Literaturas africanas de expressão portuguesa
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1. A LITERATURA COLONIAL: FRONTEIRAS E DIFERENÇAS EM RELAÇÃO ÀS LITERATURAS AFRICANAS.
[…] A literatura colonial, define-se essencialmente pelo facto de o centro do universo narrativo ou poético se vincular ao homem europeu e não ao homem africano. No contexto da literatura colonial, por décadas exaltada, o homem negro aparece como que por acidente, por vezes visto paternalisticamente e, quando tal acontece, é já um avanço, porque a norma é a sua animalização ou coisificação. O branco é elevado à categoria de herói mítico, o desbravador das terras inóspitas, o portador de uma cultura superior. Exemplo: «o único país que pode explorar seriamente a África, é Portugal» (prefácio de Manuel Pinheiro Chagas a Os sertões d’África, 1880, de Alfredo de Sarmento, onde aliás se pode ler sobre o negro: «É um homem na forma, mas os instintos são de fera», p. 87). Paradoxalmente, o branco é eleito como o grande sacrificado. A aplicação do ponto de vista colonialista tem no europeu o agente dinâmico e não o opressor: «Fiel aos nossos deveres de dominador, grata ao nosso orgulho, útil às populações», escrevia um homem anti-fascista, Augusto Casimiro (Nova largada, 1929). Predominavam, então, as ideias, da inferioridade do homem negro, que teóricos racistas, haviam derramado e para as quais teria contribuído o filósofo Lévy-Bruhl com a sua tese da mentalidade pré-lógica, — sendo certo, embora, que a renunciou pouco antes de morrer.
Logo no último quartel do século XIX se encontram os pioneiros desta literatura. Mas é no período 20/30 do século XX que ela vai atingir o ponto maior: na quantidade, na marca colonialista, na aceitação do público que esgota algumas edições, com certeza motivado pelo exótico. Aí se destaca um naipe todo ele incapaz de apreender o homem africano no seu contexto real e na sua complexa personalidade. É certo que justo será destacar pela qualidade da sua escrita João de Lemos, Almas negras, 1937, porque nele, apesar de uma deficiente visão, se denota um meritório esforço de análise e intenção humanística. Mas, escritor português, manietado pela distanciação colonialista, por norma, dá ao seu discurso um sentido racista hoje de inconcebível aceitação. Henrique Galvão: «A sua face negra, de beiçola carnuda, tinha reflexos demoníacos» (O vélo d’oiro, 4ª ed., 1936, p. 122); ou: «Era um negro esguio» [o Mandobe] que «dava a impressão [...] dum excelente animal de corrida» (p. 34); Hipólito Raposo (Ana a Kalunga, 1926) na glorificação mística imperial: «Queimados no ardor silencioso de Golfo, em todo o peito português vai estremecendo o marulhar heróico dos Lusíadas» (p. 21), e outros (muitos) como António Gonçalves Videira, João Teixeira das Neves, irmão de Teixeira de Pascoaes, Brito Camacho, Contos selvagens (1934). Prolonga-se este tipo de literatura até aos nossos dias, com tendência, no entanto, para reflectir os efeitos de uma perspectiva humana ajustada à evolução das condições históricas e políticas, porventura o caso de Maria da Graça Freire (A primeira viagem, 1952) e, noutro aspecto, na actualização de uma linha que vem de Hipólito Raposo, citaríamos António Pires, (Sangue Cuanhama, 1949). Essa incapacidade de penetrar no mundo africano terminou por se instalar na consciência de um ou outro (poucos) mais atentos, mais apetrechados do ponto de vista teórico, como é o caso de
José Osório de Oliveira, que se interroga a si próprio: «Conseguirei escutar nesta viagem, a voz da raça negra?» (Roteiro de África, 1936, p. 55).
O tempo histórico, o tempo cultural, para quem, ideologicamente, era incapaz de se furtar à insidiosa instauração do fascismo em Portugal e à inscrição legal do assimilacionismo (aí vinha já o célebre Acto Colonial, de 1930), não permitia ou não ajudava a uma tarefa de tal monta, que rejeita meros propósitos e exige uma reformulação da mentalidade do europeu.
Hoje, não há lugar para dúvidas: muitas dessas obras estão condenadas ao esquecimento, salvando-se aquelas que, apesar de prejudicadas pelas contigências de uma época e de uma mentalidade coloniais, evidenciam contudo um certo esforço humanístico e uma real qualidade estética. Mas, no conjunto, a história vai ser de uma severidade implacável e arrumará a quase totalidade desta literatura no discurso da acção colonizadora ou no nacionalismo imperial, saudosista e deslumbrado.
Manuel Ferreira, Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa, Lisboa, ICALP, 1977, vol.1., pp. 10-13.
http://www.instituto-camoes.pt/cvc/bdc/eliterarios/006/bb06.pdf
2. GUERRA COLONIAL E GUERRA DE LIBERTAÇÃO NACIONAL
O tema da guerra nas literaturas africanas de língua portuguesa confere aos textos uma tendência épica por assinalar o princípio da fundação de uma pátria. O soldado africano é apresentado como um herói libertador, confiante no devir.
Por outro lado, ao lermos a literatura portuguesa saída da guerra colonial, notamos que ela recria uma experiência africana violenta e fantasmagórica, de modo algum eufórica. Autores como Almeida Faria, Lobo Antunes e João de Melo, entre outros, insistem numa visão trágica e dorida por aqueles que, à força, foram combater para um espaço desconhecido e inóspito, com o qual não se identificavam. Não habitam heróis nas obras destes autores, mas anti-heróis fadados para o destino de uma guerra sem saída
GUERRA COLONIAL & GUERRA DE LIBERTAÇÃO NACIONAL
GUERRA DE LIBERTAÇÃO NACIONAL
Não foi pacificamente que os governantes portugueses cederam às pressões dos povos
africanos, quando estes, conscientes do seu direito à autodeterminação, exigiram a devolução
das suas terras colonizadas.
A guerra eclodiu em 1961, mas desde cedo conheceu os seus opositores quer na
sociedade portuguesa quer na comunidade internacional. Recusou-a o bom senso das novas
gerações universitárias impelidas para uma guerra que não era a sua e governadas por uma
entidade não disposta a escutar nem a dialogar com mentes rebeldes e desordeiras. Não
admira, pois, que o governo tivesse sido alvo de conspirações e, por isso, desde logo estendido
o seu braço da censura à intelligentia da época.
Estava atento a casos como o do escritor Luandino Vieira que, radicado em Angola,
intensificara a expressão da problemática africana, assumindo a própria língua autóctone. Foi
ele quem mais longe chegou na informação estética da angolanidade e foi, sem dúvida, um eco
de Angola perigoso ao regime. Notado pelo seu trabalho, foi, por um lado, preso pela PIDE e,
por outro, premiado, em 1965, pela Sociedade Portuguesa de Autores pela escrita do seu
livro Luuanda. Essa ousadia em apoiar literatura comprometida politicamente pagou-a a SPA
com o seu encerramento por ordem governamental.
No ultramar, grupos de trabalho empenhavam-se em começar a escrever a sua própria
História numa perspectiva decididamente pragmática. É disso exemplo um manual da História
de Angola escrito para “revolucionários”, publicado em Argel, no mês de Julho de 1965 e
editado, dez anos mais tarde, pela Afrontamento, na sua colecção “Libertação dos Povos das
Colónias”:
“É necessário que um revolucionário conheça a história do seu país. Muitos
revolucionários dos nossos dias estudaram as grandes batalhas dos tempos antigos e
aprenderam métodos de luta (tácticas) que foram muito úteis nas guerras revolucionárias do
nosso tempo.
Se um militante estudar a história do seu país, aprenderá como é enorme a força e a
coragem das massas populares; aprenderá como elas sabem encontrar maneiras
inteligentes e habilidosas de se defenderem e derrotarem os seus inimigos. O militante
aprenderá a conhecer quem são os mais fiéis amigos das massas populares, ou então
aqueles que mais facilmente podem traí-las, ou ainda aqueles que são seus inimigos.”
(MPLA)
Assiste-se ao nascimento de uma consciência nacional, nos espaços luso-africanos,
também verificável nas manifestações literárias da época: a começar pela geração da
“Mensagem” (anos cinquenta) que, ao entoar o novo canto da angolanidade, via os seus
escritores mais empenhados a serem progressivamente eclipsados por um aparelho policial,
garante legal do obscurantismo instalado na colónia.
As vozes de denúncia não se calaram, antes se ergueram para reclamar justiça: num
crescendo de significado, a poetisa caboverdiana Alda do Espírito Santo, em 1958, começa
por exigir que se castigue os carrascos da sua terra:
O sangue caindo em gotas na terra
homens morrendo no mato
e o sangue caindo, caindo...
Fernão Dias para sempre na história
da Ilha Verde, rubra de sangue,
dos homens tombados
na arena imensa do cais.
Aí o cais, o sangue, os homens,
os grilhões, os golpes das pancadas
a soarem, a soarem, a soarem
caindo no silêncio das vidas tombadas
dos gritos, dos uivos de dor
dos homens que não são homens,
na mão dos verdugos sem nome.
Zé Mulato, na história do cais
baleando homens no silêncio
do tombar dos corpos.
Aí, Zé Mulato, Zé Mulato.
As vítimas clamam vingança
O mar, o mar de Fernão Dias
engolindo vidas humanas
está rubro de sangue.
– Nós estamos de pé –
Nossos olhos se viram para ti.
Nossas vidas enterradas
nos campos da morte,
os homens do cinco de Fevereiro
os homens caídos na estufa da morte
clamando piedade
gritando p'la vida,
mortos sem ar e sem água
levantam-se todos
da vala comum
e de pé no coro de justiça
clamam vingança...
... Os corpos tombados no mato,
as casas, as casas dos homens
destruídas na voragem
do fogo incendiário,
as vias queimadas,
erguem o coro insólito de justiça
clamando vingança.
E vós todos carrascos
e vós todos algozes
sentados nos bancos dos réus:
– Que fizeste do meu povo?...
– Que respondeis?
– Onde está o meu povo?...
E eu respondo no silêncio
das vozes erguidas
clamando justiça...
Um a um, todos em fila...
Para vós, carrascos,
o perdão não tem nome.
A justiça vai soar,
E o sangue das vidas caídas
nos matos da morte
ensopando a terra
num silêncio de arrepios
vai fecundar a terra,
clamando justiça.
É a chamada da humanidade
cantando a esperança
num mundo sem peias
onde a liberdade
é a pátria dos homens...
Depois, o poeta-militante Agostinho Neto, no poema “Luta”, anuncia:
Violência
vozes de aço ao sol
incendeiam a paisagem já quente
E os sonhos
se desfazem
contra uma muralha de baionetas
Nova onda se levanta
e os anseios se desfazem
sobre os corpos insepulcos
E nova onda se levanta para a luta
e ainda outra e outra
até que da violência
apenas reste o nosso perdão.
E o verso de Jorge Rebelo faz-nos reparar na euforia do momento: «as balas começam a
florir». De aí em diante, o tema da guerra nas literaturas africanas de língua portuguesa
passaria a conferir aos textos uma tendência épica por assinalar o princípio da fundação de
uma pátria. O soldado africano é apresentado como um herói libertador, confiante no devir.
Esta era, de resto, a “guerra justa”, um instrumento que não se discute.
Da literatura produzida na zona de guerrilha, destaca-se Pepetela, pseudónimo de A.
Pestana dos Santos. A narração de As Aventuras de Ngunga (1972) ensinava aos pioneiros
do Movimento Popular para a Libertação de Angola as características do bom guerrilheiro.
Funcionalidade moral que leva Mayombe (outra obra do prosador Pepetela escrita em 1971) a
não centrar a sua atenção nas acções de combate, embora as descreva pontualmente. Esta é
uma obra que apresenta múltiplas reflexões que procuram dar corpo aos pensamentos das
diferentes correntes e aos sentimentos dos diferentes grupos étnicos, etários, sócio-políticos e
culturais.
EU, O NARRADOR, SOU TEORIA.
Nasci na Gabela, na terra do café. Da terra recebi a cor escura do café, vinda da mãe,
misturada ao branco defunto do meu pai, comerciante português. Trago em mim o inconciliável
e é este o meu motor. Num Universo de sim e não, branco ou negro, eu represento o talvez.
Talvez é não para quem quer ouvir sim e significa sim para quem espera ouvir não. A culpa
será minha se os homens exigem a pureza e recusam as combinações? Sou eu que devo
tornar-me em sim ou em não? Ou são os homens que devem aceitar o talvez? Face a este
problema capital, as pessoas dividem-se aos meus olhos em dois grupos: os maniqueístas e os
outros. É bom esclarecer que raros são os outros, o Mundo é geralmente maniqueísta.
Pepetela, Mayombe, Lisboa, Edições 70, 1988, 3ª ed., p. 16.
Em Mayombe a noção de confiança é defendida como elemento imprescindível,
comparável ao cimento que une as pedras de um edifício, isto é, os elementos de uma nação.
É ela própria a força do grupo; é a necessidade de conquistar pessoas; é a direcção
participada; é o necessitar de auscultar as opiniões dos outros; é, enfim, o saber estar colectivo
na procura do equilíbrio. No fundo, Mayombe enaltece o povo angolano, justo e merecedor de
uma paz duradoura, pelo passado sofrido da maioria dos seus habitantes. Merecedor de uma
política consciente e de políticos honestos, hábeis construtores de uma nação equilibrada,
onde se possa confiar numa justiça imparcial, racional, capaz de atenuar os efeitos das
dissenções étnicas.
GUERRA COLONIAL
Por outro lado, ao lermos a literatura portuguesa saída da guerra colonial, notamos que
ela recria uma experiência africana violenta e fantasmagórica, de modo algum eufórica. Autores
como Almeida Faria, Lobo Antunes e João de Melo, entre outros, insistem numa visão
trágica e dorida por aqueles que, à força, foram combater para um espaço desconhecido e
inóspito, com o qual não se identificavam. Não habitam heróis nas obras destes autores, mas
anti-heróis fadados para o destino de uma guerra sem saída.
José Maria de Aguiar Carreiro
“Jaz morto e arrefece o menino de sua mãe” (1973), escultura de Clara Menéres
(Fonte: Panorama da arte portuguesa do século XX, Fernando PernesPorto, Campo das Letras, 1986, p. 265.)
“Jaz morto e arrefece o império de sua mãe.”
Margarida Calafate RibeiroUma História de Regressos: Império, Guerra Colonial e Pós-Colonialismo
Porto, Afrontamento, 2004 (Clique aqui para consulta online )
OS CORPOS
vede
que jazem
à minha frente
a pele citrina
da morte
biliosa
os habita
espécie de pacto
sobre tudo isto que vedes
a maneira de olhar
o sangue
calar a revolta
este pânico entreaberto
nos olhos dos cadáveres
e os coágulos duros deste sol
há uma mentira acreditável
em quem vê as armas caídas
ao lado destes corpos
cumplicidade de admitir nos mortos
a espera da nossa morte
vede que jazem
estes membros como insónia
sobre os corpos destruídos das granadas
perfil rígido
das metralhadoras
para sempre presas no sovaco
cratera da nossa boca
de comer e tanto vomitar a guerra
mas vede também
que ira interrompida
se morde contra a morte
sobre estes mortos
João de Melo, Navegação da terraLisboa, Editorial Vega, 1980, 1ª ed.
ATÉ HOJE: MEMÓRIAS DE CÃO
Não seria nome de guerra — Uíje — pintadas letras negras no casco cinzento, letras
simples, másculas, a boca espremida no contra-senso da pronúncia — Uíje — os lábios
contraídos, aguados. Seria nome de rio, de província com rio, sabor exótico, leito imprevisível
com margens insondáveis, cacofonia de África portuguesa em pé de guerra, de derrames
viscerais de culturas anti-natura, os longos e duros séculos coloniais em ressaca. Nem nome
de guerra, rio, província, seria aquele “Uíje”, agora em aspas, enorme batelão desgraçado de
luxos e cruzeiros. Era nome de barco por conta do Exército, com os porões desventrados,
sorvia batalhões de homens forrados de moreia, empilhados, náusea sobre náusea, o oxigénio
consumido, suor destilado, uvas na prensa — vinagre ou fel do cálix português na viagem
incolor de encontro à guerra. la-se naquele barco com a alma dependurada no gancho da
dúvida. 1253 homens carregados em Alcântara. Nem todos voltariam — sabia-se. A guerra era
a guerra, cosida com as linhas da morte. Cobras, escorpiões, jacarés, o micróbio das águas, as
febres — cuidado! A cobra vê-se, o jacaré avista-se, o escorpião sente-se. “Não bebam água
sem ser filtrada”, mesmo quando filtros não há. “A sede não mata, a febre palúdica derruba-se
com quinino”. Nem uma palavra sobre os efeitos da bala, do cogumelo de estilhaços da
granada, das razões que assistem ao poder do canhão. “O inimigo não conta! Mata-se,
simplesmente... É lorpa! O inimigo é preto por ignorante, sinónimo de escravo por vocação...” O
arrazoado seguia monótono e talvez cabal, contraditando notícias, relatos, o número dos
mortos, as zonas impenetráveis, o internacionalismo do problema. Beberam ódio em doses
maciças contra o inimigo de quem não sabiam nem a forma nem a força.
Álamo Oliveira, Até Hoje: Memórias de Cão
Lisboa, Edições Salamandra, 2003, 2ª ed. (Ulmeiro, 1986, 1ª ed.)
Para finalizar este post, remeto os leitores para o Diário de um
combatente, uma página online sobre a guerra colonial, com fotos da época, poemas e diário
de guerra em Angola, entre Abril de 1961 e Março de 1963. O ex-combatente é Joaquim
Coelho.
Do Caxito até Quitexe – ATRIBULAÇÕES
No posto de controlo do Cacuaco, enquanto as viaturas pararam até à abertura da cancela,
alguns pára-quedistas saltaram para o campo de cana-de-açúcar e colheram troncos de cana
que guardaram na mochila. Os mais experimentados sabem que, nos dias de jejum passados
nas matas dos Dembos, as canas vão saber a pão-de-ló. Os comandantes de pelotão
aproveitaram a paragem para acertar as últimas estratégias contra os possíveis ataques da
guerrilha.
[…]
O Alfredo diz guardar todo o seu fogo e desejo para a Maria Isabel, sua noiva. Mas não
deixa de assediar as jovens negras que vão à porta do acampamento entregar as roupas
lavadas. Tem um poder extraordinário para cativar as gajas, que na conversa lhe pedem mais
uns centavos e ficam na brincadeira até se zangarem, quando o Alfredo lhes passa a mão por
baixo da capulana e apalpa a carapinha entufada. Elas são recatadas e riem muito, dizendo:
– Ih! Alfredo quer é foder a gente.
Sempre a rir e a pregoar, lançou o aviso:
– Ainda é menina e não quer home p’ra fodê.
Mas algumas já deliravam quando sentiam as mãos a espremer os mamilos, e com o calor
da descarga que lhes inundava a passarinha. Esfregam-se bem, antes de entesarem o
parceiro, e gemem com uma boa penachada. Andam por ali a cirandar, logo bamboleando as
ancas como um chamariz que desperta a atenção dos soldados que acompanham as colunas
de reabastecimento. Às vezes até são descaradas na forma de mostrar o decote, despertando
a libido que está ao rubro, intensificando o desejo e as emoções dos soldados, que ficam sem
controlo. Elas riem, percebendo que o membro ganha volume e os pensamentos “mergulham”
no meio das coxas de qualquer mulher! A gente assim carente logo quer tocar nas peles
acetinadas e apalpar as mamas avantajadas para manter o diálogo de volúpia e conquista...
Mesmo no divertimento com o membro entesado, elas riem. As químicas do amor carnal
também cristalizam os sonhos de amores ausentes, e não têm limites na relação corporal. Os
prazeres estão nas coisas simples e são temperados pelos gestos dos corpos que levam ao
êxtase das infinitas delícias da vida.
O ÚLTIMO GOLPE DE MÃO
Na estrada do Piri, aos solavancos
para as matas do Quitexe
as viaturas loucas avançam...
atentos ao bandido que ainda mexe
vão os soldados de fatos às cores
só para se confundirem no capim.
Para trás deixam os tenros amores!
as bebedeiras de poeira sem fim
obrigam ao silêncio das gargantas,
em cada curva da picada sinuosa
o perigo esconde-se nas plantas!
Os gananciosos obreiros coloniais
Já não se afoitam como dantes...
recolhidos ao aconchego da cidade,
vivem rodeados de criados e amantes.
E nós, combatentes e detestados,
estamos a comer o pó do sertão,
enquanto caminhamos sufocados
até ao derradeiro golpe de mão!
(Quibaxe)
Joaquim CoelhoO Despertar dos Combatentes. Fotos com estórias em Angola
Clássica Editora, 2005
Uma visão esquecida e inconveniente para muitos!
Considero-me mais conhecedor sobre esta temática após ler o seu texto.
Estou-lhe grato por isso.
A divulgação destas verdades históricas tornou-se uma urgência nos nossos dias para que se evite o branqueamento da responsabilidade deste drama da nossa história colectiva recente.
Eram vários os quadrantes políticos interessados no desmembramento da última potência colonial.
Villemarest (em ?História Secreta das Organizações Terroristas?, tomo IV, inteiramente dedicado ao caso português) fala da ?Trilateral?, uma força em expansão, controlada pelos grandes capitalistas da Europa, Japão e Estados Unidos, que não hesitam em pactuar com os comunistas e afins para auferir melhores proventos.
Assim, a vontade legítima de separatismo dos povos africanos foi aproveitada por forças externas movidas por interesses próprios para as quais pessoas e nações mais não são do que joguetes.
O problema é que os regimes extremos tocam-se no que há de pior, impedindo o florescimento de uma sociedade democrática.
Em matéria de descolonização, não ignoro os erros cometidos pelos políticos e patentes elevadas dos militares portugueses. O processo de descolonização foi um fruto podre da anarquia com que mergulhou Portugal nos meses imediatamente a seguir ao 25 de Abril de 1974. Veja-se, por exemplo, o que escreve António José Saraiva no ?Diário de Notícias?, num artigo datado de 26/01/1979: ?os militares, sem nenhum motivo para isso, fugiram como pardais, largando armas e calçado, abandonando portugueses e africanos que confiavam neles. Foi a maior vergonha de que há memória desde Alcácer Quibir.?
About josecarreiroJOSÉ MARIA DE AGUIAR CARREIRO. Página pessoal: http://folhadepoesia.com.sapo.pt Plataforma de apoio pedagógico ao estudo da língua portuguesa: http://lusofonia.com.sapo.pt
3. LITERATURA COLONIAL E PÓS-COLONIAL
A literatura colonial, identificada com um conjunto de textos que inclui romance, poesia, narrativas de viagem, relatos de missionários, diários, livros de notas e outros que propagandearam a ideia de império sobretudo a partir do século XIX , tem origem em textos muito anteriores aos quais vai beber metáforas e imagens, como sejam as descrições de selvajaria de Heródoto, os relatos de Marco Polo, Mandeville ou Haklyut. Seria, contudo, na viragem do século, com a expansão colonial como a Inglaterra e a França, que iria desenvolver-se. A África, continente redescoberta pelos europeus nos anos 80 do século passado, surge então como cenário de inúmeros textos de autores como H. Rider Haggard, John Buchan, Mary Kingsley, Florence Dixie ou Joseph Conrad em Inglaterra e Pierre Loti, Paul Vigne D’Octon ou Paul Bonnetain em França. Também o império britânico na Índia é tema de Rudyard Kipling, E. M. Forster, G. A. Henty ou Alice Perrin.
Quanto à literatura pós-colonial considera-se, em geral, que tem início após a II Guerra Mundial sendo definida por Elleke Boehmer como “a literature which identified itself with the broad movement of resistence to, and transformation of, colonial societies.” (Colonial & Postcolonial Literature. Migrant Metaphors, Oxford University Press, 1995, p. 184). Entre as duas barreiras temporais citadas encontra-se todo um conjunto de textos que registam diferentes atitudes face ao império e que não poderão enquadrar-se numa designação única, já que, segundo a mesma autora, “initiatives which we now call postcolonial first began to emerge before,the time of formal independence, and therefore formed part of colonial literature” (Op.cit., p.5). Na verdade, já em Conrad e Forster se registam atitudes de resistência ao poder colonial, as quais iriam também encontrar expressão nos anos 20 e 30 nas obras de autores como Léopold Sédar Senghor (Senegal), Aimé Cesaire (Martinica) ou Bernard Binlin Dadié (Costa do Marfim). Vivendo em Paris, estes escritores tornaram positiva a imagem de “negritude”, anteriormente identificada como negativa e inferior pelo colonizador, passando a celebrá-la enquanto símbolo do institivo e misterioso da África negra.
É, porém, o movimento anti-colonial que se sucede a 1945 que traz consigo a literatura pós-colonial de que são exemplificativos autores como: Chinua Achebe, George Lamming, Ana Ata Aidoo, Alice Munro, Margaret Atwood, patrick White (Prémio Nobel, 1973), Wole Soyinka (Prémio Nobel, 1986), J. M. Coetzee, Peter Carey ou Nadine Gordimer (Prémio Nobel, 1992, apenas para citar alguns.
É de salientar que a partir dos anos 70 grupos cujas obras não eram até então consideradas passam a figurar na literatura pós-colonial. São eles as mulheres (Am Ata Aidoo, Bessie Head, Keri Hulme, Michelle Cliff, Erna Brodber) e os povos indígenas (p.
ex., os australianos aborígenes Sally Morgan e Mudrooroo ou os neozelandeses maori Witi Ilhimaera e Patricia Grace).
A eles se junta um terceiro grupo, os chamados migrant writers. Por diferentes razões, que vão desde a opção profissional ao exílio político, autores de nações outrora colonizadas passam a residir em Boston, Nova Iorque, Londres e Paris. É o caso de Salmom Rushdie, Ben Orki ou V. S. Naipul.
É também nos anos 70 que tem início a crítica literária pós-colonial, nomeadamente em 1978 com a publicação de Orientalism de Edward Said também ele migrant writer nos EUA e também ele, como Rushdie, com as suas obras actualmente banidas na Palestina. Desde então, a obra de Said tem dado origem a uma vasta bibliografia de análise crítica às suas teorias, bibliografia que muito tem influenciado as várias “leituras” de que têm sido objecto os textos coloniais e pós-coloniais. O que é sobretudo posto em causa na perspectiva “orientalista” de Said é o facto de este dividir o mundo em dois - o do colonizado - afirmando que o Orientalismo, que não existe na realidade sendo antes fabricado pelo Ocidente, constituir uma afirmação de poder por parte do colonizador ocidental face ao colonizado, sendo o primeiro sempre dominante e privilegiado do ponto de vista discursivo, social e político. Afirmações como “Orientalism depends for its stategy on this flexible positional superiority, which puts the Westerner in a whole series of possible relationships with Orient without ever losing him the relative upper hand” (Orientalism, Penguinm 1985), p. 7 têm sido postas em causa por vários autores. de uma forma ou de outra, todos apontam o reducionismo da metodologia de Said. Como afirma Bart Moore-Gilbert: “What unites such critics is a perception that said unifies homogenises the identity and operationality of colonial discourse to an unwarranted degree”(“Writing India, Reorienting Colonial Discourse Analyses”, in Writin India 1757-1990. The Literature of British India, 1996, p. 5).
Entre os críticos de Said destacam-se Homi Bhabha e Gayatri Chakravorty Spivak. Partindo da psicanálise, Bhabha mostra como as relações entre colonizadores e colonizados não são homogéneas mas marcadas pela “ambivalência” (palavra-chave retirada da psicanálise) pondo em relevo a esfera insconsciente das relações coloniais e mostrando de que forma o sujeito colonial se converte em objecto de fantasia e desejo por parte do colonizador. Quanto a Spivak, põe em relevo a(s) história(s) do(s) “subalterno”(s), conceito que deve ser entendido como a diversidade dos grupos dominados e explorados sileciados pelo ponto de vista hegemónico da historiografia académica. Assim, propõe-se dar voz aos excluídos, nomeadamente às mulheres nativas subalternas, cujo ponto de vista nunca é ouvido, vítimas que são da visão de superioridade do feminismo ocidental que autora considera sinónimo dos comportamentos do colonizador face ao colonizado e, portanto, mera reprodução dos axiomas do imperialismo.
Outros autores têm criticado Said e proposto novas formas de abordagem teórica sem, contudo, note-se, rejeitarem na íntegra o modelo orientalista. Porém, p. ex., Robert Young não deixa de apontar outros caminhos fazendo notar que não existe um modelo
metodólogico para a análise de impérios como o português ou o espanhol ou para espaços geográficos que não a Índia, nomeadamente a África.
Nos anos 90 as literaturas pós-coloniais encontram-se, tal como a metodologia crítica, numa fase de proliferação e mudança. Parece-nos que uma perspectiva comparatista poderia ajudar, já que é a que passou a ser adoptada para a própria História do colonialismo, como significativamente mostra o livro de Mac Ferro Histoire des colonisations (de notar a utilização do plural) recentemente traduzido para português e inglês.
Por, e dados os exageros da teorização apontados por muitos críticos, torna-se sem dúvida, necessário, não só repensar a história das colonizações como regressar ao(s) texto(s).
Bibliografia
Martine Astier-Loufti, Littérature et colonialisme, 1971; L. Fanoudh-Siefer, Le Mythe du nègre et de l’Afrique noire dans la littérature française de 1880 à la 2è guerre mondiale, 1968; Bart Moore-Gilbert, “Introduction. Writing India, Reorienting Colonial Discourse Analysis”, in Writin India 1757-1990. The Literature of British India, 1996, pp. 25-29; Elleke Boehmer, Colonial & Postcolonial Literature. Migrant Metaphors, 1995; Mac Ferro, Histoire des colonisations, 1994; A. Martinkus-Zump, Le Blanc et le noir, 1975; W. Edward Said, Orientalism, 1978; Robert J. C. Young, Colonial Desire, Hydridity in Theory, Culture and Race, 1995; Ania Loomba, Colonialism/Postcolonialism, 1998; Gaytri Chakravorty Spinak e Sarah Harasym, The Post-Colonial Critic (Interviews, Stategies, Dialogues), 1990; Billey Asbcroft, Gareth Griffithes e Helen Tiffin, The Post-Colonial Studies Reader, 1994; Iain Chambers e Lidia Curti, The Postcolonial Question: Common Skies, Divided Horizons, 1995; Eugene Benson e Leonar Conolly, Encyclopedia of Post-Colonial Literatures in English, 2 vols., 1994.
© E-Dicionário de Termos literários de Carlos Ceia 2010
Quer na literatura colonial portuguesa quer na literatura colonial europeia, o homem branco é elevado à categoria de herói mítico, o sacrificado e desbravador das terras selvagens, o portador de uma cultura superior:
“O único país que pode explorar seriamente a África, é Portugal.”Manuel Pinheiro Chagas, 1842-1895.
Neste sistema que afirma a superioridade de um grupo sobre outros, o negro é considerado inferior:
“A sua face negra, de beiçola carnuda, tinha reflexos demoníacos.”Henrique Galvão, 1895-1975.
http://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=ioZb0pnWa3w
4. LITERATURAS AFRICANAS ESCRITAS EM LÍNGUA PORTUGUESA: O PAPEL DA IMPRENSA E DO ENSINO PARA O SEU SURGIMENTO
Imprensa
A tipografia foi introduzida nas colónias nas seguintes datas: Cabo Verde (1842); Angola (1845); Moçambique (1854); São Tomé e Príncipe (1857) e Guiné-Bissau (1879).
Os primeiros órgãos de comunicação social foram o Boletim Oficial de cada colónia, que dava abrigo à legislação, noticiário oficial e religioso, mas que também incluía textos literários (sobretudo poemas, mas eventualmente crónicas ou contos).
Em geral, no século XIX, com excepção de Angola, a imprensa foi menos importante do que seria de supor devido também à repressão. O semanário O
Progresso (1868), de Moçambique, religioso, instrutivo, comercial e agrícola, teve apenas um número, porque, dois dias depois, era obrigado a ir à censura prévia, que o proibiu. Um militante republicano, Carvalho e Silva, no início deste século, fundou quatro jornais, todos encerrados, o último dos quais assaltado, a tipografia destruída e o director agredido, de que resultou a sua morte. De facto, a história da imprensa não oficial de Moçambique foi geralmente de oposição aos governos, da colónia e de Lisboa.
Com a República, até ao advento da lei de João Belo (1926) contra a liberdade de imprensa, floresceu uma imprensa operária. Mas os mais célebres, e justamente celebrados, pelo seu papel na consciencialização da moçambicanidade, foram os jornais fundados pelos irmãos José e João Albasini: O Africano (1909-1918), O Brado Africano (1918) e O Itinerário (1919), o penúltimo sobrevivendo durante décadas e o último reaparecendo, mais tarde, noutros moldes (1941-55).
Na Guiné, o primeiro jornal, Ecos da Guiné, apareceu somente em 1920.
