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Literatura infantil de Lisboa para o Mundo…

Rua de Cascais, 57, Alcântara – 1300 ‑260 Lisboa, Portugal

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© 2019, Paulo Costa e Flamingo Edições

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Título: Contos da Arca de Noé

Editor: Rita Costa

Coordenador Editorial: Filipa Cantanhede

Composição gráfica: Manuela Duarte

Capa: Filipa Cantanhede

Ilustrações: Freepik

Revisão: Paulo Costa

Impressão e acabamento: Break Media Print

1.ª edição: Outubro, 2019

ISBN: 978-989-52-6976-1

Depósito Legal n.º 462299/19

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Paulo Costa

Contos da arCa de noé

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PREFÁCIO

Uma das histórias bíblicas mais curiosas é a narrativa

do dilúvio e da construção da Arca de Noé (Gn 6 ‑9). Conta

a história que Deus, sentindo ‑se triste e desiludido com

a maldade dos homens, decidiu inundar a Terra, de forma

a recriar uma nova humanidade. Noé, que era um homem

bom e justo, recebeu a singular missão de construir uma

arca para salvar a sua família e dois exemplares de todas as

espécies de animais. Após quarenta dias e quarenta noites

de chuva intensa e incessante, só os passageiros da arca

sobreviveram.  

Depois de parar de chover e quando o nível das águas

começou a baixar, Noé foi espreitar à janela e, receando que

ainda não fosse possível saírem em segurança, soltou um

corvo. Como não voltou, deixou então partir uma pomba,

que, não encontrando onde pousar, regressou à arca. No

entanto, sete dias depois, Noé soltou ‑a novamente e, desta

vez, regressou com uma folha de oliveira no bico.

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Paulo Costa

Noé ficou muito satisfeito pois aqui‑

lo significava que havia terra seca nas

proximidades e era o sinal de que Deus

fizera as pazes com os homens.

Então, foi convidado a sair da arca com a

sua família e todos os animais e recebeu a ta‑

refa de serem fecundos, multiplicarem ‑se e encherem

a Terra.

Deus estabeleceu uma aliança com a família de Noé e com

a sua descendência, tal como com os outros seres vivos de

todas as espécies e fez surgir um arco de luz entre o céu

e a terra. Quando houvesse nuvens no céu e chovesse com

o sol a espreitar, um arco ‑íris recordaria o pacto de amizade

e reconciliação realizado.

É inequívoco que a harmonia entre os homens e os

animais está em sério risco. Os ecossistemas mais frágeis

são as principais vítimas das ações do Homem. O mundo

animal está a entrar em rutura e algumas espécies esfor‑

çam ‑se por se adaptar e sobreviver numa realidade a que

não pertencem e o futuro não augura nada de bom.

A questão é que um ecossistema é uma comunidade

harmoniosa de vida e  todas as componentes dependem

umas das outras. Para que os animais possam prosperar,

o seu ecossistema tem de ser equilibrado e isso acontece

cada vez menos.

Os especialistas consideram que a preservação de es‑

pécies ameaçadas é incompatível com a exploração econó‑

mica do ambiente em que vivem. Uma gestão económica

sustentável dos habitats naturais, combinando a agricultura

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Contos da Arca de Noé

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com a preservação da flora e da fauna, deveria ser sempre

uma preocupação dos governantes.

A extinção de muitos animais deve ‑se ao egoísmo hu‑

mano e eles não têm culpa das nossas opções e ambições

irracionais e desmedidas. Muitos países têm legislação im‑

portante e significativa que defende os animais e até se

esforçam por salvar as espécies em vias de extinção, proi‑

bindo a sua caça e protegendo os seus habitats. No entanto,

o problema é que a legislação não é suficiente e é impe‑

rioso mudar mentalidades e atitudes pois é a vida humana

e a vida do planeta que está em risco.

Quantas vezes já não pensámos ou ouvimos dizer que

alguns animais parecem ser mais humanos, inteligentes e

com melhores sentimentos do que algumas pessoas? E que

a alguns só lhes falta falar? Por alguma coisa será. Podemos

aprender muito com os animais e a verdade é que eles nos

dão verdadeiras lições de vida.

Nos cinquenta contos deste livro, os animais são os

protagonistas. São os nossos amigos a provocar ‑nos, a ques‑

tionar ‑nos e a oferecer ‑nos pistas de reflexão e mensagens

significativas. Cada história tem como figura central um

animal diferente que, em função do seu habitat natural, das

suas especificidades físicas e das suas maneiras de ser e

estar na natureza, podem ajudar ‑nos a pensar em realidades

importantes para a existência humana e para a nossa vida

no planeta.

Procura ‑se que em todas as narrativas fiquemos a co‑

nhecer um pouco mais de cada animal e que as peripécias

em que se envolvem nos desafiem e estimulem a sermos

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seres humanos melhores e pessoas

mais felizes e realizadas.

Contos com ‘sumo’ que nos podem re‑

frescar e saciar para que nos tornemos

pessoas mais conscientes e responsáveis,

justas e solidárias, livres e comprometidas na

construção de um mundo melhor onde todos possam

viver com dignidade e em harmonia.

Paulo Costa

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ÍNDICE

O golfinho da baía ....................................................................................... 11

A cascavel da tribo dos índios ............................................................. 15

As borboletas do colecionador ........................................................... 19

O leão da savana ........................................................................................... 23

As formigas do jardim ............................................................................... 27

O peixinho do rio e as botas velhas ................................................. 31

As zebras e as listas pretas e brancas ............................................. 35

As abelhas da colmeia .............................................................................. 39

As tartarugas da praia ............................................................................... 43

O cão do bosque ........................................................................................... 47

O cavalo da menina da quinta ............................................................ 51

O elefante da aldeia .................................................................................... 55

O gato e a caixa da felicidade .............................................................. 59

A baleia do pescador ................................................................................. 63

O lince do príncipe herdeiro ................................................................. 67

O ouriço ‑cacheiro e o jovem inquieto ........................................... 71

O papagaio de Myriam ............................................................................. 75

O tubarão e o menino da ilha .............................................................. 79

O pardal do lavrador .................................................................................. 83

Os caracóis do prado ................................................................................. 87

Os pinguins do iceberg ............................................................................ 91

Os patos e a caça ao tesouro ................................................................ 95

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Os ratos do sótão .......................................................................................... 99

O camelo do oásis ........................................................................................ 103

As pombas da árvore do jardim ......................................................... 107

A estrela do mar e a epidemia do “Se” .......................................... 111

Os tigres do circo .......................................................................................... 115

As aranhas do casebre .............................................................................. 119

O burro do presépio .................................................................................. 123

O mocho e o Homem light ................................................................... 127

As galinhas do quintal ............................................................................. 131

Os ursos e a liberdade ............................................................................... 135

As ovelhas do pastor da montanha ................................................. 139

O crocodilo do rio ......................................................................................... 143

O pirilampo do pântano .......................................................................... 147

Os dinossauros e a máquina do tempo........................................ 151

As vacas e o touro da herdade ............................................................ 155

O gorila e os direitos dos animais ..................................................... 159

Os porcos e a revolva da pocilga ....................................................... 163

As girafas do safari ....................................................................................... 167

As cabras e os extraterrestres .............................................................. 171

O coelho da Páscoa .................................................................................... 175

A águia e a sabedoria dos provérbios ........................................... 179

O esquilo curioso .......................................................................................... 183

O chimpanzé da casa da árvore ......................................................... 187

A cegonha da torre da igreja ................................................................ 191

O lobo e os animais em vias de extinção ..................................... 195

As rãs do lago .................................................................................................. 199

As gaivotas da falésia ................................................................................. 203

O rouxinol e a orquestra ......................................................................... 207

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O GOLFINHO DA BAÍA

Era uma vez um pescador que vivia numa aldeia

onde todas as casas eram de madeira e acomodavam ‑se

em cima de estacas junto a uma baía. A pequena povoação

estava rodeada de coqueiros e palmeiras que se debruçavam

e espreguiçavam sobre o areal e todas as famílias dedicavam‑

‑se à pesca.

O pescador tinha uma filha que desde pequena o

acompanhava de vez em quando na faina. Nada lhe dava

maior satisfação do que ajudar o pai a lançar as redes ao mar

para apanhar peixe para a alimentação da família e ainda

para vender algum.

Os tempos andavam difíceis pois o oceano parecia

abespinhado e não andava muito generoso. Ir ao mar era

perigoso e o peixe que chegava à baía era escasso. O pescador

tinha que deixar o seu barco na praia a maior parte dos dias e

a fome apertava para todos naquelas bandas.

Um dia o pescador conseguiu fazer ‑se ao mar na

esperança de conseguir trazer daquela vez algo que se visse.

O dia estava solarengo e a ondulação estava serena e, depois

de ter lançado a rede, pareceu ‑lhe que a jornada poderia ser

coroada de êxito. Sentia muito peso e agitação na rede e isso

amiudadamente era sinal de abundância de pescaria.

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A filha do pescador estava na praia

sentada na areia e, quando observou o

pai entrar na baía com os braços no ar,

alegrou ‑se, pois havia muito tempo que

não o via tão satisfeito com as incursões no

mar. No entanto, quando ele chegou ao areal e

puxou a rede de pesca, o que descobriu foi um golfinho

que lutava desesperadamente pela sobrevivência.

O pescador apressou ‑se a remover o golfinho do ema‑

ranhado de redes, algas, areia, pedras, conchas e paus e a

filha lançava ‑lhe água enquanto o acariciava. A tarefa não

estava a revelar ‑se fácil e até a mulher do pescador se juntou

a eles para tentar salvar o golfinho.

Depois de uma boa meia hora de labuta, o golfinho ficou

livre daquelas coisas todas que o aprisionaram e podiam ter‑

‑lhe causado a morte. Os três empurraram calmamente o

golfinho para as águas da baía e pareceu que tudo estava

bem com ele pois rapidamente mergulhou e começou aos

saltos, pouco se importando de, mais uma vez, não terem

tido sorte na pesca.

Nos dias seguintes de manhazinha, a rapariga abria a

sua janela com portadas de madeira e olhava para a baía

na esperança de vislumbrar o golfinho. Ao entardecer,

passeava longamente pela praia e sentava ‑se num rochedo

na extremidade da baía a pedir a Deus que pudesse voltar a

ver o golfinho, nem que fosse apenas por mais uma vez.

Numa noite em que as estrelas pintavam o céu e a

lua como que se banhava nas águas da baía e iluminava a

praia, a rapariga, sentada no rochedo do costume a olhar

o horizonte, começou a cantar uma suave melodia que

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aprendera em criança. Para seu espanto, viu sair a cabeça do

golfinho que, sem receio algum, emitia uns sons como que

acompanhando a sua canção. O golfinho parecia sorrir ‑lhe

e dava alegres guinchos e estalidos. 

A rapariga não sabia o que pensar e serenamente desceu

do rochedo e mergulhou. Nadava pela baía na companhia do

golfinho e a sua alegria era completa. Cantavam e brincavam

juntos e ele saltava e rodopiava à sua volta como se não

houvesse amanhã e nem nada nem ninguém importasse no

mundo inteiro. Passaram toda a noite num bailado de uma

beleza única, graciosidade ímpar e cumplicidade sem igual.

Toda a aldeia ficou maravilhada quando a filha do pes‑

cador contou tudo o que acontecera naquela noite e a

verdade é que o golfinho não mais voltou a afastar ‑se da baía.

Ele acompanhava todos os barcos da aldeia quando

iam à pesca e gostava de saltar alegremente à sua volta e,

como se alimentava de peixes, lulas, moluscos e camarões,

os pescadores seguiam ‑no e não mais voltaram a sentir falta

de pescaria. E agradeciam aos céus o extraordinário presente

que lhes tinha sido dado.

O golfinho mudara para sempre a vida da aldeia da baía

e a felicidade e a harmonia eram uma realidade por aqueles

lados. Apenas a rapariga conseguia tocar, nadar e brincar

com ele e as pessoas acreditavam que eles conseguiam falar

um com o outro. As pessoas da aldeia passaram a chamar‑

‑lhe Sereia e ela deu o nome de Oceano ao seu golfinho.

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A CASCAVEL DA TRIBO DOS ÍNDIOS

Era uma vez dois jovens índios que eram muito ami‑

gos. Chamavam ‑se Amanara e Piancó. Pela primeira vez,

eles iam acompanhar os homens da aldeia numa jornada

de caça. Estavam crescidos e participar naquela atividade

comunitária da tribo representava muito para eles.

No momento da partida, toda a aldeia se reuniu para

desejar sorte aos novatos naquelas lides. Cavalgavam lado

a lado, estavam pintados com cores bem garridas e iam

munidos dos tradicionais arcos com flechas. Estavam nervo‑

sos, mas felizes. Eram amigos e, apesar de andarem sempre

a implicar um com o outro e a pregar partidas, naquele dia

queriam brilhar.

Amanara provocava o amigo dizendo que a jornada de

caça ia correr ‑lhe bem já que estava a chover. Argumentava

que no dia em que nasceu, estava a chover e, por isso, os seus

pais tinham ‑lhe dado o nome de Amanara que queria dizer

‘Dia com chuva’.

Piancó sorriu e logo lhe disse que não se esquecesse que

o seu nome queria dizer ‘Pássaro que canta’ e que tinha a

certeza que, no final do dia de caça, seria ele a cantar vitória.

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Ao chegarem à zona da floresta onde

era costume encontrar animais, todos

fizeram silêncio e apenas se ouvia o chil‑

rear dos pássaros. Subitamente apareceu

uma onça que apanhou a todos despre‑

venidos e precipitaram ‑se uns para cada lado.

Amanara não queria perder aquela oportunidade de

apanhar um animal e decidiu atirar ‑lhe uma flecha.

Mas o seu cavalo assustou ‑se e a flecha mudou de dire‑

ção, acertando na perna de Piancó.

O dia de caça terminara irremediavelmente. Muito

preocupados, todos os homens regressaram à aldeia para

salvar Piancó. Amanara estava muito arrependido por não

ter medido os riscos do seu gesto. Pedira desculpa a Piancó,

mas ele não o perdoara. Pensava que Amanara tinha sido

egoísta, que se tinha deixado levar pela ambição e pelo exi‑

bicionismo e que o ferira porque não era verdadeiramente

seu amigo.

Piancó foi melhorando aos poucos do seu ferimento,

mas não voltou a olhar para Amanara. Passadas umas se‑

manas, numa noite de lua cheia e após o habitual serão à

volta da fogueira, em que toda a tribo conversava e cantava,

todos se foram deitar e Piancó decidiu ir à tenda de Amanara,

determinado a reconciliar ‑se com ele. A poucos metros da

entrada, chamou ‑lhe a atenção um ruído estranho e, qual foi

a sua surpresa, quando viu uma cascavel a entrar na tenda

do amigo.

Piancó não pensou senão em salvar Amanara. Apressa‑

damente foi buscar um saco grosso e sorrateiramente en‑

trou na tenda e conseguiu conduzir a cascavel para dentro.

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Sem que Amanara acordasse, saiu da tenda, pegou no seu

cavalo e foi libertar o réptil bem longe dali, na outra margem

do rio.

Jacimira, que quer dizer, ‘Homem da lua’, gostava de

passear durante a noite e vigiar a aldeia contra eventuais

ataques de inimigos e assistiu a tudo. Ficara impressionado

com a coragem e determinação de Piancó. Quando o sol se

levantou e toda a aldeia tomava os primeiros alimentos do

dia que a natureza oferecia, Jacimira contou tudo ao Touro

Sentado, o chefe da tribo, que, verdadeiramente comovido,

reuniu toda a gente.

Disse a todos que Amanara ferira Piancó no dia de caça,

mas ele não o desculpara. Contudo, durante a noite, Piancó

salvara Amanara ao afastar de dentro da tenda onde dormia

uma cascavel, arriscando a sua própria vida. Sentia ‑se feliz

porque a desavença entre os dois jovens era uma ferida que

teimava em não cicatrizar. Congratulava ‑se com o sucedido

pois, mais do que com palavras, a fraternidade acontecera

naquele gesto tão nobre e genuíno e convidou toda a tribo a

fazer festa e a celebrar o perdão.

Toda a aldeia ficou pasmada, feliz e orgulhosa. Amanara

abraçou Piancó e todos se juntaram como se fossem uma

só família. Todos dançaram à volta de uma enorme foguei‑

ra cujos sinais de fumo levaram bem longe a mensagem da

reconciliação e da amizade e Amanara e Piancó tornaram‑

‑se os melhores amigos do mundo. A cascavel voltou a ser

vista na aldeia e nenhum mal acontecia a ninguém. A tribo

ficou mais unida e fortalecida e a história da cascavel da tri‑

bo correu montanhas e planícies como o vento que assobia

singelas melodias.

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AS BORBOLETAS DO COLECIONADOR

Era uma vez um jovem que era colecionador de bor‑

boletas. Nunca tivera amigos e, desde pequeno, era a única

coisa que o entusiasmava. Achava fascinante a variedade,

tonalidades e agilidade daqueles insetos e, por isso, em cer‑

ta ocasião o pai oferecera ‑lhe um equipamento para caçar

e guardar borboletas.

Com um cuidado extremo e uma perícia singular, sabia

como usar a rede, os frascos de vidro, o algodão, o éter, a cai‑

xa de madeira com fundo de cortiça e os alfinetes coloridos

e, assim, conseguia conservar e ter para si a mais bela cole‑

ção de borboletas.

Um dia, os pais receberam a visita de uns amigos que

tinham uma filha da mesma idade do rapaz. Apesar de de‑

monstrar pouca afabilidade e de não sorrir nunca, o jovem

mostrou ‑lhe a sua coleção de borboletas, enquanto respon‑

dia às imensas perguntas sobre a forma como as apanhava e

conservava para que se mantivessem bonitas e viçosas como

se estivessem vivas.

Como intrigava a rapariga o facto de o jovem saber

tudo e mais alguma coisa sobre as borboletas a partir do

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momento em que as apanhava e não

revelar a mesma sabedoria sobre o seu

nascimento e desenvolvimento até se

tornarem assim tão belas, convidou ‑o a ir

dar um passeio pelos campos.

Ao chegarem perto de uns arbustos, a rapariga

apontou para um casulo onde uma borboleta se esforça‑

va por sair. Tinha conseguido fazer um pequeno orifício, mas

o seu corpo era maior e, apesar da luta intensa, não conse‑

guia libertar ‑se dali.

O jovem, espantado e com pena da pobre borboleta,

logo quis ajudá ‑la a sair, mas a rapariga impediu ‑o dizendo‑

‑lhe que o casulo apertado e o esforço necessário à borboleta

para se libertar eram fundamentais para que se exercitasse

e fortalecesse as suas asas. Caso contrário, passaria a vida a

rastejar, com o corpo murcho, as asas encolhidas e incapaz

de voar.

Sentindo ‑se bem ao lado da rapariga e enquanto passea‑

vam, contou ‑lhe que se sentia infeliz, falou da mágoa que

sentia por não saber o que significava a amizade e o amor e

confessava que gostava de ser diferente e ser livre e ter asas

como as borboletas.

A rapariga abraçou ‑o em silêncio e percebendo que ele

não tinha noção do que era uma borboleta, explicou ‑lhe

que o ciclo de vida das borboletas conhecia várias etapas de

transformação, pois começavam por ser ovos, depois larvas

ou lagartas, a seguir crisálidas que se desenvolviam dentro

de casulos e, finalmente, na fase adulta, criavam belas asas

e voavam.

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O rapaz ficou surpreendido com tudo aquilo e, pela

primeira vez em muitos anos, sorriu ao reconhecer a sabe‑

doria da mãe natureza e os imensos conhecimentos da

rapariga.

No dia seguinte, foi visitar os avós ao fundo da aldeia

e contou, com um brilhozinho nos olhos, quanto aprende‑

ra na tarde do dia anterior com a filha dos amigos dos pais.

