LIVRO - A Existência Para Além Do Sujeito - A. Feijoo

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- E há alguma mudança na estrutura de família mudança

d e c asa d e escola. Enfim  algo que chame a atenção de vocês?

A mãe olha para o pai, parecendo estabelecer certa cumpli-

cidade e aguarda. Parecia esperar que ele falasse alguma coisa e

o pai se pronuncia:

- Acho que não que eu me lembre nada se modificou. Mu-

damos de casa mas já faz algum tempo  morávamos em uma casa

maior e fomos para um apartamento e a avó materna  o morar

junto no apartamento mas

isso

já tem quase dois anos.

Nesse trecho, aparece a atmosfera familiar do afanar, fazer

com que as coisas desapareçam. Aqui aparecem indícios não ver-

bais de que há coisas que não devem aparecer, não devem ser ditas

ao psicólogo. Mãe e pai apresentam uma cumplicidade com rela-

ção ao que deve e não deve ser dito. Mas interpretar o que o gesto

quer dizer é fenomenológico? A fenomenologia não ignora o fato

de que os olhares, como atos de olhar, têm uma direcionalidade.

Quanto à interpretação dos gestos, Husser (1970) diz que esta de-

pende da inserção do sentido e,assim sendo, não

é

fenomenológi-

ca. Heidegger coloca-se de outro modo e diz que o gesto

é

decisivo

para indicar o comportamento que devemos acompanhar.

a

analista volta-se para a mãe e pergunta:

- E você Lea  se lembra de a lguma coisa?

Lea responde:

- Antes disto acontecer  de percebermos que estav a a con te-

cendo? As notas de Antônio vinham baixando  a cho que ele já es-

tava pedindo ajuda sempre que

o

seu rendimento cai  percebo aí

um pedido de ajuda.

Novamente, a mãe passa a interpretação de que aquilo que

a criança faz tem outra intenção. Era preciso sair desse tipo de

interpretação, pois, dessa forma, nunca alcançaríamos o que re-

almente está em questão.

a

analista, ao perceber indícios de segredos familiares,

respeita a situação, não insiste e vai investigar as outras rela-

ções de Antônio:

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- E o irmão  como é

o

relacionamento deles?

Agora, o pai as-

sume a dianteira:

- Muito bom João é um a criança muito dócil. Eles sã o muito

carinhosos um com o outro  brincam muito  u m não tem ciúmes

do outro. Como a idade é próxima  e le s s ão muito amig uin hos .

Agora  João não dá problemas  as notas na esco la são sempre boas

ele

é

mui to inteligente.

(A mãe permanece em silêncio).

a analista, então, resolve abrir um espaço para que Lea

se pronuncie:

- E você  Lea   tem algo a acrescentar?

- Não é tudo isso que ele falou. Só acho que você tem que

prestar mais atenção ao que você fala. Se Antônio ouve o que você

falou  ele vai se sentir diminuído.

O pai responde:

- Só porque es to u fa lan do a ve rd ade.

É

melhor men ti r?

A mãe retruca:

- Só estou dizendo para você prestar mais atenção ao que

você está falando.

Ao terminarmos a sessão, perguntei-lhes se

Antônio

sabia

que eles estavam vindo à entrevista, que essa se destinava a um

acompanhamento psicológico com ele. Eles responderam que

ainda não haviam comunicado, pois estavam esperando ver o

encaminhamento que seria dado pelo psicólogo. Já começando

a psicoterapia propriamente dita, o psicoterapeuta deu início ao

rompimento da atmosfera do segredo, do esconder coisas. Orien-

tei-os a contar ao menino sobre a entrevista, sobre o porquê de

eles pedirem ajuda ao psicólogo e o que vinha preocupando-os

no comportamento dele. Eles concordaram e marcamos o en-

contro com

Antônio

três dias depois.

Em uma postura antinatural, o analista suspende o diag-

nóstico  dado pela mãe e pelo médico e volta-se para o fenô-

meno em sua mobilidade estrutural. Neste momento, importa o

sentido que Antônio dá

à

sua experiência. A postura fenomeno-

lógica implica deslocar-se das interpretações comum ente atribu-

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idas, asswnindo uma atitude antinatural com relação à questão

que se apresenta. Ou seja, tomando o modo de ser da criança em

sua expressão singular, tem início a atuação clínica. Para tanto,

é preciso que a visada sobre o fenômeno que se apresenta não se

dê a partir de nenhum pressuposto em tese acerca do que pos-

sa ser uma  compulsão a afanar coisas . A atenção do psicólogo

volta-se para a criança em seu modo próprio de comportar-se

e deixando que ela se mostre por si mesma. E isto consiste em

deixá-Ia livre para si mesma, para assim poder assumir a sua li-

berdade e responsabilidade.

A criança, ao se apresentar ao analista, deve ser recebida a

partir daquilo que vai acontecer na relação nesse momento es-

tabelecida. Para tanto, o analista deverá assumir uma atitude fe-

nomenológíca, e, assim .suspender todo e qualquer pressuposto

que anteriormente se fez presente, inclusive no relato dos pais.

Para exemplificar este modo de proceder clinicamente, apresen-

taremos um trecho desse atendimento:

Antônio compareceu à sessão, acompanhado do pai. Estava

muito bem arrumado. O pai me apresentou a ele. O menino sor-

riu e prontamente dirigiu-se à sala, mostrando certo entusiasmo.

A fim de saber se os pais haviam seguido sua orientação, o ana-

lista iniciou com a seguinte pergunta:

- Teuspais te disseram o porquê de você vir à psicóloga?

Antônio consentiu com um gesto e disse:

- Eu sei por que estou aqui, mas tenho medo, vergonha de

dizer. Eu também rôo unha, às vezes, mas nem sei por quê.

Após um silêncio prolongado, retoma:

- Também gosto de contar algumas mentirinhas. Mas lá em

casa todo mundo gosta de contar algumas mentirinhas. Às vezes,

meu pai pede para eu contar, às vezes minha mãe pede para eu

contar, só minha avó

é

que não pede. Meu pai pediu para eu men-

tir para o guarda e dizer que eu tinha   anos, para que ele não

multasse meu pai porque eu estava no banco dafrente. Minha mãe

fez a mesma coisapara eu entrar no hospital para ver meu primo.

118

Todos contam mentirinhas. Na escola, meu amigo Carlos faz os

mesmos erros que eu. Se eu tenho um lápis, Carlos também quer

o lápis. Ele acaba pegando meu lápis. Eu peguei o bonequinha de

meu irmão, peguei escondido. Aí o que acontece, Laura me acu-

sou de ter pego um lápis dela. Eu não peguei, eu tinha igual. Não

peguei o de Laura, mas ela disse para todo mundo que fui eu. Aí,

para ela não ficar triste comigo, eu dei um cardgame para ela.

Após um longo silêncio, Antônio propôs uma brincadeira

de erros e acertos e, assim, poder continuar as revelações. À es-

querda do papel pediu que eu escrevesse erros  e à direita acer-

tos  e a brincadeira consistia em pensarmos nós dois o que se

enquadraria em cada uma dessas colunas. Antônio prontamente

preenche a primeira linha da coluna erros com o seguinte:  Pegar

escondido e na coluna acertos:  Pedir verdadeiro

Pegar escondido 

Pedir verdadeiro

Bonequinho do irmão: peguei para

brincar, depois ia devolver.'

Agenda: fiquei um pouquinho triste,

depois passou, mas ainda não ao passou. 

Bonequinho do primo: peguei para

brincar, depois devolvi e troquei por

objetos.  

Troquei.  

Peguei as coisas do papai e ele

descobriu 

Pedi ao papai.  

o erro que aconteceu: eu fui no porta-

óculos do meu irmão e peguei 1 carro e

dois cards.

15

Coloquei de volta.

Peguei coisas do meu avô e do meu pai. 16

9 Verdades que assumi

10 Mentiras que preguei

11 Mentiras que preguei

12 Mentiras que preguei

13 Verdades que assumi

14 Mentiras que preguei

15 Verdades que assumi

16 Verdades que assumi

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Antônio suspende a brincadeira e diz:

- Eu queria contar um problema: Pedro vai ter a festa de

aniversário dele, só que vai ser na casa dele. Eu não tenho vontade

de ir, sabe?Eu não quero ir   festa, tem muita gente que rouba e

também tem um pequeno probleminha, acusam a pessoa de uma

coisa que ela nãofez. Alex rouba as coisasdos outros. Eu desconfio

também da Flávia, ela também pega ascoisas dos outros. Mas não

é só issonão, tem outro problema, meu pai vai sair com João, e eu

também quero ficar com meu pai, sair com osdois.

- Então vocêtem dois motivos para não querer ir   festa.

- Tem outro, tenho medo de não controlar.

- Tem medo de não controlar o que?

- A vontade. (silêncio)

- ntade de que, Antônio?

- De pegar as coisasdos outros. Eu não quero pegar, mas eu

olho a coisa e me dá muita vontade, vontade mesmo. Também te-

nho medo que Gabriel coloque coisas na minha bolsa e depois me

culpe. Elejá fez isso,guardou no meu estojo o lápis de Bruna. Bru-

na sentiu afalta do lápis, aí eu coloquei o lápis na mesa de Bruna,

só que elame viu colocando o lápis e eu me defendi, disse que tinha

sido   Gabriel que tinha colocado no meu estojo, s ó que ninguém

acreditou, ficou todo mundo olhando para mim.

Antônio fica calado, parecendo triste, abaixa a cabeça, põe a

mão no rosto, parecia estar chorando. Repentinamente, levantou

a cabeça e fitou-me por um longo tempo. Na tentativa de mobili-

zá Io

e tentar compreender o que estava acontecendo, falei:

- Parece que essasituação te deixa muito triste.

- E vou ficar muito sozinho.

- E como éficar sozinho para você?

Antônio: (permanece em silêncio)

- Não ter ninguém por perto, nunca vivi isto, tenho medo,

ficar sozinho no recreio.

Nesse primeiro encontro com a criança, é importante ob-

servar que a psicóloga deixou que a criança se expressasse sem

120

emitir nenhum juizo de valor, nem buscar evidências de um

transtorno. A criança expressou-se livremente e logo apresentou

a atmosfera da convivência familiar, na qual esconder coisas se

fazia presente. Ao mesmo tempo, Antônio deixou claro o clima

de medo e tristeza em que ele se encontrava, ao mesmo tempo

em que reconhecia que o prazer em pegar coisas poderia acabar

por

deixá-lo

em uma situação difícil entre os demais. Sabia do

risco que corria, já que a tonalidade do êxtase frente ao prazer

de pegar coisas, ao suspender as prescrições do mundo no que se

refere ao certo e ao errado, facilitava que, no final, ele as pegasse.

Por isso, preferia abrir mão de ir à festa.

A sessão termina e, no encontro seguinte, Antônio chega

animado e começa a falar:

- Sabe, pensei bem e não me importo de não ter amigos. Dei-

xar de ter amigos nãofaz mal para mim.

O analista tenta buscar o que estava acontecendo para que

ocorresse uma mudança de atmosfera. Aquilo, que anteriormen-

te trouxera um astral de tristeza, nesse momento não importava

mais:

- E na escola, como vai serficar sozinho?

Antônio retoma o humor anteriormente apresentado e diz:

- Ficar sozinho e não ter ninguém para brincar,ficar sozinho

no recreio. Vouficar triste, sem ninguém brincando comigo, é, não

vou gostar.

O analista questiona:

- E você quer isto para você?

Antônio prontamente responde:

- Não. Quero beber água. (Bebe água, vai ao banheiro, faz

hora para não retomar a sala). Não vou à festa. O quinto erro, já

consertei, dei minha nota de cinco. Já consertei ontem. Já te dei

uma pista do que  oi   erro. Vêse você descobre.

O analista arrisca:

- Vocêpegou uma nota de cinco.

Antônio retruca:

121

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- Não. Eu troquei a nota de dez e uma moeda de um real.

Troquei com a minha mãe e eu deixei. Eram seis reais de duas

pessoas. Diminui uma conta, se i s ealguma coisa.

O analista então pergunta:

- Então você devolveu o dinheiro que tinha pego. E como você

sesentiu?

Antônio responde:

- Aliviado, consertei meu erro.

Antônio pediu para desenhar e disse:

- Vou desenhar o 'Viscondede Sabugoza.

A primeira fala da Emília:

- Era uma vez, um lugarzinho no meio do mato. Era um

sítio. Nesse lugar, moravam muitas pessoas como o Visconde de

Sabugoza. Ele[oi feito por Pedrinha com uma espiga de milho.

O

passatempo mais divertido dele

é

ler livros e sempre pensa uma

coisapara resolver todos osproblemas. Quando a Emília está com

uma idéia, elejá está com outra. Ele também tem muitos amigos:

Narizinho, Pedrinho, Emília e Dona Benta. Emília sempre entra

numa confusão e numa aventura; aventura perigosa.

Um dia, Narizinho estava sentada na beira do rio com sua

amiga Emília que não sabiafalar. Um dia apareceu o Príncipe do

rio e foram para um castelo. Tinha um sapo tomando conta do

castelo, estava dormindo.   príncipe obrigou o sapo a comer cin-

qüenta pedrinhas.

Eles entraram no castelo,foram jantar e aí chegou uma bru-

xa eperguntou: você virou

 

pequeno polegar e todos responderam:

 

nao.

Aí Narizinho joi falar com Pedrinho e

o

Barnabé e

o

Fis-

conde para ir para junto com ela. Pedrinho

foi

conhecer o reino.

Opolvo puxou o rabico.Pegaram o rabicó eforam para o castelo.

No dia seguinte, o príncipe mandou uma carta dizendo: Na-

rizinho, você quer casar comigo? 

Narizinho respondeu;  Quero .

Tia Anastácia não aceitou. Narizinho não quis casar, ela

122

esqueceu a Emilia, tinha ido lá para buscar a Emil ia e as pílulas

falantes com Dr. Caramujo. Quando colocou uma pílula na língua

de Emília, elafalou:  Que pílula horrível .

Após acabar o desenho e a história, Antônio solicita outra

atividade:

- Famos fazer a brincadeira dos erros e dos acertos?

Erros Antônio Acertos

Antônio

Maluca

Inteligente x

Cria confusão

x

fala a verdade

às vezes

mentiras

faladeira

x

x

Inteligente

ão tem erros

x

Sábio

x

Honesto

às vezes

fala verdades à v z 

Emflia

Sabugoza

Tivemos a oportunidade de observar a tensão em que

Antônio se encontrava. Ele oscilava entre a vontade de contar o

que ele mesmo denominava de erros e acertos e a vontade de

não trazer essas mesmas questões. Essa tensão, que se apresentava

em uma oscilação, continua a acontecer nos encontros seguintes.

O analista apenas o acompanhava, sem forçá lo a seguir nenhuma

direção, acompanhava-o naquilo que ele queria expressar.

No próximo encontro, logo que Antônio chega diz:

- Saí com meu pai. Só um problema nesta semana.

Fica em silêncio. Respira fundo, passa a

mão

no rosto, abai-

xa osolhos, mexe-se na cadeira, ri, ficaem silêncio, ri novamente.

O analista, então, convida Antônio a sentar-se no sofá. A criança

vai para o sofá, deita-se e permanece em silêncio. Retoma a pa-

lavra e diz:

- Não aconteceu nada nesta semana.

- Então você não tem nada para me contar.

  3

o

profissional interrompe e ambos permanecem assim até o f inal

da sessão.

 

pai vai ser meu terapeuta, vai mepegar toda quarta-feira, vai con-

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No encontro seguinte, Antônio inicia a sessão:

- Eu estou com um

problemão

mas não é nenhum erro não.

É

irpara a casade meu pai. Perco de brincar com Lauro e Cláudio,

o chatinho, fica afastado. Pedi a Lauro para ir também. Meu pai

disse que não pode, porque meu irmão também vai. Eu também

prefiro não ir.Meu pai ficou o tempo todo tentando me convencer.

Eu não estou convencido.

(silêncio).

O analista, na tentativa de continuar falando do assunto,

sugeriu que dramatizassem a conversa com

seu

pai. Ele pronta-

mente aceita e pede que inclua a mãe também:

- Eu sou meu pai e você é eu .  ó que eu não

sei o

que vou

falar, sou muito indeciso.

-  Vocêé indeciso ou está com medo defalar?

- Tenho medo, minha mãe vaificar triste se eufalar. A idéia

 oi

do meu pai. Lembra do envelope do segredo

- Lembro.

- Então vamos fazer.

 

Título:

  Antônio

escreveo que aconte-

ceu.':

(fecha o envelope e guarda-o com

ele,

ficando em silêncio).

- Eufiz coisas horríveis,

(soletra)

m-e-n-t-i-r-a. Às vezes te-

nho vontade de chorar,por outra coisa, não épela mentira não,

que eu não possofalar. Como uma criança entra em tratamento? '

- Os pais telefonam para o psicólogo e pedem que ajudem a

família.

- E o que eu conto aqui, elessabem?

 

que acontece aqui é nosso segredo.

- É

o nosso segredo?

 É  

- Problemas, vou escrever, me dá um papel: Brigas - irmão.

Repartir - um amigo da onça. Timidez e nervosismo - Gabriel,

amigo da escola. Preocupação excessiva - só adulto: pai, mãe etc.

Quando estou com problemas, prefiro ficar sozinho, prefiro não

falar do problema. Preciso de ajuda. De uma ajuda especial. Meu

126

versar tudo, vai começar nasférias.

No final da sessão, Antônio pediu ao analista para guardar

o envelope, mas disse que ele estava lacrado e proibia que o les-

se. Ele queria apenas que fosse guardado. Quando o psicólogo

entregou Antônio a seu pai,

este

comunicou-lhe que estavam en-

trando de férias e que iriam viajar. Depois, quando retomassem,

marcariam as

sessões.

O analista interpretou o ocorrido como

uma desistência do processo psicoterapêutico: o compromisso

com o silêncio, que me parecia algo da atmosfera familiar, o fato

de o pai não ter se comprometido com o horário no retorno das

férias, o fato de o pai tomar-se o terapeuta às quartas-feiras, a

tristeza de Antônio etc. No entanto, não foi o que aconteceu. Na

primeira semana de agosto, ao retornarem das férias, marcaram

a sessão para a semana seguinte.

Antônio chega com um cartão meio que escondido. E pede

que o analista converse com seu pai enquanto ele iria fazer uma

coisa. O pai aproveita para me contar que percebe Antônio bem

melhor, que ele já não tira mais as coisas dos outros. Ao retomar,

o menino pede que o psicólogo vá buscar as correspondências.

O clínico pega o cartão, retoma, entra com ele na sala eAntônio

pede para irem para a sala de lu do e para guardar o envelope

lacrado. Desenha um coração, ele transforma-o em borboleta,

depois abandona a tarefa e, por fim, procura material na gave-

ta. Antônio brinca sozinho com os fantoches, pega as bonecas

anatômicas, explora-as, arruma-as devidamente em seus lugares.