Em Cabo Verde e São Tomé e Príncipe, a imprensa contribuiu decisivamente para o incentivo à criação literária, no quadro de limitação insular. A fundação do Liceu-Seminário de São Nicolau (Cabo Verde), nos anos 60 do século XIX, ajuda a explicar o nível de escolarização cabo-verdiana (a primeira escola primária surgiu em 1817). Curiosamente, cabo-verdianos e são-tomenses, vivendo em Portugal, na primeira metade do século XX, estiveram sempre muito activos na busca de uma identidade cultural e da consciencialização (proto-nacional ou simplesmente na produção intelectual desligada de intenções insulares. Basta recordar intelectuais como Viana de Almeida, Mário Domingues, Marcelo da Veiga ou Salustino da Graça Espírito Santo (de São Tomé e Príncipe) e Pedro Cardoso (de Cabo Verde).
No século XIX, foi intensa e brilhante a actividade jornalística em Angola. Depois da criação do Boletim Oficial (1845), surge A Aurora (1855), jornal recreativo e literário. Mais tarde, aparece um jornal pugnando pela efectiva abolição da escravatura, para além da letra da lei, A Civilização da África Portuguesa (1866), dirigido por Urbano de Castro e Alfredo Mântua, europeus identificados com Angola.
De 1860 a 1900, surge cerca de meia centena de títulos de jornais, artesanais e episódicos, mas de grande importância para o fomento da actividade intelectual e literária. Desde o Jornal de Luanda (1878), do escritor e advogado Alfredo Troni que marca a transição do jornalismo de cariz mais colonial para o proto-nacionalista, até O Futuro de Angola ou O Pharol do Povo, muitos contribuíram para a informação, elevação cultural e promoção das línguas e culturas locais.
O primeiro jornal de africanos chamava-se Echo de Angola (1881), inaugurando duas décadas de frenética actividade jornalística (que se prolongaria, depois, até aos anos 20) e que ficaria conhecida por período da imprensa livre africana, terminando exactamente com a fundação de A Província de Angola (1923), primeiro jornal de tipo moderno, industrial, que passou a quotidiano em 1926, perdurando ainda hoje as instalações ao serviço do Jornal de Angola. A censura, que já funcionava, aprimorou-se e acabou com as últimas veleidades de uma imprensa realmente democrática e livre.
Na época florescente da imprensa livre, apareceram jornais escritos simultaneamente em português e quimbundo, como o Muen ‘cxi (= o senhor da terra) e o Mukuarimi (= o «linguarudo»), dirigidos por Alfredo Troni. Nos últimos vinte anos de Oitocentos, pugnaram por uma Angola autónoma, mais livre e desenvolvida, jornalistas-intelectuais como Arantes Braga, José Fontes Pereira de Melo, Pedro Félix Machado ou Cordeiro da Matta.
No dealbar do novo século, algumas publicações literárias marcaram o desejo de emancipação dos «filhos do país», de que cumpre destacar as duas seguintes:
• Voz d’Angola — clamando no deserto (1901), colectânea de artigos não assinados contra um artigo colonialista;
• revista Luz e Crença (1902), cujo segundo número saiu um ano depois.
Esta última era promovida pela Associação Literária Angolense, cuja sigla, «Liberdade, fraternidade, igualdade», alerta para os ideais republicanos. Pugnava-se por um espírito de instrução, autonomia política e crítica social e institucional.
Foram líderes e nomes cimeiros desta geração, entre outros, Francisco Castelbranco, Silvério Ferreira, Paixão Franco, Lourenço do Carmo Ferreira e Domingos Van Dúnem (não confundir com o homónimo, nascido em 1925 e hoje embaixador do seu país na UNESCO).
É, pois, através dos jornais que os letrados fazem a aprendizagem da escrita, vendo os seus escritos em letra de forma, assim modelando a própria concepção de intervenção literária, que ficaria marcada por essa prática intrínseca de concretude e explicitude, a não ser quando toda a sorte de preciosismos (saídos do ultra-romantismo, parnasianismo e decadentismo) tomava conta da efusividade lírica. Esse desígnio jornalístico — ou melhor, de comunicação social, à letra — marcaria decisivamente os escritores de África, que quase sempre assistiam à divulgação dos seus textos através de compilações e antologias, antes de os poderem ver estampados em livro, um objecto a que poucas vezes tinham acesso, por dificuldades de vária ordem (censura, perseguição, pobreza, desleixo, dispersão, etc., que foram aumentando em crescendo até à independência).
Ensino
A educação nas colónias portuguesas registava, ainda a entrada dos anos 60, níveis baixíssimos. O analfabetismo atingia, em Angola, quase 97%; em Moçambique, quase 98%; na Guiné-Bissau, perto dos 100 %; só em Cabo Verde o nível era mais elevado, rondando os 78,5%. O analfabetismo devia-se à política portuguesa de criar uma elite muito restrita de assimilados para servirem no sector terciário, ao mesmo tempo que deixava as populações entregues a si próprias, sem permitir o seu auto-desenvolvimento ou, no pior dos casos, usando-as como mão-de-obra escrava ou barata.
Como escreveu o poeta angolano António Jacinto, em «Carta dum contratado» (1950):
Mas ah meu amor, eu não sei compreenderpor que é, por que é, por que é, meu bemque tu não sabes lere eu — Oh! Desespero! — não sei escrever também!
[…] No começo do século XIX, os padres e párocos eram escassos nas colónias. Com o liberalismo, o ensino passou, em 1834, para o domínio do Estado, tomando-se laico. A partir de 1869, voltou a ser apoiado nas Missões. Todavia, o seu progresso foi lentíssimo.
Em Angola, os grandes centros populacionais tinham escolas oficiais e particulares para brancos e nas zonas rurais havia as missões para negros. O ensino manteve-se, durante muitos séculos, exclusivamente a nível primário.
Três anos depois da instauração da República, deu-se a separação da Igreja e do Estado, substituindo-se as missões religiosas por laicas, para, seis anos mais tarde, as missões católicas serem auxiliadas financeiramente pelo Estado, altura em que, em Luanda, foi fundado o Liceu Salvador Correia. Em 1926, as «missões civilizadoras» foram abolidas devido ao seu fracasso no terreno.
A língua usada nas escolas e fora delas, por professores, missionários e auxiliares, era a portuguesa, que, com as línguas nativas, servia para o ensino da religião. Mas, até II Guerra Mundial, o objectivo da assimilação, perseguido em teoria pelas autoridades, não teve expressão. Após 1945, a política governamental procurou acelerar a assimilação, fazendo um esforço para generalizar o ensino primário, desenvolver o secundário, sobretudo técnico, a educação agrícola e criando instituições para a formação de professores. Todavia, o ensino superior, ao contrário de outras colónias, inglesas ou francesas, apenas estava ao alcance de um número muito reduzido de estudantes, sobretudo brancos e mestiços. Com a fundação e a pressão exercida pelos movimentos nacionalistas, e logo depois do início da luta de libertação nacional armada (Luanda, 1961), foram instalados os Estudos Gerais, de nível universitário, a partir de 1963, nas cidades angolanas de Luanda, Sá da Bandeira e Nova Lisboa, e na capital moçambicana, até hoje os únicos territórios que deles beneficiaram.
Os próprios movimentos de libertação nacional, de que resultariam os partidos no poder, após 1975, criaram o seu ensino e alfabetização, que não tiveram um verdadeiro alcance de massificação, devido a apenas atingirem os escassos milhares de militantes na clandestinidade e faixas de população que os apoiavam. O MPLA, FNLA e UNITA (Angola), o PAIGC (Guiné-Bissau e Cabo Verde) e a FRELIMO (Moçambique) não tiveram tempo nem meios para, antes da independência, poderem substituir a escola colonial. MPLA (1956), PAIGC (1956) e FRELIMO (1962) tinham essencialmente preocupações políticas e militares, mas dedicavam uma atenção especial às questões culturais. Os outros movimentos, nascidos de dissensões, nunca tiveram qualquer
preocupação nesse sentido. O MLSTP (de São Tomé e Príncipe) nasceu pouco antes da independência.
Pires Laranjeira, Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa (vol. 64), Lisboa, Universidade Aberta, 1995, pp. 18-21
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5. LITERATURAS AFRICANAS DE LÍNGUA PORTUGUESA: UM FENÓMENO DO URBANISMO
As literaturas africanas modernas, isto é, aquelas que se exprimem na língua de colonização, têm a sua emergência indubitavelmente ligada ao urbanismo […]
Colonização que, como é sabido, levou à Africa tradicional factores de desestruturação que actuaram em todos os níveis da organização cosmológica das sociedades negras. Sociedades cujos sistemas de valores consuetudinários foram afectados, ou mesmo destruídos, pelo cartesianismo da filosofia colonizadora que, aliada ao cristianismo de raiz urbanizante, muito fez para despaganizar a cultura negra cujo animismo jamais conseguiu entender. Essa despaganização era acompanhada pelo sacrifício da ruralidade, enquanto imanência do binómio homem-natureza governado pela força vital, pelo muntu, garante da ancestralidade geradora do iniciatismo característico da civilização africana, abalando profundamente o mundo do homem negro, que foi existencialmente agredido por «la violente césure qu’a constituée l’intrusion de l’Europe chrétienne et cartésienne, et de l’Asie musulmane, dans un monde aussi animiste», como observa Amadou Ly (1983:37). Esse sacrifício da ruralidade abria caminho para o advento do urbanismo […]
A cidade é, portanto, a realidade emblemática da colonização e do sistema colonial, a que ela conduziria, uma vez que, como referia Kane, ela, a cidade, é simultaneamente um polo catalisador e difusor dos valores culturais e civilizacionais de que os colonizadores eram portadores. Nestes termos, ela representa já um centro de aliciamento para todos aqueles que, no raio da sua influência lhe sentem o efeito, sujeitos que estão, a partir daí, ao poder atractivo que a novidade da cidade e dos seus costumes implica. A cidade passa, pois, a ser uma meta a atingir por aqueles que vêem nela a possibilidade de melhoria do seu estatuto social e económico e que, por isso, vão provocar um êxodo rural considerável, que vinha instalar-se, normalmente, nas zonas circundantes dos núcleos citadinos, onde, entretanto, se forjava uma burguesia constituída por brancos, alguns negros e alguns mestiços, disposta a marcar o ritmo da evolução cultural, enquanto se engrossava o caudal de despaganizadores que, atraídos pelos empregos gerados pela actividade comercial e industrial urbana formavam os
muceques ou os caniços que punham a claro as assimetrias e as injustiças do sistema colonial cuja rede se entretecia.
Transferido do seu espaço vital característico, onde a sua identidade cultural e civilizacional não era interferida por factores alienígenos, para um espaço outro, onde era forçado a outrar-se, pensando, ilusoriamente, que lhe seria permitido o ingresso na cidade e a participação na nova cultura, o homem negro vai acumulando frustrações, ao mesmo tempo em que cresce nele a revolta pela marginalidade a que o votavam, acentuando-se a sua dramática divisão interior entre a fidelidade de pertencer ao mundo tradicional e a necessidade económica de ter de viver, segundo modelos civilizacionais aniquiladores daquele. Esta dramática divisão é, por certo, a responsável pela geografia física quase labiríntica desses «bairros de areia» povoados por gentes das mais diversas proveniências etnolinguísticas e com as mais diversas ocupações, desde o operário industrial ao empregado comercial, ao amanuense, aos domésticos, às lavadeiras, aos cozinheiros, etc. O labirinto, em que se vai transformando o espaço dessas «areias babélicas», como diz Luandino Vieira, pode ser interpretado como uma garantia para os seus habitantes de que nele seria possível preservar e cultuar os valores culturais que são basicamente os seus, uma vez que o europeu, o outro, habitante da cidade de asfalto, seria incapaz de descodificar tão complexa semiótica espacial e, por isso mesmo, de perturbá-la com os ataques que, inevitavelmente, lhe dirigiria.
Reduto da defesa de valores culturais e civilizacionais comuns, apesar das diferenças etnolinguísticas que nele coabitavam, o muceque interessa-nos literariamente numa tripla dimensão. Primeiro, como apêndice social colonial, onde se desenvolveu paulatinamente um proletariado que fecundou as sementes anti-coloniais que a própria colonização gerava em si. Segundo, como cadinho do português que servia naturalmente de língua de comunicação e que, usado por falantes de diferentes regiões etnolinguísticas, seria naturalmente sujeito a influências segmentais e suprassegmentais diversas que lhe moldaram a face característica da fala mucéquica, ponto de partida para o discurso verbal das literaturas africanas de expressão portuguesa. Terceiro, como instituição cultural e socioeconómica, fonte de inspiração para textos poéticos ou narrativos denunciadores do regime colonial de que o muceque era uma exemplar vítima, enquanto lugar de exílio ou de desterro para gentes despaganizadas em processo de distanciação dramática das suas origens civilizacionais.
Esta tripla dimensão do espaço urbano — muceque — está presente, desde as origens, nas literaturas africanas de expressão portuguesa que, como outras literaturas africanas em língua de colonização, são verdadeiramente um fenómeno do urbanismo, isto é, alimentam-se essencialmente das contradições e da dialéctica sociocultural geradas pelo advento da cidade à África. Aqui poderíamos ser levados a concluir que tais literaturas nada teriam a ver com a literatura negra tradicional que, como se sabe, tem as suas raízes na ruralidade, na Terra, o que lhe dá uma marca profundamente telúrica. Todavia, conscientes de que «la voie la plus courte vers l’avenir est toujours celle qui passe par l’approfondissement du passé» (cf. Césaire), alguns escritores sempre procuraram trazer para o ambiente urbano, ou urbanizante, dos seus textos
essa Africa tradicional da qual o homem negro, despaganizado pela colonização, não conseguia, nem queria, libertar-se.
Até aos princípios dos anos 1940, porém, não existia ainda a oposiçào irredutível entre a cidade e o muceque. Apesar de tudo, enquanto o asfalto não chegou, ainda foi possivel um certo diálogo entre os dois espaços, como o atestam muitos textos africanos de expressão portuguesa, onde a infância é evocada como uma idade quase edénica que se vivia despreocupada das questões rácicas e sociais que o avanço avassalador do asfalto veio a criar. A infância é, sem dúvida, um dos temas que, nas literaturas africanas de expressão portuguesa, mais evidencia a sua origem urbana. Com efeito, quase todos os poetas e ficcionistas dessas literaturas glosam o binómio cidade-infância, como plataforma para uma escrita denunciativa e insubmissa. Outros exemplos poderiam ser citados, mas bastará recordarmos o título do primeiro livro de Luandino Vieira — A Cidade e a infância (1960) —, para verificarmos até que ponto é que esse binómio teve importância na emergência das literaturas africanas lusófonas. […]
Luanda é muito mais a Luanda dos muceques do que a Luanda do asfalto, que a crescente europeização tornava cada vez mais estrangeira aos filhos do país e àqueles que a adoptavam como mátria ou pátria de criação literária. É esse, aliás, o sentido da conhecida «Canção para Luanda», de Luandino Vieira:
A pergunta no arno marna boca de todos nós: — Luanda onde está?
Silêncio nas ruasSilêncio nas bocasSilêncio nos olhos
— Xé, mana Rosa peixeiraresponde?
— ManoNão pode respondertem de vendercorrer a cidadese quer comer! «Ola almoço, ola alrnoçoéématona calapauji ferrera ji ferrerééé»
— E você mana Maria quitandeiravendendo maboquesos seios-maboquegritandosaltando
os pés percorrendocaminhosde todos os dias?«maboque m’boquinha boadóce dócinha»
[…]
As casas antigaso barro vermelhoas nossas cantigastractor derrubou?
Meninos nas ruascaçambulasquigosasbrincadeiras minhas e tuasasfalto matou?
— ManosRosa peixeiraquitandeira Mariavocê tambémZefa mulatados brincos de lata — Luanda onde está?
[…]
__________
Quitandeira: vendedora de frutas, hortaliças, aves, peixes, etc.Maboque: fruto de casca dura, verde, comido simples ou com açúcar.
Luandino Vieira lançou, assim, a interrogação da busca da cidade, aliada da infância, que o urbanismo colonial fez desaparecer. A «fronteira do asfalto» e o tractor, símbolos da destruição desse espaço existencial compartilhado por brancos, negros e mestiços, geraram, portanto, o homem do muceque que, empurrado para a periferia geográfica e social da língua de dominação, vingar-se-ia dela, forçando-a a africanizar-se para dizer, através da literatura, a mensagem libertadora inspirada na tradição e apontada para a revolução. O escritor africano de expressão portuguesa, senhor desta nova fala que o urbanismo gerou nos muceques, conseguia, assim, ultrapassar, em parte, o exílio das suas personagens, através duma escrita que virava contra o colonizador a sua própria língua. […]
Parece-nos bem que a «tortura», a que o muceque submeteu a língua de empréstimo, modelando-a até limites expressivos, por vezes, impensáveis, neutraliza perfeitamente o exílio em que nasceu a escrita da moderna literatura africana de expressão portuguesa. O urbanismo colonial provocou, de facto, o exílio ao homem negro, despaganizando-o e afastando-o das suas raízes culturais e civilizacionais, mas, ao mesmo tempo e em atitude, por assim dizer, suicida, criou-lhe as condições para prometeicamente se vingar dele, por meio duma genuína expressão literária que não encontra paralelo em nenhuma das outras literaturas africanas em língua de colonização.
Salvato Trigo, 1984Ensaios de Literatura Comparada (Afro-Luso-Brasileira), Lisboa, Vega, s/d, pp. 53-60
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6. PRECURSORES DAS LITERATURAS AFRICANAS
Aparecidos em duas épocas distantes, e portadores de experiências diferentes, Costa Alegre, originário de S. Tomé, e Rui de Noronha, de Moçambique, podem ser considerados como os precursores da literatura africana de expressão portuguesa, no domínio poético.
A obra de Costa Alegre, vinda a lume em 1916, foi inteiramente escrita em Portugal, por voltas de 1880. O arquipélago de S. Tomé encontrava-se na fase decisiva de mutação das suas estruturas sociais, em que a iniciativa da direcção económica e o controle das riquezas agrícolas eram intensamente disputados pelos colonos aos «filhos da terra». A poesia de Costa Alegre não regista nenhum eco dessa tensão e não faz nenhuma menção precisa à conjuntura insular. Ela reflecte uma forma de tomada de consciência da condição do negro ferido na sua cor. Atingido no mais íntimo do seu ser pelas humilhações que sofreu num meio social que lhe era hostil, dilacerado pelo isolamento e por decepções amorosas, Costa Alegre refugia-se num universo de autocondenação racial.
Tu tens horror de mim, bem sei, Aurora,Tu és o dia, eu sou a noite espessa,Onde eu acabo é que o teu ser começa.
Não amas!... flor, que esta minha alma adora.
És a luz, eu a sombra pavorosa,Eu sou a tua antítese frisante,
Mas não estranhes que te aspire formosa,Do carvão sai o brilho do diamante.
(Costa Alegre, «Aurora», in Versos, 1946, p.26)
Rui de Noronha exprime timidamente, nos anos trinta, os conflitos suscitados pela sociedade em que se desenrolou a sua existência. Sensível ao espectáculo da opressão, mas isolado na sua démarche, prisioneiro do seu misticismo, o poeta viveu o drama da sua impossível realização, em tanto que assimilado.
Traduz em tom brando de lamentação contemplativa a dor que lhe causava a vida das massas africanas, mas professa claramente a resignação. Rui da Noronha apela, à sua maneira, para a libertação africana, como testemunha o seu soneto «Surge et ambula»:
Dormes! e o mundo marcha, ó pátria do mistério.Dormes! e o mundo rola, o mundo vai seguindo…O progresso caminha ao alto de um hemisférioE tu dormes no outro o sono teu infindo...
[…]
Desperta. Já no alto adejam negros corvosAnsiosos de cair e de beber aos sorvosTeu sangue ainda quente, em carne de sonâmbula...
Desperta. O teu dormir já foi mais que terreno...Ouve a voz do Progresso, este outro NazarenoQue a mão te estende e diz: — Africa, surge et ambula!
Rui de Noronha esteve, contudo, longe de lançar as bases de uma completa identificação com o seu povo.
Mário de Andrade, Antologia temática de poesia Africana 1, Lisboa, Sá da Costa, 1976, pp.3-4
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7. MOVIMENTOS POLÍTICO-CULTURAIS DO PRINCÍPIO DO SÉCULO XX E SUA IMPORTÂNCIA PARA O DESENVOLVIMENTO
DAS LITERATURAS AFRICANAS.
7.1. DOS RENASCIMENTOS NEGROS À NEGRITUDE
A Négritude lançou as suas raízes até aos movimentos culturais protagonizados por negros, brancos e mestiços que, desde as décadas de 1910, 20 e 30, vinham pugnando por um Renascimento Negro (busca e revalorização das raízes culturais africanas, crioulas e populares) principalmente em três países das Américas, Haiti, Cuba e Estados Unidos da América, mas também um pouco por todo o lado.
A ideia de Renascimento, Indigenismo e Negrismo surge nas Américas, principalmente nos Estados Unidos da América e nas Caraíbas, como consequência das Luzes e do Romantismo que levaram à abolição da escravatura, à assunção romântica do Volksgeist [o sentimento e o espírito do povo], à identificação da real composição do mosaico cultural de raiz popular e, logo, nacional, e, finalmente, à possibilidade de, após a Revolução Francesa, os povos supostamente poderem assumir a liberdade e a igualdade e se poderem pronunciar (ganhar voz) na ocorrência dos movimentos de independência ou do reconhecimento desta como alvará de igualdade cultural e social de todos os grupos sociais. Tal como no Renascimento europeu, os três conceitos e tipos de movimento político, cultural e literário implicam uma comum ideia de reconhecimento e revalorização do passado próprio de cada povo, este, no contexto específico das Américas, no sentido de grupo etno-social, ou seja, do negro e do indígena (este mesmo podendo ser o negro, na ausência de outro originário). De fora fica o branco, por ser considerado exactamente o causador da repressão, também cultural, que se abate sobre os outros dois, sem excluir a participação daqueles brancos que assumem como suas, mais nuns casos do que noutros, por mais ou menos tempo, as culturas deles.
O termo Négritude aparece no longo poema «Cahier d’un retour au pays natal», de Aimé Césaire, poeta da Martinica, que foi publicado na revista Volontés, 10 (1939). A palavra passou a nomear o movimento que se desenrolava por toda a década de 1930, nomeadamente em Paris, cadinho de estudantes, intelectuais e políticos que marcaram profundamente a vida política e cultural do mundo negro. […]
Social e ideologicamente, a Négritude constituiu-se como o processo de busca de identidade, de conduta desalienatória e da defesa do património e do humanismo dos povos negros. Recusou a assimilação a modelos externos à história negro-africana, embora consciente dos contributos aculturativos, sobretudo nas cidades. A Négritude pretendia a criação de um estilo próprio, no desejo de se demarcar dos modelos e motivos históricos das literaturas ocidentais.
A poesia da Negritude distingue-se da restante literatura africana de língua portuguesa pelo obsessivo tratamento da raça e da cor negras, qualificando-as com valores reais e simbólicos, reagindo, desse modo, ao racismo branco: «o sangue negro, o sangue bárbaro» (Noémia de Sousa). Os triunfadores e mestres negros da diáspora e do próprio continente africano são aclamados como paradigmas exemplares a seguir pelos iniciados: Joe Louis, Jesse Owens (respectivamente, pugilista e atleta norte-americanos), Louis Armstrong (jazzman norte-americano), Césaire (negritudinista da Martinica), Toussaint Louverture (revolucionário haitiano oitocentista). Langston Hughes, Claude Mckay (líderes literários do renascimento negro norte-americano), Chaka (chefe guerreiro zulu), Nzinga (rainha jaga que lutou contra os portugueses no início da colonização), Senghor (um dos autores da Négritude).
Nega-se, dessa forma, não o valor das culturas europeias (ou quaisquer outras), mas a sua dominação sobre as culturas africanas, pelo poder imperial e colonial. Chega-se assim à recusa textual da «música fútil/das valsas de Strauss» (Noémia de Sousa), afirmando ironicamente: «cresçam sinfonias de Beethoven/e poemas que o amigo Mussunda não entende» (Agostinho Neto).
A África, o negro e a Mãe-Negra (Mãe-África ou Mãe-Terra) ocupam nos textos um lugar de destaque, como referências, alusões ou temas, numa declaração humanística de povos até aí apresentados e representados (na literatura colonial) como destituídos de história, cultura e mesmo de sentimentos. Segundo a análise de Sartre, no prefácio à Anthologie de la nouvelle poésie nègre et malgache (1948), de Senghor, dá-se a revalorização (e a sobrevalorização) das culturas e modos de vida ancestrais (tribais, clânicos), com o culto dos antepassados, o animismo e a respectiva animização retórica da natureza, o pan-sexualismo vitalista, a visão eufórica e ufanista das relações sociais e familiares nas tribos e no mundo rural e natural. Ou seja, opõe-se ao mundo tecnológico e racionalista dos europeus o mundo natural e sensitivo dos africanos, num posicionamento que receberia críticas devastadoras dos homens empenhados na abertura de África ao mundo moderno, através de revoluções socialistas.
Pires Laranjeira, Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa (vol. 64), Lisboa, Universidade Aberta, 1995, pp. 28-29
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7.2. LITERATURAS EMERGENTES: NACIONALISMOS E IDENTIDADE
Entre 1880 e os fins do século passado, num clima de acesas lutas políticas, sucederam-se duas gerações que marcaram a vida intelectual de Angola, particularmente dominada pelo jornalismo. Aproveitando as possibilidades de expressão abertas pela lei portuguesa sobre a liberdade de imprensa, aplicada efectivamente durante um certo período na colónia, os angolanos lançaram jornais e revistas literários. […]
Fundada em Março de 1936, a revista Claridade, primeira manifestação intelectual de conjunto da elite crioula, significou uma viragem no movimento literário de Cabo Verde. Segundo os seus mais ilustres representantes, Jorge Barbosa, Baltasar Lopes (aliás Osvaldo Alcântara) e Manuel Lopes, a preocupação essencial residia na análise do processo de formação social do arquipélago e no estudo das suas raízes. […]
Os escritores do movimento Claridade, condicionados pela sua formação ideológica, adoptaram um ângulo de visão de «classe» para abarcar o universo insular. Não se atacaram ao fundamento dos dramas da terra (a seca, a fome e a emigração) e muito menos perspectivaram a superação das atitudes resignadamente contemplativas. A sua poesia, dominada pelo tema da evasão, afastou-se do inquérito aos sentimentos populares. Como produto esteticamente acabado do elitismo, ela passou ao lado do clamor das massas das ilhas.
Ao examinarem o processus de aculturação em Cabo Verde, os animadores de Claridade e outros autores afirmaram que as contribuições da cultura africana tendiam a reduzir-se ao nível de sobrevivências ou a diluir-se em função do grau de instrução e de urbanização do meio, enquanto os valores europeus, possuidores de uma maior capacidade de resistência, se impunham e se generalizavam. […]
A evolução dos acontecimentos iria demonstrar como as ilhas encontraram a sua verdade histórica, através da unidade operada na luta solidária do guineenses e de cabo-verdianos, pela libertação nacional.
Foi na linha deste pensamento que a nova geração cabo-verdiana, após o severo julgamento dos Claridosos, estabeleceu a ponte de ligação com os movimentos culturais que surgiriam em Angola e em Moçambique. […]
Vamos descobrir Angola — tal foi, nesta perspectiva, a palavra de ordem lançada em Luanda, em1948, por um grupo de estudantes e de jovens intelectuais. Coube a Viriato da Cruz o mérito da sua formulação teórica e estética:
«O movimento», escreveu ele mais tarde, «deveria retomar, mas sobretudo com outros métodos, o espírito combativo dos escritores africanos dos fins do século XIX e dos princípios do actual. Esse movimento combatia o respeito exagerado pelos valores culturais do Ocidente (muitos dos quais caducos); incitava os jovens a redescobrir Angola em todos os seus aspectos através dum trabalho colectivo e organizado; exortava a produzir-se para o povo; solicitava o estudo das modernas correntes culturais estrangeiras, mas com o fim de repensar e nacionalizar as suas criações positivas e válidas; exigia a expressão dos interesses populares e da autêntica natureza africana, mas sem que se fizesse nenhuma concessão à sede de exotismo colonialista. Tudo deveria basear-se no senso estético, na inteligência, na vontade e na razão africanas.» […]
Tomada no seu conjunto, a evolução da moderna poesia africana de escrita portuguesa e crioula comporta três fases essenciais: a primeira, a da negritude, entendida como negação da assimilação ou, para utilizar a expressão de Aimé Césaire, como «postulação irritada e impaciente de fraternidade».
A Ilha de Nome Santo, de Francisco José Tenreiro (colecção «Novo Cancioneiro», vol. 9, Coimbra, 1949), marca o ponto de partida. O poeta procura ligar, primordialmente, a sua condição de homem insular ao mundo dos oprimidos, e revaloriza o património cultural negro-africano. É uma voz solitária, então no exílio, que se levanta para cantar S. Tomé e exaltar a negritude em língua portuguesa:
Quando cantas nos cabarésfazendo brilhar o marfim da tua bocaé a África que está chegando!
Quando nas Olimpíadascorres velozé a África que está chegando!
Segue em frenteirmão!Que a tua músicaseja o rumo de uma conquista!E que o teu ritmoseja a cadência de uma vida nova!…para que a tua gargalhadade novo venha estraçalhar os arescomo gritos agudos de azagaia!
[…] A segunda fase, suscitada pelo alargamento e ultrapassagem da negritude, é o momento da particularização. Os poemas precisam os contornos nacionais e incidem mais profundamente no real social. A criação literária vai ritmando o desenvolvimento
da consciência nacional, quando se esboça a estrutura dos movimentos políticos. De 1953 a 1960, aproximadamente, a poesia apreende a trama dos acontecimentos que caracterizam as, mutações na sociedade colonizadora. Daí a actualização da sua temática.
O próprio enraizamento dos poetas no chão nacional determina a convergência de temas e a unidade de tom. De todas as colónias erguem-se vozes de denúncia: poetas cabo-verdianos asfixiam o desespero de querer partir / e ter que ficar, vinculando-se definitivamente aos diversos níveis das realidades africanas, Alda do Espírito Santo exige justiça para os carrascos da sua terra.
E quando os povos de Angola, da Guiné e de Moçambique retomam pela via armada a iniciativa histórica que modela o seu devir nacional, entramos na terceira fase desta poesia: as balas começam a florir, dirá Jorge Rebelo.
Mário de Andrade, Antologia temática de poesia Africana 1, Lisboa, Sá da Costa, 1976, pp. 4-10.
“As balas começam a florir.”Jorge Rebelo, Moçambique, 1940
GUERRA DE LIBERTAÇÃO NACIONAL
O soldado africano é apresentado como um herói libertador, confiante no futuro.
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8. LINHAS DE AFIRMAÇÃO DA POESIA AFRICANA
Algumas linhas de afirmação desta poesia devem ser destacadas.
1. Há uma evidente proximidade entre a cultura africana escrita e a cultura europeia, proximidade esta bem saliente no domínio da literatura.
No caso da poesia de Cabo Verde são evidentes as afinidades com a poesia lírica portuguesa, nomeadamente nos modos como nela se exprime o sentimento de insularidade. Este facto, efeito de aculturação, visível não apenas na poesia daquelas ilhas deve-se, contudo, à difusão da cultura europeia, através dos liceus que, a partir do princípio e de meados do século, começaram a ser implantados nos pólos urbanos por toda a África.
A própria consciência de nação, que vemos ser afirmada nesta poesia, origina-se no impacto do sistema de escrita ocidental sobre uma cultura oral de origem tribal.
2. Vários movimentos e iniciativas culturais empenhados na afirmação da cultura negra — não apenas africana — têm origem em centros urbanos europeus e norte-americanos. É o caso das iniciativas em torno da Casa dos Estudantes do Império sediada em Lisboa, do movimento designado por Negritude, centrado em Paris e apoiado por intelectuais europeus, como Sartre, do movimento Black Renaissance surgido em Harlem.
Estes movimentos são responsáveis por algumas linhas de sentido evidentes nestes poetas:
2.1. a intenção de denúncia da condição do negro na relação com o homem branco;
2.2. a afirmação de uma identidade própria da poesia negra, nalguns casos, especificamente expressão do homem africano e com ele do próprio continente.
A propósito do último aspecto apontado, é de notar a frequente referência a uma realidade telúrica cuja estranheza para o homem europeu (claramente o interlocutor privilegiado desta afirmação) se manifestará no léxico, sobretudo o relativo a nomes comuns. — e este aspecto é da maior importância na poesia de Craveirinha — e em múltiplas descrições, como, por exemplo, a que tem por objecto os rios de Moçambique, comparados com os grandes rios europeus, no poema Hidrografia de Alfredo Margarido.
No poema Deixa passar o meu povo da poeta moçambicana Noémia de Sousa, já não é o exotismo dos nomes que desencadeia a presença de uma realidade, mas uma frase emblemática. “let my people go” capaz de convocar a riqueza de um cultura inseparável da condição de negro por esse mundo fora, da sua história e das mitologias dessa história.