A avó sorriu, piscou o olho ao marido e, entrelaçando as suas

mãos com as do neto, disse ‑lhe que ele talvez tivesse desco‑

berto a pessoa mais importante da sua vida.

Depois, explicou ‑lhe que na vida, tal como na natureza,

tudo é mudança e transformação e que, mais importan‑

te do que tentar mudar as coisas e os outros, o essencial é

transformarmo ‑nos a nós mesmos e que as borboletas eram

um bom exemplo disso. Se a larva ao olhar para si se se tives‑

se fechado à transformação e tivesse caído na tentação de

desistir de viver, não tinha dado a oportunidade a si mesma

de ser uma singela borboleta. Da mesma forma, ele precisa‑

va mudar algumas coisas na sua vida e abrir ‑se aos outros

para se transformar como as borboletas.

O jovem estava feliz com as descobertas que fizera e

partilhou com os avós que a duração de vida das borbole‑

tas era muito variável e que algumas espécies viviam apenas

algumas horas ou dias e que, como elas, só por aqueles dois

dias já tinha valido a pena ele ter existido.

Depois, o avô disse ao jovem que, em vez de correr atrás

das borboletas, era mais interessante que ele cultivasse

um jardim com flores e, então, seriam elas a vir a si. A feli‑

cidade era como uma borboleta. Se a perseguíssemos, po‑

dia escapar ‑nos, mas se não a perseguíssemos, ela poderia

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pousar em nós. E o jovem, reconhecen‑

do estar apaixonado, disse que queria

realizar algumas mudanças na sua vida

e que não mais queria ser colecionador

de borboletas.

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O LEÃO DA SAVANA

Era uma vez um rapaz que gostava muito de animais e

era muito feliz por poder ter e cuidar de alguns na sua quin‑

ta. Como o seu sonho era ir ver de perto os leões da savana

africana, os seus pais organizaram um safari para a família

para que ele pudesse mergulhar de uma forma mais vibran‑

te na vida selvagem.

O rapaz admirava imenso o animal que era comumente

apelidado de rei da selva e estar no seu espaço natural era

uma aventura de outro mundo. Sentia ‑se feliz e grato por ter

o privilégio singular de embrenhar ‑se na famosa savana com

o seu habitual clima quente e seco, paisagem aberta, árida

e pouco arbórea e vegetação abundante de gramíneas e ar‑

bustos.

A bordo de um jipe, que era o veículo de tração às quatro

rodas que melhor se adaptava àquele tipo de terreno aciden‑

tado, e conduzidos por um guia experiente, o rapaz e os seus

pais puderam visitar um parque selvagem e, por entre mui‑

tos outros animais, tiveram a honra de observar bem de per‑

to uma família de leões. Com recurso aos binóculos, viram

que naquela zona havia três machos, uma dúzia de fêmeas

e alguns filhotes.

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O rapaz apreciava as glamorosas

jubas dos leões, que eram como co‑

roas impressionantes de pelos longos

que rodeavam as suas cabeças e deu ‑se

conta de que eles, tendo consciência da

presença do jipe e olhando desconfiados, ru‑

giam ameaçadoramente e urinavam nos arbustos para

intimidar, marcar a área que lhes pertencia e afugentar os

intrusos.

Subitamente, o guia apercebeu ‑se de que ao largo pas‑

seavam antílopes, gnus e zebras e como que percebendo

que os leões poderiam querer atacar e a segurança das pes‑

soas do grupo poderia estar ameaçada, afastou ‑se para trás

de umas árvores para que pudessem assistir ao que aconte‑

cesse sem perigo.

Como era costume, foram as leoas que assumiram a

tarefa da caça e trabalharam em equipa para isolar e caçar

uma zebra. Surpreendentemente, um leãozinho pequeno

acompanhou ‑as sem que se tivessem dado conta e, no meio

da correria da fuga, um grupo de gnus pisoteou ‑o de forma

impetuosa.

O rapaz viu que o leãozinho ficara estendido por terra

contorcendo ‑se com dores e isso perturbou ‑o. Depois, ob‑

servou como, a sensivelmente mil metros dali, o grupo das

leoas arrastava a presa e se iniciara a disputa para a reparti‑

ção da caça. Como era habitual, o leão macho alfa foi o pri‑

meiro a alimentar ‑se e só depois as caçadoras, sendo que os

filhotes, que estavam no fundo da hierarquia familiar, foram

os últimos a comer.

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Contos da Arca de Noé

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Após testemunhar ao vivo e a cores a caça das leoas e

a refeição de toda a família, o rapaz não deixava de pensar

no leãozinho que poderia não sobreviver ao atrevimento

que tivera e ao atropelamento selvagem de que fora vítima.

Então, convenceu o guia a levar o jipe até ao local e tratou

o pequeno leão com tudo o que havia na caixa de primeiros

socorros. Como estava em muito mau estado, acharam me‑

lhor pegar nele e levá ‑lo ao veterinário do parque.

Durante uma semana, o rapaz foi a companhia perma‑

nente do leãozinho. Ajudava a dar ‑lhe a medicação e a comi‑

da e brincava e dormia com ele. Ao final de oito dias, estava

recuperado e o rapaz, o veterinário e dois guardas do parque

foram levá ‑lo para junto do seu grupo. Depois do leãozinho

ter lambido demoradamente as mãos do rapaz, todos os

leões receberam efusivamente o membro da família que ha‑

via desaparecido.

Passados cinco anos, o rapaz voltou à savana acom‑

panhado de alguns amigos. Queria mostrar ‑lhes a família

de leões que conhecera naquele parque selvagem e, para

espanto de todos, um leão aproximou ‑se sem que parecesse

exibir um aspeto ameaçador. O rapaz percebeu logo que era

o leãozinho que salvara uns tempos antes e que era agora

adulto.

O rapaz desceu do jipe e o leão levantou ‑se inesperada‑

mente, abraçando ‑o com as suas patas e lambendo ‑lhe cari‑

nhosamente a cara sem cessar. Apesar de possante, robusto

e selvagem, o leão parecia revelar sentimentos humanos.

A verdade é que o rapaz e o leão ficaram amigos para sem‑

pre e todos os anos ele procurava visitá ‑lo na savana.

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AS FORMIGAS DO JARDIM

Era uma vez um homem que gostava muito de

animais e tinha um enorme interesse por tudo quanto se

relacionasse com a vida selvagem. Nos seus tempos livres,

apreciava ver bons filmes e documentários sobre fauna e

adorava ler livros sobre elefantes, leões, tigres, rinocerontes,

búfalos, camelos e muita outra bicharada.

Um dia, depois do almoço, estava a tomar café e a ler o

jornal no jardim da sua casa e adormeceu na cadeira. A sua

mulher, quando foi buscar a chávena, viu um carreiro longo

e compacto de formigas que subia e descia a mesinha para

levar grãos de açúcar que haviam sobrado no pacotinho.

Enquanto despertava o marido, afastava as formigas mais

próximas.

O homem, que sempre admirara animais selvagens,

imponentes e perigosos, fora incomodado e assaltado por

dezenas de minúsculas e inofensivas formigas na sua própria

casa e, quando se preparava para esmagar a fila de formigas

que ali se apresentava, o filho aproximou ‑se e gritou ‑lhe para

que nem pensasse em matá ‑las.

Enquanto convidava o pai e a mãe a acompanhá ‑lo

para descobrir onde estava o formigueiro, explicou que as

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Paulo Costa

formigas eram dos animais mais ad‑

miráveis e extraordinários do planeta.

Disse ‑lhes que eram o grupo mais nu‑

meroso dos insetos, estavam em todo o

planeta à exceção das regiões polares e que

o seu aparecimento na Terra poderia ter aconte‑

cido há mais de 100 milhões de anos.

Quando os três chegaram ao montinho de terra no canto

do jardim junto a uma árvore, observaram que havia vários

carreiros de formigas que, de forma muito organizada e me‑

tódica, entravam e saíam do buraco e ficaram ali em silen‑

ciosa contemplação.

Depois, o filho explicou que os formigueiros eram au‑

tênticas obras de engenharia subterrânea, com um comple‑

xo sistema de túneis, galerias e câmaras que se estendiam

por vários metros e que tinham funções específicas como o

armazenamento de alimentos, a suíte da rainha ou o ber‑

çário onde eram tratadas as larvas.

Referiu, ainda, que as  sociedades  das formigas eram

organizadas por divisão de tarefas, muitas vezes chama‑

das  castas. A função da  reprodução  era realizada pela rai‑

nha e pelos machos e as funções da procura de alimentos,

construção, manutenção e defesa do formigueiro eram

executadas por fêmeas estéreis, chamadas de obreiras.

As operárias tomavam conta das crias, faziam a limpeza dos

diversos espaços e coletavam o alimento e as formigas sol‑

dados guardavam a entrada do formigueiro.

O pai do rapaz estava admirado com os vastos conheci‑

mentos do filho e, para não ficar atrás, disse que sabia que

as formigas comunicavam entre si através de elementos

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Contos da Arca de Noé

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químicos chamados  feromonas, que eram sinais de men‑

sagens deixados nos trilhos que elas formavam entre os ali‑

mentos e o formigueiro. Referiu, também, que, dependendo

da espécie, havia formigas carnívoras, herbívoras e a maior

parte eram onívoras e que eram tão fortes que eram capazes

de carregar coisas até cem vezes o seu próprio peso.

Quando iam os três de regresso a casa, chamou ‑lhes a

atenção uma formiga que trazia uma folha muito maior do

que ela e, noutro carreiro, um grupo que transportava uma

minhoca grande e gorda. De certeza que não conseguiriam

entrar com aquilo pela entrada estreita do formigueiro, mas,

surpreendentemente, muitas outras se juntaram logo a elas

e cortaram a folha e a minhoca em pedacinhos bem peque‑

nos num notável e exemplar trabalho de equipa.

Os pais do rapaz estavam maravilhados com a forma

como as formigas viviam em paz e harmonia familiar e como

eram sábias, organizadas, unidas, humildes, obedientes e cum‑

pridoras. Era incrível como trabalhavam esforçadamente e

sem desistir, tinham iniciativa e lutavam sem cessar pelos seus

objetivos e armazenavam riqueza no verão para poder usufruir

do descanso e dos resultados do seu esforço no inverno.

O homem estava edificado com as inúmeras lições de

vida que as formigas lhe tinham oferecido naquela tarde e,

apesar de apreciar imenso animais imponentes e selvagens,

com umas das mais pequenas criaturas do planeta havia

aprendido muito mais.

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O PEIXINHO DO RIO E AS BOTAS VELHAS

Era uma vez uma menina que vivia numa pequena e

modesta casa nas margens verdejantes de um rio que ser‑

penteava as montanhas. Sempre que podia, ajudava os pais

nas tarefas do campo e toda a gente da aldeia os admirava

pois, apesar de pobres e pouco letrados, eram muito unidos,

simpáticos e felizes.

Além de estudar e de brincar com o seu cão e as ovelhas

do quintal, a menina gostava imenso de acompanhar o pai

à pesca no rio. À sombra das árvores que se espreguiçavam

sobre as águas do rio, a menina gostava de escrever e ler

os livros que levava numa velha caixa de sapatos, enquanto

a mãe fazia tricô e o pai esperava que um peixe incauto

picasse.

Um dia, após umas boas duas horas sem pescar nada

e quando já se preparavam para arrumar as coisas, o pai da

menina sentiu que algum peixe agarrava com força o anzol.

A cana dobrava toda, mas a experiência e sabedoria do pobre

homem era mais do que suficiente para que a tarefa fosse

coroada de êxito. Qual não foi o espanto de todos quando

viram surgir à superfície uma velha bota toda esburacada e

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Paulo Costa

os três deram uma longa e sonora gar‑

galhada.

Enquanto riam e conversavam sobre a

surpreendente pescaria daquele fim de

tarde, a menina dera ‑se conta que dentro

da bota estava um peixe pequenino que saltita‑

va aflito. Depressa o colocou numa lata e disse que aque‑

le não era para comer e que queria ficar com ele.

Enquanto o homem retirava terra e pedras da bota para

a levar consigo, a menina batizou o seu peixinho com o nome

‘Bota’ e disse que, de vez em quando, na escola, os colegas

comentavam que o pai e a mãe andavam sempre com sa‑

patos velhos e que isso a entristecia. O pai e a mãe da meni‑

na entreolharam ‑se e, sem nada dizer, decidiram regressar

a casa.

Quando à noite estavam a jantar, a mãe contou à me‑

nina que o pai na sua infância andava descalço, na sua

juventude fora pescador e aprendiz de sapateiro para aju‑

dar a sua família e que só tivera o primeiro par de sapatos

quando casou. Depois, disse ‑lhe que para que ela pudesse

ir à escola e ter sempre roupa nova para vestir e calçado

bonito e confortável para andar, o pai e a mãe há muitos anos

que não compravam sapatos novos.

A menina, comovida e em lágrimas, foi abraçar o pai e

a mãe. Então, o pai tomou a palavra e, de forma serena, dis‑

se que a sua vida fora a pesca à lampreia e o trabalho na

terra e com sapatos e, depois, disse algumas frases de me‑

mória: ‘Antes de me acusares, criticares ou explorares, anda

uma milha nos meus sapatos’, ‘Vale mais andar descalço do

que tropeçar nos sapatos dos outros’, ‘O afeto conduz a alma

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Contos da Arca de Noé

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como os pés conduzem o corpo’, ‘Aquele que quer apren‑

der a voar um dia, precisa primeiro aprender a ficar de pé,

caminhar, correr, escalar e dançar’.

De seguida, referiu que os sapatos simbolizavam bem

a ideia da importância de fazer caminho na vida e que o

peixinho que estava dentro da bota a lutar pela vida repre‑

sentava bem o que fora a sua existência. Disse que o essen‑

cial era invisível aos olhos e que só se via bem com o coração.

Depois, citou de forma solene mais alguns pensamentos:

‘Caminhante não há caminho. O caminho faz ‑se ao andar’,

‘Não existe caminho para a felicidade. A felicidade é o cami‑

nho’, ‘São os passos que fazem os caminhos’, ‘Onde existe

uma vontade, existe um caminho’.

No dia seguinte, os pais da menina levaram ‑na à velha

arrecadação do fundo do quintal. Junto à porta havia botas

velhas transformadas em vasos com flores e, dentro da casi‑

nha, o calçado fora de uso ganhara uma vida nova. Um melro

tinha feito o seu ninho dentro de uma galocha e, em cima

de uma estante, dois chinelos acolhiam aranhas. Debaixo de

uma caixa, um sapato era o lar de dois ratinhos, junto a um

cesto de lenha, um tamanco era a casa de um sapo e, ao lado

de uns garrafões de água, um par de sapatilhas albergava

uma família de sardaniscas.

A menina estava sem palavras diante daquela bicha‑

rada toda que vivia no velho calçado e sentia ‑se orgulhosa

do enorme coração dos pais. Eles tinham ‑lhe ensinado que

somente o esforço e os afetos calçavam a verdadeira felici‑

dade e a autêntica realização.

Então, combinou com os pais construir um lago que fos‑

se o habitat do seu peixinho e de mais alguns peixes do rio

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Paulo Costa

para que vivessem felizes e não fossem

para comer. Depois, levou um par de

botas velhas suas para a arrecadação e,

partindo o seu mealheiro, ofereceu todo o

seu dinheiro aos pais para que comprassem

finalmente uns sapatos novos.

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AS ZEBRAS E AS LISTAS PRETAS E BRANCAS

Era uma vez uma jovem zebra que andava muito

triste e incomodada por ser frequentemente ridiculariza‑

da pelos cavalos e asnos por causa das suas cores de pele.

Na verdade, apesar de serem todos equídeos, as zebras eram

muitas vezes objeto de chacota em virtude das suas listas

pretas e brancas que mais se assemelhavam a uniformes

de reclusos ou a pijamas.

Tanto os cavalos como os asnos troçavam das zebras

por se julgarem mais bonitos, elegantes, fortes e inteligentes

e por acharem que aquela mistura estranha e indefinida de

cores era a prova inequívoca de que tinham sido mal pro‑

jetadas pela natureza e eram, por isso, animais de segunda

classe. Isso deixava a jovem zebra aborrecida e desolada por

ter nascido assim.

A família da jovem zebra tentava incansavelmente

convencê ‑la de que ela devia ter orgulho em ser uma zebra

e que elas não eram um tipo de cavalos mal feitos já que

tinham uma identidade própria e que era lamentável que

entre os equídeos houvesse uma espécie de racismo ou xe‑

nofobia, como acontecia muitas vezes entre os humanos.

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Paulo Costa

Não era a cor exterior que definia o

valor dos animais, mas o seu interior.

O mais importante não era o que ti‑

nham, faziam ou se podia ver com os

olhos, mas os sentimentos, os valores, o es‑

pírito de equipa, a força de vontade e os proje‑

tos de vida.

Como a jovem zebra teimava em lamentar a cor esquisita

das zebras, a mãe explicou ‑lhe que elas nem eram brancas

nem pretas. Eram as duas coisas e isso era melhor para con‑

fundir os adversários, protegê ‑las melhor do calor e evitar os

parasitas. Disse, ainda, que as listas eram como se fossem

impressões digitais, tornando ‑as únicas, originais e irrepetí‑

veis. Não havia duas zebras iguais e em cada espécie existiam

diferentes tipos de listas, variando entre largura e padrão.

Os padrões das zebras eram verdadeiramente deslumbran‑

tes no mundo animal.

Um dia, a jovem zebra pastava na savana junto da sua

família e, nas redondezas, alimentavam ‑se também alguns

cavalos e asnos. Subitamente, um grupo de leões aproximou‑

‑se ameaçadoramente e todos os equídeos ficaram alerta.

O pai da jovem zebra acalmou a filha e disse ‑lhe que não

temesse pois as listas pretas e brancas eram uma excelente

camuflagem no meio da erva para confundir os predadores e

o movimento de todas juntas tornava ‑se um emaranhado de

cores que lhes dificultava a escolha de um alvo específico.

Ainda o pai da jovem zebra falava quando se deu conta

que um leão atacara um cavalo e, para agravar a situação,

aparecera uma hiena que se agarrara violentamente às per‑

nas de um asno. Sem pensarem duas vezes, algumas zebras

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Contos da Arca de Noé

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aproximaram ‑se dos dois e, depois de lhes aplicarem vários

coices poderosos, formaram um círculo à volta das vítimas

para as protegerem, enquanto as outras se misturavam por

entre os antílopes e ziguezagueavam fugindo em várias

direções para despistar os outros atacantes. Em pouco tem‑

po, todos os predadores desistiram e foram embora vencidos

pela garra, sagacidade e união das zebras.

A jovem zebra ficou apavorada com aquela inespe‑

rada escaramuça, mas estava orgulhosa da coragem e

valentia das zebras. Os cavalos e os asnos aproximaram ‑se

e, agradecendo ‑lhes por terem salvo heroicamente as suas

vidas, pediram perdão por terem sido tão injustos e precon‑

ceituosos. Tinham discriminado e marginalizado as zebras

por causa das suas cores diferentes, quando havia muito

mais semelhanças do que diferenças entre eles.

O pai da jovem zebra disse que não tinham realizado

nada de especial e que somente tinham feito a sua obriga‑

ção. Disse que todos os animais eram irmãos e que a discri‑

minação por causa da raça, cor ou opinião era pura estupidez

e ignorância. Ninguém nascia racista ou xenófobo e se para

odiar era preciso aprender, também se podia ensinar a res‑

peitar e a amar.

Os asnos e os cavalos reconheceram a sabedoria e a

verdade das palavras da zebra e recordaram com humor que

por alguma razão as zebras eram os únicos equídeos que

não se tinham deixado domesticar pelos humanos, além de

saberem bem que elas viam e ouviam muito melhor que

eles. Tinham muito a aprender com as zebras e a segregação

era mesmo uma idiotice.

