LITERATURA UERN

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Horto – Auta de Souza – Análise Horto – Auta de Souza Horto (1900), 116 poemas Auta de Souza (1876–1901) Gênero: Lírico (Poesia) Período literário: Romantismo / Simbolismo Simbolismo (1893–1902) O movimento simbolista nasceu na França, como uma reação contra os parnasianos, com a criação de revistas como Symbolisme, que prezavam em manifestar a falta de horizontes e das soluções em curto prazo, o que gerou uma poesia intimista, mística, buscando as sensações no inconsciente humano e na musicalidade dos versos. O Simbolismo no Brasil apareceu em 1893, com as obras Missal e Broquéis, do catarinense Cruz e Souza. Características do Simbolismo A) Subjetivismo: Os estados emocionais sugerem uma aura de mistério. O passado aparece para retomar a ideia do imaginário e da fantasia, normalmente ligados a uma realidade vaga, imprecisa. Enquanto o parnasiano tenta descrever, o simbolista traz a sugestão, causando um efeito diferente. B) Misticismo: As imagens noturnas surgem com frequência. As sombras, o escuridão, a morte, a névoa e a lua são palavras utilizadas para realçar o lado oculto e misterioso da vida, em constante contato com a solidão, explorando a sensibilidade emotiva. C) Musicalidade e sinestesias: Efeitos sonoros são largamente usados nos poemas, caso da aliteração (repetição dos sons consonantais) e assonância (repetição de sons vocálicos). Já a sinestesia traz inusitadas combinações entre sons, cores e perfumes no objetivo de expressar imagens e sensações. D) Reiteração: O uso repetido de palavras e expressões, ou até mesmo versos inteiros, também caracterizam a produção simbolista, o que reforça a ideia do símbolo – ou de sua sugestão – a ser retratada. Romantismo (1836–1882) O movimento literário tem origem na Alemanha, em 1774, como uma oposição aos elementos da antiguidade clássica utilizados pelo Arcadismo. No Brasil, surge como primeiro período literário surgido pós–independência. Suspiros poéticos e saudades (1836), do poeta Gonçalves de Magalhães é a obra inicial. Três tendências podem ser observadas na poesia romântica brasileira: a poesia indianista/nacionalista (o indígena como um ser nobre, de virtudes, mas idealizado), também chamada de Primeira Geração; a poesia do Ultra–romântica ou do “Mal–do–século(Byronismo, pessimismo, o gosto pelos elementos mórbidos, a vulnerabilidade diante dos problemas), igualmente chamada de Segunda Geração; e a poesia social ou “condoreira” (marcada pela denúncia das desigualdades, especialmente a escravidão), lembrada como sendo a Terceira Geração. Características do Romantismo (poesia) A) Individualismo, egotismo: O período prezava pela valorização do “eu”, da subjetividade que dava vazão às emoções, ao sentimentalismo, às confissões de ordem pessoal, intimista. A razão dava espaço ao estado emocional das personagens. B) Idealização do amor e da mulher: O amor é visto como o valor supremo da vida, envolvendo consequências extremas, como o suicídio ou a loucura, caso não seja realizado. Objeto do amor romântico, a mulher é idealizada, muitas vezes símbolo do amor platônico, surgindo como um ser perfeito, dotadas de virtudes morais e físicas que elevam a figura feminina. C) Escapismo, evasão da realidade: A fuga através do sonho e da imaginação, do tempo (como a infância), ou até da própria morte, aparece ao escritor romântico frequentemente como solução para os problemas, em razão do caráter individualista e da liberdade de criação. D) Valorização da natureza: O culto à natureza surge através de vários significados, chegando a fazer parte do estado emocional do escritor romântico, exaltando a condição de estar e perceber o mundo. Revisão UERN 2013 Prof. Édson Carlos Aluno(a): _____________________________________________________________________________________________ Turma: ___________________________ Turno: ___________________________ Data: _____/ _____ / 2013

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Horto – Auta de Souza – Análise Horto – Auta de Souza Horto (1900), 116 poemas Auta de Souza (1876–1901) Gênero: Lírico (Poesia) Período literário: Romantismo / Simbolismo Simbolismo (1893–1902)

O movimento simbolista nasceu na França, como uma reação contra os parnasianos, com a criação de revistas como Symbolisme, que prezavam em manifestar a falta de horizontes e das soluções em curto prazo, o que gerou uma poesia intimista, mística, buscando as sensações no inconsciente humano e na musicalidade dos versos.

O Simbolismo no Brasil apareceu em 1893, com as obras Missal e Broquéis, do catarinense Cruz e Souza. Características do Simbolismo

A) Subjetivismo: Os estados emocionais sugerem uma aura de mistério. O passado aparece para retomar a ideia do imaginário e da fantasia, normalmente ligados a uma realidade vaga, imprecisa. Enquanto o parnasiano tenta descrever, o simbolista traz a sugestão, causando um efeito diferente.

B) Misticismo: As imagens noturnas surgem com frequência. As sombras, o escuridão, a morte, a névoa e a lua são palavras utilizadas para realçar o lado oculto e misterioso da vida, em constante contato com a solidão, explorando a sensibilidade emotiva.

C) Musicalidade e sinestesias: Efeitos sonoros são largamente usados nos poemas, caso da aliteração (repetição dos sons consonantais) e assonância (repetição de sons vocálicos). Já a sinestesia traz inusitadas combinações entre sons, cores e perfumes no objetivo de expressar imagens e sensações.

D) Reiteração: O uso repetido de palavras e expressões, ou até mesmo versos inteiros, também caracterizam a produção simbolista, o que reforça a ideia do símbolo – ou de sua sugestão – a ser retratada.

Romantismo (1836–1882)

O movimento literário tem origem na Alemanha, em 1774, como uma oposição aos elementos da antiguidade clássica utilizados pelo Arcadismo. No Brasil, surge como primeiro período literário surgido pós–independência. Suspiros poéticos e saudades (1836), do poeta Gonçalves de Magalhães é a obra inicial.

Três tendências podem ser observadas na poesia romântica brasileira: a poesia indianista/nacionalista (o indígena como um ser nobre, de virtudes, mas idealizado), também chamada de Primeira Geração; a poesia do Ultra–romântica ou do “Mal–do–século” (Byronismo, pessimismo, o gosto pelos elementos mórbidos, a vulnerabilidade diante dos problemas), igualmente chamada de Segunda Geração; e a poesia social ou “condoreira” (marcada pela denúncia das desigualdades, especialmente a escravidão), lembrada como sendo a Terceira Geração. Características do Romantismo (poesia)

A) Individualismo, egotismo: O período prezava pela valorização do “eu”, da subjetividade que dava vazão às emoções, ao sentimentalismo, às confissões de ordem pessoal, intimista. A razão dava espaço ao estado emocional das personagens.

B) Idealização do amor e da mulher: O amor é visto como o valor supremo da vida, envolvendo consequências extremas, como o suicídio ou a loucura, caso não seja realizado. Objeto do amor romântico, a mulher é idealizada, muitas vezes símbolo do amor platônico, surgindo como um ser perfeito, dotadas de virtudes morais e físicas que elevam a figura feminina.

C) Escapismo, evasão da realidade: A fuga através do sonho e da imaginação, do tempo (como a infância), ou até da própria morte, aparece ao escritor romântico frequentemente como solução para os problemas, em razão do caráter individualista e da liberdade de criação.

D) Valorização da natureza: O culto à natureza surge através de vários significados, chegando a fazer parte do estado emocional do escritor romântico, exaltando a condição de estar e perceber o mundo.