Valerá a pena chamar a atenção para:
— a atmosfera em torno de uma exaltação de insónia: a noite africana, as ondas da rádio, veículo do refrão “let my people...” (frase emblemática do movimento Black Renaissance), estabelecendo uma corrente com as ondas nervosas: “Nervosamente sento-me à mesa e escrevo [...] E já não sou mais que instrumento […]";
— a importância simbólica do aparelho de rádio trazendo para o interior da noite africana a música negra de outro continente: “Todos se vêm debruçar sobre o meu ombro / enquanto escrevo noite adiante / com Marian e Robeson vigiando pelo olho luminoso do rádio / [...] / E enquanto me vierem de Harlem / vozes de lamentação / [...] / Escreverei, escreverei, / com Robeson e Marian gritando comigo: / “Let my people go” / [...]“.
(Procure o CD Jazz Heritage Séries, vol. 1, Louis Armstrong, Louis and The Good Book, ed. M.C.A., 1983. A canção 3, intitulada “Go Down Moses” (espiritual negro) tem como refrão, constantemente repetido, essa mesma frase, “let my people go”. Esta canção data do tempo da escravatura.)
Cadernos de Literatura 10º Ano. Livro do Professor, Cristina Duarte, Amadora, Raiz Editora, [1993], pp.76-77
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9. FORMAÇÃO E DESENVOLVIMENTO DAS LITERATURAS AFRICANAS DE LÍNGUA PORTUGUESA
UM SÉCULO DECISIVO
Temos o privilégio de assistir à formação e desenvolvimento das literaturas africanas de língua portuguesa, em mais de um século de escrita e de publicação. É com carinho e alegria que se contabilizam todos os escritos e autores e se desenvencilham diacronias e influências. Estamos possuídos pela ilusão de que, por tudo estar tão perto e ser tão pouco, se torna fácil compreender e classificar para, ainda mais facilmente, teorizar. Convém recordar, todavia, que, até tornar-se um sistema nacional, uma literatura passa por fases de hesitação e de indefinição. As
literaturas africanas dos Cinco são escritas em português, língua de colonização, não existindo tradição de escrita nas línguas africanas.
O primeiro prelo seguiu para Angola em 1849. Um ano depois saiu o Boletim Oficial, incluindo já incipientes textos literários como era de uso na época. Cerca de trinta anos mais tarde, verifica-se o surto da imprensa livre angolana, na qual ensaiaram experiências literárias e terçaram armas pela democracia, republicana intelectuais africanos o portugueses. Literatura e jornalismo conviviam, no século XIX, a ponto de se influenciarem mutuamente. A crónica e o panfleto de cariz doutrinário e político faziam género. O folhetim narrativo agradava na colónia e obrigava à reedição na imprensa da metrópole colonizadora.
Africanos, portugueses e brasileiros publicavam nos espaços comuns dos almanaques, boletins, jornais, revistas a folhetos. Não tinham surgido ainda as designações de literatura angolana, moçambicana ou são-tomense com carácter de sistema nacional, mas a escrita já deixara de ser espaço de europeidade absoluta para se tornar contaminação relativa de línguas. De facto, poetas portugueses o angolanos intercalavam no texto em português, mais extenso, frases, diálogos, versos, lexemas em língua banta (quase que exclusivamente o quimbundo). A integração é perfeita, na coerência do sentido e da sonoridade e na coesão dos segmentos e ritmos. Poemas há soando aos ouvidos como se produzidos numa só língua natural.
O trabalho literário unifica as línguas, como que galvanoptastizando a substância da expressão. Tal efeito de produtividade só é possível numa poetogénese conseguida à custa da integração antropocultural do intelectual português, ou seja, e para utilizar uma curiosíssima palavra do vocabulário colonialista, à custa da sua cafrealização. Foi o que aconteceu com o português Alfredo Troni, escritor, jornalista e advogado de filiação socialista proudhoniana e republicana, desterrado para Luanda, onde desenvolveu profícua e incalculável agitação cultural e cívica. Por seu turno, intelectuais africanos como Cordeiro da Mata empenharam-se em trabalhos de pesquisa linguística, sociológica e etnográfica que favoreceram uma atmosfera de aprofundamento do saber sobre as realidades africanas, contribuindo para que a literatura pudesse perder, a pouco e pouco, o lastro negativo do exotismo e do ultra-romantismo serôdio.
Em todos os poetas do século XIX, mantém-se a rima final e, em, grande percentagem, a medida da redondilha maior, características tradicionais de muita poesia popular europeia. Sabemos como esse tipo de procedimento literário não procede da tradição popular africana. Só muito mais tarde, já na década de 30, é que a geração da Claridade caboverdiana abandona esses princípios poéticos, enfileirando no cultivo do verso livre, aproveitando a lição dos modernismos português e brasileiro. Mas os escritores caboverdianos, nessa altura, não reivindicavam propriamente uma especificidade africana, se bem que fosse inequívoco o seu sentido da caboverdianidade, da literatura enquanto sistema de comunicação com poder autonómico face à situação política e jurídica do arquipélago.
Depois de terem prestado homenagem à tradição literária portuguesa, de Camões ao parnasianismo, os escritores africanos, no segundo quartel do século XX, trocam de
paradigma, inspirando-se nos brasileiros e norte-americanos A introdução do ensino laico nas colónias e a vinda de estudantes para Portugal incrementaram notavelmente uma nova mentalidade cultural sustentada por ideologias como o socialismo anarquista, o republicanismo, o proudhonismo e, mais tarde, o pan-africanismo. Nas colónias, a intervenção maçónica de exilados e desterrados portugueses foi decisiva no movimento operário, com repercussões na intelectualidade, como em Moçambique. A literatura ganha corpo nacional consoante vai trocando o corpo da negra e da mestiça pelos do contratado e do branco, expondo-lhes as alienações e as misérias humanas. Se tomarmos a narrativa angolana como sintoma dessa evolução progressiva e progressista, verificamos que o espaço físico e social progridem no mapa humano e geográfico à medida que se consuma a diacronia: a narrativa Nga Mutúri, de Alfredo Troni, tem como cenário principal uma Luanda permissiva e condescendente, onde se cruzam personagens típicas de todas as profissões e escalões sociais, nomeadamente o sector terciário; o romance de António de Assis Júnior O Segredo da Morta desenrola-se entra costa marítima e uma faixa interiorana que não ultrapassará os trezentos quilómetros, com percursos fluviais e terrestres, carregadores e comerciantes, episódios rocambolescos e frases em quimbundo; a acção da trilogia de Castro Soromenho (Viragem, Terra Morta e A Chaga) passa-se no interior de Angola e novas personagens afluem à narrativa angolana: chefes tribais, funcionários administrativos, exrevolucionários retraídos, comerciantes do mato, cipaios, etc.
Quando os poetas caboverdianos dispensam as alusões clássicas greco-latinas ou renascentistas (em que era pródigo um José Lopes) e assumem a modernidade discursiva e textual, configurando efeitos de referencialidade que passam pela concreticidade da denúncia frontal ou velada da exploração, opressão e repressão do sistema colonial, a literatura deixa de poder integrar pacificamente as antologias e histórias da literatura portuguesa. Marcada por transparentes desejos de emancipação, liberdade, autodeterminação e independência, a literatura africana, em geral, fala-nos de conflitos sociais, do estatuto do colonizado, de guerras (de guerrilhas) e de revolução, ainda que, muitas vezes, sob o manto diáfano da criptografia.
Até 1942, ano em que Tenreiro publica a Ilha do Nome Santo, decorre aproximadamente um século, decisivo para a formação das literaturas africanas de língua portuguesa. A escrita dessas literaturas denuncia as hesitações entre uma norma de raiz escolar europeia (lisboeta ou conimbricense) e um bilinguismo textual inusitado e causador de eleitos de estranheza no público acaciano. A intencionalidade de ruptura no circuito comunicativo preside à elaboração de alguns textos posteriores, como se pode ver nas primeiras edições de José Luandino Vieira, nas quais as epígrafes, em quimbundo, não eram traduzidas. Nos poetas do século XIX, o quimbundo é traduzido no próprio poema, como acontece, por exemplo, com Kicôla!, de Cordeiro da Mata. Nesse tempo havia condições propícias a tais práticas dialógicas, que a 1 Guerra Mundial alterou bruscamente, modificando a estratégia universal em relação às colónias.
Encerrado o ciclo da imprensa e da literatura livres de condicionalisrnos políticos, abriram-se as portas à literatura colonial, apoiada por organismos do Estado
português. Uma torrente de prosa exótica sufocou a metrópole e ratificou o espírito tarzanístico. Os intelectuais africanos retiraram-se para as suas associações culturais ou políticas disfarçadas de recreativas e só muito esporadicamente criaram algo de novo, na tradição do século XIX. Foi necessário esperar por 1936, em Cabo Verde, 1942, em Portugal, e 1948, em Angola, para que as literaturas africanas de língua portuguesa não mais deixassem de ter sequência. Ao surto definitivo dessas literaturas não são alheios os acontecimentos políticos e militares de 1936 a 1945.
De facto, a partir daí, é notório o enfeudamento à linha realista, «engagé» e combatente, fartamente influenciada pelo afro-americanismo, o pan-negrismo, o pan-africanismo, a negritude e o neo-realismo. Mário Pinto de Andrade, integrando o moviemento Mensageiro, ainda esboçou uma escrita poética em quimbundo, que logo abandonou, na altura talvez para não atiçar ou ratificar tribalices. O poema resultante, junto com dois outros de Bernardo de Sousa e João-Maria Vilanova, é a excepção que confirma a regra da língua portuguesa.
A edificação das literaturas africanas de língua portuguesa acompanha a construção de um novo poder político, primeiro clandestino e, depois, triunfante. Os homens que escrevem são os mesmos que pensam e que politicam. E fazem-no em português, domesticando a língua em função das suas virtualidades e finalidades, criando literaturas nacionais numa língua internacional.
O século que vai de 1850 a 1950 foi decisivo para a formação dessas literaturas. Os últimos trinta e cinco anos têm sido decisivos para o seu desenvolvimento. Com o advento da luta armada, três tendências se esboçaram, vindo a concretizar-se em obras específicas: Iiteratura de combate (de e para a guerrilha), de «ghetto» (publicada, sob a forma críptica, nas próprias colónias) e de diáspora. Os casos de Pepetela, Manuel dos Santos Lima, João-Maria Vilanova, Costa Andrade, Jorge Rebelo e Sérgio Vieira ilustram a primeira tendência. O Jofre Rocha de Tempo de Ciclo, David Mestre com Crónica do Ghetto ou Corsino Fortes documentam a literatura de «ghetto», que tanto pode ser alusão ao beco (com ou sem saída) da grande cidade colonial, como metáfora do isolamento insular. A terceira tendência tem no Coração em África, de Tenreiro, ou no poema «Havemos de voltar», de Agostinho Neto, a confirmação de que a diáspora é saudosa mesmo das terras que pouco pisou (como Tenreiro) e messiânica até à vitória final (como Agostinho Neto). Há também uma literatura rústica, de fundamentação etnológica, como no caso de A Konkhava de Fheti, de Henrique Abranches, ou de experiência pessoal, como em Uanhenga Xitu.
Os títulos da literatura caboverdiana elucidam-nos acerca do obsessivo terra-longismo, que Manuel Lopes caracterizou lapidarmente: «a saudade das terras que não conhece.» É o apelo da distância e do desconhecido, muito forte para quem vive e escreve nos chamados meios pequenos insulares: «Hora di bai» (poema de Eugénio Tavares) e Hora di Bai (livro de Manuel Ferreira): «Terra-Ionge», de Pedro Corsino Azevedo; Poemas de Longe, de António Nunes; Marinheiro em Terra, de Daniel Filipe; Linha do Horizonte, de Aguinaldo Fonseca; Cais Dever Partir, de Nuno Miranda; Caminhada, de Ovídio Martins; «Caminho longe», título de poemas de Ovídio Martins, Onésimo da Silveira, Gabriel Mariano e Terêncio Anahory e ainda de romance de Nuno
Miranda; «Carmin lon» poema em crioulo interpretado por Bana; «Carta de longe» de Gabriel Mariano; Horizonte Aberto, livro de Sukre D’Sal; Viagem para Além da Fronteira, de Teobaldo Virgínio; Distância, também de Teobaldo Virgínio; Beija do Cais, ainda do mesmo autor. Finalmente, o percurso inverso, de retorno, em Cais-do-Sodré té Salamansa, de Orlanda Amarílis.
Apostrófica, exaltante, apologélica, virulenta, denunciadora, a literatura africana pode ser excessiva e grandiloquente como os poemas negritudinistas de Francisco José Tenreiro, reflexiva e serena como a Sagrada Esperança, de Agostinho Neto, barroca e neurótica como a ruptura discursiva e textual de Luandino Vieira, humorística e cínica como escárnio de João Pedro Grabato Dias. Contida, comedida, tranquila, expositiva, a literatura pode dar-se como fingimento extremo e simular o real por inteiro, como na máscara do Muana Puó, de Pepetela, burilar a palavra até à exaustão, para lhes extrair sugestões e alusões étnicas e oníricas, como em Angola Angolê Angolema, de Arlindo Barbeitos, conotações e ambivalências co-textuais, como em Monção, de Luís Carlos Patraquim. Enfim, a literatura africana pode vociferar «tuji, patrão», como no poema de João-Maria Vilanova, retomando as práticas bilinguistas de seus avós, ou render homenagem aos «grupos de patriotas portugueses/operando na Metrópole ou no estrangeiro – os do Socorro Vermelho/e os das Brigadas Revolucionárias, tal a nº 2,/que a base secreta da OTAN destruiu no Pinhal do Arneiro,/no lugar dito Fonte da Telha», como se pode ler no Primeiro Livro de Notcha, discurso V, do caboverdiano Timóteo Tio Tiofe.
As literaturas formam-se e desenvolvem-se como sistemas nacionais antes das independências políticas. Desde a publicação de Espontaneidades da Minha Alma, elas têm 136 anos de vida nem sempre activa. Desde a publicação de Nga Mutúri, passou pouco mais de um século. Somente meio século nos separa do primeiro número da revista Claridade. Do meio do século para cá, os poetas profetizaram a mudança: «veemente ressurreição!» (Osvaldo Osório); «veemente de ressurreição!» (Rolando Vera-Cruz); «nova gestação» (David Mestre); «sonhando co’a vida» (João-Maria Vilanova) «edificam novos tectos» (Cândido da Velha); «a alforria ansiada» (Jofre Rocha); Tempo do Ciclo (Jofre Rocha); «alvorecer de esperança» (Jofre Rocha); «exigindo novas vestes» (Álvaro Novais); Sagrada Esperança (Agostinho Neto); Vidas Novas (José Luandino Vieira); «nova Aurora» (Yolanda Morazzo); «llhas renascidas / nuvens libertas» (Arménio Vieira); «gritarem de esperança» (Tomás Medeiros); «fomos nós o sonho» (Costa Andrade).
Cumpriu-se a alforria ansiada e já as literaturas africanas se defrontam com os novos poderes: Mayombe, de Pepetela, publica-se porque o Velho dá o seu consentimento contra ventos e marés; Os Anões e os Mendigos, do Manuel dos Santos Lima, a maior diatribe ficcional desde sempre, sai com a chancela de uma editora do Porto e o autor nunca recebeu resposta a pedidos de leitura do original que enviou a outras editoras e instituições, não só de Portugal; a pretexto de uma representação (gravosa para o Presidente angolano) da peça No Velho Ninguém Toca, o autor, Costa Andrade, esteve preso durante mais de um ano em Luanda. Isto só pode significar que as literaturas africanas estão mais vivas do que nunca, e os escritores, críticos como sempre. Não sei quando começou nem quando terminará o século decisivo das
literaturas africanas de língua portuguesa, mas estamos a vivê-lo: une a paixão amorosa e a (pa)ciência do texto se conjuguem em verbos mais que perfeitos!
Pires Laranjeira, Literaturas Africanas de Língua Portuguesa, Lisboa, F. C. Gulbenkian,1987.
10. O PÓS-COLONIAL NA POESIA AFRICANA DE LÍNGUA PORTUGUESA
Inocência MataFaculdade de Letras, Universidade de Lisboa
Locha Mateso, o crítico congolês (do ex-Zaire, hoje República Democrática do Congo), refere, logo de início do seu livro La Littérature Africaine et sa Critique, de 1986,o facto de a atenção, nos estudos literários africanos, estar sobretudo centrada nos autores e suas obras, não havendo uma preocupação com a “recepção”, que constitui o outro pólo da comunicação literária. Se é verdade que hoje, quinze anos depois, a crítica de Locha Mateso talvez não tenha razão de ser, também é verdade que nos estudos literários africanos de língua portuguesa a preocupação com a história literária é recente – apesar de, ainda sem as aquisições das teorias da história literária, ser de elementar justiça citar os trabalhos de Manuel Ferreira, de Mário Pinto de Andrade e (embora apenas no âmbito angolano) de Carlos Ervedosa. Isto é, após um longo período de estudos de natureza sincrónica, de alcance vertical, a incidência da actividade da crítica tem-se virado para a natureza das metamorfoses das estratégias textuais que apontam tanto para um novo mapeamento do discurso ideológico e cultural dominante como para novas configurações estéticas que a dinâmica da História – vale dizer sobretudo, o pós-colonialismo – tem imposto e para o desvelamento das suas suposições (suposições da História) a partir de outros “locais da cultura”. Portanto, um aspecto que remete tanto para as metamorfoses por que têm passado as formas que hoje canibalizam as próprias matrizes estéticas “da tradição” (digamos, “consagradas”, em vez de canónicas), ao mesmo tempo que propõe outro discurso, quanto para a (re)leitura como para a (re) escrita de temáticas já sublinhadas como ainda.
Estudos sobre o pós-colonialismo1 , sobretudo de tradição anglo-saxónica, ainda discutem o alcance desta idéia: alguns entendem-na como referente à situação em que vive(ra)m as sociedades que emergiram depois da implantação do sistema colonial, enquanto para outros o “pós” do significante “colonial” refere-se a sociedades que começam a agenciar a sua existência com o advento da independência. Nesta acepção, o pós-colonial pressupõe uma nova visão da sociedade que reflecte
sobre a sua própria condição periférica, intentando adaptar-se à lógica de abertura de novos espaços, de que fala Kwame Anthony Appiah2 . E os significantes desses (novos) espaços apontam tanto para novas corporizações e legitimidades socioculturais como para um compromisso na adaptação da tradição às exigências de um mundo cujos mecanismos de regulação ultrapassam os limites dos sujeitos dessa tradição. Assim, pode pensar-se que uma das marcas desse gesto de abertura de novos espaços, portanto, da condição pós-colonial, é tanto a recusa das instituições e significações do colonialismo como das que saíram dos regimes do pós-independência. Exemplos significativos dessa recusa, sob o signo de uma consciência pós-colonial, encontramo-la em obras emblemáticas da literatura africana, como a do escritor costa-marfinense Amadou Kourouma, Les Soleils des Indépendences publicado em 1964, do nigeriano Chinua Achebe, A Man of the People, de 1966 (cuja tradução portuguesa, pela Editorial Caminho, é Um Homem Popular, 1988), do camaronês Mongo Beti com o seu romance Remember Ruben (também há tradução portuguesa) ou do maliano Yambo Ouologuem, autor de Le Devoir de Violence (1967).
Convencida de que, não obstante as diferenças – que decorrem de “variedades da pós-colonialidade africana” (R. Hamilton3) –, as literaturas africanas de língua portuguesa têm-nos oferecido configurações temáticas da pós-colonialidade que já vêm sendo actualizadas em outros espaços geo-poéticos. São algumas dessas marcas que pretendo trazer à consideração: é que elas me parecem motivadas pela sua condição pós-colonial sobretudo se comparadas com configurações similares do período colonial e o imediatamente pós-independência. Esse corpus de novas configurações – que vou designar como dimensões da pós-colonialidade – operadas no sistema literário dos Cinco revelam-se, quanto a mim, motivadas por uma consciência que evoluiu da sua condição nacionalista e sente agora necessidade de repensar o país que não mais se encontra em fase de nacionalização ou na condição de emergência mas sim do agenciamento da sua emancipação.
Por isso, tão amarga quanto a consciência anti-colonial nas literaturas africanas de língua portuguesa é também a consciência pós-colonial, na visão mais emblemática da perda inocência, e confrontada com o começo do tempo da distopia: através de situações que representam uma reedição dos objectivos e métodos do “antigo período”, colonial, pelo “novo período”, o do pós-independência, é posto a descoberto o modo como este também participa na “larga história de crueldade em que o colonialismo é uma página a mais.”4
No entanto, apesar das similitudes, julgo que as literaturas africanas têm significadores que resultam em significações que fazem a(s) sua(s) singularidades(s). Uma dessas singularidades é a existência de uma intelligentsia, uma classe de letrados – chamemos-lhe elite intelectual, para simplificar – multirracial, feita de contribuições originárias de entidades que, simbolicamente, se antagonizavam. Como assinala Aníbal, de A Geração da Utopia, “uma elite intelectual de causar inveja a qualquer país africano. Elite citadina, transitando tranqüilamente da cultura européia para a africana, acasalando-as com sucesso, num processo que vinha de séculos”5 . A postura ideológica anti-colonial e nacionalista dessa elite, a reivindicação cultural e política que realizava, apenas simbolicamente antagonizava os significantes negro/branco. E isso
ainda no período colonial. Vários escritos corroboram essa proposta de complementaridade e de coligação contra a dominação: ainda em 1942, Francisco José Tenreiro já revela no poema “Canção do Mestiço”6 um sujeito poético feito do negro e do branco que, manifestando-se na figura do sujeito da enunciação, está privilegiadamente posicionado na fronteira entre os dois mundos – isto é, na “fronteira do asfalto” (LUANDINO VIEIRA, A Cidade e a Infância, 1957) e aproxima os dois mundos: “Quando amo a branca/Sou branco/Quando amo a negra/Sou negro/ Pois é...”. Portanto a proposta, ou a possibilidade de complementaridade de opostos, ou de pseudo-divergentes, por ser recorrente, pode ler-se como uma componente da anti-colonialidade que se vai transformar num dos parâmetros da nossa expressão literária pós-colonial.
A demanda pós-colonial das literaturas africanas de língua portuguesa a que fiz referência anteriormente reporta-se, também, à imposição que ao escritor é feita de “consumir” os seus próprios “preconceitos”7. Esses pré-conceitos de que falo dizem respeito tanto a configurações anteriores, que enformam a “tradição literária africana” e a memória dela, como aos códigos estéticos do contexto no qual elas se afirmaram.
E, isto, remete-nos para a segunda demanda do pós-colonial que aponta para a reescrita e a repaginação da(s) identidade(s) cultural/ais, segundo estratégias que não apelam à ruptura, antes remetem para um processo de remitologização. A ideologia libertária, exclusivista por natureza e necessidade, revelava-se pouco dinâmica para responder aos desafios da modernidade: não é por acaso que Mayombe, um romance escrito ainda em 1971, durante o tempo da guerrilha, só tenha sido publicado em 1980, quando os sinais da utopia político-social já começavam a manifestar-se de forma evidente. Seguem-se Quem me dera ser onda (1982), de Manuel Rui, Os Anões e os Mendigos (1984), de Manuel Lima, O Cão e os Calus (1985) de Pepetela, em Angola; Vozes anoitecidas (1986) e Cronicando (1988), de Mia Couto, em Moçambique; O Eleito do Sol (***), de Arménio Vieira, em Cabo Verde; A Berlinização ou Partilha de África (1987), de Aíto Bonfim8 , em São Tomé e Príncipe. Vale a pena não esquecer que os escritores citados são autores de obras celebrativas, eufóricas e solares em termos de afirmação da identidade cultural e dever patriótico9 .
Tal como a literatura anti-colonial, na fase de emergência, existência, consolidação e individualização nacional, mobilizou estratégias contra o discurso que considerava a produção literária de África como “ultramarina” – para afirmar a diferença e reivindicar a pátria –, também a actual escrita africana mobiliza estratégias contra-discursivas que visam a deslegitimização dum projecto de nação monocolor pensado sob o signo da ideologia nacionalista. Para reescrever a visão uniformizante de pátria, em que Homem e Natureza se encontravam vinculados à Pátria, como acordes de uma mesma sinfonia, a nova literatura opta por representar a alteridade, celebrando as várias raças do homem; para reescrever a visão eufórica da História dos sujeitos africanos10, as exigências da consciência contrapõem agora uma contra-epopéia política e social que visa referenciar a transformação dos ideais agónicos. Mas, a particularidade dessa reescrita consiste não na invenção de um outro lugar totalmente outro, mas na proposta de uma deslocação dentro do mesmo lugar (Boaventura de Sousa Santos)11 , para nele agenciar tanto a catarse dos lugares coloniais como os
tensões pós-coloniais, como em A Varanda do Frangipani (1996) que, deliberadamente, baralha lugares e tempos históricos para significar que a sua diferença, sendo de natureza (colonial/pós-colonial), é também de olhar: numa sociedade em que “já ninguém respeitava os velhos”, como amargamente considerava Salufo Tuco, Xidimingo, colono branco, encontrou nos outros velhos do asilo, negros, a verdadeira dimensão da solidariedade humana. Também romances como Mayombe, A Geração da Utopia (1992), Parábola do Cágado Velho (1996) ou Ventos do Apocalipse (1993), “metaficções historiográficas”, obras que buscam na História a sua própria existência simbólica, funcionam com uma lógica antiépica que acaba por referenciar os ideais agónicos da revolução e do nacionalismo, através do despertar de vozes e memórias que na utopia político-social não tinham lugar. Estamos, assim, perante um contra-discurso que intenta a mudança no contexto do discurso dominante (e no âmbito do que tenho vindo a considerar o discurso dominante é a “literatura consagrada” com nomes emblemáticos que todos conhecemos nas quatro literaturas)12 – gerindo as suas potencialidades e as suas limitações quanto a uma “renovação discursiva”.
Consoante a intenção dessa renovação, as estratégias contra-discursivas tomam formas diversas. Por exemplo, em Pepetela consistem no destecer das teias do logro e sombras da História – e nisso reside a originalidade da sua escrita. A inovação contida na obra romanesca de Pepetela reside no repovoamento da paisagem e na remitologização do espaço da utopia roída pelos descasos da revolução. Diferentemente do que acontece em Estação das Chuvas (1996), de José Eduardo Agualusa, ou no já citado Os Anões e os Mendigos, de Manuel dos Santos Lima, em Maio, Mês de Maria, de Boaventura Cardoso, e até alguns dos pequenos contos de Da Palma da Mão (1998), de Manuel Rui – nestas narrativas a morte do país anuncia-se irrevogável: “este país morreu”, diz uma das personagens de Estação das Chuvas – um pretérito que retira a possibilidade de revitalização, de qualquer restituição vital e, portanto, a impossibilidade liminar da utopia. Mas a corroborar a idéia de que “é a imperfeição do mundo que justifica a utopia, que a torna incontornável, inevitável”13 , a obra romanesca de Pepetela, mesmo aquela em que o desencanto é intenso como em A Geração da Utopia ou em O Desejo de Kianda (1995), contorna a distopia e antecipa um outro “desejo utópico” não se esgotando um pretérito sem remissão – veja-se a reinício sugerido de A Geração da Utopia: não pode haver ponto final numa história que começa por “portanto”.
Outra marca importante da nossa pós-colonialidade literária tem a ver com o lugar e o modo como o escritor africano trabalha e se posiciona na língua portuguesa. Do passado para o presente, a escrita já não denuncia qualquer tensão na expressão da cultura e da vivência do falante, como em Mestre Tamoda (1974) de Uanhenga Xitu, cuja significação não se esgota na africanização da língua portuguesa mas passa também pela tematização do desfasamento entre a estruturação cultural da língua portuguesa e a expressão de uma vivência conduzida em lugares não harmoniosos de convivência de diferentes (o português e o kimbundu, a cidade e o campo, a letra e a voz). Mais do que a africanização do português, em Uanhenga Xitu o que é tematizado é a oraturização do sistema verbal português: ora, este é um processo que ultrapassa o código lingüístico e se expande por terrenos translinguísticos como a onomasiologia
(a onomástica e a toponímia, sobretudo), a cenarização (o registo das vozes, a rítmica da dicção e a representação dos gestos) e a sugestão musical. Todos esses recursos de narração rubricam-lhe uma forma mimética e permitem identificar, na fala narrativa, a interacção entre a escrita e os textos não escritos incorporados na cultura local, que se dão a conhecer em português.
Diferentemente de Uanhenga Xitu, Luandino Vieira faz emergir as suas personagens de um contexto tendencialmente monolingue, regularmente escolarizado e de uma cultura urbana e, naturalmente, resultando de um processo transculturativo. A obra de Luandino, em Angola e na literatura africana de língua portuguesa, é expoente da invenção de uma linguagem literária através da qual comunicou mensagens subversivas – uma linguagem literária que emerge de uma linguagem “letrada” e recriativa, como a de João Vêncio ou de Lourentinho. Enquanto em Uanhenga Xitu a dimensão babélica é sugerida pela confrontação de identidades sociais e culturais, que as diferenças das expressões lingüísticas das personagens encenam – diferenças que remetem semanticamente para a dispersão e para a recusa de um código de comunicação totalitário –, em Luandino Vieira a reinvenção metalingüística é uma via de resistência e atributo de consciência perante a ambiência insuportável à volta: pressão interior e espiritual, opressão sociocultural e política. Por exemplo, em “Estória de Família (Dona Antónia de Sousa Neto)”, uma das três estórias de Lourentinho, Dona António de Sousa Neto & Eu (1981), Tomás aconselha o jovem Paulo a conhecer Assis – que este pensava tratar-se de um músico – pois “sem o Assis não haverá poesia angolana”.14
Se a linguagem literária de Luandino, de intenção anti-colonial e contra a desagregação identitária, indiciando um trabalho peculiar da língua, rubrica significadores de universos socioculturais e perfis éticos e ideológicos, em Mia Couto a língua, igual para todos, permite a singularização de cada uma das personagens, enquanto o léxico desempenha um papel determinante na construção da identidade colectiva e busca uma nova geografia lingüística, isto é, uma nova ideologia para pensar e dizer o país15 . Em tempo pós-colonial, em Mia Couto a ludicidade não é o resultado de um “simples” acto gozoso, embora se sobreponha ao empenhamento político-ideológico sem, contudo, o rasurar pois que as falas do narrador e das personagens são rubricadas com atributos da representação dialógica do saber da letra e da voz, apesar da função do prazer. A corroborar essa leitura da artesania reinventiva do verbo, o próprio Mia Couto confessa o seu fascínio pelas histórias que resulta da necessidade absoluta de brincar16 –- ele que afirma, em outra ocasião, a vantagem de ser conhecedor materno da língua.17
Sendo uma das marcas das culturas pós-coloniais a sua hibridez, resultado de uma situação de semiose cultural ou de relação dialéctica entre matrizes civilizacionais diversas, nunca antes como em Mia Couto a expressão literária revela a sua mestiça existência e vivência, do seu criador e suas criaturas: mestiços de cultura, de espaços, de saberes e de sabores. Esse trabalho consiste num processo de recriação de desenredos verbais a que se segue a incorporação de saberes não apenas lingüísticos mas, também, de vozes tradicionais, do saber gnómico que o autor vai recolhendo e assimilando nas margens da nação – o campo, o mundo rural – para revitalizar a nação
que se tem manifestado apenas pelo saber da letra. Essa revitalização segue pela via da levedação em português de signos multiculturais transpostos para a fala narrativa em labirintos idiomáticos como forma de resistência ao aniquilamento da memória e da tradição.
Se em Uanhenga Xitu e Luandino Vieira se pode falar da maldição de Babel – porque as personagens canibalizam os significantes do confronto com o saber cultural (Uanhenga Xitu) ou intelectual (Luandino Vieira) –, Mia Couto celebra a pluralidade em pulsações e formulações translinguísticas e desenredos de expressões idiomáticas e proverbiais através de uma prolífera reinvenção do significante e do significado, uma inventividade mais do que de uma língua, de expressão, portanto, de linguagem. Metalinguisticamente, a filosofia que se pode induzir dessa escrita (de Mia Couto) é o princípio segundo o qual a medida da vitalidade de uma entidade lingüística (seja o próprio sistema seja apenas a estrutura lexical ou uma palavra) é a freqüência da sua prática. Assim, pela recorrência a um determinado léxico que aponta para o sonho, o sono, o ar, a água as fronteiras do dito e do estatuído são esbatidas e a atmosfera de integridade do Ser alarga as margens da imaginação, transpondo as fronteiras do interdito social e da “conveniência” político-ideológica (no caso de O Último Vôo do Flamingo) e recorrendo à cultura para a reconversão do absurdo.