Ele desenha, mas não quer falar sobre o desenho. Ele pega a tinta

e começa a fazer borrões de tinta. Antônio não quer falar. Ele

demonstra que quer estar ali, realizando diferentes atividades.

Todavia, quer manter-se no seu silêncio, não pede que o clínico

participe e esse o acompanha também em silêncio. Ao terminar

a sessão, Antônio entrega seus desenhos e pede que o analista

os guarde. Esse prontamente diz que os guardará junto aos seus

outros desenhos e envelopes lacrados.

127

Em conclusão, parecia que o pedido do menino para uma

colocou como aquele que desde início já sabia qual era o pro-

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conversa em família anunciava o rompimento, por sua parte, da

atmosfera do escondido, do mistério e do segredo. O segredo pa-

recia constituir a tonalidade mediana que sustentava toda a situ-

ação familiar e que Antônio agora resolvera, mesmo com toda

a tensão do momento da quebra dessa atmosfera, romper. Essa

passagem remete-nos

à

obra-prima de Henry lames

 1898/2006 ,

 A volta do parafuso':

Nesse romance, [ames relata uma situação

na qual reinava um pacto de silêncio, em que as crianças, uma de

oito e outra de dez anos, nessa atmosfera, apresentavam modos de

agir totalmente estranhos e bizarros, não esperados para crianças

nessa faixa etária. Nelas acontecia o que Kierkegaard denomina

de mau hermetismo (2010), posição psicológica de não-liberdade

em que, em silêncio, resistimos à condição de nossa liberdade.

E, ainda para Kierkegaard, nisso encontramos a doença que nos

acomete quando nos desoneramos de nossa própria responsabili-

dade (2010). O próprio título do romance aponta para a metáfora

da tensão que, além de apertar, esgarça a existência, no caso das

duas crianças. A governanta responsável pelo cuidado das mes-

mas, percebendo a situação, resolve agir de forma sutil e paciente,

a fim de que o mistério e o segredo se dissipassem. Ela parecia

acreditar que apenas desse modo poderia ajudar a aliviar a tensão,

mesmo que em um primeiro momento mobilizasse mais tensão,

daí o tí tulo com que também se conhece essa obra

 A outra vol-

ta do parafuso .

Assim, também parecia ser essa a atmosfera em

que se encontrava nosso analisando. Agora, Antônio queria criar

uma situação em que todos falassem e, assim, estava disposto a

romper com a atmosfera de segredo que reinava no âmbito fami-

liar. Antônio, ao propor o rompimento desse clima familiar, em

um primeiro momento, cria uma tensão ainda maior. O pedido

do menino para que abríssemos um espaço para a comunicação

familiar parecia fazer sentido e t er lugar. No entanto, não foi uma

proposta antecipada pelo analista. Este, com paciência e sutileza,

assumindo uma atitude fenomenológica, não interveio, nem se

130

blema e o que fazer para solucioná-lo. Caso o clínico partisse de

teorias acerca do que era o problema e de como

resolvê lo 

criaria

obstáculos à apresentação do fenômeno. Na situação de Antônio,

um tal obstáculo seria propor, por exemplo, o encontro com a

família para forçar o diálogo e desvelar seus segredos.

Poderíamos também colocar a questão como sendo do âm-

bito de uma subjetividade encapsulada, de uma falha psíquica, e

destinando-lhe uma identidade de cleptomaníaco, insistir para

que ele falasse no tema e buscar rapidamente o que determina-

va esse comportamento. Mas ao ver que o escondido tratava-se

da disposição afetiva da família, na qual Antônio também estava

envolvido, o analista preferiu aguardar. Assim, Antônio entregue

a si mesmo pode reconhecer outras articulações possíveis e só a

ele cabia a decisão do que iria ou não fazer.

Partir do diagnóstico que lhe havia sido conferido seria

dar-lhe uma identidade que, além de retirar dele o seu caráter

de poder ser, também o desoneraria de sua escolha. Assim, todo

o seu modo de ser seria justificado por tal identidade, não ca-

bendo a ele mesmo a sua tutela. Retirar o caráter de poder-ser

de sua existência, por um procedimento identitário, constitui-se

como um caminho de acesso fácil, porém pode acabar por sedi-

mentar um determinado modo de ser. Esse processo é discuti-

do com muita pert inência em Sartre (2005), ao referir-se a todo

percurso de Lucien Fleurier, até tornar-se um chefe, tal como já

havia sido decidido pelos seus pais, muito antes dele nascer. Do

mesmo modo que Lucien assumiu a identidade que lhe haviam

conferido, na clínica devemos cuidar para que a identidade atri-

buída à criança não se engesse. Não podemos dizer que não se

deve fazer, devemos nós mesmos como clínicos ir pouco a pouco

desfazendo, ou pelo menos, não fortalecendo esses aglomerados,

essas identidades.

A atenção fenomenológica consistiu em abandonar toda e

qualquer identidade estabelecida para a criança, seja com rela-

 

ção

a um diagnóstico, expectativa familiar ou social, entre outros surgir uma psicologia fenomenológica, a pretensão também é de

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modos. Em uma postura fenomenológica, coube, então, ao psi-

cólogo deixar a criança em liberdade e entregá-Ia sua própria tu-

tela, ou seja, à sua própria responsabilidade. Tratava-se, sem dú-

vida, de uma tarefa delicada. No entanto, ao deixá-Ia caminhar

por si mesma, sem tentar desonerá-la dessa tarefa, vem à tona de

diferentes modos o fato de que, nesse caminho no qual a criança

perde a tutela do adulto, ela pode ganhar a si mesma. Deixá-ia

sozinha consigo mesma é uma arte que consiste em estar sempre

presente, sem mostrar a criança que se está ali. E, assim, permitir

que a criança por si própria possa aproximar-se, entregue a si

mesma o mais demoradamente possível, de uma experiência que

faça sentido no âmbito de sua situação.

Com o desenvolvimento da temática acerca da clínica psi-

cológica em uma perspectiva existencial, pudemos afiançar que

a filosofia da existência traz aspectos formais, que criam um es-

paço de articulação de uma práxis clínica por diferentes motivos.

O primeiro deles é que as filosofias da existência retomam o que

as filosofias modernas haviam abandonado, ou seja, a existên-

cia mesma tal como acontece em seu campo de imanência. Esse

projeto de voltar-se para a imanência é ineditamente apresenta-

do por HusserL Esse filósofo desloca-se da noção de consciência

como algo encapsulado, que se encontra localizado em uma in-

terioridade e com sentidos e determinações dados em si mes-

mos, tomando, então, a consciência como algo que acontece em

um espaço relacional, logo imanente. Ele refere-se à intenciona-

lidade, que passará a ser o elemento fundamental, mesmo que

com diferentes acepções nas filosofias da existência. Heidegger

e Sartre dão continuidade ao projeto de retomada da existência,

cada um a seu modo, mas preocupados com a faticidade onde o

existir acontece. Esse mesmo movimento é acompanhado pela

psicologia que, primeiramente, seguindo o projeto moderno,

toma o psíquico em todas as suas denominações como algo da

ordem de uma interioridade que se relaciona com o exterior. Ao

132

pensar o psíquico como algo imanente, co-originário ao mundo

e, portanto, não passível de ser determinado, nem localizado em

uma interioridade.

Pensar a psicologia a partir das filosofias da existência con-

siste em assumir o caráter de indeterminação que não pressupõe

mais uma essência, seja ela qual for, que precede a existência.

Consiste ainda em aceitar a á rdua tarefa de não ter como prever,

nem garantir nenhum resultado, dado o caráter de abertura e

consequente liberdade em que a existência sempre se encontra.

Articular uma proposta de clínica infantil com base na filoso-

fia existencial torna-se possível ao tomar a criança na mesma pers-

pectiva em que se toma o adulto, logo em liberdade e responsável

por si. Trata-se de pensar a existência em sua imanência, qualquer

que seja a etapa de vida em que nos encontramos. Logo, importa é

que, aquele que tenta evita r a sua condição de liberdade, abertura e

indeterminação possa assumir-se como um ser de possibilidades,

logo em liberdade para dizer sim e não às determinações inseri-

das no horizonte histórico em que ele se encontra.

3.2. A tonalidade da angústia e a antecipação da finitude

  muito comum, nas elaborações da perspectiva heideg-

geriana em Psicologia e psicoterapia, considerações acerca do

ser-para-a-morte confundirem-se com a idéia de que a cons-

cientização dessa condição existencial consistiria na libertação

ou superação de uma problemática existencial. No entanto, esta

não é nem de longe a discussão travada por Heidegger em Ser

e tempo. O filósofo trata antes do horizonte de finitude em que

todas as possibilidades sempre se encontram, e no qual o ser-aí

se abre como cuidado, em seu ter de ser quem ele sempre

é 

para

o caráter de indeterminação de sua existência. Portanto cabe ao

ser-aí e apenas a ele a sua tutela: é isto que a decisão antecipadora

da morte revela, determinando o seu modo próprio de ser .

133

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sentido surjam por aquele que se reconhece estranho a si mesmo.

O psicoterapeuta, apenas, articula quais são os pressupostos que

total estado de indiferença. Imersa nesse tédio, a rotina passa a

ser experimentada como uma manifestação da ausência de tem-

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irá combater, bem como o modo cuidadoso com que vai fazer o

combate. O analista, atendo-se a todo o detalhamento de como

se dá o acontecimento em questão, dará prosseguimento ao des-

velamento da estrutura de sentido em jogo nesta situação.

Nesse momento, o analista, em um ato fenomenológico,

não se precipita em uma atitude ingênua. E, assim, solicita e in-

cita a descrição do que vem acontecendo com o analisando. Age

desta forma para que a questão apareça, no final das contas, para

o próprio que a coloca. Com isto, nesta situação clínica, o analis-

ta volta-se para o analisando, buscando no seu acontecimento o

que este reconhece como péssimo, pergunta:

- Péssimo como?

Responde Paulo:

- Não sei, uma sensação de sufoco aqui no peito. Um incô-

modo não sei de que.

137

3.2.2 O

circulo hermenêutico e a atmosfera afetiva

Sem dúvida, ser gente significa, vez por outra, estar triste,

estar amuado. A Organização Mundial de Saúde, ao estabelecer

categorias da saúde pautadas por um estado constante de felici-

dade e harmonia, modifica totalmente o que significa ser gente.

No caso, Paulo parecia que estava se referindo ao seu ser gente :

tensão basicamente humana. No entanto, era preciso cuidado, o

analista, na tentativa de não estabelecer nenhuma categorializa-

ção, pode acabar por entender que a questão apresentada é algo

passageiro, tensão básica da vida e, como tal, basta dar tempo ao

tempo, que a situação vai passar. A inquietação silenciosa com

aparência de que nada está acontecendo pode ser um alerta do

próprio tédio profundo ou mesmo da própria angústia. No caso

do tédio, ele aponta para a ingerência insuportável do ser obri-

gado a viver todo dia o mesmo, o igual, levando o homem ao

poralização. Fazia-se necessário deixar que Paulo continuasse a

falar, já que parecia não ter outra saída a não ser a de ouvir. Para

tanto o analista posicionou-se, sutilmente, um pouco à frente,

para que Paulo tivesse voz; e ele, então, continuou:

- Há tempo venho me sentindo estranho, questionando o sen-

tido da vida, do trabalho, da família. Por vezes, tenho vontade de

abandonar tudo, mas logo depois reconheço minhas obrigações e

retorno. Algumas vezes fico melhor, outras pior. E muitas vezes,

penso que é apenas uma melancolia, desanimo, cansaço.

O analista insistiu inúmeras vezes, em diferentes momen-

tos, para que Paulo respondesse a questão:  Você tem idé ia de

desde quando isto vem acontecendo? .

Pode parecer à primeira vista que o analista estivesse a de-

tectar o acontecimento que provocou o estado de ânimo de Pau-

lo. A busca, no entanto, referia-se àquilo que desencadeou a at-

mosfera em que Paulo seencontrava. Tratava-se de fazer emergir

o horizonte mais originário da transformação. Para Heidegger, é

por meio das tonalidades afetivas fundamentais que ocorrem as

crises do projeto impessoal, das quais nasce a singularização.

Paulo silenciava, dizia que não sabia e que era um mistério,

até que um dia, pronunciou-se:

- Era mais fácil quando eu acreditava que se tratava de um

espírito possessor. Ia ao centro,fazia as preces e voltava para casa

muito melhor.

- Agora não acredita mais?

- Eu sempre

 u

muito religioso, kardecista. A minha família

sempre foi bem afinada com os ensinamentos de Kardec. Eu fazia

parte do grupo jovem, passava os ensinamentos para os mais jo-

vens. Acreditava totalmente nos princípios reencarnacionistas. A

morte nunca foi um problema, como épara a maioria das pessoas.

Ao entrar para afaculdade, alguns professores ateus me confron-

taram com as minhas crenças. No início me mantive firme, depois

136

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o meu chefe. Chamei-o para uma conversa e expliquei que não

estava confortável com o modo com que as coisas estavam sendo

fora e que, então, reagia com sintomas corporais. Ocorre que a

origem da tensão não provém necessariamente nem de fora, nem

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conduzidas e que estava pensando até em fazer outra especiali-

zação. Enfim, disse tudo que não estava gostando. Ele então me

disse que eu estava me precipitando. Perguntou-me se eujá havia

passado por qualquer uma daquelas situações. Respondi que não.

E ele então me disse que não tinha nenhuma queixa do meu traba-

lho, que eu tinha responsabilidade e encaminhava toda a questão

do paciente com muita atenção e compromisso. E, enfim, que eu

fazia um bom trabalho. Eu pude ver que aquela forma dele falar

era uma característica dele, era um problema dele. Ficou maisfácil

para mim continuar trabalhando com ele.Pude ver que  problema

não eram oserrosgraves, era

o

modo irritadiço com que elefalava,

que me levava a pensar que a gravidade dos equívocos pareciam

maiores do que eram na verdade. Hoje, fico muito mais tranqüilo,

gosto do que faço, adoro UTI. Não é

o

trabalho que me incomo-

da, superei

o

problema. Não me arrependo do que escolhi. Estou

no lugar certo. A princípio fiquei até na dúvida, pensei: vou para

a psiquiatria. Agora vejo que não. Gosto mesmo

é

das si tuações

de emergência, de tomar providências rápidas. Esta

é

a atividade

que eu quero para minha vida, meu futuro. Mas desde a semana

passada estou desanimado, frio e sem vontade de voltar ao traba-

lho. Pensei que, com o final de semana prolongado, iria melhorar.

Pensei que fosse cansaço, estafa, mais nada. Descansava e pronto,

estaria novo, uma vez mais. Toda vez que pensava que tinha que

voltar na segunda-feira para   hospital, chegava a me dar uma

coisa aqui por dentro. Sentia-me mal, depressivo, sem vontade de

nada, vontade só de desistir. Fiquei então pensando: será que estou

deprimido? Mas resolvi procurar primeiro um psicólogo, antes de

procurar um psiquiatra. Resolvi nãofazer uso de antidepressivos.

Tenho dúvida se é depressão ouse é outra coisa.Sei que, na verda-

de, sinto algo que não consigo identificar.

Paulo trazia assim seu diagnóstico:   somatizaçâo ,   depres-

são : parecendo pressupor que estava sendo afetado por algo de

140

de dentro. Trata-se do sentido mesmo da situação em questão,

nas palavras de Heidegger, do   em virtude de  que em Paulo es-

morecia. Este mostrava certa distância entre o seu poder-ser e

as circunstâncias factuais. Logo, não implicava necessariamente

uma somatização, mesmo porque a rachadura no modo de ab-

sorver a realidade não é doença, é sinal de   saúde  . O analista,

então, se pronuncia, sem sedimentar nenhum diagnóstico, mas,

ao contrário, tentando destruí-los. Era preciso buscar e desfa-

zer o emaranhado no qual imaginação, recordação e presença

estavam se aglomerando para que Paulo tivesse a oportunidade

de se dar conta do que estava acontecendo. Fazia-se necessário

continuar procurando a atmosfera em que essa desarticulação se

instalou. O analista insiste na descrição do acontecimento. Para

tanto, diz:

- Vocêdisse que essemal estar começou na semana passada.

Como [o seu trabalho na semana passada?

O analista escolheu procurar a situação mobilizadora no

contexto do trabalho de Paulo.   ingênuo pensar que a lida do

psicoterapeuta é pura, pois as suas concepções e sua história se

fazem presentes. Um analista não deve desprezar os horizontes

hermenêuticos que estarão sempre presentes na situação clínica.

E o que de fato se interpreta são os encontros de horizontes, que

consistem precisamente no que se fala e se escuta, a partir de

uma relação intencionaL Este choque de horizontes é o horizon-

te mesmo de aparição do que acontece no encontro clínico, ou

seja, da aparição da coisa. Quando o fundir dos horizontes se dá

de maneira integral, essa fusão abre o espaço para que o outro

apareça para ele mesmo. O que o analisando diz vai ser escutado,

a partir do horizonte compreensivo do analista, porém o anali-

sando é a medida.

Paulo responde:

- Foi normal, o de sempre. Não me lembro de nada que possa

141

ter me trazido mal estar.Como tefalei, hoje não tenho mais proble-

mas com o meu chefe.Não aconteceu nada de errado.

Paulo:

- Na UTI, normalmente, aspessoas estão mal. Algumas con-

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Esta fala de Paulo mostra um esvaziamento da ação. Von-

tade é algo que se dá tardiamente. Quando você quer alguma

coisa, é porque esta coisa faz sentido para você, é em virtude

de que a vontade aparece. Era preciso buscar o  em virt ude de

que Paulo não tinha mais vontade de retomar ao trabalho. Falar

em vontade pode reportar-nos à teoria. A empiria nos mostra a

tensão entre o poder-ser e o mundo fático. Há um problema de

absorção, o em virtude de mantém a nossa vida estruturada.

Paulo havia perdido esta absorção, daí perdera a tranqüilidade.

Havia aqui um anúncio da dificuldade da absorção. O analista

insiste no acontecimento:

- Conta para mim o que aconteceu de normal.

Ao dizer que estava deprimido, Paulo dizia que não con-

seguia mais acompanhar o ritmo, não conseguia mais trabalhar.