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Paulo Costa

Então, as zebras, os cavalos e os as‑

nos abraçaram ‑se e decidiram juntar‑

‑se uma vez por mês para conviver e

celebrar a vitória da amizade contra o

egoísmo, o ódio e a intolerância.

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AS ABELHAS DA COLMEIA

Era uma vez uma jovem abelha que não gostava nada

de ser abelha. Achava ‑se um inseto insignificante no meio

de todas as outras colegas obreiras, não gostava da rainha

nem dos zangões, preferia ser um outro animal maior e mais

forte e não achava justo que os humanos ficassem com

quase todo o mel que a colónia produzia de forma tão sábia

e perseverante.

Sentia ‑se infeliz, sem liberdade, uma verdadeira escrava

sem vida própria e saturada de repetida e incansavelmente

limpar e polir os alvéolos, construir favos, ventilar a colónia,

fazer guarda e recolher néctar e pólen, além de lamentar

o curto período de vida da sua espécie, quando o que so‑

nhava mesmo era conhecer o mundo e ser alguém famoso

e importante.

Um dia saiu da colmeia como habitualmente e, decidida

a não realizar mais as suas tarefas, fugiu à procura da felici‑

dade e da realização dos seus ideais. Voou alegre e livremen‑

te por céus nunca vistos como se não houvesse amanhã,

alimentou ‑se e pousou em todas as flores que lhe apeteceu

e descansou na copa das árvores e no alto das montanhas,

sentindo ‑se a rainha de todo o planeta e mais além.

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Paulo Costa

No entanto, nos dias seguintes, a chuva

e o vento levaram ‑na, rápida e facilmen‑

te, para bem longe como se de poeira se

tratasse, ficando ferida ao ser projetada

contra uns pedregulhos. Caiu numa teia de

aranha e teve que lutar impetuosamente para

conseguir libertar ‑se e, na semana seguinte, teve que

desembaraçar ‑se heroicamente de pássaros, ratos, sapos

e percevejos. Machucada, faminta e assustada, sentia ‑se de

rastos, sozinha e desolada.

Aproveitando a melhoria do tempo, a abelha arranjou

forças sabe ‑se lá onde, e empenhou ‑se vigorosamente em

regressar à sua colmeia. Ao avistá ‑la ao longe, parou sem

saber bem se merecia bater à porta e entrar novamente,

pois sentia que havia traído a sua família.

Triste, pesarosa e amargurada, quando se virava para

ir embora e nunca mais voltar, uma meia dúzia de abelhas

suas amigas vislumbraram ‑na e depressa se aproximaram

e, quase sem a deixar exprimir ‑se, levaram ‑na radiantes

para casa.

Toda a colónia parou para ver a atrevida abelha foragi‑

da e, quando todos pensavam que a abelha rainha ia dar ‑

‑lhe um sermão e até mandar que a castigassem, ela apro‑

ximou ‑se e, emocionada, abraçou ‑a demoradamente, deu‑

‑lhe as boas ‑vindas e pediu que preparassem o melhor

mel da colmeia para participarem todas num enorme ban‑

quete.

Após o lauto e inolvidável repasto festivo, a abelha rainha

tomou a palavra e disse que estava orgulhosa da sua colmeia

pois estava convicta que tinha as abelhas mais trabalhadoras

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Contos da Arca de Noé

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do mundo e, ao mesmo tempo e mais importante ainda,

as abelhas com melhor coração de todos os tempos.

Relembrou que as abelhas eram os seres mais impor‑

tantes do planeta e que se deixassem de existir a humanida‑

de também desapareceria irremediavelmente. Sem abelhas

não haveria polinização e sem polinização não haveria repro‑

dução da flora. Sem flora não haveria animais e sem animais

não haveria raça humana. As abelhas eram cruciais para a

biodiversidade, para o planeta e para o resto das espécies e,

por isso, tinham um trabalho e uma missão extraordinária.

Depois, disse que as abelhas eram o único inseto a pro‑

duzir uma substância que os humanos gostavam muito e

comiam e que o mel feito por elas dava para todos e ain‑

da sobrava. Elas, na verdade, produziam mel há quase 150

milhões de anos e ele era um excelente adoçante natural e

um dos melhores e mais eficientes remédios naturais para

os humanos.

Depois, afirmou que as abelhas sozinhas não eram nem

conseguiam fazer nada, mas juntas e unidas eram imbatíveis,

faziam a diferença e tinham o mundo na mão. Separadas,

poderiam ir mais rapidamente, mas juntas iriam, com cer‑

teza, mais longe. Se fossem amigas e se se sentissem como

uma só família, seriam muito mais fortes, realizadas, felizes

e a vida teria sentido pleno, independentemente da duração

que tivesse.

Então, a abelha pediu perdão e, agradecendo a bondade

demonstrada, disse que aprendera que nenhuma abelha era

tão boa como todas juntas e que redescobrira a sua identi‑

dade e a sua missão. Então, toda a colmeia dançou e cantou

efusivamente e sem parar até de madrugada.

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AS TARTARUGAS DA PRAIA

Era uma vez um velho homem que todos os dias ia

ver o pôr do sol à praia. Despedir ‑se do sol que se escondia

no horizonte era a melhor maneira de terminar o dia e dar

as boas vindas à noite. Sentado na areia, pensava na vida,

enquanto contemplava serenamente o oceano imenso e

escutava as melodias das ondas e do vento.

Num dos costumeiros entardeceres em que o sol pin‑

tava de laranja o céu, chamou ‑lhe a atenção alguma coisa

de grandes dimensões que a maré empurrava para a costa

no fundo da praia, junto a meia dúzia de palmeiras que se

debruçavam sobre o areal e quase beijavam o mar.

Cheio de curiosidade, aproximou ‑se para ver o que se

tratava e depressa se deu conta que era uma tartaruga que

ficara presa numa rede de pesca e que, de forma persistente

e aflitiva, tentava libertar ‑se sem sucesso.

Sem pensar duas vezes, o velhote tirou um canivete do

bolso e cortou cuidadosamente o pedaço de rede de algum

barco de pesca que ficara preso à tartaruga. Ela torcia ‑se

toda com receio da ameaça que poderia ser o homem que

a agarrava, mas, à medida que ia sentido a menor pressão

das cordas da rede, foi ficando mais tranquila e oferecendo

menor resistência.

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Paulo Costa

Rapidamente o velho homem per‑

cebeu tratar ‑se de uma tartaruga‑

‑marinha que habitualmente habitava

os mares mais quentes. Sabia que a maio‑

ria das espécies de tartarugas ‑marinhas

eram migratórias e vagueavam pelos oceanos

com o auxílio do campo magnético terrestre.

O velhote teve pena do pobre animal, até porque tinha

consciência de que a sobrevivência das tartarugas ‑mari‑

nhas estava em risco, após muitos anos de caça intensiva

pela sua carapaça, carne e gordura. Media quase um me‑

tro de comprimento e podia ter à vontade uns cem quilos.

Apresentava uma carapaça castanha avermelhada, a cor

da pele era entre o amarelo e o castanho e devia ter ‑se

aproximado da costa por ser uma fêmea a querer desovar.

O homem há muito tempo que não via por aquelas

bandas tartarugas ‑marinhas e ficou feliz por ter salvo a vida

a uma. Sempre admirara a calma, serenidade, mansidão

e paciência que pareciam revelar, ao invés de tantos animais

e pessoas que passavam o seu dia ‑a ‑dia a correr de um lado

para o outro, de forma agitada, ansiosa, inquieta e tensa.

Também as agruras e dificuldades da vida lhe tinham ofe‑

recido uma carapaça capaz de enfrentar as maiores adversi‑

dades e tribulações e agora preferia o silêncio e a meditação.

O homem sabia que as fêmeas, após atingirem a matu‑

ridade, regressavam habitualmente à praia onde tinham

nascido para nidificar e que não enterravam os seus ovos

noutros sítios. Então, decidiu estar atento durante os dias

seguintes para ver o que sucedia. A verdade é que durante

dois dias a tartaruga nadou serenamente junto à costa e,

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Contos da Arca de Noé

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de vez em quando, palmilhava o areal lenta e firmemente

e sempre atenta a eventuais perigos.

Ao terceiro dia, o velhote percebeu que algo de espe‑

cial estava para acontecer. A tartaruga saiu lentamente das

águas enquanto anoitecia e a areia já não estava tão quente

e, após preparar o terreno, fez um buraco, depositou quase

uma centena de ovos e voltou para o mar.

Após ter salvo a tartaruga, o velho homem não quis dei‑

xar de estar perto dos seus filhotes e decidiu construir uma

cabana de madeira nas redondezas para defender dia e

noite o ninho de potenciais ameaças. Tinha consciência de

que a tartaruga ‑marinha era uma espécie em vias de ex‑

tinção e que pouquíssimos filhotes conseguiam atingir a

maturidade.

Passados uns dois meses, o homem testemunhou o

mais extraordinário espetáculo da natureza. O milagre da

vida voltara a acontecer. Para que os filhotes tivessem mais

hipóteses de chegar à água em segurança, os ovos da tar‑

taruga eclodiram à noite e rapidamente as inúmeras tarta‑

ruguinhas se dirigiram para o mar como se algo ou alguém

muito especial as chamasse.

O velhote sentia ‑se a pessoa mais feliz do mundo por

ter conseguido salvar a tartaruga das redes de pesca e por

ter impedido que os predadores naturais ou até algumas

pessoas fizessem mal às tartaruguinhas, tão frágeis e vul‑

neráveis que eram. A vida do velho homem tinha adquirido

novo sentido e ganho novo entusiasmo e ansiava voltar a

receber a visita da tartaruga que ajudara e ainda conseguir

ver alguma daquelas tartaruguinhas a vir desovar na sua

praia.

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O CÃO DO BOSQUE

Era uma vez um cachorrinho que fora abandonado

numa lixeira junto a um bosque. Quem por ali passava olha‑

va com indiferença e ninguém se atrevia a levá ‑lo para casa.

Não se percebia bem a sua raça e ele não se enquadrava

propriamente naquele tipo de cão que se poderia considerar

bonito e fofo.

Ao frio e ao calor, o rafeiro sentia ‑se triste, foi ‑se acostu‑

mando a procurar comida nos sacos que as pessoas deposi‑

tavam ali e abrigava ‑se num latão que encontrara por entre

os arbustos. Tinha medo das pessoas e escondia ‑se sempre

que via ou ouvia alguém. Foi crescendo a tentar sobreviver

à fome e à sede, às agruras do tempo e às aproximações

suspeitas de outros animais.

Um dia, espicaçado pela curiosidade e para quebrar a

monotonia habitual do quotidiano, decidiu ir pela rua fora

em direção à cidade. Estava perplexo com a barulheira que

embrulhava o casario e pasmado com a velocidade dos car‑

ros e a algazarra das pessoas.

Mais embasbacado ficou ao ver cães de todas as cores

e feitios a acompanhar os donos. Apesar de estarem presos

por trelas, pareciam muito satisfeitos. Brincavam, corriam e

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Paulo Costa

estavam todos limpinhos e bem chei‑

rosos.

O rafeiro não sabia bem o que pensar.

Apesar de se sentir mais livre do que os

cães que vira, sentia ‑se prostrado por não

ser como eles e por não ter amigos e decidiu

regressar ao bosque. Pelo caminho, lamentava a pou‑

ca sorte que tivera ao ter sido deixado na lixeira do bosque

quando era pequenino e não poder ter o afeto que os outros

cães possuíam. Apetecia ‑lhe morrer e sentia que a sua vida

não tinha piada alguma.

Enquanto falava com os seus botões, ouviu alguém a gri‑

tar. Levantou as orelhas e, como o alarido vinha do rio que

rasgava o bosque, correu para lá. Deu ‑se conta de que um

rapaz estava a afogar ‑se e, num impulso inexplicável, des‑

ceu a ribanceira e atirou ‑se às águas revoltas do rio para

tentar fazer alguma coisa.

Com os seus dentes, agarrou com toda a força na cami‑

sola do rapaz para que se mantivesse à superfície e puxou ‑o

com arrojo para a margem. Depois, foi procurar alguém que

pudesse ajudar e, ao encontrar uma senhora que por aque‑

las bandas passava, ladrou insistentemente e arrastou ‑a

pela saia para o rio para que se desse conta do sucedido.

A senhora boquiaberta com o comportamento do cão,

rapidamente se apercebeu do que se passara e telefonou

para os bombeiros. Surpreendentemente, o rafeiro foi atrás

da ambulância e ficou à porta do hospital como que à espera

de saber notícias da pessoa que salvara da morte.

No dia seguinte, quando o rapaz saiu, contaram ‑lhe o

que o cão fizera e como ali ficara toda a noite. Movido por

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Contos da Arca de Noé

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uma enorme compaixão e gratidão, ajoelhou ‑se e abraçou‑

‑o. Pela primeira vez, o cão fora acariciado e abanou o rabo

agradecido, lambendo as mãos do rapaz. O rapaz foi para

casa e o rafeiro regressou ao bosque.

O rapaz sentia ‑se comovido porque parecia que a vida

lhe tinha dado uma nova oportunidade através de um cão

e lembrou ‑se que há uns anos atrás um cãozinho aparece‑

ra à porta de sua casa e o pai, que não gostava de cães e o

achara feio, fora levá ‑lo ao bosque. Era mesmo parecido.

Aliás, só podia ser ele.

Então, o rapaz foi ao bosque, procurou o rafeiro e levou‑

‑o para casa. O pai do rapaz reconheceu imediatamente o

cão. Não conseguia acreditar. Estava sem palavras e com

lágrimas nos olhos. Aquele cachorro que não quis acolher

em sua casa e fora abandonado por si foi quem lhe salvara o

filho de morte certa. Finalmente, o cão sentia ‑se desejado

e tinha um lar. Convencidos de que nada acontecia por aca‑

so e que aquele cão era um sinal, decidiram fazer um canil

no quintal para recolher os cães que encontrassem aban‑

donados.

O rapaz, procurando um nome para o cão, descobriu um

que significava ‘presente de Deus’. Então, sensibilizado com

a sua história e agradecido aos céus pela sua vida, chamou

‘Mateus’ ao rafeiro do bosque.

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O CAVALO DA MENINA DA QUINTA

Era uma vez uma menina que tinha o sonho de ter

um cavalo. Desde pequenina, gostava muito de desenhar e

ler histórias de cavalos e achava ‑os os animais mais bonitos

do mundo. Admirava a sua esperteza, elegância e velocidade

e passava grande parte do seu tempo livre a folhear mil e

um livros sobre o tema.

A menina não se cansava de partilhar com os seus ami‑

gos tudo quanto descobria sobre cavalos. Explicava vezes

sem conta que a domesticação do cavalo ocorrera há uns

três mil anos e isso fora muito importante para as civilizações

asiática e europeia e que ele tivera durante muito tempo

um papel decisivo nos transportes, trabalhos agrícolas e até

nas guerras ao serviço dos exércitos.

Gostava de exibir a todos a sua sabedoria, repetindo qua‑

se que mecanicamente que o equídeo era da mesma família

que o asno e a zebra, que era herbívoro, granívoro e corre‑

dor, que não tinha outra arma além dos cascos, que a fêmea

chamava ‑se égua e ao filho dava ‑se o nome de potro, que

a sua gestação durava 11 meses e podia viver em média 25

anos e que o cavalo de corrida podia chegar a correr a uma

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Paulo Costa

velocidade de 60 e tal quilómetros à

hora.

Um dia, os pais da menina foram a uma

feira de cavalos e do programa consta‑

vam provas desportivas de equitação de

trabalho, atrelagem, Horseball, saltos de  obs‑

táculos e batismos equestres e havia cavalos e cavalei‑

ros de renome internacional e com títulos conquistados em

inúmeras e prestigiadas provas e campeonatos.

A menina estava eufórica com tudo e mais alguma coi‑

sa, mas não conseguia disfarçar a sua tristeza por não ter

um cavalo só seu. Então, os pais, que adiaram o mais que

fora possível a aquisição de um para a filha, decidiram com‑

prar ‑lhe um bonito potro branco.

Como havia muito espaço na quinta, o cavalinho corria

desenfreadamente e ninguém conseguia chegar perto dele.

Galopava de forma selvagem, frenética e vertiginosa por

todo o lado e nada nem ninguém o conseguia sossegar.

A menina sentia ‑se triste e dececionada. Sempre tivera

o sonho de ter e montar um lindo cavalo e cavalgar livremen‑

te pelas montanhas e planícies como se não houvesse ama‑

nhã e a verdade é que o potro não acalmava nem obedecia

e, tanto o pai como alguns amigos, tentavam à força prendê‑

‑lo, dominá ‑lo e domesticá ‑lo e nada conseguiam.

Então, a menina lembrou ‑se que lera algures que os

cavalos não podiam ser montados antes dos dois anos e que,

tal como acontecia com as crianças, precisavam de crescer,

aprender e amadurecer e que se conseguiriam educar me‑

lhor com paciência, serenidade e diálogo. Depois de folhear

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Contos da Arca de Noé

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vários livros da especialidade, decidiu ser ela mesma a

domesticar o seu potro.

A menina passou a estar cada vez mais tempo perto do

seu cavalo para que se habituasse à sua presença. Passeava,

cantava e falava com ele e começou a dar ‑lhe comida e a

escovar ‑lhe o pelo aos poucos de forma a criar vínculos e

a ganhar a sua confiança. Procurava falar ‑lhe num tom de

voz calmo e baixo e estar sempre no seu campo de visão

para que não se assustasse e garantisse a sua própria se‑

gurança. Ao longo do tempo, foi ensinando pequenas coi‑

sas e o cavalo era recompensado com petiscos e carinho de

cada vez que conseguia dar passos positivos na sua apren‑

dizagem.

Paulatinamente, o cavalo aceitou o cabresto, foi ‑se acos‑

tumando a cavalgar obedecendo aos comandos da menina

e adaptou ‑se à sela e aos estribos. Depois, a menina co‑

meçou a treiná ‑lo para ser montado e, com a ajuda do pai,

lá chegou o grande dia.

Toda a gente ficou admirada com o conhecimento,

paciência e persistência que a menina revelara durante me‑

ses a fio no adestramento do cavalo. A docilidade e firmeza

que evidenciara com o seu cavalo ficaram famosas em toda

a região e todos achavam que, surpreendentemente, os

dois conseguiam conversar um com o outro.

A menina sentia ‑se muito satisfeita com o seu cavalo

e os pais estavam orgulhosos da amizade e cumplicidade

que havia entre eles. Ele dava ‑lhe muitas lições de vida,

tornara ‑se o seu mais fiel companheiro e ela sentia ‑se a pes‑

soa mais feliz do mundo.

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O ELEFANTE DA ALDEIA

Era uma vez uma rapariga que vivia numa aldeia no

meio da floresta. Como todas as outras casas, a sua casa era

feita de palha e troncos de madeira e as pessoas cultivavam

a terra e cuidavam de alguns animais domésticos para

garantir a sua subsistência.

Todos na aldeia temiam o ataque de algum animal sel‑

vagem pois, de vez em quando, leões, tigres e serpentes

entravam nas palhotas à procura de comida e, em tempos

idos, já tinham deixado rastos de sangue entre a população.

A rapariga sempre revelara uma coragem invulgar e aju‑

dava os homens a defender a aldeia com unhas e dentes.

O que os seus pais não gostavam muito era de quando deci‑

dia escapulir ‑se da povoação pois, como era rebelde e aven‑

tureira, gostava de ir passear e esquadrinhar as redondezas.

Aí ficavam tão preocupados que rezavam a todos os santos

e mais alguns.

Ela gostava imenso de ir observar os elefantes que a uns

quantos quilómetros da aldeia era normal passearem em

grandes manadas. Ficava encantada com os laços sociais

e afetivos que evidenciavam os maiores animais terrestres

e espantada com a grandeza e robustez dos paquidermes,

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Paulo Costa

gostando particularmente de apreciá‑

‑los a caminhar com as suas enormes

patas, trombas e orelhas, a brincar com

as suas crias, a beber água no rio e a

comer erva, fruta e folhas de árvores.