Revisão – UERN – 2013

Prof. Édson Carlos

Aluno(a): _____________________________________________________________________________________________ Turma: ___________________________ Turno: ___________________________ Data: _____/ _____ / 2013

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Auta de Souza: Vida e Obra Nasceu em Macaíba (RN), em 12 de setembro de 1876, filha de Eloy Castriciano de Souza e Henriqueta Leopoldina de Souza e irmã de dois políticos e intelectuais, Henrique Castriciano e Eloy de Souza. Aos 14 anos apareceram os primeiros sinais da tuberculose, obrigando–a a abandonar os estudos e a iniciar uma longa viagem pelo interior em busca de cura. Aos 24 anos, no dia 07 de fevereiro de 1901, Auta de Souza morria de tuberculose. No ano anterior havia publicado seu único livro de poemas sob o título de Horto, com prefácio de Olavo Bilac, que obteve significativa repercussão na crítica nacional. Auta de Souza deve ser considerada a poetisa norte-rio-grandense que mais ficou conhecida fora do Estado até hoje, juntamente com Zila Mamede (tema da UFRN em 2006/2007). Uma leitura no horto, acerca do onírico e do etéreo na poesia de Auta de Souza

A obra da escritora potiguar Auta de Souza (1876–1901) resume–se ao livro Horto já publicado em cinco edições, chegando a figurar nas rodas literárias do país afora e até mesmo ser incluída no rol das antologias e manuais de poesia das primeiras décadas do século passado. Citem–se os prefácios à 1ª edição, 1901, assinado por Olavo Bilac e à 3ª edição, 1970, assinado por Alceu Amoroso de Lima, o Tristão de Ataíde, para denotar uma poeta não restrita apenas ao círculo literário potiguar. Isso e a publicação de apenas um livro a inclui no rol de espólios dum exemplo e dum grupo de nomes que ainda merecem enfoque em torno de sua biografia, sua produção literária e sua poesia, haja vista que em torno desta última, uma obra literária, é sempre fonte inesgotável de estudos. Como se trata de um estudo bibliográfico é–nos útil, em primeiro plano, a leitura literária da obra em questão, Horto (2001), e, em segundo plano, as leituras teóricas de Gomes (2001), Câmara Cascudo (1961), Leão (1986), entre outros, a fim de fundamentar o presente estudo que toma como objeto o último aspecto dos três enfoques apresentados. O intuito é o de enriquecer o corpus crítico em torno da obra da autora, introduzindo novas forças e outras perspectivas, entendendo a poética de Auta de Souza ancorada em dois temas específicos: o da viagem para a infância compreendida em devaneio nostálgico e o acentuar de pesadelos como a morte; e o da viagem etérea, sendo ambas permeadas por uma viagem post–mortem. A proposta em explorar a obra da poeta sob esse aspecto permitiu enxergar a manifestação da sua criação poética sob um novo prisma, diferente dos que já se marcam no espaço de sua crítica. O escapismo adquire múltiplos contornos, diversas facetas na constituição de sua poética e o que isto quer dizer é que as formas identificadas não são as únicas existentes. A viagem para a infância se afigura como ponto de partida ideal na sua poética, visto que a nosso ver a autora empreende uma viagem em busca da eternidade

sentindo a necessidade de retorno ao que de mais parecido com Cristo viveu em vida. A viagem onírica, então se desencadeia a partir de um retorno as origens, a um tempo–outro, que afinal é molde e mote diversificado, necessário a viagem etérea, ou post–mortem, dada por uma poética do devaneio. No mais, a obra de Auta de Souza, constitui num espaço contínuo de investigação psíquico–literária. Estudos mais amplos acerca da sua poesia são necessários a fim de investigar estas questões em torno de sua produção poética, uma poética que se assenta a dimensão segunda em que se apoia a linguagem humana – a simbólica, a mística e a mágica. Auta de Sousa: neo-romântica, simbolista, moderna

Luís da Câmara Cascudo, biógrafo de Auta de Sousa (1876–1901) afirma: “Não pode haver duas opiniões sobre Auta de Sousa. É a maior poetisa mística do Brasil”. Concordemos todos com o título merecido pela suave e comovente Auta de Sousa. Sua poesia é magnífica, tão límpida, tão musical, fonte de palavras de tal modo entrelaçadas que passam a ser poderoso rio de sensações estéticas e espirituais para o leitor.

Mas divergem os críticos quanto à filiação acadêmica da autora. Uma neo–romântica? Ou simbolista?

Lembremos que estamos em 1900, quando da 1ª edição de “Horto”, concebido poucos anos antes, uma compilação de poesias da juventude da autora, unidas por uma identidade vigorosa e original. Lembremos que suas primeiras poesias são publicadas aos 17 anos, em 1893.

Nesse espaço de tempo reinava glorioso o parnasianismo, escola da impassibilidade, do ideal da forma, que teve figuras representativas no Brasil.

O romantismo, que se esgotara na Europa em meados do século XIX, salvo alguns românticos tardios, imperou no Brasil por mais tempo. Mas no final do século XIX, o positivismo na ciência, o naturalismo na prosa, o parnasianismo na poesia, eram a regra. Mas a nossa Auta não era parnasiana, apesar de apreciar poetas dessa escola, como Olavo Bilac.

Muitos críticos reconhecem em Auta de Sousa os paradigmas dos românticos, tal a ideia da natureza como abrigo e ideal, a religiosidade, a contemplação, a abertura às emoções, o individualismo, que fazem de Auta de Sousa uma neorromântica ou romântica tardia, como tantos da literatura mundial.

Mas nesse fim de século XIX eclodiram movimentos artísticos rebeldes, como o impressionismo na pintura, contra o classicismo, e na literatura o simbolismo (primeiramente chamado de decadentismo) contra o academicismo do Parnaso; em breve, esse movimento se irradiaria mundialmente, enquanto na França, pátria do simbolismo, já brilhavam as estrelas de Verlaine, Rimbaud, Laforgue, Corbière, e também brilhava no Brasil a voz expressiva de Cruz e Sousa, tardiamente reconhecida.

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Teria Auta de Sousa tido conhecimento do movimento simbolista? Sabemos que a poeta dominava o idioma francês e lia no original Lamartine, Chateaubriand, Vitor Hugo, Fénelon. Teria tido acesso também, por caminhos indiretos, à poesia simbolista dos poetas franceses? Chegou a ler Cruz e Sousa?

São perguntas pertinentes, porque na poesia de Auta de Sousa também estão presentes vários caracteres desse movimento, como a valorização do mistério da vida, e como definição “misticismo, tom idealista e religioso, a teoria das correspondências sensoriais, a religião da beleza”.

Baseado na teoria de Edgar Allan Poe, de que o poeta é o intérprete de uma simbologia universal, Mallarmé levou para o simbolismo essa teoria da missão do poeta – recriar o absoluto pela poesia, formular as derradeiras correspondências. Assim, a criação cósmica e a criação poética são paralelas. Segundo Mallarmé, “não se devia dar nome ao objeto, mas sugeri–lo, invocá–lo pouco a pouco”, processo encantatório que caracteriza o simbolismo. O Simbolismo teve influência sobre grandes poetas do século XX como Rilke, Yates e Claudel, entre outros.

Reconhecemos nas poesias de Auta de Sousa, em Horto, uma configuração neorromântica e também marcadamente simbolista, uma visão não excluindo a outra. Antes se completando, harmoniosamente, quando sabemos que de uma certa forma o Simbolismo é uma continuação do Romantismo, tendo como elementos comuns a espiritualidade, a interiorização, o subjetivo, o individualismo, o vago, o misterioso, o ilógico, sendo esses três últimos itens mais frequentes no Simbolismo.

Vejamos em Auta de Sousa uma poesia simbólica, como “Horto”, que dá nome ao livro. Tudo nessa poesia é metáfora, maravilhosamente construída, de queda à ascensão, de tristeza a clarões de fé, de dúvida angustiante à certeza da revelação, e tudo numa imagética de construção magnífica, de correspondências perfeitas entre o horto interior e o horto bíblico, um jardim subjetivo que se desdobra silenciosamente em alamedas, ora sombrias de pensamentos angustiantes, ora gloriosamente abençoadas pela luz.

A poesia toda com a musicalidade tão cara ao Simbolismo. Eis algumas poesias simbolistas de Auta de Sousa:

“Crepúsculo” – “O Ângelus soa vagarosamente/ A noite desce plácida e divina./ Ouço gemer meu coração doente/ chorando a tarde, a noiva peregrina”. Soneto com 16 versos, que abre com os dois primeiros decassílabos do segundo quarteto, como epígrafe: “Há pelo espaço um ciciar dolente/ De prece em torno da igrejinha em ruínas ...”.

E vejamos a poesia “Ao luar” (de junho de 1896). Imagens se sucedem em tons esmaecidos e musicalidade, lembrando Cruz e Sousa: “Astros celestes, docemente louros/ giram no espaço em luminoso bando;” (...) “Quanta tristeza pela noite clara!/ Quanta saudade pela luz boiando!” (...) “Flocos de nuvens pela Esfera adejam”. “Barcos de neve pelo Azul formando (...) Neles vagar por todo céu dourado” // “Eles parecem também velas brancas/ soltas, à toa, pelo Mar vagando .../ Folhas

de lírios pelo Ar suspensas / Aves saudosas ao luar chorando”. Cores esmaecidas, e dourado, branco, azul, e o branco se repetindo: “lua branca”, “rosas brancas”, e nesse cromatismo a figuração onírica: “E essas estrelas, muito além dispersas/ São rosas brancas no Infinito imersas/ Monjas benditas, ao luar chorando”. E o clímax sobrenatural, tão do simbolismo: “As preces tristes de um magoado coro/ De almas penadas ao luar rezando”.

Eis o lirismo de Cruz e Sousa em “Antífona”, na sua famosa invocação: “Ó Formas alvas, brancas, Formas claras / De luares, de neves, de neblinas (...) / Ó Formas vagas, fluídas, cristalinas... / Incensos dos turíbulos das aras”. Parece então haver um contraponto entre as duas poesias, a de Cruz e Sousa, que é anterior, e a de Auta de Sousa.

