Livro Coletânea Sobre Estudos Rurais e Gênero

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ORGANIZADORAS ELLEN F. WOORTMANN BEATRIZ HEREDIA RENATA MENASHE Margarida Alves Coletânea sobre estudos rurais e gênero

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Livro com artigos no qual os autores discorrem a respeito das relação ocorridas em espaços rurais e as questões de gênero envolvidas.

Transcript of Livro Coletânea Sobre Estudos Rurais e Gênero

  • O R G A N I Z A D O R A S

    ELLEN F. WOORTMANN

    BEATRIZ HEREDIA

    RENATA MENASHE

    EL

    LE

    N F. W

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    Margarida Alves

    Coletnea sobre estudos

    rurais e gnero

    Margarida A

    lves C

    oletnea sobre estudos rurais e gnero

  • Bra s l i a -DF, 2006

    O R G A N I Z A D O R A S

    EllEn fEnstErsEifEr woortmann

    BEatriz hErEdia

    rEnata mEnashE

    Margarida Alves

    Coletnea sobre estudos

    rurais e gnero

  • Pro jeto grfic o, capa

    e dia grama o

    Mrcio Duarte m10 Design Grfico

    R evi s o

    Ana Maria Costa

    Ministrio do Desenvolvimento Agrrio (mda)

    www.mda.gov.br

    Ncleo de Estudos Agrrios e

    Desenvolvimento Rural (nead)

    scn, Quadra 1, Bloco C, Ed. Trade Center,

    5o andar, sala 501 cep 70711-902 Braslia/DF

    Telefone: (61) 3328 8661

    www.nead.org.br

    pct mda/iica Apoio s Polticas e Participao

    Social no Desenvolvimento Rural Sustentvel

    Ministrio do Desenvolvimento

    Agrrio (MDA)

    Ncleo de Estudos Agrrios e

    Desenvolvimento Rural (NEAD)

    Programa de Promoo da

    Igualdade de Gnero, Raa e Etnia

    Secretaria Especial de

    Polticas para a Mulher

    B823p Brasil. Ministrio do Desenvolvimento Agrrio (MDA).

    NEAD Especial / Ellen F. Woortmann. Renata Menache. Beatriz Heredia (organizadoras). Braslia : MDA, IICA, 2006.

    356 p. ; 21 x 28 cm. (NEAD Especial).

    Vrios autores

    PCT/MDA/IICA Apoio s Polticas e Participao Social no Desenvolvimento Rural Sustentvel.

    I. Ttulo. II.Woortmann, Ellen F. III. Menache, Renata IV Heredia, Beatriz 1. Polticas Pblicas. 2. Gnero. 3. Trabalhadora rural. 4.Juventude rural.

    CDD305.4

  • Sumrio

    autoria 8

    Prefcio 11

    apresentao: da luta eu no fujo 15

    Meno Honrosa 2 3

    meno honrosa 24M a r i a M a r g a r e t h C o S ta C u n h a

    Apresentao 24Agradecimento 25Mulheres trabalhadoras rurais e de comunidades tradicionais, ontem e hoje 25

    a) Na agricultura familiar 25b) Comunidades tradicionais hoje 27c) Na reforma agrria 28d) Na regularizao fundiria 28e) Nas polticas pblicas 29f) Nos movimentos sociais 30g) Os saberes tradicionais 31h) Na sexualidade 31i) Na violncia 32

    Referncias 33

    Categor i a En sa io In d i to 3 4

    a caminho dos babauais: gnero e imaginrio no cotidiano de trabalhadores rurais no maranho 35V i V i a n e D e o l i V e i r a B a r B o S a

    Consideraes iniciais 35MIQCB: mulheres em movimento 36Trajetria poltica do MIQCB e suas conquistas 39Gnero e identidade conformando cotidianidades 42Monte Alegre: entre conflitos e proximidades com o MIQCB 47No povoado de Monte Alegre: o masculino e o feminino entre discursos e prticas 50

  • n e a D e S p e C i a l

    Do material ao simblico: a relao com os babauais 55A esfera material da experincia: os babauais como recurso sobrevivncia 55Das representaes das palmeiras s relaes de gnero 56Consideraes finais 60Referncias 61

    o tiro da bruxa: o olhar mgico das pomeranas sobre seu cotidiano campons 65J o a n a D a r C D o V a l l e B a h i a

    Introduo 65O cotidiano e a participao das mulheres no trabalho familiar 66Supersties, saberes mgicos e liminaridade 69Doces poderes: a disputa pela autoridade na land 71O tiro da bruxa. A bruxaria como ordem moral 74As imagens do bem limitado: a morte de um a herana do outro 83Referncias 96

    Entre elas: afetividade versus complementaridade 99p a u l o r o g e r S D a S i lV a F e r r e i r a

    Os modelos economicistas europeus: O rano chayanoviano na constituio da sexualidade camponesa 100Campesinato e sexualidade estrutural: Wolf e Mendras 104A propsito dos planos oficiais e oficiosos: Pierre Bourdieu 106O campesinato brasileiro: a economia da intimidade 107A sexualidade da mulher camponesa como instrumental terico: Submisso dos sentimentos pelo modelo estrutural 108Da complementaridade dependncia: os Woortmanns 111A tica dos afetos mal-ditos: dilemas, definies e perspectivas 113Entre elas: afetividade versus complementaridade 116Referncias 120

    Categor i a Apo io P e squ i s a Me strado 1 2 2

    as guardis da floresta do babau e o tortuoso caminho do empoderamento 123M a r ta a n t u n e S

    Introduo 123Do coco livre ao coco preso: mudanas nas estratgias de produo e reproduo das quebradeiras de coco babau e de suas famlias 124A aposta na reforma agrria como meio de garantir o acesso e proteo do coco babau: redefinindo estratgias 128Ocupando espaos no mercado: valorizando o papel da

  • M a r g a r i D a a l V e S : C o l e t n e a S o B r e e S t u D o S r u r a i S e g n e r o

    mulher e do babau na economia familiar e local 133As quebradeiras de coco e a luta pelo direito de livre acesso e proteo do babau: Lei Babau Livre 137Mudanas na esfera privada: esposas, separadas, vivas, mes 142O jogo do empoderamento: um processo contnuo de desequilbrio e reequilbrio de relaes de poder 147Referncias 148

    identidades em trajetria: gnero e processos emancipatrios na reforma agrria 150S a r a D e o l i n D a C a r D o S o p i M e n ta

    Resumo 150Introduo 150O assentamento: sociabilidades, identidades coletivas e novas cidadanias 153Mudanas na vida de homens e mulheres: novas relaes de gnero? 162Emancipao ou processos emancipatrios? 169Referncias 174

    a construo de sentidos integralidade da sade a partir da prxis de mulheres trabalhadoras rurais com enfoque popular e de gnero 177V a n D e r l i a l a o D e t e p u l g a D a r o n

    Resumo 177Introduo 178O jeito feminino de fazer sade 185Referncias 192

    tem jovem no campo! tem jovem homem tem jovem mulher 195r o S n g e l a S t e F F e n V i e i r a

    Identificando a semente 196O terreno e a fertilidade do solo 197Jovens em Movimento 199Sexualidade e sade sexual e reprodutiva 204

    Iniciao afetivo-sexual 205Famlia e rede de sociabilidade na construo da sexualidade 208Sade sexual e reprodutiva 210

    A colheita consideraes finais 211Referncias 213

  • n e a D e S p e C i a l

    Categor i a Apo io P e squ i s a Doutorado 2 1 5

    alm das secas e das chuvas: os usos da nomeao mulher trabalhadora rural no serto de Pernambuco 216r o S i n e i D e D e l o u r D e S M e i r a C o r D e i r o

    Introduo 216O lugar e os caminhos da pesquisa 221Somos mulheres trabalhadoras rurais: a criao de espaos, de vnculos e de atuao poltica 223Sou agricultora: o registro da profisso nos documentos civis e profissionais das mulheres 232Os ganhos, os aprendizados e as dificuldades dos usos da nomeao mulher trabalhadora rural no cotidiano 236Ter voz: formular, expressar idias e opinies 236Ir alm da casa 237Lutar por direitos 239Acesso a polticas e recursos 240Concluso 241Referncias 242

    as jovens rurais e a reproduo social das hierarquias 245e l i S a g u a r a n D e C a S t r o

    Apresentao 245A experincia etnogrfica e a construo do problema 246Os processos de reproduo das hierarquias e excluso das jovens rurais 249

    Processos de socializao: ser homem, ser mulher 251Jovens: rupturas e continuidades 254Os filhos dos meeiros 255Os filhos dos acampados 256Construes da identidade rural: ser da roa, gado, morar bem e morar mal, e outras identificaes 257Herana, sucesso a excluso das mulheres 259Preparando o herdeiro: a sucesso como construo masculina 261

    O paradoxo ficar ou sair: os limites e escolhas nos processos de reproduo social da produo familiar 264

    Escola, trabalho externo e o futuro: desejos e a realidade 264Autoridade paterna: controle e conflito 266Os espaos coletivos de organizao: ningum ouve os jovens 270

    Concluso 273Referncias 275

  • M a r g a r i D a a l V e S : C o l e t n e a S o B r e e S t u D o S r u r a i S e g n e r o

    mulher igual natureza? as polticas de desenvolvimento sustentvel de uma perspectiva de gnero 278a n a l o u i S e D e C a r V a l h o F i z a

    Uma breve histria do desenvolvimento 278A ideologia burguesa da civilidade e a revoluo protestante da conscincia: parteira do indivduo, da competio e do desenvolvimento 280A matriz terica brasileira que aponta para os entraves ideolgicos ao desenvolvimento entre ns 281Do capitalismo burgus ao desenvolvimento fordista 283A mudana poltica na perspectiva de desenvolvimento: crescimento versus sustentabilidade 286A mudana paradigmtica no desenvolvimento: a perspectiva do desenvolvimento endgeno 290Gnero e desenvolvimento: a crtica feminista e ambiental ao modelo hegemnico de desenvolvimento 296Consideraes finais: o modelo de desenvolvimento rural sustentvel representa uma mudana nas relaes de gnero? 302Referncias 306

    de corpos, desejos, feitios e amores: a sexualidade entre jovens de origem rural 309V a n D a a p a r e C i D a D a S i l V a

    Os jovens, de onde eles vm? 310Que rural esse? 311Reciprocidade e sentimentos 318Antigamente no era assim 320Corpos para serem vistos desejados e amados 324Experincias corporais: os ditos e os no ditos 328Sentimento e crena ambivalente 332Referncias 335

    margaridas nas ruas: as mulheres trabalhadoras rurais como categoria poltica 339M a r i a D o l o r e S D e B r i t o M o ta

    Resumo 339Abstract 340Buscando a construo e encontrando a experincia das mulheres trabalhadoras rurais 340Uma via dupla de criao relaes entre mulheres rurais, academia, igreja, movimento sindical e organizaes no governamentais 343Em cena: construindo a existncia pblica 346A experincia no contexto da construo 347Artes de apresentar e representar 349Marcas de mulheres no sindicalismo rural 351Referncias 353

  • autoria

    Maria Margareth Costa Cunha Presidente do Coletivo de Mulheres do Estado do Maranho e integrante do Movi-mento da Mulher Trabalhadora Rural do Nordeste (MMTR-NE), trabalha como produtora de mesocarpo do Babau. Atua em movimentos sociais desde 1992.