Pode-se até, neste momento, pensar:   Paulo encontra-se entedia-

do?  M as não, Paulo mantém-se no ritmo do tempo, mantém

a rotina, logo se projeta no tempo, mantém o compromisso. O

que faz com que se mantenha esse ritmo é a absorção no mun-

do fático. A experiência de dissonância, ao mesmo tempo em

que é desagradável, abre a possibilidade de rearticular-se com o

cotidiano sem se distanciar da possibilidade que é a sua. A ques-

tão é como se rearticular com o mundo fático, sem retomar à

tranqüilidade e segurança do impessoal, sem perder de vista a

sua singularidade; já que se comportar consiste em adequar-se

às condições marcadas pelo mundo. O mundo tende a apagar

o caráter de poder-ser. Daí duas possibilidades derivadas do ter

de ser que colocam em jogo o seu ser: a propriedade, que abre

para as possibilidades; e a impropriedade, que determina de an-

temão o que o ser-aí é e deve ser. Paulo parecia incomodado pela

primeira vez por confrontar-se com a finitude, abrindo-se como

cuidado que sempre é para o caráter de indeterminação de sua

existência. Portanto, cabia a ele determiná-Ia.

142

seguem sair  outras morrem. A gentefaz tudo para mantê-Ias vivas.

  que

é

mais difícil

é

a relação com osfamiliares. Mas faz parte.

O analista reconhece em Paulo o anúncio ainda difuso da

angústia na qual se instaura a possibilidade de desvelar o que se

encobre na cotidianidade trivial, e, portanto, descobrir o mais

próprio do ser-aí, que em última estância é o seu poder-ser, que

se descortina como o ser-para-a-morte. Então, retoma, tentando

alcançar o instante em que o rompimento de sentido aconteceu:

-  Vocêse lembra em que dia da semana passada começou

esse mal estar?

Paulo pensa e responde:

- Na quarta jeira. [oi na quarta-feira. Na quarta, quando

cheguei em casa, já não estava bem.

O analista, então, continua a busca pelo acontecimento:

- E como

[oi

a quarta-feira?

Paulo, depois de um longo tempo pensando, diz:

- Perdemos um paciente. Um homem forte, com aparência

de saudável. Chegou mal, não conseguia respirar. Queria respirar

e não conseguia. Estava morrendo. A ordem fOi para que deixás-

semos. Não adiantaria, o pulmão já estava tomado. Ficamos eu e

o

outro médico. Ele iria morrer, não havia mais nada a serfeito.

(O silêncio se prolongou).

- E o que vocêfez?

- Coloquei-o no oxigênio. Não consegui deixar. Estava insu-

portável para mim vê-Ia morrer.

Novamente o silêncio se prolongou.

- E o que aconteceu?

- Ele morreu.

O

que impressionou é que ele era um homem

forte. Tinha   anos. Não me identifiquei com ele.Muito distante

de minha idade. Não me identifiquei, mas me impressionou.

Novamente, Paulo buscava ou descartava a situação, obscu-

recendo-a com a teoria, aqui da identificação. O analista, então,

143

na tentativa de desconstruir a postura teórica, retoma ao fático.

Não ficou na postura natural, na qual a teoria estabelece que a

O analista pretendia dar voz ao seu clamor e, agora desper-

tado pelo clamor para as possibilidades que se lhe apontam, o

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questão esteja na identificação, mesmo porque na relação dos

homens todos se afinam e estão em um mundo compartilhado.

Por isso, ater-se

à

identificação implicaria deixar de buscar o em

virtude de que havia se mobilizado :

- Te impressionou ver um homem forte, aparentemente sau-

dável, morrendo?

Parece, então, que Paulo havia antecipado a possibilidade

da sua morte, em um primeiro momento; depois aparecera a re-

lutância de lidar com esta possibilidade, que nas palavras de Hei-

degger trata-se do insuperável, intransponível e incontornável.

Na profissão de médico, Paulo, ao mesmo tempo em que a tarefa

lhe exige uma absorção, vê-se incessantemente confrontado com

brechas que continuamente revelam o caráter mais próprio de

seu poder-ser, mobilizando a todo o momento um possível esva-

ziamento. Assim, ele prosseguiu e disse:

- Eu vejo a toda hora pessoas morrendo. Estou acostumado.

Na verdade, ele olhava toda a hora a morte acontecendo,

mas não a via. Provavelmente, essa foi a primeira vez que ele a viu.

Ele poderia até ter visto em qualquer um, mas foi naquele homem

que, segundo ele, apresentava uma aparência saudável. O que se

lhe mostrou foi uma situação de confrontação, de contraste: ele

trabalha em um setor em que se luta o tempo todo para não dei-

xar morrer e a ordem agora consistia em que se deixasse morrer.

Parecia que a rachadura havia se dado no confronto e que

a finitude seria o ponto constitutivo da intranqüilidade de Pau-

lo, na qual a consciência clamava silenciosamente. No entanto,

era preciso continuar e tentar abrir para ele a possibilidade de

encontrar a experiência do que aconteceu, o sentido desta expe-

riência em Paulo. O analista, na tentativa de dar continuidade ao

que Paulo falava, mantém-se no tema:

- Pessoasque estão na UTI:fracas e não saudáveis; mas um

homem saudável, como pode morrer?   isso?

144

que faria frente à finitude que se lhe antecipara, tanto a do outro

como a sua. Surge uma sensação de impotência com relação ao

acontecimento: não tinha nada a fazer  . Diante da situação, re-

tomariam as sedimentações do impessoal, que tranqüilizavam;

ou ele assumiria a condição mais própria da existência e, com

isto, singularizava-se. Onde a experiência traz certa lucidez e cla-

reza, evidenciada pela sua relação com a finitude, que, no entan-

to, não era o problema, mas sim o ter-se evidenciado o caráter de

seu poder-ser.

Analista:

- Ficou na tua cabeça que mesmo   forte e saudável pode ser

posto de lado, pode morrer.

Se Paulo tivesse embarcado na chamada do impessoal, a

partir do que se diz acerca da imortalidade, teria se acalmado

com o conforto que a impessoalidade proporciona e passaria a

atuar em virtude das sedimentações do impróprio, atenuando,

assim, um problema de sua existência. No entanto, ele não fez

isto, mas respondeu:

- Com aquele paciente aconteceu assim. Nunca tinha batido

dessaforma para mim. Vejo muitas pessoas morrerem, mas nunca

me mobilizou daquela forma, destaforma.

- Aquele homem morrendo foi diferente para você.

- Foi, acho que

 o 

o modo como ele morreu. O esforçopara

respirar. Todo esforço em vão. Eu, ali, impotente, não podia fazer

nada. A cena ainda me incomoda.

O analista tenta, então, fazê-lo lembrar daquilo que Paulo

tentava não lembrar. O esquecimento mostra-se como a estra-

tégia utilizada pelos antidepressivos e pelas técnicas psicotera-

pêuticas que levam a pessoa a sair da situação para se abrigar na

superficialidade do impróprio. Aqui, era preciso manter o con-

fronto com ele mesmo. A voz da consciência, que nada tem a

dizer, confronta você com você mesmo, e, ao decair de si mesmo,

145

momento outras possibilidades se mostraram como tais. E Paulo

pode pelo menos deixar que outra atividade entre na sua existên-

cafiava-os para poder estudar profundamente a loucura em suas

diferentes classificações. Bacamarte acreditava que descobriria a

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cia, outra atividade que parecia fazer muito sentido.

Com Paulo, pudemos constatar que a tonalidade afetiva an-

gústia foi o que mobilizou a transformação, rompendo o círculo

hermenêutico em que ele s e encontrava imerso. Essa imersão que

se encontra no horizonte histórico no qual há o domínio da técni-

ca e amorte é tomada na impessoalidade, ou seja, morre-se : Em

Paulo, a situação limite revelou-se como angústia frente aoseu ser-

par-a-morte. O tédio não consistia na disposição de confrontação,

mesmo porque a sua relação com o caráter temporal da existência

apresentava-se pelo preenchimento do compromisso e da rotina.

Se ele estivesse no tédio profundo, o tempo desapareceria e com

ele o ritmo do existir. Frente

à

solicitação do ter de trabalhar, ele

não diria não tenho vontade : diria prefiro não ir, prefiro não

fazer : Antes de ter ou não ter vontade estaria o não faço, não que-

ro, não sou. Com Paulo, o anúncio da negatividade e da finitude

se deu por meio da angústia. Esse clamor ocorria de forma a que

ele nem ouvisse a voz que silenciosamente clamava. Na situação

clínica, o analista apenas caminhou de modo a não facilitar, como

acontece nas determinações do impessoal, o abafar dessa voz e o

aplacar do anúncio da angústia. Assim, abriu-se a possibilidade de

manter, na medida do possível, tal clamor, suprimindo a incapaci-

dade de Paulo de suportar tamanha indeterminação. Só assim ele

pôde, então, se rearticular no âmbito do ser-aí finito.

3.3. Transtorno obsessivo-compulsivo:

atmosfera afetiva do temor

Machado de Assis (1882/2008), em seu conto O alienista

retrata uma situação do mundo moderno em que um especialis-

ta, Simão Bacamarte, psiquiatra, portanto, considerado conhe-

cedor da mente humana, a partir de suas pesquisas, identifica

os insanos mentais e encaminha-os à Casa Verde. Assim, tran-

148

causa do fenômeno, bem como seu remédio. Ocorria que qual-

quer comportamento, que escapasse ao padrão que o médico

identificava como normal, levava aquele que o expressou à casa

de reclusão. A situação chegou a uma proporção tal que todos da

comunidade itaguaiense foram encaminhados para a Casa Verde

e, por fim, o próprio médico também concluiu que deveria ser

retirado da convivência com os outros e ele mesmo prescreveu a

sua ida para a tal Casa.

Assis parece, com isto, que estava se referindo

à

atmosfe-

ra de seu tempo, onde reinavam os critérios de normalidade e

anormalidade em uma perspectiva de verdade e método. Nes-

se momento histórico em que nos encontramos, destacamos

como um traço do comportamento em geral a compulsão. E

se considerássemos loucos os compulsivos e os encaminhás-

semos ao hospício, aconteceria o mesmo que ocorreu em O

Alienista : todos nós iríamos para uma casa de reclusão. Hoje,

aqueles que recebem o diagnóstico de obsessivos compulsivos

não são encaminhados para as atualmente denominadas Casas

de Repouso. Já se conhece o remédio para curar a compulsão,

logo são imediatamente medicados. Tanto Bacamarte como

os especialistas atuais acreditam que o problema insere-se em

uma interioridade, na qual existe uma falha seja biológica, seja

psíquica que precisa ser reparada. Heidegger, na contramão

dessas interpretações, afirma que a questão da compulsão tem

uma relação direta com o nosso horizonte epocal. A atmosfe-

ra em que atualmente nos encontramos é obsessiva-compulsiva.

} 3

A era da técnica e o traço compulsivo da existência

Heidegger refere-se ao problema da técnica como aque-

le problema que envolve justamente a essência compulsiva. De

acordo com sua exposição, a técnica tem em si um traço com-

149

pulsivo fundamental que caracteriza o nosso tempo. No mun-

do da técnica, essa é a lei, esse é o princípio de determinação

não haviam surgido no âmbito da psiquiatria. Anteriormente,

denominavam-se os transtornos de neurose. Porém, como essa

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de todas as coisas. A técnica, além de estabelecer as conjecturas

a cada vez novas, sempre está se projetando para além daquilo

que ela estabeleceu. Daí, em uma incessante projeção para além

de todas as configurações que a técnica conquista, aliado ao seu

descompromisso, essa tem uma aceleração que não pára. Com

isso, não há mais nenhuma barreira, nenhum limite, enfim ne-

nhuma trava que possa funcionar como um obstáculo para téc-

nica. Absorvidos por essa atmosfera, agimos a todo tempo em

uma autonomia total do comportamento com relação ao sujei-

to do comportamento. E, de um modo geral, a nossa ação, ao

se tornar uma repetição incessante, passa a ser definida como

compulsiva, já que o sujeito do comportamento não tem mais

nenhum

controle

sobre si.   essa compulsão que se materializa

em uma série de transtornos, interpretados aqui não como falhas

de uma determinada subjetividade, mas como transtornos que

ousamos denominar epocais. Hoje, se tivéssemos que mandar os

compulsivos para a Casa Verde, aconteceria assim como o que se

passou no Alienista: todos ficaríamos trancafiados lá. Queremos

com isso dizer que o horizonte da compulsão atravessa, hoje, os

nossos modos de ser.

Mas por que falarmos de transtorno obsessivo-compulsivo?

A palavra transtornar significa virar. A pessoa acometida por um

transtorno é aquela que virou excessivamente, além dos limites

aceitáveis. Parece, então, que a pessoa transtornou-se. Obsessivo

refere-se ao pensamento que não cessa de pensar e ordenar que

algo seja feito, a fim de que todo e qualquer

elemento

impre-

visível não possa surgir e destruir aquilo que se é. Compulsão

diz respeito à ação que efetivamente e definitivamente protege.

A denominação transtorno obsessivo compulsivo surgiu em

1991 com o CIO 10. Este manual foi elaborado com o propó-

sito de atualização das descrições atualizadas das doenças psí-

quicas já existentes, acrescentando-se novas doenças que ainda

150

denominação tornou-se uma categorização utilizada pelo senso

comum, os estudiosos do assunto resolveram utilizar uma nova

nomenclatura. Assim, alguns elementos aí discutidos podem nos

levar a acreditar que o transtorno obsessivo compulsivo se dá

na ordem de uma interioridade que se cindiu e, então, adoeceu

psiquicamente, e que isto pode ser constatado pelos seus sinto-

mas, facilmente encontrados no CID 10. Uma vez estabelecido o

diagnóstico, recorre-se aos procedimentos medicamentosos ou

disciplinadores do comportamento, a fim de que a pessoa possa

retornar a normalidade.

Os transtornos existenciais, na visão heideggeriana, são

comportamentos que promovem um estreitamento do horizonte

existencial de modo que acaba por enfraquecer e encurtar todas

as possibilidades existenciais. Em   er e tempo (1988), Heidegger

pensa o cotidiano em uma perspectiva do comportamento me-

diano, no qual permanecemos com a impressão de que temos

o controle e agimos de modo a que nada seja mais importante

do que tomar conta daquilo, que de algum modo acreditamos

ameaçar nossa existência. E toda vez que temos o anúncio do

incontrolável, dispomos de um esforço enorme para conquistar

novamente o controle. Acontece que nada disso é da ordem do

racional, como diria Sartre (1997). Isso acontece na síntese do

projeto, na ordem do pré lógico horizonte esse que não pode

jamais ser controlado. Por isso, podemos arriscar dizer que, na

cotidianidade mediana, o que mais acontece são modos de ser

restritivos, controladores, portanto, tendencialmente neuróticos.

Acontece que, ao apertar do torno, de modo a tentar controlar

tudo, esse projeto fracassa, já que na vida nunca é possível ter

controle total sobre tudo e todas as coisas. Aquele que vive o

transtorno apresenta uma tentativa de controle total, porém em

um espaço reduzido. E ao reduzir o espaço das possibilidades à

vulnerabilidade e ameaça à sua existência, o transtornado acaba

151

por tomar como ameaçadora uma única possibilidade. Esse es-

paço restrito traz a ilusão de um controle possível, mas é justo

soante a sua vontade, da qual Bentinho não teria controle. Era

preciso, para que ele ganhasse tranquilidade, a total e absoluta

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nessa redução que, ao apertar o torno, transtorna.

A situação em que o transtorno aparece é muito bem ilus-

trada em um conto de Kierkegaard, intitulado

Uma possibilidade

(Valls,2004). O próprio título já aponta para o problema da res-

trição. Trata-se de um personagem, o guarda livros, que sempre

levou uma vida regrada e era um trabalhador exemplar, tanto

que seu patrão deixou-lhe como herança o seu negócio. Essa

excessiva vida apolínea já apontava para uma restrição que nos

dava indícios de uma tentativa de controle. O rapaz levava uma

vida tranqüila, sem grandes preocupações, até que uns amigos o •

chamam para uma noitada que acabou em bebidas e mulheres.

Acontece que o jovem passou a noite com uma mulher e, a partir

daí, começou seu infortúnio. Ele desespera-se pela possibilidade

de que essa única decisão desregrada em sua vida pudesse gerar

frutos, no caso, um filho. Sem dúvida, essa era apenas uma pos-

sibilidade, frente a outras possíveis. No entanto, o guarda livros

só via uma, em total encurtamento frente aos possíveis. Ele, em

desespero da necessidade, faz com que apenas a possibilidade

do filho abarque toda a sua existência. No desespero da necessi-

dade, o rapaz não consegue suportar qualquer indeterminação,

daí ocorre um encurtamento total que não permite o acesso a

qualquer outra possibilidade.

Machado de Assis (1895/2008) também trata do tema do

encurtamento das possibilidades que visa ao controle no seu ro-

mance

Dom Casmurro.

Nesse romance, Machado de Assis relata

a dúvida de Bentinho acerca da fidelidade de Capitu, sua esposa.

Bentinho, consumido pela dúvida, por mais que ele não tives-

se evidências lógicas de que a traição acontecia, quanto mais as

evidências de uma possível fidelidade apareciam, mais ele se tor-

nava certo da traição. Ele não tinha como ocupar os pensamen-

tos nem as ações da esposa, o que deixava sempre um espaço de

liberdade para que o outro estivesse possivelmente agindo con-

152

transparência de Capitu. Como tal transparência era impossível,

como o fato de jamais confirmar tal certeza instaurava a dúvida,

ele não tinha como saber se Capitu realmente o teria traído. Eis

que Bentinho vai assistir à ópera Otelo  Essa ópera traz a histó-

ria de Otelo, que é enganado pelo seu ajudante, Yago. Esse quer

vingar-se de Otelo. Para isso, cria uma intriga entre Otelo e sua

mulher, inventando que ela andava traindo-o com um amigo.

Otelo, não suportando a infidelidade de sua esposa, acaba por as-

sassiná-Ia e depois mata o amigo. Ao descobrir a intriga em que

havia sido enredado, comete suicídio. Nesse caso específico, o

fato de alguém ter sido traído, sem que a traição fosse realmente

efetiva, reforça em Bentinho a dúvida, por não suportar que essa

se acirre ao aparecer outra possibilidade. Em um encurtamento

e em uma tentativa de obter a certeza, opta por manter a idéia

de que ele mesmo foi traído. Na verdade, Bentinho não supor-

ta a dúvida, por isso opta pela certeza. A certeza é a obsessão,

elemento de determinação, a necessidade de Bentinho. Por isso,

resolve por aquilo que, de alguma forma, termina com as ituação

de indeterminação e incerteza.

A história do Guarda livros e a de Bentinho retratam bem

o que caracteriza o transtorno do controle. A impossibilidade de

controle de todos os elementos traz a restrição daquilo que elege-

mos controlar. Essa eleição torna-se o foco para o qual passamos

a dirigir toda a atenção. Com o foco uma vez elegido, passamos

a empenhar-nos nele de forma determinada. E, assim, temos a

neurose como elemento decisivo para o controle, determinação

e compulsão.

