que tm como consequncia o restrito espao para os filmes nacionais. Algumas das constataes seriam as mudanas no aparato tcnico da exibio, a pouca regulao e a ocupao do circuito nacional pela produo hegemnica distribuda pelos grandes conglomerados de mdia norte-americanos (BARONE, 2008, p. 6). Por conta disso, ele nos lembra que (...) a pouca frequncia dos filmes nos circuito comercial compromete aspectos simblicos da formao do imaginrio social (BARONE, 2008, p.6). Este diagnstico do autor elemento de preocupao para cineclubistas e exibidores itinerantes, sendo que essas prticas tm em comum a busca pela exibio de filmes nacionais em seus circuitos. O espao limitado para as produes nacionais nas salas de cinema se revela tambm pelos nmeros. Se, em 2003, os filmes nacionais18

Circuito de exibio perifrico

ocuparam 22% das salas de exibio, em 2008 passaram a ocupar 6,9% (BARONE, 2008. p. 6). E, se a permanncia depende dos ingressos vendidos, o autor nos lembra que h tambm uma falta de interesse do pblico pelos filmes nacionais. Outro elemento do cenrio cinematogrfico nacional a reduo no nmero de salas nos ltimos trinta anos. Em 1970 e 1980 havia cerca de 4 mil salas, mas hoje so aproximadamente 2.100, sendo que 92% dos municpios no possuem salas de exibio, as quais esto concentradas nas grandes cidades (BARONE, 2008). Ou seja, no interior do pas quase no h a possibilidade da experincia da recepo coletiva nas salas de cinema. Entretanto, o consumo se d de outras maneiras, seja pelo que exibido na televiso, ou pelos filmes comprados/locados/baixados da internet. Ainda que a referncia de projeo sejam as salas de cinema, nas ltimas dcadas viu-se a transformao do campo com novas tecnologias, ocasionando o desmonte destes espaos de exibio. Nesse sentido, h a crescente desnaturalizao da sala de cinema como o nico local de recepo de filmes. Contemporaneamente, a experincia de recepo cinematogrfica pode se dar nas salas comerciais de cinema, em casa, em cineclubes, mostras itinerantes, festivais, entre outros. E a reconfigurao do mercado cinematogrfico passa a refletir-se na construo do espectador, nas suas maneiras de consumo, nos seus gostos e na recepo dos filmes. Novamente, neste sentido, se v a atuao das prticas aqui abordadas, ou seja, da promoo de diferentes experincias de recepo de cinema. Conforme Barone (2008), com o aumento do valor do ingresso, o pblico C e D, que ia com frequncia ao cinema em outros perodos, acabou afastando-se das salas. A ida ao cinema tornou-se uma atividade elitista. Por conta disso, percebe-se que o pblico das sesses itinerantes atuais , principalmente, de sujeitos de classes populares. As projees itinerantes parecem se organizar em reposta ao cenrio cinematogrfico que se instituiu ao longo dos anos. Esses so alguns dos elementos do mercado nacional que se constituiu e onde operam as prticas cineclubista e itinerante. No texto que segue, a proposta a de resgatar origens sobre essas experincias, assim como trazer exemplos atuais concretos de como as projees itinerantes tm atuado no cenrio brasileiro.19

Dafne Reis Pedroso da Silva

SOBRE O CINECLUBISMO E AS ITINERNCIAS O consumo de filmes em clubes de cinema surge na Frana, no incio do sculo XX, com Riccioto Canudo, que fundou o Club des Amis du Septine Art, o primeiro cineclube de que se tem registro, conforme nos lembra Lunardelli (2000)3. No momento em que foram criados esses primeiros cineclubes, o cinema ainda estava afirmando-se como arte. Como os filmes costumavam ser exibidos nas feiras de variedades, o cinema era desprezado por ser uma diverso das classes populares. O cineclubismo, inserido nesse contexto, contribua para uma nova possibilidade de recepo de cinema, que privilegiava um pensamento crtico em relao ao que se assistia, para alm do entretenimento. As elites intelectuais foram as responsveis pelo desenvolvimento dos cineclubes e Revestiam-se de um dissimulado papel educativo, que est na gnese do cineclubismo, evidenciado na linha doutrinria adotada pelos cineclubes catlicos (LUNARDELLI, 2000, p.18). De l para c, o cineclubismo foi praticado de diversas formas, de acordo com o perodo histrico, com o contexto de cada pas e regio e com os propsitos dos grupos que organizam seus cineclubes. No h um cineclubismo nico, j que este reformulado ao longo dos anos. Sem dvida existe um rgo maior, no caso brasileiro, o Conselho Nacional de Cineclubes, que cria diretrizes de ao, mas os cineclubes, por sua vez, recriam essas propostas de acordo com seus prprios objetivos. possvel perceber alguns eixos de propostas cineclubistas desde o seu incio no pas, tais como: uma defesa esttica em relao ao cinema arte, que deveria ser apreciado; uma ideia de cineclube enquanto espao de formao de sujeitos crticos e competentes nas lgicas cinematogrficas; uma proposta de educao do olhar, difundida pelos cineclubes catlicos durante as dcadas de 1950 e 1960; uma proposta de utilizar o cinema como possibilidade de mobilizao social em torno de uma causa, como foi durante o perodo militar; um eixo de ao do cineclube enquanto um espao de discusso acerca do cenrio cinematogrfico institudo, como um local de difuso de filmes que no so exibidos nas salas comerciais de cinema e/ou disponibilizados em vdeolocadoras e veiculados em canais de televiso.Entretanto, foi Louis Delluc, um seguidor de Canudo quem inventou o termo cin-club. Ele fundou, em 1920, o Cine-Club e, aps sua morte, o Cine-Club uniu-se ao CASA (Club des Amis du Septine Art) de Canudo e criou-se Le Club Franais du Cinema, entidade que deu base para a constituio do que viria a ser o movimento cineclubista.3

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Circuito de exibio perifrico

Atualmente, a bandeira levantada pelo cineclubismo nacional atua no sentido de criar circuitos alternativos de filmes, em especial os brasileiros, e formar platias para tal. Por conta disso, frequentemente encontram-se cineclubes que desenvolvem tambm sesses itinerantes, unindo a proposta cineclubista ao cinema itinerante. Quanto s origens e trajetria das sesses itinerantes de cinema, percebe-se que, se no incio das exibies de cinema no Brasil o carter ambulante se dava pela falta de pblico e de um mercado constitudo, as sesses itinerantes contemporneas se do tambm pelas consequncias do mercado que se construiu. A falta de espao para exibio e de demanda para o consumo dos filmes brasileiros faz com que surjam atividades como as projees ambulantes. Com o quase total desaparecimento dos cinemas de calada e a transferncia das salas de cinema para os shopping centers dentro dos grandes complexos, ou multiplex, a possibilidade de recepo coletiva de cinema torna-se cada vez mais difcil. Os projetos atuais tm a proposta de democratizao do acesso aos filmes nacionais, assim com a formao de platias para estas produes. Entretanto, cada atividade itinerante tem caractersticas particulares: algumas so organizadas por cineclubes; outras por empresas ou rgos pblicos; existem as que s exibem filmes brasileiros, enquanto h as que tambm projetam produes norte-americanas de grande distribuio; algumas atividades possuem grande estrutura, j em outras, as sesses acontecem de forma improvisada; ainda h as projees que renem filmes e variadas apresentaes artsticas. As sesses itinerantes de cinema se caracterizam tambm pela gratuidade e por serem feitas, principalmente, em cidades em que no haja salas comerciais de cinema ou em regies perifricas de cidades que tm salas de cinema, mas que os moradores dessas regies no teriam possibilidades financeiras de frequent-las. As itinerncias possibilitam a experincia coletiva de recepo de cinema, mas uma experincia diferenciada, em que o contexto de recepo tem papel fundamental. Parece-me que esses projetos se propem divulgao do cinema, abertura de possibilidade da recepo coletiva, em especial para um pblico popular que tem pouco acesso s salas de cinema e s produes feitas no pas. Das atividades mapeadas a partir da dcada de 90, destaco alguns projetos. H os que possuem grande financia21

Dafne Reis Pedroso da Silva

mento, principalmente a partir de Leis de Incentivo Cultura e outras formas de financiamento pblico tendo, consequentemente, uma maior estrutura, com equipe fixa, grandes telas, projetores, cadeiras confortveis, transporte prprio e uma maior circulao, percorrendo diversas cidades. Assim como existem os de menor estrutura, que funcionam de uma maneira mais improvisada, mas que compartilham do propsito de formao de platias, exibio de filmes nacionais e de proporcionar a experincia da recepo coletiva. O Cine Tela Brasil4, por exemplo, possui uma grande estrutura e possvel ver uma preocupao com o espao de recepo de modo que este simule uma sala comercial de cinema. O projeto tem o objetivo de exibir filmes, brasileiros e estrangeiros, em diversos municpios do pas. O cinema permanece por trs dias na periferia das cidades e oferece quatro sesses dirias, duas para crianas e duas para adultos, sendo que j exibiu filmes para mais de 600 mil espectadores desde 1996. Em 2007, foi includa ao projeto a Oficina Itinerante de Vdeo Tela Brasil. Cineastas-educadores ensinam noes sobre produo de cinema para os moradores das comunidades por onde passam os caminhes do projeto. Percebe-se aqui mais um movimento desse cenrio cinematogrfico, que o de formao de sujeitos nas lgicas de produo, com o propsito de incluso audiovisual. Algo que se v tambm em projetos como o Revelando os Brasis5, que alia a formao de sujeitos competentes na lgicas audiovisuais problemtica da exibio de cinema no pas, com o propsito de realizar sesses itinerantes.