    Viviane de Oliveira BarbosaLicenciada em Histria pela Universidade Federal do Maranho (UFMA), mestran-da do Programa Multidisciplinar de Ps-Graduao em Estudos tnicos e Africanos da Universidade Federal da Bahia (UFBA), bolsista da CAPES/UFBA.

    Joana Darc do Valle BahiaProfessora adjunta do departamento de Cincias Humanas Faculdade de Formao de Professores da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), doutora em Antro-pologia Social pelo Museu Nacional/ Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pesquisadora associada do Ncleo Interdisciplinar de Estudos Migratrios (Niem).

    Paulo Rogers FerreiraAntroplogo, mestre em Antropologia pela Universidade de Braslia. scio-fun-dador do Laboratrio de Estudos e Pesquisas da Subjetividade da Universidade Federal do Cear (UFC).

    Marta AntunesFormada em Economia pela Universidade Tcnica de Lisboa e mestre em De-senvolvimento, Agricultura e Sociedade, rea de concentrao de Estudos Inter-

  • M a r g a r i D a a l V e S : C o l e t n e a S o B r e e S t u D o S r u r a i S e g n e r o

    nacionais, pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (CPDA/UFRRJ). Trabalha desde 1999 como consultora e pesquisadora de organizaes da socie-dade civil. Atualmente coordenadora de projetos do Programa de Segurana Alimentar da ActionAid no Brasil.

    Sara Deolinda Cardoso PimentaGraduada em Psicologia e especialista em Educao pela Universidade Fede-ral de Minas Gerais (UFMG). Especializou-se tambm em Projetos Sociais, pela Pontifcia Universidade Catlica/MG, e em Gesto de Assentamentos e Reforma Agrria, pela Universidade Federal de Lavras (Ufla). Mestre em Psi-cologia Social pela UFMG e integrante no Ncleo de Pesquisas em Psicologia Poltica da mesma instituio. Atualmente assessora da Comisso Nacional de Mulheres Trabalhadoras Rurais da Confederao Nacional Trabalhadores na Agricultura (Contag).

    Vanderlia Laodete Pulga DaronEducadora Popular, filsofa e mestre em Educao pela Universidade de Passo

    Fundo (UFP) . Foi Conselheira do Conselho Estadual dos Direitos da Mulher do

    Rio Grande do Sul, participante do Frum Intersecretarias de Gnero, e coorde-

    nadora da Assessoria de Movimentos Populares da Secretaria de Sade do estado.

    Atualmente atua como consultora tcnica do Ministrio da Sade.

    Rosngela Steffen VieiraPedagoga, mestre em Educao pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Pesquisadora do Ncleo MOVER Educao Intercultural e Movi-mentos Sociais, da UFSC.

    Rosineide de Lourdes Meira CordeiroDoutora em Psicologia Social pela Pontifcia Universidade Catlica /SP, professo-ra do Departamento de Servio Social da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e dos Programas de Ps-Graduao em Servio Social e em Psicologia. Tambm integrante do Ncleo de Famlia, Gnero e Sexualidade da UFPE e do Grupo de Estudos e Pesquisas em Prticas Discursivas e Produo de Sentidos da PUC/SP.

    Elisa GuaranGraduada em Cincias Sociais, mestre em Sociologia e doutora em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Atualmente profes-sora adjunta da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Tem expe-rincia na rea de Sociologia e Antropologia, com nfase em Antropologia Rural.

  • n e a D e S p e C i a l10

    Ana Louise de Carvalho FizaFormada em Cincias Sociais pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), especializou-se em Cincia da Religio pela mesma instituio. Mestre em Ex-tenso Rural pela Universidade Federal de Viosa (UFV) e doutora em Desen-volvimento, Agricultura e Sociedade, pelo CPDA/UFRRJ. Professora do Depar-tamento de Economia Rural da UFV.

    Vanda Aparecida da SilvaDoutora em Cincias Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), pesquisadora do Centro de Estudos Rurais da mesma universidade. Atualmente bolsista de ps-doutoramento junto ao Instituto de Cincias Sociais da Universidade de Lisboa, Portugal/ Fundao para a Cincia e a Tecnologia, Ministrio da Cincia, Tecnologia e Ensino Superior de Portugal.

    Maria Dolores de Brito Mota Sociloga, doutora em Sociologia pela Universidade Federal do Cear (UFC), profes-sora adjunta na mesma universidade. pesquisadora do CNPq e coordena o Ncleo de Estudos e Pesquisas sobre Gnero Idade e Famlia.

  • prefcio

    a D r i a n a lo p e S e a n D r e a B u t to 2

    Os estudos rurais tiveram presena destacada na histria das cin-cias sociais brasileiras e vrias pesquisas deram nfase s relaes de desigualdade que marcam a vida das mulheres dessa populao.

    Apesar de ter ocorrido na ltima dcada uma perda de espao desta produ-o em ncleos de pesquisa, encontros e reunies especializadas, mais recente-mente houve uma retomada de iniciativas que buscam fortalecer as pesquisas sobre o campesinato e suas transformaes recentes. Neste ambiente podemos observar um crescimento de pesquisas com foco nas desigualdades entre homens e mulheres rurais.

    A organizao de dossi especfico no volume de nmero 12 da Revista de Estu-dos Feministas , a promoo Seminrio Internacional Mulheres Rurais Experincias e Perspectivas pelo Ncleo de Estudos de Gnero Pagu, de mesas redondas e grupos de trabalho em encontros nacionais e regionais de pesquisadoras feministas e da comunidade cientfica das cincias sociais, alm da criao de linhas de pesquisa especficas nos cursos de ps-graduao revelam esse novo ambiente.

    O Prmio Margarida Alves de Estudos Rurais e Gnero promovido pelo Ministrio do Desenvolvimento Agrrio, por meio do Programa de Promoo da Igualdade de Gnero, Raa e Etnia e do Ncleo de Estudos Agrrio e Desenvolvimento Rural

    Sociloga, coordenadora-executiva do ncleo de estudos agrrios e Desenvolvimento rural do Ministrio do Desenvolvimento agrrio.

    2 antroploga, professora da universidade Federal rural de pernambuco uFrpe e coor-denadora do programa de promoo da igualdade de gnero, raa e etnia do Ministrio do Desenvolvimento agrrio.

  • n e a D e S p e C i a l12

    e seus/as parceiros/as integra essa estratgia de fortalecimento desta produo, pelo estmulo realizao de pesquisas e estudos acadmicos no campo das ci-ncias humanas e agrrias.

    Embora tenha nascido como uma iniciativa governamental busca envolver as distintas associaes, condio para contribuir com a ampliao dos estudos feministas na agenda acadmica. A participao na comisso julgadora, a consti-tuio de GTs especficos e realizao de mesas redondas em reunies nacionais de maior destaque na rea expressam tambm o impacto deste Prmio.

    Apesar disso h muito trabalho pela frente para que se amplie a reflexo cr-tica sobre as teorias e categorias que so aplicadas na anlise da participao das mulheres na produo, na sua participao nas polticas e no prprio desenvol-vimento do meio rural.

    Os trabalhos que foram premiados e que ora vm a pblico constituem uma importante ferramenta de reflexo para os gestores e gestoras pblicas. Esta ini-ciativa somada a vrias outras pesquisas realizadas por iniciativa do Ministrio do Desenvolvimento Agrrio que abordam a presena das mulheres na refor-ma agrria e na agricultura familiar contribuem para a promoo da autonomia econmica das mulheres atravs da ampliao e qualificao da presena das mulheres nas polticas pblicas de desenvolvimento rural.

    So muitas as possibilidade de apropriao destes trabalhos, inclusive por parte dos movimentos sociais de mulheres rurais. Vrios dos trabalhos pre-miados abordam as lutas das mulheres rurais pela terra e o acesso aos demais recursos naturais e produtivos, e experincias ricas de protagonismo e exerccio da cidadania. Revelam, tambm, a diversidade que marca a vida das mulhe-res, especialmente a das jovens, para alm das reflexes sobre a dimenso da sexualidade.

    Esta publicao traz elementos para uma reflexo sobre a dinmica recente das lutas sociais das mulheres rurais, em especial das suas formas de organizao e a constituio das agendas polticas. Lutas e experincias que afirmam a identi-dade de Quebradeiras de coco de babau, de Margaridas e Camponesas dentre tantas outras que emergem do resgate das histrias contadas e analisadas.

    O livro relata prticas de educao popular em sade que resultam das aes dos movimentos sociais de mulheres e que revelam suas percepes sobre a vida, a natureza, os cuidados com a sade e sua relao com os direitos bsicos, como parte de uma nova concepo de desenvolvimento rural.

    A anlise da homossexualidade e da homofobia e a problematizao das pri-meiras vivncias sexuais entre as mulheres jovens rurais constroem para descor-tinar preconceitos e discriminaes que ainda tolhem a possibilidade de exerccio pleno dos direitos sexuais no meio rural e que impactam negativamente na cons-truo da autonomia sobre o corpo e a vida das mulheres.

  • 13M a r g a r i D a a l V e S : C o l e t n e a S o B r e e S t u D o S r u r a i S e g n e r o

    A reflexo aqui apresentada sobre a juventude rural, para alm da temtica da migrao, coloca em pauta a autoridade paterna e da representao masculi-nizada do ser jovem.

    A cidadania abordada a partir do processo de constituio de identidades coletivas de assentadas da reforma agrria e da luta pelo direito a ter direitos: o acesso documentao civil e trabalhista.

    Um destaque da publicao a participao de uma trabalhadora rural. A partir da sua experincia discorreu sobre todos os temas propostos. Seu interesse foi responsvel pela criao de uma nova categoria Experincia e Memria, na edio de 2006 do Prmio. Esta nova edio contar ainda com a participao de entidades nos movimentos sociais de mulheres na sua coordenao.

    Trabalhos de pesquisadoras de distintas regies, abordando realidades tam-bm diversas regionalmente convidam a leitora e o leitor a compartilharem com uma reflexo contempornea e que dever ganhar centralidade nos esforos co-letivos de repensarmos o pas.

  • No dia doze de agosto

    do ano oitenta e trs

    Parece que a natureza

    Se descuidou-se ou no sei

    Fazendo com que Margarida

    vssemos pela ltima vez

    Margarida porque tinha

    Trabalho na conscincia

    Saiu deixando um trabalho

    Por outro de mais urgncia

    Sem saber que os patres

    Usavam da violncia

    Estando na sua casa

    conversando com o marido

    foi visto por um vizinho

    quando chegou um bandido

    chegando deixar seu corpo

    sem vida no cho cado

    O Rio Grande do Norte

    E Pernambuco tambm

    O povo da Paraba

    de Itamb e Belm

    Sentiram este drama triste

    por tanto lhe querer bem

    Chora toda a Paraba

    que conhecia a mulher

    por ser muito combativa

    e mantinha a classe em p

    A morte de Margarida

    pra o povo taa de f

    Com ela so trinta e dois

    j vtimas de violncia

    Queremos que a Justia

    Use de mais conscincia

    tomando de imediato

    as devidas providncias

    Margarida

    Extrado de poesia da autoria de Raimundo Francisco de Lima, presidente

    do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de So Pedro Rio Grande do Norte.

  • apresentao Da luta eu no fujo

    da luta eu no fujo. foi esta a frase que margarida maria alves disse poucos dias antes de tombar, brutalmente assassinada em sua residn-cia no municpio de alagoa Grande, no Estado da Paraba, ao receber o aviso de que sua vida estaria ameaada. (Boletim informativo do Centro de Educao do trabalhador rural, agosto de 183).