E eis o vocabulário litúrgico, tão caro aos simbolistas, repetido em Auta de Sousa: “Ao longe o luar vem dourando a treva /... Turíbulo imenso para Deus eleva/ o incenso agreste da jurema em flor //”. O toque brasileiro da “jurema em flor”, de regional torna–se universal.

Auta de Sousa colaborou no jornal “A República”. Esse jornal, no dizer de Luiz Fernandes, historiador da imprensa da época, era “o de maior circulação, o mais lido, mais espalhado pelo Brasil, porque permutava com a imprensa do sul, do norte e do centro”.

Por seu lado, Cruz e Sousa, precursor do Movimento Simbolista no Brasil, publica em 1893 Missal, prosa poética, e Broquéis, poemas. E antes, em 1890, tendo se transferido para o Rio de Janeiro, junta–se ao grupo de escritores do jornal Folha Popular, B. Lopes, Oscar Rosas e Emiliano Perneta, publicando o Manifesto do Simbolismo no Brasil.

Os jornais circulam. Podemos mesmo supor um mútuo conhecimento dos dois poetas. Possível pois que referências do simbolismo e de Cruz e Sousa tivessem chegado a Auta de Sousa? Ou mesmo teria ela conhecimento dos poetas simbolistas franceses? Auta teve uma educação esmerada em colégio católico francês, no Recife. Falava francês fluentemente e lia seus autores no original. Participou da vida intelectual da época.

Estamos nas conjecturas, porque na lista extensa de autores que a poeta lia, citados pelo seu irmão, também intelectual, não consta o nome de autores simbolistas. Ou teria a poeta chegado aos seus cânones poéticos e ao seu imaginário independentemente de outras influências?

Sobre o assunto ver também o ensaio de Giselda Lopes do Rego Pinto, “Auta de Sousa e a estética simbolista”, de 1974. Ambos poetas, Cruz e Sousa, de Santa Catarina, e Auta de Sousa, do Rio Grande do Norte, eram de ascendência negra. Ambos sofreram doença grave, a tuberculose. Ambos sublimam seu sofrimento através da poesia, em metáforas, cores e música das palavras. Ambos poetas de final do século XIX, eleitos pelo Simbolismo, ressaltando–se que as condições familiares, econômicas e sociais foram mais favoráveis para Auta do que para Cruz e Sousa. Auta, além disso, sofreu a perda de seu irmão mais novo, de forma trágica, o que marca dolorosamente várias de suas poesias.

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Mas mesmo com esse sofrimento, a poesia de Auta é vigorosa, de grande força vital, em seu transcendentalismo e espiritualidade. Por outro lado, nota–se em sua poesia um toque de sensualidade estética, que permite louvar a beleza física de várias figuras de seus poemas, profanas ou místicas. O que nos lembra a sensualidade descritiva de outra grande poeta, a mexicana Juana Inês de La Cruz, seiscentista.

Vejamos outra poesia de Auta de Sousa, com a aura do romantismo, “Fio Partido”, a última poesia do seu livro, escrita em 1o. de janeiro de 1901, numa antecipação de sua morte. Lembremos que a poetisa tinha especial carinho pelos poetas românticos Casemiro de Abreu, Gonçalves Dias e Luis Murat. “Fugir à mágoa terrena/ E ao sonho que faz sofrer, / Deixar o mundo sem pena/ Será morrer? // Fugir neste anseio infindo / À treva do anoitecer, / Buscar a Aurora sorrindo / Será morrer? // E ao grito que a dor arranca / E o coração faz tremer, / Voar uma pomba branca / Será morrer? //”. II. “Lá vai a pomba voando / Livre, através dos espaços ... / Sacode as asas cantando: / ‘Quebrei meus laços’. // Aqui, n’amplidão liberta, / Quem pode deter–me os passos? / Deixei a prisão deserta, / ‘Quebrei meus laços!’ // Jesus, este vôo infindo / Há de amparar–me nos braços / Enquanto eu direi sorrindo: / Quebrei meus laços!”. Essa poesia, com seu refrão “Será morrer?”, que se completa com outro, “Quebrei meus laços”, é de uma harmonia celeste e em movimento.

Sua composição é também extremamente musical. Diga–se de passagem que poesias de Auta de Sousa foram musicadas por vários compositores.

Dos poetas brasileiros sabe–se que conhecia e admirava Casemiro de Abreu, Gonçalves Dias, Luiz Murat e Olavo Bilac.

Lia os poetas franceses românticos, principalmente Lamartine e Vitor Hugo. Escreveu em francês seu belíssimo poema Agnus Dei, com epígrafe de Lamartine.

O livro “Horto” teve a 1ª edição em 1900, com prefácio de Olavo Bilac, e foi publicado poucos meses antes da morte de Auta de Sousa. A 2ª edição é de 1911, impressa em Paris, com uma “Nota”, breve biografia da autora, por seu irmão Henrique Castriciano de Sousa. De 1936 é a 3ª edição de “Horto”, prefácio de Alceu Amoroso Lima (Tristão de Ataíde), Rio de Janeiro. 1970, 4ª edição de “Horto” pela Fundação José Augusto, Natal, RN, contendo poesias das três edições anteriores, mais 17 poesias inéditas. E em 2001, em Natal, a 5ª edição de “Horto” na “selecionadíssima Coleção Nordestina, lançadas pelas Editoras Universitárias do Nordeste”, nas palavras de Valério Mesquita, autor da orelha do livro, este também com extensa e valiosa “Introdução para um Estudo da Vida e Obra de Auta de Sousa”, de Ana Laudelina Ferreira Gomes. O livro de Auta de Sousa é riquíssimo, um panorama de beleza a ser contemplado demoradamente, num desdobrar de anotações, comentários, referências, para o crítico e o leitor, não se esgotando em um só comentário como o presente.

Poemas de tendência simbolista em Auta de Souza “Cantiga”

Meu sonho dourado e leve, Que buscas tu a voar? Um ninho branco de neve Onde me deixem cantar. E em busca das nuvens belas Lá vai meu sonho a cantar... Meu sonho das estrelas, Meu sonho cor do luar. Pergunto ao sonho chorando, Por que foges a cantar? E ele responde, cantando: Por que foges a cantar? E em busca das nuvens belas Foi–se meu sonho a cantar... Meu sonho cor das estrelas, Meu sonho cor do luar. “Ao Luar”

A Maria Fausta e a Mêrces Coelho Astros celestes, docemente louros, Giram no espaço, em luminoso bando; Ouve–se ao longe um violão plangente E, mais além, num soluçar dolente, Canções serenas, ao luar voando. Quanta tristeza pela noite clara! Quanta saudade pela azul boiando! Cuida–se ouvir, num dolorido choro, As preces tristes de um magoado coro De alma penadas ao lugar rezando. O céu parece uma igrejinha antiga Que a lua branca vai alumiando... E essas estrelas, muito além dispersas São rosas brancas no Infinito imersas, Monjas benditas, ao luar chorando. [...] Flocos de nuvens pela Esfera adejam, Barcos de neve pelo Azul formando... Semelham preces que se vão da terra, Almas mimosas, que este mundo encerra, De criancinhas, ao luar sonhando. [...] Ai, quem me dera ser também criança! Ai, quem me dera andar também voando! Fazer dos astros um barquinho amado, Nele vagar por todo o céu dourado, As minhas dores ao luar cantando!

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Poemas de tendência romântica em Auta de Souza “Agonia do Coração” Estrelas fulgem da noite em meio Lembrando círios louros a arder... E eu tenho a treva dentro do seio...

Astros! velai–vos, que eu vou morrer! Ao longe cantam. São almas puras Cantando à hora do adormecer... E o eco triste sobe às alturas... Moças! não cantem, que eu vou morrer!

As mães embalam o berço amigo, Doce esperança de seu viver... E eu vou sozinha para o jazigo... Chorai, crianças, que eu vou morrer! Pássaros tremem no ninho santo Pedindo a graça do alvorecer... Enquanto eu parto desfeita em pranto... Aves, suspirem, que eu vou morrer! De lá do campo cheio de rosas Vem um perfume de entontecer... Meu Deus! que mágoas tão dolorosas... Flores! Fechai–vos, que eu vou morrer! “Passando” Quando me vêem passar risonha e calma, Sem um pesar que me anuvie a fronte, Perdido o olhar na curva do horizonte, Cuidam que eu tenho o paraíso na alma. Mesmo encontrei quem me dissesse um dia: “Invejo–te a existência descuidosa”. Como se espinhos não tivesse a rosa, Ou fosse a vida isenta de agonia! Porém, enquanto, desdenhosa, altiva, Eu vou passando, alegre ou pensativa... A rir, a rir, como um feliz demente, Meu pobre coração dentro do peito – Triste doente a agonizar no leito – Vai soluçando dolorosamente... “Nunca Mais” ...Il n’est plus dans mon coer Une fibre que n’est résonné sa Douler. LAMARTINE – Harmonies Que é feito de meu sonho, um sonho puro Feito de rosa e feito de alabastro, Quimera que brilhava, como um astro, Pela noite sem fim do meu futuro? Que é feito deste sonho, o cofre aberto Que recebia as gotas de meu pranto, Bagas de orvalho, folhas de amaranto, Perdidas na solidão de meu deserto?