Em 1996, por exemplo, os cineastas Las Bodanzky e Luiz Bolognese criaram o Cine Mambembe, com um projetor 16mm, uma tela montvel e uma Saveiro. Eles exibiam filmes brasileiros em praas e em escolas de So Paulo. O projeto seguiu at 2004, ano em que, com apoio da Lei de Incentivo Cultura (LIC), da CCR Controladora da AutoBan e Nova Dutra, entre outras concessionrias, ele passou a se chamar Cine Tela Brasil. Em 2005 foram somadas 504 sesses e um total de 100.000 espectadores. Em 2006 somavam-se 200 mil espectadores. 5 O Revelando os Brasis, projeto do Ministrio da Cultura em parceria com a Petrobrase o Instituto Marlin Azul, promove a produo de curtas-metragens por moradores de cidades com at 20 mil sobre os locais onde vivem. Nesse sentido, alm de uma proposta de consumo coletivo de filmes brasileiros, o projeto parece promover a incluso desses sujeitos no cenrio cinematogrfico de modo que possam expressar elementos de suas culturas audiovisualmente. H a capacitao de sujeitos para que possam contar suas histrias audiovisualmente. Pontos de Cultura, produes da CUFA (central nica das favelas), Ns do Morro, so tambm organizaes que possuem atividades nesse sentido.4

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Circuito de exibio perifrico

Figura 1: Estrutura externa do Cine Tela Brasil.

Figura 2: Parte interna do Cine Tela Brasil.

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Figura 3: Exibio na cidade de Vinhedo6.

No Rio Grande do Sul, desde 2001, existe outro projeto de grande estrutura chamado RodaCineRGE, que percorre vrias cidades do estado. O projeto uma iniciativa do Governo do Estado do RS, atravs da Secretaria Estadual da Cultura e do Instituto Estadual de Cinema (IECINE) e realizado pela Fundao de Cinema RS (FUNDACINE). Desde 2001, o pblico acumulado supera 372 mil pessoas, em 360 municpios. O RodaCineRGE, diferentemente do Cine Tela Brasil, faz as sesses ao ar livre ou em espaos cobertos, utilizando a estrutura do local, o que possibilita um outro tipo de recepo de acordo com o espao adaptado. Alm disso, o projetor 35 mm utilizado (raro nas itinerncias que utilizam, em sua maioria, projetores digitais) fica exposto ao fundo, possibilitando que os sujeitos tenham contato com um equipamento que possivelmente no conheciam.

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Disponvel em: . Acesso em: 10 de abr. 2008.

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Circuito de exibio perifrico

Figura 4: Sesso do RodaCineRGE na Praa Saldanha Marinho, em Santa Maria, durante o 4 Santa Maria Vdeo e Cinema.

Figura 5: Sesso do RodaCineRGE, na cidade de Arvorezinha, em 13 de setembro de 20057.

Outro projeto, este de menor estrutura, desenvolvido por um coletivo e que suscita a discusso sobre espaos de projeo, o projeto Acenda uma Vela. Criado em 2005 pela Iderio (organizao cultural sem fins lucrativos, de Alagoas), mostra que os filmes podem ser exibidos em telas pouco usuais. Realizando exibies em localidades litorneas, Hermano7

Disponvel em: . Acesso em: 10 de abr. 2008.

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Figueiredo projeta os filmes nas velas das embarcaes. A programao do Acenda uma Vela composta de filmes brasileiros de curta-metragem com nfase em temas da cultura popular. O projeto financiado pelo Ministrio da Cultura, atravs do Fundo Nacional de Cultura (FNC) e da Secretaria do Audiovisual, e conta, tambm, com apoios em cada localidade na mobilizao do pblico, alm da parceria dos realizadores que enviam seus filmes. Essa proposta um exemplo emblemtico do desmonte que a sala de cinema vem sofrendo enquanto espao legitimado de exibio de cinema. As itinerncias trazem em sua gnese a problematizao sobre o espao, sobre a materialidade do consumo.

Figuras 6 e 7: exibies do projeto Acenda uma Vela. Fotos de Nataska Conrado8.8

Disponvel em: . Acesso em: abr. 2010.

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Circuito de exibio perifrico

Fotos 8: Exibio do Cineclube Lanterninha Aurlio itinerante em uma escola rural na cidade de Formigueiro, RS.

Foto 9: Exibio do Cineclube Lanterninha Aurlio itinerante. Fotos: Dafne Pedroso

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O cineclube Lanterninha Aurlio, de Santa Maria, Rio Grande do Sul, um exemplo de proposta cineclubista que se mescla s experincias itinerantes. Financiado pela Lei de Incentivo Cultura, ele possui uma pequena estrutura. As sesses no tm uma agenda feita com antecedncia e acontecem de acordo com as possibilidades dos locais de exibio e dos cineclubistas. O projeto se inclui nas sesses que privilegiam o cinema nacional para receptores de classes populares, e se assemelha a propostas de pequena estrutura que tm uma preferncia pela exibio de curtas-metragens brasileiros. TENDNCIAS E QUESTES Aps essa contextualizao e relato com exemplos de sesses itinerantes e de elementos sobre o cineclubismo, uma srie de questes surgem, tais como: - Em que medida essas prticas contribuem para transformar a estrutura clssica produodistribuioexibio? - At que ponto cineclubes e projetos itinerantes so perifricos, j que no interior do pas sequer existem salas de cinema? - Que implicaes esse circuito pode ter no sentido de configurar as competncias cinematogrficas do pblico? - Como formar platias com sesses itinerantes espordicas? A ideia, nestas consideraes finais, no a de responder, mas justamente provocar. Pois, se em uma primeira passada de olhos pode nos parecer que essas propostas promovam a recepo coletiva, a criao de platias, preciso observar, problematizar, tensionar. Digo isso, porque muitas das atividades itinerantes, por exemplo, no retornam mensalmente aos mesmos locais para exibio. Sendo assim, como formar pblico para o cinema brasileiro com espectadores que parecem consumir, majoritariamente, filmes estrangeiros? Ou seja, no basta promover o acesso espordico, mas sim o consumo sistemtico, algo que visto, por exemplo, no trabalho de muitos cineclubes que possuem sesses semanais de exibio de filmes. Mas como aumentar o nmero de pessoas que frequentam essas sesses? preciso investir em projetos de exibio de cinema nacional que pensem no espectador de cinema, que o conheam. E que conheam o contexto em que ele est inserido.28

Circuito de exibio perifrico

necessrio considerar, por exemplo, que um sistema de exibio importado dos Estados Unidos, o qual estabelece a noo de sucesso de bilheteria em dezenas de milhes de espectadores, passa a sedimentar no imaginrio do pblico a ideia de que o blockbuster o verdadeiro cinema (BARONE, 2008). Conforme Barone impossvel construir uma indstria ou mesmo dimensionar a atividade cinematogrfica em busca da sua sustentabilidade, com base apenas nos filmes de grande pblico. necessrio e importante assegurar a diversidade dos lanamentos para os diferentes pblicos (BARONE, 2008, p. 3). Ou seja, em tempos de audincias fragmentadas, no seria hora de pensar em pequenos lanamentos? Em cineclubes, itinerncias, pontos de cultura, pequenas salas? Para isso esto os circuitos perifricos de exibio, ttulo deste artigo. Tendncia, como trata Barone (2008), que confronta as propostas das majors, pois muitas vezes utilizam cpias de uso domstico, no permitidas para sesses pblicas, mas que poderiam estar apontando outro caminho, uma nova possibilidade para o cinema nacional. Ou seja, considerar no somente as grandes salas, mas a projeo na vela do barco, a igreja que vira cinema (e no o contrrio), a praa cheia de pessoas e iluminada com a projeo em um muro. Pequenas sesses, que multiplicam platias e retomam a experincia do coletivo e do encontro. No seria o desmonte do cinema a favor do cinema? REFERNCIASBARONE, Joo Guilherme. Sesses do Imaginrio. Exibio, crise de pblico e outras questes do cinema brasileiro. Porto Alegre, n 20, Dez. 2008. LUNARDELLI, Fatimarlei. Quando ramos jovens: histria do Clube de Cinema de Porto Alegre. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS/EU da Secretaria Municipal de Cultura, 2000. Sites consultados Cine Tela Brasil Disponvel em: . Acesso em 10 de abr. 2010.