    Esta coletnea resulta de uma feliz iniciativa do Ministrio do De-senvolvimento Agrrio (MDA), por meio do Programa de Promoo da Igualda-de de Gnero, Raa e Etnia e do Ncleo de Estudos Agrrios e Desenvolvimento Rural (NEAD), em parceria com a Associao Brasileira de Antropologia (ABA), com a Secretaria Especial de Polticas para as Mulheres (SPM), com a Organiza-o Internacional do Trabalho (OIT), assim como com a Associao Nacional de Pesquisa e Ps-Graduao em Cincias Sociais (Anpocs), com a Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS) e com a Sociedade Brasileira para o Progresso da Cincia (SBPC).

    A Coletnea rene os trabalhos premiados referentes ao Edital 2005/2006 do Prmio Margarida Alves de Estudos Rurais e de Gnero, divulgados por ocasio da 25a Reunio da Associao Brasileira de Antropologia, realizada em junho de 2006, em Goinia. Os trabalhos foram avaliados por trs comisses coordenadas pelas professoras, doutoras Beatriz Heredia, Ellen F. Woortmann e Renata Menasche.

    O Prmio tem como objetivo estimular a produo de pesquisas no mbito das Cincias Humanas e Agrrias, descortinando novas e maiores dimenses

  • n e a D e S p e C i a l1

    da condio social da mulher rural no Brasil; em outros termos, estimular a produo de estudos pela via dos quais ela possa ser visibilizada e valorizada em sua diversidade e especificidade. O nome do Prmio constitui homenagem a Margarida Alves (19431983) em reconhecimento sua luta em defesa dos camponeses.

    Margarida foi esposa e me. Margarida Alves foi tambm trabalhadora rural e lder sindical, notabilizando-se na luta por direitos que estavam sendo retira-dos e pela conquista de novos direitos, alguns deles j obtidos por trabalhadores urbanos, tais como o pagamento do 13o salrio, frias anuais, destinao de duas horas para a produo de alimentos e jornada de trabalho de oito horas dirias. Foi desempenhando esse papel que ela, aps ter sido tesoureira, foi eleita para o cargo de presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Alagoa Grande (PB). Se sua eleio foi algo indito no Nordeste da poca, mais indito ainda foi o fato de ter permanecido no cargo por 12 anos, apesar das constantes ameaas contra sua vida, num perodo ainda marcado pela memria das Ligas Campo-nesas e de sua represso.

    Em seus anos de luta, nunca se registrou na Justia uma s perda de questes traba-

    lhistas Fruto de sua liderana, foram aproximadamente 73 reclamaes trabalhistas

    contra engenhos e contra a Usina Tanques (Movimento de Mulheres Camponesas,

    3 de agosto de 2005).

    Margarida Maria Alves inovou: num contexto marcado pelo analfabetismo e pela subordinao dos camponeses aos grandes proprietrios ela foi uma das fundadoras do Centro de Educao e Cultura do Trabalhador Rural, do qual foi diretora, de 1981 a 1983. Essa iniciativa marca seu esforo em promover a conscincia cidad, o acesso a conhecimentos e direitos e o fortalecimento da agricultura familiar, alm da contribuio para o empoderamento feminino na luta por melhores condies de vida no campo. Contudo, no dia 12 de agosto (ou 13, segundo algumas fontes) as ameaas se concretizaram, e ela foi assassinada. Significativamente, seus assassinos foram absolvidos.

    Margarida foi fulminada porta de sua casa, que d diretamente para a calada, enquanto

    contemplava seu filho que brincava na rua. O assassino aproximou-se paralelamente

    parede da casa e ao chegar em frente porta disparou uma espingarda 12, carregada com

    pregos enferrujados e chumbo grosso, contra a cabea de Margarida.

    Devido violncia do impacto, o umbral da porta e as paredes da casa ficaram

    salpicados de restos de crebro, sangue e pele O assassino retirou-se calmamente de

    encontro a dois outros que o aguardavam, demonstrando muita segurana na impuni-

    dade garantida pelos poderosos mandantes (Centru, s/d).

  • 1M a r g a r i D a a l V e S : C o l e t n e a S o B r e e S t u D o S r u r a i S e g n e r o

    No foi o nico ato de violncia na regio. Antes, segundo o Centro de Edu-cao e Cultura do Trabalhador Rural (Centru), havia sido assassinado Pedro Teixeira, presidente da Liga Camponesa de Sap.

    Segundo a imprensa da poca, o pistoleiro que assassinou Pedro Teixeira incriminou em

    julgamento a Aguinaldo Veloso Borges, dono da Usina Tanques. Aguinaldo que era sexto

    i suplente de deputado ao fim de poucas horas passou de sexto suplente para efetivo,

    adquirindo imunidade parlamentar, sendo o processo suspenso.

    o filho de um Senhor de Engenho espancou uma moradora de suas terras, sendo

    esta velha e aleijada. Tomando conhecimento do fato, o Sindicato de Alagoa Grande, na

    pessoa de Margarida Maria Alves, moveu um processo no valor de 2 milhes e trezentos

    mil cruzeiros. Joo Carlos de Melo, pai do agressor e proprietrio do Engenho Genipapo

    teria ameaado Margarida e a moradora dizendo que ela podia receber o dinheiro mas

    no ia gastar (Centru, s/d).

    A morte de Margarida Alves, contudo, no foi em vo. Ela se tornou inspirao para que muitas outras mulheres, Elisabetes, Marias, Franciscas, desafiassem suas antigas situaes de gnero e se tornassem lderes rurais. Assim, homenageando Margarida, homenageia-se nesta coletnea todo esse contingente feminino que, com freqncia, permanece em posies subalternas na luta sindical, no trabalho cotidiano e na tica das autoridades e mesmo no discurso acadmico. o caso das mulheres seringueiras, cuja participao nos chamados empates tem sido fundamental (Cf. Woortmann, 1997) ou cuja atividade agrcola tem sido to importante quanto a pesca (masculina) em comunidades definidas apenas como

    pesqueiras) (Woortmann,1992).Alm de homenagear a trabalhadora rural, esta Coletnea possui um objetivo

    a mdio e longo prazo, como subsdio para a formulao e otimizao de polticas pblicas e para a atuao de instituies e entidades, pblicas ou privadas, volta-das para o atendimento das demandas das mulheres rurais e das comunidades tra-dicionais. Ela pretende ser tambm, assim como o prprio Prmio que ela expressa, um estmulo a trabalhos acadmicos voltados para a questo da cidadania.

    Os trabalhos apresentados permitem identificar algumas questes signifi-cativas. Em primeiro lugar, destaca-se a pequena participao masculina entre os candidatos ao Prmio. De um total de 49 trabalhos inscritos e homologados, somente trs foram apresentados por homens. Dentre os 13 selecionados, apenas um homem teve seu trabalho premiado.

    Quanto aos temas escolhidos, identificam-se trs conjuntos, que se sobrepem e interpenetram temas tradicionais, temas atuais e temas emergentes. Dentre os primeiros, temos aqueles que lidam, desde uma tica de inspirao marxista, com a relao entre processo de trabalho e capitalismo, identidade e migrao, por

  • n e a D e S p e C i a l18

    exemplo, e que correspondem a 22% do total. Os temas atuais considerando-se como tais aqueles recorrentes na virada do sculo XX para o XXI centram-se em anlises de gnero com nfase no empoderamento de grupos de mulheres, memria, iderio de comunidades tradicionais e relaes de poder. O conjunto, possivelmente inspirado pela prpria homenagem a Margarida Alves, e com o intuito de valorizar outras mulheres que se destacaram na luta poltica, h vrios trabalhos sobre lderes sindicais femininas antigas ou mais recentes, conhecidas to-somente em seus contextos locais ou regionais. Esse conjunto participou com quase 48% do total de trabalhos avaliados. Dentre os emergentes, caractersticos do novo milnio e que iluminam novas dimenses das comunidades e das mu-lheres rurais, despontam questes como sexualidade/homossexualidade, infncia e velhice. Esses temas e seus sujeitos, subssumidos em anlises anteriores como questes secundrias e at mesmo limitados a notas de rodap, agora conquistam lugar de destaque, tornando-se temas/sujeitos principais. Esse conjunto corres-ponde a aproximadamente 23% do total avaliado.

    Considerando a rede de divulgao do Prmio, a bibliografia utilizada, o con-tedo e a linha metodolgica empregada, verifica-se que a rea de conhecimen-to mais representativa foi a sociolgica, presente em 22 trabalhos apresentados, seguida pela antropolgica, num total de 11. Alm desses, contam-se trabalhos bastante originais relativos s reas de Servio Social, Psicologia, Histria e Eco-logia/Meio Ambiente. Dentre os ltimos o meio ambiente concebido tanto como um palco no qual os grupos sociais desempenham seus papis quanto parte construtiva e constitutiva dos mesmos.

    Nesta coletnea prevalecem as anlises de cunho feminino e feminista e as de gnero. Na base dessas anlises encontram-se os movimentos de mulheres. O movimento feminino reunia mulheres em torno de causas filantrpicas e ao pertencimento classe mdia e elites urbanas, fortemente vinculadas a grupos religiosos. Por outro lado, o movimento feminista emerge associado abertura poltica, lutando por mudanas que incluam o reconhecimento da especifici-dade e identidade femininas e, num plano mais amplo, por transformaes nas relaes sociais.

    Nos anos 1990, mesmo no mbito acadmico, os movimentos femininos e fe-ministas incorporam uma nova perspectiva pautada pela noo de gnero. Dessa perspectiva, derivada dos gender studies do Primeiro Mundo, resultou um grande nmero de cursos promovidos em universidades assim como em sindicatos e ONGs. Esses cursos, inicialmente voltados para grupos urbanos, foram gradati-vamente estendidos para o mundo rural, dirigidos a extensionistas e tcnicos em fomento, sindicatos e movimentos sociais do campo. Para tanto, muito contribu-ram instituies de fomento e de pesquisas, como o Fundo de Desenvolvimento das Naes Unidas para a Mulher (Unifem) a Fundao Ford, o Conselho Nacio-

  • 1M a r g a r i D a a l V e S : C o l e t n e a S o B r e e S t u D o S r u r a i S e g n e r o

    nal de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico (CNPq) e a Empresa Brasileira de Assistncia Tcnica e Extenso Rural (Embrater).

    Esses movimentos sociais foram responsveis pela realizao de trabalhos que revelaram novas dimenses do universo feminino, trabalhos esses que refletem os objetivos e diferenciaes dos referidos movimentos sociais, seja na seleo dos temas enfocados como nas abordagens utilizadas.

    As anlises femininas, em geral bastante detalhadas, se reportam a assun-tos relativos aos domnios tradicionais da mulher, como sade familiar, ritos de passagem, vida religiosa e outros ligados a aspectos simblicos. Essa perspectiva bastante antiga nos estudos sobre o mundo rural, mas ela ganha impulso na dcada de 1970, com a entrada definitiva de acadmicas nas pesquisas sobre o campesinato. No conjunto de trabalhos inscritos e homologados que concorreram ao Prmio, pouco deles ainda podem ser includos nessa perspectiva.

    O ingresso de pesquisadoras no mbito dos estudos rurais, em particular do campesinato, nem sempre conduziu a estudos centrados na mulher. Entre pes-quisadores de grupos indgenas h pesquisas realizadas por mulheres que, para-doxalmente, adotaram elementos da tica masculina, permanecendo as mulheres invisibilizadas, como que englobadas pelos seus pais ou maridos. A hierarquia tradicional da famlia foi reproduzida nos textos acadmicos.