Paulatinamente, a rapariga começou a ter

cada vez mais receio de ir ver os elefantes pois o seu

comportamento tornara ‑se estranhamente invulgar. Deu‑

‑se conta que houvera incêndios em algumas florestas mais

longínquas, que havia cada vez mais camiões de madeirei‑

ros a transportar troncos de árvores e que era cada vez mais

recorrente ver elefantes mortos por causa da extração dos

seus dentes de marfim para venda.

Numa noite, igual a todas as noites, alguma coisa inu‑

sitada aconteceu. Enquanto toda a aldeia dormia tranqui‑

lamente, ouviu ‑se subitamente o forte bramido de alguns

elefantes que pisavam desenfreadamente os terrenos de

cultivo, empurravam violentamente as palhotas das pessoas

e comiam desvairadamente couves, batatas e cenouras bem

como galinhas, patos e coelhos e tudo o que aparecesse

pela frente.

Alarmados e aterrorizados, os homens da aldeia depres‑

sa desataram aos tiros contra os elefantes, apesar dos gri‑

tos de reprovação da rapariga que percebera perfeitamente

que aquilo, mais cedo ou mais tarde, poderia acontecer, visto

que o habitat dos elefantes estava cada vez mais destruído

e reduzido e os alimentos escasseavam nos seus territórios.

De todo aquele alvoroço, resultou uma excecional des‑

truição e um dos elefantes morto. Mas o que mais impres‑

sionou e comoveu a rapariga foi ver um elefante bebé que

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Contos da Arca de Noé

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gemia desesperado junto ao corpo do elefante abatido, que

deveria ser a sua mãe.

Enquanto a preocupação de todas as pessoas da aldeia

era a de reconstruir as casas e voltar a semear a terra, a úni‑

ca obsessão da rapariga era ajudar o bebé elefante. Durante

as semanas seguintes, esforçou ‑se por proporcionar ao jo‑

vem paquiderme uma vida o mais feliz possível, tentando

remediar a morte da mãe. O elefante foi ‑se afeiçoando à

rapariga e gostando de ficar pela aldeia e toda a gente o

estimava e admirava pela sua docilidade e humildade.

Com o decorrer dos anos, o elefante foi sendo ensinado

pela rapariga a executar algumas tarefas e levava as crian‑

ças às costas a passear, ajudava a transportar cargas mais

pesadas e a sua presença robusta e imponente afugentava

os animais que constituíam habitualmente maior ameaça.

Apesar de ter vivido sempre em liberdade, nunca quis

deixar a aldeia e a sua maior façanha foi quando numa noi‑

te de trovoada seca se apercebeu que um raio caíra numa

árvore e, depois de muito bramir a alertar as pessoas, com

a sua tromba carregada vezes sem conta de água do riacho,

foi incansável a ajudar a apagar o incendio que alastrara a

várias palhotas.

Já bastante velho e depois de ter visto nascer os filhos

e netos da rapariga que se tornara a sua maior amiga, o ele‑

fante, como que pressentindo o fim, retirou ‑se pela primeira

vez da aldeia para morrer sozinho. Toda a gente chorou, mas

não houve ninguém que não sorrisse também.

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O GATO E A CAIXA DA FELICIDADE

Era uma vez uma rapariga chamada Mariana. Nada

lhe faltava, mas a sua vida parecia não ter sentido nem graça

alguma. Não se sentia feliz nem realizada e sentia ‑se can‑

sada de tudo e todos. Apesar de haver sempre tanta gente

à sua volta, sentia ‑se sozinha e a única coisa que a fazia

sorrir era um gatinho que a acompanhava por toda a casa

e ia com ela para o jardim.

Um dia, após fechar o livro que tinha entre mãos, olhou

as estrelas e, suspirando, disse para os seus botões que ia

fugir de casa. Após ter preparado a mochila, esperou que o

silêncio da noite abraçasse a sua casa e saiu em bicos de pés,

levando consigo o seu pequeno gato. O seu coração estava

apertadinho, mas não olhou para trás. Caminhou sem saber

bem para onde ir, mas sentia que tinha que mudar o rumo

dos seus passos habituais.

A noite foi ‑se tornando mais escura. Apesar do tem‑

po quente, as nuvens adensaram ‑se no céu e as estrelas

foram ‑se escondendo. Ficou com medo. Ficara fresco e

ameaçava chover, mas não podia parar. De repente, cha‑

mou ‑lhe a atenção uma luz que vinha da pequena janela

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Paulo Costa

de uma velha casa ao fundo da rua e

espreitou. A frágil luzinha de uma vela

fazia companhia a uma senhora idosa

com um gato no colo que, unindo as suas

mãos trémulas, rugosas e calejadas, orava

com os olhos fechados. A Mariana ficou como‑

vida com aquela pobre mulher. Em vez de amaldiçoar

a escuridão medonha da noite e da vida, acendera a vela

da fé e rezava com confiança e sem desfalecer.

Com o gatito nas mãos, decidiu continuar a trilhar o

seu caminho sem destino e um ruido estranho assustou ‑a.

Na sua direção aproximavam ‑se duas pessoas muito lenta‑

mente. O pavor assaltou ‑a e, sem saber o que fazer ou pen‑

sar, escondeu ‑se instintivamente atrás de um muro cheio

de musgo e silvas. Um menino coxeava dando a mão ao pai

e com um cão ao lado. Com toda a paciência e ternura,

ele animava a criança a não desistir e a acreditar que po‑

dia ficar bem. A Mariana, bem mais serena, percebeu que

aquele rapazinho caminhava de muletas e, apesar das

dores, demonstrava força de vontade e confiava na sua

recuperação.

Lá continuou a sua viagem e foi indo em direção ao mar,

andando cada vez com passos mais apressados. Começara a

chover e o vento fustigava as árvores e os arbustos. Colocou

o seu gato na mochila, deixando ‑lhe a cabeça de fora, e

aos poucos foi ficando toda molhada. Ao aproximar ‑se da

praia, um casal de lavradores que contemplava a chuva e os

raios da trovoada no oceano, convidou ‑a a si e ao gatinho

a abrigarem ‑se dentro de casa. Com afeição e simpatia,

ofereceram ‑lhe roupa e comida quentinha. O gesto amigo

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daquela família que transparecia felicidade e bondade dei‑

xou a Mariana em lágrimas.

Decidiu, então, contar quem era e a história da sua

tenra vida cheia de chatices e desilusões. Passados uns

momentos, o senhor decidiu sair da sala e depressa regres‑

sou com um ovo nas mãos. Para surpresa de todos, a casca

começou a romper ‑se e disse á Mariana que visse o pintainho

que estava a nascer e, de seguida, deu‑lho para as mãos.

Explicou ‑lhe, depois, que as forças exteriores podiam partir

um ovo e aí a sua vida acabava. Mas se ele se partisse por

causa de uma força interior, a vida começava. As grandes

coisas começavam a partir de dentro e tinha a certeza de

que ela era forte e capaz de lutar contra todos os obstáculos

da vida.

Depois, a senhora pediu ‑lhe que a acompanhasse à jane‑

la e, abraçando ‑a, disse ‑lhe que olhasse para um barco que

navegava no mar. Explicou que, apesar da muita chuva e do

mar revolto, a água toda do oceano não o conseguiria afun‑

dar, a não ser que entrasse no seu interior. Do mesmo modo,

nada a poderia derrubar se não permitisse que as coisas más

entrassem e permanecessem no seu coração.

Paulatinamente, o céu voltou a mostrar as suas estre‑

las e a madrugada espreguiçou ‑se, oferecendo os primei‑

ros raios de sol. O casal levou a Mariana de regresso a casa

e ofereceram ‑lhe uma caixinha, dizendo ‑lhe que continha

o segredo da felicidade.

Abraçada aos pais, apressou ‑se a abrir com eles a caixi‑

nha. Para surpresa de todos, lá dentro estava um espelho.

Como todos espreitavam, lá dentro estava toda a família e,

ainda, o gato da Mariana. Pediu desculpa por ter fugido e

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Paulo Costa

disse ‑lhes que tinha descoberto que a

felicidade dependia de si e que residia

no seu coração, na sua vontade e na sua

própria casa.

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A BALEIA DO PESCADOR

Era uma vez um pescador que todos os dias se fazia

ao mar no seu barco para pescar. Se havia coisa que lhe dava

satisfação era ir na sua pequena embarcação, depois de

um árduo dia de trabalho, mar dentro rumo ao pôr ‑do ‑sol

e lançar a sua cana a ver se algum peixe picava.

Gostava imenso de estar sozinho uma ou duas horas por

dia ao entardecer a contemplar silenciosamente as ondas, as

nuvens e as gaivotas, enquanto estava na pescaria e muitas

vezes mergulhava nas águas e isso sabia ‑lhe pela vida.

Um dia, sentiu a ondulação mais agitada e, olhando ao

largo, ficou boquiaberto ao ver algumas baleias que passea‑

vam e saltavam na água. O seu coração estremeceu num

misto de emoção e medo. Nunca vira cetáceos tão perto de

si e sentia ‑se maravilhado com a sua imponência, graciosi‑

dade e agilidade e, ao mesmo tempo, temia pela sua vida,

pois facilmente o poderiam atacar. Sentia ‑se grato à vida por

tão singular privilégio de estar tão próximo do maior animal

do planeta e, simultaneamente, suspirava que nada de mal

lhe acontecesse.

A olho nu parecia ‑lhe que eram umas nove ou dez

baleias e as maiores poderiam ter uns vinte e tal metros de

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Paulo Costa

cumprimento e mais de sessenta tone‑

ladas. Eram de coloração cinza e a par‑

te inferior era esbranquiçada. Quando

as baleias atingiam a superfície, as barba‑

tanas dorsais eram bem visíveis logo após

o focinho pontudo e sopravam algumas vezes

pelos espiráculos, lançando esguichos de água por uns

bons dez metros de altura. Permaneciam em cada visita

à tona da água mais de um minuto e, depois de mergulha‑

rem profundamente no mar durante uma dezena de minu‑

tos, saltavam outra vez completamente para fora da água.

O homem estava arrebatado e embevecido com aquele

surpreendente espetáculo e estava a gostar particularmente

das suas inusitadas vocalizações pois parecia que estavam

a conversar umas com as outras e até a cantar num autên‑

tico concerto.

O problema foi quando se apercebeu que, paulatina‑

mente, as baleias estavam mais próximas de si e os saltos

colossais que davam provocavam ondas que faziam oscilar

cada vez mais o seu pequeno e frágil barco. Estava apavora‑

do e, após tentar afugentar uma baleia que se abeirou de‑

mais, o inevitável aconteceu. O barco virou inapelavelmente

e o homem teve que lutar pela vida, esforçando ‑se infatiga‑

velmente por se manter à superfície agarrado a um pedaço

de madeira da embarcação que, entretanto, se afundara.

Quando parecia que a morte era mais do que certa, o

homem deu ‑se conta que uma das baleias estava muito

perto de si e, após andar à sua volta por uns momentos,

começou a tocar ‑lhe com o seu enorme focinho estreito e

comprido.

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Contos da Arca de Noé

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Admiravelmente, a baleia incitava o homem a nadar e

empurrava ‑o suavemente na direção da praia. Em pouco

mais de meia hora, o homem estava no areal são e salvo.

Não podia crer no que acabava de experienciar naquele final

de tarde e tudo lhe parecia surreal. Apesar de todos terem

ficado preocupados com o homem e lamentarem a perda

do barco, ninguém acreditava na história das baleias que

contara, até porque não era habitual andarem por aquelas

bandas.

A verdade é que o homem construiu um barco de ma‑

deira maior e mais robusto para continuar a ir à pesca e po‑

der continuar a observar os cetáceos quando andassem por

ali. Todos os anos esperava ansiosamente a chegada da épo‑

ca de as baleias passearem ao largo da costa pois migravam

sazonalmente de oceano para oceano à procura de alimento

e podia ser que tivessem escolhido aquela rota. Ia cada vez

mais tempo para o mar e, enquanto esperava que a sua cana

de pesca lhe trouxesse alguma coisa, observava as baleias

com uns binóculos, admirava as suas danças e deliciava ‑se

com as suas melodias.

Inacreditavelmente, todos os anos a baleia que salvara

o homem aproximava ‑se uma ou duas vezes do seu barco

com todo o cuidado como que para cumprimentar o velho

amigo e deixava que ele a acariciasse durante uns minutos.

O homem sentia ‑se como se fosse o Jonas dos tempos mo‑

dernos e acreditava firmemente que as baleias gostavam de

si e iam àquela praia todos os anos só para o visitar. E sentia‑

‑se o pescador mais feliz do mundo.

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O LINCE DO PRÍNCIPE HERDEIRO

Era uma vez um príncipe que tinha um lince bran‑

co. Fora um presente de aniversário aquando do décimo

aniversário do herdeiro da coroa e, desde então, tinham ‑se

tornado amigos inseparáveis. Parecia um gato grande, de

patas curtas e longa pelagem e, apesar de estar frequente‑

mente com o príncipe, também saía do castelo para passear

e caçar.

Um dia, quando o sol já se escondia atrás das montanhas,

o rei pediu à esposa e aos seus dois filhos para se deslocarem

até à torre norte da fortaleza. Os três trocaram uns olhares

intrigados pois não era habitual o monarca ter tempo para

a família, tantos eram os afazeres que a administração do

reino implicava.

Então, disse ‑lhes com voz solene que estava a ficar ve‑

lho e que era imperioso que se começasse a preparar a sua

sucessão. Caberia ao filho primogénito ascender ao trono,

já que havia sido preparado desde bebé para esse impor‑

tante cargo e ele tinha recebido a mais refinada formação

com os mais sábios mestres. Chegara o momento de servir

o reino.

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Paulo Costa

O príncipe estava sem palavras e nem ousava olhar os olhos do pai.

A irmã sorriu de satisfação e orgulho e deu umas palmadinhas de regozijo

no joelho trémulo do futuro monarca. Por fim, levantou a cabeça e olhou primeiramen‑

te para o rosto da mãe como que a implorar socorro. Nitidamente não estava confortável com tudo aquilo e disse, nervoso e triste, que não sabia se seria capaz e que não que‑ria aquilo para a sua vida.

O rei ficou agastado e irritado, deu um murro na peque‑na mesa de madeira que estava no centro daquela saleta e levantou ‑se impetuosamente dizendo, em alto e bom som para que todo o reino escutasse, que era ele quem man‑ dava e que os seus desejos eram ordens.

O jovem príncipe não conseguiu pregar olho toda a noi‑te e o seu lince foi o seu fiel companheiro naquelas horas de sofrimento e lágrimas. Mal o primeiro raio de sol beijou a planície, alguns soldados bateram à porta do príncipe e levaram ‑no a cavalo para uma aldeia distante e isolada de tudo e todos. Apesar de o príncipe querer levar o lince, havia a ordem expressa do rei para que ficasse preso numa masmorra.

Durante vários meses, o jovem herdeiro da coroa rece‑beu uma formação qualificada com os melhores especia‑listas das ciências militares na área da infantaria, artilharia e cavalaria e os mais reputados mestres da política, direito, línguas e história. Inteligência não lhe faltava e riqueza, fama, prestígio e poder estavam mesmo a dois passos, mas não se sentia feliz nem realizado.

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Contos da Arca de Noé

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De vez em quando, o príncipe dava uns passeios e gostava muito de falar com a gente simples. Um dia, surpreendente‑mente, o lince apareceu ‑lhe do nada, e ambos se abraçaram efusivamente. Tinha conseguido fugir e não descansou en‑quanto não encontrou o seu amigo. Quando estavam a dar uma volta pelos campos, o príncipe viu uma casa envolta em labaredas. Impulsivamente, correu com toda a sua força e ao chegar ao local ouviu um bebé a chorar e uma velhinha que gritavam aflitas. O príncipe entrou de rompante e, ape‑sar da intensidade e calor das chamas, conseguiu trazer o bebé para fora e, espantosamente, logo a seguir, por entre a enorme fumarada, saiu o lince a puxar veementemente a velhinha.

O jovem príncipe, que tinha sido criado num berço de ouro e educado para reinar e ter toda a gente ao seu ser‑viço, estava ferido, sujo e exausto, mas apresentava o mais bonito sorriso que algum dia alguém lhe vira, pois estava feliz por ele e o seu lince terem arriscado a vida para salvar a vida de duas pessoas frágeis e indefesas.

Cheio de coragem, deslocou ‑se apressadamente para o castelo e disse ao pai que descobrira que eram as pes‑soas e não as coisas que o realizavam e faziam feliz. Depois, comunicou ‑lhe que não queria ser rei e que preferia servir o reino com a ajuda do seu lince, estando perto da gente, falando com as pessoas, escutando ‑as e ajudando ‑as no seu quotidiano simples.

O rei, após uns momentos de silêncio, abraçou o príncipe com lágrimas nos olhos e disse que sentia um enorme orgu‑lho em si e afirmou que o compreendia. De seguida, chamou a família e os conselheiros reais e convidou a filha a ser a pró‑

xima rainha e todos ficaram muito felizes.

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O OURIÇO ‑CACHEIRO DO JOVEM INQUIETO

Era uma vez um rapaz que sempre se sentira triste

com a injustiça, a violência e a falta de solidariedade entre

as pessoas. Sempre que via na televisão, ouvia na rádio ou

lia nos jornais que ocorrera um conflito armado, se violara

a dignidade humana, se poluíra o ambiente, se destruíra a

natureza ou se extinguira mais alguma espécie animal, ele

revoltava ‑se e fazia longos e bonitos discursos junto dos

amigos e família, lamentando ‑se de uma sociedade desu‑

mana, cruel e sem valores.

Não podia continuar de braços cruzados e decidiu ir pelo

mundo fora falar aos governantes das nações em favor da

reconciliação entre os povos e entre o Homem e a nature‑

za e a fauna. Os políticos e outros dirigentes de instituições

relevantes de diversos países achavam ‑lhe piada e revela‑

vam até simpatia pela sua irreverência e convicções ideoló‑

gicas. Chegou a discursar nas Nações Unidas, no Parlamento

Europeu e em diversas organizações sociais e caritativas

internacionais. Durante a sua digressão planetária de anos,

as suas palavras eram sempre escutadas com muito respeito

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Paulo Costa

e estima, pois falava com sabedoria,

entusiasmo e determinação.

Dizia que o mundo estava perdido e a

humanidade caminhava para a autodes‑

truição se não se fizesse nada para mudar

o estado de coisas. Defendia que tanto o ser

humano como todos os animais e plantas tinham a

sua dignidade e todos mereciam viver harmoniosamente.

Só assim era possível habitar saudavelmente o cosmos.

E falava da destruição da Amazónia e do desaparecimento

de baleias, gorilas, elefantes e muitos felinos.

Contudo, o rapaz dava ‑se conta que, apesar dos seus

esforços e de todos o ouvirem com atenção, nada nem nin‑

guém mudava pois continuava a assistir ‑se à sucessão sem

tréguas de guerras, mortes, fome e doenças de pessoas,

animais e plantas.

Se não conseguia mudar o mundo, decidiu apostar no

seu país. Durante vários meses, discursou na Assembleia da

República, nas Câmaras Municipais e em tudo quanto fos‑

sem instituições de referência local e regional. Continuava

a ser recebido com consideração e amizade por toda a

zgente e todos elogiavam os seus nobres princípios e lou‑

váveis teorias sobre a importância de cuidar e salvar a casa

comum que era o planeta. Mas o jovem continuava a sentir‑

‑se dececionado com as pessoas pois via que cada uma

se preocupava muito mais com as suas coisas e com os seus

direitos do que com as coisas de todos e com os deveres

de cada um.

