Livro Cinzas do Sol · 2018-07-24 · Tenho medo deste jogo que anuncia a noite como uma náusea...

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CINZAS DO SOL

1991

Me falam de Deus ou me falam da História. Rio-me de se ir buscar tão longe a explicação da fome que me devora,

a fome de viver como o sol na graça do ar, eternamente.

Gonzalo Rojas

A Lilia

A SÓS COM LILIA

Tenho me descoberto minha própria inimiga, quanto mais toco minha intimidade. Estes últimos sinais que tenho recebido: leitura de Georges. Todo aquele riso rasgando as relvas de minha alma. O pavor de ficar sozinha. Não haver a sombra de um só arbusto onde repousar a solidão. A sós entre minhas sombras me sinto esmagada. Protejo-me desconhecendo-me. Porém as palavras de Georges me deixam tonta. Querem que eu me satisfaça com meu fracasso. Que eu me esgote de tanto ser enquanto me destruo. Tenho medo deste jogo que anuncia a noite como uma náusea infinita. Sou meu próprio fim. Encho-me de dor.

LAZARUS

Saio de ti a desordem instalada em teu corpo. Um único gesto evoca o declínio de tua existência. Os tempos estão tomados de torpor. Minha única chance é mesmo acabar contigo. Cruzo as ruas entre bombas. O planeta tem mil guetos que o massacram. Ridículo dizer que do pó de teu sangue ressurgirei. Vivemos esperando outra coisa da vida. Um pouco mais de fundamento talvez na própria debilidade dos dias. Tanta resignação me assusta. Entre um disparo e outro me embriago. Em segredo, todo conhecimento se revela angustiado. Saio de ti: flecha disparada a esmo.

LIVRO DE ÂNGELA

Deitas teu corpo sobre o meu: fragmentos do infinito. A taça de brandy enquanto releio anotações de nossos dias juntos. Rabisco algo. Sinto frio diante do silêncio. O desafio da criação nos reduz ao inevitável. Nossas vidas estão repletas de pequenos desastres. Tenho consciência de tua morte a cada tremor de teu corpo. O gozo me furta a chave de novos sofrimentos. Sou tua sagração. Tua linguagem que desaparece a cada palavra que escrevo. Também a noite suprime a simplicidade dos corpos que buscam refúgio em sua arca. Se concordas comigo é o fim.

EVOCAÇÕES DE ANTONIO

Jamais abandones o interrogatório. Indagar sobre o vazio. Até que ponto o espírito retém em si o essencial? Que outra verdade o homem opõe a Deus? Livre de seus braços posso ordenar o destino conforme meu desejo. As evidências cegam. A que aspira tal posição? Quanto mais provisória a lucidez mais adverte contra a vaidade da existência. Ideais tornam a razão inacessível. O recurso à ordem é ingênuo? Duplicar significados é isolar a consciência. O desejo é carnal. Sua fonte, a superação dos sentidos. Que desafio o levaria à renúncia de seus dons? A negação é a condição do ser. Sou um observador.

GABRIEL RINDO DE SI MESMO

Toquei uma a uma as falhas de meu suplício. O ponto de desequilíbrio que não pude exaltar. Meus limites me levam à ruína. Precipito-me em um deserto que me fere. Que requer de mim defeitos além de meu pobre rigor. Tudo em mim entra como uma morte que me queima. Como as palavras em brasa de Davi. A força cega dos elementos sujeitos à queda eterna. Imagens de meu suplício se fragmentam mudas diante de mim. Êxtase risível. Sou conduzido pelas visões do espanto que me sacrifica. Nada responde à surda catástrofe de meus dias. Apenas a selvagem beatitude que me arrasa.

PESADELOS DE DIANA

A imensidão de minha angústia me fez tocar tua pele. Desamparada entre cinzas mal contive a sucessão violenta de meus atos. Teu grito assustado como uma loba ferida em plena escuridão. Jogarei com tal susto até o abismo de teu gozo. A língua em teu sangue. A loba recuperando seus olhos hipnóticos. Duas fêmeas entregues ao furor da sorte. Desfalecida embriaguez de nossos destinos. Mordo os dedos de tua mão. Me ajudas a ficar só, esquecendo quem sou. Entre soluços a vida prossegue nos ferimentos que te faço. Tento não imaginar nada. Até que teu grito me encharca. Loba dando voltas na noite de minha angústia.