Para pensar no horizonte histórico que determina as nossas

ações por meio dos elementos da técnica com a sua atmosfera

própria de controle, compulsão e violência, buscamos na literatu-

ra elementos para ilustrar de que modo as expressões singulares

se dão nesse círculo hermenêutico de orientações sedimentadas,

153

nas figuras do Guarda livros e de Bentinho. Esses dois elementos,

que traduzem o geral e o singular nas expressões de um tem-

do descompasso com av ida e retomar a vida, entregando-se a ela

tal como ela se dá. Mas cabe agora a questão: afinal, como essa

clínica acontece?   isso que tentaremos mostrar com a análise fe-

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po, levam-nos a estabelecer as referências, nas quais se assentam

possibilidades de uma psicologia clínica existencial. Clínica essa

que não mais entende o transtorno como algo que se dá em uma

interioridade fragmentada ou desadaptada, mas como algo que

se dá no próprio espaço existencial.

Com base em uma psicologia existencial, caminhamos no

sentido de entender o fato de que o que está em jogo nos trans-

tornos neuróticos

é

oriundo do espanto que se apresenta frente

ao indeterminado e à tentativa de controlar essa indeterminação.

Como tal tentativa fracassa, resta, então, restringir possibilidades

e, assim, quem sabe retomar o controle. Outro aspecto relevante

que esclareceremos aqui é o de que a questão do transtorno ou

da neurose não diz respeito a uma subjetividade encapsulada que

carrega em sua interioridade o seu transtorno e, portanto, nela é

que repousa toda a responsabilidade pelo modo como conduz a

sua vida. Traremos à discussão aquilo que Heidegger denomina

como tonalidades afetivas, que implicam um espaço existencial

que não é nem interior, nem exterior e que sustentam a situação

e o lugar onde as determinações acontecem. A atmosfera que

parece sustentar o transtorno do controle é o temor. O temor

relaciona-se com o medo. Heidegger diz em

  er e tem po

que o

medo torna a rede referencial mais presente, de tal modo que a

circunvisão por meio dele se acirra. Aquilo de que temos medo

nos torna mais atentos àquilo que previne o acontecimento que

tememos. Aparece, assim, a atmosfera do temor.

Em uma perspectiva existencial na clínica psicológica, o

caminho clínico aconteceu no sentido de tentar sempre abrir o

leque da indeterminação, de modo que aquele que vê sua exis-

tência repentinamente transtornada possa, afinal, entregar-se à

situação onde ele sempre se encontrou e encontra: na situação da

indeterminação e incerteza. E t ambém se faz necessário modifi-

car a atmosfera de temor de modo que o transtornado possa sair

154

nomenológica do discurso clínico que apresentaremos a seguir.

3.3.2. A clinica psicológica na tonalidade do temor

Em março de 2008, uma senhora telefona, pedindo para

que marcássemos uma sessão para seu filho, Otávio, 22 anos. Ela,

relatando excessiva preocupação com o filho, diz que o rapaz está

cursando medicina, e que vem prosseguindo o curso sem dificul-

dades. No entanto, no próximo semestre ocorrerá a parte prática

e ela teme que Otávio não consiga dar continuidade ao curso.

A terapeuta pede para marcar uma entrevista com os pais, pois

teme que o próprio rapaz não transmita tudo o que está aconte-

cendo. O analista pede que Otávio entre em contato, para que ele

mesmo marque o encontro (momento da responsabilidade).

Neste primeiro trecho, a questão já se evidencia como algo

muito próprio aos distúrbios ou doenças em geral. Nessas situa-

ções, os familiares, amigos ou pessoas próximas assumem a tute-

la por aquele que julgam que, por estarem doentes, não a podem

assumir. Acreditam eles, que nessa situação a pessoa se torna

incapaz de cuidar de si mesma. Em uma clínica existencial, acre-

ditamos que, retirar da pessoa a sua tutela, consiste exatamente

naquilo que acirra a doença psíquica. Por esse motivo, inicia-

mos a situação clínica já a partir desse primeiro contato, pedindo

que Otávio telefonasse para marcar o nosso primeiro encontro.

A mãe prontamente atende à solicitação e diz que lhe dará o re-

cado. Assim, mantemos a oportunidade, que normalmente é re-

tirada daquele que consideramos doentes, de que Otávio assuma

a sua responsabilidade, o seu cuidado, a sua tutela.

O acento do clínico se dá aí na abertura de possibilidades

para que Otávio reconquiste a sua responsabilidade. E assim

acontece. Otávio telefona para marcar a sessão e diz estar mui-

155

to interessado em buscar ajuda. Consente na entrevista com os

pais, dizendo que não só aceita que eles venham, como também

acredita que seja bom para que eles reduzam a ansiedade, já que

essa medicação, introduziria neurolépticos antipsicóticos em

dose baixa).

Com as observações e descrições dos pais, bem como com

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ultimamente eles andam muito preocupados. Essa preocupação

dos pais, que Otávio considera ansiosa, também fala da tentativa

deles de dividirem a responsabilidade pelo rapaz com um pro-

fissional que o venha tutelar; de dizerem o que fazer de alguma

forma, seja de forma medicamentos a, seja por técnicas de mo-

dificação do comportamento ou por uma descoberta do meca-

nismo que se encontra por trás do que acontece; e, portanto, eles

acreditam que o profissional indicará, com certeza, o caminho.

Eles marcaram, então, a entrevista com os pais.

Na entrevista com os pais, a mãe toma a palavra e expõe o

problema de Otávio com os seguintes itens:

• Ela fala da dificuldade de relacionamento, que sedá devido

à rigidez de critérios com os quais Otávio conduz sua vida.

• Refere-se a princípio ao medo da morte e, em seguida, se

corrige: medo não , o pavor com que Otávio leva avida.

• E relata que os dois, pai e mãe, receiam que Otávio aban-

done a faculdade.

A mãe refere-se ao fato de se sentir culpada e o pai mos-

tra-se preocupado, porém mais contido. Os pais informam que

Otávio vem sendo acompanhado por um psiquiatra. O psiquia-

tra, logo que foi informado que Otavio iria ser acompanhado

por uma psicóloga, entrou em contato efalou de seu diagnóstico.

Ele disse que se tratava de um Transtorno Obsessivo Compulsivo

 TOC) e que o paciente estava medicado com Aropax anti-de-

pressivo, um comprimido por dia). Além disto, contou que Otá-

vio apresenta os seguintes sintomas:

• Compulsões que desapareceram com a medicação).

• Tiques que aumentaram com a medicação);

• Pensamentos obsessivos que diminuíram com a medicação)

• História familiar de TOe: tia materna e mãe.

Ele comunicou, ainda, que caso Otávio não respondesse a

156

as do médico psiquiatra, podemos concluir que o diagnóstico, a

descrição dos sintomas e a prescrição pretendiam colocar a si-

tuação sob controle. Os pais já tinham o diagnóstico e o médico

já mapeara toda a situação de Otávio. Enfim, todos já sabiam o

que Otávio tinha e como

tratá lo

Os pais e o médico já haviam

se tranquilizado, pois já haviam encontrado uma identidade para

Otávio, bem como os procedimentos que o livrariam dos sin-

tomas. Nesse momento, portanto, eles já apresentavam o rapaz

ao analista por meio de categorias universalizantes que, por sua

vez, garantiriam uma atuação psicológica definitiva. Em face do

processo identificatório, essa atuação deveria trazer a tutela asse-

gurada que os pais tanto procuravam.

Otávio chega

à

sessão muito agitado, como se estivesse

em estado de alerta, mexia-se muito, piscava em excesso. Ele

jogou-se ao sofá. E começou a falar sem que o analista lhe per-

guntasse nada:

- Vim aqui porque já não suporto mais a aflição.Ando com

muito medo de me contaminar com o vírus

  IY

Saí da outra psi-

cóloga porque odeio psicólogo, tenho nojo do que elesfalam, só

falam besteiras, burrices. Você me desculpe, mas os psicólogos são

despreparados, burros, sófaz faculdade de psicologia quem não

entra para afaculdade de medicina. São complexados. Não quero

que você mefale bobagens. Sabe o que apsicóloga Maria, você deve

conhecer, sabe o que ela me disse?Que raiva Tenho vontade de dar

um murro na cara dela Estavafalando de como tenho raiva, ódio,

da minha mãe, tenho vontade decuspir na cara dela ;e ela me disse

que era o meu complexo de Êdipo. Pedi a ela: decifra o que

é

isso

que vO cêalou. Ela respondeu: no fundo você a deseja e como não

pode possuí-Ia, porque ela pertence ao seu pai e como você não

pode destrui-to, mesmo porque o ama, você quer destruir o objeto

da rivalidade de vocês dois. Que raiva, que burrice, que idiota des-

157

preparada deve ter estudado em uma faculdade de merda.

Otávio continua:

_ Não suporto gente burra eu já não estava gostando há

isso já que sou incrédulo porque tenho medo de espírito? Masfico

achando  sentindo que tem espíritoperto de mim. Minha mãe que

diz que é católica  quis me levar num centro de macumba. Eu não

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muito tempo das burrices que elafalava. Dizia: você não vai ser

contaminado você não usa camisinha? Burra não entende nada.

Qualquer um pode ser contaminado  tenho medo porque sei que

mesmo com todas as precauções você pode ser contaminado  até

ela pode mas a babaca acha que ela não vai ser contaminada.

Você conhece a Maria Alves? Conhece não conhece? Sabe que ela

é incompetente não sabe?

O analisa conhecia a primeira psicóloga e acreditava que

Otávio talvez tivesse razão no que estava falando. Por mais que

seja hoje cada vez mais raro encontrar psicanalistas assim tão

reducionistas, existe sempre ainda a possibilidade. Por isso, ela

acenou que sim e acrescentou que desconhecia dados acerca de

sua formação e competência. Otávio, então, lhe disse:

  Avise para todos que você conhece sobre como ela é incom

petente. Desejo a minha mãe... Nem gosto de velha odeio a minha

mãe  tenho nojo dela. Mas não épor isso que estou aqui. Terminei

a terapia há três meses. Terminei não  abandonei depois da burri 

ce que ela me falou. E ando me sentindo muito mal  fico

o

tempo

todo pensando que fui contaminado pelo vírus da AIDS. Isso me

perturba às vezes é tãoforte que não suporto não consigoparar de

pensar e até vomito  sem parar.   horrível.   ransar já nem tran

sa mais  sinto vontade  mas depois f ico tão perturbado achando

que me contaminei que prefiro evitar. Depois que terminei com

a minha namorada  nunca mais transei com nenhuma mulher.

Tenho medo. Nofinal do relacionamento já fiquei cismado de ter

me contaminado com ela.

Otávio continua:

  Sabe  tem outras coisas que atormentam minha vida. Penso

que não quero morrer pensar nisto me traz um grande incômo

do. Também cismo às vezes que há espíritosjunto de mim. Tenho

medo fico cismado. Não sou religioso nem acredito em Deus. Por

158

aceito esta palhaçada. É claro que nãofui  nem vou.

Otávio falava muito, não deixando espaço para que eu me

pronunciasse. O analista manteve-se em silêncio, atento ao que

o rapaz dizia, facilitando, assim, que ele trouxesse à tona todos

os incômodos, insatisfações e medos. Mostrava-se, assim, a dis-

posição para escutar o que ele quisesse falar e para acompanhar

as expressões de suas emoções. Frente a tudo aquilo que Otávio

e>  Pressava,o analista conduzia-se conforme indicam os man-

damentos do psicoterapeuta existencial (FEIJOO, 2010): indo

onde o outro estava, mostrava-se um ouvinte atento e revelava

interesse naquilo que Otávio tinha mais motivação em relatar.

Era preciso paciência, só assim poderia

ajudá-lo.

Por fim, era

preciso compreender que toda a sua raiva e indignação com o

psicólogo consistiam em sua dificuldade, atmosfera em que se

encontrava. O psicólogo precisava também reconhecer que só

poderia alcançá-Io, se não partisse do pressuposto de que toda

a sua forma de expressar-se consistia em sua doença, tal como o

psiquiatra havia diagnosticado. Se assim fosse, relacionar-me-ia

com a categoria que lhe fora destinada e não com ele mesmo em

seu modo de mostrar-se, que estava ali e se apresentava em suas

expressões singulares. Expressões essas que traziam uma atmos-

fera de violência, um estado de humor, afinação em que ele se

movimentava; enfim, se relacionava com aquilo que lhe vinha

ao encontro.

Aoperguntarmos sobre as razões de tanta raiva ev iolência,

concluímos que essas razões não se situam na ordem da lógica.

No interior do transtorno, há um horizonte que não   lógico.

Por esse motivo, teríamos que aguardar, pacientemente, para que

Otávio se pronunciasse. Quando a sessão acabou, Otávio quis

marcar a próxima sessão na mesma semana. Ele disse que estava

precisando muito. O clínico concordou com esse segundo encon-

159

tro e acertaram o dia e a hora No segundo encontro Otávio co-

meça a contar como foi o término de seu namoro:

- Namorei durante dois anos com esta moça gostava deficar

sei ou ela não me interessa ou quando me interessa parece que

elas não gostam de mim Quando saio com meus amigos elessaem

sempre com uma garota e eufico sozinho Às vezes acho que as

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com ela mais velha do que eu ela erapaciente e sem essasfrescuras

das garotas mais novas o sexo era bom  Só que eu comecei a des-

confiar que ela me traía E istoeu não aceito deforma alguma Eu a

pressionei e ela não confessou Outra coisaque eu não suporto  fico

com muita raiva tenho vontade de matar é a mentira  Como odeio

traição e mentira resolvi terminar  E depois que termino não me

arrependo Também não iria correr   risco de me contaminar

- E quais osindícios de que ela mentia?

- Não sei direito ela se contradizia  Eu tenho boa memória

ela pensava que eu tinha esquecido de algo que ela tinha contado

e contava de outro jeito Estava acontecendo coisas esquisitas um

ex-namorado que estava telefonando para ela ela dizia que erasó

telefonema mas não sei E desconfiando não dá  Fiquei mais pre-

ocupado com a contaminação Se ela estava transando com outro

as chances aumentavam Nós nem brigamos nem nada terminei

o namoro e pronto  Ela chorou muito disse que estava sofrendo

que gostava muito de mim  Eu de verdade nem sofri tanto  gos-

tava dela mas a desconfiança estava me atormentando tanto que

achei melhor terminar  Agora já tem algum tempo que termina-

mos sinto falta algumas vezes  mas não sofro nem choro  Nada

não deu não deu 

- Parece que

o

mais importante é não correr

o

risco de se

contaminar

É

Tenho muito medo  sei que não é difícil isso acontecer 

Prefiro prevenir  Depois que acontece não há mais nada que eu

possa fazer; mas controlar para não acontecer eu posso

Analista:

  É

E você até sente falta da garota mas não sofre mesmo

não é?

- O que eu quero agora é arrumar outra namorada  mas

está difícil Conheço a garota em uma festa ou em barzinho  Não

160

mulheres gostam de homens safados que mentem Eu já não sei

nem gosto de mentir digo a verdade e elas não gostam Preferem

os

safados  Cada vez eufico mais certo disso

- Então você quer encontrar uma garota mas não quer cor-

rer risco

- É isso

- A questão é como ter certeza de que não corre risco Parece

que sem risco também não há garotas 

Otávio contava sobre as suas relações amorosas  so-

bre o fracasso na tentativa de novos relacionamentos Falava

da atmosfera de desconfiança e de medo em que ele se mo-

vimentava  A contaminação e a desconfiança pareciam tra-

zer à tona o caráter de indeterminação e incertezas em que

ele se encontrava  O analista lembra-se do romance de Ma-

chado de Assis e pensa que o que ocorria com Otávio pare-

cia ser a mesma coisa que sucedera a Bentinho A dúvida era

mais insuportável do que a traição Por isso  ela só o podia

estar traindo e não havia nada a fazer senão terminar o na-

moro Pensou nas razões que o levaram a concluir que houve-

ra traição  Ao mesmo tempo o analista sabia que mesmo que

houvesse razões suficientes para negar as certezas de Otávio

isso de nada aliviaria o seu sofrimento pois tais razões não

eliminariam por completo a possibilidade de infidelidade 

O

pré-lógico

parece ter aí um acento que radicaliza a decisão 

Em meio a essas reflexões o psicólogo se calava e  pacientemen-

te esperava o momento em que pudesse se pronunciar  Intuiti-

vamente ele pensava que deveria ser prudente Anteriormente

já havia demonstrado o ódio que sentia pelas pessoas que não

o compreendiam  Por isto o clínico preferia continuar a ouvi-

1  Ele por sua vez  não solicitava que o analista lhe dissesse

alguma coisa Parecia necessitar  pelo menos e por enquanto

161

ser ouvido. O analista sabia que em algum momento preci 

saria criar um espaço em que essa tentativa de obter certezas e

controle desmoronasse. Ele sabia também que a inconsistência

acreditava no entanto que era preciso cuidado para não se pr  

cipitar e acabar por destruir uma relação que estava ainda se ini 

ciando. Otávio continua o relato:

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de seu projeto de controle que falseava o caráter de indetermi 

nação deveria se revelar. E  assim Otávio poderia se entregar à

indeterminação própria ao existir. Esse rapaz no desespero da

necessidade de certezas não conseguia suportar essa indeter

minação. Daí o encurtamento total rumo a apenas uma possi 

bilidade. Assim  não precisava acompanhar esse mar de possi 

bilidades que sempre podem acontecer. Foi nesse movimento

apontando para a falta de coragem e a evitação do risco que 

pouco a pouco Otávio foi ganhando coragem; mesmo porque

já havia assumido o quanto ter uma namorada era importante

para ele.

Nesse último encontro  relatou repetidamente como era

difícil achar uma garota e que o que ele gostava de fato era de

namorar. Ele relata as saídas com os amigos  as farras  os chur

rascos com os amigos da faculdade  as chopadas mas diz que

em nenhum desses lugares arrumava garotas para ficar com ele.

O analista ficou pensando no que poderia estar acontecendo.

Otávio era um rapaz bonito com um corpo bem talhado estu

dava em uma boa faculdade  cursava medicina era inteligente

ete. Refletiu se não era pela forma bizarra com que se mostrava:

tiques sonoros  gestuais fala agressiva. O clínico sabia que teria

que buscar mais situações do seu cotidiano que revelassem o que

vinha acontecendo. Marcaram o terceiro encontro.

Na terceira sessão Otávio quis falar de sua mãe. Portanto

ainda não foi desta vez que chegara o momento de saber mais so

bre a dificuldade de iniciar um relacionamento com as moças. O

psicólogo precisava saber esperar  agora o momento era de novas

revelações. Talvez fosse a mesma situação que fez a profissional

anterior interpretar como uma situação edípica mal resolvida.

