Livro Chave - Um Rigor Outro, De Pimentel, Macedo e Galeffi

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UM RIGOR OUTROSobre a questo da qualidade na pesquisa qualitativaEducao e Cincias Antropossociais

UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA Reitor Naomar Monteiro de Almeida Filho Vice Reitor Francisco Jos Gomes Mesquita

EDITORA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

Diretora Flvia Goullart Mota Garcia RosaCONSELHO EDITORIAL

Titulares ngelo Szaniecki Perret Serpa Caiuby Alves da Costa Charbel Nin El-Hani Dante Eustachio Lucchesi Ramacciotti Jos Teixeira Cavalcante Filho Maria do Carmo Soares Freitas Suplentes Alberto Brum Novaes Antnio Fernando Guerreiro de Freitas Armindo Jorge de Carvalho Bio Evelina de Carvalho S Hoisel Cleise Furtado Mendes Maria Vidal de Negreiros Camargo

UM RIGOR OUTROSobre a questo da qualidade na pesquisa qualitativaEducao e Cincias Antropossociais

Roberto Sidnei Macedo Dante Galeffi lamo Pimentel

Salvador 2009

2009, by autores Direitos para esta edio cedidos EDUFBA. Feito o depsito legal. PROJETO GRFICO & DIAGRAMAO Genilson Lima Santos IMAGEM DE CAPA Concepo artstica de Dante Augusto Galeffi. REVISO DE TEXTO Os autores Magel Castilho de Carvalho

Sistema de Bibliotecas - UFBAMacedo, Roberto Sidnei. Um rigor outro sobre a qualidade na pesquisa qualitativa : educao e cincias humanas / Roberto Sidnei Macedo, Dante Galeffi, lamo Pimentel ; prefcio Remi Hess. - Salvador : EDUFBA, 2009. 174 p. : il. ISBN 978-85-232-0636-9 1. Pesquisa qualitativa. 2. Educao. 3. Cincias sociais. 4. Etnologia. I. Galeffi, Dante. II. Pimentel, lamo. III. Ttulo.

CDD - 370

Editora filiada :

EDUFBARua Baro de Jeremoabo, s/n Campus de Ondina, Salvador BahiaCEP 40170 115Tel/fax 71 3283 6164 [email protected]

SUMRIO

PREFCIO9Remi Hess

1 O RIGOR NAS PESQUISAS QUALITATIVAS: UMA ABORDAGEM FENOMENOLGICA EM CHAVE TRANSDISCIPLINARDante Galeffi Abrindo a cena13 Definindo pesquisa qualitativa16 A base fenomenolgica no rigor da palavra20 A abordagem transdisciplinar do conhecimento humano26 Traos de uma fenomenologia prpria e apropriada31 O rigor da qualidade e a qualidade do rigor38 O esboo genealgico da pesquisa qualitativa46 Validade epistemolgica da pesquisa qualitativa e seu meio articulado universal51 Poltica, economia e tica da pesquisa qualitativa: limites da conscincia e da inconscincia58 ltimas palavras necessariamente inconclusas64

2 OUTRAS LUZES: UM RIGOR INTERCRTICO PARA UMA ETNOPESQUISA POLTICARoberto Sidnei Macedo Problematizaes introdutrias75 A compreenso como ato de rigor87 Da concepo realizao da investigao qualitativa: possveis caminhos para a construo de um rigor fecundo88 Rigor e o projeto de pesquisa89 Rigor terico91 Rigor e a construo dos dados93 Rigor hermenutico e heurstico nas pesquisas qualitativas96 Olhares epistemolgicos crtico-plurais e o rigor107 A funo da crtica nas pesquisas qualitativas109 A crtica aos excessos iluministas e a emergncia de uma Hermenutica Intercrtica111 H um rigor especfico na etnopesquisa crtica114 A etnopesquisa-ao no perde em rigor. H um rigor outro em ao!115 A pesquisa como bricolagem: rigor e inveno119 Rigor e a comunicao escrita na pesquisa qualitativa121

3 CONSIDERAES SOBRE A AUTORIDADE E O RIGOR NAS ETNOGRAFIAS DA EDUCAOlamo Pimentel Experincia, pertencimento e a legitimidade do vivido127 A etnografia como autorizao do olhar e da escuta136 A conversao como processo de identificao142 A escrita etnogrfica como dimenso tica do estar-junto149 Etnografia e educao popular156 A favor do reconhecimento do outro na pesquisa e na educao160

PREFCIOTenho a compreenso de que a minha relao com a pesquisa no a mesma de certos colegas que cultivam uma perspectiva cientificista. Estes colegas podero julgar que estou errado em orientar pesquisas de estudantes que investem nas suas implicaes relacionadas a prticas sociais, por exemplo. Mas a, creio eu, sendo vocao da universidade produzir conhecimento socialmente referenciado, essencial que essa instituio conceda um espao aos profissionais que desejam capitalizar suas experincias, teorizando-as. A elaborao da experincia pedaggica sempre teve seu lugar, desde 1808, na corrente da pedagogia humanista (geistwissenschaftpdagogik). A hermenutica (Schleiermacher, Dilthey, Weniger, Nohl, Gadamer) um produto desta corrente, ainda rara na construo das cincias da educao. Melhor do que todas as outras posturas na relao com o conhecimento, a hermenutica nos permite a apropriao do campo da educao e da complexidade das situaes pedaggicas. O cientificismo, tendo a tendncia de reduzir a complexidade do real a algumas variveis mensurveis, nutre um gosto secular em frequentemente omitir a realidade prtica. Quantos professores, aps uma leitura cientificistareprodutivista de Bourdieu, entregaram os pontos diante de estudantes de origem social modesta.Uma vez que a sociologia teria dito que a reproduo real, por que aprovar um es9

tudante que no tenha biblioteca em casa? foi o que eu ouvi em uma sala de provas em Cherleville, onde trabalhei pela primeira vez como professor. Compreendo, ainda, que a cincia uma matria-prima importante a ser apropriada no momento da pesquisa universitria, no mais que isto. Participam deste trabalho de pesquisa outros fatores numerosos. Vale dizer que, em meu trabalho com a pesquisa universitria, tenho ensejado lugar tradio do que os alemes chamam de bildung (formao, imagem, forma). Com essa inspirao, retiro da minha prtica de professor-pesquisador qualquer possibilidade da cegueira cientificista, porque entendo que a habita a misria da cincia produzida pela estreiteza poltico-espistemolgica do seu olhar e de suas lgicas. preciso dizer que as cincias humanas s esto no seu comeo. Ainda h muito a ser inventado para chegar complexidade da constituio das suas formas identitrias de rigor. Todo o trabalho de Jacques Ardoino, por exemplo, sobre a multirreferencialidade em cincias da educao, e de pesquisadores brasileiros como Macedo, Borba, Barbosa e Burnham, utilizando esse conceito nos campo do currculo e da formao, tem sido uma forma de reinventar as questes da Geistwissenschaftpdagogie (pedagogia das cincias do esprito). nestes termos que quero macropontuar que me engajo, me implico e me inspiro, como sempre me recomendara Henri Lefbvre, no trabalho de constituio de um rigor outro, como apresentam neste livro meus colegas brasileiros Roberto Sidnei Macedo, lamo Pimentel e Dante Galeffi, porque entendo que10Prefcio

no momento eles fazem parte de forma engajada e implicada, da reexistncia que no mundo no baixa a guarda para uma idia de universidade e para um modelo de pesquisa pautados nas recomendaes instrumentalistas de Bobbit, forjadas no instrumentalismo educacional do incio do sculo passado, ou seja: a universidade e seu currculo deveriam se organizar como uma linha de produo de uma indstria. Ou como percebe hoje a onda financista e pragmatista, que prega de forma dogmtica a reduo da pesquisa universitria ao atendimento de encomendas e de palavras de ordem das agncias de financiamento e suas (p)referncias, trazendo consigo a mais baixa ignorncia do que seja a universidade cultural, histrica e criticamente construda. Felicitaes, colegas. preciso, neste momento de reexistncia ao obscurantismo universitrio, macropontuar com nossas diferenas, a nossa crena aqui argumentada num rigor outro, levando em conta o modelo de universidade que caminha para se oficializar, para se normatizar. Paris, 18 de junho de 2009. Remi HessDepartamento de Cincias da Educao Universidade de Paris Vicenne Saint-Denis

Remi Hess11

1 O RIGOR NAS PESQUISAS QUALITATIVAS: UMA ABORDAGEM FENOMENOLGICA EM CHAVE TRANSDISCIPLINARDante Augusto Galeffi

Abrindo a cenaO que em geral compreendido nos meios de produo acadmica por pesquisa qualitativa e quais so os seus fundamentos legais e legtimos, capazes de garantir a validade epistemolgica de suas intenes e consequncias prticas, de seus efeitos e resultados funcionais? Qual o campo de atuao epistemolgica da pesquisa qualitativa e quais so os seus conceitos geradores, seus instrumentos operadores, seus atributos consistentes, sua poltica e economia de atuao na sociedade, sua conscincia e inconscincia de si, sua tica propriamente dita? Essas questes do o tom investigativo do presente ensaio, que tem como mira a elucidao do rigor metodolgico e epistemolgico de toda pesquisa qualitativa desejante e decidida, rigorosamente, a realizar o processo de desenvolvimento do conhecimento humano em sua dinmica gerativa e em sua organizao vital, em sua natureza histrica e existencial, e em