Ele passou como uma nuvem passa, Roçando o azul em flor do firmamento... Ele partiu, e apenas o tormento, Sobre minh’alma triste, inda esvoaça. Meu casto sonho! Lá se foi cantando, Talvez em busca de uma pátria nova. Deixou–me o coração como uma cova, E, dentro dele, o meu amor chorando. Nunca mais voltará... Pois que lhe importa Esta morada lúgubre e sombria? Não pode agasalhar uma alegria Minh’alma, pobre morta! Poemas para Leitura e Análise em Sala de Aula No Horto "Oro de joelhos, Senhor, na terra Purificada pelo teu pranto... Minh'alma triste que a dor aterra Beija os teus passos, Cordeiro santo! Eu tenho medo de tanto horror... Reza comigo, doce Senhor! Que noite negra, cheia de sombras. Não foi a noite que aqui passaste? Ó noite imensa... por que me assombras, Tu que nas trevas me sepultaste? Jesus amado, reza comigo... Afasta a noite, divino amigo! Eu disse... e as sombras se dissiparam. Jesus descia sobre o meu Horto... Estrelas lindas no céu brilharam, Voltou-me o riso, já quase morto. E a sua boca falou tão doce, Como se a corda de um’ harpa fosse: "Filha adorada que o teu gemido Ergueste n'asa de uma oração, Na treva escura sempre envolvido, Por que soluça teu coração? Levanta os olhos para o meu rosto, Me à vista dele foge o Desgosto. Não tenhas medo do sofrimento. Ele é a escada do Paraíso...

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Contempla os astros do firmamento, Doces reflexos de meu sorriso. Não pensa em dores nem canta mágoas, A garça nívea fitando as águas. Sigo-te os passos por toda parte, Vivo contigo como um irmão. Acaso posso desamparar-te Quando me trazes no coração? Nas oliveiras do mesmo Horto, Enquanto orares,terás conforto. Olha as estrelas... No céu escuro Parecem sonhos amortalhados... Assim, nas trevas do mundo impuro, Brilham as almas dos desolados. Mesmo das noites a mais sombria Sempre conduz-nos à luz do dia." Ergui os olhos para o céu lindo: Vi-o boiando num mar de luz... E, então, minh'alma num gozo infindo, Chorando e rindo, disse a Jesus: "Guia o meu passo, nos bons caminhos, Na longa estrada cheia de espinhos. Dá-me nas noites, negras de dores, Uma cruz santa para adorar, E em dias claros, cheios de flores, Uma criança para beijar. Junta os meus sonhos, no azul dispersos, Desce os teus olhos sobre os meus versos... E vós, amigos tão carinhosos, Irmãos queridos que me adorais E nos espinhos tão dolorosos De minha estrada também pisais... Velai comigo, longe da luz, Que já levantam a minha Cruz. A hora triste já vem chegando De nossa longa separação... Que lança aguda vai transpassando De lado a lado meu coração! Não adormeçam, meus bem-amados, Já vejo os cravos ensanguentados. Longe, bem longe, naquele monte, Não brilha um astro de luz divina? É o diadema de minha fronte, É a esperança que me ilumina! A cruz bendita, que aterra o vício, Fogueira ardente do sacrifício.

Adeus, da vida sagrados laços... Adeus, ó lírios de meu sacrário! A Cruz, no monte, mostra-me os braços... Eu vou subindo para o Calvário. Ficai no vale, pobres irmãos, Da vovozinha beijando as mãos. E se ela, inquieta, com a voz tremente, Ouvindo as aves pela manhã, Interrogar-vos ansiosamente: "Que é do sorriso de vossa irmã?" Dizei, alegres: "Foi passear... Foi colher flores para o Altar" E, quando a tarde vier deixando Nos lábios todos saudosos ais, E a pobre santa falar chorando: "A minha neta não volta mais?" Dizei, sem prantos:"A tarde é linda... Anda nos campos, brincando ainda." Livrai su'alma do frio açoite Das ventanias que traz o Inverno... Cerrai-Ihes os olhos, na grande noite, Na noite imensa do sono eterno. Anjo da guarda, de rosto ameno, Mostra-me o trilho do Nazareno... ......................................................... E... Adeus, ó lírios do meu sacrário, Que eu vou subindo para o Calvário.

A Minha Avó Minh'alma vai cantar, alma sagrada! Raio de sol dos meus primeiros dias... Gota de luz nas regiões sombrias De minha vida triste e amargurada. Minh'alma vai cantar, velhinha amada! Rio onde correm minhas alegrias... Anjo bendito que me refugias Nas mas asas contra a sina irada! Minh'alma vai cantar... Transforma o seio N'um cofre santo de carícias cheio, Para este livro todo o meu tesouro... Eu quero vê-la, em desejada calma, No rico santuário de tu'alma... – Hóstia guardada num cibório de ouro!

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Mater

A meus irmãos Ó santa, ó minha mãe, meu sol primeiro!

LUIZ MURAT Minha mãe! meu amor! Por que voaste, rindo, Para o país azul e santo da quimera? Minha mãe! minha mãe!Se o Céu é sempre lindo, Aqui também há sol, também há primavera... Depois que te partiste e os seus pobres filhinhos, Pequeninos e sós, deixaste na orfandade, Ficamos a chorar – implumes passarinhos! Que os pássaros também soluçam de saudade. Pobres aves sem ninho, andamos à procura Do ninho de teu seio imaculado e amigo, Criancinha sem berço, em busca de um abrigo No berço de tu'alma alabastrina e pura. Não nos deixe sofrer. Outrora,quando aflita Tu nos via chorar – os risos de tu'alma! Soluçavas também e a tua mão bendita, Nos enxugando o pranto, o transformava em calma. Teu seio, ó minha mãe, era a corrente mansa, Sempre serena e doce no seu gemer eterno, Onde boiava, a rir, noss'alma de criança No mimoso bate! do coração materno. Como era bom dormir na curva do teu braço, Sonhando adormecer ouvindo-te cantar... Como era bom dormir, ó mãe, em teu regaço, Dourando-nos o sono a luz de teu olhar.

Desalento Quando meu pensamento se transporta Às praias de além-mar, Sinto no peito uma tristeza imensa Que manda-me chorar. É que vejo morrerem, uma a uma, Santas aspirações, E voarem como os pássaros saudosos As minhas ilusões... Nunca julguei que a terra fosse um túmulo De sonhos juvenis, Sorrindo acreditei que aqui, no mundo, Podia ser feliz... Enganei-me: – a tristeza, que me oprime O coração sem luz... Como do solo derradeiro raio Nos braços de uma cruz... A trêmula saudade que entristece E faz desfalecer;

Essa agonia lenta que me inspira Desejos de morrer... Tudo me diz que a vida é o desengano, A morte da ilusão, E o mundo um grande manto de tristezas

Que enluta o coração.

Jardim – 1893

Goivos

A memória de Irineu

Um dia... (eu era menina) Trouxeram-me um passarinho; Era uma ave pequenina, Roubada ao calor do ninho. Inda não era sol posto... Quanto perfume trazia A aragem fresca e macia Daquela tarde de agosto! Devagarinho, no solo, Sentei-me a cantarolar; De manso, pus-me a embalar O pobrezinho no colo. Que tempo estive, não sei! Do mundo inteiro distante, O jardim, naquele instante, Foi a terra que eu amei. Depois... a noite descia... E eu senti, dentro do seio, Não sei que vago receio Da tarde que, além, morria! Numa gaiola pequena Fui deitar o passarinho, Fazendo lá dentro um ninho De algodão frouxo e de pena. Mas dias depois, ó dor! Que grande desdita a minha; No fundo da gaiolinha Achei morto o pobre amor. Tinha o biquinho entreaberto, Qual se morresse a cantar, E um par de asas aberto, Como se fosse a voar. Chorei sem hipocrisia, Como se chora em criança... Era a primeira esperança que do seio me fugia.

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II Que de anos, já vão! Entanto, Só recordo, entristecida, A hora em que vi sem vida O meu pequenino encanto. E, daquele triste dia Do meu viver de criança, Conservo como lembrança A gaiolinha vazia. Lembrança ingênua e sagrada! Carícia que se balouça, Entre os meus sonhos de moça, Como relíquia adorada!