Este risco  o psicólogo não correria  pois este tipo de interpre

tação não constava do seu repertório hermenêutico inicial. Ele

162

  Eu gosto muito de meu pai ele   um cara bom ingênuo a

minha mãe faz dele gato e sapato mente e ele acredita. Ela gasta

todo o dinheiro dele ela não trabalha mas sabe gastar que só ela.

E tem uma situação que eujamais esqueço. Ela mentiu para o meu

pai  quando eu era pequeno eu sabia que ela estava mentindo. No

entanto para não

magoá to 

eu não contei nada até hoje guardo o

segredo. Não por causa dela  mas apenas para não magoá Ia. Ela

éfalsa com as amigas  estáfalando ao telefone que está muito feliz

pela amiga ter ligado e fazendo careta. Eu detesto isto  fico com

raiva  com nojo dela. Em casa está sempre falando mal de todo

mundo. Meu pai ouve e nãofala nada. Ela é tudo para ele. Ela se

aproveita disto efaz o que quer. Comigo eu não deixo xingo ela

digo que ela éfalsa e mentirosa. E ela pergunta por que eu a odeio

tanto  chora  meu pai fica com pena e sóparo e não faço pior por

causa dele ele não merece sofrer. Então  o ambiente da minha casa

é este eu me enfio no meu quarto  é lá que eupasso a maior parte

do meu tempo.

Otávio continua:

  A outra psicóloga me disse que isto acontecia por causa do

meu Édipo você também acha isto?Eu acho que isto é uma burri

ce. Eu não gosto delaporque ela éfalsa. Eu não gosto de mentira e

ela   uma mentirosa de marca maior. Tenho vontade de dar porra

da nela só nãofaço por causa de meu pai. Ele não merece isto.

Por inúmeras vezes Otávio revelava excessiva raiva em sua

fala  referia se ao seu desejo de agredir as pessoas que o frustra 

vam por algum motivo até mesmo por sujarem as ruas. A ex 

pressão de raiva era tamanha  que chegava a arregalar os olhos e

trincar os dentes. Ele transfigurava se. O analista surpreendia 

se com uma expressão tão natural  que parecia que a situação

estava acontecendo e que não se tratava de um relato. No en 

tanto  ela percebia que a violência se dava apenas nas palavras.

163

Até o momento, não houvera nenhum relato de uma ação vio-

lenta. Parece que a violência se mostrava em palavras no espaço

da análise, espaço em que esse modo de expressão é acolhido

eu me aproximo, éporque ela me interessou. Sou defalar a verdade

e acho que elasgostam de mentira.

- E que verdades vocêfalou para essagarota especificamente?

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sem críticas. A psicoterapeuta telefonou para o psiquiatra para

perguntar-lhe sobre essa raiva. Este, por sua vez, não deu impor-

tância à situação. E Otávio, então, no nosso quarto encontro, co-

meçou a falar uma vez mais sobre como não conseguia arranjar

uma namorada, sobre como tinha saído com seus amigos nesta

final de semana e todos tinham se arranjado. Conta que ele ha-

via ficado com uma garota, que avaliara como interessante, mas

que a garota deu uma desculpa e saiu da situação. Ela precisava

aproveitar o relato para saber o que especificamente acontecera.

O analista disse-lhe:

- Conta para mim como tudo aconteceu desde que você en-

controu a garota até ela cairfora.

Otávio prossegue:

- Bom, olhei a garota egostei dela, fazia

o

meu tipo. Fiquei

com ela à mesa, conversamos.

Continuei a investigar, para assim poderem, pouco a pouco,

ir se desfazendo os campos intencionais amalgamados, onde per-

cepção e campo significativo se confundem. Então perguntei:

- Sobre o que conversaram?

Otávio prossegue:

- Vários assuntos:faculdade que estudávamos. Ela ficou im-

pressionada pelafaculdade que estudo.Ela estuda naEstácio. Sobre o

quegostávamos defazer. Achei até que tínhamos osmesmos gostos.

Analísta:

- Estava até aí tudo indo muito bem.   que seráque aconteceu?

- Eu acho que as mulheres gostam de canalhas, que mentem.

Meus amigos me aconselham, quer comer a mulher, dá indícios de

que você pensa em casamento, quer terfilhos, que ela é especial,

que não se encontram mulheres tão legais, que hoje é difícil encon-

trar uma mulher com tanta seriedade e no máximo dois dias de-

pois você a leva para a cama. Mentem, eu não gosto de mentir. Se

164

- Por exemplo, eu vi uma mancha no seu dente e perguntei

se ela estava com cárie, aí não dava nem para beijar. Sei lá se ela

cuida direito dos dentes. Perguntei há quanto tempo ela não ía ao

dentista. Fui sincero, se eu não tivesse essesdados eu não ia beijar

mesmo. Mesmo a garota sendo gostosa, não iria correr

 

risco de

me contaminar.

- E o que a garota respondeu?

- Disse que ía com freqüência, eu não acreditei e fiquei ten-

tando olhar

o

resto dos dentes. Ela me falou:

 pâr

de olhar, estou

ficando sem jeito . Ela estava escondendo alguma coisa, por que

ficar sem jeito se ela não tivesse nada a esconder? Isso também

já me broxou. Perdi o interesse. Mas fOi ela mesma que deu uma

desculpa que iafalar com uma amiga e desapareceu. Bem feito, vai

encontrar um pilantra que vai se dar bem e cair fora. Me dá uma

raiva das mulheres. Que ódio

Analista:

- Vocêacha, então, que agarota não gostou do que vocêdisse?

- Não,falei a verdade, ela não gostou porque nãofiz promes-

sas como meus amigosfazem. Porque não menti. Foi o que tefalei,

as mulheres gostam de homens safados. Dizem

 

que elas querem

ouvir e elas dão

o

que eles querem ganhar.

- E é sempre assim que você se aproxima das garotas?

  É  eu não gosto de mentiras. Meus amigos me dizem: tem

que mentir cara  .Eu não gosto e não minto. Às vezes eles até acham

engraçado esse meu jeito. Uma vez conheci uma garota, caloura.

Gostei dela, e a s calourasgostam dos caras mais adiantados. Mas a

saia dela era esquisita e eu achava que ela tinha que trocar de saia.

Joguei.ketchup na saia dela,na parte de trás, ela não viu, todo mun-

do começou a rir dela. Ela não gostou, perguntou quem tinha sido

 

engraçadinho, meus amigos nãofalaram, mas eufalei. Disse:

 u 

eu;

e você com essasaia ridícula. A garota nunca mais falou comigo.

165

- Parece que ess e s eu modo de ser com as meninas é v erdadei-

ro, mas acaba fazendo com que elas se afastem de você.

- Não acho que é isso não. Será que é isso?

As pessoas não gostam da verdade, é isso? Preferem menti ra? I sso é

geral? Aquela história do cachorro, já fiz a mesma coisa só que com

  gato da vizinha. O gato me enchia   saco, miava a noite toda,

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Analista:

- Eu penso que sim.

- En tão eu tenho que mentir?

Analista:

- Ou então deixar de ter medo e não ficar em estado de aler-

ta. M as como não temer?

- Para mim, mentir ou omitir é a mesma coisa. Fico com

raiva quando a pessoa diz: não menti, só omiti Foi isso que minha

mãe me disse quando sacaneou meu pai,  não men ti, só omiti  .

Só omitiu, ótima desculpa para os mentirosos. Ela mentiu, omi-

tiu, sacaneou e me fez cúmplice de sua mentira. Me dá uma raiva

pen sar nisso.

Analista:

- Como não dá para saber c er tamente s e

o

outro mente tal

como sua mãe mentiu, você prefere se certificar. Não arr iscar.

Otávio, ao pagar as sessões, teve dificuldade em preencher

o cheque e disse:

- Tenho medo de errar.

Terminada a sessão, o analista perguntou a Otávio se ele

havia visto o filme Melhor impossível  e ele respondeu que não.

Ele insistiu e indagou se ele poderia ver até a próxima sessão.

O objetivo aqui era que eles pudessem falar de como o modo

direto e verdadeiro com que o protagonista falava aos outros lhe

trazia conseqüências desfavoráveis nas relações interpessoais.

O analista utilizou de uma metáfora para poder mostrar-lhe as

suas dificuldades, e, assim, poder de alguma forma flexibilizar

mais as suas verdades. No encontro seguinte, Otávio iniciou a

sessão falando do filme:

  cara também tem TOe, mas eu não tenho aquelas ma-

nias, não f ico lavando as mãos, sou bagunceiro pra caramba, mi-

nh as coisa s sã o uma zona . Agora, tudo o que ele diz é verdadeiro.

166

não me deixava dormir, não conversei, dei um sumiço no gato. A

vizinha de sconfiou que tinha sido eu

(Otávio ri).

Mas nunca teve

a certeza. Agora, com o bicha, também não gosto deles perto de

mim , não tenho nada se o cara quer dar   rabo , mas perto de mim

não. Com a mulher, e le não fez nada demais, falou a verdade. Mas

não lhe disse que ela s p re fe rem a men tira?

Analista:

- Mas pelas verdades dele, ela a cabou se a fa stando, sentiu-se

desrespei tada.

Otávio pergunta:

- Você acha que é isso que acontece comigo?

- Acho.

- Mas eu não sei faze r diferente.

- Você ainda nem tentou fazer diferente e acha que não sabe.

- Você vai me ajudar?

Analista:

- Claro, eu quero lhe ajudar. A questão é se você vai se per-

mit ir arr iscar.

Aqui se fazia necessário o cuidado sob o modo da preocu-

pação substitutiva. Precisava mostrar a Otávio o seu modo dis-

funcional de lidar com o outro. Nas sessões seguintes, Otávio

passou a contar com riqueza de detalhes a sua aproximação das

meninas e,muitas vezes, o psicólogo tinha que conter o riso. Ou-

tras vezes, ela não conseguia e ria...Ao mesmo tempo, Otávio co-

meçava a rir junto. Pouco a pouco, ele foi se dando conta de suas

inconveniências por conta da tentativa de controle. Ele s e enche

de coragem, arrisca, beija as meninas. Depois inicia um namoro.

E ele começa a ter relações sexuais com a namorada.

O namoro se prolonga e Otávio

é

apresentado aos pais da

moça. Certa vez, disse para a garota, que pensara que ela fosse

branca. Mas que, ao conhecer seus pais, se dera conta de que era

167

mestiça, mulata, pois sua mãe tinha origem negra. Por outra vez,

contou que falou para a garota:

- Seu pai ou é bicha ou será,

o

jeito que ele olha para m im, os

amigos dele, não sei não. Você já desconfiou de alguma coi sa?

que pretendia fazer frente a tais situações. E eram essas conside-

rações pertinentes à abordagem clínica conduzida pelo analista:

- Fale-me d es te in cômodo.

Otávio:

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É

obvio que a relação foi se desgastando, até que a garota

terminou o relacionamento. Otávio ficou surpreso. Analista e

analisando conversaram sobre estes acontecimentos, Otávio foi

se dando conta de suas inconveniências, embora, algumas vezes,

insistisse em afirmar que não via nada demais nas suas verdades.

Na nossa relação, algumas vezes, ele também se mostrava

inadequado. Certa vez, pediu um copo d' água e olhou por um

longo tempo para o copo e disse:

- Não tem outro não, e ste e stá mal lavado.

De outra vez falou para o analista:

- Você é v elha.

Inúmeras vezes referiu-se ao fato de que o analista já era

velho e de que faltava pouco tempo para que ela morresse, per-

guntando em seguida se isso não a assustava. Um dia olhou para

a meia do analista e disse:

- Ridícula essa meia. Não sei como é que você usa, também

não tenho nada com isso, mas me incomoda.

Pela psiquiatria em uma perspectiva moderna, as reações

de Otávio são interpretadas como impulsos determinantes de

sua resposta. Essa resposta, uma vez constituindo-se como sin-

toma, torna-se uma resposta autônoma. Logo, exime-se com isto

o autor da ação como não-responsáveL Desta forma, a doença

passa a ser a justificativa pela resposta inadequada. Na perspec-

tiva existencial, essa interpretação se constitui como posição

psicológica de não-liberdade. Segundo a análise existencial, ao

homem cabe a responsabilidade pelo seu modo de agir frente

às solicitações do mundo. Portanto, a Otávio cabia continuar ou

deter-se no modo como correspondia à solicitação do mundo.

Era necessário, no entanto, que ele reconhecesse o modo como

respondia, bem como assumisse a responsabilidade e decidisse o

168

- N ão gosto da meia, f ica feio. Vocêficou aborrecida? Eu não

queria ofender.

- É is so q ue acon tec e na sua r ela çã o com aspessoas, você não

quer ofender, só quer ser verdadeiro.

- 'Você n ão tem e ssas fr escuras.

- A ias as p essoas têm e, p ara não ter que ouvir coisas que não

querem , ela s se a fa stam.

- Eu tento não fazer mais, mas na hora eu não consigo perce-

ber , e, quando m e dou conta, já estraguei tudo.

- E d epois que estraga tudo, já era  A garota q ue você queria

com o nam orada já se f oi.

  É

e eu quero muito ter uma namorada, eu fico muito bem

quando te nho uma garota.

  É 

mas desse jeito vai acabar ficando muito mal, pois as

garotas v ão con tinu ar a d esa parecer.

- Eu vou mudar, v oc ê va i v er . C laro que com sua ajuda. Mas

você ficou aborrec ida comigo?

- Eu não fico aborrecida, mas as pess oa s em g eral fic am.

Com o tempo, Otávio foi se dando conta dessas suas reações

e,na medida do possível, modificando-as. Pensava antes de falar

o que vinha a sua cabeça. Ele teve algumas namoradas e rompia

o relacionamento por outros motivos, embora algumas desa-

parecem de sua vida. Apareciam outros problemas, que Otávio

trazia para a sessão, refletia sobre eles e decidia o que desejava

fazer. Até que chegou por fim o momento dele começar a esta-

giar, como acadêmico teria que trabalhar no hospitaL Temia a

contaminação pelo sangue dos outros. Pensava em todas as for-

mas com que poderia evitar uma possível contaminação: uso de

luvas, certificar-se de que o outro não era portador do vírus. Ao

mesmo tempo, porém, sabia que a possibilidade estava sempre

169

presente. Certo de que o que ele desejava era o total controle

de sua vulnerabilidade, eu insistia sempre na questão de que a

contaminação era uma possibilidade. Certa vez, Otávio, apresen-

tando muitos tiques, disse:

vulnerabilidades. Novamente, poderíamos dizer que essa idéia

persistente tratava-se de um pensamento compulsivo, sintoma

do TOe, mas essa explicação mostrava certa insuficiência para

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- Atendi uma garota bonita. Certamente euficaria com ela.

E ela é portadora do vírus. Você tem razão, a gente não tem con-

trole dessa situação.

Neste relato, apresentava-se com muitos tiques. Daí por

diante, ele resolveu fazer exame e pedia:

- Mas eu não vou conseguirpegar o resultado. Vocêvai comi-

go. Não, trago o envelope lacrado e vejo aqui com você.

- Do que você tem medo?

- Do resultado positivo.

- Teme estar contaminado?   quefaz você acreditar que está?

- Não sei, a luva não furou, não tive contato com o sangue

da garota. Olhei a luva

e

a mão toda minuciosamente, não tinha

nada. Mas assim mesmo fico com medo.

- Já verificou tudo, mas mesmo assim quer ter a certeza.

- É

certeza de que não estou com o vírus. Estou muito nervo-

so com isto,já pensei até em abandonar afaculdade.

- E depois: o que você vai abandonar, para ter certeza de que

não será contaminado?

- Vocêtem que concordar que, na minha profissão, a chance

é sempre maior.

- Sem dúvida, mas na vida sempre há chances.

E assim prosseguiram os encontros. Otávio deixava cada

vez mais claro que a sua idéia central era a de controle, o qual

acreditava poder manter, reduzindo-o a situações específicas.

O analista atuava de modo a trazer à tona a atmosfera de in-

determinação em que sempre nos encontramos e, assim, tirá-

10 da restrição para um espaço de possíveis. E insistia que ele

poderia evitar algumas situações, mas não poderia escapar de

si mesmo. E era em seu modo de se articular com o mundo,

que residia toda a tentativa de controle das indeterminações e

170

abarcar a situação em que Otávio se encontrava. Preferia atu-

ar de modo que ele se apropriasse da atmosfera de medo em

que se encontrava e de suas tentativas de controlar o incon-

trolável. Muitas vezes, na tentativa de manter-se na restrição

e consequente determinação, argumentava no sentido de con-

vencer-se de que se queria controle, porque não tinha medo

de ter câncer ou de morrer com bala perdida ou acidente de

carro. Logo depois, ele mesmo concluía que, no fundo, acre-

ditava que dessas situações ele tinha o controle e ainda dizia

o que poderia fazer frente a tais situações. Nesses momentos,

lembrava do guarda-livros de Kierkegaard. E, assim, prosse-

guimos em nossos encontros.

Em um outro encontro, Otávio chegou muito ansioso e p e-

diu que o analista lhe fizesse um relaxamento. Assim, fez um re-

laxamento muscular progressivo e, ao terminar, sentou-se ime-

diatamente e disse:

- Resolvi, eu mesmo, por conta própria, suspender o medi-

camento. Estudei a respeito e sei como posso suspender. Além do

mais, semana que vem   meu aniversário. Quero beber

à

vontade.

Mais uma novidade, terminei com minha namorada. Ela esta-

va me cobrando demais, muito nova, virgem e eu quero transar.

Estou me sentindo bem melhor, percebo quando dou furo e meus

amigos já me entendem. Estou arrumando garota à beça.

O mundo sempre diz o que devemos temer, de modo que

isso cria um estado de atenção e de alerta. Isso nos avisa sobre

as situações acerca das quais devemos ter cuidado, cautela, pru-

dência. A questão do transtorno é o descompasso entre o cui-

dado que a situação requer, de modo a permanecer em uma in-

segurança radical. O problema está em reduzir as possibilidades

de tal modo que acreditemos que, assim, poderemos controlar

toda a situação que tememos. Há duas possibilidades em que

171

podemos atuar frente à atmosfera do temor. A primeira consiste

em reduzir tudo o que tememos a uma só situação, e, assim,

acreditar que, por se tratar apenas de uma situação, dela podere-

mos ter controle. A outra consiste em lidar de maneira corajosa,

nho não suportava a indeterminação e a única forma de controlar

o caráter de indeterminação que a situação sempre traz fez com

que ele se resolvesse pelo asseguramento, destruindo toda e qual-

quer possibilidade que um dia Capitu lhe fosse infieL

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apesar do medo. Parece que era essa coragem que começava a

aparecer em Otávio.