Decidiu, então, limitar ainda mais o seu raio geográfico

de ação. Durante várias semanas, visitou todas as associações

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Contos da Arca de Noé

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educativas, culturais, religiosas, recreativas, sociais, desporti‑

vas e caritativas da sua própria terra e, como sempre, todos

ficavam emocionados com as suas palavras inflamadas e

com os ideais humanistas e ecologistas que defendia acer‑

rimamente.

No entanto, via mais uma vez que pouco ou nada se

alterava ao seu redor. O jovem via ‑se cada vez mais frustrado

e desanimado e apetecia ‑lhe desistir pois considerava o seu

empenho condenado ao fracasso.

Depois de muito pensar, decidiu ir para casa e parar por

uns tempos. Deu ‑se conta que sempre falara muito e fizera

pouco. Reconheceu que quisera mudar os outros sem an‑

tes ter tentado mudar ‑se a si próprio. Então, optou por ficar

calado e começar a falar apenas com gestos e atitudes.

Decidiu ser a mudança que queria ver acontecer no mundo.

A partir daquele dia, mais do que dizer coisas extraordi‑

nárias, decidiu começar a fazer pequenas coisas extraordina‑

riamente bem e, por extraordinária coincidência, começou

logo por recolher da rua e alimentar em casa um ouriço‑

‑cacheiro bebé que ficara órfão, após assistir ao atropela‑

mento da mãe por um automobilista incauto.

O ouriço ‑cacheiro tornou ‑se para ele o símbolo da sua

transformação pessoal em favor do seu compromisso na

transformação do mundo. Tornou ‑se mais sensível aos dra‑

mas do mundo e o seu altruísmo a favor de pessoas e ani‑

mais reais e concretos provocou mais impacto que os seus

belos discursos. A humanidade ficou melhor porque o jovem

se tornou melhor.

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O PAPAGAIO DE MYRIAM

Era uma vez um papagaio que, depois de inúmeros

dias e noites de viagem dentro de uma minúscula jaula de

madeira em cima de um camelo com outras incontáveis

mercadorias, chegava ao que parecia ser o fim da odisseia

por entre florestas, montes, planícies e desertos.

Quase desfalecido pelo cansaço, calor e sede, o pobre

papagaio suspirava de alívio por estar à sombra, apesar do

burburinho enfadonho daquele mercado de Jerusalém.

O dono do camelo, após um breve diálogo, entregou a gaiola

a troco de umas quantas moedas. O papagaio era o presente

de aniversário de uma menina chamada Myriam.

A menina ficou com uma alegria indescritível e a primei‑

ra coisa que fez foi abrir a portinha da gaiola e libertar a ave

que, assustada, logo se refugiou em cima de um móvel alto

da sala. Em poucos minutos foi conquistado pela serenida‑

de e bondade da menina e rapidamente começou a repetir

o seu nome, tantas as vezes que o pai e a mãe o diziam.

A rapariga gostava muito do papagaio pois era dócil e

esperto. Deu ‑lhe o nome ‘Joshua’, um nome hebraico que

significava ‘O Senhor é a minha salvação’. Dava ‑lhe semen‑

tes e frutos para comer, água para se banhar, passeava com

ele ao ombro e foram ‑se tornando amigos inseparáveis.

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Paulo Costa

Passados uns anos, o Joshua foi sur‑

preendido durante a noite com a

conversa de Myriam com alguém que

também tinha asas, apesar de não pa‑

recer uma ave e, no dia seguinte, repetia

constantemente duas frases que provocavam

o sorriso, mas também o embaraço de jovem junto dos

pais: ‘Avé, ó cheia de graça’ e ‘O Senhor está contigo’.

Acompanhava Myriam para todo o lado, mesmo quando

ela teve que ir uns tempos para casa da prima Isabel que

vivia nas montanhas numa cidade de Judá. Mais uma vez,

e durante muito tempo, o Joshua dizia umas frases es‑

tranhas que os pais da jovem e o seu namorado José não

entendiam bem: ‘Bendita és tu entre as mulheres’ e ‘Bendito

é o fruto do teu ventre’.

José parecia bom rapaz e o Joshua sentia que a dona

gostava muito dele pois até casaram e ela ficou grávida.

Passados uns tempos, Myriam e José tiveram que ir a Belém

e foi lá que nasceu o bebé num velho estábulo. O Joshua

achava aquilo tudo muito enigmático: vários animais e mui‑

tas visitas, desde pastores a reis. Aqueles tempos foram com‑

plicados e difíceis pois quando foram ao Templo apresentar

o menino, a quem tinham dado o nome de Jesus, Myriam

ficou pensativa e até triste com o que lhe disse um homem

idoso chamado Simeão, além de que tiveram que fugir ines‑

peradamente para bem longe dali.

As coisas acalmaram quando regressaram a Nazaré.

Myriam tratava das lides da casa e da educação de Jesus e

o José passava o dia a trabalhar na sua carpintaria. O rapaz

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Contos da Arca de Noé

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ia crescendo em todos os sentidos e também ele era muito

amigo do Joshua.

Um dia ficou nervoso aquando de uma ida ao Templo

de Jerusalém pela festa da Páscoa, pois Jesus desaparecera

e foi a sua intuição que fez José e Myriam voltar à capital e lá

o encontraram a falar com umas pessoas muito importantes.

Os anos iam passando e a verdade é que até Joshua

ficou muito triste quando o marido de Myriam morreu e

muito apreensivo quando Jesus decidiu sair de casa. Dizia

que tinha uma missão a realizar, que tinha que estar ocu‑

pado com as coisas do Pai, anunciar o Reino de Deus e falar

do mandamento do Amor. O Joshua acompanhava sempre

Myriam que estava pouco por casa pois gostava de ir ver e

ouvir o filho por todo o lado. Ela meditava e guardava tudo

no seu coração e o Joshua repetia, vezes sem conta e com

solenidade, outra frase que ouvira da mãe do Jesus aquando

de um casamento em Canã: ‘Fazei o que Ele vos disser’.

Passados uns tempos, o Joshua apercebeu ‑se que algo

de terrível estava a acontecer. Viu Myriam a chorar incon‑

solavelmente ao ver Jesus ser preso e morto numa cruz.

E chorou com ela. Durante muito tempo, quando Myriam

estava acompanhada por alguém, o Joshua dizia ‘Eis o teu

filho’ e ‘Eis a tua mãe’ e todos sorriam, percebendo bem o

que queria dizer.

Myriam reunia ‑se muitas vezes em oração com os ami‑

gos de Jesus e o Joshua repetia muitas vezes a frase ‘Santa

Maria, Mãe de Deus’. Misteriosamente, o Joshua desapa‑

receu um dia por entre as nuvens do céu e nunca mais foi

visto. Muitos diziam que fora ao encontro de Myriam.

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O TUBARÃO E O MENINO DA ILHA

Era uma vez um menino que vivia numa ilha e era

filho de um humilde pescador. Gostava de construir cas‑

telos na areia da praia e subir às palmeiras para ver as gai‑

votas a esvoaçar e observar melhor os barcos ao largo. Mas

do que mais gostava mesmo era de nadar nas águas crista‑

linas do mar e mergulhar bem fundo para brincar com os

peixes e procurar conchas e búzios.

Um dia, o menino andava a navegar num pequeno barco

de madeira e sentiu repentinamente uma forte agitação das

águas. Com o coração a bater a mil, viu um enorme tubarão

que depressa começou a abalroar a minúscula embarcação,

a ponto de quase o atirar borda fora.

Num impulso irresistível, mergulhou e tentou chegar o

mais rapidamente possível à ilha, sabendo que estava a ar‑

riscar a vida numa luta desigual com um dos mais temíveis e

mortíferos habitantes do mundo subaquático. Quase já sem

forças e prestes a desistir de lutar pela vida, o menino sentiu

a aproximação do tubarão e, surpreendentemente, sentiu

que o elevava calmamente para o seu dorso e o conduzia até

ao areal.

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Paulo Costa

Ao chegar à praia, o menino deitou ‑se

na areia e beliscava ‑se a tentar confir‑

mar se tudo aquilo por que passara era

realidade ou um sonho. O pai e a mãe do

menino, que tinham visto tudo, rapidamen‑

te vieram ter com ele e abraçaram ‑no, elevando

os braços para o céu em agradecimento pelo singular

salvamento do filho pelo mesmo tubarão que o atacara.

Em casa, o pai disse que, apesar da fama, morriam mais

pessoas vítimas de ataques de cães, do que por ataques de

tubarões. Referiu que existiam quase quatro centenas de

espécies de tubarão e, dessas, apenas de trinta e três havia

registo de ataques a seres humanos, já que eles não aprecia‑

vam carne humana, e explicou que geralmente o que ocorria

é que o tubarão se enganava, pensando que as pessoas eram

focas ou tartarugas. O problema é que as vítimas muitas

vezes não resistiam aos ferimentos e morriam. Por isso,

o menino tivera muita sorte e fora um privilegiado pois o

tubarão tivera um comportamento nunca antes visto.

O menino estava quase sem palavras e a mãe, de lágri‑

mas nos olhos dizia que talvez pela primeira vez na história

um tubarão fora amigo de uma criança. Depois, disse que já

tinha ouvido dizer que os tubarões andavam pelos oceanos

há mais de quatrocentos milhões de anos e, por isso, surgi‑

ram muito antes dos dinossauros e, obviamente, muitíssimo

antes do ser humano, que existiria no planeta apenas há uns

quatrocentos mil anos.

O menino não conseguiu pregar olho naquela noite e,

mal o sol nasceu, levantou ‑se a toda a pressa e foi procurar

numa velha mala cheia de livros uma pequena enciclopédia

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para saber tudo sobre tubarões. Achava que o que lhe acon‑

tecera fora tão especial que não podia ter acontecido por

acaso e precisava conhecer melhor aqueles seres tão mis‑

teriosos.

Naquele dia, sentado em cima de uma rocha da praia,

devorou tudo quanto o livro dizia sobre tubarões. Depois,

apressou ‑se a expressar aos pais a sua surpresa pelo fac‑

to de o Homem ser o responsável pela morte de milhões

de tubarões todos os anos. A procura excessiva dos tuba‑

rões, principalmente por causa das suas barbatanas para

comer, a destruição do seu habitat, a pesca desportiva e

acidental e as alterações climáticas eram as suas principais

ameaças.

E o menino explicava, também, que, tanto para o ecossis‑

tema como para o ser humano, os tubarões eram de grande

importância ecológica, pois, por serem grandes predadores,

estavam no topo da cadeia alimentar e contribuíam para o

controle e a saúde das populações das espécies que eram

suas presas.

Os pais sorriam com o interesse e entusiasmo inespera‑

do do filho pelos tubarões e a verdade é que, nos dias seguin‑

tes, a notícia do encontro do menino com o tubarão perto da

ilha espalhou ‑se por toda a região. Muitas pessoas quiseram

visitar o menino e conhecer mais pormenores do ataque

e da sua ímpar viagem de tubarão para casa, enquanto se

tornava aos olhos do mundo o maior e mais jovem defensor

dos tubarões.

Todos os dias ao final da tarde o menino ia à praia para

ver se avistava o tubarão e, muitas vezes, ele aproximava ‑se

do areal. Ainda que de coração nas mãos, os pais do menino

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diziam a toda a gente que o filho con‑

versava e brincava com o tubarão como

bons e velhos amigos.

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O PARDAL DO LAVRADOR

Era uma vez um lavrador que gostava imenso de tra‑

balhar na terra. Todos os alimentos que a sua família comia

saíam das suas mãos e do suor do seu rosto e isso era para

si motivo da maior satisfação. De manhã à noite ocupava ‑se,

com todo o empenho e entusiasmo, nas lides da sementeira,

lavra, rega e demais cuidados do cultivo do campo.

Sentia ‑se feliz e realizado ao trabalhar o seu pedaço de

terra rodeado de árvores por todos os lados e entretinha ‑se,

do nascer ao pôr ‑do ‑sol, a ouvir as melodias dos passarinhos

e o fragor do riacho que passava nas redondezas. A passa‑

rada habituara ‑se de tal forma à sua presença por aquelas

bandas que parecia não ter receio algum em estar bem pró‑

xima dele a debicar as sementes do chão.

O camponês tinha uma filha e, de vez em quando, ia

consigo para o campo para levar para casa alguns produ‑

tos para o almoço ou para o jantar e era frequente ficar por

largos períodos de tempo a ouvir os pardais a cantar. Ficava

encantada com a musicalidade das aves e com a beleza e

harmonia das suas autênticas sinfonias.

O agricultor dizia à filha que às vezes parava o seu traba‑

lho e, em silêncio, com os olhos fechados e debruçado na sua

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Paulo Costa

enxada, meditava com as extraordiná‑

rias canções da pardalada.

Um dia, a menina disse ao pai que gosta‑

va de ter um pardal só seu e que cantasse

só para si mas ele não apreciou particular‑

mente a ideia, dizendo ‑lhe que o lugar dos pas‑

sarinhos é em liberdade na natureza.

Como a pequena nos dias que se seguiram não conse‑

guia esconder a sua tristeza, o lavrador, apesar de interior‑

mente contrariado, decidiu fazer uma pequena armadilha

com meia dúzia de paus e uma rede para tentar apanhar

um pardal do campo e oferecer ‑lho, pois faria anos daí a

dias.

Como habitualmente, a passarada fazia companhia ao

camponês e cantava numa enorme algazarra e não foi mui‑

to difícil apanhar um pardal, bastando para tal puxar um fio

quando um, atraído por um bocado de maçã, estava debaixo

da armadilha.

No dia do aniversário da menina, o pai ofereceu ‑lhe o

pardal dentro de uma gaiola que ele mesmo construíra e ela

saltou de alegria, abraçando afetuosa e efusivamente o pai.

Colocou a gaiola junto à janela do quarto e sentia ‑se a pessoa

mais feliz do mundo. Tinha um pardal só seu e que cantaria

apenas para si.

Apesar de todo o carinho e cuidados, o pardal surpreen‑

dentemente não cantava e isso era uma imensa deceção

para a menina. Como era possível que tendo tudo para estar

satisfeito, não precisando de procurar comida nem bebida e

longe de potenciais predadores, parecia triste e não canta‑

rolava?

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Numa manhã húmida e chuvosa, o pardal avistou uma

cobra no quintal e chilreou com todas as suas forças como

que antevendo perigo iminente para todos. O seu ruído

estridente chamou a atenção de todos que logo perceberam

a razão de tal alarido.

A menina, sensibilizada com o pardal, decidiu abrir

a gaiola e, como gesto de agradecimento, deixou ‑o sair.

O pardal saltou para o parapeito da janela, e, olhando para

a menina, inesperadamente cantou um bocadinho e esvoa‑

çou em direção às árvores do campo.

O pai e a mãe da menina nem sabiam o que pensar ou

dizer de toda aquela situação, mas sentiam ‑se felizes com

a atitude da filha. O camponês confessou, pela primeira

vez, que sempre se sentira arrependido por ter tirado a li‑

berdade àquele pardal e, desde que o apanhara, jamais vol‑

tou a ter a felicidade da companhia dos pássaros que talvez

se tenham sentido enganados por si.

Após a chegada do pardal ao campo, as sinfonias re‑

gressaram aos poucos e o lavrador voltou a sorrir com a ale‑

gria da passarada e assobiava como que acompanhando os

pássaros nas suas melodias. Admiravelmente, todos os dias

de manhazinha e ao entardecer, o pardal ia à janela da meni‑

na, entrava na gaiola, comia algumas sementes e pedacinhos

de frutos e fazia um pequeno concerto só para si.

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OS CARACOIS DO PRADO

Era uma vez uma menina muito tímida e que não

gostava de brincar. Falava muito pouco com os colegas da

escola e preferia ler, pintar, tocar flauta e passear pelas mon‑

tanhas e vales que abraçavam a sua aldeia. Chamavam ‑lhe

muitas vezes de ‘menina caracol’ já que se escondia fre‑

quentemente de tudo e todos.

Um dia, num dos seus habituais passeios de fim de tar‑

de, pisou um caracol e isso perturbou ‑a imenso, pois adorava

animais. Apesar de a compararem aos caracóis na maneira

de ser e estar, nunca se cruzara com nenhum e apenas sabia

que eram lentos e andavam com a casa às costas e, se para

uns era um molusco rastejante repugnante, para outros era

um extraordinário petisco.

Então, com todo o cuidado, pegou na folha de uma

árvore, envolveu o pobre caracol com extrema compaixão

e levou ‑o para ser enterrado no quintal da sua casa.

Amargurada com a morte do caracol da qual fora res‑

ponsável, a menina prometeu a si mesma estar sempre

atenta para que tal não voltasse a ocorrer e comprometeu ‑se

a tornar ‑se uma inabalável protetora daqueles bichinhos tão

pequenos e indefesos.

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Paulo Costa

Quando contou o sucedido aos pais,

logo sorriram, desvalorizando a gra‑

vidade do episódio e dizendo que não

se preocupasse nem ficasse triste pois o

que não faltavam eram caracóis.

No dia seguinte, a menina foi à biblioteca da

aldeia e pediu uma enciclopédia para conhecer melhor

aqueles bichinhos. Passou horas a ler e, quando chegou

a casa, parecia que tinha engolido um livro.

Com um enorme sorriso na cara, contou aos pais que os

caracóis ‑bebé tinham a carapaça mole e demoravam três

anos até se tornarem adultos, que o corpo mole dentro da

concha também tinha a forma de espiral e que era lá dentro

que se encontravam o coração e o fígado, que os caracóis

eram herbívoros, que na parte inferior da cabeça havia uma

espécie de língua com a qual cortavam os alimentos, que

não ouviam e que eram os tentáculos situados na superfície

superior da cabeça que lhes permitiam sentir, que os seus

olhos estavam nas pontas dos tentáculos maiores e o olfato

nos tentáculos menores, que eram hermafroditas, que aca‑

salavam em maio e punham os ovos no verão e que a sua

esperança de vida era de 5 a 10 anos.

Os pais da menina estavam pasmados com o entusias‑

mo com que falava e logo a desafiaram a apresentar à pro‑

fessora e aos colegas o resultado das suas pesquisas. Algo

receosa, aceitou e a verdade é que todos ficaram estupe‑

factos com o desembaraço da ‘menina caracol’ e adoraram

conhecer tantas curiosidades interessantes sobre um animal

tão minúsculo e quase insignificante e admiravam ‑se como

é que na natureza tudo era tão harmonioso e bem feito.

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Depois, a menina sugeriu que quem quisesse poderia

ir consigo algum dia pelo prado à procura de caracóis para

os verem no seu próprio ambiente e disse que de certeza

que o avô os acompanharia, pois ele sabia tudo sobre ani‑

mais e plantas.

Como o avô explicou à menina que os caracóis eram

animais de hábitos noturnos e que era necessária alguma

humidade para poderem ser vistos, o grupinho combinou

encontrar ‑se num final de dia. A menina e os seus colegas

facilmente puderam contemplar um grande número de

caracóis que passeavam calmamente pelos caminhos, mu‑

ros e arbustos e se deliciavam vorazmente com couves,

alfaces e frutos e perceberam como é que a carapaça fun‑

cionava como camuflagem, protegendo ‑os dos predadores,

fazendo ‑os passar despercebidos e protegendo ‑os da desi‑

dratação. Tudo os fascinava e logo decidiram adotar o cara‑

col como mascote da escola.

Aquela noite jamais seria esquecida e o silêncio e o res‑

peito com que procuraram observar os caracóis no seu habi‑

tat natural deixou marcas indeléveis no coração das crianças.

Perceberam que todas as pessoas têm e precisam das suas

carapaças e que, assim como o caracol não ouve, não vê bem

e tem que aproveitar outros sentidos para sobreviver e ser

feliz, também as pessoas devem dar valor a si mesmas, estar

atentas e ser sensíveis à vida e aos demais.

A verdade é que a menina conseguiu cativar os seus

colegas da escola e todos descobriram a pessoa maravilhosa

que se escondia debaixo da sua concha. Decidiu que um dia

seria bióloga e não mais os colegas lhe voltaram a chamar

de ‘menina caracol’.