ESCULTOR

Um constante erro humano: acreditar na conclusão de seus caprichos. Os devaneios são a medida de nossa verdade inatingível. O segredo das coisas é o vazio das fórmulas que as guardam. Miguel esculpia pedras. Delirantes granitos de sua vaidade. Um animalzinho de Deus comia à sua mão. Ao sentir-se tomado pelo obscuro expunha seu coração de argila. O perigo era o peso das pedras desabando sobre suas mãos. As divindades de pedra que seu sacrifício exaltava. Entregue ao absoluto, Miguel parecia um imbecil. Há um ponto em que toda catástrofe é natural.

CARVÕES DE EDUARDO

Contemplo a máscara de suas ações. A inconcebível face em que seus mortos denunciam as linhas de um artifício fugaz. Os rostos sempre falam demais. Um único traço e seus planos se revelam. A loucura finca espelhos no deserto. Me espantam os meios. Nossa estratégia de permanência no útero do caos. Nada me apavora tanto quanto a miséria de nosso trabalho na terra. Indesejável como toda ocupação. Nunca saberemos a moral de tantos rostos. Reconhecemos com todo o corpo os lugares em que estivemos. Toda essência sangra. Como feridas do absurdo. Trazemos no rosto as marcas dos acidentes. A mortuária máscara que exige de nós a beleza elementar.

CARTAS DE ADRIANO

Tenho recebido tuas cartas. Transformamos a vida de encanto a engano. A relativa alegria do mundo é pura impotência. Ando pelas ruas como se ardesse em uma eterna fogueira. Tuas palavras ecoam em meu espírito. Eras bela e em ti eu respirava a doçura do abismo. Lembro o quanto nos amávamos sem tormento. A queda dos corpos tem ocupado nossas vidas em recolher restos. Esgotamos nossas forças nesta tarefa. Não há limites para a morte quando deixamos de rir. Meu corpo não vê nada. Sigo como que arrastado pela memória. Sem respostas. Como tuas cartas.

AGONIA DE DAVI

Esta noite refiz as últimas páginas. A mão de Hécate sobre o livro aberto. Assim tão nua a escuridão me enfurecia. Nudez capaz de matar um deus. Ao seu redor a arquitetura gloriosa dos desastres que forjam a base de toda existência humana. A sangrenta alma do mundo. O olhar de Hécate me indica o abismo onde devo me esgotar. Ávido vazio onde paixão e horror procriam suas criaturas carregadas de ódio. Fui relendo cada página de seu corpo satisfeito. Sua nudez confundia jogo e inocência. Tive que gritar. Com o fulgor de um abismo que se refaz a si mesmo: um único fio de cega luz e o livro um vasto espólio das mentiras tão essenciais à vida quanto o amor.

FLOR NO CABELO DE LILIA

Há um tempo em que não nos resta senão cedermos aos caprichos de nossa natureza. Amamos de outra maneira. O desejo se disfarça em total abandono. É possível tocar o rosto do abismo. Tremo quando penso no inconfundível carinho deste momento. A luz de um candeeiro no quarto. A morte é a queda de um sonho. Grito ao abismo que não sou quem sou. Seus beijos me deixam nua. Jamais acreditará em mim. Nega-me como em vida os filhos o fizeram. Sua paixão por mim é minha ruína. Já não busco senão afagar a flor em meu cabelo.

UMA CRIADA DE ERZSÉBET

Seu rosto de pedra despertava a luxúria de uma deusa. Repetia seu nome entre ervas e o sangue de outras moças em sua taça. Sou sua incidência mais eventual. Amo a vertigem desta estranha mulher que nos mata uma a uma. No banho, Amy ouve a senhora: estes animaizinhos que sangro me esvaziam como um céu perdendo suas estrelas. A pele abrindo-se como um riso. A febre de uma mulher que não se contém em si. Amy dissimulada entre a crueldade excessiva de Erzsébet. A evidência é a miséria dos seres. Sirvo-lhe a taça escarlate todas as manhãs antes do banho.

UMA ÚLTIMA TAÇA COM LILIA

O corpo seduzido pela embriagadora inércia. Não há como não pensar a que espécie de mundo pertenço. O abuso de utopias a tudo desfigura. Deus é um livro que já não posso ler. Toda verdade me parece hoje postiça. Alguém suspirando na escuridão. Um imenso lagarto com sua língua voluptuosa por trás de todo orgulho. Algo me diz que a imortalidade é monstruosa. A dialética de todo crime reside no riso lançado sobre a vítima. Pintei meus cabelos durante toda a velhice. Acreditei poder suprimir a morte. Minha cabeça encostada no céu é minha afirmação final da comicidade de nossas vidas. Somente Deus adoraria sua própria morte.