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seu modo de comportamento conjuntural e complexo abarcando os diversos nveis de constituio formal e no-formal da realidade, as estruturas formadas e formantes, a natureza naturada e a natureza naturante 1. Tudo isso rene a possibilidade de uma epistemologia da pesquisa qualitativa configurada a partir das experincias humanas de auto-socio-eco-organizao-desorganigao-reorganizao2, experincias refletidas e apropriadas no labor da compreenso articuladora que conjuga as possibilidades e efetividades disponveis na consecuo de um conhecimento a servio do ser humano e suas relaes de pertena e comumresponsabilidade com a totalidade vivente. Tudo isso requisita um aprendizado novo assentado e consolidado na totalidadevivente, que constitui o conjunto universo de tudo o que e de nada que no , na perspectiva humana, reunindo em si formas de espacialidade e temporalidade funcional do crebro humano e sua co-relao com o corpo e a mente, o interior e o exterior, o subjetivo e o objetivo, o imanente e o transcendente. Assim, pode-se dizer que tudo o que j veio de antes e vai para um depois, e tudo o que vem depois s vem por meio de um antes e um durante que sempre chega depois. Todo depois tem um antes, e todo antes sempre alcanado atravs de outra coisa, que tem em si igualmente um antes e um depois. Essa evocao jocosa apresenta o carter histrico e vivo de toda pesquisa dita cientfica, assim como de todo processo natural e humano, o que requer previamente uma localizao histrica especfica, aquela da gnese e estado atual da cincia qualitativa e suas relaes de identidade e diferena com a cincia quantitativa.14O rigor nas pesquisas qualitativas

preciso, assim, empreender um movimento de consistenciao da pesquisa qualitativa, de modo que seja possvel revelar a sua serventia e a sua dinmica gerativa no tecido vivo das relaes existenciais societrias atuais, segundo contextos especficos e condies materiais e espirituais favorveis. Trata-se de se procurar elucidar a natureza rigorosa da pesquisa qualitativa, a partir da atitude existencial e epistemolgica do pesquisador em seu contexto de vida, segundo seus diversos nveis de constituio e de realidade, percebidos e elucidados na autocompreenso e na compreenso compartilhada de sua condio histrica sua gnese como indivduo, sociedade e espcie seu ser-a como dado e seu ser-outro como acontecimento voltil aberto no tempo instante. O movimento do presente texto se caracteriza por uma elucidao radical das condies, dos limites e das possibilidades da pesquisa qualitativa de natureza fenomenolgica, compreendendo-se por fenomenologia o esforo do pensamento humano em conectar-se com a totalidade do vivido e do vivente, tendo-se em vista a autoconduo responsvel e consequente da vida de relao presente. Cumpre, ento, atualizar a potencialidade das questes prementes, que reclamam o seu quinho na economia e na poltica da vida de relao, tendo-se em vista um estado de fluidificao das estruturas sedimentadas, que sem isso correriam o risco da desarticulao e fragmentao progressiva e letal. No desenrolar das consideraes aqui expressas, procuro puxar e conduzir os fios tensivos expressos nas questes iniciais, como modo de aproximao de uma compreenso epistemolgica articulada em totalidades segmentrias3, ouDante Augusto Galeffi15

momentos de totalizao de todos os nveis de constituio da experincia e que tm como seu campo experimental a percepo mesma de uma cincia qualitativa articulada como corpus metodolgico a servio da transformao humana qualificada. Uma transformao que implica em uma cincia do agir e do comportamento propriamente humano em toda a sua extenso e diversidade matricial. Desse modo, o texto segue as perguntas iniciais em seu desenvolvimento intencionalmente dialgico, o que acarreta uma especial e sofisticada operao da mente humana conjugada com sua corporeidade maqunica e pensante simultaneamente, delimitando um campo de pesquisa distinto daquele baseado na fsica da matria observvel e, portanto, logicamente consistente e idntico em toda extenso do fenmeno material. Estou me referindo matematizao e geometrizao como meios de descrio da realidade objetiva, independente dos juzos e afetos humanos. Justo outra coisa caracteriza a pesquisa qualitativa, que no pode deixar de lado o sujeito humano e suas peculiaridades transcendentais, o que permite compreender a facticidade de tal pesquisa e sua elaborao conceitual avanada, assim como suas consequncias ticas, no sentido da radical e inalienvel liberdade conjuntural.

Definindo pesquisa qualitativaO qualificativo de uma pesquisa indica, de modo imediato, a historicidade de sua rea de atuao e sua distino em relao a16O rigor nas pesquisas qualitativas

outras formas de pesquisa. A terminologia pesquisa qualitativa logicamente distinta de pesquisa quantitativa. O qualificativo aqui faz toda a diferena. De modo veloz, busco compreender a gnese epistemolgica da pesquisa qualitativa e sua relao direta com a gnese das cincias fsico-matemticas modernas. Isso significa no desconhecer a historicidade do que se pode chamar de pesquisa qualitativa qualificada, porque est em jogo uma disputa longamente sedimentada entre o modelo fsico-matemtico de realidade objetiva e o modelo complexo de realidade objetiva-subjetiva que inere ao ser humano discernir e elaborar criativamente ao infinito, por necessidade vital e no por veleidade ou acaso. Assim, vou aqui procurar fazer um esforo de sntese conceitual da histria da pesquisa qualitativa, porque no esse o lugar para se investigar o passado da cincia humana do ponto de vista da especializao historiogrfica, e sim o lugar de reinventar a cincia para usufruto das necessidades relativas existncia humana universal instante, o que nunca pode ser um lugar comum, uma mera repetio mecnica de operaes modelares ideais, pois compreende o funcionamento atual dos organismos autoreflexivos em seus processos de retroao contnuos, compreendendo-se tanto o carter computante do crebro unido ao carter sensvel do corpo, quanto o carter cogitante da mente. A inteno prefigurada busca esclarecer as estruturas subjacentes dos sentidos humanos em toda a sua complexidade (intensidade, extenso e intencionalidade naturada e naturante), a partir do material disponvel e j formado biolgica e culturalmente, que constitui o ponto de chegada e o pontoDante Augusto Galeffi17

de partida de toda formao de senso cientfico ou epistemolgico do presente instante da histria humana em sua prvia condio natural e em sua saga cultural aberta no tempo da incerteza e da indeterminao. Ora, estamos diante do que se pode chamar de advento da racionalidade supostamente liberta do jugo metafsico onto-teo-lgico, em oposio tradio epistemolgica e filosfica do Ocidente como matriz originria das relaes ideais entre o ser (incluindo o humano), Deus e o meio lgico de elucidao e deduo compreensivas. Esse advento teve impulso nas cincias fsico-matemticas, tambm chamadas de cincias da natureza justamente por tratarem das grandezas discretas e regulares dos eventos observveis e mensurveis em suas regularidades naturais. Sem dvida que h diversos estgios no desenvolvimento da racionalidade humana, mas inegvel que sem a elaborao de snteses compreensivas que partam de um ponto de incio, no h maneira de se atualizar o sentido dos eventos concatenados e relacionados s emergncias do presente vivo. Todo material passado, ento, de pouco vale para a elaborao de uma cincia qualitativa que invente e constitua o seu prprio rigor, como o rigor foi inventado na cincia quantitativa atravs de procedimentos metdicos, regras e princpios gerais. E se parece haver uma unidade metafsica ideal nas cincias fsico-matemticas, isso no ocorre nas cincias qualitativas, tambm chamadas de cincias humanas, na mesma proporo e intensidade como se a fsica e a matemtica no fossem cincias humanas, pelo fato de tratarem exclusivamente de grandezas discretas ide-

18O rigor nas pesquisas qualitativas

almente concebidas, pelo menos do ponto de vista da fsica atomista e determinista. Diante do quadro da diferenciao das cincias entre cincias da natureza e cincias do homem, h enormes lacunas que requisitam investigaes apropriadas e isentas do partidarismo corriqueiro e da disputa pela maior e mais perfeita validade epistemolgica. Antes de fazer defesas em prol de uma das faces preciso indagar radicalmente acerca da constituio que nos habilita a formular proposies e a inferir juzos e a produzir conceitos de qualquer natureza ou espcie. Esse movimento de indagao contrrio a qualquer separao entre quantitativo e qualitativo, objetivo e subjetivo, mente e corpo, pois a separao uma construo cultural e o que se quer saber diz respeito totalidade vivente que cada um de ns abriga, independentemente do grau de compreenso e da explicao que se possa vir a alcanar em qualquer movimento de atualizao dos dados imediatos da conscincia. estpido negar o poder da cincia positiva em sua efetividade histrica. contraditrio invalidar aquilo que fundamenta todo o desenvolvimento tecnolgico da humanidade at hoje, com toda a ambiguidade desse desenvolvimento. Assim, no se trata de contrapor mtodos e fazer a apologia de um deles, e sim de investigar radicalmente a natureza do conhecimento humano, o que nunca pode garantir nenhum alcance definitivo, porque uma produo humana e o ser humano encontra-se sempre perspectivado e enraizado no passado mais distante, a perder de vista, assim como tambm se acha sempre em uma condio j dada que o projeta em pos-

Dante Augusto Galeffi19

sibilidades ainda no dadas. Por isso a natureza humana que deve por primeiro ser investigada quando se queira conhecer a natureza do conhecimento. Esse deve ser o ponto de partida radical de toda cincia concebida e produzida por humanos historicamente consistentes.

A base fenomenolgica no rigor da palavraPara que se possa tratar da natureza efetiva do conhecimento humano no possvel escapar de si mesmo. Eis o impasse da luta titnica, portanto ainda mtica, entre uma dita cincia dura e uma chamada cincia mole, valendo o duro como consistente e objetivo, e o mole como inconsistente e errtico ou subjetivo. Contudo, til sempre lembrar que somente uma cincia malevel pode atravessar a rigidez da mente calculadora condicionada que fundamenta a pretenso atomista de reduzir tudo ao clculo e mensurao operacional e controladora. Como se a existncia de um mundo ideal todo perfeito e esfericamente matematizado e geometrizado fosse uma evidncia apodtica em si, s refutvel na mente defeituosa dos sujeitos humanos comuns e ignorantes do conhecimento evidente por si mesmo. Nessa perspectiva, que uma tendncia inercial forte e predominante, como se existissem duas espcies de humanos: os iluminados e os entrevados, os senhores e os escravos, os ricos e os pobres, os inteligentes e os idiotas. Usando a terminologia de Edgar Morin (2005a, 2005b), haveria um homo sapiens e um homo demens em oposio permanente, um modelo perfeito e uma cpia defeituosa, uma verdade apodtica e uma mentira retrica e demonaca.20O rigor nas pesquisas qualitativas

De modo geral, todos ns estamos presos ao modelo de conhecimento baseado em polarizaes metafsicas. E essa priso to profunda e desconhecida que para venc-la preciso deixar ser a luz da manh a guardi da morada humana e a luz da noite a protetora maior que a tudo recolhe e faz renascer no alvorecer. Sim, h tambm o entardecer e o anoitecer da durao da vida de entes existenciais particulares e aglomerados em famlias e agrupamentos sociais de todo tipo. O ser humano, afinal, h que se haver com sua finitude vital. Em chave fenomenolgica prpria e apropriada, preciso pensar o humano em sua condio existencial individual, social e ecolgica simultaneamente. preciso investigar o humano em sua sabedoria e em sua demncia como partes da mesma unidade-diversa. O humano ao mesmo tempo sapiens-demens. Sabedoria e demncia, ordem e desordem so os opostos complementares do fenmeno da conscincia e da inconscincia de si, e se pode supor que perpassam a totalidade de tudo o que ente no ser que se percebe. No jogo incessante entre sabedoria e demncia, o ser humano o ente que por primeiro h de ser interrogado quando se trata de investigar a natureza do prprio conhecimento a disponvel e construdo historicamente por indivduos humanos agrupados socialmente. De certa maneira, essa questo j se encontra no Heidegger de Ser e tempo (1994, 1995), quando este postula em sua analtica existencial da presena, o questionamento do ser humano sobre si mesmo como ponto determinante de sua hermenutica da facticidade, sem o que a investigao ontolgica de base fenomenolgica se perderia facilmente diante do poder sedutor da razo clara e distinta, e no faria nenhum sentido interrogar e duvidar, perguntarDante Augusto Galeffi21