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Cineclube Lanterninha Aurlio Disponvel em: . Acesso em 10 de abr. 2010. Conselho Nacional de Cineclubes Disponvel em: . Acesso em 10 de abr. 2010. Programadora Brasil Disponvel em: . Acesso em 10 de abr. 2010. RodaCine RGE Disponvel em: . Acesso em 10 de abr. 2010.

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TRAOS DA INDSTRIA DO CINEMA BRASILEIRO CONTEMPORNEOKarine dos Santos Ruy Jornalista. Mestre em Comunicao Social pela PUCRS/RS/BR. E-mail: [email protected] RESUMO O objetivo deste trabalho traar um breve perfil dos filmes brasileiros que alcanaram as maiores bilheterias no circuito interno de salas entre 2003 e 2008, levando em considerao, para isso, elementos relativos ao esquema de produo e distribuio, prprio da indstria cinematogrfica. Para interpretar tais indicadores, utilizamos nesse artigo as contribuies tericas de autores da linha da Economia Poltica da Comunicao, sobretudo no que se refere ao estatuto das indstrias culturais na sociedade contempornea. PALAVRAS CHAVE Cinema brasileiro Indstrias culturais Globo Filmes ABSTRACT The intent of this paper is to project a compact profile of Brazilians cinema biggest box office successes in the intern circuit of theaters between the years of 2003 and 2008, by observing elements of production and distribution scheme. To interpret such information, well use in this paper the theoretical contributions of the Political Economy of Communication, especially about the statute of cultural industries in contemporary society. KEYWORDS Brazilian cinema Cultural industries Globo Filmes

Karine dos Santos Ruy

Em 1960, em uma de suas crticas publicadas no Suplemento Literrio do jornal O Estado de So Paulo, Paulo Emlio Salles Gomes mostrou seu descontentamento com o modo de se fazer cinema no Brasil. Num dos trechos do texto anunciado com o sugestivo ttulo Uma situao colonial?, afirmava o autor que:O denominador comum de todas as atividades relacionadas com o cinema em nosso pas a mediocridade. A indstria, as cinematecas, o comrcio, os clubes de cinema, os laboratrios, a crtica, a legislao, os quadros tcnicos e artsticos, o pblico e tudo mais que eventualmente no esteja includo nesta enumerao mas que se relacione com o cinema no Brasil, apresenta a marca cruel do subdesenvolvimento (SALLES GOMES, 1979, p. 11).

Trazendo as palavras do crtico para o cenrio cultural brasileiro da virada do sculo XX para o XXI, percebemos que a opinio desenhada h 40 anos no empresta sentido para interpretar a realidade do cinema nacional contemporneo. Atualmente, o eixo da problemtica enfrentada pelo cinema nacional deslocou-se de questes referentes qualidade e s suas especificidades narrativas e de gnero para questes prprias ao ciclo da cadeia produtiva do cinema. Assim, o conceito de subdesenvolvimento no parece ser mais uma categoria coerente para se pensar o cinema brasileiro contemporneo. Uma anlise que mude o foco para os aspectos industriais do cinema nacional e sua performance no circuito interno de salas nos ltimos anos capaz de apontar elementos sintomticos para se compreender a insero e consumo dessa espcie de bem cultural no mercado interno. Desde que o fenmeno Cidade de Deus (Fernando Meirelles, 2002) ganhou destaque fora do pas com sua indicao disputa do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 2004, chamando consequentemente a ateno da audincia brasileira para as produes nacionais, diversos filmes made in Brasil conseguiram lugar ao sol leia-se um espao no disputado circuito de exibio. So ttulos como Carandiru (Hector Babenco, 2002), Os dois Filhos de Francisco (Breno Silveira, 2005) e Tropa de Elite (Jos Padilha, 2008), exemplares que superaram a marca dos dois milhes de espectadores no mercado interno. Em contrapartida, muitas obras cinematogrficas produzidas aqui so com32

Traos da indstria do cinema brasileiro contemporneo

pletamente desconhecidas do pblico por no terem a fora comercial e apoio necessrio para entrar nesse circuito.(...) o cinema brasileiro nestes anos recentes teve momentos fortssimos em certas obras, em meio s poucas chances dadas aos muitos estreantes e aos esquemas predominantes entre is veteranos do mercado. Dentro das limitaes trazidas por esta pretensa diversidade, possvel encontrar jias tanto em alguns dos formatos que a dcada viabilizou como em outros que ela praticamente esgoelou (CAETANO, 2005, p. 239).

Posto isso, interessa-nos aqui procurar traos de semelhana e continuidade nas maiores bilheterias do cinema brasileiro contemporneo, ao qual este trabalho delimita como o perodo que vai de 2003 (ps Cidade de Deus) a 2008. O objetivo analisar caractersticas pontuais do ttulo que conquistou a maior bilheteria em cada ano dentro do perodo sugerido, com a inteno de evidenciar suas especificidades na trade produo distribuio exibio (BARONE, 2005)1. Essa breve pesquisa parte do pressuposto da existncia de uma indstria cinematogrfica no Brasil centrada, sobretudo, na etapa de produo e calcada em mecanismos institucionais de apoio mas cuja estrutura ainda carece de investimentos estratgicos para que consiga se transformar em um agente capaz de proporcionar uma diversidade cultural ao setor audiovisual brasileiro. As contribuies tericas que melhor se integram proposta de estudar o cinema, a partir dos agentes da trade referida por Barone, so tomadas, sobretudo, da Economia Poltica da Comunicao, linha que se caracteriza por focalizar fatores estruturais e processo de trabalho na produo, distribuio e consumo da comunicao (SERRA, 2007, p. 68). Primeiramente, para compreender as especificidades do cinema em sua trade produo distribuio exibio, devemos lanar um olhar para alm do territrio da chamada stima arte, indo em direo aos condicionamentos prprios das indstrias culturais. Como avalia SadoulEmbora no faa parte do recorte temporal escolhido para este artigo, necessrio chamar a ateno para alguns fatos relevantes do mercado cinematogrfico brasileiro em 2010. Nesse ano, Tropa de Elite 2, dirigido por Jos Padilha, se tornou o filme brasileiro mais visto da histria, registrando 11.023.475 espectadores entre outubro e dezembro. At ento, o ranking era liderado por Dona flor e seus dois maridos (Bruno Barreto, 1976), que foi visto no circuito de salas por 10.735.524 pessoas. Em 2010, houve um crescimento de 56,77% no pblico do cinema brasileiro em relao a 2009.1

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No se pode imaginar um cineasta realizando grandes filmes desconhecidos de todos. A necessidade de empregar capitais considerveis impe aos criadores condies precisas para a elaborao de suas obras. , portanto, impossvel estudar a histria do cinema como arte (...) sem evocar os seus aspectos industriais. E a indstria inseparvel da sociedade, de sua economia e sua tcnica (1964, p. 8).

Tendo conscincia que nos referimos a uma sociedade em rede e globalizada, imprescindvel levar em considerao o contexto em que esse cinema produzido, abrangendo a atuao e interao entre diversas espcies de agentes econmicos, culturais e polticos, por exemplo na configurao desse cenrio. Como alerta Moraes, tornou-se importante perceber que a cultura(...) est imersa na lgica do lucro que preside a expanso da forma- mercadoria a todos os campos da vida social. Integrada, como as demais reas produtivas, ao consumismo, a esfera cultural tornase componente essencial na lubrificao do sistema econmico, a ponto de o setor do entretenimento, juntamente como o se software, liderar a pauta de exportaes dos Estados Unidos (MORAES, 2003, p. 37).