III Um dia desses, enferma, Eu recordava, a chorar, Um sonho que vi brilhar Em minha vida tão erma. E, cheia de desconfortos, Fui evocando o perfil, Sereno, meigo e gentil De meu irmãozinho morto, Quando ouvi, muito baixinho, Um grito vago e dorido, Como o saudoso gemido De um'ave, pedindo o ninho... Quem ousaria, no mundo, Penetrar na soledade Onde gemia a saudade Do meu coração no fundo? Julguei sonhar... mas, desperta Estava, ainda, e sozinha! Aquele gemido vinha Lá da gaiola deserta. Era o soluço choroso Da ave que se partira E de meu seio fugira Em busca do azul formoso!

*** Mas... A gaiola vazia, Que eu conservo noite e dia, Não sabem? É o Coração... É dentro dele que mora, E dentro dele que chora, A alma de meu irmão!

Nova Cruz – 1897

Angelina

Brilhante como uma estrela, Criança e já numa cova! J. Eustachio de Azevedo

Ter doze anos somente E nesta idade sofrer! Sonhar um porvir ridente E nesta aurora morrer! Eis o que foi-te a existência, Ó desditosa Angelina! Doce lírio de inocência, Pobre floco de neblina. Como dois botões pequenos, Duas flores orvalhadas, Teus olhos dormem serenos, Sob as pálpebras cerradas. Voaste, meiga criança, Tão feiticeira e mimosa, Como um riso de esperança Como uma folha de rosa. É triste morrer no fim De uma manhã de esplendores... A fronte a ocultar, assim, Numa grinalda de flores. E sentir, por entre a dor Da derradeira agonia, De mãe um beijo de amor Roçar a fronte já fria... Quando num suspiro leve, Est'alma que o corpo encerra, – como uma pomba de neve A desprender-se da terra Num voo suave e franco, Fugiu para o céu de anil... Vestiram-te, então, de branco, Como uma noiva gentil. No cetíneo caixãozinho, Mais puro que as alvoradas, Depuseram seu corpinho, Entre as cambraias nevadas, Aí, no funéreo leito, Toda coberta de rosas, Tendo cruzadas ao peito Duas mãozinhas formosas; Pareces um anjo santo, Envolto em gélido véu, Transpondo azulado manto, Como em procura do Céu.

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Eu sigo-te o voo alado, Pela esfera diamantina, Ó meu anjo imaculado, Ó minha santa Angelina!

No Templo

Que suave harmonia Em tua voz... Tu roubaste-a, Maria,

Aos rouxinóis? Aqui na igreja santa, Se vens rezar, Quanta piedade, quanta! Trazes no olhar. Maria!como és bela, Junto aJesus! O teu olhar de estrela Parece luz. E que doce brancura Na tua cor... Tens a pálida alvura De um lírio em flor. Junta estas mãos, formosa! Assim... Assim... Deixa o lábio de rosa Pedir por mim. Vale tanto uma prece, Dita por ti! Mas... A noite já desce, Vamos daqui. Olha que eu tenho medo, Da escuridão... Vamos: termina cedo Tua oração.

Jardim – 1895

Meu Sonho

A Ydyá e a Maria Leonor Medeiros Eu tenho um sonho que no céu mora Feito de luz e feito de amor, Um sonho róseo como uma aurora, Um sonho lindo como uma flor. E eu vivo sempre, sempre sonhando, a mesmo sonho de noite e de dia, a mesmo sonho suave e brando

De minha vida toda a alegria. Quando soluço, quando minh'alma, Cheia de angústia, fica a chorar, a sonho amado me traz a calma E, então, minh’alma põe-se a rezar. Quando, nas frias de inverno, Eu tenho medo da tempestade, Ele, o meu sonho, consolo eterno, Transforma as sombras em claridade. Quando no seio, choroso e louco, Palpita, incerto, meu coração... a sonho doce vem, pouco a pouco, Trazer-me a graça de uma ilusão. E eu canto e rio na luz dispersa Deste dilúvio de fantasias... Minh' alma voa no Azul imersa Buscando a pátria das harmonias. Imagem doce, visão sagrada, Quimera excelsa dos meus amores, Pérola branca, delícia amada, Bálsamo puro das minhas dores; Ele, o meu sonho, farol que encanta Guia-me à pátria da salvação, Sorriso ingênuo, relíquia santa, Do relicário do coração!

1896

Na Judéia

Imitando a transfiguração, de G. Crespo Tinha Jesus no olhar o doce azul dos mares E no cabelo d'ouro os raios estelares. No seu sorriso em flor alguma coisa havia Dos beijos virginais dos lábios de Maria. Seu passo era tão leve e sua voz tão mansa Como deve ser leve um sonho de criança. Ele vinha do Céu dizer ao mundo inteiro: "Eu sou filho de Deus, Messias verdadeiro." O povo soluçava ouvindo a voz dolente Do pálido Jesus, tão doce e tão clemente! E Maria também, lembrando a profecia Do velho Simeão, da espada da agonia, Soluçava de dor fitando os olhos castos No rosto de seu filho, em seus cabelos bastos.

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Mas Jesus, a sorrir, falava à turba imensa, Silenciosa a escutar, de sua voz suspensa... E a palavra de luz dos seus lábios descia, Como o pranto sem fim dos olhos de Maria.

Ao Meu Bom Anjo Dizem que a vida não é mais que um sonho,

Meu Deus, quero sonhar! Empresta-me, anjo bom, as tuas asas, Guarda no seio a minha fronte em brasas,

Ensina-me a rezar! Vamos, vamos, além... Foge comigo! Procuremos bem longe um doce abrigo,

Na pátria dos arcanjos... A vida é sonho e como um sonho passa... Pois bem! Vamos viver no céu da graça,

Meu Deus, como dois anjos! Quero fugir do mundo tenebroso,

Labirinto de dores... Mensageiro divino, vem comigo, Quero sonhar, viver, sorrir contigo,

No Éden há só flores! Minh'alma, casta rola abandonada, Desfalece sozinha pela estrada,

Não pode mais voar... Empresta-lhe anjo bom, as tuas asas: Sinto estalar-me o coração em brasas,

Cansado de chorar. Assim voando pelo espaço afora E vendo-te a meu lado a toda hora, Quero – fugindo deste mundo agreste,

Unida ao seio teu, Embalada por ti, anjo celeste! Buscar meu ninho pelo azul do Céu!

1894

Simbólicas

A Emília Guerra

Quando Deus criou Além As estrelas em cardume, Na terra criou também As flores, mas sem perfume. Um dia, ao mundo de abrolhos A virgem pura desceu, Com um manto da cor dos olhos E uns olhos da cor do céu.

No Céu azul de seu manto Brilhava um astro: Jesus! E, em seu olhar sacrossanto, Boiava a inocência, a Luz... Maria! – os anjos clamaram A chorar, vendo-a partindo... Tu levas nossa alegria..." Mas da terra lhe acenaram As flores todas, abrindo:

"Maria!" E Ela deixou do Infinito Os resplandentes fulgores, Para acudir ao bendito Aceno doce das flores. – E teve pena de vê-las Formosas, mas sem ter brilho: Olhou sorrindo as estrelas Dos cabelos de seu filho... Ah! Fora Ela que as fizera Com a graça de seu sorriso, Num dia de Primavera, Na glória do Paraíso! E seus olhos procuraram Algum oculto tesouro: "Para as flores, que faria? Quando do céu a chamaram Os anjos todos, em coro: "Maria!" Ia partir... Que lembrança Podia deixar no campo? Dera o sorriso à criança, Estrelas ao pirilampo! Nos meigos olhos perpassa Não sei que lampejo doce... E a virgem, cheia de graça, Do mundo triste evolou-se. Mas, Ela, que dera o encanto Do riso sagrado à infância, Da dobra azul de seu manto Deixou cair a fragrância. Desde esse dia, na terra, As flores sabem falar... A voz da flor é a ambrosia Que tanta doçura encerra Quando murmura ao luar:

"Maria!" Jardim – agosto de 1897

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Crepúsculo

A Júlia Lyra Há pelo espaço um ciciar dolente De prece, em torno da Igrejinha em ruína... ................................................................ O Ângelus soa. Vagarosamente A noite desce, plácida e divina. Ouço gemer meu coração doente Chorando a tarde, a noiva peregrina. Há pelo espaço um ciciar dolente De prece em torno da Igrejinha em ruína... Pássaros voam compassadamente; Treme no galho a rosa purpurina... E eu sinto que a tristeza vem suspensa Sobre as asas da noite erma e sombria... E que nessa hora de saudade imensa, Rindo e chorando desce ao coração: Toda a doçura da melancolia, Todo o conforto da recordação.

Utinga – novembro de 1898

Bendita Bendita sejas, minha mãe, bendito Seja o teu seio, imaculado e santo, Onde derrama as gotas de seu pranto Meu dolorido coração aflito. Ó minha mãe, ó anjo sacrossanto, Bendito seja o teu amor, bendito! Ouve do Céu o amargurado grito Cheio da dor de quem soluça tanto. E deixa que repouse em teus joelhos A minha fronte, ouvindo os teus conselhos Longe do mundo, ó sempiterna dita! Envia lá do Céu no teu sorriso A morte que levou-te ao Paraíso... Bendita sejas, minha mãe, bendita!