    As anlises femininas no se confundem com as anlises feministas. Estas ltimas partem de um plano terico-poltico mais recentemente expresso pelo neologismo do empoderamento, iniciado na dcada de 1980 em toda a Amri-ca Latina. Tal perspectiva, aps resultar em excelentes trabalhos sobre camadas mdias e populares urbanas, mas raramente, por pesquisadores homens- pos-teriormente foi estendida ao mundo rural, em especial enfocando dimenses ligadas a direitos das mulheres.

    Discusses como o reconhecimento de domnios produtivos, reviso de direi-tos consuetudinrios, equiparao de direitos legais das produtoras rurais sobre a terra, acesso a crdito, etc. ao mesmo tempo que abriram novas perspectivas para pesquisas sobre grupos camponeses, contriburam tambm para uma maior conscincia das prprias mulheres rurais concernente cidadania. Com a in-corporao da perspectiva de gnero, acrescentam-se a essa linha de estudos as questes relativas ao direito sobre o corpo e sexualidade, por exemplo. Parale-lamente, vrios direitos foram conquistados pelas mulheres rurais, muitos deles, implementados por polticas pblicas comprometidas com a causa feminista e de gnero. O conjunto de trabalhos apresentados incluiu 17 estudos que seguiram essa perspectiva.

    Levando-se em conta os objetivos do Prmio subsidiar polticas pblicas e a qualidade dos trabalhos premiados nas duas categorias apoio pesquisa e ensaio indito, optou-se por dispor os artigos conforme a ordem alfabtica dos

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    nomes dos seus autores. Todos os artigos provenientes de dissertaes, teses e outras pesquisas, foram disponibilizados de forma eqitativa, incluindo a meno honrosa. uma forma de homenagear todas as participaes, sem distino de nenhuma espcie.

    O artigo de Ana Louise de Carvalho Fiza,da Universidade Federal de Viosa (UFV), Mulher igual a natureza, discute desde uma sofisticada e inovadora anlise crtica da teoria scio-antropolgica, clssica relao homem, mulher e natureza, na tica das polticas de desenvolvimento sustentvel.

    Elisa Guaran de Castro apresenta seu artigo As jovens rurais e a reproduo social das hierarquias, referente sua tese defendida na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), no qual discute, a partir de uma bibliografia bem montada e multilnge, as relaes de gnero entre jovens rurais em assenta-mentos, como as opes de ficar ou sair deles so construdas, levando-se em conta variados fatores.

    O excelente trabalho de Joana DArc do Valle Bahia, O tiro de bruxa: o olhar mgico das pomeranas, foi baseado em sua tese defendida no Museu Nacional. Nele a autora centra sua anlise no universo rural feminino de descendentes de imigrantes, e em especial nos atos mgicos que acompanham suas atividades produtivas e reprodutivas.

    Maria Dolores de Brito Mota, da Universidade Federal do Cear (UFCE) analisa em seu estimulante trabalho, Sem medo de ser mulher, a construo e expe-rincia das mulheres trabalhadoras rurais como categoria poltica, centra sua reflexo sobre a configurao de grupos de mulheres trabalhadoras rurais que passam a se identificar como grupo com prticas sociais e polticas prprias e imprimem especificidades no movimento sindical rural.

    O impactante trabalho de Maria Margareth Costa Cunha, do Movimento de Mulheres Trabalhadoras Rurais do Nordeste (MMTR-NE), em denncia com base em sua memria e na de outras mulheres rurais com as quais compartilha sua luta apresenta As marcas da impunidade esto em nosso corpo, em nossa vida e em nossa alma. Um documento-denncia que relaciona a dimenso pessoal e social dos abusos sofridos por mulheres trabalhadoras, abusos que permanecem impunes.

    No excelente, As guardis da floresta do babau e o tortuoso caminho do empode-ramento, Marta de Oliveira Antunes, da UFRJ, discute a luta das quebradeiras de coco pela preservao de suas reas de produo e a dinmica das suas estratgias para a implantao da reforma agrria e seu empoderamento, face aos poderes locais estabelecidos, seus vizinhos, maridos e filhos.

    Paulo Rogers da Silva Ferreira, da Universidade de Braslia (UnB), em seu inovador artigo Entre elas: afetividade versus complementaridade, trata de um tema pouco usual nos estudos de campesinato, que o das concepes de corpo, se-xualidade e homossexualidade. Combina os dados etnogrficos coletados em

  • 21M a r g a r i D a a l V e S : C o l e t n e a S o B r e e S t u D o S r u r a i S e g n e r o

    uma comunidade do serto do Cariri com uma anlise crtica dos estudos de campesinato, mostrando como essa dimenso pouco visvel, seja nos clssicos ou nas pesquisas atuais.

    Rosngela Steffen Vieira, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), em seu artigo Tem jovem no campo: tem jovem homem, tem jovem mulher, tal como Eliane, tambm se insere entre os trabalhos que apresentam temticas recentes. Centrando seu trabalho nos jovens rurais, ela discute com perspiccia e sensibi-lidade, o modo como jovens-homens e mulheres- vivem sua condio em assen-tamentos do Movimento dos Trabalhadores sem Terra (MST),aspectos de sua sexualidade e Doenas Sexualmente Transmissveis (DSTs) num contexto de militncia no Movimento.

    O excelente trabalho, Alm das secas e chuvas: os usos da nomeao mulher tra-balhadora no serto de Pernambuco, de Rosineide de Lourdes Meira Cordeiro, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), discute com base em dados cole-tados no serto central de Pernambuco e junto ao MMTR do Serto Central as implicaes, a lgica e a simblica de classificaes acerca da condio feminina rural, dentre as quais se destaca a de mulher trabalhadora rural, como meio de atin-gir direitos e empoderamento, no interior da famlia, dos movimentos sociais, etc.

    Sara Deolinda Cardoso Pimenta, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), apresenta em seu excelente trabalho Identidades em trajetria: gnero e processos emancipatrios na reforma agrria, uma reflexo estimulante sobre a trajetria de luta de um grupo de posseiros que conseguiu o acesso a terra em assentamento no Vale do Jequitinhonha. Ela mostra como o processo de organi-zao, de configurao de novas identidades coletivas e de gnero no interior do grupo foi um dos principais responsveis pelo xito da luta empreendida.

    Numa linha de anlise prxima de Paulo Rogers e Rosngela Steffen, Vanda Aparecida da Silva, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), elabora seu artigo De corpos, desejos, feitios e amores: a sexualidade entre jovens de origem rural. A autora, com slida e bem embasada bibliografia, relaciona sexualidade a outros tipos de experincias dessa faixa etria, tais como com outras geraes, religio, perspectivas profissionais, etc.

    O artigo de Vanderlia Laodete Pulga Daron, da Universidade de Passo Fundo (UPF) A construo de sentidos a partir da praxis de mulheres trabalhadoras rurais com enfoque popular e de gnero,resulta de pesquisas importantes realizadas no li-toral do Rio Grande do Sul para o Movimento de Mulheres Camponesas (MMC-RS). O tema centra-se sobre a dinmica, as prticas e concepes sobre sade, como parte dos direitos a serem conquistados pelas mulheres camponesas.

    Numa perspectiva prxima de Marta Antunes, Viviane de Oliveira Barbosa, da Universidade Federal do Maranho (UFMA), A caminho dos babauais: gnero e imaginrio no cotidiano de trabalhadores rurais do Maranho, analisa de forma

  • n e a D e S p e C i a l22

    detalhada e coerente, a relao nem sempre harmnica, entre homens e mulheres das comunidades, visto que concebem o babaual com ticas distintas. Discute de forma detalhada, algumas diferenas marcantes de gnero entre discursos e prticas, bem como etnoconcepes de tempo e espao.

    Pode-se observar que a diversidade de temas, linhas tericas, reas de conheci-mento, situaes analisadas assim como de universidades participantes, mostram de um lado, a importncia dada ao assunto mulher trabalhadora rural em todo Brasil, e do outro, a visibilidade que o prprio Prmio proporcionou, apresen-tando algumas das diferentes situaes por elas vividas.Tomando como cone de referncia a Margarida esposa e me, desde outra perspectiva Margarida Alves corajosa trabalhadora, lutadora poltica pelos direitos dos camponeses e de outra ainda, Margarida Maria Alves, precursora e lutadora pelo empoderamento das mulheres rurais, o Prmio homenageia todas as mulheres trabalhadoras.

  • 23M a r g a r i D a a l V e S : C o l e t n e a S o B r e e S t u D o S r u r a i S e g n e r o

    Meno honrosa

    P r m i o M a r g a r i d a A l v e s

  • M a r i a M a rg a r e t h C o S ta C u n h a

    As marcas da impunidade

    esto em nosso corpo, em nossa

    vida e em nossa alma.

    m m t r - n e

    Apre s entao

    com muita alegria que apresento este trabalho, junto com meu esforo e incentivos que recebi das companheiras de trabalho e do prprio Ministrio do Desenvolvimento Agrrio (MDA). Ns, mulheres trabalhadoras rurais, estamos nos fortalecendo mutuamente. Somamos esforos na produo agrcola e nos conhecimentos e saberes do ponto de vista da organizao e do cotidiano do mundo das mulheres.

    Espero que este artigo possa ser til a outras mulheres, organizaes e enti-dades ligadas ao campo.

    Espero tambm, concorrer ao Prmio Margarida Alves, e que o resultado sirva de incentivo a outras mulheres trabalhadoras rurais, para que comecem a colocar no papel seus conhecimentos, sonhos e desejos.

    Eu sou mulher seu doutor o qu que h.

    Eu sou mulher do Maranho, eu sou mulher.

    Doraci Zebina, MA

    trabalhadora rural Ma, diretora do Movimento de Mulheres trabalhadoras rurais do nordeste (MMtr-ne)

    Meno honrosa

  • 2M a r g a r i D a a l V e S : C o l e t n e a S o B r e e S t u D o S r u r a i S e g n e r o

    Agradec im ento

    Agradeo as mulheres que me incentivaram a iniciar este trabalho, aquelas que acreditaram em minha capacidade de produo e conhecimento; a todas as pes-soas que lerem esta pesquisa feita por trabalhadora rural, de famlias de pequenos produtores, sobre comunidades tradicionais, antes e hoje, reforma agrria, agri-cultura familiar. Foi um grande desafio fazer este trabalho com minha leitura, mas a solidariedade, honestidade do trabalho com as trabalhadoras rurais reforam a vontade de acertar, fazer a nossa realidade aparecer para todas e todos, e, verem que o trabalho das mulheres teve muito sofrimento, mas tambm, conquistas interessantes que fortalecem a cada uma de ns. Agradeo a Deus por tudo, e principalmente, pela luz e discernimento.

    Mulher e s t raba lhadora s rura i s e d e comun idade s t rad ic iona i s , ont em e ho j e

    a ) na agr i cu ltura fam i l i a r

    As mulheres nas comunidades faziam de tudo. Elas comeavam o dia buscando gua da cacimba; em casa, tinham que fazer caf e cuscuz para o companheiro levar para a roa, socar o arroz para o almoo e o jantar, serem enfermeiras quan-do o filho ficava doente, ajudar as vizinhas quando ganhavam nenm, ensinar os filhos a rezar, ir para os teros e novenas. Ainda, tinham que levar a comida para a roa e ficar l quebrando coco babau para ajudar nas despesas da casa.