e procurar saber por que assim e no assando, por que isso e no aquilo. No valeria a pena empreender todo o caminho do conhecimento construdo at ento a partir de si mesmo como indivduo da espcie humana. Tudo j estaria dado, bastando apenas adequar-se e aprender direitinho o caminho da sabedoria, sempre to claro, sempre to distinto. Como se o conhecimento humano no fosse uma errncia inevitvel e necessria. Como se tudo j estivesse esclarecido desde o tempo dos grandes sbios. Em meu perspectivismo radical, quem aceita essa condio dada, nega a si mesmo a possibilidade de experienciar a elucidao radical da natureza do conhecimento humano, a partir de si mesmo. Mas como isso possvel sem ser ambguo e errtico? Assim, em ns mesmos que haveremos de buscar primeiro a natureza do conhecimento humano, e isso segundo nossos prprios limites corporais e mentais, perceptuais e conceituais, sempre necessariamente determinados e agenciados em algum momento da histria da espcie humana, por meio de indivduos criadores e-ou indivduos destruidores. De imediato, esse movimento de retorno a si mesmo se mostra abstrato e ineficaz caso no seja ativado por cada um em si mesmo. Quer dizer, o que se deve investigar de incio a natureza humana do prprio conhecimento, portanto, o conhecimento que em cada um de ns se encontra j atualizado como horizonte existencial concreto, isto , como conscincia encarnada individual e pessoal. H mtodos j desenvolvidos nesse movimento de anlise dos dados imediatos da conscincia. Muitos e muitos caminhos j foram percorridos na construo analtico-reflexiva do mtodo22O rigor nas pesquisas qualitativas

eidtico puro ou aplicado, mas nenhum deles servir exatamente para nenhum de ns, porque h um abismo entre quilo que se encontra formalizado fora de ns, e que no depende de nossa vontade, e aquilo que se encontra dentro de ns, e que tambm no depende da nossa vontade. O dentro e o fora nos do a medida da relao entre o que est posto e o que se pode pr entre parntesis. necessrio, assim, comear por duvidar de tudo, em um esforo imaginativo inicial abstrato, mesmo se no necessariamente completo em sua radicalidade de princpio. Pois a radicalidade h de ser alcanada por esforo e desejo prprios, e no por decreto ou por vontade alheia nossa. Afinal, o sentido prprio do conhecimento humano se realiza na existncia livre. Sigo, desse modo, os passos fenomenolgicos de Edmund Husserl (1949, 1961, 1990, 2002), que seguiu, por seu turno, os passos de Descartes (1989), que seguiu os passos dos filsofos que o antecederam. Como afirma Husserl em Die Krisis der europischen Wissenhaften und die transzendetale Phnomenologie (A crise das cincias europias e a fenomenologia transcendental):Como sabemos, Cartesio tem atrs de si a histria da filosofia, uma comunidade de filsofos que remonta at Tales. Mas Cartesio recomea do incio. Ns filsofos do presente, deste presente filosfico, recomeamos tambm do incio e refletimos sobre os motivos da insatisfao filosfica presente, sobre a insatisfao da humanidade atual em relao nossa filosofia, e sobre a nossa insatisfao diante da sempre maior

Dante Augusto Galeffi23

multiplicidade das filosofias uma multiplicidade que repugnante ao sentido da filosofia. Esta insatisfao contm alguns motivos que nos podem induzir a encaminhar uma considerao histrica, a considerar o nosso presente filosfico como um presente na histria da filosofia e a despertar a recordao histrica dos nossos progenitores filosficos.4 (HUSSERL, 1961, p. 410)

De modo inspirado nessa evocao de Husserl, ningum pode fugir de uma rememorao apropriada da histria que nos antecede, e ningum pode abdicar dos progenitores das formas de pensamento que esto disponveis a todos e que servem de base para qualquer exerccio epistemolgico atual, seja ele forte, fraco ou hbrido. Comecemos, ento, do inicio. Como Husserl, faamos um retorno radical sobre ns mesmos, sabendo ser esta uma operao muito mais imaginante do que ainda propriamente conceitual. E os conceitos, como se sabe, no se confundem com as noes e generalizaes oriundas das formaes de sentidos j dadas tradicionalmente e que aparecem nas formas espontneas de computao cerebral de todo indivduo pertencente espcie humana. Como que isso possvel outra histria muito difcil de ser encarada e contada, porque nos faltam meios apropriados para redescrever a gnese exata de nossas idias e noes inatas e adquiridas. De todo modo, no rigor do sentido fenomenolgico aqui incorporado, preciso perder por primeiro a crena em uma verdade-mundo j consolidada e definitiva, para que o mundo seja reconquistado por ns em seu vigor originante. Ora, isso no se pode fazer sem a certeza de que se trata de algo vlido e fundamental na elucidao da natureza do conhecimento24O rigor nas pesquisas qualitativas

humano, sempre evidentemente a partir da experincia transcendental que se alcana como acontecimento prprio e apropriado. deixando de lado nossa crena ingnua no mundo real e-ou ideal que se pode alcanar uma elaborao crtica que satisfaa a requisio de uma cincia articuladora da totalidade vivente, mesmo se agora a totalidadevivente5 aparea como horizonte provisrio delimitador da reunio de todo o conhecido e de todo o desconhecido da existncia humana em suas individuaes, interindividuaes e transindividuaes6 pontuais, que englobam o passado, o presente e futuro do existente. Isso diz respeito trade constituidora de uma cincia da conscincia da conscincia e da inconscincia, uma cincia que se confunde com a produo da vida espiritual dos indivduos amantes de um saber ser e de um saber fazer que no deixe de lado um saber no-ser e um saber no-fazer. Tudo isso nos projeta em um campo de possibilidades em que cada um de ns tambm responsvel pela totalidadevivente, em um aprendizado afetivo contnuo, que no acontece fora de um corpo vivo e vivente, de uma existncia como ser biolgico e ser mental simultaneamente. Que a cincia positiva, a cincia dura, seja um dos grandes legados das artimanhas humanas ao longo de sua historicidade terrena, isso no se questiona e nem possvel desconhecer. Mas que ela seja o termo final da escala evolutiva do conhecimento humano, isto sim uma falcia e uma impropriedade. Portanto, no interessa negar a condio prvia de todo conhecimento humano, pois o que est em causa o como tornar este conhecimento prvio a matria-prima para a combusto e para o cozimento dos conDante Augusto Galeffi25

ceitos formadores de uma pesquisa qualitativa qualificada. Isso aponta e delineia a perspectiva de construo de comunidades epistemolgicas ordenadas em torno de trs eixos comuns: o indivduo, a sociedade e a espcie7.

A abordagem transdisciplinar do conhecimento humanoInspirando-me em Morin (2005b), tudo parece apontar para uma tica como cincia por excelncia da qualidade humana de agir e reagir afetivamente, tanto no corpo como na mente, como apresentou Spinoza em sua famosa tica (2008), significando uma cincia da qualidade da ao a partir de seus efeitos e retroaes contnuas nos campos do indivduo, da sociedade e da espcie. Eis a o sentido do conceito auto-socio-eco organizao. Pensar uma pesquisa qualitativa como sendo formada de diversas dimenses e poder express-las da maneira mais simples e intuitiva possvel o caminho para se alcanar uma aceitao universal do que se pode postular como pertencente a todos. Ora, tal fenmeno no se encontra nos dados imediatos da conscincia-inconscincia individual e nem muito menos naquela conscincia-inconscincia coletiva, porque a conscincia-inconscincia , ao mesmo tempo individual, social e antropolgico-ecolgica, abarcando o indivduo singular, as relaes sociais singulares e as formaes de sentidos que pertencem ao grande acervo da espcie humana em suas relaes com seu meio de vida e com os macrocorpos celestes e os microcorpos atmicos.26O rigor nas pesquisas qualitativas

Uma pesquisa qualitativa no pode mais perder de vista a totalidade complexa do conhecimento estratificado e a necessidade premente do exerccio e prtica de novas formaes autosocio-antropo-ecolgicas. Eis o ponto forte, ento, da pesquisa qualitativa postulada: um saber relativo sustentabilidade da existncia humana em sua morada planetria. Desse modo, a pesquisa qualitativa pode superar a dicotomia clssica entre sujeito e objeto, cincias da natureza e cincias do esprito, porque o que est em jogo so os conhecimentos que se podem alcanar e construir para o benefcio e realizao dos indivduos, das sociedades e da espcie em sua unidade diversa. Ela deve compreender em uma unidade nova o passado, o presente e o futuro dos indivduos, das sociedades e das espcies (incluindo-se a humana), como campo de cultivo do presente vivo e ofertado ao tempo futuro em sua salutar destinao. Essa uma perspectiva que estou chamando transdisciplinar pela idia pertencente a este conceito relativa problemtica do conhecimento humano em suas articulaes totalizadoras. O conhecimento humano, assim, se constitui em base a processos de totalizao que se do na esfera do pensamento formado-formante-formativo, pela reunio de tudo e pela distino e definio de todas as suas partes. Sempre, entretanto, por aproximaes e por relaes localizadas espacio-temporalmente. A perspectiva transdisciplinar aqui configurada a partir dos postulados expressos por Basarab Nicolescu (2002) como limites fundantes da metodologia transdisciplinar, a saber: 1. A co-existncia de diferentes nveis de realidade; 2. A lgica do terceiro includo;Dante Augusto Galeffi27

3. A teoria da complexidade. Estes trs postulados da metodologia transdisciplinar so paralelos dos trs postulados da fsica moderna formulados por Galileu, a saber: 1. H leis universais, de carter matemtico; 2. Essas leis podem ser descobertas por experimentos cientficos; 3. Esses experimentos podem ser perfeitamente repetidos. Entre esses dois modelos metodolgicos, o de Galileu e o da epistemologia transdisciplinar, h uma coisa em comum que salta imediatamente aos olhos: ambos postulam uma metodologia universalmente vlida, a partir da definio lgica de seu prprio objeto. Enquanto o objeto da fsica homogneo e unitrio, o objeto da transdisciplinaridade heterogneo e plurifacetado, compreendendo muitos nveis diferentes de tratamento e compreenso dos fenmenos. Claramente, nos postulados de Galileu tudo se reduz matematizao das leis universais da natureza fsica, observveis objetivamente, que podem ser descobertas por experimentos cientficos e repetidas perfeitamente. A cincia aqui aparece como investigao do carter matemtico das leis universais da fsica ou dos corpos e se caracteriza pela experimentao, meio eficaz para a descoberta das leis e sua reproduo. A cincia da natureza fsica dos objetos no precisa de juzos de valor subjetivo para descrever a lgica matemtica das leis universais so suficientes as operaes de soma, subtrao, diviso e multiplicao, as trs dimenses do espao e o deslocamento tem28O rigor nas pesquisas qualitativas