Aliás, o absurdo é a minha última paragem. Pois, outra marca dessa transformação literária nos sistemas africanos dos países de língua portuguesa, que leio como uma componente da sua (nossa) pós-colonialidade, é o recurso ao insólito, ao absurdo, ao fantástico como estratégia de enfrentamento do real: de Mia Couto, que utiliza essas representações do fantástico com recorrência a Sousa Jamba de Confissão Tropical (1995); A Lonely Devil, (1994), ainda de Sousa Jamba, de Maio, Mês de Maria (1997), de Boaventura Cardoso ou, antes, de A Morte do Velho Kipacaça (1989) a O Desejo de Kianda, de Pepetela, ou a Mistida (1997) do guineense Abdulai Sila, e a O Sétimo Juramento (2000), de Paulina Chiziane, o insólito surge como a lógica possível de uma realidade que, de tão absurda, carece de explicação a partir do real. Através de construções simbólicas, alegóricas e insólitas intenta-se recuperar o sentido da realidade, como em Terra Sonâmbula em que o percurso de Tuahir e de Muidinga/Kindzu é o do despertar da terra sonambulante; ou em O Desejo de Kianda, em que a explicação para a queda dos prédios – registro cronístico que é metáfora de uma realidade sócio-política, cultural e ética apocalíptica – só se encontra no registro lendário do cântico de Kianda, o espírito das águas, que se revolta redesenhando uma nova geografia, a primitiva, propondo a possibilidade de um novo começo.
As literaturas africanas de língua portuguesa participam da tendência – quase um projecto – de investigar a apreensão e a tematização do espaço colonial e pós-colonial e regenerar-se a partir dessa originária e contínua representação. Os significadores desse processo, que constituem a singularidade da nossa pós-colonialidade literária, são potencialmente produtivos: sinteticamente dizem respeito a uma identidade nacional como uma construção a partir de negociações de sentidos de identidades regionais e segmentais e de compromisso de alteridades. O que as literaturas africanas intentam propor nestes tempos pós-coloniais é que as identidades (nacionais,
regionais, culturais, ideológicas, sócio-econômicas, estéticas) gerar-se-ão da capacidade de aceitar as diferenças.
biblioteca.clacso.edu.ar/ar/libros/aladaa/mata.rtf
Notas Bibliográficas:
* Texto apresentado no X Congresso Internacional da ALADAA (Associação Latino- Americana de Estudos de Ásia e África) sobre CULTURA, PODER E TECNOLOGIA: África e Ásia face à Globalização – Universidade Cândido Mendes, Rio de Janeiro – 26 a 29 de outubro de 2000.
Este texto retoma, em versão muito resumida, algumas ideias da conferência proferida no dia 2 de junho de 2000 no Encontro Internacional “A língua portuguesa no virar do milénio – Encontro com José Saramago” – Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1 e 2 de junho de 2000.
1 Ideia que não deve confundir-se com pós-independência – embora esta seja a antecâmara daquela.
2 KWAME ANTHONY APPIAH, “Is the Post- in Postmodernism the Post- in Postcolonial?”. PADMINI MONGIA (ed.), Contemporary Postcolonial Theory – a Reader, London, Arnold, 1996. p.63.
3 RUSSEL HAMILTON, “A literatura nos PALOP e a teoria pós-colonial”. Revista Via Atlântica – Publicação da Área de Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa, nº 3 , São Paulo, 1999. p. 15.
4 Apud VERONICA PEREYRA & LUIS MARÍA MORA, Literaturas africanas – de las sombras a la luz, Madrid, Editorial “Mundo Negro”, 1998. P. 118.
5 PEPETELA, A Geração da Utopia, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1992. p. 305.
6 FRANCISCO JOSÉ TENREIRO, Ilha de Nome Santo, Coimbra, Colecção Novo Cancioneiro, 1942.
7 Biases, na expressão de Wilson Harris. Apud HELEN TIFFIN, “Post-Colonial Literatures and Counter-discourse”. BILL ASHCROFT, GARETH GRIFFITHS & HELEN TIFFIN (ed), The Post-Colonial Studies Reader, London, Routledge, 1995. p. 96.
8 Escritor são-tomense (poeta e dramaturgo) que se tem distinguido sobretudo na prática dramática: em 1995 publicou O Golpe – Uma Autópsia e é autor de A Invasão, também peça de teatro que ganhou em 1992 o Concurso “Vozes das Ilhas” e que não está publicada.
9 Cito algumas: As Sementes da Liberdade (1965), As Lágrimas e o Vento (1975), no caso de Manuel Lima; como, para Pepetela, As Aventuras de Ngunga (1972) e Muana Puó (1978), sem esquecer a politicamente oportuna peça de teatro A Corda (1978); Regresso Adiado (1974) Sim, Camarada! (1977), sem esquecer os seus creio que oito 11 Poemas em Novembro (pelo menos até 1988) – mesmo os mais novos, como Mia Couto e Aíto Bonfim (ambos nascidos em 1955), respectivamente, com os primeiros poemas de Raiz do Orvalho (1983) e poemas dispersos antes em A Palavra é Lume Aceso (1980) e Poemas que, embora publicados em 1992, já circulavam dispersos antes do primeiro livro do autor.
10 Cito os poemas narrativos da literatura de combate e as narrativas de contaminação épica sobre Luanda, e as mais épicas como A Vida Verdadeira de Domingos Xavier (1974), Capitão Ambrósio (1975) ou “Os Flagelados do Vento de Leste”, Caminhada (1962).
11 BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS, Pela Mão de Alice – o Social e o Político na Pós-Modernidade, Porto, Edições Afrontamento, 3ª ed., 1994, p. 279-280.
12 O caso da Guiné-Bissau é um pouco diferente, mas esta questão não cabe agora no âmbito das minhas reflexões. Cf. INOCÊNCIA MATA, “Guiné-Bissau”. PIRES LARANJEIRA (Org.), Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa, Lisboa, Universidade Aberta, 1995.
13 EDUARDO PRADO COELHO, “A utopia num mundo imperfeito”. Jornal do Brasil. 19 de agosto de 1990. p. 4.
14 LUANDINO VIEIRA, Lourentinho, Dona Antónia de Sousa Neto & Eu, Luanda, UEA/Edições 70, 1981. Leia-se o diálogo entre Tomás, Paulo, Temístocles, Damasceno e Olga nas páginas 109-110.
15 INOCÊNCIA MATA, “A alquimia da língua portuguesa nos portos da expansão - em Moçambique, com Mia Couto”. Scripta – Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras e do CESPUC , vo. 1, nº 2, Belo Horizonte, 1998. p. 264.. Também: Revista Língua e Cultura, números: 5 e 6 – II Série,1997. Sociedade da Língua Portuguesa (Lisboa). Páginas do artigo: 23-30.
16 Entrevista a JOSÉ EDUARDO AGUALUSA, “O Gato e o Novelo”. JL – Jornal de Letras, Artes & Ideias, 8 de outubro de 1997.
17 “Beneficio-me de uma situação privilegiada, porque tenho um pé na norma e outro na errância a que está sujeita a língua portuguesa (…) A maior parte das construções não as reproduzo mecanicamente. Tento reencontrar a lógica que leva a essa possibilidade de reconstrução” “MIA COUTO, em entrevista ao JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias, Lisboa, 18/ 8/ 1994. p. 14.
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LUSOFONIA, Plataforma de apoio ao estudo da língua portuguesa, José Carreiro, 23-04-2008 < http://lusofonia.com.sapo.pt/LA.htm >
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LITERATURAS DE LÍNGUA
PORTUGUESA LITERATURAS AFRICANAS
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LITERATURA
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A literatura colonial, identificada com um conjunto de textos que inclui romance, poesia, narrativas de viagem, relatos de missionários, diários, livros de notas e outros que propagandearam a ideia de império sobretudo a partir do século XIX , tem origem em textos muito anteriores aos quais vai beber metáforas e imagens, como sejam as descrições de selvajaria de Heródoto, os relatos de Marco Polo, Mandeville ou Haklyut. Seria, contudo, na viragem do século, com a expansão colonial como a Inglaterra e a França, que iria desenvolver-se. A África, continente redescoberta pelos europeus nos anos 80 do século passado, surge então como cenário de inúmeros textos de autores como H. Rider Haggard, John Buchan, Mary Kingsley, Florence Dixie ou Joseph Conrad
em Inglaterra e Pierre Loti, Paul Vigne D’Octon ou Paul Bonnetain em França. Também o império britânico na Índia é tema de Rudyard Kipling, E. M. Forster, G. A. Henty ou Alice Perrin.
Quanto à literatura pós-colonial considera-se, em geral, que tem início após a II Guerra Mundial sendo definida por Elleke Boehmer como “a literature which identified itself with the broad movement of resistence to, and transformation of, colonial societies.” (Colonial & Postcolonial Literature. Migrant Metaphors, Oxford University Press, 1995, p. 184). Entre as duas barreiras temporais citadas encontra-se todo um conjunto de textos que registam diferentes atitudes face ao império e que não poderão enquadrar-se numa designação única, já que, segundo a mesma autora, “initiatives which we now call postcolonial first began to emerge before,the time of formal independence, and therefore formed part of colonial literature” (Op.cit., p.5). Na verdade, já em Conrad e Forster se registam atitudes de resistência ao poder colonial, as quais iriam também encontrar expressão nos anos 20 e 30 nas obras de autores como Léopold Sédar Senghor (Senegal), Aimé Cesaire (Martinica) ou Bernard Binlin Dadié (Costa do Marfim). Vivendo em Paris, estes escritores tornaram positiva a imagem de “negritude”, anteriormente identificada como negativa e inferior pelo colonizador, passando a celebrá-la enquanto símbolo do institivo e misterioso da África negra.
É, porém, o movimento anti-colonial que se sucede a 1945 que traz consigo a literatura pós-colonial de que são exemplificativos autores como: Chinua Achebe, George Lamming, Ana Ata Aidoo, Alice Munro, Margaret Atwood, patrick White (Prémio Nobel, 1973), Wole Soyinka (Prémio Nobel, 1986), J. M. Coetzee, Peter Carey ou Nadine Gordimer (Prémio Nobel, 1992, apenas para citar alguns.
É de salientar que a partir dos anos 70 grupos cujas obras não eram até então consideradas passam a figurar na literatura pós-colonial. São eles as mulheres (Am Ata Aidoo, Bessie Head, Keri Hulme, Michelle Cliff, Erna Brodber) e os povos indígenas (p. ex., os australianos aborígenes Sally Morgan e Mudrooroo ou os neozelandeses maori Witi Ilhimaera e Patricia Grace).
A eles se junta um terceiro grupo, os chamados migrant writers. Por diferentes razões, que vão desde a opção profissional ao exílio político, autores de nações outrora colonizadas passam a residir em Boston, Nova Iorque, Londres e Paris. É o caso de Salmom Rushdie, Ben Orki ou V. S. Naipul.
É também nos anos 70 que tem início a crítica literária pós-colonial, nomeadamente em 1978 com a publicação de Orientalism de Edward Said também ele migrant writer nos EUA e também ele, como Rushdie, com as suas obras actualmente banidas na Palestina. Desde então, a obra de Said tem dado origem a uma vasta bibliografia de análise crítica às suas teorias, bibliografia que muito tem influenciado as várias “leituras” de que têm sido objecto os textos coloniais e pós-coloniais. O que é sobretudo posto em causa na perspectiva “orientalista” de Said é o facto de este dividir o mundo em dois - o do colonizado - afirmando que o Orientalismo, que não existe na realidade sendo antes fabricado pelo Ocidente, constituir uma afirmação de poder por parte do colonizador ocidental face ao colonizado, sendo o primeiro sempre dominante e privilegiado do ponto de vista discursivo, social e político. Afirmações
como “Orientalism depends for its stategy on this flexible positional superiority, which puts the Westerner in a whole series of possible relationships with Orient without ever losing him the relative upper hand” (Orientalism, Penguinm 1985), p. 7 têm sido postas em causa por vários autores. de uma forma ou de outra, todos apontam o reducionismo da metodologia de Said. Como afirma Bart Moore-Gilbert: “What unites such critics is a perception that said unifies homogenises the identity and operationality of colonial discourse to an unwarranted degree”(“Writing India, Reorienting Colonial Discourse Analyses”, in Writin India 1757-1990. The Literature of British India, 1996, p. 5).
Entre os críticos de Said destacam-se Homi Bhabha e Gayatri Chakravorty Spivak. Partindo da psicanálise, Bhabha mostra como as relações entre colonizadores e colonizados não são homogéneas mas marcadas pela “ambivalência” (palavra-chave retirada da psicanálise) pondo em relevo a esfera insconsciente das relações coloniais e mostrando de que forma o sujeito colonial se converte em objecto de fantasia e desejo por parte do colonizador. Quanto a Spivak, põe em relevo a(s) história(s) do(s) “subalterno”(s), conceito que deve ser entendido como a diversidade dos grupos dominados e explorados sileciados pelo ponto de vista hegemónico da historiografia académica. Assim, propõe-se dar voz aos excluídos, nomeadamente às mulheres nativas subalternas, cujo ponto de vista nunca é ouvido, vítimas que são da visão de superioridade do feminismo ocidental que autora considera sinónimo dos comportamentos do colonizador face ao colonizado e, portanto, mera reprodução dos axiomas do imperialismo.
Outros autores têm criticado Said e proposto novas formas de abordagem teórica sem, contudo, note-se, rejeitarem na íntegra o modelo orientalista. Porém, p. ex., Robert Young não deixa de apontar outros caminhos fazendo notar que não existe um modelo metodólogico para a análise de impérios como o português ou o espanhol ou para espaços geográficos que não a Índia, nomeadamente a África.
Nos anos 90 as literaturas pós-coloniais encontram-se, tal como a metodologia crítica, numa fase de proliferação e mudança. Parece-nos que uma perspectiva comparatista poderia ajudar, já que é a que passou a ser adoptada para a própria História do colonialismo, como significativamente mostra o livro de Mac Ferro Histoire des colonisations (de notar a utilização do plural) recentemente traduzido para português e inglês.
Por, e dados os exageros da teorização apontados por muitos críticos, torna-se sem dúvida, necessário, não só repensar a história das colonizações como regressar ao(s) texto(s).
Bibliografia
Martine Astier-Loufti, Littérature et colonialisme, 1971; L. Fanoudh-Siefer, Le Mythe du nègre et de l’Afrique noire dans la littérature française de 1880 à la 2è guerre mondiale, 1968; Bart Moore-Gilbert, “Introduction. Writing India, Reorienting Colonial
Discourse Analysis”, in Writin India 1757-1990. The Literature of British India, 1996, pp. 25-29; Elleke Boehmer, Colonial & Postcolonial Literature. Migrant Metaphors, 1995; Mac Ferro, Histoire des colonisations, 1994; A. Martinkus-Zump, Le Blanc et le noir, 1975; W. Edward Said, Orientalism, 1978; Robert J. C. Young, Colonial Desire, Hydridity in Theory, Culture and Race, 1995; Ania Loomba, Colonialism/Postcolonialism, 1998; Gaytri Chakravorty Spinak e Sarah Harasym, The Post-Colonial Critic (Interviews, Stategies, Dialogues), 1990; Billey Asbcroft, Gareth Griffithes e Helen Tiffin, The Post-Colonial Studies Reader, 1994; Iain Chambers e Lidia Curti, The Postcolonial Question: Common Skies, Divided Horizons, 1995; Eugene Benson e Leonar Conolly, Encyclopedia of Post-Colonial Literatures in English, 2 vols., 1994.
© E-Dicionário de Termos literários de Carlos Ceia 2010
Quer na literatura colonial portuguesa quer na literatura colonial europeia, o homem branco é elevado à categoria de herói mítico, o sacrificado e desbravador das terras selvagens, o portador de uma cultura superior:
“O único país que pode explorar seriamente a África, é Portugal.”Manuel Pinheiro Chagas, 1842-1895.
Neste sistema que afirma a superioridade de um grupo sobre outros, o negro é considerado inferior:
“A sua face negra, de beiçola carnuda, tinha reflexos demoníacos.”Henrique Galvão, 1895-1975.
http://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=ioZb0pnWa3w
4. LITERATURAS AFRICANAS ESCRITAS EM LÍNGUA PORTUGUESA: O PAPEL DA IMPRENSA E DO ENSINO PARA O SEU SURGIMENTO
Imprensa
A tipografia foi introduzida nas colónias nas seguintes datas: Cabo Verde (1842); Angola (1845); Moçambique (1854); São Tomé e Príncipe (1857) e Guiné-Bissau (1879).
Os primeiros órgãos de comunicação social foram o Boletim Oficial de cada colónia, que dava abrigo à legislação, noticiário oficial e religioso, mas que também incluía textos literários (sobretudo poemas, mas eventualmente crónicas ou contos).
Em geral, no século XIX, com excepção de Angola, a imprensa foi menos importante do que seria de supor devido também à repressão. O semanário O Progresso (1868), de Moçambique, religioso, instrutivo, comercial e agrícola, teve apenas um número, porque, dois dias depois, era obrigado a ir à censura prévia, que o proibiu. Um militante republicano, Carvalho e Silva, no início deste século, fundou quatro jornais, todos encerrados, o último dos quais assaltado, a tipografia destruída e o director agredido, de que resultou a sua morte. De facto, a história da imprensa não oficial de Moçambique foi geralmente de oposição aos governos, da colónia e de Lisboa.
Com a República, até ao advento da lei de João Belo (1926) contra a liberdade de imprensa, floresceu uma imprensa operária. Mas os mais célebres, e justamente celebrados, pelo seu papel na consciencialização da moçambicanidade, foram os jornais fundados pelos irmãos José e João Albasini: O Africano (1909-1918), O Brado Africano (1918) e O Itinerário (1919), o penúltimo sobrevivendo durante décadas e o último reaparecendo, mais tarde, noutros moldes (1941-55).
Na Guiné, o primeiro jornal, Ecos da Guiné, apareceu somente em 1920.
Em Cabo Verde e São Tomé e Príncipe, a imprensa contribuiu decisivamente para o incentivo à criação literária, no quadro de limitação insular. A fundação do Liceu-Seminário de São Nicolau (Cabo Verde), nos anos 60 do século XIX, ajuda a explicar o nível de escolarização cabo-verdiana (a primeira escola primária surgiu em 1817). Curiosamente, cabo-verdianos e são-tomenses, vivendo em Portugal, na primeira metade do século XX, estiveram sempre muito activos na busca de uma identidade cultural e da consciencialização (proto-nacional ou simplesmente na produção intelectual desligada de intenções insulares. Basta recordar intelectuais como Viana de
Almeida, Mário Domingues, Marcelo da Veiga ou Salustino da Graça Espírito Santo (de São Tomé e Príncipe) e Pedro Cardoso (de Cabo Verde).
No século XIX, foi intensa e brilhante a actividade jornalística em Angola. Depois da criação do Boletim Oficial (1845), surge A Aurora (1855), jornal recreativo e literário. Mais tarde, aparece um jornal pugnando pela efectiva abolição da escravatura, para além da letra da lei, A Civilização da África Portuguesa (1866), dirigido por Urbano de Castro e Alfredo Mântua, europeus identificados com Angola.
De 1860 a 1900, surge cerca de meia centena de títulos de jornais, artesanais e episódicos, mas de grande importância para o fomento da actividade intelectual e literária. Desde o Jornal de Luanda (1878), do escritor e advogado Alfredo Troni que marca a transição do jornalismo de cariz mais colonial para o proto-nacionalista, até O Futuro de Angola ou O Pharol do Povo, muitos contribuíram para a informação, elevação cultural e promoção das línguas e culturas locais.
O primeiro jornal de africanos chamava-se Echo de Angola (1881), inaugurando duas décadas de frenética actividade jornalística (que se prolongaria, depois, até aos anos 20) e que ficaria conhecida por período da imprensa livre africana, terminando exactamente com a fundação de A Província de Angola (1923), primeiro jornal de tipo moderno, industrial, que passou a quotidiano em 1926, perdurando ainda hoje as instalações ao serviço do Jornal de Angola. A censura, que já funcionava, aprimorou-se e acabou com as últimas veleidades de uma imprensa realmente democrática e livre. Na época florescente da imprensa livre, apareceram jornais escritos simultaneamente em português e quimbundo, como o Muen ‘cxi (= o senhor da terra) e o Mukuarimi (= o «linguarudo»), dirigidos por Alfredo Troni. Nos últimos vinte anos de Oitocentos, pugnaram por uma Angola autónoma, mais livre e desenvolvida, jornalistas-intelectuais como Arantes Braga, José Fontes Pereira de Melo, Pedro Félix Machado ou Cordeiro da Matta.
No dealbar do novo século, algumas publicações literárias marcaram o desejo de emancipação dos «filhos do país», de que cumpre destacar as duas seguintes:
• Voz d’Angola — clamando no deserto (1901), colectânea de artigos não assinados contra um artigo colonialista;
• revista Luz e Crença (1902), cujo segundo número saiu um ano depois.
Esta última era promovida pela Associação Literária Angolense, cuja sigla, «Liberdade, fraternidade, igualdade», alerta para os ideais republicanos. Pugnava-se por um espírito de instrução, autonomia política e crítica social e institucional.
Foram líderes e nomes cimeiros desta geração, entre outros, Francisco Castelbranco, Silvério Ferreira, Paixão Franco, Lourenço do Carmo Ferreira e Domingos Van Dúnem (não confundir com o homónimo, nascido em 1925 e hoje embaixador do seu país na UNESCO).
É, pois, através dos jornais que os letrados fazem a aprendizagem da escrita, vendo os seus escritos em letra de forma, assim modelando a própria concepção de intervenção literária, que ficaria marcada por essa prática intrínseca de concretude e explicitude, a não ser quando toda a sorte de preciosismos (saídos do ultra-romantismo, parnasianismo e decadentismo) tomava conta da efusividade lírica. Esse desígnio jornalístico — ou melhor, de comunicação social, à letra — marcaria decisivamente os escritores de África, que quase sempre assistiam à divulgação dos seus textos através de compilações e antologias, antes de os poderem ver estampados em livro, um objecto a que poucas vezes tinham acesso, por dificuldades de vária ordem (censura, perseguição, pobreza, desleixo, dispersão, etc., que foram aumentando em crescendo até à independência).
Ensino
A educação nas colónias portuguesas registava, ainda a entrada dos anos 60, níveis baixíssimos. O analfabetismo atingia, em Angola, quase 97%; em Moçambique, quase 98%; na Guiné-Bissau, perto dos 100 %; só em Cabo Verde o nível era mais elevado, rondando os 78,5%. O analfabetismo devia-se à política portuguesa de criar uma elite muito restrita de assimilados para servirem no sector terciário, ao mesmo tempo que deixava as populações entregues a si próprias, sem permitir o seu auto-desenvolvimento ou, no pior dos casos, usando-as como mão-de-obra escrava ou barata.
Como escreveu o poeta angolano António Jacinto, em «Carta dum contratado» (1950):
Mas ah meu amor, eu não sei compreenderpor que é, por que é, por que é, meu bemque tu não sabes lere eu — Oh! Desespero! — não sei escrever também!
[…] No começo do século XIX, os padres e párocos eram escassos nas colónias. Com o liberalismo, o ensino passou, em 1834, para o domínio do Estado, tomando-se laico. A partir de 1869, voltou a ser apoiado nas Missões. Todavia, o seu progresso foi lentíssimo.
Em Angola, os grandes centros populacionais tinham escolas oficiais e particulares para brancos e nas zonas rurais havia as missões para negros. O ensino manteve-se, durante muitos séculos, exclusivamente a nível primário.
Três anos depois da instauração da República, deu-se a separação da Igreja e do Estado, substituindo-se as missões religiosas por laicas, para, seis anos mais tarde, as missões católicas serem auxiliadas financeiramente pelo Estado, altura em que, em Luanda, foi fundado o Liceu Salvador Correia. Em 1926, as «missões civilizadoras» foram abolidas devido ao seu fracasso no terreno.
A língua usada nas escolas e fora delas, por professores, missionários e auxiliares, era a portuguesa, que, com as línguas nativas, servia para o ensino da religião. Mas, até II Guerra Mundial, o objectivo da assimilação, perseguido em teoria pelas autoridades, não teve expressão. Após 1945, a política governamental procurou acelerar a assimilação, fazendo um esforço para generalizar o ensino primário, desenvolver o secundário, sobretudo técnico, a educação agrícola e criando instituições para a formação de professores. Todavia, o ensino superior, ao contrário de outras colónias, inglesas ou francesas, apenas estava ao alcance de um número muito reduzido de estudantes, sobretudo brancos e mestiços. Com a fundação e a pressão exercida pelos movimentos nacionalistas, e logo depois do início da luta de libertação nacional armada (Luanda, 1961), foram instalados os Estudos Gerais, de nível universitário, a partir de 1963, nas cidades angolanas de Luanda, Sá da Bandeira e Nova Lisboa, e na capital moçambicana, até hoje os únicos territórios que deles beneficiaram.
Os próprios movimentos de libertação nacional, de que resultariam os partidos no poder, após 1975, criaram o seu ensino e alfabetização, que não tiveram um verdadeiro alcance de massificação, devido a apenas atingirem os escassos milhares de militantes na clandestinidade e faixas de população que os apoiavam. O MPLA, FNLA e UNITA (Angola), o PAIGC (Guiné-Bissau e Cabo Verde) e a FRELIMO (Moçambique) não tiveram tempo nem meios para, antes da independência, poderem substituir a escola colonial. MPLA (1956), PAIGC (1956) e FRELIMO (1962) tinham essencialmente preocupações políticas e militares, mas dedicavam uma atenção especial às questões culturais. Os outros movimentos, nascidos de dissensões, nunca tiveram qualquer preocupação nesse sentido. O MLSTP (de São Tomé e Príncipe) nasceu pouco antes da independência.
Pires Laranjeira, Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa (vol. 64), Lisboa, Universidade Aberta, 1995, pp. 18-21
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5. LITERATURAS AFRICANAS DE LÍNGUA PORTUGUESA: UM FENÓMENO DO URBANISMO
As literaturas africanas modernas, isto é, aquelas que se exprimem na língua de colonização, têm a sua emergência indubitavelmente ligada ao urbanismo […]
Colonização que, como é sabido, levou à Africa tradicional factores de desestruturação que actuaram em todos os níveis da organização cosmológica das sociedades negras. Sociedades cujos sistemas de valores consuetudinários foram
afectados, ou mesmo destruídos, pelo cartesianismo da filosofia colonizadora que, aliada ao cristianismo de raiz urbanizante, muito fez para despaganizar a cultura negra cujo animismo jamais conseguiu entender. Essa despaganização era acompanhada pelo sacrifício da ruralidade, enquanto imanência do binómio homem-natureza governado pela força vital, pelo muntu, garante da ancestralidade geradora do iniciatismo característico da civilização africana, abalando profundamente o mundo do homem negro, que foi existencialmente agredido por «la violente césure qu’a constituée l’intrusion de l’Europe chrétienne et cartésienne, et de l’Asie musulmane, dans un monde aussi animiste», como observa Amadou Ly (1983:37). Esse sacrifício da ruralidade abria caminho para o advento do urbanismo […]
A cidade é, portanto, a realidade emblemática da colonização e do sistema colonial, a que ela conduziria, uma vez que, como referia Kane, ela, a cidade, é simultaneamente um polo catalisador e difusor dos valores culturais e civilizacionais de que os colonizadores eram portadores. Nestes termos, ela representa já um centro de aliciamento para todos aqueles que, no raio da sua influência lhe sentem o efeito, sujeitos que estão, a partir daí, ao poder atractivo que a novidade da cidade e dos seus costumes implica. A cidade passa, pois, a ser uma meta a atingir por aqueles que vêem nela a possibilidade de melhoria do seu estatuto social e económico e que, por isso, vão provocar um êxodo rural considerável, que vinha instalar-se, normalmente, nas zonas circundantes dos núcleos citadinos, onde, entretanto, se forjava uma burguesia constituída por brancos, alguns negros e alguns mestiços, disposta a marcar o ritmo da evolução cultural, enquanto se engrossava o caudal de despaganizadores que, atraídos pelos empregos gerados pela actividade comercial e industrial urbana formavam os muceques ou os caniços que punham a claro as assimetrias e as injustiças do sistema colonial cuja rede se entretecia.
Transferido do seu espaço vital característico, onde a sua identidade cultural e civilizacional não era interferida por factores alienígenos, para um espaço outro, onde era forçado a outrar-se, pensando, ilusoriamente, que lhe seria permitido o ingresso na cidade e a participação na nova cultura, o homem negro vai acumulando frustrações, ao mesmo tempo em que cresce nele a revolta pela marginalidade a que o votavam, acentuando-se a sua dramática divisão interior entre a fidelidade de pertencer ao mundo tradicional e a necessidade económica de ter de viver, segundo modelos civilizacionais aniquiladores daquele. Esta dramática divisão é, por certo, a responsável pela geografia física quase labiríntica desses «bairros de areia» povoados por gentes das mais diversas proveniências etnolinguísticas e com as mais diversas ocupações, desde o operário industrial ao empregado comercial, ao amanuense, aos domésticos, às lavadeiras, aos cozinheiros, etc. O labirinto, em que se vai transformando o espaço dessas «areias babélicas», como diz Luandino Vieira, pode ser interpretado como uma garantia para os seus habitantes de que nele seria possível preservar e cultuar os valores culturais que são basicamente os seus, uma vez que o europeu, o outro, habitante da cidade de asfalto, seria incapaz de descodificar tão complexa semiótica espacial e, por isso mesmo, de perturbá-la com os ataques que, inevitavelmente, lhe dirigiria.
Reduto da defesa de valores culturais e civilizacionais comuns, apesar das diferenças etnolinguísticas que nele coabitavam, o muceque interessa-nos literariamente numa tripla dimensão. Primeiro, como apêndice social colonial, onde se desenvolveu paulatinamente um proletariado que fecundou as sementes anti-coloniais que a própria colonização gerava em si. Segundo, como cadinho do português que servia naturalmente de língua de comunicação e que, usado por falantes de diferentes regiões etnolinguísticas, seria naturalmente sujeito a influências segmentais e suprassegmentais diversas que lhe moldaram a face característica da fala mucéquica, ponto de partida para o discurso verbal das literaturas africanas de expressão portuguesa. Terceiro, como instituição cultural e socioeconómica, fonte de inspiração para textos poéticos ou narrativos denunciadores do regime colonial de que o muceque era uma exemplar vítima, enquanto lugar de exílio ou de desterro para gentes despaganizadas em processo de distanciação dramática das suas origens civilizacionais.
Esta tripla dimensão do espaço urbano — muceque — está presente, desde as origens, nas literaturas africanas de expressão portuguesa que, como outras literaturas africanas em língua de colonização, são verdadeiramente um fenómeno do urbanismo, isto é, alimentam-se essencialmente das contradições e da dialéctica sociocultural geradas pelo advento da cidade à África. Aqui poderíamos ser levados a concluir que tais literaturas nada teriam a ver com a literatura negra tradicional que, como se sabe, tem as suas raízes na ruralidade, na Terra, o que lhe dá uma marca profundamente telúrica. Todavia, conscientes de que «la voie la plus courte vers l’avenir est toujours celle qui passe par l’approfondissement du passé» (cf. Césaire), alguns escritores sempre procuraram trazer para o ambiente urbano, ou urbanizante, dos seus textos essa Africa tradicional da qual o homem negro, despaganizado pela colonização, não conseguia, nem queria, libertar-se.
Até aos princípios dos anos 1940, porém, não existia ainda a oposiçào irredutível entre a cidade e o muceque. Apesar de tudo, enquanto o asfalto não chegou, ainda foi possivel um certo diálogo entre os dois espaços, como o atestam muitos textos africanos de expressão portuguesa, onde a infância é evocada como uma idade quase edénica que se vivia despreocupada das questões rácicas e sociais que o avanço avassalador do asfalto veio a criar. A infância é, sem dúvida, um dos temas que, nas literaturas africanas de expressão portuguesa, mais evidencia a sua origem urbana. Com efeito, quase todos os poetas e ficcionistas dessas literaturas glosam o binómio cidade-infância, como plataforma para uma escrita denunciativa e insubmissa. Outros exemplos poderiam ser citados, mas bastará recordarmos o título do primeiro livro de Luandino Vieira — A Cidade e a infância (1960) —, para verificarmos até que ponto é que esse binómio teve importância na emergência das literaturas africanas lusófonas. […]
Luanda é muito mais a Luanda dos muceques do que a Luanda do asfalto, que a crescente europeização tornava cada vez mais estrangeira aos filhos do país e àqueles que a adoptavam como mátria ou pátria de criação literária. É esse, aliás, o sentido da conhecida «Canção para Luanda», de Luandino Vieira:
A pergunta no arno marna boca de todos nós: — Luanda onde está?
Silêncio nas ruasSilêncio nas bocasSilêncio nos olhos
— Xé, mana Rosa peixeiraresponde?
— ManoNão pode respondertem de vendercorrer a cidadese quer comer! «Ola almoço, ola alrnoçoéématona calapauji ferrera ji ferrerééé»
— E você mana Maria quitandeiravendendo maboquesos seios-maboquegritandosaltandoos pés percorrendocaminhosde todos os dias?«maboque m’boquinha boadóce dócinha»
[…]
As casas antigaso barro vermelhoas nossas cantigastractor derrubou?
Meninos nas ruascaçambulasquigosasbrincadeiras minhas e tuasasfalto matou?
— ManosRosa peixeiraquitandeira Maria
você tambémZefa mulatados brincos de lata — Luanda onde está?
[…]
__________
Quitandeira: vendedora de frutas, hortaliças, aves, peixes, etc.Maboque: fruto de casca dura, verde, comido simples ou com açúcar.