Foi, afinal, a concentrao de capital e o acesso s tecnologias os fatores preponderantes para que os Estados Unidos e sua Hollywood se consagrassem como maior produtor/exportador/distribuidor de produtos audiovisuais do mundo, detendo hoje 85% do mercado cinematogrfico global. Levantamento realizado pela Screen Digest, em outubro de 2000, mostrou que a produo dos Estados Unidos ocupou aproximadamente metade do mercado exibidor em 90% do mundo (BARONE, 2005, p.125). Tal competncia influencia diretamente nas cinematografias realizadas fora do eixo norte-americano. O relatrio da Agncia Nacional do Cinema (Ancine)2 oferece um exemplo: em 2008, dos 89.960,164 espectadores que compareceram s salas de cinema no pas, somente 9.143,052 assistiram filmes brasileiros.Criada em 2001 e vinculada ao Ministrio da Cultura, a Ancine tem como atribuies o fomento, a regulao e a fiscalizao do mercado do cinema e do audiovisual no Brasil.2

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Traos da indstria do cinema brasileiro contemporneo

A disparidade se deve prpria estrutura da indstria cinematogrfica, sobretudo ao poder estratgico conferido ao setor de distribuio, indispensvel para que o produto filme encontre uma audincia. Barone define a distribuio como o sistema queOpera os canais e os meios necessrios a circulao o produto audiovisual, visando ao seu consumo pelo maior nmero possvel de pessoas. o setor que responde pela efetiva comercializao do produto igualmente caracterizado pela grande concentrao de capital e alto grau de especializao (Ibidem, p. 35).

Bustamante tambm destaca o papel da distribuio no sistema cinematogrfico, afirmando que somente com seu domnio avanado se pode garantir tais operaes, facilitadas pela concentrao tambm travada nas cadeias de salas multiplex, megaplex, preferencialmente (BUSTAMANTE, 2003, p. 32). Chegamos ao ponto-chave da proposta deste trabalho: a capacidade do cinema nacional fazer-se visto. A formulao de polticas pblicas especficas deu suporte ao setor e vem viabilizando sua produo atravs de mecanismos como mecenato e renncia fiscal. A distribuio e exibio, contudo, no foram abarcadas pelo Estado, deixando a grande maioria dos filmes nacionais desprovidos de qualquer espcie de auxlio estratgico para se inserir no disputado circuito de exibio tradicional. Ao no atrair o interesse de majors3 do setor, e consequentemente condenados a um espao limitado na cadeia de exibio ou a espao algum , uma leva de filmes brasileiros desconhecida de seus espectadores em potencial. Mas h uma contrapartida. Analisando dados da Ancine sobre a atuao do cinema brasileiro desde 2003, vemos em cada ano a existncia de filmes que conseguem se inserir com sucesso nas cadeias de distribuio e alcanar um pblico considerado alto para os padres nacionais (mais de 1 milho de espectadores). As perguntas a [tentar] responder so: o que difere esses filmes da grande maioria dos ttulos lanados no pas e quais foram suas prticas de produo-distribuio?O termo utilizado para se referir aos grandes estdios e distribuidoras de cinema, com atuao global no mercado audiovisual. Empresas como Fox Filmes, Warner e Sony Pictures so exemplos de majors.3

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OS SUCESSOS DO CINEMA BRASILEIRO RECENTE O primeiro passo para traar um breve perfil sobre os sucessos de bilheteria do cinema brasileiro contemporneo observar alguns dados relativos produo e distribuio, reunidos na tabela 1. Nela, vemos a presena de grandes produtores e distribuidores associados aos filmes brasileiros de maior rendimento do perodo. O destaque so as majors internacionais: Columbia Tristar, Fox Film, Universal Pictures e Sony Pictures. A Columbia Tristar, por exemplo, participou como co-produtora e distribuidora exclusiva de Carandiru, Cazuza O Tempo no para (Sandra Werneck e Walter Carvalho, 2004) e Os dois filhos de Francisco. Ou seja, ela esteve presente em trs das seis maiores bilheterias do cinema nacional entre 2003 e 2008. Apenas Tropa de Elite no se associou a uma empresa estrangeira durante sua produo, mas deixou a etapa da distribuio sob os cuidados da Universal Pictures e da The Weinstein Company. Vemos a(...) uma espcie de transnacionalizao cultural na qual os canais fluem todos para uma nica direo, dos centros para periferia, concentrando sempre seu domnio em elites ou grupos que monopolizam ou compartilham, em feroz concorrncia, seus meios de capital e sua capacidade tecnolgica para fortalecer sua influncia sobre o pensamento e os valores da populao (LPEZ e ORTEGA, 1997, p.177).

Mais interessante ainda constatar a presena macia da Globo Filmes. Nessa listagem, o brao da Rede Globo no cinema aparece em cinco dos seis filmes relacionados, sempre associada a outros co-produtores. Novamente, somente Tropa de Elite no foi includo na regra. Essas informaes, mesmo superficiais, so vlidas e eficazes para qualquer proposta de se compreender o mercado cinematogrfico do Brasil da ltima dcada. Tal relato nos mostra que os filmes nacionais com uma trajetria satisfatria no mercado interno seguiram um padro de produo/comercializao prprio indstria audiovisual norte-americana: associao a monoplios com o aporte financeiro e miditico capaz de fazer o produto circular de forma eficiente (distribuio) e atrair a ateno da audincia consumidora desse meio (marketing/divulgao).36

Traos da indstria do cinema brasileiro contemporneo

FilmeCarandiru

Ano2003

ProduoHB Filmes/Globo Filmes/ Columbia TriStar Globo Filmes/ Lereby Produes/ Cineluz Produes/ Columbia Tristar Globo Filmes/ Conspirao Filmes/ ZCL Produes Artsticas/ Columbia Tristar Globo Filmes/ Total Filmes/ Lereby Produes/ Fox Film do Brasil Zazen Produes Globo Filmes/ Atitude Produes/ Sony Pictures Home Entertainment/ Teleimage/ Apema

DireoHector Babenco Sandra Wernech / Walter Carvalho Breno Silveira

DistribuioColumbia TriStar

Pblico4.693.853

Cazuza O Tempo no para Os dois filhos de Francisco Se eu fosse voc Tropa de Elite

2004

Columbia TriStar

3.082.522

2005

COLUMBIA TRISTAR

5.319.677

2006

Daniel Filho

Fox Film do Brasil Universal Pictures do Brasil / The Weinstein Company Downtown Filmes/ Sony Pictures

3.644.956

2007

Jos Padilha

2.417.193

Meu nome no Johnny

2008

Mauro Lima

2.000.000

Tabela 1: Maiores bilheterias do cinema brasileiro entre 2003 e 2008, segundo a Ancine4

Resumindo, a relevncia da participao de grandes produtoras e distribuidores nos longas brasileiros assim como em qualquer cinematografia sua capacidade de operar em duas frentes cruciais para a carreira de um filme: torn-lo disponvel aos espectadores e trabalhar para despertar o interesse desse pblico consumidor. E justamente pelo quesito despertar o interesse do pblico que faz necessrio olhar com ateno ao papel da Globo Filmes no cinema brasileiro contemporneo. Trata-se, afinal, de uma produtora ligada ao maior grupo miditico do pas. Na prtica, isso significa poderosas campanhas de marketing e propaganda dos lanamentos em questo. Mesmo atuando como produtora associada, e sendo as aes de marketing etapa abrangida pela distribuio, a Globo Filmes usa seu aporte miditico para divulgar os filmes do qual participa,As estatsticas sobre o mercado cinematogrfico nacional so disponibilizadas pelo Observatrio Brasileiro do Cinema e do Audiovisual (O.C.A.) no portal da Ancine: http://www.ancine.gov.br/oca/.4

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incluindo merchandising no roteiro de novelas e outros programas de boa audincia do grupo. Segundo Butcher, o capital que a Globo Filmes oferece aos produtores no dinheiro, mas uma moeda ainda mais valorizada no mercado do audiovisual: espao na mdia (2005, p. 90).O importante que a Globo d a certeza de uma estrutura nacional de divulgao que pode se dar nos formatos tradicionais (anncios e spots de TV) ou na chamada cross media citao e promoo nos programas da casa). Dessa maneira, a Globo demonstrou imenso poder para alavancar o filme nacional naquilo que ele tem maior fraqueza e relao ao produto norte-americano: os altos investimentos em marketing (BUTCHER, 2005, p. 75).