Jardim – 1893

No jardim das Oliveiras “Minh’alma é triste até a morte...” doce, Jesus falou... e o Nazareno Santo Chorava, como se a su’alma fosse Um mar imenso de amargura e pranto. Depois, silencioso, ele afastou-se E foi rezar no mais sombrio canto. Seu grande olhar formoso iluminou-se Fitando o etéreo e estrelado manto. “Pai, tem piedade...” E sua voz plangente Tremia, enquanto pelas trevas mudas Baixava manso o triste olhar dolente. Pobre Jesus! Como num sonho via: Em cada sombra a traição de Judas, Em cada estrela os olhos de Maria!

Macaíba – 7 de abril de 1898

Crianças

A Antônia de Araújo, companheira amada dos Tempos de colégio

Moro na Rua da Ventura. Perto, Há um ninho – é a aula das meninas; Trazem-me sempre o coração desperto Os risos dessas almas cristalinas. Sinto-me alegre. Vivo sem saudade, Sem desconforto, sem desesperanças. Sou bem feliz na minha soledade Ouvindo o pipilar dessas crianças. Às duas horas ergo-me da banca Onde medito: vai fechar-se a escola... Que bem me faz esta algazarra franca De aves gentis que voam da gaiola! Gosto de vê-Ias quando saem rindo Alegremente, as mansas andorinhas. São doze ao todo. Que rebanho lindo De inocentes e castas ovelhinhas! Vem na frente a maior. Já quase moça, Olhos azuis e fronte cismadora: Uma açucena de esquisita louça, De face cor de neve e trança loura. É séria e triste. Chama-se Laurita; Tem uma voz que me seduz e encanta; Veste sempre de azul e é tão bonita Com os seus ares de pequena santa! Passa depois Sofia, uma criança De olhar mais negro do que a noite escura,

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Vive sempre a sorrir como a Esperança, Vive sempre a cantar como a Ventura! E aquela doida que lá vai correndo Em risco de tombar nas pedras duras? É Lúcia. A vida quer levar fazendo Todos os dias essas travessuras. Depois, Sara e Rebeca... Borboletas Irmãs no olhar, no rosto e nos vestidos; São dois anjinhos de madeixas pretas, Gêmeos sorrisos, corações unidos! Segue-as a linda e ingênua moreninha De nome terno e encantador: Dolores, Uma singela e pálida amiguinha Que todas as manhãs guarda-me flores. Hoje, está triste. Nem me deu bom dia! Deixou cair as rosas pela estrada. – Que é do teu canto, doce cotovia? (Reparem ela como vai zangada!) Desce em seguida a meiga Valentina, Dez anos tem. Parece um querubim... Uma açucena pálida e franzina, Um encantado e pálido jasmim! E a inocência? Vem chorando tanto! Que te fizeram, minha sensitiva? Quem foi que os olhos te inundou de pranto, Quem te causou essa amargura viva? Já sei: a mestra quis ralhar contigo, E foi bem feito, colibri travesso! Fiquei alegre com o teu castigo; Porque não me dás beijos quando os peço? Ouço chamar pelo meu nome... É Santa, Um diabrete muito engraçadinho... – Soube a lição? – não me responde, canta... – Garça inocente, voa para o ninho! Puxando a trança de Lucila, passa Celeste, a loura; correm como doudas... Por que é que tarda a pequenina Garça, A mais mimosa e a mais gentil de todas! Ei-la! É um anjo a divagar na terra, Um beija-flor que prendem na gaiola... Quanta candura o seu sorriso encerra, Quanta inocência desse olhar se evola! Como eu a amo e que tristeza in6nda Sinto nos dias em que não a vejo... Ah! Como adoro essa mãozinha linda, Tão pequenina que parece um beijo! E eu digo ao ver das criancinhas mansas O bando alegre e luminoso e forte: Vós sois no mundo claras esperanças,

Rosas da vida, embalsamando a morte! O vosso olhar é como um livro aberto Onde soletro as minhas alegrias... Oásis santo num cruel deserto, Negro e sem fim, de fundas agonias. Em breve as férias chegarão, e eu triste Quantas semanas vou passar distante De vosso olhar onde a candura existe, De vosso riso claro e hilariante! E para não ficar tão só, tão louca, Presa da Cisma ao doloroso enleio, Dai-me as cantigas que levais na boca, Dai-me as quimeras que guardais no seio! Pois já suspiro pela aurora mansa Que há de trazer com o sol do novo ano, Para vos'alma mais uma esperança, Para minh' alma mais um desengano. Anjos da terra, flores animadas, Aves do Céu que a chilrear passais... Como vos quero, evocações amadas Do meu passado que não volta mais! Ah! Quem me dera os sonhos perfumados Daquele tempo de ideal fragrância... Cantai! Cantai! Ó rouxinóis sagrados, Lembrai-me os dias da primeira infância!

Palavras Tristes

Ao Nenenzinho Quando eu deixar a terra, anjo inocente, Ó meu formoso lírio perfumado! Reza por mim, de joelhos, docemente, Postas as mãos no seio imaculado, Quando eu deixar a terra, anjo inocente! És a estrela gentil das minhas noites, Noites que mudas no mais claro dia. Não tenho medo aos gélidos açoites Da escuridão se a rua luz me guia, Ó estrela gentil das minhas noites! Quando eu deixar a terra, dá-me flores Boiando a tona de um sorriso teu; Que os risos das crianças são andores Onde os Anjos nos levam para o Céu... Quando eu deixar a terra, quero flores! Flores e risos me tecendo o manto, Manto celeste feito de esperança... Quando eu daqui me for, não quero pranto, Só quero riso, prece de criança: Flores e risos me tecendo um manto!

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Anjo moreno, de alma cor de lírio, Mais branca do que a estrela da Alvorada... Meu coração na hora do martírio Pede o consolo de uma prece amada, Anjo moreno de asas cor do lírio! Quando eu deixar a terra, anjo inocente, Ó meu formoso lírio perfumado! Reza por mim, de joelhos, docemente, Postas as mãos no seio imaculado, Quando eu deixar a terra, anjo inocente!

Serra da Raiz – fevereiro de 1898

Meu Pai

À minha tia Maria Concórdia de Souza Veste luto a minha pobre lira E canta a endeixa da saudade eterna; Toda a minh’alma, trêmula, suspira Cuidando ouvir a doce voz paterna., Meu velho Pai! Ligeiro como uma ave Cruzando os Céus à hora do sol-posto, Eu vi passar o teu perfil suave, Mas nem ao menos pude olhar teu rosto! Então voltei-me para o grande Espaço E perguntei a minha avó, sorrindo: “Assim, às pressas, sem levar-me ao braço, Porque vai ele para o Azul fugindo? Ela beijou-me a fronte docemente E sua voz em lágrimas ungida, Disse baixinho, dolorosamente: “Vai ver no Céu a tua mãe querida.” ............................................................... Eu espero, por ti há tantos anos, Ó mãe piedosa que me abençoaste! Todos os dias chegam desenganos E ao lar deserto nunca mais voltaste!

15 de janeiro de 1898

Quando Eu Morrer

A Julieta Mascarenhas

Quando eu morrer... (Quem me dera que fosse num dia assim, num dia de primavera cheirando a cravo e jasmim!) ...transformem meu coração – sacrário azul de esperanças – num pequenino caixão para enterrar as crianças. De meus olhos façam círios, de meu sorriso um altar – cheio de rosas e lírios, tão doce como o luar–; E guardem nele, entre flores, longe, bem longe da terra, a Virgem santa das Dores lá da Igrejinha da Serra. Daquele sonho formoso que minh'alma tanto adora, façam o turíbulo piedoso que incense os pés da Senhora. E as saudades orvalhadas – de meu amor triste enleio – transformem nas sete espadas de dor que Ela tem no seio!... Se deste repouso santo Em que meu corpo adormece Vier perturbar o encanto O choro de quem padece: Eu quero as gotas de pranto Todas mudadas em prece... Prece que leve, cantando, Minh'alma ao celeste ninho. Como um pássaro ruflando As asas brancas de arminho.

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Na Primeira Página da “Imitação de Cristo”

Vinde a mim todos os que estais fatigados e Oprimidos, e eu vos consolarei.