Luandino Vieira lançou, assim, a interrogação da busca da cidade, aliada da infância, que o urbanismo colonial fez desaparecer. A «fronteira do asfalto» e o tractor, símbolos da destruição desse espaço existencial compartilhado por brancos, negros e mestiços, geraram, portanto, o homem do muceque que, empurrado para a periferia geográfica e social da língua de dominação, vingar-se-ia dela, forçando-a a africanizar-se para dizer, através da literatura, a mensagem libertadora inspirada na tradição e apontada para a revolução. O escritor africano de expressão portuguesa, senhor desta nova fala que o urbanismo gerou nos muceques, conseguia, assim, ultrapassar, em parte, o exílio das suas personagens, através duma escrita que virava contra o colonizador a sua própria língua. […]
Parece-nos bem que a «tortura», a que o muceque submeteu a língua de empréstimo, modelando-a até limites expressivos, por vezes, impensáveis, neutraliza perfeitamente o exílio em que nasceu a escrita da moderna literatura africana de expressão portuguesa. O urbanismo colonial provocou, de facto, o exílio ao homem negro, despaganizando-o e afastando-o das suas raízes culturais e civilizacionais, mas, ao mesmo tempo e em atitude, por assim dizer, suicida, criou-lhe as condições para prometeicamente se vingar dele, por meio duma genuína expressão literária que não encontra paralelo em nenhuma das outras literaturas africanas em língua de colonização.
Salvato Trigo, 1984Ensaios de Literatura Comparada (Afro-Luso-Brasileira), Lisboa, Vega, s/d, pp. 53-60
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6. PRECURSORES DAS LITERATURAS AFRICANAS
Aparecidos em duas épocas distantes, e portadores de experiências diferentes, Costa Alegre, originário de S. Tomé, e Rui de Noronha, de Moçambique, podem ser considerados como os precursores da literatura africana de expressão portuguesa, no domínio poético.
A obra de Costa Alegre, vinda a lume em 1916, foi inteiramente escrita em Portugal, por voltas de 1880. O arquipélago de S. Tomé encontrava-se na fase decisiva de mutação das suas estruturas sociais, em que a iniciativa da direcção económica e o controle das riquezas agrícolas eram intensamente disputados pelos colonos aos «filhos da terra». A poesia de Costa Alegre não regista nenhum eco dessa tensão e não faz nenhuma menção precisa à conjuntura insular. Ela reflecte uma forma de tomada de consciência da condição do negro ferido na sua cor. Atingido no mais íntimo do seu ser pelas humilhações que sofreu num meio social que lhe era hostil, dilacerado pelo isolamento e por decepções amorosas, Costa Alegre refugia-se num universo de autocondenação racial.
Tu tens horror de mim, bem sei, Aurora,Tu és o dia, eu sou a noite espessa,Onde eu acabo é que o teu ser começa.
Não amas!... flor, que esta minha alma adora.
És a luz, eu a sombra pavorosa,Eu sou a tua antítese frisante,Mas não estranhes que te aspire formosa,Do carvão sai o brilho do diamante.
(Costa Alegre, «Aurora», in Versos, 1946, p.26)
Rui de Noronha exprime timidamente, nos anos trinta, os conflitos suscitados pela sociedade em que se desenrolou a sua existência. Sensível ao espectáculo da opressão, mas isolado na sua démarche, prisioneiro do seu misticismo, o poeta viveu o drama da sua impossível realização, em tanto que assimilado.
Traduz em tom brando de lamentação contemplativa a dor que lhe causava a vida das massas africanas, mas professa claramente a resignação. Rui da Noronha apela, à sua maneira, para a libertação africana, como testemunha o seu soneto «Surge et ambula»:
Dormes! e o mundo marcha, ó pátria do mistério.Dormes! e o mundo rola, o mundo vai seguindo…O progresso caminha ao alto de um hemisférioE tu dormes no outro o sono teu infindo...
[…]
Desperta. Já no alto adejam negros corvosAnsiosos de cair e de beber aos sorvosTeu sangue ainda quente, em carne de sonâmbula...
Desperta. O teu dormir já foi mais que terreno...Ouve a voz do Progresso, este outro NazarenoQue a mão te estende e diz: — Africa, surge et ambula!
Rui de Noronha esteve, contudo, longe de lançar as bases de uma completa identificação com o seu povo.
Mário de Andrade, Antologia temática de poesia Africana 1, Lisboa, Sá da Costa, 1976, pp.3-4
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7. MOVIMENTOS POLÍTICO-CULTURAIS DO PRINCÍPIO DO SÉCULO XX E SUA IMPORTÂNCIA PARA O DESENVOLVIMENTO DAS LITERATURAS AFRICANAS.
7.1. DOS RENASCIMENTOS NEGROS À NEGRITUDE
A Négritude lançou as suas raízes até aos movimentos culturais protagonizados por negros, brancos e mestiços que, desde as décadas de 1910, 20 e 30, vinham pugnando por um Renascimento Negro (busca e revalorização das raízes culturais africanas, crioulas e populares) principalmente em três países das Américas, Haiti, Cuba e Estados Unidos da América, mas também um pouco por todo o lado.
A ideia de Renascimento, Indigenismo e Negrismo surge nas Américas, principalmente nos Estados Unidos da América e nas Caraíbas, como consequência das Luzes e do Romantismo que levaram à abolição da escravatura, à assunção romântica do Volksgeist [o sentimento e o espírito do povo], à identificação da real composição do mosaico cultural de raiz popular e, logo, nacional, e, finalmente, à possibilidade de, após a Revolução Francesa, os povos supostamente
poderem assumir a liberdade e a igualdade e se poderem pronunciar (ganhar voz) na ocorrência dos movimentos de independência ou do reconhecimento desta como alvará de igualdade cultural e social de todos os grupos sociais. Tal como no Renascimento europeu, os três conceitos e tipos de movimento político, cultural e literário implicam uma comum ideia de reconhecimento e revalorização do passado próprio de cada povo, este, no contexto específico das Américas, no sentido de grupo etno-social, ou seja, do negro e do indígena (este mesmo podendo ser o negro, na ausência de outro originário). De fora fica o branco, por ser considerado exactamente o causador da repressão, também cultural, que se abate sobre os outros dois, sem excluir a participação daqueles brancos que assumem como suas, mais nuns casos do que noutros, por mais ou menos tempo, as culturas deles.
O termo Négritude aparece no longo poema «Cahier d’un retour au pays natal», de Aimé Césaire, poeta da Martinica, que foi publicado na revista Volontés, 10 (1939). A palavra passou a nomear o movimento que se desenrolava por toda a década de 1930, nomeadamente em Paris, cadinho de estudantes, intelectuais e políticos que marcaram profundamente a vida política e cultural do mundo negro. […]
Social e ideologicamente, a Négritude constituiu-se como o processo de busca de identidade, de conduta desalienatória e da defesa do património e do humanismo dos povos negros. Recusou a assimilação a modelos externos à história negro-africana, embora consciente dos contributos aculturativos, sobretudo nas cidades. A Négritude pretendia a criação de um estilo próprio, no desejo de se demarcar dos modelos e motivos históricos das literaturas ocidentais.
A poesia da Negritude distingue-se da restante literatura africana de língua portuguesa pelo obsessivo tratamento da raça e da cor negras, qualificando-as com valores reais e simbólicos, reagindo, desse modo, ao racismo branco: «o sangue negro, o sangue bárbaro» (Noémia de Sousa). Os triunfadores e mestres negros da diáspora e do próprio continente africano são aclamados como paradigmas exemplares a seguir pelos iniciados: Joe Louis, Jesse Owens (respectivamente, pugilista e atleta norte-americanos), Louis Armstrong (jazzman norte-americano), Césaire (negritudinista da Martinica), Toussaint Louverture (revolucionário haitiano oitocentista). Langston Hughes, Claude Mckay (líderes literários do renascimento negro norte-americano), Chaka (chefe guerreiro zulu), Nzinga (rainha jaga que lutou contra os portugueses no início da colonização), Senghor (um dos autores da Négritude).
Nega-se, dessa forma, não o valor das culturas europeias (ou quaisquer outras), mas a sua dominação sobre as culturas africanas, pelo poder imperial e colonial. Chega-se assim à recusa textual da «música fútil/das valsas de Strauss» (Noémia de Sousa), afirmando ironicamente: «cresçam sinfonias de Beethoven/e poemas que o amigo Mussunda não entende» (Agostinho Neto).
A África, o negro e a Mãe-Negra (Mãe-África ou Mãe-Terra) ocupam nos textos um lugar de destaque, como referências, alusões ou temas, numa declaração humanística de povos até aí apresentados e representados (na literatura colonial) como destituídos de história, cultura e mesmo de sentimentos. Segundo a análise de Sartre, no prefácio à Anthologie de la nouvelle poésie nègre et malgache (1948), de Senghor, dá-se a
revalorização (e a sobrevalorização) das culturas e modos de vida ancestrais (tribais, clânicos), com o culto dos antepassados, o animismo e a respectiva animização retórica da natureza, o pan-sexualismo vitalista, a visão eufórica e ufanista das relações sociais e familiares nas tribos e no mundo rural e natural. Ou seja, opõe-se ao mundo tecnológico e racionalista dos europeus o mundo natural e sensitivo dos africanos, num posicionamento que receberia críticas devastadoras dos homens empenhados na abertura de África ao mundo moderno, através de revoluções socialistas.
Pires Laranjeira, Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa (vol. 64), Lisboa, Universidade Aberta, 1995, pp. 28-29
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7.2. LITERATURAS EMERGENTES: NACIONALISMOS E IDENTIDADE
Entre 1880 e os fins do século passado, num clima de acesas lutas políticas, sucederam-se duas gerações que marcaram a vida intelectual de Angola, particularmente dominada pelo jornalismo. Aproveitando as possibilidades de expressão abertas pela lei portuguesa sobre a liberdade de imprensa, aplicada efectivamente durante um certo período na colónia, os angolanos lançaram jornais e revistas literários. […]
Fundada em Março de 1936, a revista Claridade, primeira manifestação intelectual de conjunto da elite crioula, significou uma viragem no movimento literário de Cabo Verde. Segundo os seus mais ilustres representantes, Jorge Barbosa, Baltasar Lopes (aliás Osvaldo Alcântara) e Manuel Lopes, a preocupação essencial residia na análise do processo de formação social do arquipélago e no estudo das suas raízes. […]
Os escritores do movimento Claridade, condicionados pela sua formação ideológica, adoptaram um ângulo de visão de «classe» para abarcar o universo insular. Não se atacaram ao fundamento dos dramas da terra (a seca, a fome e a emigração) e muito menos perspectivaram a superação das atitudes resignadamente contemplativas. A sua poesia, dominada pelo tema da evasão, afastou-se do inquérito aos sentimentos populares. Como produto esteticamente acabado do elitismo, ela passou ao lado do clamor das massas das ilhas.
Ao examinarem o processus de aculturação em Cabo Verde, os animadores de Claridade e outros autores afirmaram que as contribuições da cultura africana tendiam a reduzir-se ao nível de sobrevivências ou a diluir-se em função do grau de instrução e de urbanização do meio, enquanto os valores europeus, possuidores de uma maior capacidade de resistência, se impunham e se generalizavam. […]
A evolução dos acontecimentos iria demonstrar como as ilhas encontraram a sua verdade histórica, através da unidade operada na luta solidária do guineenses e de cabo-verdianos, pela libertação nacional.
Foi na linha deste pensamento que a nova geração cabo-verdiana, após o severo julgamento dos Claridosos, estabeleceu a ponte de ligação com os movimentos culturais que surgiriam em Angola e em Moçambique. […]
Vamos descobrir Angola — tal foi, nesta perspectiva, a palavra de ordem lançada em Luanda, em1948, por um grupo de estudantes e de jovens intelectuais. Coube a Viriato da Cruz o mérito da sua formulação teórica e estética:
«O movimento», escreveu ele mais tarde, «deveria retomar, mas sobretudo com outros métodos, o espírito combativo dos escritores africanos dos fins do século XIX e dos princípios do actual. Esse movimento combatia o respeito exagerado pelos valores culturais do Ocidente (muitos dos quais caducos); incitava os jovens a redescobrir Angola em todos os seus aspectos através dum trabalho colectivo e organizado; exortava a produzir-se para o povo; solicitava o estudo das modernas correntes culturais estrangeiras, mas com o fim de repensar e nacionalizar as suas criações positivas e válidas; exigia a expressão dos interesses populares e da autêntica natureza africana, mas sem que se fizesse nenhuma concessão à sede de exotismo colonialista. Tudo deveria basear-se no senso estético, na inteligência, na vontade e na razão africanas.» […]
Tomada no seu conjunto, a evolução da moderna poesia africana de escrita portuguesa e crioula comporta três fases essenciais: a primeira, a da negritude, entendida como negação da assimilação ou, para utilizar a expressão de Aimé Césaire, como «postulação irritada e impaciente de fraternidade».
A Ilha de Nome Santo, de Francisco José Tenreiro (colecção «Novo Cancioneiro», vol. 9, Coimbra, 1949), marca o ponto de partida. O poeta procura ligar, primordialmente, a sua condição de homem insular ao mundo dos oprimidos, e revaloriza o património cultural negro-africano. É uma voz solitária, então no exílio, que se levanta para cantar S. Tomé e exaltar a negritude em língua portuguesa:
Quando cantas nos cabarésfazendo brilhar o marfim da tua bocaé a África que está chegando!
Quando nas Olimpíadascorres velozé a África que está chegando!
Segue em frenteirmão!Que a tua músicaseja o rumo de uma conquista!E que o teu ritmoseja a cadência de uma vida nova!…para que a tua gargalhadade novo venha estraçalhar os arescomo gritos agudos de azagaia!
[…] A segunda fase, suscitada pelo alargamento e ultrapassagem da negritude, é o momento da particularização. Os poemas precisam os contornos nacionais e incidem mais profundamente no real social. A criação literária vai ritmando o desenvolvimento da consciência nacional, quando se esboça a estrutura dos movimentos políticos. De 1953 a 1960, aproximadamente, a poesia apreende a trama dos acontecimentos que caracterizam as, mutações na sociedade colonizadora. Daí a actualização da sua temática.
O próprio enraizamento dos poetas no chão nacional determina a convergência de temas e a unidade de tom. De todas as colónias erguem-se vozes de denúncia: poetas cabo-verdianos asfixiam o desespero de querer partir / e ter que ficar, vinculando-se definitivamente aos diversos níveis das realidades africanas, Alda do Espírito Santo exige justiça para os carrascos da sua terra.
E quando os povos de Angola, da Guiné e de Moçambique retomam pela via armada a iniciativa histórica que modela o seu devir nacional, entramos na terceira fase desta poesia: as balas começam a florir, dirá Jorge Rebelo.
Mário de Andrade, Antologia temática de poesia Africana 1, Lisboa, Sá da Costa, 1976, pp. 4-10.
“As balas começam a florir.”Jorge Rebelo, Moçambique, 1940
GUERRA DE LIBERTAÇÃO NACIONAL
O soldado africano é apresentado como um herói libertador, confiante no futuro.
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8. LINHAS DE AFIRMAÇÃO DA POESIA AFRICANA
Algumas linhas de afirmação desta poesia devem ser destacadas.
1. Há uma evidente proximidade entre a cultura africana escrita e a cultura europeia, proximidade esta bem saliente no domínio da literatura.
No caso da poesia de Cabo Verde são evidentes as afinidades com a poesia lírica portuguesa, nomeadamente nos modos como nela se exprime o sentimento de insularidade. Este facto, efeito de aculturação, visível não apenas na poesia daquelas ilhas deve-se, contudo, à difusão da cultura europeia, através dos liceus que, a partir do princípio e de meados do século, começaram a ser implantados nos pólos urbanos por toda a África.
A própria consciência de nação, que vemos ser afirmada nesta poesia, origina-se no impacto do sistema de escrita ocidental sobre uma cultura oral de origem tribal.
2. Vários movimentos e iniciativas culturais empenhados na afirmação da cultura negra — não apenas africana — têm origem em centros urbanos europeus e norte-americanos. É o caso das iniciativas em torno da Casa dos Estudantes do Império sediada em Lisboa, do movimento designado por Negritude, centrado em Paris e apoiado por intelectuais europeus, como Sartre, do movimento Black Renaissance surgido em Harlem.
Estes movimentos são responsáveis por algumas linhas de sentido evidentes nestes poetas:
2.1. a intenção de denúncia da condição do negro na relação com o homem branco;
2.2. a afirmação de uma identidade própria da poesia negra, nalguns casos, especificamente expressão do homem africano e com ele do próprio continente.
A propósito do último aspecto apontado, é de notar a frequente referência a uma realidade telúrica cuja estranheza para o homem europeu (claramente o interlocutor privilegiado desta afirmação) se manifestará no léxico, sobretudo o relativo a nomes comuns. — e este aspecto é da maior importância na poesia de Craveirinha — e em múltiplas descrições, como, por exemplo, a que tem por objecto os rios de Moçambique, comparados com os grandes rios europeus, no poema Hidrografia de Alfredo Margarido.
No poema Deixa passar o meu povo da poeta moçambicana Noémia de Sousa, já não é o exotismo dos nomes que desencadeia a presença de uma realidade, mas uma frase emblemática. “let my people go” capaz de convocar a riqueza de um cultura inseparável da condição de negro por esse mundo fora, da sua história e das mitologias dessa história.
Valerá a pena chamar a atenção para:
— a atmosfera em torno de uma exaltação de insónia: a noite africana, as ondas da rádio, veículo do refrão “let my people...” (frase emblemática do movimento Black Renaissance), estabelecendo uma corrente com as ondas nervosas: “Nervosamente sento-me à mesa e escrevo [...] E já não sou mais que instrumento […]";
— a importância simbólica do aparelho de rádio trazendo para o interior da noite africana a música negra de outro continente: “Todos se vêm debruçar sobre o meu ombro / enquanto escrevo noite adiante / com Marian e Robeson vigiando pelo olho luminoso do rádio / [...] / E enquanto me vierem de Harlem / vozes de lamentação / [...] / Escreverei, escreverei, / com Robeson e Marian gritando comigo: / “Let my people go” / [...]“.
(Procure o CD Jazz Heritage Séries, vol. 1, Louis Armstrong, Louis and The Good Book, ed. M.C.A., 1983. A canção 3, intitulada “Go Down Moses” (espiritual negro) tem como refrão, constantemente repetido, essa mesma frase, “let my people go”. Esta canção data do tempo da escravatura.)
Cadernos de Literatura 10º Ano. Livro do Professor, Cristina Duarte, Amadora, Raiz Editora, [1993], pp.76-77
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9. FORMAÇÃO E DESENVOLVIMENTO DAS LITERATURAS AFRICANAS DE LÍNGUA PORTUGUESA
UM SÉCULO DECISIVO
Temos o privilégio de assistir à formação e desenvolvimento das literaturas africanas de língua portuguesa, em mais de um século de escrita e de publicação. É com carinho e alegria que se contabilizam todos os escritos e autores e se desenvencilham diacronias e influências. Estamos possuídos pela ilusão de que, por tudo estar tão perto e ser tão pouco, se torna fácil compreender e classificar para, ainda mais facilmente, teorizar. Convém recordar, todavia, que, até tornar-se um sistema nacional, uma literatura passa por fases de hesitação e de indefinição. As literaturas africanas dos Cinco são escritas em português, língua de colonização, não existindo tradição de escrita nas línguas africanas.
O primeiro prelo seguiu para Angola em 1849. Um ano depois saiu o Boletim Oficial, incluindo já incipientes textos literários como era de uso na época. Cerca de trinta anos mais tarde, verifica-se o surto da imprensa livre angolana, na qual ensaiaram experiências literárias e terçaram armas pela democracia, republicana intelectuais africanos o portugueses. Literatura e jornalismo conviviam, no século XIX, a ponto de se influenciarem mutuamente. A crónica e o panfleto de cariz doutrinário e político faziam género. O folhetim narrativo agradava na colónia e obrigava à reedição na imprensa da metrópole colonizadora.
Africanos, portugueses e brasileiros publicavam nos espaços comuns dos almanaques, boletins, jornais, revistas a folhetos. Não tinham surgido ainda as designações de literatura angolana, moçambicana ou são-tomense com carácter de sistema nacional, mas a escrita já deixara de ser espaço de europeidade absoluta para se tornar contaminação relativa de línguas. De facto, poetas portugueses o angolanos intercalavam no texto em português, mais extenso, frases, diálogos, versos, lexemas em língua banta (quase que exclusivamente o quimbundo). A integração é perfeita, na coerência do sentido e da sonoridade e na coesão dos segmentos e ritmos. Poemas há soando aos ouvidos como se produzidos numa só língua natural.
O trabalho literário unifica as línguas, como que galvanoptastizando a substância da expressão. Tal efeito de produtividade só é possível numa poetogénese conseguida à custa da integração antropocultural do intelectual português, ou seja, e para utilizar uma curiosíssima palavra do vocabulário colonialista, à custa da sua cafrealização. Foi o que aconteceu com o português Alfredo Troni, escritor, jornalista e advogado de filiação socialista proudhoniana e republicana, desterrado para Luanda, onde desenvolveu profícua e incalculável agitação cultural e cívica. Por seu turno, intelectuais africanos como Cordeiro da Mata empenharam-se em trabalhos de pesquisa linguística, sociológica e etnográfica que favoreceram uma atmosfera de aprofundamento do saber sobre as realidades africanas, contribuindo para que a literatura pudesse perder, a pouco e pouco, o lastro negativo do exotismo e do ultra-romantismo serôdio.
Em todos os poetas do século XIX, mantém-se a rima final e, em, grande percentagem, a medida da redondilha maior, características tradicionais de muita poesia popular europeia. Sabemos como esse tipo de procedimento literário não procede da tradição popular africana. Só muito mais tarde, já na década de 30, é que a geração da Claridade caboverdiana abandona esses princípios poéticos, enfileirando no cultivo do verso livre, aproveitando a lição dos modernismos português e brasileiro. Mas os escritores caboverdianos, nessa altura, não reivindicavam propriamente uma especificidade africana, se bem que fosse inequívoco o seu sentido da caboverdianidade, da literatura enquanto sistema de comunicação com poder autonómico face à situação política e jurídica do arquipélago.
Depois de terem prestado homenagem à tradição literária portuguesa, de Camões ao parnasianismo, os escritores africanos, no segundo quartel do século XX, trocam de paradigma, inspirando-se nos brasileiros e norte-americanos A introdução do ensino laico nas colónias e a vinda de estudantes para Portugal incrementaram notavelmente uma nova mentalidade cultural sustentada por ideologias como o socialismo anarquista, o republicanismo, o proudhonismo e, mais tarde, o pan-africanismo. Nas colónias, a intervenção maçónica de exilados e desterrados portugueses foi decisiva no movimento operário, com repercussões na intelectualidade, como em Moçambique. A literatura ganha corpo nacional consoante vai trocando o corpo da negra e da mestiça pelos do contratado e do branco, expondo-lhes as alienações e as misérias humanas. Se tomarmos a narrativa angolana como sintoma dessa evolução progressiva e progressista, verificamos que o espaço físico e social progridem no mapa humano e geográfico à medida que se consuma a diacronia: a narrativa Nga Mutúri, de Alfredo Troni, tem como cenário principal uma Luanda permissiva e condescendente, onde se cruzam personagens típicas de todas as profissões e escalões sociais, nomeadamente o sector terciário; o romance de António de Assis Júnior O Segredo da Morta desenrola-se entra costa marítima e uma faixa interiorana que não ultrapassará os trezentos quilómetros, com percursos fluviais e terrestres, carregadores e comerciantes, episódios rocambolescos e frases em quimbundo; a acção da trilogia de Castro Soromenho (Viragem, Terra Morta e A Chaga) passa-se no interior de Angola e novas personagens afluem à narrativa angolana: chefes tribais, funcionários administrativos, exrevolucionários retraídos, comerciantes do mato, cipaios, etc.
Quando os poetas caboverdianos dispensam as alusões clássicas greco-latinas ou renascentistas (em que era pródigo um José Lopes) e assumem a modernidade discursiva e textual, configurando efeitos de referencialidade que passam pela concreticidade da denúncia frontal ou velada da exploração, opressão e repressão do sistema colonial, a literatura deixa de poder integrar pacificamente as antologias e histórias da literatura portuguesa. Marcada por transparentes desejos de emancipação, liberdade, autodeterminação e independência, a literatura africana, em geral, fala-nos de conflitos sociais, do estatuto do colonizado, de guerras (de guerrilhas) e de revolução, ainda que, muitas vezes, sob o manto diáfano da criptografia.
Até 1942, ano em que Tenreiro publica a Ilha do Nome Santo, decorre aproximadamente um século, decisivo para a formação das literaturas africanas de
língua portuguesa. A escrita dessas literaturas denuncia as hesitações entre uma norma de raiz escolar europeia (lisboeta ou conimbricense) e um bilinguismo textual inusitado e causador de eleitos de estranheza no público acaciano. A intencionalidade de ruptura no circuito comunicativo preside à elaboração de alguns textos posteriores, como se pode ver nas primeiras edições de José Luandino Vieira, nas quais as epígrafes, em quimbundo, não eram traduzidas. Nos poetas do século XIX, o quimbundo é traduzido no próprio poema, como acontece, por exemplo, com Kicôla!, de Cordeiro da Mata. Nesse tempo havia condições propícias a tais práticas dialógicas, que a 1 Guerra Mundial alterou bruscamente, modificando a estratégia universal em relação às colónias.
Encerrado o ciclo da imprensa e da literatura livres de condicionalisrnos políticos, abriram-se as portas à literatura colonial, apoiada por organismos do Estado português. Uma torrente de prosa exótica sufocou a metrópole e ratificou o espírito tarzanístico. Os intelectuais africanos retiraram-se para as suas associações culturais ou políticas disfarçadas de recreativas e só muito esporadicamente criaram algo de novo, na tradição do século XIX. Foi necessário esperar por 1936, em Cabo Verde, 1942, em Portugal, e 1948, em Angola, para que as literaturas africanas de língua portuguesa não mais deixassem de ter sequência. Ao surto definitivo dessas literaturas não são alheios os acontecimentos políticos e militares de 1936 a 1945.
De facto, a partir daí, é notório o enfeudamento à linha realista, «engagé» e combatente, fartamente influenciada pelo afro-americanismo, o pan-negrismo, o pan-africanismo, a negritude e o neo-realismo. Mário Pinto de Andrade, integrando o moviemento Mensageiro, ainda esboçou uma escrita poética em quimbundo, que logo abandonou, na altura talvez para não atiçar ou ratificar tribalices. O poema resultante, junto com dois outros de Bernardo de Sousa e João-Maria Vilanova, é a excepção que confirma a regra da língua portuguesa.
A edificação das literaturas africanas de língua portuguesa acompanha a construção de um novo poder político, primeiro clandestino e, depois, triunfante. Os homens que escrevem são os mesmos que pensam e que politicam. E fazem-no em português, domesticando a língua em função das suas virtualidades e finalidades, criando literaturas nacionais numa língua internacional.
O século que vai de 1850 a 1950 foi decisivo para a formação dessas literaturas. Os últimos trinta e cinco anos têm sido decisivos para o seu desenvolvimento. Com o advento da luta armada, três tendências se esboçaram, vindo a concretizar-se em obras específicas: Iiteratura de combate (de e para a guerrilha), de «ghetto» (publicada, sob a forma críptica, nas próprias colónias) e de diáspora. Os casos de Pepetela, Manuel dos Santos Lima, João-Maria Vilanova, Costa Andrade, Jorge Rebelo e Sérgio Vieira ilustram a primeira tendência. O Jofre Rocha de Tempo de Ciclo, David Mestre com Crónica do Ghetto ou Corsino Fortes documentam a literatura de «ghetto», que tanto pode ser alusão ao beco (com ou sem saída) da grande cidade colonial, como metáfora do isolamento insular. A terceira tendência tem no Coração em África, de Tenreiro, ou no poema «Havemos de voltar», de Agostinho Neto, a confirmação de que a diáspora é saudosa mesmo das terras que pouco pisou (como
Tenreiro) e messiânica até à vitória final (como Agostinho Neto). Há também uma literatura rústica, de fundamentação etnológica, como no caso de A Konkhava de Fheti, de Henrique Abranches, ou de experiência pessoal, como em Uanhenga Xitu.
Os títulos da literatura caboverdiana elucidam-nos acerca do obsessivo terra-longismo, que Manuel Lopes caracterizou lapidarmente: «a saudade das terras que não conhece.» É o apelo da distância e do desconhecido, muito forte para quem vive e escreve nos chamados meios pequenos insulares: «Hora di bai» (poema de Eugénio Tavares) e Hora di Bai (livro de Manuel Ferreira): «Terra-Ionge», de Pedro Corsino Azevedo; Poemas de Longe, de António Nunes; Marinheiro em Terra, de Daniel Filipe; Linha do Horizonte, de Aguinaldo Fonseca; Cais Dever Partir, de Nuno Miranda; Caminhada, de Ovídio Martins; «Caminho longe», título de poemas de Ovídio Martins, Onésimo da Silveira, Gabriel Mariano e Terêncio Anahory e ainda de romance de Nuno Miranda; «Carmin lon» poema em crioulo interpretado por Bana; «Carta de longe» de Gabriel Mariano; Horizonte Aberto, livro de Sukre D’Sal; Viagem para Além da Fronteira, de Teobaldo Virgínio; Distância, também de Teobaldo Virgínio; Beija do Cais, ainda do mesmo autor. Finalmente, o percurso inverso, de retorno, em Cais-do-Sodré té Salamansa, de Orlanda Amarílis.
Apostrófica, exaltante, apologélica, virulenta, denunciadora, a literatura africana pode ser excessiva e grandiloquente como os poemas negritudinistas de Francisco José Tenreiro, reflexiva e serena como a Sagrada Esperança, de Agostinho Neto, barroca e neurótica como a ruptura discursiva e textual de Luandino Vieira, humorística e cínica como escárnio de João Pedro Grabato Dias. Contida, comedida, tranquila, expositiva, a literatura pode dar-se como fingimento extremo e simular o real por inteiro, como na máscara do Muana Puó, de Pepetela, burilar a palavra até à exaustão, para lhes extrair sugestões e alusões étnicas e oníricas, como em Angola Angolê Angolema, de Arlindo Barbeitos, conotações e ambivalências co-textuais, como em Monção, de Luís Carlos Patraquim. Enfim, a literatura africana pode vociferar «tuji, patrão», como no poema de João-Maria Vilanova, retomando as práticas bilinguistas de seus avós, ou render homenagem aos «grupos de patriotas portugueses/operando na Metrópole ou no estrangeiro – os do Socorro Vermelho/e os das Brigadas Revolucionárias, tal a nº 2,/que a base secreta da OTAN destruiu no Pinhal do Arneiro,/no lugar dito Fonte da Telha», como se pode ler no Primeiro Livro de Notcha, discurso V, do caboverdiano Timóteo Tio Tiofe.
As literaturas formam-se e desenvolvem-se como sistemas nacionais antes das independências políticas. Desde a publicação de Espontaneidades da Minha Alma, elas têm 136 anos de vida nem sempre activa. Desde a publicação de Nga Mutúri, passou pouco mais de um século. Somente meio século nos separa do primeiro número da revista Claridade. Do meio do século para cá, os poetas profetizaram a mudança: «veemente ressurreição!» (Osvaldo Osório); «veemente de ressurreição!» (Rolando Vera-Cruz); «nova gestação» (David Mestre); «sonhando co’a vida» (João-Maria Vilanova) «edificam novos tectos» (Cândido da Velha); «a alforria ansiada» (Jofre Rocha); Tempo do Ciclo (Jofre Rocha); «alvorecer de esperança» (Jofre Rocha); «exigindo novas vestes» (Álvaro Novais); Sagrada Esperança (Agostinho Neto); Vidas Novas (José Luandino Vieira); «nova Aurora» (Yolanda Morazzo); «llhas renascidas /
nuvens libertas» (Arménio Vieira); «gritarem de esperança» (Tomás Medeiros); «fomos nós o sonho» (Costa Andrade).
Cumpriu-se a alforria ansiada e já as literaturas africanas se defrontam com os novos poderes: Mayombe, de Pepetela, publica-se porque o Velho dá o seu consentimento contra ventos e marés; Os Anões e os Mendigos, do Manuel dos Santos Lima, a maior diatribe ficcional desde sempre, sai com a chancela de uma editora do Porto e o autor nunca recebeu resposta a pedidos de leitura do original que enviou a outras editoras e instituições, não só de Portugal; a pretexto de uma representação (gravosa para o Presidente angolano) da peça No Velho Ninguém Toca, o autor, Costa Andrade, esteve preso durante mais de um ano em Luanda. Isto só pode significar que as literaturas africanas estão mais vivas do que nunca, e os escritores, críticos como sempre. Não sei quando começou nem quando terminará o século decisivo das literaturas africanas de língua portuguesa, mas estamos a vivê-lo: une a paixão amorosa e a (pa)ciência do texto se conjuguem em verbos mais que perfeitos!
Pires Laranjeira, Literaturas Africanas de Língua Portuguesa, Lisboa, F. C. Gulbenkian,1987.