O pesquisador conclui, ainda que, ao projetar-se na rea do cinema, o objetivo da Rede Globo era(...) manter o controle sobre a produo e sustentar a hegemonia no campo da produo de narrativas audiovisuais do pas, posio que a TV globo assumiu a partir de meados da dcada de 70, mas que comeou a se desestabilizar, principalmente, com o surgimento de novas tecnologias de difuso e consumo da imagem (Ibidem, p. 88).

O primeiro longa-metragem a levar o selo da Globo Filmes foi O Auto da Compadecida (1999), de Guel Arraes. Mas o filme que definiria de vez a participao do grupo no setor foi Cidade de Deus (2002). A parceria foi acertada somente no perodo de lanamento do filme, a cargo da distribuidora Lumire. Na poca, at as previses mais otimistas, que previam 1 milho de espectadores, foram desbancadas. Cidade de Deus tornou-se um fenmeno no mercado cinematogrfico brasileiro, ultrapassando a marca de 3,3 milhes de ingressos vendidos. Trata-se de um marco qualitativo, responsvel por despertar novamente o interesse do pblico brasileiro pelos filmes nacionais.O filme foi capaz de atrair espectadores que estavam longe dos cinemas, lotando os multiplex mais 38

Traos da indstria do cinema brasileiro contemporneo

elitizados e os cinemas de rua mais populares. Cidade de Deus instaurou-se no centro do debate nacional ultrapassando o nicho dos cadernos culturais e configurando-se como um filme evento brasileiro. A violncia urbana deixou de ser um tema tabu para o cinema de retomada (BUTCHER, 2005, p. 90).

O efeito Cidade de Deus estende-se a Carandiru, primeiro filme apresentado pela tabela 1 deste trabalho. Alm de ser a segunda maior bilheteria do perodo, o longa dirigido por Hector Babenco se destacou em um cenrio peculiar dentro do mercado cinematogrfico brasileiro: o nmero de espectadores voltou aos 100 milhes (marca no ultrapassada desde 1989), sendo que os filmes brasileiros representaram 21,4% deste total. O filme, que seguiu a trilha de Cidade de Deus e mergulhou na temtica social da criminalidade e da violncia, ganhou altos investimentos em distribuio da Columbia, um reflexo do sucesso do antecessor. As particularidades do ano de 2003 na esfera do cinema nacional no se resumem s cifras de Carandiru; a participao da Globo Filmes tambm no. No mesmo ano, outros seis filmes brasileiros ultrapassaram a marca de 1 milho de espectadores. Em um nico final de semana, trs ttulos nacionais - Os Normais (Jos Alvarenga Jr, 2003), Maria Me do Filho de Deus (Moacyr Ges, 2003) e Lisbela e o Prisioneiro (Guel Arraes, 2003) - ocuparam as posies inicias no ranking das maiores bilheterias, atingindo 70% do mercado (BUTCHER). A Globo Filmes estava associada s seis produes. Essas informaes indicam que o cinema brasileiro comercialmente sustentvel vem seguindo o padro hollywoodiano no que diz respeito participao de conglomerados da comunicao e investimentos generosos em marketing para atrair o consumidor-espectador. Mas seguindo essa lgica, o que justificaria o sucesso de Tropa de Elite? Primeiramente, um filme deve ser apreendido como um espetculo, e uma vez assim o considerando necessrio levar em considerao a imprevisibilidade de fenmenos dessa ordem. Como argumenta Douglas Kellner em sua crtica a Guy Debord, as polticas do espetculo so imprevisveis e os espetculos nem sempre conseguem manipular o pblico e podem falhar (KELLNER, 2003, p. 138).39

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No caso de Tropa de Elite o espetculo no falhou; pelo contrrio, foi superdimensionado. O filme sobre as intervenes do BOPE nas favelas cariocas no foi divulgado por vias tradicionais, com espaos pagos por propaganda nos veculos de comunicao. A frmula foi muito mais eficaz. A pirataria do filme entrou na pauta da mdia jornalstica, e logo foi a vez do contedo do longa ser polemizado. Ao invs de ocupar espao somente nas editorias de Cultura dos jornais e revistas, Tropa de Elite ganhou capas e reportagens especiais. Quando o filme venceu o Festival de Berlim, em 2008, novamente agendou a mdia. Percebe-se, assim, que para conquistar um pblico acima da mdia e concorrer com o arsenal hegemnico norte-americano as produes nacionais precisam se destacar aos olhos do espectador. E em tempos que as decises de consumo so mais prticas que ideolgicas, a frmula destacar-se midiaticamente, seja pelas aes articuladas das majors envolvidas ou por particularidades que despertem o interesse do campo jornalstico, como a pirataria de Tropa de Elite. CONSIDERAES FINAIS O quadro recente do mercado cinematogrfico brasileiro indica a formao de uma hegemonia dentro do prprio cinema brasileiro. Trata-se de uma hegemonia das bilheterias, portanto comercial, mas nem por isso menos importante de ser analisada. Afinal, estamos diante de um modelo de autossustentao de projetos cinematogrficos altamente exclusivos, disposio de muito poucos. A maioria dos filmes realizados no Brasil financiada por mecanismos pblicos de incentivo cultura, por intermdio da Ancine. Essa mesma maioria tambm no conta com distribuidores, restringindo sua exibio a um circuito limitado de espectadores. Outros ttulos sequer conseguem pleitear espao em uma sala de exibio. Diante de cenrios to opostos, a questo a ser observada daqui pra frente como esses mecanismos de produo sustentvel via majors e Globo Filmes podero interferir nos gneros tpicos de uma cinematografia nacional. Na lista de filmes que foi apresentada no decorrer deste trabalho, as temticas enraizadas na sociedade brasileira contempornea foram praticamente constantes. Aparecem ali a crimina40

Traos da indstria do cinema brasileiro contemporneo

lidade (Carandiru, Tropa de Elite e Meu nome no Johnny) e biografias de personagens conhecidos do grande pblico (Cazuza O Tempo no para e Dois Filhos de Francisco, sobre a histria dos cantores sertanejos Zez Di Camargo e Luciano). Foge regra a comdia romntica Se eu fosse voc (Daniel Filho, 2006), cujo roteiro trabalha em um tema j comum no cinema: pessoas que passam por uma experincia sobrenatural de troca de corpos. A autenticidade do filme, no que diz respeito a esse carter regional, fica por conta dos protagonistas Glria Pires e Tony Ramos, atores de sucesso em telenovelas da prpria Globo. A temtica e o gnero, por sua vez, so recorrentes no cinema hollywoodiano norteamericano consumido pelos espectadores brasileiros, sobretudo na grade da televiso aberta Sexta-feira muito louca (Mark S. Waters, 2003), De repente 30 (Gary Winick, 2004), Tal pai, tal filho (Rod Daniel, 1987) e Vice versa (Brian Gilbert, 1988), por exemplo. Levando em considerao que na sociedade de massa a cultura em escala industrial produzida para tentar conquistar a maior audincia possvel, o potencial de consumo em busca de um retorno financeiro satisfatrio sempre ser explorado ao mximo. No campo do cinema, esse esquema no se atm ps-produo, com seus sofisticados mecanismos de promoo e venda; ele pode determinar a escolha do roteiro, no por critrios de qualidade narrativa, mas de potencial econmico. Como bem coloca Achille, a ordem no vender o que se produz, mas produzir o que se pode vender (ACHILLE apud BUSTAMANTE, 2003, p. 32). Diante disso, relevante tentar proteger das especificidades mercadolgicas da linha de produo cultural a originalidade da cinematografia nacional. Isso no significa a condenao da indstria cinematogrfica que d sinais de fortalecimento no pas. Em um mercado to competitivo como o cinematogrfico, todas as iniciativas de dar espao e atrair ateno para o cinema nacional so vlidas e devem ter continuidade. Mas o cinema tem que continuar sendo nacional, e no apenas nos crditos apresentados ao final da exibio, mas em seu carter cultural de representao e construo de imaginrios que nos so prximos, conhecidos. essa sua especificidade, esse seu diferencial, esse seu argumento mais eficiente para conquistar o pblico. Em um mercado que ainda tenta se estruturar, produzir filmes seguindo apenas um padro de consumo capaz de garantir seu suces41