IMIT. DE CRISTO L.VI. CAP. I Quando meu pobre coração doente Cheio de mágoas, desolado e aflito, Sinto bater descompassadamente, Abro este livro então: leio e medito. Leio e medito nesta voz celeste Que vem do Além, qual mensageiro santo, Trazer um ramo de oliveira agreste Aos que navegam sobre o mar do pranto. Meus pobres olhos sempre rasos d'água, Por um instante deixam de chorar; E nas asas da Prece a minha mágoa Vai-se um momento para além do Mar. E dentro d' alma, nua de esperança, Eu penso ouvir como num sonho doce Alguém que fala numa voz tão mansa Como se o eco de um suspiro fosse: "Vem a mim se padeces; no meu seio Corre a fonte serena da Alegria... Eu sou aquele que sorrindo veio Dourar as trevas da Melancolia. Eu sou um branco e pálido sorriso Iluminando a tua solidão: Faze de minha Cruz um Paraíso E de meu Coração teu coração. Faze-te humilde, humilde e pequenina, Como as crianças como os passarinhos... Escuta e guarda a minha lei divina, No sacrário ideal dos meus carinhos. Não sabes quanto padeci no Horto, Por ti, por teu amor, filha querida? Eu sou o Anjo formoso do conforto, Venho trazer o bálsamo à ferida. Carrega a tua Cruz e vem comigo Pela estrada da dor e do Tormento. Eu serei teu irmão, teu sol, o amigo Que em lírios mudará o sofrimento. Venho trazer a Paz... Longe da terra A Paz habita... Ao pé do Santuário, Ó minha filha, a doce paz se encerra Dentro da Hóstia, dentro do Sacrário. Felizes os que sofrem e no meu seio Recolhem suas queixas como preces; Volta o pesar ao Céu de onde ele veio... Feliz, ó sim! Feliz tu que padeces!"

......................................................... E a mesma voz escuto, o mesmo canto, De cada vez que o meu olhar ungido Cai docemente neste livro santo, Lembrança amiga de um irmão querido Amo tanto o meu livro, ele é tão puro, Consola tanto o coração aflito! Ah! Desta vida no caminho escuro Ele será meu talismã bendito!

À Alma de Minha Mãe Partiu-se o fio branco e delicado Dos sonhos de minh' alma desditosa... E as contas do rosário assim quebrado Caíram como folhas de uma rosa. Debalde eu as procuro lacrimosa, Estas doces relíquias do Passado, Para guardá-las na urna perfumosa, Do meu seio no cofre imaculado. Ai! Se eu ao menos uma só pudesse Destas contas achar que me fizesse Lembrar um mundo de alegrias doudas... Feliz seria... Mas minh'alma atenta Em vão procura uma continha benta: Quando partiste m'as levaste todas!

Natal – março de 1895

Renascimento

A Olegária Siqueira Manhã de rosas. Lá no etéreo manto. O Sol derrama lúcidos fulgores, E eu vou cantando pela estrada, enquanto Riem crianças e desabrocham flores. Quero viver! Há quanto tempo, quanto! Não venho ouvir na selva os trovadores! Quero sentir este consolo santo De quem, voltando à vida, esquece as dores. Ouves, minh'alma? Que prazer nos ninhos! Como é suave a voz dos passarinhos Neste tranquilo e plácido deserto! Ah! Entre os risos da Natura em festa, Entoa o hino da alegria honesta, Canta o te deum, meu coração liberto!

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Minh'alma e o Verso Não me olhes mais assim... Eu fico triste Quando a fitar-me o teu olhar persiste

Choroso e suplicante... Já não possuo a crença que conforta. Vai bater, meu amigo, a uma outra porta

Em terra mais distante. Cuidavas que era amor o que eu sentia Quando os meus olhos, loucos de alegria,

Sem nuvem de desgosto, Cheios de luz e cheios de esperança, Numa carícia ingenuamente mansa,

Pousavam no teu rosto? Cuidavas que era amor? Ah! Se assim fosse! Se eu conhecesse esta palavra doce,

Este queixume amado! Talvez minh'alma mesmo a ti voasse E num berço de flor ela embalasse

Um riso abençoado. Mas, não, escuta bem: eu não te amava, Minh'alma era, como agora, escrava...

Meu sonho é tão diverso! Tenho alguém a quem amo mais que a vida, Deus abençoa esta paixão querida:

Eu sou noiva do verso. E foi assim... Num dia muito frio. Achei meu seio de ilusões vazio

E o coração chorando... Era o meu ideal que se ia embora, E eu soluçava, enquanto alguém lá fora

Baixinho ia cantando: "Eu sou o orvalho sagrado Que dá vida e alento às flores; Eu sou o bálsamo amado Que sara todas as dores.

Eu sou o pequeno cofre Que guarda os risos da Aurora; Perto de mim ninguém sofre, Perto de mim ninguém chora.

Todos os dias bem cedo Eu saio a procurar lírios, Para enfeitar em segredo A negra cruz dos martírios.

Vem para mim, alma triste Que soluça de agonia; No meu seio o Amor existe, Eu sou filho da Poesia,"

Meu coração despiu toda a amargura, Embalado na mística doçura

Da voz que ressoava... Presa do Amor na delirante calma, Eu fui abrir as portas de minh'alma

Ao Verso que passava... Desde esse dia, nunca mais deixei-o; Ele vive cantando no meu seio,

Numa algazarra louca! que seria de mim se ele fugisse, Que seria de mim se não ouvisse

A voz de sua boca! Não posso dar-te amor, bem vês. Meus sonhos São da Poesia os ideais risonhos,

Em lagos de ouro imersos... Não sabias dourar os meus abrolhos,

E eu procurava apenas nos teus olhos, Assunto para versos.

Questões de vestibulares

Questão 1

Leia o poema “Eterna dor”, de Auta de Souza, e depois marque a opção correta.

Alma de meu amor, lírio celeste, Sonho feito de um beijo e de um carinho, Criatura gentil, pomba de arminho, Arrulhando nas folhas de um cipreste. Ó minha mãe! Por que no mundo agreste, Rola formosa, abandonaste o ninho? Se as roseiras do Céu não tem espinhos, Quero ir contigo, ó lírio meu celeste! Ah! se soubesses como sofro, e tanto! Leva-me à terra onde não corre o pranto, Leva-me, santa, onde a ventura existe... Aqui na vida – que tamanha mágoa! – O próprio olhar de Deus encheu-se d’água... Ó minha mãe, como este mundo é triste!

VOCABULÁRIO: arminho: pele branca, arrulhando: cantando com ternura, cipreste: árvore de vermelha ou castanho-avermelhada.

A) Os versos revelam o lado mais místico do lirismo da poetisa, uma vez que há um claro entendimento que não há referências ao mundo físico.

B) O lirismo do poema passa pela noção da mãe enquanto personagem dos devaneios do Eu lírico, já que o lirismo surge relacionado ao instante do presente e do abrandamento das dores.

C) A essência lírica aparece na urgência de tentar resolver a ausência da figura materna ao mesmo tempo em que o distanciamento dela não aparece de forma conflituosa.

D) Há no soneto angústia causada pela ausência da figura materna e pelo sofrimento demonstrado pelo Eu lírico diante da vida.

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E) A qualidade lírica do texto deve-se ao saudosismo que é sublimado pela lembrança do passado.

Questão 2

Como características presentes na poesia de Auta de Souza no livro “Horto” como um todo, no texto “Eterna dor” pode ser percebido(a):

A) o conflito entre o que é sagrado e o que é profano, além da representação efêmera do sofrimento perante a vida, fato irrelevante na obra em si.

B) a união entre o sagrado e o sofrimento humano, pois inexistem quaisquer noções de separação entre a vida e a morte, esta vista de modo bastante objetivo nos versos.

C) a presença do sofrimento diante da vida, assim como os elementos da natureza (lírio, roseiras, Céu, espinhos) servindo como simbolização da existência do Eu lírico no poema.

D) a identificação do próprio horto com o horto de Cristo.

E) o contraste entre a vida como sofrimento e a morte como alívio, ausentando as antíteses e paradoxos sugeridos na leitura do texto como um todo.

Questão 3

Marque a figura de linguagem correta de acordo com o trecho a que se refere.

A) “Sonho feito de um beijo e de um carinho” – antítese.

B) “Leva-me à terra onde não corre o pranto” – personificação / metáfora.

C) “Ah! se soubesses como sofro, e tanto!” – Hipérbole.

D) “Ó minha mãe, como este mundo é triste!” – paradoxo.

E) “Aqui na vida – que tamanha mágoa! – ” – metáfora.

Questão 4

Leia o poema “Manhã no campo”, de autoria de Auta de Souza. Assinale a opção correta.

Estendo os olhos pelo prado afora:

Verdura e flores é o que a vista alcança...

– Bendito oásis onde o olhar descansa

Quando saudades do Passado chora.

Escuto ao longe uma canção sonora.

Voz de mulher ou, antes, criança

Entoa o hino branco da Esperança

Hino das aves ao nascer da Aurora.

Por toda parte risos e fulgores

E a natureza desabrochando em flores,

Iluminada pelo sol risonho,

Recorda um’alma diluída em prece,

Um coração feliz que inda estremece

À luz sagrada do primeiro sonho!