Heidegger em Ser e tempo fala sobre as possibilidades que

se abrem em meio à atmosfera do temor. Pela disposição do

temor, que não se encontra reduzido a possibilidades restritas,

encontramo-nos em uma posição antecipadora da finitude, que

nasce da negatividade que se anuncia

pelo

temor. Heidegger, en-

tão, aponta para o fato de que é a partir do temor que nasce a

coragem, a decisão, na qual se retém o temível. E isso consiste

em viver de maneira confiante apesar do temor.   preciso que

tenha lugar a supressão da incapacidade de suportar a indeter-

minação. E essa pode se articular com o temor no âmbito do

ser-aí finito.

Com o guarda livros aconteceu de ele sucumbir frente a ape-

nas um possível - ter um filho com a prostituta - e e ssa possibi-

lidade eliminou toda e qualquer outra possibilidade, exatamente

por revelar o fato de ele não poder suportar a existência no seu

âmbito de abertura, indefinição e incerteza. No desespero da pos-

sibilidade, esse rapaz desconhecia a lógica da necessidade, não

desdobrando a lei do possível. Ele precisava buscar a determina-

ção do necessário pelo possível. Protasio (2009, p.139) refere-se

à situação do guarda-livros da seguinte forma: ela  aponta para a

doença do guarda-livros, sua restrição de sentidos, presente nos

outros momentos de sua existência, uma existência que refletia

a incapacidade de suportar o peso da possibilidade, da abertura

que o constitui enquanto impossibilitado de não se responsabi-

lizar Bentinho, de Machado de Assis (2008), ao acompanhar a

saga de Otelo, diz em certo momento: Hoje, eu tive certeza que

Capitu me traiu  Por que não dizer o contrário: Então, ela não

me traiu': ou ainda Será que ela me traiu mesmo?': Mas Benti-

172

A decisão antecipadora depende da escuta à voz da consci-

ência,

à

voz da angústia,

à

voz própria ao caráter de indetermi-

nação da existência. Essa voz, que não diz nada, clama para que

reconquistemos o ser que é sempre o ser de cada um de nós no

seu horizonte finito. E é no ser-para-a-morte que encontramos

o modo em que se estrutura a existência singular. E ao assumir

aquilo que diz respeito ao que lhe é mais próprio, Otávio entre-

gou-se à sua vulnerabilidade e desamparo, que, afinal, é a situa-

ção em que sempre nos encontramos. Acreditamos que foi desse

modo que aconteceu com Otávio e, assim, ele poderá escapar da

Casa Verde, lugar em que hoje nos encontramos com a utilização

excessiva da medicalização.

3.4. A tonalidade afetiva do tédio

 Astonalidades afetivas caracterizam-se, assim, em primei-

ro lugar, por determinar o modo de afinação da convivência

(CASANOVA, 2006, p.l l Z). Segundo Heidegger, por sua vez, o

tédio consiste na tonalidade afetiva fundamental do horizonte

histórico em que nos encontramos. A tentativa de obscurecer,

aplacar o total desinteresse e esquecimento do ser consiste no

modo em que nós nos encontramos afinados na era da técnica.

A situação clínica que apresentaremos abaixo aparece com

uma expressão singular do modo como o homem atual compar-

tilha seu espaço de convivência. Na era da técnica ocorre que

as orientações do mundo da técnica se dão de forma tal que ela

absorve radicalmente o homem. E, assim, ele acaba por automa-

tizar totalmente seus atos. O espaço de temporalização do exis-

tir do homem se estreita de modo que a sensação é de asfixia.

O tempo, ao se afinar com o tempo do mundo, constitui-se de

173

um modo acelerado, nunca pára e nem diminui a velocidade.

Esse mover-se incessante sem sair do lugar remete-nos ao deses-

pero dos possíveis por carência de necessários, tal como descrito

por Kierkegaard (1849/2008). Esse filósofo diz que tal homem

impede que o fenômeno apareça.   importante a escuta, o acom-

panhar daquilo que acontece na dinâmica da situação clínica.

O analista quer deixar vir o incomodo, a tensão. A escolha da-

quilo que o analista traz como questão se dá atendo-se àquilo

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gira em torno de um único ponto, sem jamais experimentar urna

mudança de lugar. Sem necessários, o homem da era da técnica

perde totalmente o interesse por si mesmo e se perde na poeira

dos possíveis. Para não se dar conta desse seu destino, ele tenta

o quanto pode ter com que se distrair. Kierkegaard e Heidegger

referem-se à distração de todos os tipos, seja pelo excesso de di-

versão, seja pelo excesso de trabalho. Com isto, a distração trans-

forma-se no modo de não permitir que o tédio venha e diga,

afinal, o que está acontecendo. Porém, é justamente ao deixar

que o tédio venha, e do mesmo modo que Bartleby expressa o

seu  prefiro não fazer': é que surge uma categoria de diagnós-

tico como o de  depressão. E a depressão, ao ser tomada como

doença, retira totalmente a possibilidade de que aquele que se

encontra nas vias de rompimento com a cadência do mundo,

se confronte com tal experiência. E, por meio de medicação e

de estratégias clínicas, as formas clínicas de lidar com a depres-

são remetem esse homem ao lugar da ação e da produtividade.

Assim nos deparamos com Pedro, nosso analisando.

3.4.1. A clínica psicológica em uma atmosfera do temor

Logo no primeiro encontro, Pedro comunica seu diagnósti-

co. Diz: Ando muito deprimido, não tenho vontade defazer nada,

já tirei licença no trabalho, agora já voltei e sempre estou dando

uma desculpa, me justificando para não ter que cumprir com mi-

nhas obrigações. Daqui a pouco vão perceber que estou fugindo.

O analista tenta manter a questão e pergunta: E estáfugindo?

Neste momento, o importante é manter o foco de interesse

voltado para aquilo que o cliente diz, sem se importar com o

diagnóstico. Esse diagnóstico, caso seja tomado como referência,

174

que lhe chega e faz sentido, sem que nada seja interpretado.  

clínico poderia buscar a falta de vontade, as justificativas, o não

ter que cumprir as obrigações. No entanto, eleoptou por perma-

necer na fuga. De que fugia? Da opinião dos outros?

 

diálogo

também não se dá de modo natural, como se daria qualquer

outro diálogo. O analista mantém a temática trazida pelo anali-

sando em discussão.   este interesse que permeia este diálogo.

Pedro responde: Na verdade estou. Não sinto vontade defazer

nada. Mas não vai dar para fugir sempre, e daqui a pouco as

pessoas vão descobrir, desconfiar.

  analista, então, apenas con-

clui aquilo que o analisando falou no primeiro e no segundo

momento: desconfiar que você está fugindo. Pedro, então, pára

de falar, atém-se ao pensar e reinicia: É estou sempre arruman-

do uma desculpa. Ou digo que a tarefa

é

fácil e que um aprendiz

pode fazê-Ia. Ou arranjo um motivo para me afastar na hora de

executar o trabalho. (Pára, silêncio) Mas acabo não fazendo. A

vontade que tenho

é

de não fazer tarefa alguma.   analista ape-

nas conclui: Enfim, Você acaba arranjando um jeito para não

fazer a tarefa.

Pedro: Sempre faço

isso

mas todos vão acabar descobrindo.

Analista: E é issoque você teme: que osoutros acabem sabendo.

Heidegger aponta ontologicamente para o temor como

disposição e diz que, para se chegar à disposição, deve-se ques-

tionar o que se teme, para que se teme e como se teme (Heideg-

ger, 1927/1989). Para este filósofo, no final das contas, o que se

teme é algo que pode acabar por destruir a coisa que suposta-

mente somos.

Pedro: Claro, evidente, eles vãopensar que sou um fracasso,

que fracassei.

Analista: E você também pensa que

é

um fracassado?

175

Pedro:

Eu sou um fracassado e me s in to f ru st rado por

isso.

Eu sou minha grande frustração. Ali ás , sempre f racassei, as con-

quistas na minha vida foram por sorte, acaso , pura sor te. Sempre

medíocre como aluno. Na escola, fui sempre medíocre, dava para

você me acha complicado, sabe? Aqueles casos perdidos, que não

têm mais jeito. Como médico, acontece quando já sabemos que

não tem mais jeito, nem c irurgia, nem medicamentos. Nada vai

adiantar ..Mas continuamos a dar esperança.

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aprovar e pronto, nunca me esforcei, nunca fui de estudar. Estava

sempre com muita p re gu iça. Acomodado foi o q ue sempre fui. Até

quando passei para a faculdade

[oi

pura sorte, tanto que entrei

só porque houve rec la ss if icação. Não tinha estudado o suficiente,

aliás não estudei nada. Essa é a verdade. Até durante o vestibular

me acomodei. Tinha preguiça de estudar. Fiz o curso de medicina

sempre deixando a desejar. Perdi algumas dis cip linas durante o

curso, deixei de aprender muita coisa na hora certa, fui ficando

para trás. Disfarçava bem, não deixei que ninguém soubesse que,

na verdade, eu não sabia nada.

Analista:

E agora você tem medo de ser descoberto por não

conseguir disfarçar mais.

No próximo encontro, Pedro entra na sala, senta-se no mes-

mo lugar que anteriormente havia trocado por sentir mais dor.

Apresentava-se com uma fisionomia mais descontraída. Inicia a

sua fala:

Não sei como te fala r. Aconteceu uma coisa em minha

vida que [oi diferente de tudo que já tinha me acontecido, mas

acho que você não iria entender.

Analista:

Você está preocupado com o que eu posso pensar

de você?

Pedro: É 

você pode achar que é bobagem . Não acreditar. Mas

[oi

importante para mim.

Analista:

Você receia que eu avalie como de pouco valor algo

que [o valioso para você.

Pedro:

É 

é isso . Você pode achar medíocre.

Analista:

E você tem medo que, me contando, eu vá criticar

você. Teme o meu olhar, como teme o o lhar daqueles que traba-

lham com você.

Pedro:

Hoje, agora, nem temo o olhar do pessoal lá do rnes-

trado, mas com o seu fico preocupado.

 

fico até pensando que

Analista:

Você fica preocupado com qualquer coisa que eu

pense a se u r espeito e q ue lhe desvalorize ou lhe coloque em posição

de inferioridade, como um coitado.

Pedro:

Detesto que me chamem de coitado.

 

isto que pre-

tendo evitar e é por isso que não conto minhas fragilidades para

ninguém. No hospital, ninguém sabe da minha hérnia por isso.

Não quero que me olhem e pensem: 'coitado'. Não quero que me

vejam como sendo menos, sem valo r, inútil, fragilizado. Assim , já

entro na vida profissional em desvantagem.

Analista:

E aqui você também não se sente

à

vontade para

dizer

o

que lhe aconteceu, porque eu posso lhe v er c omo a lgu ém

menor.

  importante ressaltar que o analista não ficou curioso para

saber o que aconteceu. Isto era apenas um fato. Tornou-se mais

imperioso trabalhar o modo como o analisando revelava a sua

dificuldade de mostrar-se ao outro e c omo isto acontecia em ou-

tras relações de sua vida.

Pedro:

Vou contar

(silêncio breve e interrompo).

Analista:

E

o

medo do que eu possa pensar de você?

Pedro:

Vou arriscar. Estou aqui para isto. Tenho que falar

minhas coisas. ( silêncio)

É

difícil. Acho que você não me de sq uali-

fic aria , pensaria outra coisa.

Analista:

Por isto, fica tranqüilo frente ao que eu pudesse

pensar.

Pedro:

Não, estou me sentindo em paz. Não quero ficar me

incomodando com as coisas pequenas, menores.

. A comunicação de Pedro aparece de forma ambígua: im-

porta-me e não me importa ao mesmo tempo. O analista prefe-

riu, neste momento, não trabalhar a ambigüidade. Às vezes insis-

tir no tema de modo muito direto, ao invés de facilitar, dificulta,

177

pois aquele que vive na ilusão poderá criar maior resistência na

relação analista-analisando.

Analista: Mais especificamente, o que aconteceria se você

Pedro: É como eujá lhe disse,é difícil confiar nosprofissionais

de saúde. Vivo no meio delese conheço muito bem o que acontece.

Analista: E o que acontece?

Pedro: Irresponsabilidade, descompromisso, desconhecimen-

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me contasse?

Pedro: Não tenho coragem de contar.

É

vergonhoso.

Analista: E outra vez você fica preocupado com a imagem

que eu vou fazer de você?

Pedro: É porque você nem imagina do que eu era capaz.

Analista:

E

se eu souber do que você era capaz, o que pode

acontecer?

Pedro: Não sei.Não vou contar. Sei que hoje nãofaria. Achei

bonito, honesto, humano as pessoas que fazem, se doam para

o

outro. Quero me doar ao outro também. Sei que vou fazer isto.

Sartre (1997) refere-se

à

importância do olhar do outro no

modo como a existência seconstitui, pois é esseolhar que tem o po-

der de tornar aquele que é visto em um em-si, situação que a todo

momento se esvai, mas que o olhar do outro traz de novo. Parecia

que era isso que Pedra queria evitar,tanto com relação ao meu olhar,

quanto ao dos outros. Este tema permaneceu até o final da sessão.

Chegamos ao quarto encontro e Pedro inicia: Vim agorapra

cá pensando: não tenho nada para falar. Gostaria que você me

dissesse alguma coisa.

Analista: Alguma coisa sobre o quê?

Pedro: Sobre mim.

Analista:

Sobre

o

que eupenso de você?

Pedro: É Como psicóloga.

Analista: Quer saberse você é daqueles clientes difíceis como

você disse, desses que a gente vai levando, mas que não há nada

afazer?

Pedro: (Ri) Às vezes temo que isto seja verdade. Jápassei por

outros dois psicólogos efiquei na mesma.

Analista: Jápassou por vários ortopedistas eficou na mesma,

por vários psiquiatras eficou no mesmo, por váriosfisioterapeutas

e

 

mesmo aconteceu.

178

to, incompetência. Na mão da maioria dessesprofissionais se cor-

re risco.

Analista: E parece que você luta para que os outros não te

coloquem no rol dessesprofissionais.

 

importante observar que o psicoterapeuta não tentou ame-

nizar a inquietação de Pedro. Não disse em momento nenhum

que a aprovação no vestibular

mostrava a sua competência. Que

ele s e desvalorizava ou exigia demais de si. Se fizesse isto, estaria

tentando apaziguar, amenizar a tensão, o temor, a dor. Pedro refe-

ria-se ao quanto não estava acompanhando a cadência do mundo,

que no horizonte da técnica não se abre espaço para o ócio, para a

preguiça, para a improdutividade. E quando esses comportamen-

tos acontecem, rapidamente, são categorizados e inseridos em um

contexto de doença ou desadaptação. Pedro insistia em atribuir

ao seu comportamento uma identidade, acreditando que, dessa

forma, poderia encontrar um profissional que o faria retomar ao

ritmo do mundo. Em um horizonte técnico, o especialista é aquele

que, com suas intervenções também técnicas, leva aquele que o

procura a deixar, o mais rápido possível, de sofrer.

3 4  As posições de não-liberdade

O analista tenta sustentar a atmosfera de tensão e tristeza

em que Pedro se encontrava. Ele, no entanto, assume uma posi-

ção psicológica de não-liberdade, dizendo que outras situações

independentes de sua vontade o conduziram à situação em que

se encontrava:

Pedro: (Fica em silêncio por alguns segundos) retoma: É.

Agora está mais difícil. (Silêncio) Para tentar recuperar o tempo

perdido, acreditar mais em mim, resolvi concorrer ao mestrado em

179

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Outra vez Pedro assume a posição psicológica de não-li-

berdade. Ele justifica-se no somático, aprisiona-se no necessário.

Para ele, não há possíveis. O analista atua de modo a parecer

compartilhar da ilusão de Pedro, mas na verdade tenta nova-

tanto. Não pude fazer nada. Eu trabalhava muito e não sobrava

tempo para a minha esposa.Queria ficar bem de vida. Para isso, ti-

nha que ganhar muito dinheiro, queria dar conforto para a minha

família. Sabe, ambição. Acho que não via as coisas que estavam

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mente mobilizá-Ia no sentido devolver-lhe o seu cuidado: Você

está me dizendo que os seus problemas de saúde comprometem a

sua vida profissional.

Pedro:

 

é muito difíciI. Eu acho que, se não fosse a coluna,

eu conseguiria.

Analista: Vocênão concorda com o que dizem osespecialistas?

Pedra: Eu sou do meio e sei que não sepode confiar. Os mé-

dicos, na maioria, não estão devidamente preparados. O fato é que

não sei como vou fazer para sair da cirurgia. Qual a justificativa

que eu vou dar. Um lugar que todos querem, eu consigo e abando-

no. Ninguém vai entender nada.

Nesse encontro, parece que Pedra não entra em contato

com aquilo que realmente o mobiliza e inquieta, prefere sempre

justificar o porquê do não fazer. Terminada a sessão, combinou-

se a próxima sessão que se daria após uma semana.

3.4.3.

  l mor d

angústia

Pedro chegou antes da hora marcada e ficou aguardando na

sala de espera. Iniciamos a sessão na hora que havíamos acerta-

do. O analista convidou-o a entrar e Pedro não conseguia manter

seu olhar, desviava-o e parecia caminhar meio desajeitado. Sua

postura foi interpretada pelo analista como uma mistura de des-

confiança, desconforto e inadequação.

 

psicoterapeuta tentou

deixá lo

mais

à

vontade, perguntando coisas do dia-a-dia. Sen-

taram e Pedra fitou-a por um instante e pôs-se a falar: Há umas

coisas que tenho de te falar. São coisas duras para mim. (crispa as

mãos, passa-as no rosto, olha-me firmemente e continua) É difí-

cil admitir. Bom ...Tenho quefalar. Foi a experiência mais dolorosa

de minha vida, a mais terrível que já me aconteceu. Nunca sofri

182

acontecendo (chora). A minha esposa morreu (chora). Não pude

fazer nada. Não percebi nada. Quando vi, já tinha acontecido. É o

pior que pode acontecer a um homem. Pronto contei. Sei que tinha

que tecontar isto.

 

difícilfalar nisto.

O analista acompanhou o relato e a emoção de Pedro, dei-

xando que ele ficasse livre para expressar toda a sua dor, sua

fragilidade. Ao se calar por algum tempo e depois que ele tinha

parado de chorar, retomou:   difícil para você lembrar a dor de

perder sua esposa.

Pretendia aqui permanecer em contato com

sua dor, a fim de que Pedro pudesse demorar-se naquilo que ele

mesmo dissera que era tão difícil expressar: Muito (chora). Dói

muito. No enterro me senti um nada e vi que muita coisa que até

então tinha importância deixou de ter.

Analista: Ali, frente

 

morte, você se sentiu impotente.

Pedro: Impotente é a palavra, foi o que senti. Mesmo sendo

médico, nãofiz e não podia fazer nada. Eu nunca faço nada.

Analista: E agora continua a sentir medo. Mesmo sendo mé-

dico, não pode evitar que nenhum dos seus morram.