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so em termos de bilheteria pode ser entendido como uma prtica constrangedora diversidade das narrativas audiovisuais que historicamente diferencia as cinematografias nacionais. Contudo, pelos movimentos que se observam nos ltimos anos, essa reproduo interna de um modelo de indstria cinematogrfica assimtrica, no qual os grandes investimentos em distribuio e marketing transformam-se em componentes quase imprescindveis para mobilizao de espectadores, est conseguindo se consolidar como um novo padro para o mercado de cinema brasileiro. REFERNCIASANCINE. Filmes Brasileiros com mais de 500 mil espectadores 1970-2007 Disponvel em . Acesso em 20 de maio de 2009. BARONE, Joo Guilherme. Comunicao e Indstria Audiovisual: Cenrios Tecnolgicos & Institucionais do cinema brasileiro na dcada de 1990. Dissertao apresentada a Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul, 2005. BUSTAMANTE, Enrique (org.). Hacia um nuevo sistema mundial de comunicacin. Barcelona: Editorial Gedisa, 2003. BUTCHER, Pedro. Cinema brasileiro hoje. So Paulo: Publifolha, 2005. CAETANO, Daniel. Cinema brasileiro 1995 2005 Ensaios sobre uma dcada. Rio de Janeiro: Contracampo, 2005. KELLNER, Douglas. Cultura da mdia e triunfo do espetculo. In: MORAES, Dnis de. (org.). Por uma outra comunicao Mdia, mundializao cultural e poder. Rio de Janeiro: Record, 2003. LPEZ, Silvana Levi de., ORTEGA, Graciela Uribe. Globalizao e fragmentao. O papel da cultura e da informao. In: SANTOS, M. et al. (org.). O novo mapa do mundo Fim de sculo e globalizao. So Paulo: Hucitec, 1997. MORAES, Dnis de. A tirania do fugaz: Mercantilizao cultural e saturao miditica. In: MORAES, Dnis de. (org.). Por uma outra comunicao Mdia, mundializao cultural e poder. Rio de Janeiro: Record, 2003. 42

Traos da indstria do cinema brasileiro contemporneo

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MARIA Me do Filho de Deus. Moacyr Ges, 2003, 107, Colorido. Produtora: Diler & Associados. Roteiro: Thiego Balteiro, Marta Borges, Moacyr Ges, Marco Ribas de Farias, Maria de Souza. Origem: Brasil. Elenco: Giovanna Antonelli, Luigi Barricelli, Padre Marcelo Rossi, Jos Wilker, Jos Dumond. MEU nome no Johnny. Mauro Lima, 2008, 107, Colorido. Produtora: Atitude Produes e Empreendimentos Ltda. Roteiro: Mauro Lima (roteiro), Mariza Leo. Origem: Brasil. Elenco: Selton Mello, Clo Pires, Jlia Lemmertz, Cssia Kiss. O Auto da Compadecida. Guel Arraes, 1999, 104, Colorido. Produtora: Globo Filmes. Roteiro: Guel Arraes, Adriana Falco e Joo Falco. Origem: Brasil. Elenco: Matheus Natchergaele, Selton Mello, Diogo Vilela, Denise Fraga. OS Normais. Jos Alvarenga Jr, 2003, 88, Colorido. Produtora: Misso Impossvel Cinco Produes Artsticas. Roteiro: Alexandre Machado e Fernanda Young. Origem: Brasil. Elenco: Fernanda Torres, Luiz Fernando Guimares, Fernanda Torres, Marisa Orth, Evandro Mesquita. SE eu fosse Voc. Daniel Filho, 2006, 108, Colorido. Produtora: Total Entertainment. Roteiro: Adriana Falco, Daniel Filho, Ren Belmonte e Carlos Gregrio. Origem: Brasil. Elenco: Glria Pires, Tony Ramos, Thiago Lacerda, Danielle Winits. SEXTA-feira muito louca= Freaky Friday. Mark S. Waters, 2003, 93, Colorido. Produtora: Walt Disney Pictures / Gunn Films / Casual Friday Productions. Roteiro: Heather Hach e Leslie Dixon. Origem: Estados Unidos. Elenco: Jamie Lee Curtis, Lindsay Lohan, Mark Harmon. TAL pai, tal filho= Like Father Like Son. Rod Daniel, 1987, 96, Colorido. Produtora: Imagine Films Entertainment. Roteiro: Steve Bloom, Lorne Cameron. Origem: Estados Unidos. Elenco: Dudley Moore, Kirk Cameron, Margaret Collin, Catherine Hicks, Sean Astin, Patrick O Neal. TROPA de Elite. Jos Padilha, 2007, 115, Colorido. Produtora: Zazen Filmes. Roteiro: Jos Padilha, Rodrigo Pimentel e Brulio Montovani. Origem: Brasil. Elenco: Wagner Moura, Caio Junqueira, Andr Ramiro, Maria Ribeiro. VICE-Versa. Brian Gilbert, 1988, 98, Colorido. Produtora: Columbia Pictures. Roteiro: Dick Clement e Ian La Frenais. Origem: Brasil. Elenco: Judge Reinhold, Fred Savage , Swoosie Kurtz, William Prince. 44

O JOGO CINEMATOGRFICO DE CAMA DE GATOIsabel Almeida Marinho do Rgo Publicitria. Mestre em Comunicao Social pela PUCRS/RS/BR. E-mail: [email protected] RESUMO O filme brasileiro Cama de Gato o objeto deste artigo e, a partir da anlise flmica, pode ser observado como a sinergia entre a linguagem cinematogrfica e os jogos representam a cultura dos jovens contemporneos. Jovens imersos em uma profuso de mensagens e meios com diferentes tipos de linguagens que demonstram a caracterstica cultural e social da atualidade denominada neotribalizao, por Michel Maffesoli. PALAVRAS CHAVE Cultura juvenil Cinema brasileiro Jogos ABSTRACT The Brazilian movie Cama de Gato is the object of this article and, through film analysis, we can observe how the synergy between cinematographic languages and games represent the contemporary youth culture. Young people immersed in a profusion of messages and media with different kinds of languages which demonstrate cultural and social characteristics of the present time named neotribalization by Michel Maffesoli. KEYWORDS Youth culture Brazilian cinema Games O cinema um tipo de arte mdia que revela traos culturais da sociedade em que est imerso, por isso o filme Cama de Gato foi escolhido como objeto de estudo deste artigo. Ele representa em sua sinergia

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com a linguagem dos jogos a cultura jovem contempornea, caracterizada por Michel Maffesoli como neotribalizao. A presena de elementos caractersticos dos jogos no filme Cama de Gato remete a traos da tribalizao, entre outras razes, por ser um tipo de atividade em que o estar-junto importante; grupos se formam em torno de jogos na busca da diverso em grupo, o hedonismo compartilhado; pela descrena nos valores e tradies e busca por outros ideais mesmo que temporrios, pela evaso desta realidade que o jogo com suas regras prprias proporciona; pela liberdade, to valorizada atualmente, mas ainda buscada em seu sentido pleno, de liberdade radical, fuga das regras, o livre arbtrio abordado pelos jovens no filme traz a noo de liberdade para a realidade. Os jovens apresentam uma cultura prpria bastante influenciada pelas ferramentas tecnolgicas de que fazem uso, as obras de arte e mdia que retratam esse pblico refletem diretamente essa influncia e revelam como a cultura jovem se mostra atualmente. O cinema atual conta com vrios recursos para representar e atrair a ateno dos jovens, buscando muitas caractersticas tpicas dos quadrinhos, jogos, animaes, videoclipes e programas de televiso, linguagens habituais para os jovens, por isso o filme escolhido consegue manter um dilogo bem prximo com a cultura juvenil. No uma novidade o cinema dialogar e trazer caractersticas de outras formas de arte e comunicao, mas as inovaes nas tecnologias de informao e comunicao trouxeram novos elementos para o cinema, e a comunicao com os jovens atualmente requer uma diversidade de formatos e tcnicas. A convivncia diria com a televiso e os meios eletrnicos em geral tem mudado substancialmente a maneira como o espectador se relaciona com as imagens tcnicas e isso tem consequncias diretas na abordagem do cinema. A JUVENTUDE E A SINERGIA ENTRE AS LINGUAGENS Por meio da caracterizao da juventude como a fase intermediria entre a infncia e a vida adulta, sem a delimitao baseada apenas em idades, simples perceber seu incio. A transio entre infncia, adolescncia e juventude identificada pelas perceptveis mudanas fsicas46