    Com tudo isso, quando chegava uma pessoa fazendo pesquisa, a mulher dizia que no fazia nada. E assim foi ficando mais difcil o reconhecimento da profisso. No cartrio eles nem perguntavam qual a profisso, e assim todas as mulheres eram consideradas do lar ou domsticas. Quando perceberam que alm de gerar a vida, tambm tinham grande responsabilidade para com os filhos e a comuni-dade, a comearam a lutar por seus direitos, primeiro o voto e depois lutar para se associarem ao Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais (STTR) local e para serem vistas como independentes do marido.

    Ainda, cuidavam dos animais como, galinha, porco e outros que precisam para ir buscar o babau; lavar pratos e depois de todos trabalhos a mulher ainda dizia que quem estava cansado era seu companheiro, que tinha chegado da roa.Ele encontrava gua para tomar banho, sabo, toalha e roupas limpas. Em seguida saa para jogar baralho ou dizer umas prosas.

    A mulher no reconhecia que seu trabalho tinha valor, no ganhava dinheiro nos afazeres domsticos, mas mesmo assim, quando ela quebrava at 40 quilos de babau por semana no sabia nem quanto tinha em dinheiro, porque alm de

  • n e a D e S p e C i a l2

    fazer tudo isto, achava que no podia ir ao comrcio vender sua prpria produo e fazer compras de suas necessidades.

    Aos poucos, as mulheres foram percebendo que seu trabalho era importante na luta pela terra e que estavam frente, devendo participar do espao pblico, no s do privado. Foi quando comearam a abrir os olhos e encarar a luta de reivindicaes, at nos espaos onde os maridos faziam parte, por exemplo, na associao de trabalhadores rurais nos assentamentos. E ns comeamos a dis-cutir a nossa identidade.

    Falas de outras mulheresRosane Ribeiro C. dos Santos Assentamento Meu Rancho, Pureza-RN:

    Ver a agricultura familiar como uma grande mudana e conquista e que estamos dis-

    cutindo em famlia sobre os seguintes temas: Melhorar a renda da nossa famlia e tra-

    balhar uma perspectiva de igualdade de gnero, a auto-estima das mulheres, discutir a

    responsabilidade de cada pessoa da famlia, dividir a renda entre os membros da famlia

    a nossa luta que estamos enfrentando, mas precisa de ter mais discusso, porque em

    algumas comunidades as mulheres no vem como luta delas; s vezes, ns que lutamos

    no estamos preocupadas em registrar nossa prpria histria.

    Nazar Flor Assentamento Macei, Itapipoca-CE:

    A agricultura familiar, eu vejo como base alimentar e econmica, da maior parte das

    famlias da zona rural. ainda responsvel pela maioria da produo agrcola do Brasil.

    Embora, diante de todas as vantagens que percebo, vejo tambm que agricultura

    familiar desvalorizada e at mesmo desconhecida pela sociedade, principalmente pelos

    grandes grupos capitalistas que s visam o lucro, a concentrao das terras e as riquezas

    do nosso Brasil.

    O feminismo nada significava para ns e no sabamos nem o que era g-nero. Achvamos que era gnero alimentcio: arroz, feijo e ento comeamos a nos educar.

    Quando percebemos que isso no estava certo, tivemos que lutar muito para acabar com a cultura dos homens, pois s eles podiam vender e comprar a produo.

    Somos os homens da casa e por isso temos que ser os responsveis. Onde ficavam as mulheres? s vezes no tinha nem com quem conversar sobre sua situao. Era tudo natural. As mulheres eram as coitadinhas que no sabiam de nada, tinham de ficar em casa e dar conta de comida para as crianas e ainda cuidar da casa, da educao dos filhos, da roa.

  • 2M a r g a r i D a a l V e S : C o l e t n e a S o B r e e S t u D o S r u r a i S e g n e r o

    O marido tinha se escondido para no morrer com o tiro do pistoleiro, pois o proprietrio, que se dizia dono das terras, mandava matar. s vezes ameaava as mulheres, que nem podiam dormir com medo. Esta situao, de mulheres fi-cando sem marido e s com a responsabilidade de cuidar dos filhos, deu origem a discusses. Comearam a discutir na cacimba, no caminho da roa e fizeram o movimento de vivas, as que os maridos foram assassinados nos conflitos de terra. Com a ajuda de outras entidades e de outros movimentos elas comearam a lutar por seus direitos. Mulheres com coragem de enfrentar os assassinos de seus maridos e se defenderem e assim, o movimento se organizou em lutas pela libertao e conseguiu que no fossem absolvidos.

    b ) Comun idade s t rad i c iona i s ho j e

    Hoje as mulheres esto em vrios movimentos (mistos ou especficos de mulhe-res). Vemos que, como movimento das mulheres trabalhadoras rurais autnomas ns conseguimos conquistar mais vitrias, por exemplo: ns quem fazemos nos-sa pauta de reivindicao, estamos nas mobilizaes, no temos mais aquele medo de falar errado, j conseguimos ter mais orgulho de ser trabalhadoras rurais.

    Tudo isso traz para ns a auto-estima. Acreditamos que, ser protagonistas desta histria, de ser reconhecidas como trabalhadoras rurais, quebradeiras de coco babau e sabendo que foi uma grande conquista, enfrentaremos todas as dificuldades que encontrarmos nos espaos de participao poltica do Coletivo da Mulher Trabalhadora Rural (CMTR-MA). Claro que no posso dizer que no foi difcil, mas hoje temos total segurana do que queremos e onde queremos chegar. como diz Carlos Harras, No h vento favorvel se voc no sabe onde quer chegar.

    O movimento contribuiu com outros movimentos para discutir a situao da mulher no meio rural e sua identidade.

    Na poca ns lutamos pelo reconhecimento da profisso, discutindo quem somos, de onde viemos, e o que queremos.

    Ns, como mulheres trabalhadoras rurais, no sabamos ainda, que ramos responsveis pelo bem-estar de nossos filhos e de nossa comunidade e por isso comeamos a discutir sobre nossa participao e nossa fora.

    Nas associaes, nos STTRs, nas comunidades, nos espaos de participao e com estas discusses, ns mulheres comeamos a discutir nossos direitos e de-veres. Com muito entusiasmo participamos das manifestaes nas ruas, fizemos abaixo-assinados, lutamos juntas em todos os movimentos sociais, at reivindicar a Constituio brasileira de 1988. Com nossa participao conseguimos alguns direitos e tentar que as mulheres entendessem que esto fazendo parte da triste histria, que foram os conflitos de terra. Com as lutas fomos nos organizando e

  • n e a D e S p e C i a l28

    reivindicando at em nvel nacional, conquistando o salrio-maternidade, pela grande participao das mulheres em todos os estados.

    c ) na r e forma agrr i a

    A concentrao da posse da terra no Brasil tem suas origens na poca do desco-brimento. As intervenes do governo, frutos da execuo de diversas polticas fundirias e agrrias, no tm sido suficientes para agilizar a posse da terra.

    A reforma agrria um termo utilizado para descrever distintos processos que procuram dar acesso posse da terra e aos meios da produo para os trabalha-dores e trabalhadoras rurais que no a possuem ou possuem apenas em pequenas quantidades. Apesar de a reforma agrria ser um programa executado no campo, seu impacto na sociedade e na poltica econmica extrapola essas fronteiras atin-gindo a nao como um todo.

    Os programas de reforma agrria so abrangentes ao redor do mundo; o ba-lano final a questo agrria e uma maneira de falar sobre o que representa o problema da posse e o uso da terra como se organiza a produo de alimentos no meio rural de uma sociedade. Para muitos, no existe problema da terra, para outros, o problema muito srio, isso quer dizer que a situao no meio rural tem dois lados.

    As classes sociais se enfrentam constantemente no campo. De um lado, a burguesia, que procura concentrar a terra ao mximo. Do outro lado, os traba-lhadores (as), que enfrentam a todo o momento problemas de todos os tipos, para se manterem e trabalhar na terra.

    Durante muitos anos e at hoje, tem gente falando que existe problema agrrio tambm para a burguesia. As formas como est organizada a produo e como ocupada a terra, permitem que os latifundirios aumentem a produo a cada ano. Eles seguram a terra como meio de ganhar mais dinheiro explorando os bias-frias, assalariados, etc.

    Nas reas de fronteira com outros pases defendem isso, no porque esto com vontade de entregar a terra para as trabalhadoras e trabalhadores e sim por estarem mais preocupados em assegurar o territrio nacional da invaso de ou-tros pases e tambm para acalmar os conflitos sociais existentes no meio rural. Usando as trabalhadoras e trabalhadores como desbravadoras(es), facilitam sua entrada mais tarde em territrio nacional.

    d) na r egu lar i zao fund i r i a

    Conseguir um pedao de terra sempre foi difcil, como explica o captulo anterior. Para conseguir a regularizao outra grande batalha. H casos de lutas por posse de terra que duram mais de trinta anos e ainda no se tem o ttulo dela. Vrios

  • 2M a r g a r i D a a l V e S : C o l e t n e a S o B r e e S t u D o S r u r a i S e g n e r o

    fatores contribuem para essa realidade. De um lado esto os patres e grandes latifundirios e do outro esto os que produzem na terra e precisam dela.

    Assim, os conflitos no mundo rural so reais. A histria do uso das terras, as condies em que as (os) trabalhadoras (es) rurais sempre se mantiveram so razes suficientes para conflitos. Desde 1974 participo de movimentos sociais, comeando pela Comunidade Eclesial de Base (CEB) e naquela poca comeam os conflitos de terra no Maranho. Igrejas ajudaram muitos trabalhadores e trabalhadoras, que faziam as reunies escondido, planejando estratgias para sair dessa situao.

    Quem mais sofria com a situao eram as mulheres e as crianas. Na luta pela terra ou em qualquer outra, sempre estivemos presentes. Sempre lutamos. Temos nossas artimanhas, saberes, nossos desejos de justia. Sempre fomos delegadas invisibilidade, a ser me e esposa. O quadro muda e os conflitos hoje tm nova cara. As polticas tambm mudaram. O mundo mudou, mas a luta pela terra continua e os acordos tambm. Atualmente temos avanado, mas preciso muito mais. um grande trabalho para ser feito. Cidade e campo precisam se juntar.

    e ) nas po l t i ca s p b l i ca s

    Maria Severina Silva Departamento Nacional de Obras contra as Secas (Dnocs), Cajazeira-PI:

    O Brasil um dos pases da Amrica Latina que mais tem polticas pblicas, que mais

    tem organizaes sociais. Mas aqui onde h mais desigualdade e desrespeito s polticas.

    Tudo muito difcil, principalmente para as mulheres rurais. Temos lutado muito no

    sentido de mostrar as lacunas e encontrar solues. Cobrar das autoridades responsveis

    o cumprimento do seu papel para que as aes de incluso social sejam realmente realiza-

    das. O quadro ainda complicado e cheio de vitrias e derrotas como mostramos a seguir.

    A reforma agrria no mudou muito. Conseguimos algumas coisas, como, linhas de

    crdito para os agricultores familiares, que uma reivindicao dos movimentos sociais

    desde 1980. Mas como os governos anteriores nunca se preocuparam com os trabalhado-

    res e s agora no governo Lula que tivemos direitos, principalmente o especfico para as

    mulheres que aumenta nossa auto-estima e direito educao para jovens e adultos.