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OS PINGUINS DO ICEBERG

Era uma vez um grupo de pinguins que vivia na

Antártida. Eram muito amigos e gostavam de estar juntos

de forma a suportar melhor as temperaturas muito baixas.

Faziam rotação de posições para que todos dispusessem de

oportunidade para estarem mais quentes durante algum

tempo no centro e, por isso, mais longe do frio gélido da

região, apesar de possuírem uma camada isolante que os

ajudava a conservar o calor corporal na água gelada.

Os pinguins possuíam uma coloração por contraste

para camuflagem, já que, vistos ventralmente, a cor branca

confundia ‑se com a superfície refletiva da água, e vistos dor‑

salmente,  a plumagem preta tornava ‑os menos visíveis na

água, ajudando ‑os a evitar as orcas e as focas ‑leopardo, que

eram os seus maiores inimigos.

As asas atrofiadas eram inúteis para voar, mas na água

tinham a função de barbatanas, tornando ‑os muito ágeis

e exímios nadadores. Na terra, usavam a cauda e as asas

para manter o equilíbrio na postura ereta e pareciam ca‑

minhar de forma desajeitada. A verdade é que eram aves

marinhas que podiam passar três quartos das suas vidas na

água e procuravam alimento a cerca de dezoito metros de

profundidade.

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Paulo Costa

Naquele grupo de pinguins, todos

estavam atentos e curiosos em relação

ao mais recente casal que se tinha apai‑

xonado e os mais velhos davam muitos

conselhos e partilhavam a sua experiência

de vida. A maior parte deles acasalava para toda

a vida e era um exemplo de amor, fidelidade e espírito

de família.

Passadas algumas semanas, e após a construção de um

ninho com pedras, a fêmea pôs um ovo, para satisfação do

casal e de todo o grupo. Durante quase seis semanas, os

jovens pais pinguins revezavam ‑se na busca de alimento de

forma a que o ovo nunca ficasse sozinho e estivesse sempre

quente. Quando o filhote nasceu, foi uma alegria enorme

para toda a colónia.

Alimentava ‑se de alimentos já digeridos pelos pais e

estava sempre protegido por eles do ataque de gaivotas e

de outros pinguins menos simpáticos. Quando o filhote cres‑

ceu e a penugem deu lugar às penas, os pais ensinaram ‑no a

nadar e a procurar alimentos sozinho.

Um dia, os pinguins reuniram ‑se porque, desde há uns

anos, era evidente a subida da temperatura e, ainda que por

vezes o frio fosse difícil de suportar, era nesse ambiente que

se sentiam bem. A região onde viviam apresentava uma

ausência incomum da sua cobertura de gelo e, por isso, de‑

cidiram transferir a sua colónia algumas centenas de me‑

tros para o interior, rumo a uma área gelada mais protegida.

Era notório o derretimento do gelo e o aquecimento do ar

e isso poderia pôr em risco de extinção toda a comunidade,

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Contos da Arca de Noé

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além de que se viam cada vez mais icebergues à deriva no

mar, após se desprenderem da placa terrestre.

A verdade é que os pinguins eram obrigados a viajar

mais quilómetros para se alimentarem e, com as tempera‑

turas das águas mais altas, eram obrigados a mergulhar mais

fundo à procura de peixe e estavam muito mais tempo longe

da família e das crias e isso poderia comprometer o sucesso

reprodutivo da espécie.

Um dia, o jovem casal de pinguins passeava com o fi‑

lhote na água e foram surpreendidos por uma enorme tem‑

pestade e apenas tiveram tempo de nadar para um iceber‑

gue para se salvarem. Os ventos fortes, as chuvas torrenciais

e a agitação do mar levaram a família de pinguins irre‑

mediavelmente para longe, obrigando ‑os a andar à deriva

durante vários dias.

Para sorte dos três jovens pinguins, um quebra ‑gelo

andava por aquelas bandas com uma equipa de televi‑

são  que fazia uma reportagem sobre as alterações climá‑

ticas, o aquecimento global e o degelo das zonas glaciares

e foram recolhidos e salvos de uma morte quase certa.

Levaram ‑nos para a sua terra e para junto dos seus ami‑

gos e, em poucas minutos, as imagens dos pinguins debili‑

tados e famintos em cima do icebergue, em consequência

das mudanças do clima, correram o mundo e sensibilizaram

como nunca as populações e os governantes.

Em poucos dias, todos os principais responsáveis políti‑

cos decidiram, de uma vez por todas, tomar medidas con‑

cretas para reverter a tragédia do aquecimento global e os

pinguins tornaram ‑se o símbolo da luta pela consciência

ecológica e contra o egoísmo humano.

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OS RATOS DO SÓTÃO

Era uma vez uma velhinha que vivia numa casa mo‑

desta de um bairro das periferias da cidade. Vivia sozinha

e aquilo que mais gostava de fazer era ler. Muito do pouco

dinheiro que tinha era para comprar livros e havia estantes

e mais estantes cheias deles por todo o lado.

A casa parecia decorada com livros de todos os tama‑

nhos e cores e a maior parte repousava no sótão onde ia

de vez em quando levar caixotes carregados de literatura.

Subia as escadas estreitas e íngremes com todo o cuidado e,

de lanterna na mão, lá arranjava mais um cantinho na escu‑

ridão para enriquecer a sua biblioteca.

Adorava a sua casinha e a única coisa que a aborrecia

era os ratos que, de tempos a tempos, a sobressaltavam à

procura de alguma coisa para comer. A senhora era pobre,

mas a sua casa era limpa e asseada e os ratos eram uma

consumição permanente.

Por vezes, aos primeiros raios de sol da manhã, enquanto

rezava na cama ou ao anoitecer junto à lareira da sala, era

surpreendida com a visita de um roedor e não era raro estar

a ler no seu velho sofá junto à janela ou sentada à mesa na

cozinha a comer e ver por cima dos seus óculos redondinhos

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Paulo Costa

um ou dois ratinhos a passear. A ver‑

dade é que ela tinha horror e nojo aos

pequenos bichos, mas nunca tinha con‑

seguido expulsá ‑los de casa.

Um dia, a velhinha subiu pela milésima vez

ao sótão para levar mais uma dúzia de livros

que lera nas últimas semanas e chamou ‑lhe a atenção

uma quantidade descomunal de pequeníssimos papéis

no chão. Imediatamente se deu conta que os ratos tinham

estado a devorar alguns dos seus preciosos livros. Então,

exasperada e furiosa, decidiu ir comprar uma ratoeira.

A coabitação entre ela e os ratos era completamen‑

te incompatível e aquilo não podia continuar assim. Pôs a

armadilha com um pedaço de queijo à entrada do alçapão

do sótão e esperou que a técnica resultasse.

Não demorou muito para que houvesse novidades.

Passada nem sequer uma hora, a velhinha, enquanto quando

varria a cozinha e ouvia música no seu velho rádio de pilhas,

escutou um gemido agudo e estridente e logo se apercebeu

do que se tratava.

Preferiu continuar calmamente nas tarefas de limpeza,

mas o chinfrim aumentava lá para os lados da escadaria do

sótão. Então, decidiu ir ver o que se passava. Qual não foi a

sua surpresa quando viu um rato preso pelo rabo na ratoei‑

ra e mais quatro ratos inquietos e aflitos ali à volta a tentar

socorrê ‑lo.

A velhinha não sabia o que fazer ou pensar, mas a cena

perturbou ‑a e enterneceu ‑a de tal maneira que agarrou

na ratoeira de forma expedita e corajosa e libertou o rato.

Os cinco ratitos logo fugiram a sete pés, adentrando ‑se por

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Contos da Arca de Noé

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um pequeno buraco da porta do sótão e a pobre senhora

pegou na armadilha e deitou ‑a no caixote do lixo.

A idosa sentia o coração a mil à hora, mas estava satisfei‑

ta com a decisão que tomara. Afinal, os ratos tinham direito

a viver, lutavam pela sua sobrevivência e também tinham

família e amigos como qualquer pessoa.

Depois de colocar mais uns cavacos na lareira, sentou ‑

‑se no sofá para continuar a ler mais um pouco e, exausta

como estava, adormeceu. Qual não foi o seu assombro e

espanto quando ouviu os sons sibilantes dos cinco ratos

aos seus pés a guinchar. Um pedaço de madeira tinha sal‑

tado da lareira e a carpete estava a começar a arder.

A velhinha levantou ‑se logo de forma tenaz e resoluta e,

com baldes e bacias de água, rapidamente debelou o foco

de incêndio. Não conseguia imaginar o que teria sucedido

sem a sagacidade e clarividência dos ratitos do sótão.

A velhinha não se cansava de reconhecer e dizer a toda

a gente que estava viva por causa dos ratos que viviam no

seu sótão e, desde então, todos os dias lhes oferecia comida

em abundância e variedade. De uma forma completamente

imprevisível e extraordinária, a velhinha deixou de se sentir

sozinha em casa e os ratos deixaram de ter receio de passear

tranquilamente pela casa.

E todos quantos visitavam aquela casa ficavam atónitos

e encantados com a amizade bonita, improvável e invero‑

símil da velhinha com os ratinhos.

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OS PATOS E A CAÇA AO TESOURO

Era uma vez um velho pato muito rico, cuja úni‑

ca satisfação e obsessão era ter mais e mais dinheiro. Para

estupefação de todos, o Tio Patalberto decidira convidar a

família Patinhas para umas férias numa exótica ilha tropical.

A avó Patalina, algo desconfiada com a surpreendente boa

vontade do velhote forreta, simpaticamente se desculpou

com os infindáveis trabalhos que a quinta lhe exigia, en‑

quanto o Patosvaldo e os três sobrinhos, Patotavio, Patóscar

e Patorlando, logo saltaram de alegria pois adoravam água.

O Tio Patalberto estava eufórico e a bordo do iate todos

brincavam, cantavam e conversavam a caminho do tão an‑

siado destino de férias. Ao chegarem à ilha, os três patitos

mais novos ficaram logo intrigados já que só se via palmei‑

ras e não parecia existir nem gente, nem casas nem hotéis.

O habitualmente azarado Patosvaldo ficou furioso e come‑

çou a disparatar com o avarento tio.

Por cima dos seus óculos redondinhos, o Tio Patalberto

logo disse com um sorriso sarcástico que estavam equivo‑

cados se estavam a pensar ter férias sem as merecerem.

Argumentou que a vida era dura e tinha que se trabalhar

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Paulo Costa

muito para se alcançar o sucesso. De

seguida, contou ‑lhes que tinha desco‑

berto num velho livro da biblioteca de

Patolácia um mapa daquela ilha que fa‑

zia referência a um tesouro que uns piratas

ali tinham escondido há muito tempo. Depois,

apresentou ‑lhes umas pás e sugeriu que trabalhassem

para ficarem todos muito ricos já que não havia nada mais

entusiasmante na vida.

Como não parecia haver outro remédio senão subme‑

ter ‑se à chantagem do Tio Patalberto e poder beneficiar de

algum tempo de papo para o ar a apanhar sol e a dar uns

mergulhos naquelas águas azuis e cristalinas, puseram ‑se

a procurar o famoso tesouro. A tarefa era dura pois o calor

e a humidade eram elevados e ter o chato do velho tio per‑

manentemente a dar ordens não era nada agradável.

Fazendo uso da experiência adquirida do escutismo,

chamou a atenção do Patotavio, Patóscar e Patorlando um

denso arvoredo que se escondia por detrás de uma cascata

diante de um imenso lago. Enquanto preparavam uma jan‑

gada para chegar ao local, para surpresa de todos um jipe

chegara a alta velocidade. Parece que não estavam sozi‑

nhos na ilha. Por entre o muito pó que provocara, logo todos

viram o Patoseias, o maior rival do Tio Patalberto, que ime‑

diatamente retirou um barco a motor para chegar à gruta.

O Tio Patalberto começou a dar umas bengaladas no

seu velho adversário que rapidamente se deu conta que

não tinha trazido gasolina para o motor da lancha. Os dois

riram e choraram de desespero enquanto, por entre a água

da cascata, viram surgir o Patusco, o primo do Patosvaldo,

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Contos da Arca de Noé

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conhecido de todos por ser o pato mais sortudo, preguiçoso

e elegante do mundo. Estavam todos sem palavras ao ver

o dito cujo a rir com um baú nas mãos. Pelos vistos, vários

patos tinham visto o mapa da biblioteca de Patolácia.

Os três sobrinhos do Patosvaldo, incrédulos por todos

terem chegado quase ao mesmo tempo ao tesouro, deci‑

diram dar uma ajudinha ao primo Patusco, indo buscá ‑lo

na jangada que haviam construído. Todos queriam ver

o que era o tesouro, mas a verdade é que ninguém conse‑

guia abrir o baú. Como se aproximava uma tempestade e

não era possível regressar a casa, decidiram, então, passar

uns dias de férias juntos na ilha. Apesar de tudo, deram ‑se

conta que havia muito mais a uni ‑los do que a separá ‑los

pois todos eram familiares, tinham bom coração e queriam

ser felizes.

Depois, lá conseguiram regressar a casa e foram para

a quinta da avó Patalina pois de certeza que no seu velho

barracão, onde havia de tudo e mais alguma coisa, teria de

existir alguma chave que permitisse abrir o baú do tesou‑

ro. A avó Patalina experimentou todas as velhas chaves que

tinha na sua caixa de ferramentas e apenas a última con‑

seguiu abrir o baú. Todos se juntaram e, ao mesmo tempo,

espreitaram lá para dentro e, para espanto geral, lá dentro

estava apenas um álbum de fotografias da família Patinhas.

Folhearam ‑no calmamente, por entre sorrisos e comentários

divertidos. Tinham (re)descoberto o melhor e maior tesouro:

a própria família.

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O CAMELO DO OÁSIS

Era uma vez um homem que tinha nascido num

oásis. Naquela espécie de ilha minúscula encravada no meio

do deserto vestido com um manto de areias escaldantes,

conseguira sobreviver com a sua família, tal como acontece‑

ra com os seus antepassados.

A sua terra tinha nascido numa área escavada pelo ven‑

to onde um lençol de água subterrâneo passava próximo

do solo e pelas fendas das rochas o líquido dos reservatórios

encontrava caminho até a superfície, jorrando em fontes

que hidratavam homens e animais, fazendo surgir muitas

palmeiras ao redor das lagoas e irrigando pequenas plan‑

tações.

A sua família vivia da criação de camelos que forneciam

leite e carne para consumo e eram usados como animais de

tração e carga e, ainda, do comércio com os povos nóma‑

das onde as suas caravanas ali faziam ponto de paragem

frequente.

Mas o homem nunca se sentira muito feliz nem rea‑

lizado com aquele tipo de vida e, quando fez dezoito anos,

decidiu partir para uma cidade distante à procura de melho‑

res condições de vida. Ali trabalhou, estudou, desenvolveu

um negócio e enriqueceu.

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Paulo Costa

Um dia recebeu uma carta que dava

conhecimento da morte dos seus pais

e dava conta da necessidade de ir ao

oásis para receber a herança a que tinha

direito. Ao chegar à casa onde tinha vivi‑

do toda a sua infância e juventude, encontrou

quase tudo como tinha deixado há muitos anos atrás

e chorou com os irmãos com saudades do pai e da mãe,

lamentando não os ter visitado nem dado o devido valor

durante tanto tempo.

Qual não foi o seu espanto quando lhe disseram que a

herança que os seus pais lhe haviam deixado era um came‑

lo. Riu ‑se longamente e disse imediatamente que não tinha

condições nem queria ficar com o animal. No entanto, deci‑

diu ficar por aquelas bandas uns tempos e foi cuidando do

bicho, sabendo apenas que era herbívoro e tinha grandes

reservatórios de água.

Paulatinamente, o homem foi ‑se apercebendo da im‑

portância que os camelos tinham para a vida das suas

gentes como fonte de lucro e meio de transporte pois até

eram considerados os navios do deserto pela enorme

capacidade de adaptação e resistência nas longas e difí‑

ceis deslocações pelo oceano excecional de areia quente e

seca.

Um dia, ainda o sol espreitava timidamente por entre

as dunas do deserto, o homem decidiu sair do oásis e dar

um passeio no seu camelo, sentado entre as suas duas cor‑

covas e depressa se deu conta da sua serenidade, docilidade

e inteligência. A experiência estava a ser tão agradável que

nem se deu conta de o tempo passar.

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Contos da Arca de Noé

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Passadas umas horas, o homem perdera a noção da

direção do oásis, o calor tornara ‑se infernal e uma tempes‑

tade de areia aproximava ‑se ameaçadoramente. Aos pou‑

cos, a visibilidade tornou ‑se nula e o homem, notoriamente

nervoso e cheio de medo, pediu ajuda aos céus. O camelo

andava às voltas e, pacientemente, suportava os encontrões

com as dunas e os catos espinhosos e, para piorar a situação,

viu uma serpente que surgira do nada.

No meio da escuridão do vendaval de areia, o camelo de‑

fendia o homem do perigo da serpente, movendo o pescoço

na sua direção e levantando ‑se para o convencer a abando‑

nar o local. O camelo cuspiu na serpente e tentou pisar ‑lhe

a cabeça com as suas enormes e pesadas patas e ela, apesar

da resistência que ofereceu, afastou ‑se lentamente.

Ao final da tarde, a tempestade dissipou ‑se e, surpreen‑

dentemente, o camelo conduziu o homem a um charco de

água junto a uns arbustos e empurrou ‑o para que bebesse.

O homem bebeu desenfreadamente e, olhando com ternura

para o camelo, acariciou ‑o, agradecendo ‑lhe a sua dedicação

e lealdade pois tinha ‑lhe salvo a vida.

Depois, o homem percebeu a direção do oásis e o came‑

lo levou ‑o tranquilamente, chegando sãos e salvos já a noite

exibia a sua cortina de estrelas. Ao contar aos seus irmãos e

à restante família a incrível aventura que tinha sido aquele

dia, tomou consciência do extraordinário valor da herança

deixada pelos pais e do inefável tesouro que era a sua família,

a sua terra e as suas tradições. E, reconhecendo que o seu

camelo lhe dera a entender que a sua vida só fazia sentido

ali, comunicou que iria ficar a viver e a trabalhar no oásis.

E todos fizeram uma grande festa.

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AS POMBAS DA ÁRVORE DO JARDIM

Era uma vez um homem a quem todos reconheciam

uma grande sabedoria e um enorme coração. Amava de

forma singular a natureza, por isso gostava muito de dar vida

e alma ao seu pedacinho de planeta, cuidando do seu jardim

onde se destacava uma árvore enorme que se via de bem

longe. Nesse pequeno nada de terra onde cabiam todos

os sonhos do mundo, os seus olhos brilhavam intensamente

ao contemplar a passarada que todos os dias escolhia a sua

árvore para passar alegres momentos de convívio.

De entre as aves que havia na árvore do jardim, gosta‑

va especialmente de apreciar as pombas. Sem saber muito

bem porquê, eram inúmeras as pombas que ali nidificavam

e isso enchia ‑o de satisfação e orgulho. Além de gostar mui‑

to de árvores, sentia ‑se muito satisfeito pois gostava imen‑

so também de pombas. A árvore era imponente, robusta e

frondosa, com raízes fortes, ramos longos e estava sem‑

pre adornada de muitas, variadas e belas pombas. Paula‑

tinamente, a sua árvore foi ‑se tornando um autêntico pom‑

bal natural, foi ficando famosa e muitas eram as pessoas que

pediam ao homem para a ver de perto.

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Paulo Costa

Um dia, como o homem gostava mui‑to de crianças e adorava conversar

com elas sobre a sua árvore e sobre as pombas que a habitavam, decidiu abrir

um portão que dava acesso ao seu jardim e permitiu que toda a gente pudesse entrar

livremente. Acreditava que podia partilhar com os mais pequenos muitas coisas interessantes para as suas vidas pois lembrava ‑se muitas vezes que Confúcio dizia que, se al‑guém quisesse ter prosperidade por um ano, deveria cultivar grãos, se quisesse ter êxito por dez, deveria cultivar árvores, mas, se quisesse conseguir sucesso por cem anos, deveria cultivar gente.