10. O PÓS-COLONIAL NA POESIA AFRICANA DE LÍNGUA PORTUGUESA
Inocência MataFaculdade de Letras, Universidade de Lisboa
Locha Mateso, o crítico congolês (do ex-Zaire, hoje República Democrática do Congo), refere, logo de início do seu livro La Littérature Africaine et sa Critique, de 1986,o facto de a atenção, nos estudos literários africanos, estar sobretudo centrada nos autores e suas obras, não havendo uma preocupação com a “recepção”, que constitui o outro pólo da comunicação literária. Se é verdade que hoje, quinze anos depois, a crítica de Locha Mateso talvez não tenha razão de ser, também é verdade que nos estudos literários africanos de língua portuguesa a preocupação com a história literária é recente – apesar de, ainda sem as aquisições das teorias da história literária, ser de elementar justiça citar os trabalhos de Manuel Ferreira, de Mário Pinto de Andrade e (embora apenas no âmbito angolano) de Carlos Ervedosa. Isto é, após um longo período de estudos de natureza sincrónica, de alcance vertical, a incidência da actividade da crítica tem-se virado para a natureza das metamorfoses das estratégias textuais que apontam tanto para um novo mapeamento do discurso ideológico e cultural dominante como para novas configurações estéticas que a dinâmica da História – vale dizer sobretudo, o pós-colonialismo – tem imposto e para o
desvelamento das suas suposições (suposições da História) a partir de outros “locais da cultura”. Portanto, um aspecto que remete tanto para as metamorfoses por que têm passado as formas que hoje canibalizam as próprias matrizes estéticas “da tradição” (digamos, “consagradas”, em vez de canónicas), ao mesmo tempo que propõe outro discurso, quanto para a (re)leitura como para a (re) escrita de temáticas já sublinhadas como ainda.
Estudos sobre o pós-colonialismo1 , sobretudo de tradição anglo-saxónica, ainda discutem o alcance desta idéia: alguns entendem-na como referente à situação em que vive(ra)m as sociedades que emergiram depois da implantação do sistema colonial, enquanto para outros o “pós” do significante “colonial” refere-se a sociedades que começam a agenciar a sua existência com o advento da independência. Nesta acepção, o pós-colonial pressupõe uma nova visão da sociedade que reflecte sobre a sua própria condição periférica, intentando adaptar-se à lógica de abertura de novos espaços, de que fala Kwame Anthony Appiah2 . E os significantes desses (novos) espaços apontam tanto para novas corporizações e legitimidades socioculturais como para um compromisso na adaptação da tradição às exigências de um mundo cujos mecanismos de regulação ultrapassam os limites dos sujeitos dessa tradição. Assim, pode pensar-se que uma das marcas desse gesto de abertura de novos espaços, portanto, da condição pós-colonial, é tanto a recusa das instituições e significações do colonialismo como das que saíram dos regimes do pós-independência. Exemplos significativos dessa recusa, sob o signo de uma consciência pós-colonial, encontramo-la em obras emblemáticas da literatura africana, como a do escritor costa-marfinense Amadou Kourouma, Les Soleils des Indépendences publicado em 1964, do nigeriano Chinua Achebe, A Man of the People, de 1966 (cuja tradução portuguesa, pela Editorial Caminho, é Um Homem Popular, 1988), do camaronês Mongo Beti com o seu romance Remember Ruben (também há tradução portuguesa) ou do maliano Yambo Ouologuem, autor de Le Devoir de Violence (1967).
Convencida de que, não obstante as diferenças – que decorrem de “variedades da pós-colonialidade africana” (R. Hamilton3) –, as literaturas africanas de língua portuguesa têm-nos oferecido configurações temáticas da pós-colonialidade que já vêm sendo actualizadas em outros espaços geo-poéticos. São algumas dessas marcas que pretendo trazer à consideração: é que elas me parecem motivadas pela sua condição pós-colonial sobretudo se comparadas com configurações similares do período colonial e o imediatamente pós-independência. Esse corpus de novas configurações – que vou designar como dimensões da pós-colonialidade – operadas no sistema literário dos Cinco revelam-se, quanto a mim, motivadas por uma consciência que evoluiu da sua condição nacionalista e sente agora necessidade de repensar o país que não mais se encontra em fase de nacionalização ou na condição de emergência mas sim do agenciamento da sua emancipação.
Por isso, tão amarga quanto a consciência anti-colonial nas literaturas africanas de língua portuguesa é também a consciência pós-colonial, na visão mais emblemática da perda inocência, e confrontada com o começo do tempo da distopia: através de situações que representam uma reedição dos objectivos e métodos do “antigo período”, colonial, pelo “novo período”, o do pós-independência, é posto a descoberto
o modo como este também participa na “larga história de crueldade em que o colonialismo é uma página a mais.”4
No entanto, apesar das similitudes, julgo que as literaturas africanas têm significadores que resultam em significações que fazem a(s) sua(s) singularidades(s). Uma dessas singularidades é a existência de uma intelligentsia, uma classe de letrados – chamemos-lhe elite intelectual, para simplificar – multirracial, feita de contribuições originárias de entidades que, simbolicamente, se antagonizavam. Como assinala Aníbal, de A Geração da Utopia, “uma elite intelectual de causar inveja a qualquer país africano. Elite citadina, transitando tranqüilamente da cultura européia para a africana, acasalando-as com sucesso, num processo que vinha de séculos”5 . A postura ideológica anti-colonial e nacionalista dessa elite, a reivindicação cultural e política que realizava, apenas simbolicamente antagonizava os significantes negro/branco. E isso ainda no período colonial. Vários escritos corroboram essa proposta de complementaridade e de coligação contra a dominação: ainda em 1942, Francisco José Tenreiro já revela no poema “Canção do Mestiço”6 um sujeito poético feito do negro e do branco que, manifestando-se na figura do sujeito da enunciação, está privilegiadamente posicionado na fronteira entre os dois mundos – isto é, na “fronteira do asfalto” (LUANDINO VIEIRA, A Cidade e a Infância, 1957) e aproxima os dois mundos: “Quando amo a branca/Sou branco/Quando amo a negra/Sou negro/ Pois é...”. Portanto a proposta, ou a possibilidade de complementaridade de opostos, ou de pseudo-divergentes, por ser recorrente, pode ler-se como uma componente da anti-colonialidade que se vai transformar num dos parâmetros da nossa expressão literária pós-colonial.
A demanda pós-colonial das literaturas africanas de língua portuguesa a que fiz referência anteriormente reporta-se, também, à imposição que ao escritor é feita de “consumir” os seus próprios “preconceitos”7. Esses pré-conceitos de que falo dizem respeito tanto a configurações anteriores, que enformam a “tradição literária africana” e a memória dela, como aos códigos estéticos do contexto no qual elas se afirmaram.
E, isto, remete-nos para a segunda demanda do pós-colonial que aponta para a reescrita e a repaginação da(s) identidade(s) cultural/ais, segundo estratégias que não apelam à ruptura, antes remetem para um processo de remitologização. A ideologia libertária, exclusivista por natureza e necessidade, revelava-se pouco dinâmica para responder aos desafios da modernidade: não é por acaso que Mayombe, um romance escrito ainda em 1971, durante o tempo da guerrilha, só tenha sido publicado em 1980, quando os sinais da utopia político-social já começavam a manifestar-se de forma evidente. Seguem-se Quem me dera ser onda (1982), de Manuel Rui, Os Anões e os Mendigos (1984), de Manuel Lima, O Cão e os Calus (1985) de Pepetela, em Angola; Vozes anoitecidas (1986) e Cronicando (1988), de Mia Couto, em Moçambique; O Eleito do Sol (***), de Arménio Vieira, em Cabo Verde; A Berlinização ou Partilha de África (1987), de Aíto Bonfim8 , em São Tomé e Príncipe. Vale a pena não esquecer que os escritores citados são autores de obras celebrativas, eufóricas e solares em termos de afirmação da identidade cultural e dever patriótico9 .
Tal como a literatura anti-colonial, na fase de emergência, existência, consolidação e individualização nacional, mobilizou estratégias contra o discurso que considerava a produção literária de África como “ultramarina” – para afirmar a diferença e reivindicar a pátria –, também a actual escrita africana mobiliza estratégias contra-discursivas que visam a deslegitimização dum projecto de nação monocolor pensado sob o signo da ideologia nacionalista. Para reescrever a visão uniformizante de pátria, em que Homem e Natureza se encontravam vinculados à Pátria, como acordes de uma mesma sinfonia, a nova literatura opta por representar a alteridade, celebrando as várias raças do homem; para reescrever a visão eufórica da História dos sujeitos africanos10, as exigências da consciência contrapõem agora uma contra-epopéia política e social que visa referenciar a transformação dos ideais agónicos. Mas, a particularidade dessa reescrita consiste não na invenção de um outro lugar totalmente outro, mas na proposta de uma deslocação dentro do mesmo lugar (Boaventura de Sousa Santos)11 , para nele agenciar tanto a catarse dos lugares coloniais como os tensões pós-coloniais, como em A Varanda do Frangipani (1996) que, deliberadamente, baralha lugares e tempos históricos para significar que a sua diferença, sendo de natureza (colonial/pós-colonial), é também de olhar: numa sociedade em que “já ninguém respeitava os velhos”, como amargamente considerava Salufo Tuco, Xidimingo, colono branco, encontrou nos outros velhos do asilo, negros, a verdadeira dimensão da solidariedade humana. Também romances como Mayombe, A Geração da Utopia (1992), Parábola do Cágado Velho (1996) ou Ventos do Apocalipse (1993), “metaficções historiográficas”, obras que buscam na História a sua própria existência simbólica, funcionam com uma lógica antiépica que acaba por referenciar os ideais agónicos da revolução e do nacionalismo, através do despertar de vozes e memórias que na utopia político-social não tinham lugar. Estamos, assim, perante um contra-discurso que intenta a mudança no contexto do discurso dominante (e no âmbito do que tenho vindo a considerar o discurso dominante é a “literatura consagrada” com nomes emblemáticos que todos conhecemos nas quatro literaturas)12 – gerindo as suas potencialidades e as suas limitações quanto a uma “renovação discursiva”.
Consoante a intenção dessa renovação, as estratégias contra-discursivas tomam formas diversas. Por exemplo, em Pepetela consistem no destecer das teias do logro e sombras da História – e nisso reside a originalidade da sua escrita. A inovação contida na obra romanesca de Pepetela reside no repovoamento da paisagem e na remitologização do espaço da utopia roída pelos descasos da revolução. Diferentemente do que acontece em Estação das Chuvas (1996), de José Eduardo Agualusa, ou no já citado Os Anões e os Mendigos, de Manuel dos Santos Lima, em Maio, Mês de Maria, de Boaventura Cardoso, e até alguns dos pequenos contos de Da Palma da Mão (1998), de Manuel Rui – nestas narrativas a morte do país anuncia-se irrevogável: “este país morreu”, diz uma das personagens de Estação das Chuvas – um pretérito que retira a possibilidade de revitalização, de qualquer restituição vital e, portanto, a impossibilidade liminar da utopia. Mas a corroborar a idéia de que “é a imperfeição do mundo que justifica a utopia, que a torna incontornável, inevitável”13 , a obra romanesca de Pepetela, mesmo aquela em que o desencanto é intenso como em A Geração da Utopia ou em O Desejo de Kianda (1995), contorna a distopia e antecipa um outro “desejo utópico” não se esgotando um pretérito sem remissão –
veja-se a reinício sugerido de A Geração da Utopia: não pode haver ponto final numa história que começa por “portanto”.
Outra marca importante da nossa pós-colonialidade literária tem a ver com o lugar e o modo como o escritor africano trabalha e se posiciona na língua portuguesa. Do passado para o presente, a escrita já não denuncia qualquer tensão na expressão da cultura e da vivência do falante, como em Mestre Tamoda (1974) de Uanhenga Xitu, cuja significação não se esgota na africanização da língua portuguesa mas passa também pela tematização do desfasamento entre a estruturação cultural da língua portuguesa e a expressão de uma vivência conduzida em lugares não harmoniosos de convivência de diferentes (o português e o kimbundu, a cidade e o campo, a letra e a voz). Mais do que a africanização do português, em Uanhenga Xitu o que é tematizado é a oraturização do sistema verbal português: ora, este é um processo que ultrapassa o código lingüístico e se expande por terrenos translinguísticos como a onomasiologia (a onomástica e a toponímia, sobretudo), a cenarização (o registo das vozes, a rítmica da dicção e a representação dos gestos) e a sugestão musical. Todos esses recursos de narração rubricam-lhe uma forma mimética e permitem identificar, na fala narrativa, a interacção entre a escrita e os textos não escritos incorporados na cultura local, que se dão a conhecer em português.
Diferentemente de Uanhenga Xitu, Luandino Vieira faz emergir as suas personagens de um contexto tendencialmente monolingue, regularmente escolarizado e de uma cultura urbana e, naturalmente, resultando de um processo transculturativo. A obra de Luandino, em Angola e na literatura africana de língua portuguesa, é expoente da invenção de uma linguagem literária através da qual comunicou mensagens subversivas – uma linguagem literária que emerge de uma linguagem “letrada” e recriativa, como a de João Vêncio ou de Lourentinho. Enquanto em Uanhenga Xitu a dimensão babélica é sugerida pela confrontação de identidades sociais e culturais, que as diferenças das expressões lingüísticas das personagens encenam – diferenças que remetem semanticamente para a dispersão e para a recusa de um código de comunicação totalitário –, em Luandino Vieira a reinvenção metalingüística é uma via de resistência e atributo de consciência perante a ambiência insuportável à volta: pressão interior e espiritual, opressão sociocultural e política. Por exemplo, em “Estória de Família (Dona Antónia de Sousa Neto)”, uma das três estórias de Lourentinho, Dona António de Sousa Neto & Eu (1981), Tomás aconselha o jovem Paulo a conhecer Assis – que este pensava tratar-se de um músico – pois “sem o Assis não haverá poesia angolana”.14
Se a linguagem literária de Luandino, de intenção anti-colonial e contra a desagregação identitária, indiciando um trabalho peculiar da língua, rubrica significadores de universos socioculturais e perfis éticos e ideológicos, em Mia Couto a língua, igual para todos, permite a singularização de cada uma das personagens, enquanto o léxico desempenha um papel determinante na construção da identidade colectiva e busca uma nova geografia lingüística, isto é, uma nova ideologia para pensar e dizer o país15 . Em tempo pós-colonial, em Mia Couto a ludicidade não é o resultado de um “simples” acto gozoso, embora se sobreponha ao empenhamento político-ideológico sem, contudo, o rasurar pois que as falas do narrador e das
personagens são rubricadas com atributos da representação dialógica do saber da letra e da voz, apesar da função do prazer. A corroborar essa leitura da artesania reinventiva do verbo, o próprio Mia Couto confessa o seu fascínio pelas histórias que resulta da necessidade absoluta de brincar16 –- ele que afirma, em outra ocasião, a vantagem de ser conhecedor materno da língua.17
Sendo uma das marcas das culturas pós-coloniais a sua hibridez, resultado de uma situação de semiose cultural ou de relação dialéctica entre matrizes civilizacionais diversas, nunca antes como em Mia Couto a expressão literária revela a sua mestiça existência e vivência, do seu criador e suas criaturas: mestiços de cultura, de espaços, de saberes e de sabores. Esse trabalho consiste num processo de recriação de desenredos verbais a que se segue a incorporação de saberes não apenas lingüísticos mas, também, de vozes tradicionais, do saber gnómico que o autor vai recolhendo e assimilando nas margens da nação – o campo, o mundo rural – para revitalizar a nação que se tem manifestado apenas pelo saber da letra. Essa revitalização segue pela via da levedação em português de signos multiculturais transpostos para a fala narrativa em labirintos idiomáticos como forma de resistência ao aniquilamento da memória e da tradição.
Se em Uanhenga Xitu e Luandino Vieira se pode falar da maldição de Babel – porque as personagens canibalizam os significantes do confronto com o saber cultural (Uanhenga Xitu) ou intelectual (Luandino Vieira) –, Mia Couto celebra a pluralidade em pulsações e formulações translinguísticas e desenredos de expressões idiomáticas e proverbiais através de uma prolífera reinvenção do significante e do significado, uma inventividade mais do que de uma língua, de expressão, portanto, de linguagem. Metalinguisticamente, a filosofia que se pode induzir dessa escrita (de Mia Couto) é o princípio segundo o qual a medida da vitalidade de uma entidade lingüística (seja o próprio sistema seja apenas a estrutura lexical ou uma palavra) é a freqüência da sua prática. Assim, pela recorrência a um determinado léxico que aponta para o sonho, o sono, o ar, a água as fronteiras do dito e do estatuído são esbatidas e a atmosfera de integridade do Ser alarga as margens da imaginação, transpondo as fronteiras do interdito social e da “conveniência” político-ideológica (no caso de O Último Vôo do Flamingo) e recorrendo à cultura para a reconversão do absurdo.
Aliás, o absurdo é a minha última paragem. Pois, outra marca dessa transformação literária nos sistemas africanos dos países de língua portuguesa, que leio como uma componente da sua (nossa) pós-colonialidade, é o recurso ao insólito, ao absurdo, ao fantástico como estratégia de enfrentamento do real: de Mia Couto, que utiliza essas representações do fantástico com recorrência a Sousa Jamba de Confissão Tropical (1995); A Lonely Devil, (1994), ainda de Sousa Jamba, de Maio, Mês de Maria (1997), de Boaventura Cardoso ou, antes, de A Morte do Velho Kipacaça (1989) a O Desejo de Kianda, de Pepetela, ou a Mistida (1997) do guineense Abdulai Sila, e a O Sétimo Juramento (2000), de Paulina Chiziane, o insólito surge como a lógica possível de uma realidade que, de tão absurda, carece de explicação a partir do real. Através de construções simbólicas, alegóricas e insólitas intenta-se recuperar o sentido da realidade, como em Terra Sonâmbula em que o percurso de Tuahir e de Muidinga/Kindzu é o do despertar da terra sonambulante; ou em O Desejo de Kianda,
em que a explicação para a queda dos prédios – registro cronístico que é metáfora de uma realidade sócio-política, cultural e ética apocalíptica – só se encontra no registro lendário do cântico de Kianda, o espírito das águas, que se revolta redesenhando uma nova geografia, a primitiva, propondo a possibilidade de um novo começo.
As literaturas africanas de língua portuguesa participam da tendência – quase um projecto – de investigar a apreensão e a tematização do espaço colonial e pós-colonial e regenerar-se a partir dessa originária e contínua representação. Os significadores desse processo, que constituem a singularidade da nossa pós-colonialidade literária, são potencialmente produtivos: sinteticamente dizem respeito a uma identidade nacional como uma construção a partir de negociações de sentidos de identidades regionais e segmentais e de compromisso de alteridades. O que as literaturas africanas intentam propor nestes tempos pós-coloniais é que as identidades (nacionais, regionais, culturais, ideológicas, sócio-econômicas, estéticas) gerar-se-ão da capacidade de aceitar as diferenças.
biblioteca.clacso.edu.ar/ar/libros/aladaa/mata.rtf
Notas Bibliográficas:
* Texto apresentado no X Congresso Internacional da ALADAA (Associação Latino- Americana de Estudos de Ásia e África) sobre CULTURA, PODER E TECNOLOGIA: África e Ásia face à Globalização – Universidade Cândido Mendes, Rio de Janeiro – 26 a 29 de outubro de 2000.
Este texto retoma, em versão muito resumida, algumas ideias da conferência proferida no dia 2 de junho de 2000 no Encontro Internacional “A língua portuguesa no virar do milénio – Encontro com José Saramago” – Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1 e 2 de junho de 2000.
1 Ideia que não deve confundir-se com pós-independência – embora esta seja a antecâmara daquela.
2 KWAME ANTHONY APPIAH, “Is the Post- in Postmodernism the Post- in Postcolonial?”. PADMINI MONGIA (ed.), Contemporary Postcolonial Theory – a Reader, London, Arnold, 1996. p.63.
3 RUSSEL HAMILTON, “A literatura nos PALOP e a teoria pós-colonial”. Revista Via Atlântica – Publicação da Área de Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa, nº 3 , São Paulo, 1999. p. 15.
4 Apud VERONICA PEREYRA & LUIS MARÍA MORA, Literaturas africanas – de las sombras a la luz, Madrid, Editorial “Mundo Negro”, 1998. P. 118.
5 PEPETELA, A Geração da Utopia, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1992. p. 305.
6 FRANCISCO JOSÉ TENREIRO, Ilha de Nome Santo, Coimbra, Colecção Novo Cancioneiro, 1942.
7 Biases, na expressão de Wilson Harris. Apud HELEN TIFFIN, “Post-Colonial Literatures and Counter-discourse”. BILL ASHCROFT, GARETH GRIFFITHS & HELEN TIFFIN (ed), The Post-Colonial Studies Reader, London, Routledge, 1995. p. 96.
8 Escritor são-tomense (poeta e dramaturgo) que se tem distinguido sobretudo na prática dramática: em 1995 publicou O Golpe – Uma Autópsia e é autor de A Invasão, também peça de teatro que ganhou em 1992 o Concurso “Vozes das Ilhas” e que não está publicada.
9 Cito algumas: As Sementes da Liberdade (1965), As Lágrimas e o Vento (1975), no caso de Manuel Lima; como, para Pepetela, As Aventuras de Ngunga (1972) e Muana Puó (1978), sem esquecer a politicamente oportuna peça de teatro A Corda (1978); Regresso Adiado (1974) Sim, Camarada! (1977), sem esquecer os seus creio que oito 11 Poemas em Novembro (pelo menos até 1988) – mesmo os mais novos, como Mia Couto e Aíto Bonfim (ambos nascidos em 1955), respectivamente, com os
primeiros poemas de Raiz do Orvalho (1983) e poemas dispersos antes em A Palavra é Lume Aceso (1980) e Poemas que, embora publicados em 1992, já circulavam dispersos antes do primeiro livro do autor.
10 Cito os poemas narrativos da literatura de combate e as narrativas de contaminação épica sobre Luanda, e as mais épicas como A Vida Verdadeira de Domingos Xavier (1974), Capitão Ambrósio (1975) ou “Os Flagelados do Vento de Leste”, Caminhada (1962).
11 BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS, Pela Mão de Alice – o Social e o Político na Pós-Modernidade, Porto, Edições Afrontamento, 3ª ed., 1994, p. 279-280.
12 O caso da Guiné-Bissau é um pouco diferente, mas esta questão não cabe agora no âmbito das minhas reflexões. Cf. INOCÊNCIA MATA, “Guiné-Bissau”. PIRES LARANJEIRA (Org.), Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa, Lisboa, Universidade Aberta, 1995.
13 EDUARDO PRADO COELHO, “A utopia num mundo imperfeito”. Jornal do Brasil. 19 de agosto de 1990. p. 4.
14 LUANDINO VIEIRA, Lourentinho, Dona Antónia de Sousa Neto & Eu, Luanda, UEA/Edições 70, 1981. Leia-se o diálogo entre Tomás, Paulo, Temístocles, Damasceno e Olga nas páginas 109-110.
15 INOCÊNCIA MATA, “A alquimia da língua portuguesa nos portos da expansão - em Moçambique, com Mia Couto”. Scripta – Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras e do CESPUC , vo. 1, nº 2, Belo Horizonte, 1998. p. 264.. Também: Revista Língua e Cultura, números: 5 e 6 – II Série,1997. Sociedade da Língua Portuguesa (Lisboa). Páginas do artigo: 23-30.
16 Entrevista a JOSÉ EDUARDO AGUALUSA, “O Gato e o Novelo”. JL – Jornal de Letras, Artes & Ideias, 8 de outubro de 1997.
17 “Beneficio-me de uma situação privilegiada, porque tenho um pé na norma e outro na errância a que está sujeita a língua portuguesa (…) A maior parte das construções não as reproduzo mecanicamente. Tento reencontrar a lógica que leva a essa possibilidade de reconstrução” “MIA COUTO, em entrevista ao JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias, Lisboa, 18/ 8/ 1994. p. 14.
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LUSOFONIA, Plataforma de apoio ao estudo da língua portuguesa, José Carreiro, 23-04-2008 < http://lusofonia.com.sapo.pt/LA.htm >
ObjetivosEsta disciplina tem como finalidade uma breve apresentação genérica das cinco Literaturas Africanas escritas em Português (Angolana, Cabo-Verdiana, Guineense, Moçambicana e Santomense). Para isso, depois de uma contextualização introdutória, serão abordadas algumas características comuns à sua génese bem como vários temas que as percorrem de modo transversal, demonstrando-se, todavia, particularidades do contexto específico de cada uma delas e destacando-se certos autores e textos, considerados mais relevantes. Por razões metodológicas, prestar-se-á mais atenção à vigência destas literaturas durante o período colonial, sem, contudo, ficar esquecida a focalização de temas e questões literárias mais recentes.
ProgramaI - Problemática geral das Literaturas Africanas
1. Introdução genérica à cultura africana
2. Breve contextualização histórica da presença portuguesa na África Negra
3. A questão da Língua Portuguesa no ‘espaço’ africano
4. Literatura Exótica/ Literatura Colonial/ Literaturas Africanas
5. Os movimentos da Negritude, Pan-Africanismo e African Personality
II – Temas das Literaturas Africanas em Língua Portuguesa
1. Afirmação de identidade
a) Africana
b) ‘Regional’/ ‘Nacional’
c) Insular
d) Conceitos de ‘negro’, ‘mestiço’, ‘crioulo’
2. Acusação do regime colonial e desejo de libertação
a) Escravatura / Diáspora / Regime de ‘contrato’ lçb) Crítica da sociedade colonial
c) Espaço rural / espaço urbano
d) Antevisão de ‘novos tempos’
3. Luta armada e independência nacional
a) Guerra colonial (“luta armada de libertação”)
b) A euforia das Independências
c) Guerra civil
Bibliografia Principal1. Obras de leitura obrigatória 2. CRAVEIRINHA, José – Karingana ua Karingana, Lisboa, Ed. 70 3. COUTO, Mia – “Chuva: a abensonhada”, in Estórias Abensonhadas, Lisboa, Ed. Caminho 4.
PEPETELA – Parábola do Cágado Velho, Lisboa, Ed. Dom Quixote VIEIRA, Luandino – “Vavó Xixi e seu neto Zeca Santos”, in Luuanda, Lisboa, Ed. Caminho
NOTA: Será disponibilizada, em texto de apoio, uma Breve Antologia da Poesia Africana, dado que a maior parte das antologias poéticas se encontra esgotada e, portanto, de difícil aquisição. O texto de apoio constituirá, pois, apenas uma representação mínima da produção poética de vários autores das diferentes Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa, pelo que, ao longo das aulas, e se necessário, se indicarão obras de leitura complementar. Para já, apresentam-se, abaixo, as antologias que têm vindo a ser publicadas:
2. Antologias
ANDRADE, Mário - Antologia Temática de Poesia Africana (2 vol.), Lisboa, Livr. Sá da Costa FERREIRA, Manuel – 50 Poetas Africanos , Lisboa, Plátano Editora(*) “ “ - No Reino de Caliban , (3 vols.), Lisboa, Seara Nova (vols. I e II ) e Plátano Editora (vol. III) MATA, Inocência – Bendenxa (25 poemas de São Tomé e Príncipe para os 25 anos de Independência) , Lisboa, Ed. Caminho, 2000
SAÚTE, Nelson – As Mãos dos Pretos ( Antologia do Conto Moçambicano) , Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2000
TENREIRO, F.J. e ANDRADE, Mário – Poesia Negra de Expressão Portuguesa, Lisboa, ALAC
UNIÃO NACIONAL DOS ARTISTAS E ESCRITORES DA GUINÉ-BISSAU - Antologia Poética da Guiné-Bissau , Lisboa, Editorial Inquérito, 1990
VÁRIOS – Antologias de Poesia da Casa dos Estudantes do Império (1951-1963) ,(2 vols.), Lisboa, Edição ACEI, 1994
Bibliografia Complementar3. Bibliografia Genérica (incompleta)
ANDRADE, Costa – Literatura Angolana (Opiniões) , Lisboa, Ed.70
CHABAL, Patrick – Vozes Moçambicanas , Lisboa, Vega, Col. “Palavra Africana” ERVEDOSA, Carlos – Roteiro da Literatura Angolana , Lisboa, Ed.70
FERREIRA, Manuel – Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa I e II, Lisboa, ILCP, col.”Biblioteca Breve” “ “ - A Aventura Crioula, Lisboa, Plátano Editora HAMILTON, Russell – Literatura Africana / Literatura Necessária I e II , Lisboa, Ed.70
LABAN, Michel – Cabo Verde – Encontro com escritores (2 vol.), Porto, F.EngºAntºAlmeida “ “ - Angola – Encontro com escritores (2 vol.), Porto, F.EngºAntºAlmeida “ “ - Moçambique – Encontro com escritores (3 vol.), Porto, F.EngºAntºAlmeida LARANJEIRA, Pires – Literatura Calibanesca, Porto, Ed. Afrontamento “ “ - De Letra em Riste , Porto, Ed. Afrontamento, 1992
“ “ - A Negritude Africana de Língua Portuguesa , Porto, Ed.Afrontamento, 1995
LEITE, Ana Mafalda – A Poética de José Craveirinha , Lisboa, Vega, Col. “Palavra Africana”, 1991
“ “ “ - A Modalização Épica nas Literaturas Africanas , Lisboa, Vega, 1996
“ “ “ - Oralidades & Escritas nas Literaturas Africanas , Lisboa, Edições Colibri, 1998
MARGARIDO, Alfredo – Estudos sobre Literaturas das Nações Africanas de Língua Portuguesa, Lisboa, Ed. A Regra do Jogo, 1980
MATA, Inocência – Pelos Trilhos da Literatura Africana de Língua Portuguesa , Pontevedra/ /Braga, Irmandades da Fala da Galiza e Portugal, 1992
MATA, Inocência - Literatura Angolana: Silêncios e Falas de Uma Voz Inquieta , Lisboa, Mar Além , 2001
MATUSSE, Gilberto – A Construção da imagem de moçambicanidade em José Craveirinha, Mia Couto e Ungulani Ba Ka Khosa , Maputo, Livraria Universitária / UEM, 1998
NOA, Francisco – A Escrita Infinita (Ensaios sobre literatura moçambicana), Maputo, Livraria Universitária / UEM, 1998
OLIVEIRA, Mário António – Reler África , Coimbra, Inst. Antropologia da Univ. de Coimbra, 1990
PACHECO, Maria Cristina - "O Tema do 'Contratado' na Literatura Caboverdiana: génese e variações", in VV.VV «Portuguese Literary & Cultural Studies 8» (Cape Verde: language, literature & music), Center for Portuguese Studies and Culture, University of Massachussetts Dartmouth, 2003
PADILHA, Laura Cavalcante – Entre Voz e Letra: o lugar da ancestralidade na ficção angolana do século XX , Niterói – Rio de Janeiro, EDUFF, 1995
RIÁUSOVA, Helena – Dez anos de Literatura Angolana , Luanda, UEA, 1986
SOUSA E SILVA, Manuel – Do Alheio ao Próprio: A Poesia em Moçambique , Sâo Paulo, Edusp / UFG , 1996
TRIGO, Salvato – Introdução à Literatura Angolana de Expressão Portuguesa , Porto, Brasília Editora, 1977
“ “ - A Poética da Geração da ‘Mensagem’ , Porto, Brasília Editora, 1979
“ “ - José Luandino Vieira : o Logoteta , Lisboa, Vega Editora
“ “ - Ensaios de Literatura Comparada , Lisboa, Vega Editora
VENÃNCIO, José Carlos – Literatura versus Sociedade , Lisboa, Vega “ “ “ - Literatura e Poder na África Lusófona , Lisboa, Ministério da Educação / Inst. De Cultura e Língua Portuguesa, 1992
VV.VV - Luandino – José Luandino Vieira e a sua obra ( estudos, testemunhos, entrevistas), Lisboa, Ed.70, 1980
VV.VV – Literaturas Africanas de Língua Portuguesa , Lisboa, Fund. Calouste Gulbenkian, ACARTE, 1987 VV.VV – A Voz Igual, Porto, F. Eng.º Ant.º Almeida, 1989
Métodos de ensino e atividades de aprendizagemAulas teórico-práticas
SoftwareNão se aplica
Tipo de avaliaçãoAvaliação por exame final
Obtenção de frequênciaPositiva no exame final
Fórmula de cálculo da classificação finalExame final - 100%
Provas e trabalhos especiaisNão se aplica
Avaliação especial (TE, DA, ...)De acordo com as regras em vigor
Melhoria de classificaçãoDe acordo com as regras em vigor na FLUP
ObservaçõesLíngua de ensino - Português
Página gerada em: 2013-10-01 às 21:49:29
Nota do Editor: Em novembro de 2008 publicamos uma lista de livros fundamentais da literatura africana, elaborada por Marília Bandeira, doutoranda da USP. A relação sempre foi muito acessada, mas recebeu algumas críticas devido à carência de obras em língua portuguesa -- Marília é especialista em literatura de língua inglesa. Agora publicamos essa outra lista, de Sandro Brincher, da UFSC ]
por Sandro Brincher – Já li em alguma antologia que toda seleção é ingrata. Ora, não é preciso lembrar que o objetivo das listas e das antologias não é nem justiça, nem equilíbrio. Elas refletem, afinal de contas, uma opinião em um determinado tempo sob certas influências teóricas ou metodológicas. O objetivo de toda lista – e aqui me refiro a uma lista bibliográfica – é oferecer um panorama de leitura, um primeiro empurrão, um norte aos interessados num determinado assunto. Proponho-me então, mui injusta e desequilibradamente, a apresentar uma lista pessoal de dez obras fundamentais das chamadas Literaturas Africanas de Língua Portuguesa. Outra questão que se faz importante é essa pluralização do objeto: literaturas. Cada país da chamada lusofonia (o conjunto de países onde se fala Português) – termo que, vale frisar, não agrada a muita gente – tem sua
própria história de colonização, suas características étnicas e sociais que acabam reverberando em suas literaturas. Se já é redutor e generalizante dizer "Literaturas Africanas", no plural, penso que no singular é ainda mais.