    Tivemos oportunidade de ter at uma secretaria especial de polticas pblicas para as

    mulheres. Antes, at os governantes viam as mulheres como se elas no pudessem sair de

    casa, fazer manifestao e lutar por seus direitos. Mulher era para ser obediente, submissa,

    contente com sua vida cotidiana achando que seu lugar era s na cozinha.

    Tal realidade mudou bastante, mas a vida das mulheres trabalhadoras rurais ainda

    muito sofrida, principalmente para auto-sustentar, se valorizar e participar da vida

    poltica. Alm de reivindicar nossos espaos social, econmico, poltico e cultural, temos

    outros motivos para continuar lutando.

  • n e a D e S p e C i a l30

    f ) nos mov im entos soc i a i s

    Margareth Costa Cunha Esperantinpolis-MA:

    Eu entrei na luta em 1990 participando de movimentos sociais. Antes, fazia parte das

    reas de conflitos de terra no Maranho; morava em uma comunidade chamada Flores-

    ta, municpio de Coroat. Os moradores daquela comunidade tinham que vender toda

    sua produo para o dono das terras, mais barato do que se vendesse na cidade, e ainda

    tinham que pagar trs alqueires por linha, com a mesma produo. Aquilo tudo me

    revoltava. Ficou na minha cabea a revolta contra os poderosos que s queriam enganar

    os pobres, escravizando aquele povo que tanto trabalhava para ter o que comer, mesmo

    assim, nos conflitos sempre o patro era quem ganhava.

    O povo tinha de sair, porque naquela poca no havia nem uma lei da terra. Minha

    me teve que ficar trabalhando por um bom tempo sozinha na roa e eu ficava angustiada

    com tudo aquilo,no conseguia me situar nem sair para estudar.

    Todos os meus irmos estudavam e no lidavam com traumas daquele sofrimento

    dos meus pais, no podiam ajudar. Eu s descobri um curso de formao de educadoras,

    em uma linha da vida, que foi uma pergunta: -Como foi a minha infncia? Eu quase

    no conseguia falar, s chorando por tantas coisas que sofremos na infncia, at meus

    depoimentos foram muito tristes.

    No quero que meus filhos tenham a mesma infncia que eu. O que eu puder farei

    por eles, para que no tenham tanto sofrimento.

    bom, mas naquela anlise que descobri porque estou na luta hoje. Os sofrimentos

    das mulheres fazem com que tenhamos fora para lutar, mudar; quando falamos das

    razes, quando nos perguntam de onde viemos, quem somos. Claro que ns lutamos

    por grandes objetivos: Capacitar-nos para poder capacitar outras mulheres, despertar

    as mulheres para que se descubram cidads; organizar as mulheres para que lutem por

    seus direitos;capacitar as mulheres no mundo.

    O curso de formao de educadora, para trabalhadoras rurais, no incio foi muito

    complicado. Imagine seis trabalhadoras rurais e muitas assessoras com mestrado ou curso

    universitrio. Quando comeamos a ver as palavras pedaggicas, metodolgicas, tivemos

    que acompanhar e quando vimos o contexto social em que vivemos, ns trabalhadoras

    rurais, ficamos revoltadas. No com o curso, mas com as desigualdades sociais que dava

    para perceber dentro do prprio curso.

    Ns j fazamos um trabalho com as mulheres, claro, do nosso jeito, com nossa simplicida-

    de. Nunca vamos ser uma assessora, porm ao voltarmos para nossas comunidades realiza-

    mos duas oficinas com temas que trabalhamos, com as dinmicas e tcnicas que aprendemos.

    Aperfeioamos nosso trabalho, com isso nos sentimos mais seguras, mesmo quando

    estamos nos municpios, repassando nossos conhecimentos estaduais, nacionais e at

    internacionais.

  • 31M a r g a r i D a a l V e S : C o l e t n e a S o B r e e S t u D o S r u r a i S e g n e r o

    No Seminrio Latino-americano de Mulheres Trabalhadoras Rurais e Caribe, evento

    que aconteceu no Mxico de 25 de setembro a 1 de outubro de 2005, tivemos oportuni-

    dade de conhecer companheiras de outros pases. Na ocasio, levantamos propostas de

    polticas socioeconmicas e ambientais. A luta no fcil, mas tem que acontecer. As

    mulheres organizadas tm que chegar ao poder.

    g) os s a b e r e s t rad i c iona i s

    Nas comunidades, nossos pais e avs acreditavam muito nas rezadeiras, nos pais-de-santo, nas parteiras leigas que alm chegarem at as casas e pegarem o nen, ensinam o uso das razes naturais que servem como remdios e ainda rezam para o parto ser ligeiro. No passado era difcil as mulheres morrerem de parto, pois alm de usarem meios naturais, no havia muitos produtos industrializados. Quando uma mulher tinha complicaes no parto logo a parteira mandava para o hospi-tal. Os remdios de garrafadas que acreditamos tanto curavam todas as doenas.

    Naquela poca no existiam doenas como a Aids e o cncer. Acreditvamos muito em meios alternativos, como argila, plantas e tantos outros que aprende-mos com nossos avs, como tambm, produzir receitas naturais. Estes valores foram passados de famlia para famlia e hoje esto sendo recuperados.

    Os valores ticos em cada famlia eram repassados para os mais novos. Os pais-de-santo, que faziam as pessoas ficarem boas, s com as rezas, para as famlias eram tudo. A f era tanta que curava e com isso os filhos comeavam a acreditar e a reconhecer os saberes, as tradies.

    No queremos esquecer nossas razes e mesmo que no acreditemos, sempre h algo estranho para lembrar, que tenha acontecido em nossa famlia ou com a gente mesmo. A nica coisa que no morre nossa f, e a gente no se educa sozinho.

    Se cada pessoa, cada famlia, cada comunidade buscasse conhecer tais experi-ncias de vida e de grande valor, com certeza construiramos novos valores, para que as pessoas pudessem realmente, ser gente de verdade.

    h) na s exua l i dade

    Este assunto era muito desconhecido para as mulheres. Elas nem queriam co-nhecer seu prprio corpo. Este era um dos problemas, um preconceito entre as mulheres, achar que pecado enorme falar sobre sexo, no discutir nem com as vizinhas e principalmente com as (os) filhas (os). Ns vamos como pecado fazer sexo, que era s para mulheres casadas; as que no tinham marido no podiam ter relaes sexuais porque eram consideradas prostitutas; era tambm proibido falar sobre o assunto com crianas e jovens.

  • n e a D e S p e C i a l32

    As mulheres no se sentiam estimuladas em conhecer seu corpo e por isso no tinham nem como se cuidar, principalmente evitar Doenas Sexualmente Transmissveis (DSTs). Os maridos exigiam que elas ficassem caladas, no contar que foram contaminadas por eles.

    O preconceito comea muitas vezes dentro da prpria mulher, que acha isto natural. Ns mulheres temos ainda que ficar caladas para no prejudicar nossos maridos e a sociedade no saber que estamos doentes. Escondemos at do mdico, para no fazer exames, com medo de mostrar nosso corpo.

    O medo do pecado e da igreja conservadora tem atrapalhado muito as dis-cusses. A sexualidade at hoje ainda tema difcil de ser trabalhado a partir da famlia, comunidade e escola. Hoje, se houvesse mais conscientizao por meio de palestras, sobre DSTs, no haveria tanta gente contaminada pelo vrus HIV, da Aids.

    Podemos evitar e ajudar a combater a Aids e outras doenas, conversando com nossos filhos e indicando para eles o uso de preservativos, porque tanto homens jovens como mulheres jovens correm riscos de doenas. No sabemos se estamos contaminadas. A doena pode at estar em nossa casa. Precisamos nos prevenir e conscientizar nossos jovens, para que transem com responsabilidade e usem cami-sinha, tanto masculina como feminina. Esta nossa tarefa de mulher e de me.

    Concluindo, gostaria de afirmar que a sexualidade, apesar de ser uma necessi-dade orgnica, que faz bem ao corpo e alma, continua assustando as mulheres e conseqentemente, desestimulando-as a uma vivncia harmoniosa da sexualidade.

    i ) na v io l nc i a

    Ns mulheres fomos violentadas desde crianas, quando nos negaram o direito de brincarmos de carrinho. Negaram-nos o direito de estudar, de ser uma mulher, de participar da vida social. ramos vistas como objeto; violaram nossas idias, at de ver que tudo isto era natural, que ser mulher era ser dominada pelos pais, pelos irmos e depois pelo marido.

    E ns no sabamos que a maior violncia ter nossos direitos negados, que nos sentamos gente. Achvamos que tudo aquilo tinha de ser daquele jeito mesmo. Por ns descobrimos que tudo era violncia. Tivemos que fazer um curso, s conosco, trabalhadoras rurais. Veja como foi nossa realidade, com mulheres trabalhado-ras rurais. E s assim percebemos que existem muitos tipos de violncia como:Sobre os direitos humanos.Violncia fsica- a agresso dentro de casa se entende aquela que perpetrada no corpo da mulher por socos, belisces, mordidas, chutes, queimaduras, etc.Violncia sexual a mulher obrigada por fora ou ameaa, a ter relao sexual, que o agressor, o prprio marido ou companheiro deseja muitas vezes, por se

  • 33M a r g a r i D a a l V e S : C o l e t n e a S o B r e e S t u D o S r u r a i S e g n e r o

    sentir no direito de ser o dono e satisfazer seu desejo sexual, independente da vontade da mulher.Violncia psicolgica a mulher tem sua auto-estima atingida por agresses verbais constantes: ameaas, insultos, comparaes...Violncia moral pode ser entendida como uma das manifestaes da violncia psicolgica.Violncia patrimonial configura-se por aes ou omisses que impliquem em dano, perda, subtrao, destruio, reteno de objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais. s vezes utilizada como forma de limitao da liberdade da mulher, inclusive de ir e vir.Violncia no trabalho o agressor o patro ou chefe que usa de sua relao de poder hierrquico para obrigar a funcionria manter com ele relaes, indepen-dente de seu desejo.Assdio sexual da mulher nos espaos do trabalho.Violncia institucional praticada nas instituies prestadoras de servios p-blicos como hospital, delegacia, posto de sade, escola.

    A violncia hoje para as mulheres trabalhadoras rurais, uma grande preo-cupao e uma prioridade de luta no combate a todo tipo de agresso. No meio rural a violncia domstica cresce muito, principalmente em Pernambuco e no Cear. Estamos em ao. Violn cia tem que a cabar .

    Re f e r nc i a s

    Desenvolvimento Agrrio e Agrcola Instituto Interamericano de Cooperao para a Agricultura (IICA).

    Terras de Quilombos MST.

    Nosso trabalho tem valor.

    Mulher e Agricultura familiar SOS e MMTR-NE.

    Entrevistas de trabalhadoras rurais do Nordeste.

  • Categoria ensaio indito

    P r m i o M a r g a r i d a A l v e s

  • a caminho dos babauais : gnero e imaginrio no

    cotidiano de trabalhadores rurais no Maranho

    V i V i a n e D e o l i V e i r a B a r B o S a 2

    Cons id erae s i n i c i a i s

    O cotidiano e o imaginrio de sujeitos sociais tm constitudo um im-portante caminho de abordagem para estudiosos de vrias reas do saber. Nesse sentido, entendemos que o estudo de sentimentos e vivncias de trabalhadores rurais no Maranho pode contribuir consideravelmente para a compreenso de relaes de gnero e de significados que se estabelecem em seu meio social.