Pedro: É  isso é o que dói. Eu não quis mais casar, muito me-

nos terfilhos. Eu amei muito a m inha esposa, e também tenho mui-

to medo de deixar issoacontecer outra vez. Eu não agüentaria isto.

Analista:  E você também tem medo de sucumbir, não

agüentar .

Pedro: Depois disto, eu nunca mais [ui o mesmo. Comecei a

ficar desanimado para trabalhar, para estudar, nada mais tem tan-

tagraça. Meu casamento era bom. Gostava deficar na minha casa

com minha mulher e minha filha e de não ter quefazer nada.

Este trecho mostra a perplexidade de Pedra frente à mor-

te de sua esposa. Pode-se perguntar: como um médico que lida

tanto com o morrer pode se surpreender tanto com a morte?

183

Como médico, Pedro lidava com a morte do outro e não com

a sua própria morte nem com a dos seus. Leon Tolstoi (1997,

p. 6) descreve muito detalhadamente, em A morte de

 van  li 

tch,

o modo impessoal em que comum ente se vive a morte do

Ele não morreria, nem os seus, mesmo porque ele era médico.

Agora, osoutros sim, estes morriam. No entanto, com a morte de

sua esposa, ele constatara que a morte era também para si e para

os seus. E, com isto, o sentimento de vulnerabilidade invadira-o

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outro. Alieksiéiev e os outros, ao receberem a notícia da morte

de Ivan, pensavam apenas em suas promoções. Pensou Vassílie-

vitch (1997, p.S):  I sto já me foi prometido há muito tempo, e

esta promoção significa um aumento de oitocentos rublos, além

da chancelaria:' Ainda neste diálogo, todos no velório tagarelam

acerca do cotidiano. A única coisa que não se faz é refletir sobre

a própria morte. Parece que dá mais alívio deixar parecer que só

o outro morre. Tolstoi deixa claro tal modo de vivenciar a morte

do outro, no seguinte trecho ( 1997, p.S): Além das considera-

ções suscitadas em cada um por esta morte, sobre transferências

e possíveis alterações no serviço, o próprio fato da morte de um

conhecido tão próximo despertou como de costume, em cada

um que teve dela conhecimento, um sentimento de alegria pelo

fato de que morrera um outro e não ele.

No diálogo de Piotr Ivánovitch com a esposa de Ivan Ilicht,

Piotr se dá conta de que aquilo que acontece ao outro pode lhe

acontecer também epensa (1997, p.l

O

Três dias de sofrimentos

terríveis, depois a morte. Bem que isto pode vir para mim tam-

bém, agora, a qualquer momento: pensou e assustou-se por um

instante. Mas imediatamente, ele mesmo não sabia como, acu-

diu em seu auxílio a idéia costumeira de que aquilo sucedera a

Ivan Ilitch enão a ele E continua a tagarelar sobre os pormenores

acerca da morte de Ilicht. O reconhecimento da própria morte

e a perplexidade dessa constatação é ilustrada por Tostoi (1997,

p.68):  Meu Deus, meu Deus  Disse ele: De novo, de novo, e nun-

ca há de parar. E, de repente, o caso apresentou-se-lhe por uma

face completamente oposta. O ceco , o rim, disse a si mesmo. O

caso não está no ceco, nem no rim, disse a si mesmo, mas na vida

e... na morte. Sim, a vida existiu, mas eis que está indo embora, e

eu não posso detê-Ia Parece que era isto que acontecera a Pedro.

184

e, com este, o desespero.

Pedro: Não sei,acho que não tenho mais vontade de trabalhar.

Analista: Vocêdisse que, antes da morte de tua esposa, você

era diferente, trabalhava muito e era incansável.

Pedro: Era. O que dificulta hoje é a hérnia de disco. Sinto

muita dor. Agora mesmo estou aqui e não tenho posição. Posso

mudar de cadeira?

Pedro troca de cadeira, a psicoterapeuta pergunta se ele se

sente melhor e continua: Essa dor atrapalha, já não consigoficar

tantas horas no consultório, não tenho posição. Dá muito incômo-

do. Na cirurgia é quase impossível. Isto também me dá um medo,

não queria ser um médico deconsultório. Já até pensei em irpara o

interior. Mas também não me agrada ser só um médico de interior.

Teria uma vida mais tranqüila.

No encontro seguinte, Pedro inicia: Hoje, eu gostaria que

você mefalasse o que você viu em mim. Não é um diagnóstico, eu

sei que não é o caso. Sinto-me deprimido, mas sei também que não

é isto. Sei também que não é destaforma que apsicoterapia funcio-

na, mas preciso saber. Se você não puder dizer nada a respeito,pois

é assim que deve acontecer

à

psicoterapia, à psicanálise, não tem

problema. Não sei, também não sei a diferença, sem problemas.

Permanece por algum tempo em silêncio e retoma:

- Mesmo sendo médico e lidando o tempo todo com a morte

dos outros, foi quando a minha esposa morreu que eu entrei pela

primeira vez em contato com a morte. A morte dela me abalou

muito. Muito, principalmente porque tive que fazer o reconheci-

mento do corpo. Vi que minha família também morria, mesmo

jovem também morríamos. Aquele monte de corpos, fazer o re-

conhecimento do corpo. E ela era um daqueles mortos. Foi uma

sensação muito ruim. Foi opior quejá me aconteceu. Depois veio

185

~  L  _

o problema do meu primo. Meu primo é muito bem sucedido pro-

fissionalmente. Tem uma família perfeita. Estabilidade financeira,

um empresário reconhecido. .  vIashá algum tempo, ele sentiu-se

mal, teve um mal estar repentino. A princípio não se sabia

o

que

tidianidade. Ao modo do falatório, onde dizemos:  Morremos

algum dia, mas agora não:' O ser-aí cotidiano não se mostra em

sua apropriação, mas na sua alienação, escapando daquilo que

lhe é mais próprio.

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estava acontecendo, uma indisposição indefinida. Fez todos os

exames e, lá pelas tantas, foi dado o diagnóstico de que ele era

portador do vírus HI\  . Ele não contou para ninguém, não queria

que ninguém da família soubesse. Pediu para que eu fosse con-

versar com ele e c ontou o que estava acontecendo e pediu que eu

não contasse para ninguém em hipótese alguma. Era um segredo

que deveria ficar só com nós dois. EstefOi outro momento muito

difícil, nãopodendo compartilhar isto com ninguém e ainda fingir

que nada estava acontecendo. Ele, então, fez um segundo teste e o

diagnóstico  o  confirmado. Saiu do hospital,jo  para casa. Hoje ele

está bem, portador do vírus, mas sem a doença. Mas

o

sofrimento

daquele momento não se apagou, o medo da perda ficou. Percebi

que nós dois também éramos vulneráveis.   pior era que eu era

ausente, passava

o

dia trabalhando, 12 a 14 horaspor dia. Achava

que, para a minha mulher, o melhor era a estabilidade financeira

e daí não vivi tudo que podia. Foi o pior porque ela era muito

importante para mim. Foi o pior porque eu sei que todos os meus

também podem morrer.

Analista: E agoraparece doer muito saber que o que acontece

aos outros acontece com você também.

Pedra fica em silêncio e chora:

- Sei que não sou nada de especial, não sou diferente de nin-

guém. Sinto medo de errar. Como médico, como pessoa.

Analista: Ok, Pedra, terminamos a sessão.

Pedra: Poi muito bom hoje. Não sabia que apsicoterapia era

assim. Palar de coisas passadas, mas que são tão atuais, tão pre-

sentes em mim. Dói, mas também alivia.

Pedra era formado em medicina. Portanto, a morte era algo

com que há muito vinha convivendo de muito perto. Parece, no

entanto, que a morte existia para Pedra ao modo de ser da co-

186

No existir, o ser-aí já se encontra lançado na possibilida-

de de, a qualquer momento, morrer. Ser-para-o-fim constitui-

se como o poder-ser mais próprio. Diz Heidegger (1989, p.32):

 Amorte é, em última instância, a possibilidade da impossibili-

dade absoluta do

ser aí 

Na decadência, o ser-aí foge de seu po-

der-ser mais próprio, encobrindo para si mesmo o seu caráter de

finitude. O ser-junto-a em decadência foge da estranheza do ser-

para-a-morte. Este modo de ser caracteriza-se pela alienação e

tranqüilidade no seu existir. No modo da decadência, o ser-para-

a-morte mostra-se não reconhecendo a morte. Na impessoali-

dade, a explicação do ser-para-a-morte cotidiano detém-se na

curiosidade, na ambigüidade, traduzidas no falatório impessoal:

 algum dia semorre, mas por ora não': Com o mas , o impesso-

al retira a certeza da morte. Compreendendo-se a morte com o

dizer  é certo que a morte vem ; fala-se na curiosidade, impes-

soalmente: a morte e não a sua própria morte. Desta forma, se

está na não-verdade, encobrindo a possibil idade mais própria do

ser: a sua finitude. O ser-para-a-morte impróprio vive na não-

verdade, escapando sob a maneira da de-cadência, do cotidiano,

do impessoal da sua possibilidade mais própria. Pedro lidava a

todo o tempo com a morte, porém com a morte do outra, com a

sua não, nem a dos seus familiares. Era de modo impróprio que

Pedra se relacionava na maior parte do tempo com a finitude.

Agora, esse analisando antecipava a sua finitude como possibili-

dade sempre aberta, possibilidade mais própria, que em si mes-

ma é excludente das outras, possibilidade solitária e insuperável.

Não se tratava mais de reconhecer-se como poder-ser, correndo

o perigo de morrer, mas sabia que o poder-ser é o próprio mor-

rer. Portanto, no poder-ser já reside a todo o momento a  m a a

da finitude.

 8 

Pedra existia na maioria das vezes na ignorância da sua fi-

nitude. No entanto, essa ignorância é uma modalidade do existir

para a morte, uma fuga que já testemunha que o Dasein morre, e

morre na medida em que existe, mas no modo da fuga, do decai-

sentado, parecia não querer sair. Levantou-se e reafirmou o ho-

rário da próxima semana.

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mento, da não-verdade. Fugir da morte é um modo de reconhe-

cê-Ia. Pedro fugia dessa situação de diferentes modos: trabalho

exaustivo, identificando-se a si mesmo e a seus familiares como

especiais, se auto-depreciando. O problema

é

que tudo tinha

falhado. Ele perguntava-se se a vida valia a pena, já que o ho-

rizonte finito de suas possibilidades destruiria inexoravelmente

suas ilusões e sentidos pelos quais se mantinha valorosa a labuta

incessante do seu dia-a-dia. Diz Heidegger: Aocultação não é

a antítese de uma consciência, ela pertence à clareira  (2001, p.

194). Esconder

é

uma maneira especial de ser aclarado. Os acon-

tecimentos da vida de Pedro levaram-no a não poder continuar

ocultando. A morte mostrou-se, foi aclarada, não deu mais para

tomá-la apenas no impessoal, no impróprio. Ele permanecia

frente a frente com a possibilidade mais própria, ele já não podia

nem mesmo adiá-Ia para a velhice, nem para os outros.

Pedro queixava-se de depressão. No entanto, o que clamava

por Pedro levou-o ao campo de uma decisão antecipadora da

morte, de uma Vorlaufen zum Tode. A antecipação desta imi-

nência consiste em manter essa possibilidade. Apossibilidade de

morrer nunca se materializa. A morte não

é

o instante da mor-

te, senão o remeter-se ao possível pela sua qualidade de possível

- essa possibilidade única de se remeter ao possível constitui o

existir para a morte. A morte como possibilidade não oferece ao

ser-aí nada a realizar, nem a efetivar. A relação própria do ho-

mem com a morte abre o espaço para que ele se conquiste na sua

totalidade. E o que constitui a totalidade do ser-aí, por sua vez,

é o reconhecimento do ainda-não. Existir na verdade consiste

em se manter na antecipação. Antecipando o futuro próprio e

singular, o existente se mostra como seu futuro que se volta sobre

seu passado e seu presente. Terminada a sessão, Pedro continuou

188

3.4.4. O tédio como tonalidade afetiva fundamental

No encontro seguinte, Pedro inicia retomando a temática

de desqualíficação dos profissionais da saúde:

- Não quero mesmo, não queropertencer a esta classedepro-

fissionais. Já te disse,prefiro não fazer nada. Você sabe que o que

eu quero éfazer um trabalho digno como médico. Não quero ser

perfeito, nem o melhor de todos. Querofazer bem aquilo que me

proponho afazer. É só isto. Às vezes, porém, parece que é impos-

sível para mim, acontece sempre um desinteresse. Eu não estudo

o necessário. Ou melhor, não estudo nada. Se eu conseguisse pelo

menos estudar duas horas por dia. Isto me faria sentir melhor.

Mais digno, mas o que eu gostaria erapoder ser um médico capaz

de fazer aquilo a que se propõe. E eu não faço um mínimo, não

gosto, não quero. Eu deixo a preguiça me vencer. Eu me deixo le-

var. Eu não tenho ânimo. Falta vontade, determinação. E isto não

é de agora, sempre fui assim. Dava para levarporque erafácil, mas

cada vez vai ficando mais dif ícil.

Analista: Falta de vontade, de determinação de ser identifica-

do como um mau profissional ...

Pedro:

Só me resta estudar e me sentir um

profissional

capaz.

Dedicação de verdade.

Analista: Mas como?

Pedro: Duas horas por dia, não é nada, mas já seria um

começo.

Pedro fugia da inquietação, do desconforto pela realização,

no imaginário. Falava de duas horas por dia de estudo, mas  

realmente se concretizaria ou não sairia do projeto?

Analista: Planejar é fácil, a questão é realizar o imagtund«

É

fácil pensar: Vou estudar duas horas por dia. A que tão ( ~  P(l1 (

consegue realmente estudar duas horaspor dia.

Pedro: E menos de duas é melhor então nem estudar.

Analista: Talvez nem duas, nem menos de duas seja possível

para você.

Pedro: Mais tem que ser.

me preparando, estudando. Mas o que acontece é quefico adiando

e

deixo tudo para cima da hora. Faço tudo na última hora.

Analista: Vocêpreferia não trabalhar, não ter que ir.

Pedro: Eu, sem dúvida, euficaria mais

ti

vontade. Mas tenho

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Analista: Tem que ser como?

Pedro: Tenho que me esforçar.Se eu me esforçar,eu consigo.

Analista: Consegue com esforço, mas esforçar-seé tua princi-

pal dificuldade.

Pedro: É você tem razão. Eu j á te disse isto. Mas eu vou con-

seguir, não vejo outra saída.

Analista: Saída para quê?

Pedro: Para eu me sentir melhor, mais capaz, mais digno.

Fazer jus àquilo a que me proponho. Afinal, aprendo com faci-

lidade. Aliás, foi por isso que sempre tive sorte, porque dedica-

do nunca  ui A preguiça me acompanha desde criança. Desde

o início da minha vida escolar, sempre fugi de ter de estudar.

Até no vestibular, mesmo querendo medicina. Praticamente não

estudei. Fazia o cursinho e pronto, deu para levar. Na faculdade

também dava umas enroladas e pronto. Também o desânimo não

era tanto.

Analista: E agora, quando tentou o mestrado, também deu

uma enrolada.

Pedro: Não, tinha uma boa proposta e sabia que seria aceita.

O restoera só uma prova. E ainda restava alguma vontade. Agora

tenho que apresentar trabalho para osacadêmicos assistirem. Tenho

que

ensinar lhes  

Tenho quefazer cirurgias que também são assisti-

das não sópelos acadêmicos, mas também pelos professores.Não, é

só uma provinha ou um projeto. Por exemplo, na semana que vem

teria que dar uma aula, mas, como tive que arrancar o dente, eu

pude me justificar. Justifiquei afalta. Todos entenderam. Acho que é

atépor issoque estou melhor hoje. Semana quevem não vou precisar

ir.Istojá me deixa aliviado. Mas sei que depois vêm as outras coisas.

A outra semana

e

eu nãovou poder ter uma desculpasempre. Tenho

mesmo é de enfrentar oproblema. E a m elhorforma de enfrentar é

190

que ir. É também preguiça. Sou preguiçoso. A preguiça é algo que

me acompanha. Queria fazer medicina, mas já naquela época ti-

nha preguiça de estudar. Foi acontecendo, porque

o

segundo grau

éfácil,

o

vestibular um pouco mais difícil, mas deu para passar.

Durante o curso dava para enrolar. Prejuízo meu. Não estudei na

época certa e agora tenho vergonha de dizer que não sei. Quando

não sei,fico calado,finjo que sei. Dava até para superar sechegasse

em casa e estudasse. Eu superaria, assim, aquilo que não sabia,

mas não

o

faço. Prefiro relaxar,ficar sem fazer nada, gosto do ócio.

E isto é mediocridade. Sou um médico medíocre. Mas é issoque eu

não quero

s r

Analista:

Hum 

hum. Tem medo de se ver e ser visto como

medíocre, mas na verdade é assim que você, na maioria das vezes,

se reconhece.

(Silêncio)

Pedro: Não trabalhar seria uma saída.. Mas não é isso que

eu quero. Eu quero superar as minhas dificuldades. Por issopreciso

cuidar dessa hérnia.

Analista: Você está me dizendo que a saída seria, então, não

ter mais dor na coluna?

Pedro: Melhoraria muito. Pelo menos resistiria mais na clíni-

ca

e

até mesmo na sala de cirurgia. Poderia trabalhar mais.

(Silêncio e continua) - Vocêacha que esseproblema na colu-

na é uma somatização?

Analista: Os exames e os médicos constataram a existência

da hérnia?

. Pedra: Constataram. Já

 ui

aos melhores especialistas. Todos

são unânimes em que há a hérnia. No entanto, também afirmam

que a dor é desproporcional ti lesão. Elesdizem que, em casos como

o meu, a dor não é tão intensa.

191

Analista: Mas você sente como sendo muito intensa, a ponto

da dor teparalisar.

Pedra: Sinto.

É

paralisante, dificulta o meu trabalho.

Analista: E quais foram às providências que vocêjá tomou,

que tratamentos vocêjá procurou?

Pedra confrontava-se com o total desinteresse, traço cons-

titutivo do aprofundamento do horizonte histórico onde predo-

mina a técnica. Parece que Pedra entediara-se profundamente

e não mais conseguia distrair-se ou ocupar-se   modo a não

abrir um espaço para que o tédio se anunciasse. O tédio, como

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Pedra:

Fizfisioterapia por recomendação médica. Senti me-

lhoras, mas é caro. E sem trabalhar tanto não tenho condições de

manter o tratamento.

Analista: E sem tratamento não tem condições de se manter

trabalhando.

Pedra: E, também, ofisioterapeuta recomendado pelo médi-

 o em quem eu confiofica na Barra, muito longe de onde circulo.

A distância torna as coisas difíceis.

Analista: E as dificuldades também paralisam você.

Pedro: É real.