Passemos às obras. Algumas aí estão por conta de sua evidente aclamação crítica. Outras, por sua importância histórica ou por terem sido "vanguarda" em algum momento. Há ainda aquelas que, sem estarem em nenhuma das duas situações mencionadas, são instigantes, belas, impactantes ou terríveis – sim, porque a terribilidade da obra também é fundamental para o prazer da leitura.
Ei-las, as obras, ordenadas em ordem alfabética pelo sobrenome do(a) autor(a), seguidas de algum comentário ou da resenha da editora (indicada, quando for o caso).
Terra Sonâmbula | Mia Couto | Moçambique
O primeiro e um dos mais densos romances do moçambicano Mia Couto, hoje o mais popular dos escritores africanos de língua portuguesa, Terra Sonâmbula tem como pano de fundo o período de guerra civil pós-independência em Moçambique, mesclando realismo visceral a elementos fantásticos de forma absolutamente orgânica. Em meio a uma terra devastada, perambulando por uma estrada "mais deitada que os séculos, suportando sozinha toda a distância", um velho e um menino buscam uma forma de sobreviver em meio àquela paisagem fantasmagórica. O romance foi adaptado para o cinema em 2007 sob a direção de Teresa Prata, com co-produção portuguesa, alemã e moçambicana.
O vendedor de passados | José Eduardo Agualusa | Angola
Há quem indicaria Estação das chuvas ou mesmo Nação crioula como livro-chave na produção de Agualusa. Entretanto, como nesta lista um dos objetivos ao indicar um livro é sempre despertar em quem o lerá a curiosidade de conhecer mais do autor indicado, penso que O vendedor de passados cumpre muito bem tal papel. É uma narrativa densa sem ser fatigante, com humor e amor na dose certa, satirizando com comedimento a construção da História e dos "heróis" daquele país, tudo visto através do olhar de uma osga (lagartixa), o narrador do romance.
Resenha da contracapa: Félix Ventura escolheu um estranho ofício: vende passados falsos. Os seus clientes, prósperos empresários, políticos, generais, enfim, a emergente burguesia angolana, têm o seu futuro assegurado. Falta-lhes, porém, um bom passado. Félix fabrica-lhes uma genealogia de luxo, memórias felizes, consegue-lhes os retratos dos ancestrais ilustres. A vida corre-lhe bem. Uma noite entra-lhe em casa, em Luanda, um misteriosos estrangeiro à procura de uma identidade angolana. E então, numa vertigem, o passado irrompe pelo presente e o impossível começa a acontecer. Sátira feroz, mas divertida e bem humorada, à atual sociedade angolana, O Vendedor de Passados é também (ou principalmente) uma reflexão sobre a construção da memória e os seus equívocos.
Yaka | Pepetela | Angola
Yaka, apesar de não ser o livro mais representativo da produção ficcional de Pepetela (aliás, é destacar apenas um), é um dos mais importantes para entender questões fundamentais com as quais o autor vai trabalhar ao longo de toda sua obra, sobretudo a relação colonizado/colonizador, tema que está na pauta do dia de discussões acadêmicas há algumas décadas.
Orelha da edição brasileira lançada pela Ática em 1984: Uma estátua, Yaka, pura ficção, surge como motivo condutor deste romance em que, nos finais do século passado, uma família de colonos se estabelece em Benguela, centro comercial que ombreava com Luanda. Recorrendo à memória familiar, Pepetela traça os vários momentos da saga desses colonos, misto de comerciantes e agricultores, mostrando como criaram a sua verdade referencial, tão diferente do contexto africano, que não tinham condições de entender. Alexandre Semedo, o velho colono, desde cedo convive, em segredo, com o mito da estátua; ao morrer, fica sabendo, pela voz de Yaka, que sua geração será a última. Yaka simboliza a migração de povos caçadores, mais tarde grandes guerreiros, que após chegarem à região de Luanda e irromperem, no século XVI, no reino do Congo, atingiram o Cunene, no extremo sul de Angola. O mito da unificação do território nacional, posteriormente tornado realidade, acompanha o Autor ao criar Yaka. A estátua está cuidadosamente guardada por Alexandre Semedo, desprezada por seus familiares, que com a independência fogem para o sul, e respeitada pelo jovem neto, que se torna um combatente do MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola), é mito ou realidade?
Os flagelados do vento leste | Manuel Lopes | Cabo Verde
Considerado um romance neo-realista, nele o fenômeno da seca cabo-verdiana é ao mesmo tempo paisagem e personagem. José da Cruz é um homem a quem as forças e as esperanças se esvaem, mas cujo ímpeto de sobrevivência o leva a procurar as forças de trabalho do antigo sistema colonial. A luta dura e inescrupulosa pela vida vai moldando personagens áridos como a própria ilha de Santo Antão, palco deste drama no qual a natureza, sempre implacável, é a força que dá alento e o tira com a mesma fluidez do vento que corta o arquipélago de Cabo Verde.
O testamento do Sr. Napomuceno | Germano Almeida | Cabo Verde
Da contracapa da edição da Cia das Letras: Dez anos antes de morrer, o Sr. Napumoceno escreveu um testamento de "387 laudas de papel almaço pautado". Ninguém imaginava que pudesse haver tanta novidade na vida do comerciante solteirão, de hábitos rigorosamente metódicos. Mas, nas centenas de folhas onde o Sr. Napumoceno registrou a própria vida com toda a sinceridade, não se conta apenas a história do garoto de pés descalços que enriqueceu com trabalho, sorte e alguma malandragem:
entrelaçado àquela existência surpreendente emerge o quadro vivo do cotidiano em uma cidade de Cabo Verde antes da independência de Portugal, da década de 40 em diante.
Luuanda | Luandino Vieira | Angola
Terceiro livro de contos deste angolano por adoção – Luandino nasceu em Portugal –, é constituído por três narrativas: "Vovó Xíxi e seu neto Zeca Santos", "A estória do ladrão e do papagaio" e "A estória da galinha e do ovo". Através do olhar do narrador, conhecemos o cotidiano dos musseques (favelas) de Luanda, a capital angolana. A falsidade da política de assimilação colonial, a falta de esperanças num futuro decente, a descoberta da solidariedade como forma de alívio da dor da existência, o olhar transformador da criança em meio a essa realidade dura: eis alguns dos temas que Luuanda nos oferece.
Balada de Amor ao Vento | Paulina Chiziane | Moçambique
As histórias que Paulina ouvia na infância são a fonte de onde Paulina extrai o material humano que descreve neste romance. Aqui conhecemos Sarnau, uma jovem que amava Mwando, rapaz a quem o sacerdócio estava designado como carreira. Entretanto, a relação não vinga, pois seus destinos se separam. Sarnau torna-se uma das mulheres do rei de Mambone. Tempos depois, ela reencontra Mwando e o romance é atualizado; pela perseguição que sofrem, entretanto, separam-se de novo, tomando rumos igualmente terríveis: ele, deportado a Angola, cumprirá quinze anos plantando café e cana. Sarnau, que teve um filho de Mwando enquanto ainda era rainha, vê o menino ser coroado rei após morte do falso pai, mas amargará uma vida de prostituição para sobreviver a partir daí.
A louca de Serrano | Dina Salústio | Cabo Verde
A produção de textos curtos é dominante na literatura caboverdiana. Segundo a professora e pesquisadora brasileira Simone Caputo Gomes, isto se deve, entre outras questões, à escassez de editoras e necessidade de se publicar em periódicos, de um lado, e a uma tensão, uma urgência na necessidade do que se quer comunicar, de outro. Sendo uma literatura de poucos romances, A louca de Serrano se destaca não somente por pertencer a tal gênero, mas também por ser o primeiro romance de autoria feminina na literatura de Cabo Verde. As marcas do feminino, porém, não se limitam à mão que escreve: estão evidentes nas faces, nos gestos, nas vidas que Salústio vai pintando sobre as paisagens hostis da ilha de Santo Antão. Enfim, um romance crucial para entender a condição sui generis de Cabo Verde no vasto panorama das literaturas escritas em língua portuguesa.
Bom dia camaradas | Ondjaki | Angola
Da resenha de Helena Sut: "Bom Dia Camaradas, romance do escritor angolano Ondjaki, expõe a trajetória de Angola depois da independência, ambientado em Luanda na década de 80. Narra um momento que "aconteceu" ao autor e faz parte da formação da sociedade e da utopia. O protagonista é um menino da classe média pós-colonial que narra seus dias em paralelo com o ano letivo. Uma poética história que revela o mundo nos diálogos com o camarada Antônio, nas aulas dos professores cubanos, nos cartões de racionamento, na visita da tia que vem de Portugal, nos medos, nas despedidas, nos sonhos e nas percepções em câmara lenta".
Os filhos da pátria | João Melo | Angola
Ao invés da epígrafe de Gabriel Pensador, "Essa é a Pátria que me pariu", talvez a célebre frase dos Racionais MCs fosse igualmente apropriada: "Periferia é periferia em qualquer lugar". Isso porque o retrato que João Melo – romancista, poeta, político, editor da revista eletrônica África 21 – faz dos musseques não é em muitos aspectos diferente daquele conhecido da favela brasileira. Entretanto, sua visão não é essencialmente fatalista. A efervescência de etnias, culturas e línguas imprime, sob a ótica do narrador, um caráter único a esses espaços. Os filhos da pátria percorre as formas através das quais a interseção dessas características plurais dá corpo a uma identidade nacional, seja ela baseada num "tipo coerente de psicologia social humana" (citando Appiah) ou nas próprias diferenças que lhe são constitutivas.
Fonte: Amalgma
« Crítica ao ostracismo do negro na literatura... Escritor moçambicano discute papel do negro na li... »
TRAB LITERATURA AFRICANA DE EXPRESSÃO PORTUGUESA
LITERATURAS AFRICANAS DE EXPRESSÃO PORTUGUESA
As aventuras navais dos portugueses do século XV espalharam o idioma por quatro continentes, entre eles o africano, um continente marcado historicamente pela disputa entre tribos rivais, esta eterna discórdia interna fez da áfrica uma “colcha de retalhos” criando países pobres e de pouca representatividade no mundo moderno. Nos países em que Portugal, como colonizador, explorou por algum tempo, levando muitas de suas riquezas, deixou, mesmo que sem querer uma herança que “conecta” mais de 35 milhões de habitantes africanos á oitava língua mais falada no mundo: o português. Neste trabalho mostrarei um pouco da literatura em língua portuguesa em dois destes países, Angola e Moçambique.
ANGOLA
Angola é um jovem país de 34 anos, é também o segundo maior falante de língua portuguesa no mundo, tem sua historia marcada por momentos de repressão e por um período de colonialismo extensamente longo, só possível de acontecer graças ao incrível índice de analfabetismo, herdado do colonialismo português. Sua literatura em língua portuguesa passou por períodos de pouca criatividade, devido a falta de pessoas escolarizadas e capazes de criar um literatura atuante (97% da população analfabeta) até que em 1948 alguns dos 3% da população alfabetizada resolveram voltar seus olhos e sua atenção ao maior país africano de língua portuguesa e lançaram em Luanda, capital do país, o brado “vamos descobrir angola”.Este “brado”, pode ser visto como o choro de um bebê ao nascer, no caso nasceu a literatura de um país, e os pais e mães eram os membros do Movimento dos Novos intelectuais de Angola que em 1950 “registram” definitivamente a certidão de nascimento desta literatura com a publicação de “antologia dos novos poetas de Angola”.Em 1951 a Associação dos naturais de Angola, (ANAGOLA, em língua quibunda, “Filhos de Angola”) que provavelmente teve como membros muitos dos ‘novos intelectuais’ lança a revista Mensagem que dura até 1952 com apenas 4 exemplares, numero suficiente para criar um clima propício ao desenvolvimento da literatura angola. Em 1957 este mesmo grupo lança outra revista, agora com o nome Cultura, mantém os mesmos ideais da anterior e revela poetas significativos para mostrar a angolanidade, natural do povo e até então distante de sua criação literária.Toda esta efervescência culminou na criação do MPLA, movimento popular de libertação de Angola, que foi decisivo na independência do país.Este momento cultural angolano influenciado pelo momento histórico é marcado pela descoberta do sentido de ser do povo angolano, que passa a sua valorização e exaltação, com o movimento negritude e culmina nos temas ligados a exploração econômica, repressão policial o que leva o africano a pegar em armas e lutar pela independência. Todos este processo dura em torno de 12 anos de a948 a 1960, quando então começa um novo momento na literatura de Angola.Começa a luta armada em 1961 e a revista Cultura esta em plena ação, animando os guerrilheiros com sua temática nacionalista o que faz a repressão portuguesa do ditador Salazar endurecer ainda mais, culminando com o encerramento das atividades da revista, junto com ela o governo colonial português fechou tudo que pudesse distribuir ideais de independência angolana.Porem estes fechamentos não conseguem matar a literatura de angola que resiste e se fortalece através de autores como Luandino Vieira e de obras como “Luuanda e nós” e “Makulusu. O poeta escreve até certo tempo em
português europeu, formal e culto, a parti de 1962 provavelmente como forma de mostrar que Angola não era só o que os colonizadores trouxeram em forma de cultura ele mistura os sentidos do português padrão com a língua quibunda, existente em angola há séculos e cria neologismos e gírias que são marcas da angolanização do português e provas da cultura do homem africano.Entre os intelectuais africanos que mudaram a maneira de se entender o conceito de nação e foram decisivos na criação não só de uma nova literatura para o país, mas também para sua independência se destaca o poeta Agostinho Neto. Autor de “Sagrada Esperança”, obra que os historiadores comparam ao clássico “os Lusíadas”, de Camões (com ressalvas temporais, espaciais, culturais), Neto de forma épica, mostra toda a alienação social, cultural e política vivida pelo negro, exibe de forma clara a exploração econômica, a repressão policial,a prostituição, o alcoolismo, o analfabetismo e a miséria a qual é submetida toda uma população apenas por diferença de cor. Ele exalta a solidariedade, o trabalho a esperança e o amor como combustíveis que proporcionarão a este mesmo povo a força capaz de criar a revolução que levará o povo angolano a sua verdadeira identidade, a identidade de um povo livre.Sua obra é dividida em três fases, a primeira tem momentos neo realistas e de valorização do povo negro (negritude) e vai de 1945 a1949. A segunda que dura de 1949 a 1955 ainda tem poucos momentos neo realistas, mas sua maior parte é totalmente dedicada a valorização do ser humano negro, em angola, na áfrica e em todo o mundo, dando especial atenção a solidariedade negra, mostrando que a cultura tribal africana de um negro lutar contra o outro sempre foi um grande erro. A última fase deste inesquecível poeta é marcada pela sua prisão, ele a usa como forma de inspiração e produz obras que incitam a liberdade e a independência do país, convocam os angolanos a lutarem a combaterem a ganharem a liberdade com as próprias forças.Seu empenho é recompensado, o país liberta-se e ele torna-se merecidamente o seu primeiro presidente.
MOÇAMBIQUE
Embora separado de Angola territorialmente, Moçambique compartilha com o vizinho o fato de ter como idioma oficial a língua portuguesa, este país africano fica na costa oriental da áfrica austral e devido a sua formação geográfica faz fronteiras com muitos outros países, o que possibilita uma grande interação com muitos povos africanos. Sua literatura de língua portuguesa se mostra mais fértil nas décadas de 40 a 50 onde são publicados grande quantidade de textos em livros e jornais, todo este momentos é fruto da recente instalação da imprensa com a revista msaho e o jornal paralelo 20, ambos serviçais divulgadores das idéias anti-coloniais.Com o fim da II grande guerra a literatura moçambicana adquire maturidade, os anos entre 1945 a 1952 foram decisivos para o inicio deste grau de qualidade. Uma característica forte é o segregacionismo moçambicano que extrapola de vez a razoabilidade separando de forma veemente todas as raças, forçando-os a formarem grupos separados. Como reação a esta visão ultrapassada do mundo, escritores e intelectuais formam grupos que a partir dos primeiros anos de 1950 publicam seleções a antologias com as idéias da negritude, pregando uma maior identidade nacional, sem distinguir raças, todos são moçambicanos. Junto a isso textos ligados ao neo realismo denunciam a péssima condição humana no país e funcionam como referencia para a conscientização da população.Em 1964 inicia-se a fase de exortação a luta armada para a independência do país, a temática glorifica a revolução e serve como base para textos anti-colonialistas. Na narrativa surge “nós matamos o cão-tinhoso” de Luis Bernardo Honwana que mostra de forma alegórica uma vitoria imposta ao colonizador pelos negros livres e capazes de dominar seu território.
Guilherme de Melo com raízes do ódio de 1963 e Orlando Mendes com Portagem de 1966 inauguram o romance moçambicano. Nesta partida impetuosa da literatura acontecem três vertentes importantes. A primeira é formada por escritores como José Craverinha, Orlando Mendes, Rui Nogar e Luís Bernardo Honwana e tem como herança um nacionalismo resultante de tendências de incorporação do pan-africanismo, com experiências neo realistas e negritudistas. São textos publicados de forma restrita em pequenos ghettos intelectuais.A segunda, também publicada para um pequeno publico, tem como diferença fundamental o conteúdo que é basicamente inspirado nas grandes obras universais que vêem desde as antiguidades clássicas até a exaltação da cultura ocidental européia, seus nomes mais destacados são Rui Knopfli, Eu gênio Lisboa, João Pedro, Grabato Dias e Maria de Lourdes Cortaz.A terceira vertente tem maior liberdade de publicação, esta quer atingir e chegar ao povo para incentivá-los a luta armada pela independência, é a temática de guerrilha que em forma de poesia espalha-se pelo povo. Aqueles que não sabem ler, ouve seus versos e saem cantando de armas nas mãos.Já em 1971 surgem a revista Caliban que traz textos de excelente qualidade, este momento também é marcado pela volta de escritores, na maioria brancos que haviam saído da colônia, o que geral uma enorme leva de intelectuais que estão ligados a Moçambique mas também estão ligados também a Portugal pelo contato intenso entre pensamentos pro e anti coloniais, se encaixam neste momento nomes como os de Rui Knopfli, Glória de Sant’Anna, Guilherme de Melo, Jorge Viegas. Outros assumem sem reservas a cidadania moçambicana, como Mia Couto, Heliodoro Baptista e Leite de Vasconcelos.Entre 1975 e 1992 acontece o fortalecimento da literatura moçambicana com a publicação de textos que estavam guardados, seja por motivos de repressão do colonizador, ou por falta de oportunidade de fazê-lo. Este processo consolida e dar uma maturidade definitiva ao ser moçambicano que passa a temas de exaltação da pátria, recém independente, cultos aos heróis da luta pela libertação nacional, temas doutrinários e militares. É importante lembrar que o novo governo também tentou controlar o que era publicado, sendo totalmente livre desta censura apenas os textos publicados fora do país.Um poeta/jornalista moçambicano merece destaque em todo este processo de autoconhecimento e de libertação é José Craverinha, sobre o qual podemos analisar uma sequência de fases em suas obras. A primeira é marcada pelo neo-realismo e traz como tema a tradição popular e tribal, o ser humano é mostrado cheio de problemas e complicações, acontece o privilegio da mensagem sobre a forma, pois o objetivo do autor e conscientizar o leitor do seu real estado de vida.
A segunda é marcada pela negritude, a forma muda, os versos tornam-se longos e o texto enaltece o negro, as raízes africanas neles estão presente os sentimentos mais puros do autor, a revolta contra a escravidão em denuncias feitas de forma bastante agressivas. A terceira fase do artista traz a moçambicanidade, a identidade nacional do seu povo, nela a busca pelo que é de verdade o ser moçambicano, suas raízes, seus desejos e seu futuro de liberdade estão misturados de tal forma que aos lê-los se sente a força e a garra do homem de Moçambique.Na quarta e ultima fase, escrita em parte na prisão acontece o paradoxo de ter como tema a libertação, são desta fase os livros chigubo (1964), karingana ua karingana (1974), Cela 1(1980) entre outros.Termino este trabalho com um pequeno trecho do poema África de José Craverinha: “Em meus lábios grossos fomenta / A farinha do sarcasmo que coloniza minha Mãe África / E meus ouvidos não levam ao coração seco / Misturado com o sal dos pensamentos / A sintaxe anglo-latina de novas palavras”.
Alem dos países descritos neste trabalho, no continente africano também falam a língua portuguesa: Cabo Verde, Guiné-Bissau, Guiné Equatorial e São Tomé e Princípe.Referências:
JARDIM Marcelo Rodrigues. Literatura Portuguesa III. Material Complementar Universidade Norte do Paraná, letras 7. São Paulo. Pearson Education do Brasil, 2009.
JOSE CRAVERINHA. Disponível em < http://lusofonia.com.sapo.pt/craveirinha.htm > Acesso 01 mai. 2009.
LITERATURA MOÇAMBICANA. Disponível em < http://lusofonia.com.sapo.pt/Mocambique.htm#periodiza%C3%A7%C3%A3o > Acesso 01 mai. 2009.
LUSOFONIA ANGOLA. Disponível em < http://www.lusoafrica.net/v2/index.php?option=com_content&view=article&id=59&Itemid=62 > Acesso 01 Mai .2009.
LUSOFONIA MOÇAMBIQUE. Disponível em < http://www.lusoafrica.net/v2/index.php?option=com_content&view=article&id=63&Itemid=66 > acesso 01 mai. 2009.
SONCELLA, Josely Bogo Machado. Literatura Portuguesa III. Universidade
Norte do Paraná, letras 7. São Paulo. Pearson Education do Brasil, 2009.
TEXTO EDITORES UNIVERSAL. Língua portuguesa on-line. Disponível em <http://www.priberam.pt/dlpo.> Acesso em: 01 mai. 2009.Postado por Orlando Rios às 06:35 Enviar por e-mailBlogThis!Compartilhar no TwitterCompartilhar no FacebookCompartilhar no OrkutMarcadores: Faculdade.
6 comentários:
1.
Anônimo29 de novembro de 2009 19:10
Adorei! Encontrei, aqui, até mais do que eu precisava. Voltarei a visitar esta pagina mais vezes, trabalhos de alta qualidade...
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2.
Anônimo30 de agosto de 2010 17:40
Parabéns! Um conteudo de qualidade.
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3.
Viegas ( via e-mail)21 de novembro de 2010 12:28
A “Estação das chuvas” de Agualusa (1ª parte)
Viegas Fernandes da Costa*
“... a poesia surgiu entre a juventude como o mais óbvio caminho de afirmação cultural: ‘tiravam-nos tudo, a dignidade, as terras, os homens. E no fim o próprio rosto. (...) Tiravam-nos todo o passado e nós olhávamos em volta e não éramos capazes de compreender o
mundo. Então começamos a escrever poesia. A poesia era o destino irreparável, naquela época, para um estudante angolano. (...) Os jovens poetas tinham a consciência do seu papel messiânico. ‘Escrevíamos para a história’. – Falas da personagem Lídia ao Narrador. O angolano José Eduardo Agualusa pode ser inserido na segunda geração de escritores africanos pós-coloniais. Ou seja, uma geração de autores que problematiza o projeto de identidade nacional, construído a partir dos processos de independência dos países africanos, em oposição a uma primeira geração, que tratava o tema sob uma perspectiva heróica e maniqueísta.Nascido em 1960, Agualusa estava adolescente quando Angola passou pelo tumultuado e complexo processo de independência política de Portugal, acontecida em novembro de 1975, e que jogou o país em uma guerra civil que perdurou até o ano de 2002. Portanto, quando publica “Estação das Chuvas”, lançado originalmente pela editora portuguesa Dom Quixote em 1996, Angola era um país devastado por uma guerra civil que confrontava o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) e a União Nacional para a Total Independência de Angola (UNITA). Outro grupo que protagonizou a disputa pela independência e pelo poder angolano foi a Frente Nacional de Libertação de Angola (FNLA). Tais grupos político-militares alinhavam-se segundo os interesses internacionais próprios do contexto da Guerra Fria. Assim, enquanto o MPLA recebia apoio da União Soviética e de Cuba, Estados Unidos e África do Sul apoiavam a UNITA e a FNLA. Outros países, como Inglaterra, Zaire, Portugal e China também se envolveram no conflito. Não bastassem os diferentes interesses políticos, econômicos e ideológicos que significavam os diversos apoios internacionais aos movimentos de resistência nacionalista e/ou de guerrilha, a complexidade se manifestava dentro de cada grupo, já que não havia uma unidade ideológica. Se é possível afirmarmos que o MPLA representava o marxismo-leninismo, também é verdadeiro que este Movimento abrigava divergências poderosas em suas fileiras, o que acabava transformando aliados em inimigos. É neste contexto politicamente confuso do processo de independência angolano e seus desdobramentos que “Estação das Chuvas”, flertando com a historiografia e a ficção, situa sua fabulação. Assim como em um quadro cubista, onde a apreensão de uma realidade – cujos sentidos só nos permitem um conhecimento fragmentado – nunca é completa; também Agualusa nos dá a conhecer, indiciária e fragmentadamente, a história das lutas pela construção de uma identidade nacional angolana a partir dos relatos da personagem Lídia, poeta, historiadora
e militante do MPLA que mesmo após o processo de independência, conheceu a prisão e o exílio. Relatos que nos chegam por meio da voz de um narrador, também personagem, também militante político do MPLA, que entrevistou Lídia e reuniu um pouco dos seus textos e correspondência. A narrativa de “Estação das Chuvas” constrói-se, portanto, de uma forma não linear, fragmentada, ora nos indícios legados por Lídia, ora nas rememorações do Narrador, ora nos diálogos dos demais personagens, e o quadro desdobrado ante os olhos do leitor torna-se assim multifacetado, próprio de uma nação construída à força das balas e do discurso. Principalmente à força do discurso, pantanoso, móvel, mas consciente de que um país nasce muito mais da palavra do que do concreto armado.
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4.
Viegas ( via e-mail)21 de novembro de 2010 12:32
A “Estação das chuvas” de Agualusa(2ª parte)
Viegas Fernandes da Costa*
Nesta perspectiva da palavra, de uma nação que se constrói a partir do discurso (ou dos discursos), José Eduardo Agualusa, em “Estação das Chuvas”, propõe a reflexão para além do político-ideológico, abrangendo o identitário, não apenas nacional, bem como o étnico, e o papel dos intelectuais nesse processo, tal qual apresentado na epígrafe com que iniciamos este texto. Lídia – a personagem – tinha consciência do seu papel enquanto intelectual engajada cuja função era produzir documentos artísticos que pudessem testemunhar a construção de uma nação, apesar de tudo, híbrida. De um hibridismo que conflitava com muitos dos discursos nacionalistas, racializados que eram. É nesta perspectiva que a personagem, quando convidada a participar de uma antologia intitulada “Caderno de poesia negra de expressão portuguesa”, responde: “Aquilo que eu escrevo não tem especialmente a ver com o mundo negro. Tem a ver com o meu mundo, que é tanto negro quanto branco. E sobretudo é o meu mundo! Se quiseres incluir trabalhos meus muda o nome da antologia para ‘Caderno de poetas negros’, mas ainda assim será um disparate, como fazer um ‘Caderno de poetas altos’ ou uma ‘Coletânea de poesia de mulheres obesas’.” E a consciência de Lídia a respeito do hibridismo cultural de que é
consequência, em si e de seu país, torna-se ainda mais claro quando afirma: “todos nós pertencemos a uma outra África que habita também nas Antilhas, no Brasil, em Cabo Verde ou em São Tomé, uma mistura da África profunda e da velha Europa colonial. Pretender o contrário é uma fraude.”Se, por um lado, Agualusa apresenta uma personagem consciente de seu hibridismo, por outro reconhece a existência de protagonistas que se pretendem “puros” ou, ainda, personagens que poderíamos qualificar na condição de “colonizadores de boa vontade”. O “colonizador de boa vontade” (conceito desenvolvido pelo escritor tunisiano Albert Memmi) reconhece o direito à autodeterminação de uma nação colonizada, e até luta por este direito; entretanto, será sempre um colonizador. Em “Estação das Chuvas” o personagem Mário de Andrade desconfia dos angolanos brancos, no que era acompanhado por Lídia. Segundo o narrador, “ambos sabiam que os brancos gostavam de participar nas iniciativas culturais, mas só até um certo ponto, e raramente estavam dispostos a prescindir dos seus privilégios de raça e de classe” – são estes angolanos brancos identificados na condição de “colonizadores de boa vontade”.
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5.
Viegas ( via e-mail)21 de novembro de 2010 12:33
A “Estação das chuvas” de Agualusa (3ª parte)
Viegas Fernandes da Costa*
Também os defensores de uma identidade cultural não hibridizada são retratados por Agualusa, que os ironiza, como no caso de Antoine Ninganessa. Segundo o narrador, Antoine “estava sempre a dizer que as pessoas deviam deixar de imitar os brancos e ninguém devia vestir calças ou camisas, ninguém devia comer em pratos de alumínio, ninguém podia utilizar papel higiênico. As vezes exaltava-se e gritava que era preciso fazer tudo ao contrário dos portugueses. E então ele dava o exemplo e começava a andar para trás, como um caranguejo, ou sentava-se numa cadeira com as pernas dobradas ao contrário e virava a cabeça para as costas e falava não pela boca mas pelo ânus”. A força da ironia no trecho que apresentamos aqui torna clara a
posição do autor José Eduardo Agualusa a respeito do seu entendimento de identidade cultural. Lídia, a escritora híbrida que, entretanto, não se descuida do seu papel ante a construção de uma nação, é a heroína da história.
“Estação das chuvas” é um romance típico de seu tempo e contexto. Discute uma Angola que se procura construir e afirmar à luz de uma unidade artificialmente construída pelas mãos europeias e, justamente por este seu aspecto sociológico, sem entretanto se tornar panfletário (longe disso), merece leitura atenta e o coloca na estante de uma literatura pós-colonial que, se não pretende oferecer respostas, problematiza e estimula o debate.
* Viegas Fernandes da Costa é historiador e escritor. Autor dos livros “Pequeno álbum” (2009), “De espantalhos e pedras também se faz um poema” (2007) e “Sob a luz do farol” (2005). Permitida a reprodução deste texto, desde que citado o autor e mantida a íntegra.
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6.
Anônimo25 de fevereiro de 2011 22:16
muito bomexatamente o que eu precisava!!!:)
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Estados Unidos: Ungulani fala sobre literatura dos PALOP
Maputo, Segunda-Feira, 5 de Abril de 2010
O conceituado escritor Ungulani Ba Ka Khosa – pseudónimo literário para Francisco Esaú Cossa – parte hoje para os Estados Unidos da América, onde vai participar em palestras e seminários sobre as literaturas africanas de expressão portuguesa.
Nos Estados Unidos, Ungulani estará na companhia de outros escritores de países africanos de expressão portuguesa, nomeadamente Ondjaki e Pepetela, de Angola, e Germano de Almeida, de Cabo Verde.
As jornadas literárias vão ter lugar nas Universidades norte-americanas de Brown, em Providence, Rhode Island, Universidade de Rugters, em Newark, Nova Jersey, e na Universidade de Georgetown, em Washington, num evento que arranca amanhã e vai decorrer até o próximo dia 15 do mês em curso. A viagem de Ungulani Ba Ka Khosa tem o patrocínio da Electricidade de Moçambique (EDM).
Ungulani disse que vai estar presente em encontros nos quais irá debruçar-se sobre as literaturas africanas de expressão portuguesa, com particular enfoque para a produção moçambicana actual.
“Será um discorrer sobre a produção literária de cada um dos países donde são provenientes os convidados. Eu falarei do panorama literário moçambicano”, disse Ungulani, dissertando sobre o actual estágio da literatura nacional e do
aparecimento de editoras que permitem que mais escritores tenham expressão, frisando a abertura do exterior face às literaturas africanas de língua portuguesa.
Dos escritores com os quais vai estar, Ungulani já privou com Ondjaki num encontro que teve lugar em Moçambique. Quanto aos outros dois esta será a primeira vez, não obstante conhecer as suas obras.
Portanto, esta é, segundo ele, uma oportunidade para a troca de experiências e para estabelecer uma discussão em torno do que se faz em cada um dos países africanos de expressão portuguesa.