Gostava de explicar que a pomba era considerada o sím‑bolo da paz e da harmonia, numa tradição que teria as suas origens na história bíblica da Arca de Noé. Segundo o Antigo Testamento, depois do dilúvio, Noé soltara uma pomba e ela regressou com um ramo de oliveira no bico, sinal de que a água estava a baixar, avistara terra e que tinham sido fei‑tas as pazes com Deus. Lembrava, ainda, que na iconografia cristã, a pomba representava também o Espírito Santo, que aparecera sob esta forma no batismo de Jesus Cristo nas águas do Rio Jordão.

Gostava imenso de dizer à miudagem que as pombas podiam atingir, em voo, velocidades de até 80 km/h, poden‑do voar em distâncias até 315 km sem se cansarem. Referia que possuíam o melhor sentido de orientação de todas as aves e também de todo o reino animal, podendo localizar os seus ninhos ou os seus pombais a mais de 1000 km de dis‑tância e conseguiam também detetar sons a distâncias que

nenhum outro animal conseguia.

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Contos da Arca de Noé

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Recordava sempre que, tal como todas as aves, os pom‑

bos nasciam de ovos, que eram nidificados pelo macho

e pela fêmea. As crias nasciam completamente cegas e

ficavam com os progenitores até aos 32 dias, altura em que

começavam a voar e deixavam o ninho. Nesse momento o

casal voltava a chocar mais ovos para dar origem a uma nova

ninhada.

Um dia, sem que nada o fizesse prever, uma violenta

tempestade assolou a região e as chuvas e os ventos sacu‑

diram e vergaram a árvore, levando a que muitos dos seus

ramos quebrassem e quase todas as pombas ficassem

implacavelmente sem os seus ninhos. Com tantos e tão gra‑

ves danos, muitos vaticinaram a morte da árvore e o afasta‑

mento irremediável das pombas.

No entanto, a árvore conseguiu resistir à intempérie por‑

que as suas raízes eram fortes e profundas. Nos dias seguin‑

tes, muitas crianças, jovens e pessoas adultas uniram ‑se para

reerguê ‑la e recuperá ‑la. Podaram, enxertaram, fertilizaram

e regaram a árvore, até que rejuvenesceu e ganhou ainda

mais vida.

Após umas semanas, o homem convidou toda a gen‑

te para um piquenique à volta da árvore e desafiou todos a

serem como árvores com boas raízes e a voar de forma li‑

vre, simples e pura como as pombas. Depois, disse que as

amizades verdadeiras eram como árvores de raízes profun‑

das, pois nenhuma tempestade conseguia arrancá ‑las e

que uma vida sem amor era como uma árvore sem flores

e sem frutos. E para satisfação de todos, algumas pom‑

bas apareceram ali e puseram ‑se a depenicar algumas

migalhas sem receio algum.

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A ESTRELA DO MAR E A EPIDEMIA DO “SE”

Era uma vez uma estrela do mar que se sentia orgu‑

lhosa por dizerem ter nascido do amor entre um grão de

areia e uma estrela do céu. Apesar de não ter cérebro nem

coração, andava muito apreensiva e preocupada com uma

epidemia que se espalhara por todos os oceanos. Era famo‑

sa a sua capacidade de regeneração já que, se perdesse um

braço, facilmente reconstruía outro e até poderia gerar uma

nova estrela do mar a partir do membro separado e, imbuí‑

da do mesmo espírito, queria fazer alguma coisa para aca‑

bar com aquela catástrofe.

A comunidade médica marítima estava em polvorosa

pois o surto contagioso afetava todos os peixes e animais ma‑

rinhos. A origem do vírus era desconhecida e o que era ine‑

quívoco era que ninguém escapara a tamanha calamidade.

Deram ‑lhe o nome de Epidemia do “Se”. Os sintomas eram

notórios e todos os seres dos oceanos revelavam o mesmo

comportamento.

Os polvos, as lulas e as lagostas, desgostosos com o

rumo dos mares, criticavam tudo e todos. A culpa era da

globalização, do capitalismo e dos governantes das regiões

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Paulo Costa

mais ricas e poderosas do planeta que

só pensavam egoisticamente em si e

subjugavam os demais com as suas po‑

líticas sociais e económicas. Diziam que

se mandassem e se o destino do mundo

subaquático estivesse nas suas mãos tudo seria

bem melhor e o planeta daria uma volta completa.

Os cavalos marinhos e as raias queixavam ‑se das po‑

líticas dos governos das suas zonas de habitat, dos tachos

que arranjavam para os seus amigos, das cunhas e da cor‑

rupção de que os poderosos eram protagonistas. Achavam

que os peixes não sabiam eleger políticos decentes e inte‑

ligentes e que os representantes legalmente eleitos pelos

animais marinhos se esqueciam das promessas eleitorais,

só pensavam no prestígio e ignoravam o povo simples e

humilde. Diziam que se governassem, tudo seria muito

melhor e tudo seria bem diferente.

As moreias e os baiacus só condenavam, criticavam e

denunciavam as decisões dos autarcas, acusando ‑os de

prepotência, abuso de autoridade, burocracia e falta de sen‑

sibilidade e boa ‑vontade diante dos problemas reais das

populações locais e regionais. Diziam que se fossem líderes

políticos tudo mudaria, mas, como não tinham poder, nada

podiam fazer.

Os corais, as anémonas e os ouriços ‑do ‑mar criticavam

por tudo e por nada os patrões e os responsáveis pelos seus

setores de trabalho. Acusavam ‑nos de arrogância e de não

perceberem patavina de produtividade, eficiência, rendimen‑

to, organização e relações laborais e profissionais. Achavam

sempre que tinham competência e responsabilidade para

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Contos da Arca de Noé

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terem cargos mais importantes nos escritórios, lojas e em‑presas. Se fossem empresários, se tivessem capital, se tives‑sem poder, tudo seria bem diferente. Para melhor, claro.

Os seres luminosos, as águas vivas e as lesmas queixavam‑‑se das suas famílias. Todos conheciam e elogiavam deter‑minados pais ou mães ou filhos que eram fantásticos. Mas lamentavam ‑se das manias dos seus avós, das decisões dos seus pais, das traquinices dos seus filhos. As outras famílias eram de uma harmonia digna de registo. Se fossem de tal família, seriam mais isto e aquilo, mas como tinham nascido e crescido nas suas, nada feito.

Todos os seres marinhos estavam contaminados pela Epidemia do “Se” e, por isso, não eram felizes. Imaginavam e idealizavam um oceano que não era o seu e nunca estavam satisfeitas com o que tinham. Era saudável querer mais e melhor, mas o utópico tinha ‑se tornado uma obsessão doen‑tia que a todos perturbava e prejudicava.

Então, a estrela do mar, depois de muito pensar, ofere‑ceu a todos uma caixinha com o medicamento que os salva‑ria da Epidemia do “Se”. Cada ser marinho, durante uma hora por dia, devia afastar ‑se de tudo e todos para encontrar ‑se a sós consigo mesmo. Devia estar em silêncio, contemplar serenamente a paisagem, respirar fundo e, depois, com os olhos fechados, dialogar com a sua consciência.

O papelinho das indicações terapêuticas dizia que a felicidade dependia de cada um e não de locais, pessoas ou circunstâncias exteriores. Cada um tinha que deixar de lamentar ‑se, acreditar mais em si mesmo e dar ‑se gratuita e desinteressadamente aos demais. O essencial era amar. Surpreendentemente, ou talvez não, a epidemia rapidamen‑

te foi dizimada.

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OS TIGRES DO CIRCO

Era uma vez um rapaz que vivia num circo. Toda a sua

família trabalhava no maior espetáculo do mundo há mui‑

tos anos e gostava muito de acompanhar bem de perto toda

a caravana das artes circenses que viajava de terra em ter‑

ra. Gostava de estudar em várias escolas e adorava o talento

e criatividade dos malabaristas, acrobatas, contorcionistas,

equilibristas, ilusionistas e palhaços. Apenas não apreciava

os números com animais.

A grande atração do circo eram os cinco tigres que exe‑

cutavam coisas incríveis e eram o delírio do público, mas

o menino tinha muita pena que aqueles imponentes e

belos animais selvagens tivessem que estar presos em jaulas

e fossem obrigados a aprender a fazer coisas que não tinham

absolutamente nada que ver com a sua natureza.

O rapaz gostava muito dos tigres e sabia tudo sobre

o maior felino selvagem do mundo que era também o ter‑

ceiro maior mamífero carnívoro terrestre do planeta, depois

de duas espécies de ursos. Sabia que em estado selvagem

eram animais solitários, extremamente territoriais e grandes

nadadores. No entanto, os tigres do circo não podiam ser

nada disso.

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Paulo Costa

O rapaz gostava de ir visitá ‑los às jaulas

e contemplar os seus corpos musculo‑

sos com as cabeças grandes, as caudas

longas e as garras enormes. Admirava

a sua pelagem densa e pesada, a coloração

alaranjada e as listas pretas verticais com pa‑

drões únicos em cada indivíduo.

Um dia, o rapaz chegou da escola e foi à arena procu‑

rar a mãe e deu ‑se conta que era a hora de treino dos tigres

com o domador do circo. Como nunca assistira a uma sessão

de adestramento, escondeu ‑se atrás dos bancos e ficou ver‑

dadeiramente aterrado. O domador gritava agressivamente

e usava aguilhões e chicotes para obrigar os felinos a su‑

bir e descer algumas estruturas, fazê ‑los mover ‑se para os

locais pretendidos ou para se afastarem uns dos outros ou

dele mesmo.

Quando os aguilhões ou os chicotes eram erguidos

pelo domador, os tigres assustavam ‑se e, se reagiam de for‑

ma mais ruidosa, eram atingidos violentamente por eles.

O simples som dos chicotes no ar ou no chão punha ‑os mui‑

to nervosos e tudo aquilo perturbou profundamente o rapaz.

Afinal, as coisas espetaculares que os tigres faziam eram

fruto de muito terror e coação.

O rapaz não conseguiu falar com ninguém sobre o que

vira, mas decidiu assistir ao número dos tigres na sessão no‑

turna desse dia. Deu ‑se conta de que a postura dos felinos

era indicador efetivo do medo das consequências punitivas

no caso de não executarem perfeitamente o que haviam

treinado e que o domador exigia.

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Contos da Arca de Noé

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Quase no fim da atuação dos tigres, era evidente que os

ombros caídos e a posição das orelhas para trás indiciavam

a iminência de tensão ou conflito e o inevitável aconteceu:

o tigre mais velho arranhou o braço do domador, rasgando‑

‑lhe a manga e vendo ‑se logo sangue a fluir. O domador

imediatamente respondeu ‑lhe de forma impetuosa e bár‑

bara com várias chicotadas.

Aquilo mexeu profundamente com o rapaz que não

conseguiu dormir durante toda a noite. Aquilo era absolu‑

tamente inaceitável. O ser humano não podia tratar os ani‑

mais como se fossem brinquedos ou objetos manipuláveis

para seu divertimento e gozo. Então, começou a maquinar

um plano para que o abuso intolerável dos tigres do circo

acabasse de uma vez por todas.

Passada uma semana, o circo assentou arraial numa

localidade junto a um largo rio e o rapaz, ao ver uma floresta

na outra margem, decidiu concretizar o seu projeto. Como

os atrelados das jaulas dos tigres estavam bem perto da

água, após a sessão de circo da noite, o rapaz pegou nas

chaves e abriu cuidadosa e silenciosamente as portas.

Os tigres saíram logo e atiraram ‑se ao rio, nadando em

direção ao arvoredo que viam na outra margem. Quando

de manhã o pessoal do circo se apercebeu da fuga dos

felinos, todos ficaram muito apreensivos e aflitos e imediata‑

mente telefonaram às autoridades.

Nas tarefas de busca dos tigres, o rapaz aproveitou para

denunciar tudo quando vira. Quando conseguiram apanhá‑

‑los, foram enviados para um parque natural de vida selva‑

gem onde puderam viver felizes e tranquilos o resto das suas

vidas. Aquele circo e muitos outros depois não voltaram mais

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Paulo Costa

a ter animais nos seus espetáculos.

A utilização de animais no circo passou

mesmo a ser proibida e o rapaz, feliz da

vida, tornou ‑se o palhaço mais famoso do

mundo.

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AS ARANHAS DO CASEBRE

Era uma vez uma aranha que tinha dois filhotes e pro‑

curava casa para viver. Como o frio apertava, precisavam de

um sítio acolhedor e confortável já que tinham sido, mais

uma vez, expulsas por uma vassoura malvada. Lamen‑

tavelmente, já estavam acostumadas a andar de malas às

costas de um lado para o outro.

Depois de muito caminharem com as suas muitas pa‑

titas, pararam em frente a uma velha janela entreaberta.

A mãe aranha disse aos seus pequenotes que se calassem

e que esperassem um pouco. Espreitou e, sem hesitar, logo

entrou com os miúdos. Não era propriamente uma casa

luxuosa, como já tinham vivido noutras ocasiões, mas pare‑

cia ser quentinha e nem o gato nem o cão, que pachorren‑

tamente dormiam junto à lareira, aparentavam ser grande

ameaça. Apesar de ser uma casa pequenina e humilde, ha‑

via por ali algumas moscas e mosquitos e isso era o mais

importante.

Muito sorrateiramente, escalaram as paredes rumo a

uma esquina do teto, junto a algumas tábuas de madeira.

A aranha ia explicando às crianças que a vida não era fácil,

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Paulo Costa

mas que não se podia desistir diante

das dificuldades. Tinha a impressão

que a sua família podia ser feliz ali e sen‑

tia que descobrira um lar modesto, mas

agradável, bem diferente dos anteriores.

O local parecia sossegado e havia alimento em

abundância.

Ainda estavam todas a dar um abraço de satisfação, quan‑

do a velha porta se abriu abruptamente. Um homem e uma

mulher, que pareciam bastante jovens, entraram e, a jul‑

gar pela alegria que o cão da casa revelou, só podiam ser

os donos da casa. A senhora trazia no colo um bebé e, como

choramingava, tentava acalmá ‑lo com mimos, enquanto

lhe murmurava suavemente algumas melodias.

As aranhas, que haviam escolhido aquele casebre por

parecer sereno e tranquilo, começaram a duvidar da decisão

tomada, pois o humano pequenote não se calava. Estavam

apreensivas e intrigadas com a azáfama que por aqueles

lados reinava, já que o senhor e a senhora andavam de um

lado para o outro com tanto nervosismo que parecia ser a

primeira vez que tinham um filho e talvez ele tivesse nascido

há pouco tempo.

Apesar de não estarem a perceber muito bem o que

estava a acontecer naquela pobre habitação, a mãe aranha

decidiu continuar por ali e começou a tecer uma teia, ao

mesmo tempo que ensinava aos filhos a construírem as suas.

A determinado momento, a cria mais nova, que era sem‑

pre a mais traquina e preguiçosa, em vez de escutar a pro‑

genitora sobre as mil e uma maneiras de fazer teias fortes

e capazes de apanhar as suas presas, decidiu ir investigar.

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Contos da Arca de Noé

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Achava graça àquele bebé que chorava e que parecia ser

o centro das atenções dos pais e até do gato e do cão que

não pareciam querer sair da beira do berço onde a mãe

o deitava algumas vezes para dormir.

A aranhita sentia que, tanto o homem como a mulher,

pareciam estar muito felizes com o filho e sorriam muitas

vezes ao olhá ‑lo com ternura. Andavam com ele ao colo pela

casa e embalavam ‑no como se estivessem a dançar. Quando

dormia, havia paz na casa, mas o pior era quando chorava

e aí parecia que a velha e humilde casa ia abaixo.

Numa das ocasiões em que o bebé choramingava, a

aranhita, através de um dos seus fiozinhos, desceu e pa‑

rou mesmo perto da sua cabecinha. Surpreendentemente,

a criança parou de chorar e olhando ‑a fixamente, levantou

os bracitos e começou a sorrir, chamando a atenção dos pais.

A pequena aranha nunca tinha estado tão próxima de

humanos e sentia ‑se satisfeita por não estar a ser maltra‑

tada, apesar de a mãe aranha ter ficado aterrorizada com a

ousadia do filho.

Os pais do bebé achavam piada às aranhitas que por

ali tinham decidido habitar e achavam curioso que, apesar

da entrada e saída de várias pessoas, ele só achava graça às

aranhas que, de vez em quando, desciam pelo seu fio até

bem junto dele.

Enquanto as aranhas se sentiam descansadas e pulavam

de um lado para o outro, o casal sentia ‑se feliz pois, apesar de

pobres, sentiam ‑se ricos. No velho casebre havia amor, um

bebé, um cão, um gato e uma família de aranhas que eram,

verdadeiramente, a alegria do lar.

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O BURRO DO PRESÉPIO

Era uma vez um homem chamado José que tinha

uma carpintaria. Aprendera do seu pai a arte de moldar

a madeira e ninguém fazia tão bem móveis, portas, janelas

e outros utensílios como ele. A sua fama espalhara ‑se por

toda a região e trabalho era coisa que não lhe faltava.

Um dia estava ele a construir uma cadeira quando mis‑

teriosamente lhe apareceu à porta um burro que zurrava

meigamente olhando para si. Largou tudo e foi espreitar

para ver a quem pertencia o jumento, mas não viu ninguém.

Quando regressou, viu o burro deitado junto à mesa de tra‑

balho e, como parecia cansado, deu ‑lhe água e algumas

cenouras.

Até que o dono o procurasse, decidiu cuidar dele e, ape‑

sar de lhe ter improvisado um curral, o burro queria era estar

com ele e depressa se tornaram amigos inseparáveis. Tinha

alguma coisa de especial que não sabia dizer bem o quê

e a verdade é que conquistou o seu coração por causa da

sua docilidade. Por outro lado, tornou ‑se uma ajuda preciosa

no transporte para as casas dos clientes das redondezas das

peças de madeira que lhe encomendavam.

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Paulo Costa

Quando José se apaixonou por uma

rapariga de nome Maria, o burro rapi‑

damente lhe ganhou também um afeto

especialíssimo, como se já se conheces‑

sem há muito tempo. As pessoas da po‑

voação achavam graça ao burro que, além de

colaborar com o dono no seu ofício, acompanhava sem‑

pre José quando ia namorar, esperando ‑o com paciência

e humildade.

Numa ocasião, a namorada de José teve que ir às mon‑

tanhas para visitar e acompanhar por umas semanas a pri‑

ma que estava de esperanças e ele só se sentiu tranquilo

e descansado porque sabia que o seu burro a levaria e tra‑

ria no dorso e estaria presente durante o tempo em que ela

lá permanecesse.

Quando casaram, o burro parecia particularmente satis‑

feito pela missão que lhe fora confiada de transportar a noiva

e, durante a boda, todos os convivas o ouviam zurrar com

indisfarçável alegria como que comungando da solenidade

do momento e da felicidade do jovem casal.

Uns tempos depois, José teve que se deslocar à sua terra

natal e, como a sua esposa estava grávida, a preocupação

e a ansiedade eram imensas. Para não deixar Maria em casa

e porque a qualquer momento poderia dar à luz, José pre‑

parou o jumento para que a levasse e a viagem fosse o mais

cómoda e serena possível.

Surpreendentemente, ou talvez não, o burro nunca ca‑

minhara com tanta prudência, diligência e desvelo. Parecia

sentir ‑se especialmente honrado por levar às costas a Maria

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Contos da Arca de Noé

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e ao seu bebé no ventre e assumira com extraordinário cui‑

dado a tarefa que José lhe confiara.