O jogo cinematogrfico de Cama de Gato

e comportamentais, mas no h uma delimitao evidente entre juventude e vida adulta, entretanto h comportamentos sociais e culturais que sinalizam uma cultura dos jovens. O jovem procura formar nos aspectos biolgicos, psquicos e sociais uma identidade socialmente reconhecida mais ampla que a vivida na famlia. Os jovens esto num perodo de escolhas, de experimentao, possuem vitalidade e disposio para viver os mais diversos tipos de situaes e correr riscos. Os adolescentes ainda esto numa fase de descoberta do prprio corpo, de sua identidade, de suas afinidades e no ingresso inicial em distintas esferas da vida. Erikson (1987) caracteriza a juventude como uma moratria psicossocial que antecede a entrada no mundo adulto, um perodo de procura de alternativas e experimentao de papis que permitem um trabalho de elaborao interna, tambm caracterizada pelas necessidades e exigncias socioculturais. Assim como a gerao dos nascidos nas dcadas de 60 e 70 contaram com o rtulo de gerao X, os jovens nascidos entre 80 e 90 contam com a denominao de gerao Y, e com o ttulo vm as caracterizaes, que em sua maioria so esteretipos e generalizaes, mas h algumas ideias que ajudam a refletir sobre a contemporaneidade. A primeira associao feita com a gerao Y remete s tecnologias de informao, comunicao e entretenimento desenvolvidas nos ltimos anos. Os jovens esto acostumados a absorver as informaes com a lgica dos links da internet, alternando a navegao entre diversos sites, comunicando-se pelos programas de conversa on-line enquanto navegam na rede, ou ainda enquanto falam ao celular; no gostam ou no tm pacincia para processos muito longos, demorados. A capacidade de dividir a ateno entre vrias atividades uma necessidade decorrente do nmero de ferramentas de comunicao e informao, e suas demandas de ateno. O Blog Gerao Y escrito por vrios jovens e aborda temas relacionados a cinema, teatro, jogos, ecologia e tecnologia, a definio sobre eles mesmos faz referncia s tecnologias:Falar no celular, dominar a internet e ouvir msica... tudo ao mesmo tempo! Jovens antenados, de mente aberta e ambiciosos: essa a Gerao Y. Vivendo na velocidade da cena pop e da tecnologia, somos a ge47

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rao capaz de se relacionar e at impactar o mundo sem sair de casa. (BLOG GERAO Y, 2008).

A familiaridade dos jovens com as ferramentas tecnolgicas de comunicao, informao e entretenimento uma das qualidades da gerao que acompanhou a ascenso meterica da tecnologia em uma sociedade cada vez mais dependente das mquinas. O surgimento de diferentes tecnologias originou produtos artsticos e culturais com vrias linguagens e hibridizao entre elas. A forma que o filme Cama de Gato dialoga com as diversas linguagens e tecnologias revela muitos traos da cultura jovem e do perodo atual: a linguagem hbrida que traz caractersticas de jogos, programas de televiso, internet e videoclipes; o ritmo da montagem acompanhando a tendncia atual de muitas informaes transmitidas em pouco tempo; a relao instintiva com o tempo, que no segue sempre uma linearidade; os vrios focos narrativos; as sequncias sendo intensificadas pela trilha sonora. Os recursos tecnolgicos auxiliam na produo dos filmes e, assim como a vida cotidiana est intimamente ligada s tecnologias de informao e comunicao, essas ferramentas esto dentro do enredo do filme Cama de Gato, sendo utilizados pelos personagens, e esto por trs das telas auxiliando o realizador em vrias etapas do processo cinematogrfico, influenciando duplamente a narrativa. Filmadoras e cmeras de vdeo digitais, de circuito de segurana e webcams fazem parte da narrativa do filme, e oferecem diferentes ngulos e texturas para que o espectador acompanhe a histria contada. H uma longa tradio de dilogo e colaborao entre os diversos meios e suas linguagens caractersticas; nos anos 60 e 70 foram realizados filmes voltados para a exibio na televiso e alguns cineastas dirigiam sries de televiso, como Godard. Historicamente anteriores ao aparecimento da televiso, do vdeo e da Internet, a linguagem e a narrativa cinematogrficas, de acordo com Gerbase (2003), podem ser consideradas as bases sobre as quais todas as outras linguagens e narrativas audiovisuais se estabeleceram. Mas no caminho inverso, os realizadores contemporneos, que conviveram com vrios tipos de linguagens j diferenciadas do cinema, trazem caractersticas especficas dos outros meios, atingindo o dinamismo necessrio para atrair o pblico contemporneo.48

O jogo cinematogrfico de Cama de Gato

O cinema comea a absorver, com a velocidade baixa que lhe prpria, alguns componentes estticos do ps-modernismo. (...) resultado de um ambiente, ou de uma condio (Lyotard) que faz alguns roteiristas, diretores e montadores criarem filmes que, alm de retratarem seu tempo, acabam, em sua lgica narrativa interna, absorvendo os mecanismos de uma poca (GERBASE, 2003, p.172).

O filme escolhido est permeado pelo imaginrio da sociedade contempornea feito por uma equipe de pessoas, em grande parte, vindas da televiso e publicidade, contando com os recursos tecnolgicos disponveis nesse incio de sculo XXI para retratar a atual sociedade, que no Brasil , em sua maioria, formada por uma populao jovem. Maffesoli afirma que No a imagem que produz o imaginrio, mas o contrrio. A existncia de um imaginrio determina a existncia de conjuntos de imagens. A imagem no o suporte, mas o resultado (MAFFESOLI, 2001, p.74). A arte um meio de fruio, mas tambm nos oferece um imaginrio no qual podemos ver refletidas as concepes acerca de nossa sociedade e dilemas de nossa poca. Serge Toubiana, crtico, ex-redator chefe da revista Cahiers du Cinma, afirmou em entrevista: o que me assusta que para a nova gerao, o cinema virou uma linguagem lenta, incapaz de prend-los (CARTA CAPITAL, 2007).(...) o cinema adere, em parte, esttica dos games? Serge Toubiana: para tentar capturar a ateno dessa gerao que no tem mais pacincia de olhar uma cena, uma seqncia. A garotada to formada pela imagem, que no se deixa mais levar por ela (CARTA CAPITAL, 2007).

Para atrair a ateno atravs de imagens, em meio a tantos apelos visuais, preciso recorrer a vrios recursos tcnicos e estratgicos. A hibridizao de linguagens um processo que se aprofunda medida que o tempo avana, e no vai deixar de se desenvolver enquanto a imagem contar com tanta importncia.49

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No mesmo filme h a sensao de ter assistido a vrios tipos de obras e experimentado uma diversidade de linguagens. Depois de 92 minutos do longa-metragem Cama de Gato, foram vistos depoimentos reais e espontneos de jovens em lugares frequentados pela classe mdia alta paulistana, fotos captadas por cmeras digitais, imagens de webcams, cmeras de segurana e momentos de convivncia entre amigos numa mistura de jogo eletrnico e realidade com referncia a Second Life e The Sims1. A sinergia entre o cinema e os efeitos especiais desenvolvidos pela animao, a tcnica de transmisso de mensagens em poucos segundos da televiso, as informaes organizadas por meio de associaes dos links de internet em vez de uma lgica temporal, a volta ao mundo real e seu sistema formal de leis proporcionada pelos noticirios de televiso e a profuso de imagens coloridas com luzes intermitentes acompanhadas de msicas, como em um videoclipe, representa os jovens tanto em seus comportamentos e vivncias, quanto em seus meios habituais de comunicao e entretenimento. Demonstrando a tamanha importncia que os meios de comunicao exercem na vida social dos jovens contemporneos, nas formas de lazer e tambm nas outras esferas de suas vidas, que esto diretamente ligadas s linguagens desenvolvidas pelos diferentes objetos culturais e ferramentas tecnolgicas. CAMA DE GATO: FILME E JOGO Cama de Gato foi roteirizado e dirigido por Alexandre Stockler. A obra foi apoiada por uma agncia de publicidade e fez toda a sua divulgao por meio da internet, meio que tambm serviu para escolha da trilha sonora, com msicas de bandas desconhecidas inscritas na seleo promovida na rede. Antes do incio da fico e logo aps a ltima cena so mostrados depoimentos de jovens entrevistados em lugares badalados da noite paulistana, os jovens falam sobre diversos temas e revelam valores pouco ticos. Os protagonistas da trama so trs jovens: Cristiano, Gabriel e Chico. Cristiano se junta com seus dois amigos na casa de sua me,The Sims um jogo eletrnico de estratgia no qual o jogador observa a vida de uma vizinhana de pessoas simuladas, que so os Sims, o jogo vendido em CDs. Second Life o misto de jogo eletrnico, realidade virtual e rede de relacionamentos, jogado on-line em rede com outras pessoas reais mediante o pagamento de determinada quantia empresa responsvel pelo jogo.1