poral dos corpos no espao, que so o movimento e a durao. A homogeneidade e a simplicidade de seus limites conceituais (ideais) fazem da cincia fsica um procedimento metdico de experimentao pela suposio de uma causalidade universal composta de movimentos e repousos, foras ativas e passivas em relaes estticas e cinticas, causas e efeitos. Esse modelo homogneo , entretanto, apenas um nvel de configurao possvel da realidade e, de modo subjacente, realiza a crena do domnio do esprito humano sobre a natureza, pois como se restasse ao homem revelar as leis eternas da natureza para ter o domnio e o controle absoluto sobre elas. No caso dos postulados da transdisciplinaridade epistemolgica, o sujeito est includo em uma totalidade composta por pelo menos trs nveis de realidade distintos e complementares: o atmico, o biolgico e o psquico. E a partir da analtica da prpria subjetividade ou modo de ser humano que se deve articular o campo de numa cincia complexa, polilgica, multirreferencial, a partir de um novo (diferente) metaponto de vista que no mais admite a simples homogeneizao matemtica como linguagem apropriada para desvelar as leis eternas ltimas, porque seu objeto primacial no so grandezas discretas e sim presenas indiscretas. Os fenmenos so acontecimentos percebidos por algum que os percebe, e so inerentes dimenso imanente de algo como conscincia, porque pela prpria etimologia da palavra, fenmeno indica algo como o aparente aparecer da aparncia, aquilo que se mostra como se mostra, pressupondo sempre o observador que percebe aquilo que aparece. O que aparece, assim, aparece sempre para algum que o percebe. O aparecerDante Augusto Galeffi29

em si mesmo um perceber. O perceber sempre um ponto de conexo que divisa objetos e relaes espaotemporais. Os nveis de realidade postulados na metodologia transdisciplinar so oriundos basicamente dos avanos da fsica quntica, e dizem respeito a uma compreenso sistmica dos organismos e organizaes macrocsmicos, microcsmicos, biolgicos e psquicos. Cada um desses nveis regido por leis prprias e relativamente independentes. O meio de conexo entre os nveis de realidade a mente humana. Da a necessidade de operar com uma lgica inclusiva, porque so as operaes mentais de sujeitos histricos que estabelecem conexes entre nveis distintos de organizaes, todos autopoticos. Assim, a linguagem matemtica no d conta da complexidade fsicoquimica-biolgico-psquica dos indivduos e dos agrupamentos sociais humanos, sendo apenas um dos meios de descrio disponveis. O ser humano tambm precisa de imagens, afetos, juzos, metforas e conceitos para formar uma compreenso articulada de sua existncia concreta. A linguagem ordinria, a partir da qual os seres humanos se comunicam e se expressam cotidianamente, tambm um rico acervo de aspectos atinentes ao modo de constituio da existncia como existncia: um acontecimento em sentido enraizado em uma historicidade que pode ser narrada e reapropriada memorialmente no fluxo contnuo da vida de relaes materiais e simblicas. A teoria da complexidade pensada transdisciplinarmente tornou-se hoje uma necessidade epistemolgica para o aprofundamento sempre infinito da natureza do conhecimento humano e suas relaes limtrofes com a totalidadevivente. Um meio poderoso para se repensar e redefinir o campo de atuao e a30O rigor nas pesquisas qualitativas

validade das cincias que tm como meta a elucidao de aspectos relativos ao comportamento de indivduos e de sociedades humanas a partir de evidncias comuns que se impem a todos os que se encontram existindo na perspectiva da realizao plenificante. Um espanto que ainda pode nutrir o amor pelo conhecimento do que , do que pode vir a ser, assim como do que no . Um conhecimento do conhecimento e do desconhecimento. Conhecimento da Totalidade qualitativamente expressa, sempre de maneira provisria. Sempre de maneira rigorosa.

Traos de uma fenomenologia prpria e apropriadaTudo aqui se apresenta de forma impressionista e fala de uma fenomenologia prpria e apropriada, de um novo incio para se conceber um rigor outro para a pesquisa qualitativa qualificada. Um novo incio que nada tem de absolutamente diverso de todo novo incio. E esse novo incio no se encontra fora de cada um, na medida em que s faz sentido como formao rigorosa de uma mentalidade epistemolgica que privilegia a configurao de sentidos alcanveis pela experincia direta e pela elaborao conceitual apropriadora e geradora de intuies criadoras e de meios promotores de transformaes radicais de nossas relaes com a totalidadevivente. H, assim, na natureza da pesquisa qualitativa uma implicao com a subjetividade em si mesma8, que uma formao de ser individual, social e ecolgico-cosmolgica comum a todos os humanos, e que no se resume aos constructos passados e nem pode ser reduzida pura idealidade das operaes mentaisDante Augusto Galeffi31

possveis dentro de uma srie de acontecimentos regularmente percebidos e j estabelecidos. H, de qualquer modo, a elaborao de saltos qualitativos, que s ocorrem pela conjugao de foras e no pela separao e fragmentao prprias de uma racionalidade redutora e paralisada em sua eficincia funcional maqunica e insensvel. H necessariamente na pesquisa qualitativa o desenvolvimento de meios descritivos que favorecem a apreenso das qualidades dos conjuntos-objetos fenomenais investigados. Tais meios so essencialmente lingsticos e s podem atualizar-se atravs de sistemas gramaticais completos em sua finitude moduladora e gerativa. Da a grande diversidade de meios e tcnicas que caracteriza a pulverizao epistemolgica das pesquisas qualitativas. Observa-se uma ausncia de comunidade epistemolgica nas pesquisas qualitativas e a multiplicao de mtodos e tcnicas se torna sinnimo de enfraquecimento e perda de rigor assentado na tradio qualificada. Ora, o caso que as qualidades dos fenmenos s podem ser apreendidas por qualificaes especficas, que so, em seu conjunto, processos lingsticos complexos de subjetivao, impossveis de serem capturados em uma lei geral nica e multiplicados como cpias exatas do modelo eidtico gerador. Todo construto qualitativo, assim, sempre uma aproximao ou ressonncia sensvel, o que requisita o aparelho de captura adequado. Uma simples mquina s pode produzirreproduzir qualidades se estas forem percebidas e criadas por seres sensveis e inteligentes. Para uma mquina, assim como para as operaes computacionais do crebro, no faz nenhuma diferena se o comando de uma ao tem qualidades32O rigor nas pesquisas qualitativas

diferenciadas ou no. O que importa no funcionamento de uma mquina, assim como do crebro, so os comandos de entradas e sadas e suas formaes algortmicas, o que compreende o conjunto das regras e procedimentos lgicos perfeitamente definidos que levam soluo de um problema em um nmero finito de etapas. Essa forma de procedimento computacional no necessita dos dados imediatos da conscincia para poder elaborar suas aes, reaes e retroaes. Entretanto, se quisermos compreender o carter qualitativo dos acontecimentos, precisamos no apenas de procedimentos lgicos formalizados em sua funcionalidade pragmtica, mas tambm de perceptos, de juzos e de conceitos9 que configuram e conformam os dados imediatos de toda conscincia viva e vivente. As qualidades so sempre variedades de uma mesma classe de objetos, apesar de se poder conceituar a qualidade como idealidade pura, na ordem matemtica das probabilidades de um conjunto universo qualquer. As variedades s podem ser observadas como qualidades distintas. Significa que a qualidade pressupe a estrutura dos afetos e das afeces noticas e noemticas10 em ato. Tudo aquilo que se afeta e que afeta tem a qualidade de afeco notica ou intencional especificamente sensvel e mental ao mesmo tempo, material e formal tem matria e tem forma no espao-tempo. A intencionalidade aparece aqui como uma afeco que possui em si o meio necessrio de figurao e de significao do que aparece, portanto, do que percebido por uma conscincia individual no ato de suas vivncias intencionais. O qualitativo, assim, requisita o aparelho receptor de qualidades distintas: a mente e o corpo humanos em suasDante Augusto Galeffi33

dinmicas gerativas complementares e interdependentes. Os sentidos, a sensibilidade, a volio, o juzo e a cognio so espcies de camadas constituidoras da intencionalidade da conscincia. A conscincia intencionalidade como meio universal de todas as vivncias, como postulou Husserl (1949), e se compe sempre de matria sensvel (hyle) e forma intencional (morph). A conscincia um fluxo contnuo que sempre se encontra visando objetos determinados, sejam eles reais ou apenas imaginrios. A conscincia sempre conscincia de objetos corporalmente (materialmente) e mentalmente (formalmente) determinados. H na constituio da conscincia camadas materiais e camadas intencionais que se distinguem e que formam uma unidade, chamada, por exemplo, por Husserl de elementos noticos ou simplesmente de nesis que se pode reconhecer como produes de pensamentos (perceptos, afetos, desejos, vontades, juzos, inteleces e conceitos). Ora, no fluxo intencional de toda conscincia h sempre o aparecer e a aparncia conjugados em uma unidade. A intencionalidade como meio universal de todas as vivncias em si mesma um complexo formal com sentidos determinados. Poder-se-ia dizer que s o que tem sentido possui o modo de ser intencional, possui a conscincia de algo como algo. A conscincia , ento, o meio intencional do aparecer e da aparncia do que est em sentido: o prprio fenmeno. Como disse Husserl (1949), as vivncias intencionais se apresentam como unidades em virtude da operao de dar sentido (em um sentido muito amplo). Assim, os dados sensveis se do como matria para conformaes intencionais ou operaes de dar sentido em diversos graus, sejam eles simples34O rigor nas pesquisas qualitativas

ou fundamentados sistematicamente. Mas os dados sensveis no seriam dados sem a estrutura da intencionalidade que caracteriza a corrente das vivncias como a prpria unidade formalizante11 da conscincia. De fato, a palavra conscincia sempre faz aluso a algo de que ela consciente. A conscincia sempre conscincia de algo como algo. Como se v, o espectro da investigao fenomenolgica aqui esboada de incio assustador pela sua abrangncia e intensidade compreensiva atual. Entretanto, nada est dado alm de uma descrio que toca diretamente a estrutura comum do comportamento humano. nesse mbito que o limite da pesquisa qualitativa pode ser identificado e formalizado adequadamente. Isso pressupe uma diferenciao dos demais limites epistemolgicos existentes, como o caso dos limites das cincias quantitativas que lidam com fenmenos exteriores ao comportamento humano. A qualidade requer a presena de sentidos qualificadores, j previamente formalizados, assim como a quantidade pressupe sempre a presena de sentidos quantificadores j intudos. Os processos descritivos da pesquisa qualitativa devem interpretar qualidades perceptivas que no se reduzem a esquemas de nenhuma espcie, apesar de no se poder nunca descrever algo sem que se faa uso de esquemas e redues inevitveis. Alis, essa uma caracterstica dos atos intencionais: eles sempre se encontram configurados em uma compreenso articuladora global, independentemente do grau de definio e complexidade dos mesmos. Qualitativamente falando, s possvel descrever algo por aproximao, pois a qualidade em si no existe sem as formas do entendimento. Assim, na correlao entre a apresentao e a representaoDante Augusto Galeffi35