    Em meio a esses trabalhadores destacamos a atuao de mulheres quebradei-ras de coco babau, trabalhadoras rurais e agroextrativistas, que aliam a quebra do coco ao trabalho na roa, prticas estas que se inserem nos smbolos cotidianos de sua existncia. Enfocamos, de um lado, trabalhadoras que enfrentaram conflitos pela preservao de babauais e pelo acesso a terra e que assumiram a identidade de quebradeiras de coco, organizando-se no Movimento Interestadual das Que-bradeiras de Coco Babau (MIQCB), e, de outro, quebradeiras que no se inte-graram nesse movimento (embora muitas tambm tenham enfrentado conflitos), mas que, em suas comunidades, trocam experincias com as primeiras.

    ensaio baseado em monografia apresentada em julho de 2005 ao curso de histria da universida-de Federal do Maranho (uFMa) e em relatrios de pesquisa apresentados, em janeiro e agosto de 2005, pr-reitoria de pesquisa e Desenvolvimento tecnolgico, pibic/Cnpq/uFMa.

    2 licenciada em histria pela uFMa, mestranda do programa Multidisciplinar de ps-gra-duao em estudos tnicos e africanos da universidade Federal da Bahia (uFBa), bolsista Capes/uFBa.

  • n e a D e S p e C i a l3

    Examinamos discursos e prticas de lideranas do Movimento no Maranho e de trabalhadores rurais (homens e mulheres) do povoado de Monte Alegre, municpio de So Lus Gonzaga (MA), no intuito de apreender olhares em torno do masculino e do feminino, a partir de memrias, representaes e vivncias cotidianas daqueles sujeitos.

    A nosso ver, so relevantes, trabalhos que discutam aspectos no presos especi-ficamente esfera poltica e/ou econmica na qual, as quebradeiras esto inseridas. No se trata, obviamente, de desconsiderar a produo existente que enfatiza a mobilizao e identificao, a relao com o mundo do comrcio, a constituio de cooperativas e o apoio de organismos e instituies aos trabalhadores rurais. Este um enfoque que no pode ser deixado de lado. Entretanto, na realizao deste trabalho entende-se que o sentido do babau na vida de trabalhadores rurais e agroextrativistas, especialmente das quebradeiras, embora se reporte s esferas econmica e poltica, ultrapassa-as e se relaciona a um leque considervel de pos-sibilidades de vivncias, como as relaes e dinmicas sociais tecidas em torno do gnero, bem como de construes imaginrias que permeiam a vida coletiva.

    MIQCB: mulher e s em mov im ento

    Mulheres trabalhadoras rurais e agroextrativistas se mobilizaram em fins da dca-da de 1980 e incio dos anos 1990, identificando-se coletivamente como quebradei-ras de coco e criando um movimento. Se considerarmos a perspectiva de Hobsbawm (1995), este um dos novos movimentos sociais, cujas caractersticas so a defesa ambiental e ecolgica, discusses sobre identidade tnica e questes de gnero.

    A primeira tentativa de organizao dessas mulheres foi em 1989, porm, o re-conhecimento efetivo foi em 1991, com a Articulao das Mulheres Quebradeiras de Coco Babau (AMQCB). Segundo Maria Chagas (Barros; Chagas et. al., 2004), coordenadora-geral do Movimento no Maranho, somente depois de 1995 que a articulao passou a chamar-se MIQCB. Esse movimento se concentra em quatro estados da Federao, estendendo-se [] por centenas de povoados distribudos desde o Vale do Parnaba, no Estado do Piau, at o Vale do Tocantins, nos Estados do Par e do Tocantins, atravessando diagonalmente o Estado do Ma-ranho (Almeida; 2001, p. 15). Toda essa extenso territorial est dividida em seis regionais: do Mearim, de Imperatriz e da Baixada (as trs no Maranho), do Par, do Piau e do Tocantins. Cada uma delas possui uma coordenao executiva e assessoria tcnica, apoiada por projetos com a Unio Europia, Ministrio do Meio Ambiente, ONG Po para o Mundo, entre outros.

    Dentre os trabalhos que efetuam um enfoque a partir dessas questes, destacamos: almeida (995, 200), Martins (200) e Shiraishi neto (200).

  • 3M a r g a r i D a a l V e S : C o l e t n e a S o B r e e S t u D o S r u r a i S e g n e r o

    No Maranho, especialmente, na regio do Mdio Mearim, os conflitos em defesa dos babauais impulsionaram a mobilizao de mulheres e homens tra-balhadores rurais pelo direito sobrevivncia, o que logo se estendeu reivin-dicao pela terra. Os conflitos de terra j eram recorrentes no Maranho e se acirraram no momento em que o acesso aos babauais tornou-se restrito quando da implantao da chamada Lei Sarney de Terras (No 2.979/ 17-07-1969), que respaldava a privatizao das terras pblicas do estado e incentivava a implanta-o de projetos agropecurios, que excluam as famlias rurais do acesso terra e ao extrativismo.

    A microrregio do Mdio Mearim foi marcada, entre as dcadas de 1970 e 1980, por intensos conflitos entre trabalhadores rurais e fazendeiros e/ou grileiros, quando estes passaram a proibir a extrao do coco babau, arrogando-se o direi-to de propriedade, o que desencadeou uma forte resistncia por parte daqueles trabalhadores. Antes da restrio aos babauais, o direito a terra j havia sido cerceado, limitando o espao de plantio dos trabalhadores. Entretanto, segundo lideranas do MIQCB, os homens s entraram na luta, motivados pelas reivin-dicaes das mulheres pelo extrativismo.

    A reivindicao era pelo acesso e pela no devastao dos babauais, uma vez que o corte das palmeiras, com o objetivo de coibir o trabalho extrativo e mesmo elimin-lo, passou a ser recorrente. Para as famlias rurais, essa luta era questo de sobrevivncia e tambm significava resistir violncia imposta s suas formas culturais e cotidianas de vida. Sendo assim, a violncia sofrida por esses traba-lhadores se inscreveu em sua memria e cotidianidade tanto em nvel material quanto simblico.

    As quebradeiras realizam o extrativismo do babau por meio de um sistema de uso comunal desse recurso, conforme suas necessidades e capacidades produtivas. Nesse sentido, a restrio da atividade extrativa significou, de imediato, a perda de sua autonomia no campo do trabalho. Da o perodo dos cercamentos ter sido caracterizado por elas e seus familiares como tempo do coco preso (especial-mente anos 1970 e 1980). Sobre os cercamentos, a devastao dos babauais e a reivindicao da continuidade do trabalho extrativo, os versos da msica Maria, filhos de Maria no poderiam ser mais expressivos:

    tambm chamada lei de terras do Sarney. (gonalves, 2000). o grupo Sarney, que tam-bm denominado por historiadores e outros pesquisadores de oligarquia Sarney (Costa, 2002, 998) ou dinastia Sarney (gonalves, 2000), chega ao poder poltico do estado em 966, ano em que Jos Sarney eleito governador do Maranho. Desde ento, seus familiares e aliados tm ocupado os principais cargos polticos do estado.

    5 perodo em que fazendeiros/grileiros (muitos de outros estados da Federao) se apropriaram de terras cercando-as em grandes reas (fazendas) sobretudo para a realizao de projetos agropecurios.

  • n e a D e S p e C i a l38

    No devaste o palmeiral / Deixe o coco d raiz, Eu vivo quebrando o coco / Do coco eu sou feliz.Se voc fazendeiro / Ou um grande industrial,Segure sua cabroeira [] / Eu no sou o seu rival,Mas deixe nossas palmeiras / Botar coco em seu quintal.Eu no sei toda essa histria / Nem quando ter fim,Eu s quero quebrar coco / Eu no quero o seu capim,J no basta o mal da seca / Vem a cerca contra mim.Voc dono do pasto / Do aude ou do curral,Mas no dono do coco / Nem tambm do coqueiral,Voc corta boi de corte / Mas no corte o palmeiral. (SantoS, 2004)

    Os trabalhadores falam de tempo do coco liberto e tempo do coco preso para caracterizar, respectivamente, o perodo anterior aos cercamentos e o mo-mento de ocupaes de terras por fazendeiros/grileiros, quando se iniciaram os conflitos. As famlias rurais ficaram sujeitas a manipulaes econmico-comer-ciais, j que foram implantados vrios mecanismos visando subjug-las. Ficaram submissas aos donos de barraces, sendo obrigadas a vender o coco aos fazen-deiros ou troc-lo por gneros alimentcios de primeiras necessidades.

    Os contratos extrativos mais conhecidos so o de meia, o de foro e o de ar-rendamento. Contudo, independentemente do tipo de contrato, trabalhadores faziam mutires, dos quais homens e mulheres participavam, visando quebrar a maior quantidade possvel de coco, para obter um maior rendimento ao final do trabalho. Ocorria que os fazendeiros/grileiros, alm de pagarem um valor nfimo pelo quilo do coco, adulteravam o peso do produto em seu favor. Os mecanismos de dominao da produo postos em ao pelos proprietrios, eram, portanto, uma prtica de superexplorao da fora de trabalho dos extrativistas. Ainda h casos, em que a amndoa do coco vendida a atravessadores, que compram-na por valor nfimo e lucram em cima da produo desses trabalhadores.

    Alm da explorao de seu trabalho, aquelas famlias tambm sofreram fre-qentes ameaas, sendo alguns homens vitimados em meio a esses conflitos, apesar de alguns relatos apontarem que as mulheres que negociavam com os

    6 Bando de capangas, jagunos e/ou pees que trabalham para proprietrios de terras. galpes localizados nas fazendas onde mulheres, homens e crianas quebravam coco para

    proprietrios de terras, muitas vezes esperando receber o dinheiro da venda do produto somente ao final da semana.

    8 em todos os casos, tratava-se de uma parte da produo das quebradeiras que era entregue aos proprietrios. para maior detalhamento desses contratos (Shirashi neto, 200).

    9 em alguns casos, quebradeiras e at mesmo seus companheiros foram levados a julgamento (andrade, 998).

  • 3M a r g a r i D a a l V e S : C o l e t n e a S o B r e e S t u D o S r u r a i S e g n e r o

    fazendeiros para evitar derrubada de palmeiras e que os homens ficavam afasta-dos, a fim de que no houvesse nenhum tipo de confronto direto (Andrade; Figueiredo, 2005). Algumas quebradeiras foram agredidas quando, como forma de resistncia, entravam nas propriedades e eram encontradas dentro das

    soltas10 coletando o coco. Essa realidade no distante, posto que

    h ainda casos de violncia fsica contra as quebradeiras no qual gerentes da fazenda, va-

    queiros ou encarregados submetem as mulheres a surras e violncia sexual. H ainda casos

    em que a mulher precisa roar a quinta, ou seja, limpar a rea do pasto, para ter acesso

    rea de quebra e coleta do coco. (Arajo; Carvalho; Magalhes, 2004, p. 223)

    Comumente os sujeitos sociais se valem de estratgias para vencer barreiras que lhes so impostas, e no foi diferente com as quebradeiras. O desejo coletivo dessas mulheres em enfrentar restries de fazendeiros/grileiros e as suas inicia-tivas para empatar11 a derrubada de palmeiras, buscando dialogar com proprie-trios, tomando a frente nas negociaes, incentivou a emergncia expressiva de um movimento organizado. Isso fez com que elas fossem aos poucos adquirindo representatividade.12

    Segundo Almeida (1995), a idia que se tinha quando da exploso de ocu-paes de terras e da reorientao do mercado econmico neoliberal era a de que os trabalhadores agroextrativistas se enfraqueceriam politicamente, ficando marginalizados do mercado. No entanto, quebradeiras de coco,

    atravs de um processo de intensas mobilizaes e conflitos, romperam com essa representao pictrica e usual e com a moldura do exotismo da floresta, que tradicionalmente as envolviam. Descongelaram esta imagem folclrica, quebra-ram a imobilidade iconogrfica de dcadas e se derramaram organizadamente nas estruturas do campo do poder e nos circuitos de mercado, desnaturalizando-se e afirmando sua nova condio. (Almeida, 1995, p. 18)

    Tra j e tr i a po l t i ca do MIQCB e sua s conqu i s ta s

    Tendo vivenciado lutas e mobilizaes no curso de sua trajetria, as quebradeiras de coco tiveram algumas conquistas que fortaleceram o Movimento. Dentre ou-tros aspectos, essa organizao denota um momento significativo, o da passagem

    0 reas de pastagens tambm conhecidas como quintas. termo que mais aparece nos testemunhos dos trabalhadores que vivenciaram conflitos e que

    se refere ao impedimento da derrubada de palmeiras de babau. 2 obviamente, no podemos desconsiderar a influncia da igreja catlica, atravs de padres e

    missionrios, e de intelectuais atuando direta ou indiretamente no processo de mobilizao dessas mulheres.