Analista: E a tua realidade torna difíci l para você sair de

onde você se encontra.

Pedro:

É 

A acomodação, apreguiça outra vez. Também, hér-

nia não tem solução. Nem tratamento, nem cirurgia, nada.

Analista: Parece, então, que a tua condição física já ditou a

tua sentença: permanecer para sempre onde você está.

Pedra, então, avisa que terminou o nosso tempo. Nesse tre-

cho, percebemos o quanto e o como Pedra tenta se desonerar do

cuidado que, no final das contas, sempre lhe compete. Ele justi-

fica-se no somático, no passado desperdiçado, na acomodação e,

por fim, não assume aquilo que é o seu necessário.

No encontro seguinte, Pedra inicia:

- Não adianta, nada adianta, não agüento mais irpara o tra-

balho.Não quero participar de nada. Sabe, não tem sentido, nada

daquilo tem sentido. Fico o tempo todo olhando para o relógio, e

eu mesmo me pergunto por que ainda estou ali. Por que me falta

coragem para desistir. Já aumentei a dosagem do remédio e nada,

parece que cada dia estou mais deprimido. Não vejo nenhum sen-

tido naquilo tudo. Não vejo sentido em nada.

 

tonalidade afetiva fundamental, promove a possíbílídade de que

a desistência frente à exigência de produtividade Voraz se estabe-

leça. E de que, assim, possamos ouvir do ser o seu apelo. Cabia,

então, ao analista, no mínimo não abafar esse apelo, mas deixar

que ele clamasse silenciosamente, de modo que Pedra pudesse

dar voz àquilo pelo que apelava, clamava.

Analista: Agora,parece que desistir é o que mais faz sentido.

Pedra: Eu não estou bem, eu diria até que estou mais depri-

mido. Estou me sentindo anestesiado, parece que carrego um peso

enorme nas minhas costas.

Analista: E como é seu dia-a-dia quando você sesente assim?

Pedra: Fico menos disposto ainda. É mais difícil, eu diria im-

possível, participar dos seminários, das cirurgias. Aliás, hoje não

participei de mais um. E nem me senti mal por isso, não fiquei

ansioso. Foi bom, não sei se amanhã continuarei da mesma forma,

mas hoje não fazia sentido.

Analista: Hoje você não ficou com medo pelo que os outros

poderiam falar a seu respeito?

Pedra: Não estava nem aí para as outras pessoas. Também,

hoje parece que estou dando menos importância às coisas. Vem

acontecendo. Ontem, um professor, médico renomado, falava da

importância de você criar um procedimento novo, daí ficar mais

fácil partir para publicações, ser convidado para congressos. Eu

normalmente fico calado não me exponho, mas sem pensar, falei:

 E daí? Saiu sem querer, acho que ele não gostou. Fiquei calado,

nãofalei mais nada.

Analista: Você não concorda com o tal professor?

Pedro: Não, a importância de um novo procedimento

 u 

var mais vidas. Para quê? Quando participei do proc sso ( letivo,

192

~  

o professor que fez a seleção, na entrevista, me perguntou:  Num

hospital, qual é o elemento fundamental, a peça chave, o que tem

maior importância?  Naquela hora, fiquei confuso, uma pergunta

tão simples e eu não soube responder. Queria saber o que ele que-

ria que eu respondesse. Queria falar aquilo que ele queria ouvir.

total e radical desistência, em que nem mesmo o olhar do outr

consistia em algo que o ligasse às determinações e obediência

às prescrições do mundo, o que faria? Ele retomaria o ritmo do

mundo e novamente voltaria a trabalhar e beber compulsiva-

mente? Ele continuaria com os antidepressivos e, assim, ame-

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Pensei, talvez o médico. Hoje, agora, eu responderia com a maior

tranqüilidade: nada é importante.

Pedro lembrava Bartleby de Hermam Merwil (1853/2008),

sobre o qual já falamos antes, e também nos reportava a Ro-

quentin de Sartre (1938/1983). Para Pedro, Bartleby e Roquen-

tim, o mundo caíra em uma total indiferença, nada fazia mais

sentido. Parece que os três, uma vez tomados pela atmosfera do •

tédio, do total e radical desinteresse pelo mundo e por si mes-

mo, desistiram. Nessa desistência, porém, com a total suspensão

dos sentidos ditados pelo impessoal da era da técnica, abrem-se

outras possibilidades de descerrar mundo. Bartleby, ao ser to-

mado por essa atmosfera, ao suspender todos os sentidos, sem

mais nada querer fazer, em absoluto desinteresse e desânimo, no

seu  prefiro não fazer  que se irradia para toda e qualquer ativi-

dade, desiste também de comer e acaba morrendo por inanição.

Roquentim, ao suspender todos os sentidos e justificativas que

fundamentavam as razões pelas quais se existe, mobiliza-se com

a doçura com que pensava no Judeu e na Negra. Ele pensava

que eles se lavaram (não completamente) do pecado de existir

e diz (1983, p. 219-220):  Esta idéia revoluciona-me subitamen-

te, porque nem isso esperava. Sinto qualquer coisa que timida-

mente roça em mim e n ão ouso mexer-me, porque tenho medo

de afugentá-Ia. Qualquer coisa que já não me lembrava: uma

espécie de alegria': Ele descobre, afinal, o que faz sentido para

a sua singular e intransferível existência. Ele resolve escrever e

vê nessa atividade o sentido para existir, embora reflita:  Um

livro.

É

claro que, ao começo seria muito trabalho aborrecido e

fatigante; escrevê-lo não me impediria de existir, nem de sentir

que existo:' (1983, p.221). E Pedro, que agora se encontrava na

194

nizaria ou sufocaria o seu apelo? Ele desistiria de vez e morre-

ria de inanição? Não sabemos, o fato foi que Pedro nunca mais

compareceu à sessão.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

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Bem, chegamos ao fim e importa saber se conquistamos

aquilo a que nos propusemos no início. Sabemos que, quando o

início aparece, ele já demarca o espaço de realização possível da-

quilo que irá acontecer. Primeiramente, questionamo-nos sobre

o que nos permitiria falar em uma desconsideração da relação

primeira entre homem e mundo por parte da filosofia da subje-

tividade moderna, que acabou sendo incorporada pela psicolo-

gia? Vimos que a dicotomização foi radicalizada pelas filosofias

da subjetividade que, na tentativa de solucionar os problemas da

existência humana, precisavam conhecer e ter domínio daquilo

que se passava na sua interioridade. Descrevemos essa tentativa

tanto nas filosofias racionalistas, idealistas, como nos movimen-

tos românticos e iluministas. Logo em seguida, acompanhamos

essa mesma construção nas psicologias, surgindo, assim, as Psi-

cologias com ênfase em uma interioridade psíquica, com acento

na razão ou na emoção. E a resolução dos conflitos psíquicos

se daria na descoberta das intenções dessa interioridade. Nesses

casos, o mundo seria aquela instância que agiria como obstáculo

à

liberação daquilo que era o mais natural, por não ter sofrido as

pressões do ambiente. A tarefa da Psicologia seria liberar o espa-

ço para que aquilo de mais autêntico pudesse ganhar expressão.

Sem' dúvida, então, a Psicologia inicia suas considerações teó-

ricas e práticas a partir da cisão sujeito e mundo. E, assim, des-

considera a relação que aparece antes de toda e qualquer cisão

homem e mundo, a que aqui denominamos de original.

 9 

Segue-se, então, uma segunda questão: o que pode nos ser-

vir de base para uma superação dessa dicotomização homem e

mundo, que instaurou de imediato um efeito fatídico da filosofia

moderna sobre a Psicologia? Foi então que buscamos na própria

filosofia uma via alternativa às modernas concepções da subjeti-

zio aparece. Vale ressaltar que toda transformação que se dá, seja

o processo clínico bem como o da existência em geral, não acon-

tece pela vontade do analista ou do próprio analisando. Há algo

que desencadeia a atmosfera e, por mais que a crise aconteça por

meio do que acontece, há algo que realmente mobiliza a trans-

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vidade. Encontramos primeiramente no projeto fenomenológico

de Husserl considerações acerca da constituição da consciência

em sua imanência, intencionalidade, portanto, rompendo com

a dicotomia sujeito e mundo. O projeto de Husserl ganha, por

sua vez, uma radicalização na hermenêutica-fenomenológica de

Heidegger e em suas considerações acerca do ser-aí

 Dasein ,

considerações que conduzem diretamente ao problema das to-

nalidades afetivas fundamentais. Esses foram os elementos com

os quais começamos a pensar em um projeto de uma Psicologia

e, consequente, de clínica psicológica que, no esteio da fenome-

nologia de Husser e da hermenêutica heideggeriana, pudesse

pensar em uma relação mais originária, prescindindo, assim, da

pressuposição de um psiquismo. Dessa forma, a Psicologia clíni-

ca que aqui desenvolvemos não parte da relação sujeito e mundo,

pois considera que esses são cooriginários, e toda clínica psicoló-

gica, aqui apresentada, acontece na consideração desse horizonte

em que homem emundo se articulam mutuamente.

A apresentação dos fragmentos de atendimentos clínicos

permitiu que demarcássemos as possibilidades de uma clínica

em uma perspectiva fenomenológico-existencial. Clínica essa

que se estabelece muito mais em uma negatividade do que pro-

priamente em uma identidade positiva. O ser-aí que, marcado

pela nadidade e pela fragilidade ontológica, busca a estabilida-

de do mundo, que se constitui em um apoio, um suporte e uma

tutela. Mas é exatamente essa busca que o coloca na cadência

do mundo, esquecendo-se do seu próprio ritmo, e acaba obs-

curecendo o seu caráter de poder-ser. São as situações limites

que, ao entrarem na articulação do ser-aí e do mundo, rompem

com os sentidos sedimentados no círculo hermenêutico e o va-

198

formação que se encontra em um horizonte mais originário, que

para Heidegger consiste nas tonalidades afetivas fundamentais.

As situações clínicas aqui explicitadas trazem sempre à baila

questões acerca das existências que se encontram em restrições

de sentido. Os filósofos da existência, cada um ao seu modo, de-

fendem a tese de que a loucura encontra -se em sintonia de fundo

com existências fechadas. Kierkegaard apresenta, como discuti-

mos anteriormente, a total restrição de possibilidades do guar-

da-livros. Esse apenas contava com uma possibilidade, e, assim,

acreditava permanecer no controle frente a qualquer outro pos-

sível. Sartre recorre a c ontos, peças teatrais, entre outros escritos,

para referir-se às e xistências enclausuradas. Heidegger mostra de

que modo as tonalidades afetivas fundamentais podem retirar

aquele que se encontra na total restrição de sentido e dispô-Ia

para uma abertura de possibilidades. Antônio, Pedro, Paulo e

Otávio, cada um ao seu modo afetados pela atmosfera de nosso

tempo, encontravam-se em restrição, enclausurados, pobres em

possibilidades. Lessa (2010, p. 14) afirma sobre a loucura, enten-

dida aqui como existência em restrição, o seguinte: ''A loucura,

então, é uma possibilidade que todos os homens carregam em

sua existência. E pode ser compreendida como um modo de se

comportar de forma desarticulada do mundo compartilhado, re-

velando a perda da possibilidade de seguir suas orientações:'

a tentativa de poder mostrar e prestar maiores esclareci-

mentos às existências enclausuradas de nossos analisandos, re-

corremos à literatura, uma vez que essa nos liberta das verdad

universais, na medida em que traz em seus escritos existência

singulares. Por entendermos que em todo singular há o univ r

 

e no todo do mundo encontramos o singular, acreditamo que

199

os contos, romances e peças teatrais a que nos referimos aqui

trazem elementos que podem enriquecer a nossa compreensão

daquilo que está em questão em todas essas existências.

Nas análises fenomenológicas dos discursos clínicos aqui

apresentados, tentamos esclarecer de que modo as tensões, que

vrar-se da angústia, o ser-aí ou bem retoma a tutela do mundo

e volta àquilo que lhe é familiar, ou bem se concretiza no poder

_ ser, singularizar-se implica perda, nem que seja por um instan-

te, da tutela do mundo. Nessa atmosfera de tensão, na tonalidade

afetiva fundamental da angústia, as prescrições do mundo são

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aparecem nas declarações de Antônio, Pedro, Paulo e Otávio, não

nos falam de uma interioridade cindida. Ao contrário, eviden-

ciam as tonalidades afetivas que, ao abrirem o leque da indeter-

minação em que a existência sempre se encontra, imediatamente

encontram resistência daquele que, a qualquer preço, tenta aba-

far o seu caráter de indeterminação, abertura, vulnerabilidade,

enfim, de ser lançado abruptamente no mundo.

Antônio, na clínica infantil, completamente tomado pela

tonalidade afetiva da embriaguês, teme não resistir ao êxtase de

pegar alguma coisa. Ele teme que, uma vez totalmente absorvido

pela atmosfera do prazer, não resista a compulsivamente pegar

aquilo que o embriaga. Ao mesmo tempo, o menino tem medo

de ser descoberto. E dessa situação marcada por um misto de

prazer e medo, nessas atmosferas, nasce a tensão. E é essa tensão

que mobiliza a situação clínica.

Paulo, o médico, confronta-se a todo o tempo com a morte

do outro, mas, como quem morre é esse outro, ele se vê isento

com relação à sua própria morte. Ele considera, em última es-

tância, que a morte é sempre do outro. Portanto, não é algo que

lhe diga respeito. O médico, com a ilusão da proteção pelo saber

científico, cria uma distância entre aquilo que está acontecen-

do com o paciente e a sua existência. Porém, no momento em

que essa capa protetora, por algum motivo, se esvai, Paulo ouve

o anúncio de sua própria indeterminação e finitude. Ele tenta

se distrair, tenta voltar ao ritmo do mundo das ocupações. Po-

rém, a voz da consciência clama. Paulo, ao mesmo tempo em

que quer abafar esse clamor, também quer lhe dar voz em meio

à angústia. A angústia emerge como um mobilizador existencial

que, imediatamente, abre duas possibilidades: na tentativa de li-

suspensas e o mundo se apresenta com todos os seus possíveis.

Paulo, então, enxerga outras possibilidades, que o mundo ofe-

rece para além daquela que o asfixia. Ao romper com o círculo

hermenêutico, no qual a atividade profissional de Paulo é a mais

valorizada, reconhecida e respeitada, tornando muito difícil dela

desistir, mesmo que seja asfixiante, ele pode ver a possibilidade

da música.

Já Otávio tinha medo de

ser

contaminado com o vírus HIV

e ficar com AIDS. Se perguntarmos às pessoas em geral se elas

têm medo de contrair AIDS, a maioria provavelmente dirá que

tem. Logo, o medo torna possível a abertura do leque de possi-

bilidades de que a coisa aconteça de modo que possamos nos

proteger. Ocorre que Otávio não só tinha medo, não considerava

apenas os elementos mais comuns que podem trazer AIDS. Ele

era acometido pela atmosfera do temor, ou seja, tornava-se cada

vez mais alerta para os riscos que se apresentavam. Com isso,

Otávio ficava em descompasso com aquilo que o mundo avisa

sobre o perigo. Ia além e acabava vendo o perigo em quase tudo.

E, assim, ocorria o acirramento da rede de controle, que o anún-

cio da angústia desarticula. Com isto, toma o lugar da angústia o

temor, em uma tentativa de retomar o controle. Deste modo, na

tentativa de retenção por meio do temor, Otávio acreditava que

poderia alijar a angústia. Na situação de Otávio, em seu temor

máximo, no qual as possibilidades de controle caíam por terra,

ocorria de a atmosfera da coragem poder surgir como possibili-

dade. Otávio assume que ele queria relacionar-se com as garotas,

mesmo com temor e t remor, decide-se corajosamente.

E Pedro, como se dá com ele o acontecimento da clínica? Pe-

dro trazia uma situação de depressão, desistência e desinteresse

2

com tudo que o mundo lhe apresentava como possibilidade. Em

um total esquecimento de seu poder-ser, tentava justificar a sua

situação seja no somático, seja no passado, seja nas suas perdas.

Estava tudo muito confuso, ao mesmo tempo em que o desinte-

resse apontava como sua máxima, preocupava-se com o olhar

ainda zuarda elementos de influências da Psicologia e da Psi-

 

quiatria inseridos no momento em que eles desenvolviam a sua

daseinsanálise. Agora, nosso esforço ao elaborar esse trabalho

aconteceu no sentido de dar continuidade à empreitada desses

daseinsanalistas. E, assim, tentar lapidar aquilo que havia sido

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do mundo. Ele constantemente referia-se ao medo do olhar do

outro. Em urna atmosfera de temor, tentava controlar seu medo,

escondendo-se, não deixando que o outro o visse, principalmen-

te nas atividades laborais. Pedro constantemente referia-se ao

mundo dos médicos como crítico, exigente, competitivo. Mundo

esse que o amedrontava, mas ao qual ao mesmo tempo ele queria

corresponder. Nisso consistia a sua tensão. Situação essa que em

sua tensão máxima, levava-o a desistir, ao que ele mesmo deno-

minava depressão. No entanto, quando a atmosfera do tédio se

instaura e Pedro não se justifica, nem se distrai com as dores de

seu corpo, ele se dá conta que não precisa corresponder às solici-

tações de seu mundo que lhe exige excelente desempenho e pro-

dutividade. Não sabemos o que aconteceu, se Pedro finalmente

pode assumir uma saída singular ou se desistiu. As notícias são

de que Pedro nunca mais retornou ao hospital.

Acreditamos que as discussões aqui apresentadas tenham

prestado os esclarecimentos oportunos acerca da real possibili-

dade de se articular uma clínica psicológica a part ir da fenome-

nologia hermenêutica de Heidegger. Tentamos evidenciar e es-

clarecer, também, o fato de que a substancialização do psiquismo

não consiste de modo nenhum em uma condição necessária para

que a clínica psicológica aconteça, já que não importa a interiori-

dade, mas sim a articulação ser-aí/mundo. E é esse corresponder

que se encontra perturbado quando a desarticulação acontece.

Com as considerações acima desenvolvidas, acreditamos

que é possível continuar a pensar e pôr em prática uma clínica

psicológica mesmo prescindindo de um psiquismo. Essa tarefa,

já empreendida embrionariamente por Binswanger e Boss, dei-

xou vários aspectos que precisaram ser repensados, uma vez que

202

apresentado de modo incipiente. Sabemos que aqueles que ainda

estão por vir, ao dar continuidade

à

tarefa de elaboração da da-

seinsanálise, também terão muito a criticar e, assim, esclarecer

aquilo que neste ensaio não conseguimos alcançar, conquistar,

nem responder. Por fim, a tarefa empreendida por Heidegger

pode ser, considerando os limites de uma disciplina ôntica, a

empreitada de uma Psicologia clínica com fundamentos feno-

menológicos, hermenêuticos e existenciais.

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