dos dados imediatos da conscincia no possvel nenhuma exatido, exceto no que concerne estrutura a priori dos atos intencionais, que so sempre formas revestidas de materialidade, formas marcadas por qualidades sensveis e noticas simultaneamente. Assim, qualidade no apenas referente dimenso sensvel, mas tambm diz respeito a juzos de valor e elaborao de conceitos de qualquer espcie. A qualidade de um conceito, por exemplo, se define por sua prpria funcionalidade notica, o que se caracteriza como compreenso articuladora dinmica e potencialmente gerativa de novos conceitos correlatos ou no s suas matrizes geradoras. H, sem dvida, uma intencionalidade dos conceitos diferente da intencionalidade dos juzos (volies) e dos perceptos (afetos condicionados). O qualitativo se expressa, portanto, em muitas camadas ou nveis de configurao. A intencionalidade compreendida fenomenologicamente constituda de muitas dimenses e todas elas podem ser descritas por aproximaes compreensivas que sempre atualizam dados e estruturas j previamente formadas e sedimentadas. Consequentemente, no pode haver nas pesquisas qualitativas um termo final ltimo formulado como modelo preciso, porque tudo o que qualidade sempre resultante de fluxos intencionais complexos e flutuantes, suscetveis a mudanas inesperadas, caracterizando a necessidade de uma definio especfica do campo das qualidades que se apresentam em sentido, isto , que se encontram estruturadas em infinitas ramificaes intencionais j condicionadas e reunidas em feixes que consolidam novas individuaes. esse nvel de condicionamentos36O rigor nas pesquisas qualitativas

que se pode pretender identificar em uma pesquisa qualitativa, o que significa sempre um ato criador vivo, porm sustentado pela matria-energia de uma organizao preexistente. A resultante de uma pesquisa qualitativa constituda consistentemente sempre uma combinao nova, um arranjo desconhecido em relao ao acervo j dado no passado da tradio na qual se inscreve a pesquisa. uma obra construda, portanto, que tem uma serventia muito bem definida e que perde o seu sentido se no encontrar ressonncia em seu meio de atuao. Claro, muitas vezes um trabalho de valor inestimvel no campo das idias e da prpria cincia regular no reconhecido e assimilado imediatamente, o que no significa que no possa ser aproveitado em momentos posteriores. Contudo, mesmo considerando-se essa hiptese como razovel, ser preciso o trabalho criador de algum indivduo para que a obra esquecida possa, enfim, provocar mudanas e nutrir processos de desenvolvimentos inovadores, teis aos usurios que atualizem a potncia de suas qualidades. Nessa proporo, a pesquisa qualitativa qualificada necessita de usurios igualmente qualificados para tornar-se vlida e reconhecida em sua utilidade individual, social e ecolgica. De nada adiante produzir pesquisa qualitativa sem que seus efeitos possam trazer modificaes expressivas em seu meio de atuao. Uma pesquisa qualitativa, ento, s faz sentido quando sua fora constituda provoca mudanas no meio de sua atuao, seja atravs da simples leitura de publicaes, seja pela assimilao metodolgica de seus elementos expressivos, que podem dar margem a novas formaes conceituais, metodolgicas e tcnicas, seja simplesmente permitindo que gruposDante Augusto Galeffi37

de pesquisa organizados encontrem motivos para prosseguir em suas investigaes qualificadas, na maioria das vezes sem nenhuma implicao mais radical com a totalidade da vida.

O rigor da qualidade e a qualidade do rigorA qualificao de uma pesquisa qualitativa, ento, depende de muitos fatores para poder alcanar o reconhecimento do seu rigor metodolgico. E rigor uma expresso sempre problemtica, porque indica imediatamente a rigidez necessria para que algo possa se sustentar e consistir, durar e permanecer idntico a si mesmo em sua forma. Ora, tambm preciso lembrar que qualquer organismo rgido em demasia corre srio risco de colapso esttico. Na produo cientfica do conhecimento o excesso de rigidez um sinal claro da falncia vital do sistema postulado, que muitas vezes seguido apenas por uso abusivo da autoridade constituda, ou por incompetncia de seus usurios para perceber o engodo e tomar providncias no sentido de sua superao. Desse modo, pensar rigorosamente o rigor na pesquisa qualitativa compreender sua contrapartida complementar: a flexibilidade. Rigor e flexibilidade andam juntos na pesquisa qualitativa, porque o excesso de rigidez deve ser corrigido ou equilibrado com a flexibilidade, assim como o excesso de flexibilidade tem que ser corrigido com o tensionamento justo. Perece-me que tudo uma questo de mentalidade e de cultura espiritual. Para a qualificao da pesquisa qualitativa preciso uma poltica e uma economia apropriadas, o que38O rigor nas pesquisas qualitativas

pressupe uma formao para a destinao humana como um todo interligado. Em um mundo dominado pela tecnocincia e regido economicamente pelo capitalismo avanado em sua estupidez maqunica, a qualidade s passa a ter sentido na medida em que contribui diretamente para a manuteno do sistema produtivo insustentvel globalizado. O qualitativo, ento, necessita de outra qualidade de cultura espiritual das sociedades e indivduos para poder ser reconhecido pela comunidade humana que o usufrui e cultiva. A qualidade de qualquer produto humano depende da qualidade espiritual dos que dele usufruem. Para uma mentalidade rasa e inculta, investir, por exemplo, na educao humana promotora e progenitora de mentalidades criativas e colaborativas, questionadoras e crticas algo absolutamente fora de propsito. E isso porque o propsito perseguido pela sociedade globalizada atual no tem a qualidade capaz de reconhecer a natureza do tempo e dos afetos na composio da vida humana, e se imagina que tudo pode ser resolvido com os artifcios tecnolgicos, porque tudo deve dirigir-se para a eficincia da produo de riquezas, sem que seja necessrio investigar, respeitar e potencializar os limites a partir dos quais o ser humano alcana a sua destinao como espcie, sem perder de vista a sua finitude como indivduo e como sociedade histrica. No meio cultural em que nos encontramos o prejuzo ainda maior, porque a mentalidade geral ainda muito inculta12. H ainda uma longa batalha pela frente para se chegar a desenvolver uma mentalidade epistemolgica qualificada para a produo da pesquisa qualitativa. As polticas pblicasDante Augusto Galeffi39

de fomento e incentivo produo do conhecimento cientfico privilegiam, de forma hierarquizante, as pesquisas que possam servir para o acrscimo da riqueza material do pas, como se no houvesse riquezas espirituais para serem cultivadas e preservadas em sua dinmica vivente e gerativa. S o que d lucro parece interessar ao sistema produtivo dominante. E pesquisa qualitativa considerada muito subjetiva para o gosto inculto das sociedades capitalistas, e s por concesso e ostentao de riqueza ou autopromoo se concede reconhecimento a certos campos da atividade humana, considerados excntricos, como o caso das artes e da filosofia. Afinal, para que serve um saber que no tem funo pragmtica imediata? Para que serve cultivar a qualidade espiritual de pessoas humanas se isso no aumentar o poder de ganho? Essa lgica rasteira comum a causa de muitos equvocos na conduo da formao epistemolgica em nosso pas. Estamos ainda muito longe da efetivao de uma cultura espiritual prpria, que tome para si a tarefa de investigar o fenmeno humano em sua totalidade, de modo autnomo e autopotico, tendo em vista a formao de uma humanidade constituda de indivduos saudveis e radicalmente livres, que finalmente aprendam a cuidar de si mesmos e, consequentemente, a cuidar do seu ambiente vital, de sua sociedade, de sua espcie, de sua morada planetria. Ora, isso requer uma concreta revoluo espiritual, compreendendo a palavra esprito como signo do determinante complexo global do modo de ser de indivduos e sociedades histricas. O esprito um signo do modo tico de existir de indivduos e sociedades, ou seja, signo do modo habitual de viver de40O rigor nas pesquisas qualitativas

indivduos sociais. O tico diz respeito propriamente ao modo habitual de comportamento dos seres humanos em sociedade. A tica pode at ser para alguns filsofos uma doutrina moral especfica, mas a compreendo como a investigao filosfica (no sentido prprio do termo) relativa ao agir humano que visa a excelncia no agir, no por mrito ou recompensa, mas como autoconduo responsvel e consequente, sem finalidade alguma exceto aquela de agir sabiamente e conduzir a ao como se conduz a criao e a execuo de uma pea sinfnica. Quanto mais o maestro claro em suas expresses intencionais tanto mais a orquestra executar a msica sem atropelos. Todos ns precisamos aprender muitas coisas se quisermos fazer valer o mrito efetivo da pesquisa qualitativa na produo de conhecimento formador de inteligncias crticas, mas no estpidas ou enrijecidas em suas doutrinas particulares. Ser crtico no precisa significar ser sarcstico ou intolerante, mas precisa significar ser justo, ser moderado, ser criterioso, ser cuidadoso, ser dedicado, ser rigoroso ao lidar com o desvelamento dos fenmenos. Ningum pode ser considerado radicalmente critico se pretende impor supostas verdades incontestveis aos outros. O ser crtico sempre aquele que aprendeu a duvidar e a suspeitar, a perguntar e a inferir, a conjecturar e a reconhecer, a questionar o que est posto como dado, a buscar solues e alternativas para problemas efetivos e que aprende a distinguir problemas necessrios de falsos problemas. Ser crtico antes de tudo significa aprender o justo e a justeza das coisas por conta prpria, e no por simples imitao ou por mera bricolagem primria de fontes externas. Mas ser crtico tambm significar ser rigoroso no lidar com a interpretao de fatos e aconteciDante Augusto Galeffi41

mentos que dizem respeito ao comportamento de indivduos e sociedades, assim como criterioso com o uso das fontes e dos documentos disponveis e utilizados em uma pesquisa. Tambm significa pertena a uma tradio determinada, sem a qual nada de novo pode aparecer na produo de sentido. De qualquer modo, nossa pertena a uma determinada tradio cultural, epistemolgica, filosfica, capitalista, autodestrutiva, etc., se encontra hoje reunida, talvez graas globalizao, em uma visada histrica compreensiva do passado-presente e futuro da humanidade e do planeta, e ainda dispomos das conjecturas da cosmologia contempornea em sua investigao relativa origem do universo, desvelando de modo sempre mais assustador (sublime) a complexidade enigmtica do universo em sua expanso no se sabe at quando. Dispomos hoje de uma visada individual, social, antropolgica e cosmolgica (auto-socio-antropo-cosmolgica) que se caracteriza por ser um metaponto de vista articulador das novas emergncias oriundas da complexificao da vida planetria. Nessa espcie de promontrio situamos a visada da presente construo epistemolgica em ato. Temos, enfim, um novo comeo! Apresento a proposio de uma fenomenologia prpria e apropriada que tem como tarefa elucidar a constituio epistemolgica da pesquisa qualitativa, determinando, assim, o seu grau de consistncia e de sustentabilidade diante dos desafios e enigmas do nosso tempo globalizado e perdido em sua expanso incontrolvel, por meio de um modo de produo material insustentvel. H a emergncia da qualificao humana para a realizao de modos de vida saudveis e inteligentes (sensveis),42O rigor nas pesquisas qualitativas