  • n e a D e S p e C i a l0

    dessas trabalhadoras do espao privado para o pblico e o seu reconhecimento como sujeitos polticos. O MIQCB rompe as fronteiras do espao vivencial dessas mulheres, repercutindo internacionalmente. Na medida em que a organizao foi crescendo poltica e economicamente, algumas dessas quebradeiras passaram a coordenar cooperativas e associaes polticas e vrias de suas lideranas assumi-ram a direo de sindicatos ou passaram a exercer cargos poltico-institucionais, como o de vereadoras. Luta, persistncia e conquistas so temas sempre reani-mados nos encontros do Movimento:

    Prazer enorme a gente ter tanta companheira aqui [] A gente tem uma luta muito r-

    dua, mas muito interessante pra ns [] S agenta ser coordenadora e ser quebradeira

    mulher forte, mulher de fibra [] ns nascemos em 91, em 93 ns tivemos o segundo

    [Encontro] que foi no Piau e o terceiro foi aqui, mas a maioria das quebradeiras lembra

    que a governadora era mulher [1] e a gente no foi recebida, teve em 2001 o quarto em

    Imperatriz [], mas eu j disse [] somos de fibra e no mentira.1

    Uma das conquistas das quebradeiras foi a implantao em alguns municpios, da Lei Babau Livre, que determina o uso comunal dos babauais, podendo ser um recurso explorado pelas extrativistas ainda que esteja em propriedades pri-vadas. No Maranho, so beneficiados pela Lei os municpios de Lago do Junco, Lago dos Rodrigues, Esperantinpolis, So Lus Gonzaga do Maranho, Capinzal do Norte e Imperatriz (Arajo; Carvalho; Magalhes, 2004). Mais recentemente, o municpio de Peritor tambm foi contemplado.

    A educao formal tambm tem se apresentado um instrumento importante, tambm no que tange a igualdade de gnero, pois tem sido uma alternativa educar suas crianas questionando discursos e prticas de dominao masculina, uma educao que enfatiza as diferenas entre homens e mulheres, mas busca no perpetuar desigualdades. As quebradeiras de coco vm desenvolvendo cursos de formao e capacitao de suas lideranas, o que contribui tambm para discus-ses sobre os problemas relativos mobilizao e economia do babau.

    Outro benefcio para famlias agroextrativistas no Maranho foi a criao do Programa de Educao e Alfabetizao para Jovens e Adultos em reas de Refor-ma Agrria (Pronera), fomentado pelo Ministrio de Desenvolvimento Agrrio (MDA), com apoio do Governo Federal, MST, UFMA, e Instituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria (Incra). Outros rgos que mantm constante contato com o Movimento so a Associao em reas de Assentamento do Es-

    roseana Sarney, filha de Jos Sarney, ento governadora do Maranho. Maria adelina Chagas (Barros; Chagas et al., 200), em pronunciamento de abertura no V

    encontro interestadual das Quebradeiras de Coco Babau (VeiQCB).

  • 1M a r g a r i D a a l V e S : C o l e t n e a S o B r e e S t u D o S r u r a i S e g n e r o

    tado do Maranho (Assema), o Centro de Educao e Cultura do Trabalhador Rural (Centru) e a Sociedade Maranhense de Direitos Humanos (SMDH).

    Um projeto desenvolvido junto a esses trabalhadores a produo de roas orgnicas que objetiva, dentre outras coisas, evitar o desgaste do solo. H tam-bm um estudo com plantas aromticas e medicinais que visa criar essncias de espcies nativas para a produo de leo do babau a ser comercializado no prprio Estado. E ainda, o projeto da Escola Famlia Agrcola, que oferece for-mao at a oitava srie do ensino bsico, desenvolvendo o contedo terico da escola formal e ensinando a crianas e adolescentes a histria e o modo de vida de suas mes e de seus pais.

    No Mearim maranhense h quatro cooperativas que criaram uma linha de produo e comercializao de seus produtos, o que contribui para que as quebradeiras vendam as amndoas do babau por um preo mais justo: as Co-operativas dos Pequenos Produtores Agroextrativistas de Lago do Junco, de Es-perantinpolis, de So Lus Gonzaga e de Lima Campos. A primeira exporta o leo de babau, principalmente para os Estados Unidos e Inglaterra, e a ltima utiliza o mesocarpo para a produo da farinha do babau (espcie de multimis-tura que serve para alimentar crianas e para fins medicinais). A Associao de Mulheres Trabalhadoras Rurais (AMTR), que possui aliana com o MIQCB, fabrica e comercializa sabonetes com o leo comprado da cooperativa. Outros produtos com a bandeira Babau Livre esto sendo comercializados, como o carvo cocal e a torta de babau.

    As quebradeiras de coco ganharam visibilidade na esfera da produo e co-mercializao pelo seu trabalho extrativo, pois antes, somente homens envolviam-se no processo de comercializao do babau (Martins, 2001). Os problemas ainda persistem, como mostra Almeida (2001), h um desconhecimento total da economia do babau, fazendo das quebradeiras alvo de planejamentos externos que visam apenas lucros prprios. Nas mais recentes reivindicaes do MIQCB junto aos rgos governamentais esto o desenvolvimento de tecnologias apro-priadas para a completa utilizao do babau e para a converso das amndoas em biodiesel;1 o acesso do Movimento aos programas governamentais voltados para a sade da mulher; a punio de pessoas que cometem crimes ambientais, devastando principalmente babauais, castanheiras e seringais; a desapropriao imediata de reas de conflitos que envolvem quebradeiras; a implantao de reservas extrativistas e, ainda, a garantia de livre acesso s reas de babauais.

    Quebradeiras ligadas ao MIQCB se autodefinem como corajosas, enrgicas, trabalhadoras empenhadas em alcanar seus objetivos, auto-atribuio que pode-

    5 h polticas do governo Federal que incentivam a converso de sementes de oleaginosas (mamona, girassol, soja) em biodiesel. essas polticas ainda no se voltaram para o babau, o que tem causado descontentamento por parte das quebradeiras.

  • n e a D e S p e C i a l2

    mos notar, por exemplo, nas palavras de Eunice Costa, da regional de Imperatriz, referindo-se s suas companheiras de ofcio e luta: Ns somos corajosas. Botamos muita f no nosso trabalho e outra coisa a energia que ns temos. Cada vez o Movimento t se estendendo mais.

    Gnero e i d ent idade conformando cot id i an idade s

    Gnero e identidade no universo de quebradeiras de coco babau no Maranho se inter-relacionam. Temos entendido identidade a partir da relao entre a cons-truo da imagem de si, sendo, portanto, a representao do eu que se pretende assimilada pelos outros, e a imagem que estes outros fazem daquele eu que se autodefine, como gnero constitui-se como uma categoria relacional, evidenciada em discursos e prticas, na qual dialogam construes sociohistricas e culturais acerca do masculino e do feminino.

    As relaes de gnero vivenciadas no cotidiano, em diferentes espaos e tem-pos, apontam, em geral, para complexidades e ambigidades. A realidade das quebradeiras de coco babau aqui enfocadas, no escapa a essa assertiva. Tais relaes assumem uma amplitude de questes e construes sociais a respeito do

    ser homem e do ser mulher e so perpassadas por relaes de poder, compreen-didas na perspectiva de Foucault (1993), como algo que se processa no cotidiano das sociedades e se d por meio de (re)negociaes.

    A afirmao da identidade coletiva de quebradeiras de coco vem acompa-nhando o MIQCB desde suas primeiras articulaes, chegando, por intermdio de intercmbios de experincias, a mulheres que no se vincularam a essa orga-nizao. As que participam do Movimento lutam para serem definidas tambm como trabalhadoras rurais, uma vez que, tradicionalmente, configurou-se uma imagem do trabalho rural como masculino. Analisando a constituio dos mo-vimentos sociais rurais no Brasil, observamos que

    a propriedade da terra, de carter concentrador, um dos marcos histricos mais firmes

    de excluso e de impedimento mudanas e, portanto, prpria democratizao do pas.

    Os movimentos sociais rurais tm uma histria recente, cerca de 40 anos, de luta por

    direitos bsicos de cidados com direito terra e ao trabalho. As mulheres trabalhadoras

    rurais experimentam essa excluso somada discriminao de gnero e lutam, ainda

    [] hoje, pelo direito ao reconhecimento da prpria categoria de trabalhadoras rurais

    (Farias, 2001, p. 156).

    Debates no Movimento enfatizam questes sobre a identificao dessas mu-lheres como quebradeiras de coco, quanto s estratgias desenvolvidas por elas em defesa do meio ambiente e tambm a respeito de suas experincias em uma

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    sociedade dividida em gneros, na qual, em grande proporo, as mulheres foram e so silenciadas e esquecidas.

    Muitas produes musicais e artsticas que, embora geralmente tenham au-torias individuais, so (re)apropriadas recebendo significado coletivo impresso na historicidade e cotidianidade dessas mulheres. A Msica do Movimento, por exemplo, um de tantos cantos que enfatiza a afirmao da identidade de quebradeiras de coco, bem como a sua integrao coletiva nos quatro Estados em que atua o Movimento:

    Eu sou quebradeira, eu sou quebradeira e vim para lutarPelos meus direitos, pelos meus direitos vim reivindicarMais educao e sade pra toda nao.Eu sou quebradeira, sou mulher guerreira e venho do serto. No Tocantins tem quebradeira, no Piau tem quebradeira, l no Par tem quebradeira, no Maranho esto as quebradeiras. (VEIQCB, 2004)

    A identificao com o trabalho por parte dessas extrativistas fundamental para manter viva e intensa a sua mobilizao, reforando a luta para obter polti-cas pblicas em prol dos trabalhadores rurais. Desse ponto de vista, a valorizao de uma identidade grupal foi fundamental para que essas mulheres buscassem ca-minhos para atingir seus objetivos. Elas almejam ainda, alcanar representativida-de dentro de uma sociedade onde as condies tnico-racial e de gnero apontam para a excluso de muitos e incluso de poucos, como ntido no que diz Maria Chagas (Barros; Chagas et. al., 2004) a respeito de si e de suas companheiras de luta: At