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O jogo cinematogrfico de Cama de Gato

chama uma colega fingindo estar sozinho e a brincadeira acaba virando um estupro, Joana morre nas mos dos jovens. Quando a me de Cristiano chega, cai das escadas com o susto e morre. Os garotos se livram dos corpos no lixo, onde matam mais um homem. No fim, os jovens conversam com Deus e escutam dele que tudo ficar bem. O nome do filme faz referncia direta a um jogo, e d indcios de como ser o desenrolar da narrativa em que os jovens jogam, se divertem, cada vez mais se fecham em uma armadilha e, finalmente, nada de concreto que interfira nas suas vidas acontece. O tradicional jogo da cama de gato envolve a habilidade de seus participantes, o bom desempenho resulta em belas figuras, e a falta de destreza leva ao fim do jogo, num emaranhado sem volta. A marca registrada dos jogos a interatividade, o desafio de articular tticas e estratgias estimula os jogadores a raciocinarem rapidamente e reagirem frente aos obstculos. Toda a trama do filme Cama de Gato assemelha-se a um grande jogo: requer estratgias dos personagens e reaes aos desafios impostos. Alm da necessidade de contornar os problemas que se colocam no caminho que eles decidem percorrer, os jovens ainda se esforam para se divertir. Eles estabelecem suas prprias regras, construindo um jogo especfico, mas a realidade acaba se impondo sobre o mundo ilusrio dos personagens, e as regras da vida real no so claras nem previsveis. A interatividade indica a gradao de influncia que os usurios possuem dentro da forma ou contedo de um ambiente mediado. As vivncias dos personagens alternam o domnio deles sobre os acontecimentos e estratgias para programar os prximos eventos, com situaes no esperadas, que fogem ao controle. Os jogos tambm envolvem desafios, como os quebra-cabeas (puzzles), e tm como objetivo resolver um problema, a soluo de peas caindo, algo embaralhado, a construo de pequenos mecanismos, o vdeo-game se desenvolveu com a constante atualizao dos desafios tendo como norte a sensao de realidade. A primeira sequncia com elementos de jogos mostrada nos minutos iniciais do filme. Os trs jovens, Cristiano, Chico e Gabriel discutem sobre poltica, sociedade, liberdade e segurana na casa de um deles, quando a disputa de argumentos fica mais acirrada, Cristiano comea a anotar os pontos de cada um numa folha de papel, cada personagem de51

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fende sua ideia e coloca uma nota de Dlar em cima da mesa. As aes demonstram uma disputa de argumentos, um jogo que envolve raciocnio. Outros elementos da sequncia tambm reforam a ideia de jogo: a folha com as anotaes dos pontos alcanados mostrada em detalhe, assim como a pilha onde os Dlares so apostados, o quadro por trs do personagem remete ao mundo simulado do Second Life e The Sims. medida que a disputa fica mais acirrada, com os nimos exaltados, os argumentos e ataques mais agressivos, os cortes so mais rpidos, a cmera treme e as tomadas subjetivas levam o espectador para dentro da disputa. Antes das tomadas subjetivas, h uma aproximao da cmera em direo cabea do personagem, como se a cmera levasse o espectador para ocupar o lugar daquele jogador. A disputa dada como encerrada quando Cristiano pergunta se Gabriel acredita em Deus, h um corte, o ttulo do filme mostrado. Chico faz a contagem regressiva, mas Gabriel no reage com nenhum argumento, Cristiano declarado vencedor, merecedor do prmio: os Dlares sobre a mesa. Cortes rpidos acompanham a velocidade dos argumentos nos dois minutos finais da sequncia, h variao entre planos prximos e mdios, cmera fixa e movimentos da cmera subjetiva, ao fim da ao h um efeito sonoro de luta, como a campainha que determina o fim de um round na luta de boxe. Os jogos eletrnicos apresentam interatividade, variao no desenvolvimento dos acontecimentos e de consequncias decorrentes das escolhas, diferente das formas da narrativa clssica, as histrias se desenrolam de uma forma cheia surpresas e aes inusitadas quando parte de um jogo. Outra sequncia que traz caractersticas de jogo ocorre depois que a me de Cristiano caiu das escadas e morreu. Sentados no cho, ao lado do corpo, os amigos tentam achar uma soluo para se livrar dos corpos da jovem e da me; a cada ideia uma nota colocada sobre a mesinha ao lado, Chico acha a melhor soluo e pega o dinheiro; a sequncia alterna tomadas de cmera fixa com cmera na mo em movimento, bem prxima dos personagens, demonstrando a tenso do momento. O uso de cmera na mo d agilidade ao filme, os planos prximos subjetivos so alternados com planos de meio conjunto, aproximan52

O jogo cinematogrfico de Cama de Gato

do o filme dos jogos eletrnicos modernos, em que a viso subjetiva do jogador alternada com perspectivas de conjunto, dando a dimenso do cenrio e da posio dos oponentes. Como nos jogos em que h mais de um jogador, h cenas na disputa de argumentos do filme em que a tela dividida, mostrando de modo simultneo os jogadores. O ltimo combate se inicia quando Chico diz que a tentativa de sarem impunes no vai dar certo porque todos viram que eles estavam no carro da me de Cristiano. Depois de falar, Chico coloca uma nota no cho, Cristiano coloca outra nota sobre a de Chico dizendo que isso no problema, a cada argumento mostrando como a situao est incontornvel outra nota colocada na pilha, quando Cristiano lembra que a webcam registrou o estupro, Chico o declara ganhador; essa foi a pior pista que eles deixaram. No fim, com a situao cada vez mais complicada, o jogo se inverte e como diz Cristiano, A coisa t to grande que se piorar, melhora. A cmera movimenta-se de forma gil, como as perspectivas oferecidas pelos jogos, alternando cmeras subjetivas com planos de meio conjunto. Em algumas partes do filme, a mesma ao mostrada mais de uma vez, com tomadas de ngulos diferentes; muitos jogos eletrnicos mostram o replay das aes mais importantes, assim como as transmisses de jogos esportivos pela televiso. O final do filme uma grande ironia, os trs garotos conversam com Deus, ele diz que s acreditarem que so inocentes, Chico diz que eles pensaram em todas as possibilidades, mas a coisa foi ficando cada vez mais complicada, Gabriel tambm se justifica dizendo que eles no tinham como prever que ia acontecer tanta coisa. E tudo acaba bem, surpreendendo at os trs personagens, tudo no passou de um jogo. Os jogos podem ter funes de aprendizado, num hbrido de entretenimento e experincia, considerando as funes de aprendizagem de uma forma ampla. Jogos tambm ensinam e constroem conhecimento atravs de interao, no necessariamente sendo uma interface de ensino, mas um meio de comunicao, o filme intensifica a narrativa por meio dos elementos trazidos da linguagem dos jogos. Jogos podem ser usados como reflexo das aes, porque distanciam a imaginao da ao; o ato no precisa ser feito, simulado. Os jogos se desenvolvem com imitao, so baseados na sensao53

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de viver a experincia anloga situao representada. No filme, os personagens alternam momentos de encarar suas vivncias como realidade e momentos vividos de forma distanciada, como se parte de uma simulao. O jogo possui um carter profundamente esttico: na intensidade, fascinao e capacidade de excitar que est a essncia e caracterstica primordial do jogo. Os tipos e traos dos jogos so diversos, em comum todos apresentam a tenso, alegria e divertimento que proporcionam aos jogadores e muitas vezes aos que assistem ao jogo. O jogo est numa posio oposta seriedade. A busca do prazer um trao marcante dos jovens neste incio de sculo XXI, a vivncia de um presente prazeroso est acima da preocupao com o futuro, do que as regras impem ou de um comportamento esperado. Faz parte do jogo criado pelos personagens de Cama de Gato, prazer e divertimento, acompanhados tambm de tenso, e conflito de interesses. NEOTRIBALIZAO A neotribalizao, teo