e isso s se pode fazer por meio de processos qualificadores que atualizem o projeto de uma humanidade responsvel por si mesma e amante por si mesma da vida abundante. Uso a expresso fenomenologia como uma provocao dialgica, pois no a compreendo como um sistema metdico j realizado cujo objeto especfico pode ser descrito como a elucidao apodtica, absolutamente imanente, da essncia puramente eidtica do conhecimento humano. Uso a palavra no sentido de um caminho de investigao radical do que inere ao ser humano perceber, compreender e saber de si mesmo, do outro e do mundo em um fluxo ininterrupto e dialgico fluxo transformativo. preciso, pois, deixar ser o fluir das coisas mesmas o caminho de nossas vidas. Quer dizer, agir com arte na totalidade de nossas vidas e fazer delas obras de arte. E a obra de arte como o desabrochar de uma flor: um acontecimento efmero da vida em si mesma. Eis o imageamento13 do rigor na pesquisa quantitativa: o enamoramento incorrigvel pelo conhecimento em si mesmo, na conscincia de que, como o desabrochar de uma flor, todo aparecer fulgurante se recolhe no desaparecer simplesmente. Mas, na linha do existir ftico, a vida em si mesma um contnuo nascer e morrer incessante. Desse modo, um dos traos distintivos de uma pesquisa qualitativa articulada fenomenologicamente e torcida transdisciplinarmente a conscincia do pesquisador em relao fragilidade espiritual da humanidade, que sempre precisa de anjos e protetores14 para poder vir a constituir-se em fortaleza e poder agir livremente, pelo discernimento correto, que sempre um termo indeterminado, mas que designa umDante Augusto Galeffi43

critrio alcanvel pela prtica e pela experincia prpria de indivduos. O rigor da pesquisa qualitativa diz respeito qualidade de rigor do pesquisador e nada tem a ver com uma exteriorizao metodolgica de passos e regras de como conduzir uma investigao cientfica consistente. preciso lembrar, ento, como estamos contaminados de um falso rigor que mal sabe avaliar os efeitos nefastos de sua atuao acadmica e social, quando simplesmente aceitamos as regras do jogo da produo cientfica qualificada imposta pelos rgos governamentais responsveis, sem a mnima resistncia crtica, sem a mnima clareza relativa ao sentido de rigor que no pode depender de tecnocratas e de polticas comprometidas com a desqualificao generalizada da potncia humana diversificada e singular. estupidez pensar que o rigor seja um procedimento exclusivo dos filsofos lgicos e dos cientistas matemticos e gemetras. O rigor, a rigor, um comportamento atitudinal de quem faz qualquer coisa com arte. O rigor o ethos de toda produo artstica. Por que a cincia teria que ser diferente em relao ao ethos artstico? O que aqui compreendo como uma fenomenologia torcida e articulada transdisciplinarmente diz respeito emergncia da teoria da complexidade e da postulao de um campo transdisciplinar no tratamento epistemolgico e ontolgico da natureza do conhecimento humano, e se inspira em autores como Stphane Lupasco (1988), Basarab Nicolescu (2002) e Edgar Morin (2005a, 2005b, 1999), David Bohm (2001), David Bohm e David Peat (1989), Humberto Maturana e Francisco Varela (2001), Humberto Maturana (1999, 2001), Edmund Husserl (1949, 1961, 1990, 2001), Martin Heidegger (1995, 1996), Hans-Georg Gadamer (1996), Jiddu Krishnamurti (1986,44O rigor nas pesquisas qualitativas

1997), dentre outros que por convenincia no foram citados. Configura-se esta perspectiva em uma polilgica articuladora dos diversos nveis de constituio da realidade, do ponto de vista humano. um livre pensar hbrido, mestio, complexo, aberto s emergncias vitais do ser humano. Neste mbito de uma cincia transdisciplinar nascente, o critrio qualitativo resgatado como primordial para a produo do conhecimento, sendo reintroduzido o sujeito e os processos de subjetivao no interior da construo epistemolgica complexa. Tambm no se nega o valor das disciplinas e nem a importncia das cincias positivas. Mas no se aceita, de modo algum, o imperativo metafsico das cincias duras como critrio absoluto de rigor cientfico, porque o verdadeiro rigor no consiste na aplicao de mtodos infalveis e sim na qualidade de aferio dos efeitos do uso de um mtodo qualquer na vida cotidiana dos indivduos e das sociedades. A qualidade pressupe qualificadores qualificados para poder ser reconhecida e acolhida em sua qualificao. preciso aprender a desacreditar em um mtodo cientfico que at agora s tem aumentado o tamanho da tragdia humana, justamente por falta de rigor. Duvidemos, com rigor, da falcia de uma cincia exata e de um mtodo verdadeiramente cientfico que s alguns conhecem e dominam. Chega de delegar nossa responsabilidade pela qualidade de vida aos especialistas epistemologicamente formados para perpetuarem a diviso da humanidade entre gnios e imbecis. Precisamos sim de uma cincia de rigor que se torne tambm um meio de formao para todos, em diversos graus de aprofundamento e dedicao. Chega de aceitar a idia de que s os cientistas e filsofos profissionaisDante Augusto Galeffi45

tm autoridade para pensar criticamente e para desenvolver mtodos infalveis de pesquisa. E isso s pode ser mudado por meio de uma revoluo cultural que hoje se impe como necessria, dado o adiantado estado da degradao humana e planetria. Pensemos intensamente sobre essa possibilidade: a pesquisa qualitativa hoje est diretamente ligada transformao da natureza humana, no sentido de sua perpetuao como espcie, como sociedade e como indivduo singular e plural. Ela no pode estar a servio de uma maquinao tecnocientfica que no atende qualidade e qualificao da vida espiritual da humanidade. Por isso hora de reinventar uma pesquisa qualitativa qualificada que no pode mais andar a reboque dos mtodos cientficos que lidam com fenmenos ditos naturais, portanto, exteriores ao fluxo vital dos seres humanos concretos. Afinal a qualidade algo prprio de quem sente, percebe, julga, conceitua, afeta e afetado por aquilo que percebe.

Esboo genealgico da pesquisa qualitativaO que se chama hoje de pesquisa qualitativa na verdade um produto tardio da modernidade epistemolgica. resultante de um movimento de diversificao de disciplinas ocorrido no sculo xix, o sculo em que a histria se torna um efetivo problema gnosiolgico. A se pode reconhecer a origem da dicotomia entre cincias da natureza e cincias do esprito e que tem variadas motivaes e causas. Nesse ponto da histria, tudo parece convergir para a vitria da emancipao humana pelo vis do racionalismo metafsico, seja ele idealista ou empi46O rigor nas pesquisas qualitativas

rista. A delimitao do que se passa a chamar de cincia humana ganha fora pelo aparecimento das disciplinas, inicialmente originrias da filosofia, que tratam de aspectos do ser humano como indivduo e como sociedade. Assim, sociologia, psicologia, direito, antropologia, geografia, cincia poltica, economia, pedagogia, lingustica, arqueologia, histria, alm da prpria filosofia, desenvolvem relativa autonomia e se transformam em campos disciplinares cada um dos quais com seu prprio objeto de pesquisa. Entretanto, essas agora chamadas cincias humanas aspiram, cada uma a seu modo, o alcance de uma consistncia epistemolgica similar ao modelo e aos mtodos das cincias da natureza, notadamente da fsica e da qumica. H na constituio inicial das cincias humanas um problema srio de identidade epistemolgica, pois seus objetos no podem ser tomados do mesmo modo como os objetos das cincias fsico-qumicas, que estudam conjuntos de fatos exteriores ao ser humano, fatos que no interferem diretamente na vida corriqueira deste, e que sofrem a ao de controle e domnio sobre eles. Aparentemente, a natureza fsica ou qumica dos corpos e do mundo no se ope ao uso que delas possa fazer a cincia. No h na investigao fsico-qumica uma produo de sentido subjetivo por parte do objeto examinado em seu comportamento fsico e em sua estrutura qumica. O mundo da matria no pensante. Pensante o homem que investiga o mundo da matria e lhe descreve leis e princpios sem que seja necessrio nenhum consentimento desta. A natureza assim compreendida como determinismo puro governado pela causalidade eficiente: um grande objeto transcendente, externo ao ser humano, que se comporta segundo as leis uniDante Augusto Galeffi47

versais da gravitao e que pode ser descrito matemtica e geometricamente como ele de fato , sendo por isso mesmo reproduzvel artificialmente. Em contrapartida, as cincias humanas vo focar sua ateno epistemolgica na anlise da prpria ao conduzida pelos seres humanos seja considerando suas estruturas, aspiraes e frustraes, seja observando alteraes provocadas pelo seu agir nos meios fsico, social e/ou psquico. As cincias humanas, assim, esto intimamente relacionadas com as qualidades do ser humano e so chamadas cincias na medida em que postulam uma objetivao de seus objetos intencionais, por meio de descries que se postulam imparciais e metdicas, ao modo rigoroso de Descartes na estruturao de seu mtodo universal, cujos passos iniciais progridem do mais simples para o mais complexo, tomando este como exemplo e modelo paradigmtico do mtodo certo e dito propriamente cientfico. Na gnese das cincias humanas h a emergncia de fatores complexos que passam a ocupar a ateno de estudiosos em muitas frentes diversas. Assim, o sculo xix v florescer uma psicologia emprica e uma sociologia positiva com August Comte, assim como uma sociologia crtica com Marx, que considerado um dos primeiros pesquisadores sociais a realizar pesquisa de campo. O avano da cincia histrica repercute no campo da linguagem na anlise de atos de fala e de escrita fomentando o desenvolvimento terico de uma teoria lingustica nova, a semiologia. A psicanlise de Freud desponta no final do sculo como uma alternativa teraputica surpreendente, desveladora de uma subjetividade marcada por estruturas profundas configuradas na tenso entre desejo e lei. Nietzsche concebe uma48O rigor nas pesquisas qualitativas

filosofia para alm da filosofia sistemtica, inaugurando a possibilidade de uma filosofia propriamente trgica, que no mais consiste em um ordenamento metafsico moralizante e nem em uma produo de sentido submetida a entidades externas ao humano e naturalmente transcendentes. Husserl escreve suas investigaes lgicas, base de sua fenomenologia transcendental, apoiado na anlise lgica dos atos intencionais da conscincia, de base Aristotlica, desenvolvida por Franz Brentano no campo de uma psicologia racional, em contraposio psicologia emprica dominante, base do psicologismo behaviorista. A antropologia e a arqueologia ganham formulaes novas, com o estudo dos grupos tnicos primevos e com a descoberta dos stios arqueolgicos da antiguidade, o que vai determinar uma compreenso mais encorpada das origens da espcie humana e da histria das civilizaes antigas. Wihlelm Dilthey (1883, 1944) formula uma epistemologia das cincias do esprito caracterizada como uma hermenutica geral do conhecimento psicolgico e histrico do ser humano, contraponto o trabalho da compreenso ao trabalho da explicao, postulando, assim, um fundamento compreensivo e no explicativo para as cincias do esprito. No caso, a estrutura da compreenso prpria do modo psicolgico do ser humano, no sendo aplicvel ao mundo natural com seus objetos. As cincias da natureza explicam, as cincias do esprito compreendem. Esta aporia entre explicar e compreender revela, de qualquer modo, uma preocupao epistemolgica distinta daquela das cincias naturais para fundamentar uma cincia que diz respeito ao comportamento humano e no ao comportamento de entes naturais que no precisam ser compreendidos e sim explicados.Dante Augusto Galeffi49