Ungulani Ba Ka Khosa (Francisco Esaú Cossa) nasceu a 1 de Agosto de 1957, em Inhaminga, província de Sofala. Tirou Bacharelato em História e Geografia na Faculdade de Educação da Universidade Eduardo Mondlane, exercendo a função de professor.
Iniciou a sua carreira de escritor com a publicação de alguns contos e participou na fundação da revista Charrua na Associação de Escritores Moçambicanos, de que é membro.
Publicou as obras Ualalapi (1987), Orgia dos Loucos (1990), Histórias de Amor e Espanto (1999), No Reino dos Abutres (2002), Os Sobreviventes da Noite (2007) e Choriro (2009).
Ualalapi foi distinguida em 1990 com o Grande Prémio da Ficção Narrativa; em 1994 com o Prémio Nacional de Ficção e em 2002 foi considerada como um dos melhores livros africanos do Século XX. Em 2007 venceu o Grande
Prémio de Literatura José Craveirinha, com a obra “Os Sobreviventes da Noite”.
http://macua.blogs.com/moambique_para_todos/
Para saber mais sobre Ungulani, veja p. ex. em http://pt.wikipedia.org/wiki/Ungulani_Ba_Ka_Khosa
publicado por Henrique Salles da Fonseca às 10:24link do post | comentarAdicionar ao SAPO Tags |
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Tags: literaturaAs literaturas africanas de língua portuguesa como processo de luta no período colonial.
Resumo
Realiza breve análise das literaturas africanas de língua portuguesa no período colonial, como instrumento de luta e afirmação identitária, abordando as especificidades que a relação colonizador x colonizado acarretaram nas antigas colônias de Portugal: Cabo Verde, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe, Angola e Moçambique.
Palavras-chave: Literaturas Africanas de Língua Portuguesa; Colonização; Relação colonizador x colonizado.
1 APRESENTAÇÃO
As literaturas africanas em língua portuguesa tiveram seu desenvolvimento a partir da segunda metade do século XIX, como não poderia deixar de ser, em se tratando de países africanos, dotados em sua maioria por culturas de tradição oral (embora não
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elosclubetavira 18230 fav
exclusivamente ). Diferentemente da produção colonial africana , as literaturas africanas adotam um ponto de vista do colonizado, “de dentro para fora”.
Marcadas pelo colonialismo português, os conflitos e relações que esta forma administrativa acarreta, foram com o passar do tempo, inspiração constante na literatura das então colônias de Portugal, atuais países de Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Guiné-Bissau, Angola e Moçambique. Por ter sido, o fazer literário nestes países, muitas das vezes, formas de resistência e militância, serão exatamente estas nuances que marcam as relações colonizador x colonizado e as demais buscas de afirmação identitária que elas acarretam, brevemente abordadas neste trabalho, através de textos recolhidos dos 5 países africanos de língua portuguesa. A literatura então, passa a construir em forma de militância política, de denúncia, de busca de uma identidade, a ideologia para a independência e afirmação de identidades nestes países. Daí a sua importância.
O enfoque principal deste trabalho será para a lírica, não cabendo aqui transcrever, na íntegra, textos narrativos e nem do teatro. Porém, ao analisar a relação colonizador x colonizado e de afirmação identitária presente nos textos recolhidos, algumas referências a textos narrativos podem ocorrer ao longo do trabalho. Realizar-se-á uma apresentação geral da literatura de cada país antes da apresentação dos textos (ou trechos dos textos) recolhidos para cada um deles.
2 CABO VERDE
Tal como em Angola ou Moçambique, as primeiras manifestações literárias do arquipélago remontam aos meados do século XIX. E a primeira observação que nos ocorre fazer é a de que, ao contrário do que sucede naquelas duas áreas citadas (mais em Moçambique do que em Angola) a literatura escrita em Cabo Verde é assinada, na sua maioria esmagadora, por cabo-verdianos. (...). Em Cabo Verde só com o aparecimento da revista Claridade (1936), fundada e animada pelos poetas e romancistas Baltasar Lopes, Manuel Lopes e Jorge Barbosa, ocorreria a viragem definitiva da literatura cabo-verdiana. Podemos na verdade dizer que a literatura cabo-verdiana se divide em dois períodos fundamentais: antes e depois da Claridade. (FERREIRA, 1986, p. 125-126).
Por questão histórica, política, social, e literária, é que a partir do início da década de 30 (também por influências da literatura brasileira), ocorre uma tomada de consciência regional (nacional), muito precisa
por parte dos escritores cabo-verdianos. Estes passam a preocuparem-se com a real significação das estruturas sociais cabo-verdianas. Apesar de ainda não ser uma clara postura anticolonial, era em modos de literatura, uma mudança no sentido de “manter as costas voltadas para os modelos temáticos europeus e os olhos, pela primeira vez, vigilantes e deslumbrados no chão crioulo”. (FERREIRA, 1986, p. 126). O poema “Itinerário de Pasárgada”, de Oswaldo Alcântara (que utilizava o pseudônimo Baltazar Lopes), ilustra, através de uma releitura de Manuel Bandeira, a íntima relação entre Cabo Verde e Brasil, que foi influenciadora desta busca pela identidade cabo-verdiana.
Saudade fina de Pasárgada...
Em Pasárgada eu saberia
onde é que Deus tinha depositado
o meu destino...
(...)
Na hora em que tudo morre,
esta saudade fina de Pasárgada
é um veneno gostoso dentro do meu coração.
(ALCÂNTARA, 1946, In: FERREIRA, 1986, p. 184).
Da mesma forma, o poema “Você, Brasil” de Jorge Barbosa, demonstra a identificação do sujeito poético com o Brasil:
Eu gosto de Você, Brasil,
Porque Você é parecido com a minha terra. (...)
É o seu povo que se parece com o meu,
É o seu falar português
Que se parece com o nosso, (...)
As nossas mornas, as nossas polcas, os nossos cantares,
Fazem lembrar as suas músicas,
Com igual simplicidade e igual emoção.
(BARBOSA, In: FERREIRA, 1986, p. 170).
O povo cabo-verdiano é bilíngüe: além do português, utilizam também o crioulo ou a língua cabo-verdiana, que, no quotidiano possui uma total implantação, que falece à língua portuguesa.
Vêm do século XIX, paralelamente às criações em língua portuguesa, as experiências literárias em crioulo, para não citarmos as de origem remota, de natureza popular, vinculadas através das mornas (a sua grande expressão artística), canções populares, as finançons (canções de batuque), dos curtiçans (canções ao desafio – ilha do Fogo). (FERREIRA, 1986, p. 126).
O cabo-verdiano também possui forte identificação com o mar (ilha) e com o deslocamento constante que esta situação geográfica ocasiona. Há também em Cabo Verde o chamado “vento leste”, que não permite o desenvolvimento da agricultura, levando o país a vivenciar períodos de secas que acabam por obrigar a saída (deslocamento) da ilha. A literatura de Cabo Verde aborda estas características do constante deslocamento, da natureza sob uma perspectiva problemática para a população.
Durante muito tempo a poesia cabo-verdiana evoluiu, em grande parte, sob a influência da poesia de Jorge Barbosa, embora tenha ocorrido um aprofundamento temático, estilístico e ideológico entre várias gerações. Após a independência, é criada a revista Raízes (1977), dirigida por Arnaldo França, sendo uma das suas principais características o amplo aproveitamento dos autores que vêm da Claridade, porém, quer em português ou em crioulo, juntam-se autores das novas gerações.
A referência geográfica forte (ilha), a posição de desejos, o diálogo com o projeto colonial português e com o cabo-verdiano, assim como a referência à tradição da morna (própria de Cabo Verde), são características da literatura cabo-verdiana encontradas no poema “Irmão” (1941) de Jorge Barbosa, nos seguintes versos:
Cruzaste Mares
na aventura da pesca da baleia,
nessas viagens para a América
de onde as vezes os navios não voltam mais.
(...)
Sob o calor infernal das fornalhas
alimentaste de carvão as caldeiras dos vapores,
em tempo de paz
em tempo de guerra.
E amaste com o ímpeto sensual da nossa gente
as mulheres nos países estrangeiros!
Em terra
Nestas pobres Ilhas nossas
És os homem da enxada (...)
A Morna...
Parece que é o eco em tua alma
Da voz do Mar (...)
(BARBOSA, In: FERREIRA, 1986, p. 166-167).
Da mesma forma, a afirmação da identidade cabo-verdiana cobrando uma solidariedade, é identificada nos versos de Ovídio Martins (1974) do poema “Flagelados do Vento-Leste”, “Somos os flagelados do vento-leste! / Os homens esqueceram-se de nos chamar irmãos / E as vozes solidárias que temos sempre escutado / São apenas as vozes do mar / que nos salgou o sangue / as vozes do vento / que nos entranhou o ritmo do equilíbrio (...)” (In: FERREIRA, 1986, p. 224-225).
A identificação com a tradição, o falar com a coletividade mostrando um caminho, o pulsar de uma nova atitude, são marcados nos versos
de Corsino Fortes (1977) do poema “Hoje queria ser apenas tambor no coração do Imbondeiro”:
(...) Não cubram! Irmãos
O rosto do povo de Cazenga
Com o escudo vermelho do ódio
Com o verde escudo da angústia
É da árvore do Amor
Que se constrói
O caixão
(...)
Erguemos bem alto
O sangue do povo de Cazenga
A alvorada
que rebenta
No coração do Imbondeiro
(In: FERREIRA, 1986, p. 239-240).
Percebe-se assim, que a literatura cabo-verdiana pós Claridade, apesar de não se direcionar diretamente ao colonialismo e à sua denúncia, buscava, a partir da pressão que o colonialismo acarretava, afirmar a identidade do país, através da valorização das especificidades locais e do modo de vida do cabo-verdiano.
3 GUINÉ-BISSAU
Ao contrário de Cabo Verde, em Guiné-Bissau não há preocupação identitária com o mar, pois não se trata de uma ilha. A tradição oral em Guiné-Bissau também é diferente de Cabo Verde. A intimidade entre os dois países, porém, é muito grande, tanto que o PAIGC (partido político) lutou pela libertação dos dois países em conjunto, embora articulando formas diferentes para cada um. Além disso, a
comunidade de cabo-verdianos na Guiné-Bissau é significativa, tendo sido esta ex-colônia portuguesa administrativamente vinculada a Cabo Verde até 1879.
Em Guiné-Bissau, “praticamente, até à independência nacional, não se ultrapassou a fase da literatura colonial. E esta mesma de reduzida extensão. (...) O regime colonial português pôde construir nessa antiga colônia os entraves suficientes ao desenvolvimento criativo”. (FERREIRA, 1986, p. 163).
Entre as várias etnias circula o crioulo (diferente do crioulo de Cabo Verde e de São Tomé e Príncipe), que tende cada vez mais a funcionar como autêntica língua de contato, tendo deixado, no entanto, o seu rastro apenas na literatura oral e em algumas canções de luta nos quadros do PAIGC.
Embora durante a guerra colonial, nas áreas libertadas pelo PAIGC, se tivesse procedido a uma aturada alfabetização, compreende-se que a juventude, essencialmente empenhada na luta de libertação nacional, ou então retraída a que vivia na capital, só agora encontre os meios necessários para se revelar no plano da criação e construir a autêntica literatura do seu país. (FERREIRA, 1986, p. 163).
Dessa forma, a literatura da Guiné-Bissau passa a dar visibilidade à pobreza destacando o problema da colonização portuguesa como principal responsável. Além desse fator, a etnicidade, a oralidade (crioulo) e o PAIGC fazem parte da identidade guineense.
A relação colonizado x colonizador, marcada pela tensão entre discursos e tensão entre estratégias do colonizador e resistência do colonizado, pode ser percebida nos versos de Vasco Cabral (1956), do poema Anti-delação:
A noite veio,
disfarçada em dia
e ofereceu-me a luz,
diáfana como a Aurora.
Mas eu disse que não.
(...)
Por fim veio Pilatos,
disfarçado em Cristo
e numa voz humana e doce
disse: <="" p="" o="" eu="" dou-te="">
mas conta a tua história...>
Mas eu disse que não,
que não, não, não!
E continuei um Homem!
E eles continuaram
os abutres do medo e do silêncio.
(In: FERREIRA, 1986, p. 291)
Percebe-se também, nestes versos, uma perspectiva entre dois sujeitos (eu / eles) e humanística (marxista) – devido ao contato com a ex-URSS – que são marcos da produção literária da Guiné.
4 SÃO TOMÉ E PRÍNCIPE
A evolução de São Tomé e Príncipe teria sido paralela, em muitos pontos à de Cabo Verde. Mas nos meados do século XIX, implantando-se o sistema de da monocultura, a burguesia negra e mestiça vai ser substituída pelos monopólios portugueses e o seu processo social alterado e travada a miscigenação étnica e cultural. Mesmo assim, em grau relativo, patentes são os efeitos do contato de culturas traduzido em vários aspectos, sobrtudo ao nível das camadas da burguesia africana. A sua poesia, de um modo geral, exprime exatamente isso: por um lado, as marcas de uma mestiçagem; por outro lado, os profundos nexos que vinculam o homem de S. Tomé ao mundo genuinamente africano. (FERREIRA, 1986, p. 210).
A identidade santomense (santomensidade) é caracterizada pela insularidade – já que se tratam de ilhas -, pela etnicidade – marcada
por uma forte tensão na questão racial -, oralidade – destacada pelo crioulo (forro) -, pela natureza – que, diferentemente de Cabo Verde que possui o vento leste, denota exuberância -, pela negritude / mestiçagem – abordada sob a perspectiva do trânsito de pessoas. Ao contrário de Cabo Verde, a mestiçagem é muito questionada em função do contato intelectual com os pensadores da Negritude (franceses e caribenhos) -, e pela tensão anti-colonial.
Os versos do poema Serões de São Tomé (1916) de Costa Alegre, abordam a perspectiva da relação colonial através da metáfora da mulher branca (colonizador) como fria em contrapartida com a mulher negra (colonizado):
Minha amante é escura noite,
Que me convida a dormir,
Quando os seus lábios descerra
Vejo os astros a luzir.
A neve que cai na serra
Esfria tudo em redor;
Quem se afoita a amar as brancas,
Se da neve têm a cor?
(In: FERREIRA, 1986, p. 433).
Da mesma forma, o mesmo poeta aborda o conflito da tensão anti-colonial no poema Aurora, metaforizando a figura do colonizador (Aurora) abordando a questão do conflito no verso final do poema:
Tu tens horror de mim, bem sei, Aurora,
T és dia, eu sou a noite espessa,
Onde eu acabo é que teu ser começa..
(...)
És a luz, eu sou a sombra pavorosa,
Eu sou a tua antítese frisante,
Mas não estranhes que te aspire formosa,
Do carvão sai o brilho do diamante.
(...)
Que me obriga a dizer-te !
(In: FERREIRA, 1986, p. 437).
O poeta Francisco José Terneiro, com o poema Exortação (1982), demonstra a face da Negritude presente na literatura santomense através de uma chamada para uma atitude em termos de Negritude, expressa pelos seguintes versos: “Negro! / Levanta os olhos prao sol rijo e ama tua mulher / na terra húmida e quente!” (In: FERREIRA, 1986, p. 447).
Finalmente, sobre a questão da relação colonizador x colonizado na literatura santomense, Alda do Espírito Santo com o poema Fevereiro (1970), aborda a esperança ao reverenciar uma perspectiva de futuro:
Silêncio na rua, silêncio nas almas
Um minuto de silêncio angustiado
Repicar de sinos na aurora dos tempos
Um silêncio reverente
Para a página do futuro
(In: FERREIRA, 1986, p. 465).
5 ANGOLA
É na segunda metade do século XIX que uma atividade literária e cultural intensas para a época acontece.
E não deixa de ser curioso anotar que, já nesse período, (...), paralelamente àquilo que se vem designando por literatura colonial, encontramos obras de alguns autores que não poderão ser inscritas
na genérica designação de literatura colonial: umas vezes serão portugueses profundamente radicados em África, quase todos eles jornalistas combativos e criadores literários, (...). Ou então serão mesmo autores africanos (...), a maioria militando (...) no jornalismo, em grande parte político e interveniente, não raro denunciador de prepotências e abusos da administração colonial ou de desmandos e repressões de setores políticos e econômicos. Nesse jornalismo intervêm não só brancos como negros e mestiços. (FERREIRA, 1986, p. 61).
A partir do início do século XX, como lembra Ferreira (1986, p.61), cria-se um vazio na atividade literária angolana, que se prolonga por longos anos, ocorrendo majoritariamente produções de literatura colonial. A partir de 1935, porém, a linha africana é reintegrada a partir de António de Assis Júnior com seu romance “O segredo da morta”. Caberia ao romanista Castro Soromenho dar à literatura angolana uma estatura de indiscutível qualidade e radicação social e humana, perfeitamente representativa de uma situação colonial concreta, denunciando a violência e a humilhação a que estavam sujeitos negros e mestiços, mas nos quais residia já uma força potencialmente eufórica. Com o Movimento dos Jovens Intelectuais de Angola (1948), surge uma nova fase da literatura angolana. O lema “Vamos Descobrir Angola!” é adotado responsabilizando a reconversão cultural e política do país. Surge o termo “angolanidade” para exprimir essa preocupação estético-social de fidelidade à mãe-África. Várias publicações surgem mostrando, entre outros, uma ruptura e estruturação lingüística que perpassa pelo português falado nos muceques (ghettos da cidade de Luanda) e integração do quimbundo. Como lembra Ferreira (1986, p. 62), é nas páginas destas publicações e noutras como “Mensagem” (1949-1965), órgão da Casa dos Estudantes do Império (Lisboa), tornada num importante núcleo, cultural e político, de estudantes e intelectuais africanos de Portugal, que, através da poesia, do conto, do ensaio e da crítica, os jovens escritores africanos, com predominância para os angolanos, vão corporizando a decisão anteriormente assumida de criar, de vez, uma literatura verdadeiramente nacional. De resto, ao longo de todo este percurso houve sempre um esforço no sentido de ser mantida íntima ligação entre os intelectuais africanos progressistas vivendo em Portugal e os que permaneciam em África. Esta ligação culminou com a primeira manifestação pública na divulgação da poesia africana de expressão portuguesa, lançada fora de circuitos mais ou menos privados.
Na década de 60, período violento da guerra colonial, a repressão cultural fazia-se sentir a todos os níveis. Escritores presos, outros
exilados, outros participando na luta armada, alguns em Portugal, muitos outros silenciados pela ameaça ou pelo medo. E uma censura feroz, perversa e eficaz. (FERREIRA, 1986, p. 62).
Porém, mesmo nesse período, registra-se a publicação de alguns livros de poesia. No início da década de 70 pareceu querer reanimar-se, embora timidamente, a atividade literária em Angola, abrindo-se certas possibilidades editoriais a partir de iniciativas individuais ou em grupo, que entre outros, alargaram o espaço poético angolano. Nesse cenário a ação literária e cultural do M.P.L.A. (Movimento Popular de Libertação de Angola) foi muito importante durante a luta de libertação nacional.
Apenas no período de descolonização (a partir de abril de 1974), criaram-se as condições para a construção de uma cultura desalienada, abrindo largas perspectivas editoriais, não apenas em relação a autores já conhecidos como à revelação de vários outros.
O poema “Partida para o Contrato”, de Agostinho Neto (1985, p. 11), reflete o questionamento sobre até quando as desigualdades causadas pelo sistema colonial durariam em Angola, sob uma perspectiva de chamada para a atitude:
“O rosto retrata a alma
Amarfanhada pelo sofrimento
Nesta hora de pranto
Vespertina e ensangüentada
Manuel
O seu amor
Partiu para S. Tomé
Para lá do mar
Até quando?”
Da mesma forma, no poema “Quitandeira” do mesmo autor (op. cit. p. 23), há a descrição da situação em que a quitandeira se enxerga, como alguém que não vale nada – realidade vivenciada perante o sistema:
“A quitanda.
Muito sol
E a quitandeira à sombra
Da mulemba.
(...)
A quitandeira
Que vende fruta
Vende-se.
Aí vão as laranjas
Como eu me ofereci ao álcool
Para me anestesiar
E me entreguei às religiões
Para me insensibilizar
E me atordoei para viver.
Tudo tenho dado.
(...)
Talvez vendendo-me
Eu me possua.
- Compra laranjas!”
As perspectivas de Agostinho Neto, tanto em sua poesia quanto na narrativa, apontam para uma crença de que o projeto intelectual em Angola só seria plenamente realizado em gerações futuras.
Partindo da lírica para a narrativa, textos do período colonial, como “Nga Muturi” (1882) de Alfredo Troni – revolucionário na época por
colocar uma mulher como personagem principal, utilizando um modelo formal europeu literário, mas com roupagem angolana (com marcas locais muito fortes), também devem ser levantados como parte da busca por uma identidade angolana na literatura. “A Morte da Chota” de Castro Soromenho também aponta a condição da mulher de submissão, permeado por referências da tradição oral como forma de identidade do projeto literário angolano (até a década de 1980). “Vovô Bartolomeu” de Antônio Jacinto aponta as referências à tradição através da imagem do corpo sempre muito presente (dança, ritmo), marcado pela alternância de registro de escrita (português padrão e português marcado por uma fala local), reproduzindo o discurso geral pessimista e propondo no final uma crítica a isso.
O resultado desse projeto literário (fazer poético) em Angola foi a luta armada (guerrilha), literalmente.
6 MOÇAMBIQUE
As pesquisas sobre a literatura moçambicana do século XIX ainda é incipiente, em relação às pesquisas do mesmo período para a literatura angolana. No entanto, “não será arriscar demasiado dizer que a atividade cultural de Moçambique naquele período deve ter sido sobretudo orientada para o jornalismo”. (FERREIRA, 1986, p. 177). Houve, ainda de acordo com Ferreira (1986, p. 177), jornalistas que desempenharam um papel importante na luta contra o obscurantismo político e cultural, não obstante as dificuldades de toda a ordem que houveram de tornear para que sua intervenção se mantivesse digna e inteira.
Somente na década de 30, surge o nome de Rui de Noronha (1909-1943) e com ele são dados os primeiros passos para a criação de uma literatura moçambicana. A partir de 1955 ocorre o surto de uma atividade cultural com uma feição que apontava às raízes da vida moçambicana. “Mas é com msaho (1952), revista que se publicou apenas um número, (...), que se dá pelo sinal organizado e coletivo da instauração de uma poesia (literatura) de raiz autóctone”. (FERREIRA, 1986, p. 178). Porém, como lembra Ferreira (1986, p. 178), o verdadeiro vôo na violenta e complexa realidade moçambicana, ao sopro e ao rigor de uma visão concretamente nacional, é desencadeado no discurso poético de Noêmia de Sousa, a partir de 1949.
Na área da narrativa, embora mais escassa, o primeiro nome que se impõe é o de João Dias, que relativamente cedo introduz no discurso narrativo o sofrimento do homem negro no mundo colonizado.
Chamemos, no entanto, a atenção para o fato de na poesia de Moçambique, e não só na poesia como também na ficção, ser possível, (...) apartar duas linhas perfeitamente definidas, como que confrontando-se (às vezes conjugando-se) a todo momento: a de compromisso total com o real moçambicano e a de compromisso com esse mesmo real; ou, se não, sem que ele seja a tônica do discurso. (...) A intenção do autor angolano, por sistema, seja negro, mestiço ou branco, foi a de grudar-se, tanto quanto possível, ao universo não de uma camada européia mas da vasta área tecida pelo fundo africano, marcado por situações decorrentes do sistema colonial. Tal fato resulta da miscigenação étnica e cultural ter sido mais intensa em Angola (...) criando-se ali uma maior permeabilidade entre camadas sociais paralelas, embora constituídas por elementos de cor diferente. Não foi exatamente assim em Moçambique, dado que ali os compartimentos raciais eram mais rígidos e os grupos representativos da expressão estético-literária numericamente mais equilibrados, ou com predominância para o grupo europeizado, tendia a ser reabsorvido pela maioria que é aquela que está sintonizada com as aspirações coletivas. (FERREIRA, 1986, p. 178).
A tradição oral, abordada pelo projeto da literatura moçambicana, pode ser observada no poema “Karingana ua karingana” de José Craveirinha. O título representa uma expressão similar ao “era uma vez” brasileiro, utilizado pela oralidade na contação de estórias, por exemplo. Já o poema “Grito Negro”, do mesmo autor, marca a opressão do negro pelo sistema colonial, principalmente através da metáfora do carvão apresentada nos seguintes versos:
Eu sou carvão!
Tenho que arder
E queimar tudo com o fogo da minha combustão.
Sim!
Eu serei teu carvão
Patrão!(In: APOSTILA DE CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS AFRICANOS E AFRO-BRASILEIROS,2005).
A marca da tradição como forma de busca identitária e da abordagem da exclusão pelo sistema colonial são marcas da literatura moçambicana em diversos autores.
7 CONCLUSÃOAs literaturas africanas de língua portuguesa foram instrumentos de busca de afirmação identitária, de denúncia de exclusão causada pelo sistema colonial. Cada uma a sua maneira, buscou uma forma de abordar a relação tensa entre colonizador x colonizado: em Cabo Verde buscava-se, a partir da pressão que o colonialismo acarretava, afirmar a identidade do país, através da valorização das especificidades locais e do modo de vida do cabo-verdiano; a literatura de Guiné-Bissau abordava a pobreza, responsabilizando a colonização portuguesa, marcando a etnicidade, a oralidade (crioulo) e a influência do PAIGC; em São Tomé e Príncipe, a mestiçagem é muito questionada, marcando ainda a tensão anti-colonial; o projeto literário em Angola foi a luta armada (guerrilha), literalmente; em Moçambique, a oralidade é a marca do projeto literário.
Este trabalho, através de trechos retirados de textos dos autores de cada país, procurou demonstrar como eles abordaram a questão da colonização portuguesa e seus impactos na sociedade de cada região, buscando, cada um à sua maneira e dentro do projeto literário de cada país, denunciar as mazelas da colonização e reestruturar a identidade local. A literatura foi, portanto, instrumento de luta nesse processo.
REFERÊNCIASAPOSTILA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS AFRICANOS E AFRO-BRASILEIROS, Literaturas Africanas de língua portuguesa: textos fundadores. 2005, Contagem: Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. FERREIRA, Manuel. Literaturas africanas de expressão portuguesa. São Paulo: Ática, 1986.LEITE, Ana Mafalda. A modalização épica nas literaturas africanas. Lisboa: Veja, 1995.NETO, Agostinho. Sagrada Esperança. São Paulo: Ática, 1985. SANTILLI, Maria Aparecida. Estórias Africanas – história e antologia. São Paulo: Ática, 1985.
Postado há 5th April 2010 por Patricia Luce 2
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1.
Taina Martins 13 de agosto de 2012 10:22
Merda
Segunda-feira, 9 de Julho de 2012
Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa. Manuel Ferreira. «Os portugueses chegaram à Foz do Zaire em 1482 e, em 1575, fundaram a primeira povoação portuguesa, São Paulo de Assunção de Loanda, hoje capital de Angola. Dos primeiros contactos com o Reino do Congo dá-nos testemunho a correspondência trocada entre os reis do Congo e os reis de Portugal»
jdact e cortesia de wikipedia
Descobertas e Expansão«A literatura africana de expressão portuguesa nasce de uma situação histórica originada no século XV, época em que os portugueses iniciaram a rota da África, polarizada depois pela Ásia, Oceânia, Américas. A historiografia e a literatura portuguesas, sob a óptica expansionista, testemunham o «esforço lusíada» da época renascentista.Cronistas, poetas, historiadores, escritores de viagem, homens de ciência, pensadores, missionários, viajantes, exploradores, enobreceram a cultura portuguesa e, em muitos aspectos, colocaram-na ao nível da ciência e das grandes literaturas europeias.Gomes Eanes de Zurara, João de Barros, Diogo do Couto, Camões, Fernão Mendes Pinto, Damião de Góis, Garcia de Orta, Duarte Pacheco Pereira, são alguns dos nomes cujo discurso é alimentado do «saber de experiência feito» alcançado a partir do século XV, em declínio já no século XVII e esgotado no século XVII.A obra de um Gil Vicente ou, embora escassamente, a de poetas do Cancioneiro, ao lado das «coisas de folgar», foram marcadas pela Expansão ao longo dos «bárbaros reinos». Estamos, assim, a referir uma literatura feita por portugueses, fruto da aventura no Além-Mar, no período renascentista.
Hernâni Cidade e outros glorificam-na no espírito da dilatação da «Fé e o Império» (A literatura portuguesa e a expansão ultramarina, 1963 e 1964). Chamemos-lhe a literatura das Descobertas e Expansão.É evidente que esta literatura, nascida de uma experiência planetária, numa época em que o mundo cristão reconhecia o direito à dominação, à depredação e até à barbárie (a cruz numa mão, e a espada noutra) nada tem a ver com a literatura africana de expressão portuguesa. Este registo destina-se apenas ou, sobretudo, a retermos factos longinquamente relacionados com o quadro cultural e político que, séculos depois, havia de surgir, e é a razão primeira destas páginas.Quando e como surgiu a literatura africana de expressão portuguesa? E como se desenvolveu?Os portugueses chegaram à Foz do Zaire em 1482 e, em 1575, fundaram a primeira povoação portuguesa, São Paulo de Assunção de Loanda, hoje capital de Angola. Dos primeiros contactos com o Reino do Congo dá-nos testemunho a correspondência trocada entre os reis do Congo e os reis de Portugal, além de documentos, como os relatórios dos padres jesuítas de Angola. Mas o aparecimento de uma actividade cultural regular na África associa-se intimamente à criação e desenvolvimento do ensino oficial e ao alargamento do ensino particular ou oficializado, à liberdade de expressão e à instalação do prelo, que se registam a partir dos anos quarenta do século XIX.
Literatura ColonialCom efeito, quatro anos apenas após a instalação do prelo em Angola ocorre a publicação do livro Espontaneidades da minha alma (1849), do angolano, mestiço ao que parece, José da Silva Maia Ferreira, o primeiro livro impresso na África lusófona. O primeiro livro impresso mas não a mais antiga obra literária de autor africano. Por pesquisas que recentemente levámos a cabo é anterior àquele, pelo menos, o poemeto da cabo-verdiana Antónia Gertrudes Pusich, Elegia à memória das infelizes victimas assassinadas por Francisco de Mattos Lobo, na noute de 25 de Junho de 1844, publicado em Lisboa no mesmo ano. Entretanto não será deslocado citarmos o Tratado breve dos reinos (ou rios) da Guiné, escrito em 1594, da autoria do cabo-verdiano André Alvares de Almada; e de origem cabo-verdiana se supõe ser André Dornelas, autor do século XVI, que assina uma descrição da Guiné. E até nós chegou, também, pela pena do historiador António Oliveira Cadornega, o eco de um poeta satírico, o capitão angolano António Dias Macedo, que «tinha sua veya de Poeta».
Se a Deos chamão por tu,e a el Rey chamão por vós,
como chamaremos nós,a três que não fazem hum,que o povo indiscreto, e nú
falto de experiência, fezem lugar de hum três
que com toda a Corteziatú, nem vós, nem Senhoria
merecem suas mercês
Tal, porém, não nos autoriza a remontarmos as origens da poesia angolana a tão recuados tempos, como já, com alguma intemperança, se quis insinuar. Repondo, por isso, a questão com certa objectividade pode afirmar-se que a literatura africana chama a si mais de um século de existência. Este longo período de mais de um século de actividade literária está, porém, contido em duas grandes linhas: a literatura colonial e a literatura africana de expressão portuguesa. A primeira, a literatura colonial, define-se essencialmente pelo facto de o centro do universo narrativo ou poético se vincular ao homem europeu e não ao homem africano. No contexto da literatura colonial, por décadas exaltada, o homem negro aparece como que por acidente, por vezes visto paternalisticamente e, quando tal acontece, é já um avanço, porque a norma é a sua animalização ou coisificação. O branco é elevado à categoria de herói mítico, o desbravador das terras inóspitas, o portador de uma cultura superior. Exemplo: «o único país que pode explorar seriamente a África, é Portugal» (prefácio de Manuel Pinheiro Chagas a Os sertões d’África, 1880, de Alfredo de Sarmento, onde aliás se pode ler sobre o negro: «É um homem na forma, mas os instintos são de fera»). Paradoxalmente, o branco é eleito como o grande sacrificado. A aplicação do ponto de vista colonialista tem no europeu o agente dinâmico e não o opressor: «Fiel aos nossos deveres de dominador, grata ao nosso orgulho, útil às populações», escrevia um homem anti-fascista, Augusto Casimiro (Nova largada, 1929). Predominavam, então, as ideias da inferioridade do homem negro, que teóricos racistas, como Gobineau, haviam derramado e para as quais teria contribuido o filósofo Lévy-Bruhl com a sua tese da mentalidade pre-lógica, sendo certo, embora, que a renunciou pouco antes de morrer». In Manuel Ferreira, Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa, Instituto de Cultura Portuguesa, Centro Virtual Camões, Instituto Camões, Oficinas Gráficas da Livraria Bertrand, 1977.
Cortesia do Instituto Camões/JDACTPublicada por JDACT à(s) 21:02
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