A) Nos versos, a natureza surge como um referencial apenas do presente do Eu lírico, já que o passado não aparece no poema.

B) Os elementos da natureza surgem como símbolos de beleza que se integram ao Eu lírico de modo esperançoso.

C) A visão da natureza parece uma fuga da realidade, o que torna o poema completamente inverossímil e distante de um ideal lírico.

D) O intimismo do Eu lírico acaba se confundindo com a própria natureza, uma vez que ambos aparecem apenas de forma descritiva.

E) A natureza aparece como refúgio do coração sofrido da voz lírica, que pede a morte como lenitivo para o sofrimento.

Questão 5

Marque a única alternativa incorreta quanto às figuras de linguagem presente nos versos citados do poema “Manhã no campo”.

A) “Entoa o hino branco da Esperança” – Sinestesia

B) “Iluminada pelo sol risonho” – Prosopopeia

C) “Escuto ao longe uma canção sonora.” – Metáfora.

D) “Um coração feliz que inda estremece” – Antítese

E) “Por toda parte risos e fulgores” – Hipérbole

Leia as quatro primeiras estrofes do poema intitulado “Falando ao coração”, de Auta de Souza.

Desperta, coração! Vamos morar

Numa casinha branca, ao pé do Mar...

Que seja linda como é linda a Lua

Que em noites santas pelo Azul flutua:

Imaculada como a luz do Amor,

Alva de neve como um sonho em flor.

Quando a Noite vier... se no meu seio

Estremeceres cheio de receio,

– Temendo a sombra que amortalha o Dia

E cobre a Terra de melancolia –

Longe do mundo e da desesperança,

Hei de embalar-te como uma criança.

Quero que me escutes o gemer profundo

Do Mar que chora a pequenez do mundo

E ouças cantar a doce barcarola,

Da noite imensa que se desenrola,

Dando perfume ao coração dos lírios,

Trazendo sonhos para os meus martírios.

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E quando o Sol nascer; quando, formosa

Como uma garça branca e misteriosa,

Batendo as asas cor de neve, a Aurora

Vier cantando pelo mundo afora,

Rufla as asas também... e forte, então,

Tu podes palpitar, meu coração!

[...]

Questão 6

Uma das prováveis características do Simbolismo presentes nos versos citados é:

A) a presença de elementos que enfatizam a cor branca para enfatizar determinada ideia, no caso, a esperança.

B) o uso excessivo de sinestesias que remetem ao inconsciente, distanciando-se do caráter lírico e objetivo dos versos.

C) o misticismo voltado para o distanciamento tanto do lado religioso quanto da emotividade.

D) a espiritualidade vista como uma negação completa da vida material, fato confirmado pela presença da natureza.

E) a ausência de musicalidade, que configura o poema como exemplo de poesia Romântica.

Questão 7

Marque a figura de linguagem correta entre as citações abaixo.

A) “Batendo as asas cor de neve, a Aurora / Vier cantando pelo mundo afora” – personificação

B) “Trazendo sonhos para os meus martírios.” – assonância

C) “Longe do mundo e da desesperança” – pleonasmo

D) “Quero que me escutes o gemer profundo” – gradação

E) “Desperta, coração! Vamos morar” – apóstrofe.

Questão 8

Leia o poema “Cores”, presente na obra Horto, da poetisa Auta de Souza.

Enquanto a gente é criança

Tem no seio um doce ninho

Onde vive um passarinho

Formoso como a Esperança.

Ele canta noite e dia

Porque se chama: Alegria.

Depois... Vai-se a Primavera...

É o tempo em que a gente cresce...

O riso se muda em prece,

A alma não canta: espera!

E ao ninho do coração

Desce outra ave: Ilusão.

Mas esta, como a Alegria,

Nos foge... E fica deserto

O coração, na agonia

Do inverno que já vem perto.

Nas ruínas da Mocidade

É quando pousa a Saudade...

A) A presença dominante do soneto, como assim aparece o formato do poema, sugere a visão imutável que as crianças possuem do seu mundo.

B) As cenas melancólicas indicam um panorama poético que tende a refletir a ordem estática da infância, como se pode perceber pelos verbos, mesmo que o período infantil seja observado por um eu lírico adulto.

C) As palavras relativas à natureza (ave, ninho, passarinho, Primavera) compõem imagens saudosistas da infância que se perpetuam na memória do eu lírico, caracterizando a evasão temporal.

D) O poema não mostra sinais de “presentificação”, visto que se trata de um texto que trata exclusivamente de um passado sem similaridades com o presente do eu lírico.

E) O escapismo romântico se caracteriza, no texto, pelo culto à morte, como lenitivo para o sofrimento.

Questão 9

Ainda sobre o mesmo poema da questão anterior, “Cores”, marque a alternativa incorreta.

A) As palavras “Esperança”, “Alegria” e “Ilusão” estão organizadas em uma ordem gradativa que remete à decadência da vida.

B) O poema está dividido em dois momentos distintos, o da infância, marcada pelo contentamento, e a fase adulta, marcada pela espera e desilusão.

C) No verso “O riso se muda em prece” há um alusão à transformação provocada pela instabilidade dos fatos da vida, caso da alegria infantil dando vez às preocupações da fase adulta.

D) A saudade é o que sobra de um tempo que se transformou em ruínas devido à ansiedade que o passarinho tem de voar.

E) O título do poema remete à alegria da infância, que se transforma em ilusão na fase adulta.

Questão 10

Assinale a figura de linguagem incorreta presente na citação dos versos do poema “Cores”.

A) “Ele canta noite e dia / Porque se chama: Alegria.” – Antítese

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B) “Nas ruínas da Mocidade / É quando pousa a Saudade...” – Personificação

C) “E ao ninho do coração / Desce outra ave: Ilusão.” – Prosopopeia

D) “Nos foge... E fica deserto / O coração, na agonia ” – Metáfora

E) “E ao ninho do coração / Desce outra ave: Ilusão.” – metonímia

Questão 11

Leia os versos de “Natal”, soneto integrante da obra “Horto”, de Auta de Souza.

É meia-noite... O sino alviçareiro,

Lá da Igrejinha branca pendurado,

Como um sonho místico e fagueiro,

Vêm relembrar o tempo do Passado.

Ó velho sino, ó bronze abençoado,

Na alegria e na mágoa companheiro!

Tu me recordas o sorrir primeiro

Do menino Jesus imaculado.

E enquanto escuto a tua voz dolente,

Meu ser que geme dolorosamente

Da desventura aos gélidos açoites...

Bebe em teus sons tanta alegria, tanta!

Sino que lembras uma noite santa,

Noite bendita mais que as outras noites!

VOCABULÁRIO – alviçareiro: anunciador, porta-voz de boas notícias, fagueiro: carinhoso, agradável, dolente: magoado.

Ao longo do poema, pode ser percebido(a):

A) temática que demonstra traços religiosos voltados à fé cristã, com a presença da figura de Jesus como referencial da fé que o Eu lírico demonstra no seu modo de ver a vida.

B) quanto ao caráter místico-religioso no poema, fato dominante ao longo dos demais textos da obra, há a confirmação de um poema mais objetivo, expressando-se de forma a eliminar as figuras de linguagem devido a isto.

C) a presença de elementos raros nos outros poemas da obra, caso da tematização do cristianismo e do culto ao objeto, no caso o sino, símbolo igualmente cristão.

D) a insistente admiração pelos símbolos cristãos, fazendo com que os versos deixem de refletir as emoções do eu lírico em prol de um propagandeamento religioso que foge aos padrões estéticos da Literatura.

E) claro fingimento religioso em função da criação estética simbolista.

Questão 12

Marque a alternativa que expressa uma interpretação incorreta sobre o poema “Natal”.

A) O antítese, figura de linguagem que consiste em colocar lado a lado, palavras opostas, algo comprovado nos versos “Ó velho sino, ó bronze abençoado, / Na alegria e na mágoa companheiro!”.

B) Os versos “Lá da Igrejinha branca pendurado, / Como um sonho místico e fagueiro” trazem elementos muito usados no Simbolismo, caso da presença da cor branca como forma de pureza e a atmosfera vaga e imprecisa, revelando certo misticismo.

C) A sinestesia, outra figura de linguagem, aparece em versos como “Bebe em teus sons tanta alegria, tanta!”.

D) No poema, o sino surge como um objeto de culto que, por sua vez, possui extrema importância pelo fato do Eu lírico intensificar sua atenção em torno dele, entretanto sem personificá-lo.

E) A antítese, no poema, é empregada para sugerir um eu lírico em conflito com sua religiosidade.

Gabarito

1 – D; 2 – E; 3 – C; 4 – B; 5 – E; 6 – A; 7 – A; 8 –A; 9 – D;

10 – E; 11 – A; 12 – D.