Poderia me demorar longamente nas variaes e ramificaes novas que vo constituir a constelao dispersa das cincias humanas atuais, mas isso no serviria de muita coisa para o propsito presente, que o de elucidar, de maneira prpria e apropriada, a natureza complexa do conhecimento humano e suas implicaes prticas na conduo da vida individual, social e ecolgica da espcie humana habitante do planeta terra. De qualquer modo, fundamental compreender a historicidade do que se pode hoje chamar de pesquisa qualitativa, inclusive como forma de identificar as concepes legtimas que se desenvolveram ao longo de linhagens e escolas especficas, todas, porm, convergindo para questes que hoje j no podem mais ser tratadas a partir de uma nica tica, de uma nica disciplina. Agora a questo relativa fundamentao epistemolgica das cincias humanas no pode mais ocorrer pela produo de um metanarrativa hegemnica, capaz de colher a lei universal da humanidade ao modo de um objeto natural. Apesar de parecer, o ser humano no um objeto que pode ser medido em seu modo de ser existencial. No mximo ele pode ser compreendido, o que significa bem outra coisa do que ser objetivamente explicado. E isso por razes bvias demais para merecer nossa ateno epistemolgica. No presente momento, dispomos ento de muitas matrizes e de muitos mtodos qualitativos que foram sendo desenvolvidos ao longo dos anos pelas cincias humanas particulares. Quais deles so os mais verdadeiros, os mais cientficos, os mais rigorosos? Seria possvel negar algum deles sem comprometer todos eles? Seria possvel reuni-los em um nico mbito, sob50O rigor nas pesquisas qualitativas

a gide de uma supercincia humana de rigor incontestvel? possvel mistur-los, torc-los, declin-los, subsumi-los em contnuos atos dialticos? O que dizer ento das filosofias mestias, das bricolagens metodolgicas, das novas configuraes de saberes interdisciplinares e transdisciplinares, das abordagens multirreferenciais da pesquisa etnogrfica crtica (macedo, 2000), da escuta sensvel do pesquisador, da antropologia hermenutica, da hermenutica jurdica, da hermenutica filosfica? So elas cincias efetivas ou so mesmo falsas cincias, como desejariam os positivistas atuais que continuam pensando com a cabea no sculo xix e xx? O que dizer da validade epistemolgica da pesquisa qualitativa, independentemente de sua matriz terica e metodolgica? Como reconhecer o efetivo rigor de uma pesquisa qualitativa fora dos enquadramentos reguladores institudos, que considera produo de cincia apenas aquela que lida com objetos transcendentes? Quem so os avaliadores qualificados para reconhecer e dialogar com os pesquisadores produtores de conhecimento qualitativo? Como que um avaliador que desconhece a existncia de um questionamento filosfico rigoroso poder vir a avaliar a qualidade de uma pesquisa construtora de conceitos dialgicos e de novas perspectivas?

Validade epistemolgica da pesquisa qualitativa e seu meio articulador universalA questo relativa validade da pesquisa qualitativa diz respeito diretamente ao modo de produo da cincia regular, com suasDante Augusto Galeffi51

leis e postulados estabelecidos, suas crenas estratificadas e regimes lingsticos formais. Isso toca no conceito de cincia que se imps no Ocidente a partir da revoluo cientfica iniciada por Coprnico e Galileu nos sculos xvi e xvii. Como procurei mostrar, tambm as cincias humanas buscaram cada uma ao seu modo uma fundamentao consistente para validar seu carter propriamente cientfico. A cincia, assim, seja ela dita dessa ou daquela forma, natural ou humana, fsica ou psicolgica, sempre uma produo discursiva, uma produo de sentido baseada em investigao rigorosa, metdica, sistemtica. Cincia, ento, um modo de produo do conhecimento baseado em princpios, postulados, categorias, descries, explicaes, compreenses, comprovaes, experimentaes, documentaes, procedimentos normativos, atitudes consistentes, valores referenciais, relaes interdependentes, suposies, comunicaes, avaliaes, projetos, etc. Gostaria, ento, de reafirmar uma verdade j sabida de todos: toda cincia humana e toda cincia cincia de objetos idealmente definidos, apesar de encontrar alguma forma de correlao com os objetos observveis em um determinado campo fenomnico, considerados como objetos transcendentes aos sujeitos singulares. E por ser campo fenomnico, sempre referente a sujeitos humanos histricos, concretos. Lembremos: no h fenmeno sem observador. Portanto, sempre preciso comear pela pergunta: como que o observador observa o que observa? Ora, se poderia dizer: o observador tem olhos, tem sentidos. Ele observa pelos sentidos, pelos olhos. O que ele v em sua observao so fenmenos da conscincia perceptiva, volitiva, conceitual que esto projetados em um52O rigor nas pesquisas qualitativas

para fora e assim so objetivados como objetos definidos: o prado, a montanha, a rvore, crianas no parque, gansos no lago, a casa, o avio, a cidade, o mundo, o espao, o tempo, qualquer coisa. Nossa percepo nos ilude com um fora de ns e com um dentro de ns. Dizemos, ento: o meu objeto de pesquisa esse ou aquele, isso ou aquilo. Sem objetivao, sem iluso de exterioridade e de interioridade no h nada a conhecer. Toda objetivao, ento, uma definio de objetos, quer dizer, de fatos pretensamente exteriores ao sujeito. Tais fatos so a possibilidade de uma cincia se constituir universalmente, porque, como se diz, so fatos objetivos, fatos observveis por todos os participantes das mesmas condies de princpio. Uma casa est ali adiante para todos os que podem ver. O campo objetivo de uma cincia sempre aquilo que pode ser visualizado por todos. S que esse ser visualizado por todos pressupe articulaes lingsticas comuns, uma lngua comum, porque s o que pode ser dito pode ser percebido e intudo intencionalmente por todos como fato comum. Inspirando-me em Gadamer (1998), a linguagem, ento, o meio universal da pesquisa qualitativa, como o meio universal de tudo o que d sentido e do que faz sentido. , ento, na linguagem que se deve buscar o fio condutor de toda compreenso qualitativa criteriosamente construda. Eis mais uma vez o rigor no sentido prprio da palavra. A validade epistemolgica de uma pesquisa qualitativa depende sempre de acordos firmados entre comunidades cientficas tradicionais. sempre uma relao de poder que est por detrs dos processos de validao ou invalidao de propostas e procedimentos de pesquisa. Toda produo discurDante Augusto Galeffi53

siva de natureza epistemolgica uma produo de sentidos implicados com circunstncias organizacionais especficas. H escolas, tendncias diversas dentro de cada escola, textos bsicos, figuras fundadoras, estratificaes e sedimentaes de todo tipo. H, enfim, formaes epistemolgicas para cada rea ou setor da produo de conhecimento j criado. Para investigar fenmenos psicolgicos preciso ter formao em psicologia. Para investigar fatos sociais imprescindvel ser formado em sociologia ou em cincias sociais. Para produzir conhecimento filosfico preciso possuir formao filosfica, e assim por diante. Cada rea de conhecimento tem seu universo prprio, sua linguagem apropriada, suas artimanhas de certificao e de controle de qualidade. Nisso tudo h outro aspecto relevante que convm destacar. No interior de cada rea especfica, de cada especializao consolidada observa-se uma variedade de tendncias, uma multiplicao de linhas de fuga que na maioria das vezes pode levar fragmentao da prpria rea disciplinar. Assim, por exemplo, em muitas reas comum o fenmeno da incomunicabilidade entre escolas distintas. Um suposto kantiano pode facilmente considerar improvvel a existncia de vida inteligente fora de Kant. Um heideggeriano escolado pode achar que nada pode ser esclarecido fora da analtica heideggeriana. Um continental olha com suspeita um analtico, um analtico acha perda de tempo debruar-se sobre o a priori transcendental em suas variantes e estruturas notico-noemticas. tudo uma questo de ponto de vista. Mas, com quem anda a verdadeira verdade epistemolgica, o verdadeiro ponto de vista? Quem so, afinal, os senhores do rigor metodolgico indubitvel, infalvel?54O rigor nas pesquisas qualitativas

Essa sim uma questo sria, porque toca em um mbito tico inadivel: o da efetiva qualidade das pesquisas. O que determinante como qualidade em uma pesquisa? H, por ventura, medidores de qualidade, ou se tem confundido o qualis com o quantis15? importante destacar a tendncia geral dos processos de validao das diversas reas cientficas: so baseados em critrios que na maioria das vezes reificam os procedimentos investigativos j institudos e no consideram os processos instituintes. Significa dizer que a apreenso da suposta qualidade de uma investigao se d muito mais pelo formalismo normativo do que propriamente pela capacidade de reconhecimento correto, sobretudo se a pesquisa inovadora, pois facilmente ser considerada imprpria, inadequada, incompleta. No campo da qualificao instituda s o que est estabelecido tem valor. Qualquer produo discursiva estranha ao cnone regulador ser considerada desqualificada. Quer dizer, h muito jogo de foras nos processos de validao do conhecimento cientfico e nem sempre o que efetivamente potente e benfico reconhecido e valorizado corretamente de imediato. Basta analisar a poltica de distribuio dos recursos das agncias de fomento do nosso pas para nos darmos conta de que a pesquisa cientfica e a produo intelectual so hierarquizadas de uma maneira completamente contraditrias para um regime poltico que ostenta os princpios de uma nao livre e autnoma. O que se deveria fazer para fomentar a produo de conhecimento qualificado em nosso pas no feito, que seria o investimento concentrado na experimentao de novas idias e de novos talentos investigativos, a partir deDante Augusto Galeffi55

uma educao bsica de qualidade. Pelo contrrio, o que se v a manuteno dos feudos e das autorizaes baseadas no na produo de idias prprias e conjugadas e sim no formalismo normativo que usado como uma receita nica para todos os casos de igual maneira. Assim, muitas vezes estamos sendo enganados com os critrios de qualidade usados nos meios de validao da pesquisa cientfica e ainda estamos muito longe de alcanar uma democracia tambm no plano da produo intelectual, que hoje parece ser regida por um regime tecnocrtico absoluto, em que toda qualidade medida por um padro exterior supostamente impessoal. Ora, isso um concreto engodo que s funciona pela baixa qualidade geral da formao para o livre e responsvel existir compartilhado prprio e apropriado. Que fique claro, no se trata aqui de se fazer nenhuma defesa do individualismo de qualquer espcie, mas de chamar em causa a descrio de fatos, sem os prejuzos comuns que nos cegam diante deles. No tenho nenhuma dvida de que o ser humano um ser social e que a sua vida individual s faz sentido na relao com uma totalidade, que sempre um modo de ser-no-mundo-com. Tenho dvidas, entretanto, se as formas de validao e certificao vigentes dos produtos cientficos sejam as mais apropriadas para a gesto da qualidade dentro de uma perspectiva que d conta da emergncia humana planetria auto-socio-eco-potica16, portanto, que articule e conjugue a sustentabilidade dos processos produtivos pela qualificao humana elevada esfera onde o indivduo, sociedade e espcie convirjam dialogicamente para um estado de comum-responsabilidade aberto e imprevisvel, sem deixar56O rigor nas pesquisas qualitativas

de lado tudo o que preciso fazer para evitar os atropelos que a experincia passada acumulou. prudente atentar para o fato de que uma regulao externa da produo intelectual s isenta da presena subjetiva no formalismo normativo, porque na prtica a coisa bem outra. Onde houver avaliadores que cumpram a aplicao de regras estabelecidas, haver contaminao subjetiva, mesmo na aparente neutralidade do que se apresenta normatizado e manipulado por tcnicos altamente preparados para cumprir as determinaes de tabelas. E ento a qualidade de uma obra julgada apenas pelo seu enquadramento ou no enquadramento nos critrios estabelecidos formalmente. Em modelos assim, pessoas como Einstein, Galileu, Leonardo da Vinci, Aristteles e tantos outros seriam considerados improdutivos pelo fato de nunca terem publicado artigos em revistas cientficas consideradas de classe A ou B, dentro de um sistema de referncia composto por nveis subordinados a um nvel considerado padro. Tudo que avaliado fora do padro considerado qualitativamente inferior, no recomendado, portanto. Ora, como possvel compreender a validao da produo cientfica por mecanismos similares ao descrito acima, sem um comprometimento justamente com a qualidade, que sempre um meio complexo de relaes implicadas? Como conceber como dadas, no plano da qualificao, qualidades superiores e qualidades inferiores estabelecidas por comunidades histricas particulares? Poder-se-ia pretender para tais critrios uma validade absoluta metafisicamente dada? Ou ser preciso se ter a coragem para desmontar qualquer postulao de realidade que se imponha como regime nico e se postular uma validadeDante Augusto Galeffi57

universal da pesquisa qualitativa baseada em um absoluto cuidado com a potncia humana, para que no acontea de nos tornarmos irresponsveis pelo vivente-a?

Poltica, economia e tica da pesquisa qualitativa: limites da conscincia da conscincia e da inconscinciaCom o intuito de encaminhar as tenses por ltimo afiguradas, apresento uma metfora como imageamento ou horizonte notico-noemtico17 da questo relativa validade epistemolgica da pesquisa qualitativa e sua poltica, economia e tica auto-sustentveis. No estou trabalhando com dados estatsticos e sim com processos de compreenso e interpretao que implicam no exerccio da existncia humana consciente da conscincia e da inconscincia um exerccio que pode ser chamado de filosfico, usando a expresso no sentido prprio do termo, que o exerccio rigoroso do pensamento apropriador. Penso e considero o ser humano em suas emergncias e necessidades capitais como o principal sentido da pesquisa qualitativa. Pondero, assim, que seria coerente e veraz chamar de pesquisa qualitativa aquela em que o pesquisador se torna aprendiz de si mesmo na relao de pertena com a totalidade vivente de seu mundo de relaes materiais e mentais. Assim, uma pesquisa faz sentido na medida em que alcana sentido como prxis qualificadora. Isto significa no a produo de um produto requerido por um mercado consumidor especfico, e sim a produo de si-mesmo-outro-mundo produo que se d58O rigor nas pesquisas qualitativas

por reproduo, manuteno, potencializao e por atualizao continuadas. A pesquisa qualitativa no tem como fim atender ordem de uma produo intelectual regulada por grupos de pesquisa hegemnicos, imperiais, colonizadores. Acreditar nisso seria aceitar a indignidade, o rebaixamento ontolgico, a servido humana como dada e certa, sem alternativa de mudana, de revoluo, de transformao radical. Posso afirmar que o seu fim o conhecimento em seu acontecimento do conhecimento do conhecimento e do desconhecimento, tendo em vista a realizao humana plena em sua abertura ontolgica radical um ser da diferena sem perda da unidade diversa. Seu fim a vida humana instante projetada em sua causao como est sendo. Desse modo, a qualidade no rigor da palavra deveria ser a qualidade alcanada pelo pesquisador em sua radicalidade aprendente, o que significa uma interao com o seu meio de existncia. O rigor na pesquisa qualitativa s pode ser compreendido em sua consistncia prpria e apropriada a partir de um ato livre e implicado com a vida abundante. A atitude de rigor do pesquisador no pode deixar passar as incoerncias ticas que levam a efeitos epistemolgicos desastrosos, incoerncias que levam ao jogo pessoalista que se reveste de impessoalidade a servio de uma coletividade fictcia, justamente porque carente de vida prpria. Pois ter vida prpria implica em processos afetivos de relaes interpessoais vivas, histricas: uma poltica de afetos e uma economia sustentvel com autonomia sempre compartilhada uma tica da comum-responsabilidade e do cuidado radical com o cuidado radical. Eis o imageamento:Dante Augusto Galeffi59

Em um lugar qualquer do universo, muito provavelmente no planeta Terra, h bilhes de anos luz atrs, existiu como expresso da espcie humana uma civilizao que em determinado momento da sua histria desenvolveu um chamado mtodo cientfico e com ele determinou uma hierarquia entre as sociedades e os indivduos do planeta. Determinou, com seu mtodo certo e objetivo, que a espcie humana deveria ser reconhecida e dividida em duas partes: os puros e os mestios. Os puros seriam puros enquanto no se misturassem. Os mestios, como diz o nome, seriam simplesmente mestios e condenados mestiagem eterna. Todo puro que provasse da mistura seria imediatamente expulso da pureza. Com o passar do tempo, essa determinao epistemolgica acabou por gerar uma humanidade completamente dissociada e fragmentada, dependente e submissa ao idealismo maniquesta e sempre transcendente. Tornou-se to determinista e to rgida que acabou por determinar a sua prpria excluso por ausncia da pureza estabelecida como princpio. Entretanto, antes de desaparecer como espcie, desenvolveu processos de extremo poder, que poderiam ter se constitudo em outras possibilidades se o seu fundo comum no fosse ainda a barbrie e a continuidade da cadeia alimentar das espcies do planeta em que os mais fortes e mais armados so os vencedores por definio dogmtica, portanto, indiscutvel. A possibilidade de um outro processo de desenvolvimento dependeria do acrscimo de conscincia do indivduo, da sociedade e da espcie na direo de um cuidado amoroso com sua prpria qualidade de existncia em todos os mbitos, o que s acabou acontecendo no limite individual e em pequenssimas comunidades alternativas que intensificaram a simplificao das necessidades e acabaram desaparecendo na paisagem, confundidos com rvores e animais. Conta a lenda que o processo de alienao da espcie foi to grande que em determinado momento se conseguiu reproduzir com tanta perfeio os modelos orgnicos e ps-

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quicos, e foram construdas mquinas to perfeitas substituindo os seres vivos, at o ponto de no haver mais procriao natural, e as mquinas humanas dominaram o planeta atravs da reproduo do modelo que as produziu. Instituram a eugenia planetria e logo todas as espcies naturais haviam sido substitudas por programas avanados de simulao de vida. Conta-se ainda que nessa poca uma maa era considerada uma maa a partir de uma certificao dada por uma organizao agrcola que acabou patenteando todas as frutas, cereais e legumes do planeta, controlando-lhes a reproduo por interveno gentica. Dizem, tambm, que foi implantado um sistema de controle da qualidade maqunica da produo dita intelectual por meio da padronizao hierrquica fechada, atravs da qual eram julgadas todas as espcies de produo cientfica. Houve tambm uma forte colonizao de outros planetas e aqueles experimentos e construes cientficas que no alcanavam a divulgao interplanetria, por meio de peridicos qualificados, eram considerados endgenos e como tais nunca poderiam merecer o qualificativo de cincia rigorosa, no passando de cpias de cpias de cpias. Falam ainda que sem pedigree curricular comprovado em cartrio pblico e tudo ningum poderia chegar a produzir algo que pudesse vir a ser considerado de valor verdadeiramente cientfico. Dizem tambm que instituram para si mesmos uma diviso no mnimo curiosa entre cincias da natureza e saberes humanos, tendo esses ltimos em determinado momento pretendido erigir-se em cincias humanas independentes, mas foram impedidos pelo formalismo jurisprudente da Real Sociedade da Cincia Interplanetria, que passou a desqualificar qualquer pesquisa independente como falsa e nociva, sem levar em considerao qualquer apelo considerado subjetivo. No se sabe claramente se a verdadeira causa de sua destruio foi mesmo o excesso de controle e a falta de sensibilidade, mas se sabe ao certo que desapareceu e somente deixou

Dante Augusto Galeffi61

vestgios digitais em programas que agora precisam de intrpretes muito raros para sua decifrao correta.

Esse imageamento ou metfora a apresentao da condio de princpio para se chegar a visualizar as consequncias desastrosas de uma cincia que no sabe valorizar a potncia da diversidade da espcie e que no sabe como fazer para se desamarrar de seus prprios preconceitos ontolgica e epistemologicamente enraizados. Precisamos ter presente, por emergncia da existncia humana atual, uma compreenso articuladora da totalidade conjuntural que nos permita desenvolver uma criteriologia na investigao dos processos individuais, sociais e ecolgicos que constituem a existncia humana universal, tendo-se em vista a realizao no-programtica de projetos humanos auto-sustentveis, cuja poltica fundada na pertena comum a um mundo de entidades participantes das mesmas condies de inteligibilidade e de sentido existencial. Afinal, a humanidade em sua dimenso unitria de espcie no um produto acabado e concludo pelo trabalho de Deus, mas uma obra aberta ao seu prprio poder-ser diferencial. Um mistrio insondvel que s se deixa capturar em instantes. Tudo isso aponta para uma tica propriamente dita, que no pode ser compreendida seno como forma de realizao plena dos sentidos humanos individual, social e ecocosmolgico. Toda cincia qualitativa est assim implicada com o prprio desenvolvimento humano complexo e diferencial, e ser sempre um meio de realizao da qualificao necessria produo de uma vida cujo sentido primeiro e ltimo o tornar-se aquilo que se : uma potncia de plenitude vivente. Tambm, uma obra de arte.62O rigor nas pesquisas qualitativas

A tica na pesquisa qualitativa a garantia de que o trabalho cientfico fundamental no consiste na utilizao de modelos eficientes j dados, mas no aprendizado intensivo do modo de ser aberto da cincia da conscincia e da inconscincia, que afinal o mbito em que toda investigao qualitativa deveria assentar o seu horizonte notico-noemtico efetivo. O lugar, afinal, em que o sentido sentido para seres humanos que se reconhecem livres de toda metafsica e de todo determinismo controlador. O controle, agora, o meio de equilibrao da qualidade e da qualificao em movimentos de relao de poder convergentes para um sentido comum unitrio de tudo e de todos, sem que isso se transforme em camisa de fora negadora da prpria complexidade heterogentica da natureza como totalidade e da humanidade histrica nela existente. Ns somos sempre aquilo que pensamos e como pensamos. E nossos pensamentos no so apenas atos intelectuais analticos, mas so tambm desejos, juzos de gos