Após alguns longos e árduos dias de caminho, chegaram

ao destino e, lamentavelmente, não encontraram nenhum

quarto livre nos albergues da terra. Depois de muito procu‑

rar, acomodaram ‑se num estábulo que um pastor, gentil

e providencialmente, disponibilizou.

E foi naquela noite fria e naquele local modesto que

Maria deu à luz. José deitou o bebé numa manjedoura que

improvisou como berço e a emoção era evidente. O burro

parecia mais contente do que nunca e, acompanhado por

uma vaca, parecia fazer guarda de honra ao recém ‑nascido,

aquecendo ‑o com o seu bafo.

Durante a noite, apareceram uns pastores que, tendo

ouvido dizer que ali nascera um menino, quiseram visitá ‑lo

e levar algumas ofertas e, pouco tempo depois, surgiram,

também, uns magos que lhe presentearam uns pequenos

baús com ouro, incenso e mirra.

Apesar das muitas pessoas que pelo estábulo passaram

e não obstante os variadíssimos e valiosos presentes ofere‑

cidos, o bebé parecia só ter olhos para o burrinho e só sorria

para ele. O menino esticava ‑lhe muitas vezes os bracitos para

brincar e ele encostava ‑lhe o seu focinho com mansidão

e delicadeza e, de vez em quando, José pegava ‑o ao colo e

colocava ‑o com ternura no seu dorso, sendo visível e inequí‑

voca a imensa cumplicidade entre todos.

Uns tempos depois, José, preocupado e apreensivo com

alguns boatos ruins que ouvira, decidiu partir para bem lon‑

ge dali, puxando o seu fiel e humilde jumento, com Maria

e o menino em cima. As únicas certezas que levaram na

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bagagem era a confiança em Deus e

a amizade do burro que para os três

olhava como que a dizer que tudo ia

correr bem.

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O MOCHO E O HOMEM LIGHT

Era uma vez um mocho que vivia num buraco es‑

cavado no tronco de uma velha árvore da floresta. Os seus

olhos grandes, a capacidade de conseguir ouvir e ver bem na

escuridão da noite e a facilidade com que girava a cabeça

de um lado para o outro para observar e tomar consciência

da realidade envolvente, simbolizavam bem para todos os

animais a inteligência, a sabedoria, a reflexão, o mistério e o

conhecimento.

Um dia todos os animais do bosque decidiram ir falar

com o velho mocho para lhe pedirem um conselho. As ge‑

rações mais jovens manifestavam vontade de ir viver para

as cidades dos humanos pois muitos havia que lhes davam

comida e até os levavam para suas casas. As crias nascidas

nos anos mais recentes já não se identificavam muito com os

valores ancestrais da vida selvagem e até desejavam ser pes‑

soas pois pareciam ser mais inteligentes, criativas e felizes.

A tristeza e deceção dos pais e avós da bicharada da

floresta eram evidentes e punham em questão o tipo de

educação que estavam a dar aos mais novos. Bem que lhes

explicavam que os humanos tinham coisas boas, mas que

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Paulo Costa

eram também os responsáveis pela

destruição da floresta que lhes roubava

o habitat, pela poluição que vinha das

cidades e das suas indústrias que lhes de‑

teriorava o ar que respiravam e que muitos

havia que maltratavam e exploravam animais.

O mocho escutou a exposição angustiada e apreensiva

dos animais da floresta e, após alguns momentos de silên‑

cio e meditação, pediu que, no dia seguinte à noite, trouxes‑

sem para ali todos os membros das diversas famílias para

uma grande assembleia.

À hora combinada, e com a lua e as estrelas como teste‑

munhas, todos se reuniram em ambiente sereno e aprazível

para escutar o velho sábio e soberano da noite. A verdade

é que era a primeira vez que se juntavam todos no mesmo

local e, apesar de serem tão diferentes, havia muito mais coi‑

sas que os uniam do que realidades a separá ‑los.

O mocho, depois de saudar a todos do alto da sua árvore,

disse que o Homem já não era o que fora em tempos idos

e que se tinha tornado num animal ‘light’. Parecia que nele

tudo era ligeiro, suave, leve e débil e na sua existência tudo

era sem grande intensidade e profundidade e não importa‑

va a essência das coisas, pois só valia o superficial e as coisas

sem compromisso. Havia um pensamento frágil e as convic‑

ções eram sem firmeza.

O mocho afirmava que no sujeito light só se via hedo‑

nismo, materialismo, permissividade e relativismo e que ca‑

recia de pontos de referência. Vivia num grande vazio moral

e não era feliz. Afundara ‑se num redemoinho de sensações

sofisticadas e narcisistas, era frio, não cria em quase nada ou,

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Contos da Arca de Noé

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então, acreditava em tudo sem critério, e vivia afastado dos

autênticos valores transcendentes e que lhes podia oferecer

verdadeiro sentido.

E continuava a argumentar que o homem light não tinha

referências e, como perdera a bússola de uma vida com nor‑

te, a única saída que tinha era navegar à deriva e sem rumo.

Não querendo agarrar ‑se a nada em concreto, apegava ‑se

a tudo sem coerência nem harmonia e quase ninguém

acreditava no futuro, dissolvendo ‑se a confiança e a esperan‑

ça no porvir.

Para o velho e sábio mocho, o homem light inundara‑

‑se no tédio, no pessimismo, no desânimo e na melancolia.

O importante e decisivo era o gozo e o prazer pessoal, tudo

era indiferente, nada estava proibido e sentir ‑se bem em

cada sítio e momento era o único imperativo. Cada um era

dono de si mesmo, do seu corpo e das suas opções e nin‑

guém tinha nada que se meter.

Todos os animais ouviram respeitosa e atentamente o

discurso do mocho e ninguém ousou fazer o mais pequeno

ruído ou se atreveu fazer o mais ínfimo comentário. A velha

ave sabia do que falava e discursava com sensatez e sabe‑

doria.

Então, um pequeno macaco tomou a palavra, agrade‑

ceu as palavras do mocho e reconheceu que, como sempre

lhe disseram os pais e avós, ‘cada macaco no seu galho’.

Poderiam aprender algumas coisas com os humanos, mas

eram muito mais as lições que eles deveriam aprender com

os animais.

Então, decidiram reunir ‑se uma vez por semana naque‑

le local para lanchar, conviver, jogar e cantar e combinaram

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não dizer nunca aos humanos que

eram muito felizes sem eles, que con‑

versavam ainda mais do que eles e que

também tinham valores e sabiam pensar

e amar.

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AS GALINHAS DO QUINTAL

Era uma vez uma menina que vivia numa grande

cidade. Crescera naquela imensa selva de arranha céus e

apenas ia à aldeia dos avós maternos de longe a longe e,

apesar de estar acostumada à vida urbana e às suas inúme‑

ras possibilidades e oportunidades, gostava muito de estar

com eles no ambiente campesino da montanha.

A menina ficava sempre encantada com a vida rural e

com os animais que os avós criavam no seu quintal e obser‑

vava com especial entusiasmo e curiosidade as galinhas que

passeavam alegremente pelo prado. Gostava de lhes atirar

milho, de as observar rodeadas dos seus pintainhos, de cor‑

rer atrás delas e, claro, de saborear uma canja de galinha, um

arroz de frango ou uns ovos estrelados.

O avô da menina, ao aperceber ‑se do seu interesse na‑

quelas aves de bico pequeno, crista carnuda, pernas esca‑

mosas e asas curtas e largas, enunciava frequentemente

alguns provérbios populares: ‘Todos os dias galinha, enfastia

a cozinha’, ‘Galinha de casa mais come do que vale’

‘Galinha gorda não precisa de tempero’, ‘A galinha velha

faz bom caldo’, ‘A grão a grão, enche a galinha o papo e o

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Paulo Costa

velho o saco’, ‘A galinha põe pelo bico’,

‘Galinha de campo não quer capoeira’

‘Galinha velha faz boa canja’.

A avó nunca queria ficar atrás e falava

sempre da enorme importância das ga‑

linhas para o ser humano, visto ser o animal

doméstico mais difundido e abundante do planeta  e

uma das fontes de proteínas mais baratas. E também gos‑

tava de declamar os seus provérbios preferidos sobre o

tema: ‘A galinha que cacareja ou tem ovo ou chama galo’, ‘

A galinha da minha vizinha põe um ovo melhor que a minha’,

‘À galinha, aparta ‑lhe o ninho, e pôr ‑te ‑á o ovo’, ‘A galinha,

onde tem os ovos, tem os olhos’, ‘Galinha preta põe ovo

branco’.

Um dia, a menina chegou de uns dias de férias na aldeia

dos avós e levava dois pintainhos dentro de uma pequena

gaiola. Os pais ficaram logo apreensivos pois, obviamente,

não tinham condições para criar galinhas no pequeno apar‑

tamento em que viviam.

O pai da menina disse ‑lhe que preferia ter em casa uma

águia do que uma galinha. Explicava que enquanto a águia

era uma caçadora, a galinha era caça. Enquanto a águia

tinha olhos frontais olhando tudo de frente, a galinha apre‑

sentava olhos laterais, estando sempre a olhar para o que

não interessava. Enquanto a águia via muito bem tanto de

dia como de noite, a galinha só via de dia e, quando o sol

se punha, ia para o galinheiro. Enquanto a águia era impo‑

nente, vigorosa, destemida e corajosa, a galinha era peque‑

na, frágil e medrosa. Enquanto a águia vivia em pontos bem

altos, selecionando bem as presas e descendo velozmente

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Contos da Arca de Noé

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sobre elas, a galinha alimentava ‑se passivamente de milho

e dos restos de comida que lhe davam.

A mãe da menina, porém, era mais sensível ao ambiente

rural e aprendera a valorizar todos e cada um dos animais

e disse à filha que o mais importante era aprender com cada

qual, além de que, por muito que argumentasse o pai, as

galinhas eram bem mais úteis que as águias.

Lembrou que as galinhas, apesar de muitos as conside‑

rarem estúpidas, eram espertas, gostavam de estar sempre

juntas, não eram egoístas, aceitavam o compromisso de

pôr diariamente um ovo e anunciam ‑no alto e bom som e,

ainda, ofereciam a sua carne como alimento.

Disse, ainda, que as galinhas eram exemplares como

mães. As que tinham ninhadas acompanhavam com cuida‑

do e amor os seus pintainhos, protegendo ‑os corajosamen‑

te. Com todo o zelo e desvelo, tão característicos de qualquer

mãe, ao dar ‑se conta da proximidade de qualquer perigo,

chamavam angustiadamente as suas crias e juntavam ‑nas

afetuosamente debaixo das suas asas. Iam sempre à frente

a indicar os melhores caminhos e ensinando ‑as a remexer

a terra para procurar alimento.

A menina ficou muito sensibilizada com a conversa que

tivera com os pais e, após refletir com os seus botões, decidiu

voltar a levar os pintainhos para o quintal dos avós. Pediu‑

‑lhes que cuidassem deles para que pudessem ser galinhas

livres e felizes toda a vida e nunca fossem o prato de nin‑

guém. Depois, prometeu a si mesma que queria ser sempre

realista, simples e ter os pés na terra como as galinhas e ser

inteligente, perspicaz e sonhar bem alto como as águias.

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OS URSOS E A LIBERDADE

Era uma vez um casal de ursos que tinha dois filhos:

o Bernardo e a Camila. Os dois irmãos estavam sempre a

ouvir dos pais a admiração de como é que era possível que

fossem tão diferentes na maneira de ser, apesar de terem

recebido a mesma educação. E os conselhos eram frequen‑

tes: que o rapaz olhasse para a irmã e aprendesse a ser bom

menino e que a rapariga ensinasse o irmão a ter juízo.

A verdade é que a Camila era uma querida. Sempre que

a Mãe Ursa pedia, gostava de ajudá ‑la nas lides da casa e

passava muito tempo a estudar pois era muito boa aluna na

escola. Por sua vez, o Bernardo adorava ver televisão e jogar

playstation e era muito pouco empenhado nas suas tarefas

académicas.

Numa ocasião, os pais ursos decidiram não pedir absolu‑

tamente nada aos seus filhos e deixá ‑los fazer tudo quanto

quisessem. Passados dois dias, o pai decidiu visitar a Camila

no seu quarto. Depois de bater à porta, entrou e ela ficou

muito nervosa. Viu ‑a à secretária com montes de livros

enquanto escondia o telemóvel e desligava apressadamente

o computador.

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Paulo Costa

Ao lado, a mãe batia também à por‑

ta do Bernardo e surpreendeu ‑o a

embrulhar uns sacos. Ele ficou mui‑

to atrapalhado e disfarçou, pondo‑se

a cantar a música que acompanhava

as peripécias da série que passava na televisão.

O Pai Urso e a Mãe Ursa ficaram intrigados, mas pre‑

feriram não lhes dizer nada naquela ocasião. Mas na‑

quele dia à noite, o ambiente era estranho. Os miúdos

estavam nervosos e à mesa não se falava, pois, como

quase sempre, parecia que a televisão era quem man‑

dava lá em casa. No final da sobremesa, todos se levanta‑

ram menos o pai. A Camila enfiou ‑se no quarto, pegou

no telemóvel e ligou o portátil. O Bernardo ligou a televisão

e pôs a sua aparelhagem em altos berros.

Com aquilo tudo, o Pai Urso estava triste, preocupado e

sem palavras. Levantou ‑se e decidiu ir aos quartos dos filhos

chamá ‑los para terem uma conversa de família. Ao chegar

ao quarto da Camila, ela ficou envergonhada e não sabia

onde se meter. O pai sentou ‑se na sua cama e perguntou‑

‑lhe porque estava assim. Respondeu que sabia que ele ia

ficar desiludido consigo, mas tinha que lhe confessar tinha

à sua carteira buscar dinheiro para carregar o seu telemóvel

para falar com as amigas e andava há umas semanas a falar

com alguém mais velho nas redes sociais.

O Pai Urso nem sabia o que dizer, tal a deceção que sen‑

tia. Levantou ‑se e foi ao quarto do Bernardo. Qual não foi

o seu espanto quando se deu conta que ele não estava lá e

a janela entreaberta denunciava a saída. Preocupadíssimo,

chamou a esposa ao quarto e logo se juntou a Camila.

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Contos da Arca de Noé

137

Passados poucos minutos, chegou o Bernardo que

logo se desculpou pelo susto e preocupação que lhes havia

causado e explicou que um amigo seu estava a passar por

grandes dificuldades económicas porque os pais estavam

sem emprego e ele ficara com tanta pena dele que tinha

decidido ir levar ‑lhe algumas roupas e comida e não queria

que ninguém soubesse.

Apesar daqueles momentos de angústia, os pais e irmã

do Bernardo estavam orgulhosos e uma conversa de família

teve lugar ali mesmo. O Pai Urso e a Mãe Ursa lamentaram

que o diálogo e a confiança entre eles tenha quase desa‑

parecido e chamaram a atenção para a importância do uso

correto da liberdade.

O Pai Urso disse que quando um urso está sozinho e

pode livremente decidir o que quer fazer é que verdadei‑

ramente se conhece o seu carácter e a sua maneira de ser e

estar na vida. Ser livre era fantástico, mas, sem se dar conta,

pode ‑se ficar preso e dependente de coisas ou de alguém

e isso era mau. Depois, a Mãe Ursa disse, em jeito de sen‑

tença, que a liberdade não consistia em fazer o que se quer,

mas o que se deve e que a liberdade era o maior dos bens

e o fundamento de todos os outros.

Naquela noite, os quatro ficaram até tarde a conversar,

a brincar e a jogar e prometeram conviver mais em família.

Tinham redescoberto o valor e o sentido da liberdade.

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AS OVELHAS DO PASTOR DA MONTANHA

Era uma vez um pastor que tinha um rebanho com

quase uma centena de ovelhas. Recebera em herança dos

pais uma dúzia de ovelhas, carneiros e cordeiros e, após ter

decidido dedicar ‑se à pastorícia, a sua ocupação diária era

levar o rebanho, que foi crescendo a olhos vistos, para as boas

pastagens das colinas e vales das redondezas.

O pastor gostava muito do seu trabalho pois apreciava

imenso passear pelos montes e contemplar as belíssimas

paisagens que abraçavam a sua aldeia. Nunca se imagina‑

ra a viver numa cidade pois, enquanto se sentava a ver as

ovelhas a pastar, apreciava muito o silêncio e adorava ouvir o

vento e escutar as melodias dos passarinhos.

O pastor tinha dado nome a todas as ovelhas quando ain‑

da eram pequenas e conhecia as características de cada uma

como se de pessoas se tratassem. Eram quase todas muito

dóceis e obedientes e isso cativara desde sempre o pastor.

Via ‑as como exemplo de bondade e inocência e admirava‑

‑lhes o seu espírito de grupo, a sensibilidade e a inteligência.

Além do trabalho que implicava o pastoreio do rebanho,

o pastor tosquiava as ovelhas e carneiros, vendendo a lã para

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Paulo Costa

se fazerem camisolas quentinhas e

fazia saborosos queijos frescos. Eram,

também, uma fonte de rendimento

como fonte de carne, laticínios e couro.

O pastor tinha, ainda, um cão, que era ver‑

dadeiramente o seu braço direito. Ajudava ‑o

a controlar o rebanho para que não se dispersasse e

estava sempre atento às aproximações ameaçadoras das

raposas e dos lobos que por ali vagueavam com regularida‑

de, protegendo ‑as corajosamente dos seus ataques. Bastava

o pastor olhar para o cão ou assobiar ‑lhe que ele sabia ime‑

diatamente o que tinha que fazer, tornando ‑se o maior alia‑

do do rebanho, sobretudo dos mais jovens.

Um dia, o pastor decidiu conduzir o rebanho para um

fértil e verdejante prado nas margens de um riacho que des‑

cia desembaraçado e travesso das montanhas. As ovelhas

deliciavam ‑se com a erva fresca enquanto o pastor dividia

o tempo entre as páginas de um livro e umas músicas na

flauta.

Para surpresa do pastor, umas nuvens escuras cobriram

a região e em pouco tempo a chuva começou a cair torren‑

cialmente, enchendo rapidamente o caudal do riacho e ala‑

gando toda a pastagem. As ovelhas ficaram agitadas e por

mais que o pastor gritasse para as acalmar e o cão corresse

preocupado de um lado para o outro, foram ‑se dispersando

perturbadas e nervosas.

Para agravar a situação, três lobos aproximaram ‑se e,

aproveitando o pandemónio generalizado, conseguiram ar‑

rancar dois cordeirinhos das suas mães sem que o pastor se

apercebesse. Quando as nuvens começaram a dissipar ‑se e

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Contos da Arca de Noé

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a chuva parou, o rebanho voltou a ajuntar ‑se todo e não tar‑

dou que o pastor tivesse consciência de que faltavam os dois

cordeiros e, ainda, o cão, ficando cheio de tristeza, angústia

e desespero.

Apesar do elevado número de ovelhas que faziam parte

do seu rebanho e de mais duas ou menos duas não faze‑

rem grande diferença, não concebia a hipótese de perder

alguma. Todas as suas ovelhas eram para ele muito im‑

portantes e era como se cada uma fosse a única que ele

possuía. Seria capaz de dar a vida para recuperar os dois

cordeirinhos.

Após empurrar o rebanho para junto de uma encosta

e ter improvisado meia dúzia de paus a fazerem de cerca,

o pastor decidiu procurar diligentemente e com amor os

cordeirinhos do seu rebanho. Esquadrinhou toda a região,

vasculhou todos os cantos e esgravatou todos os buracos e

nada e, quando o sol já se tinha escondido atrás das mon‑

tanhas e a escuridão da noite tinha agasalhado a aldeia, foi

ao encontro do rebanho e, com a maior mágoa do mundo,

conduziu ‑o ao aprisco sem que alguma ovelha proferisse

berro algum.

Ao chegar a casa, no meio do silêncio e do breu da noite,

ouviu uns ruídos e viu uns olhos familiares. Ao aproximar ‑se,

viu os dois cordeirinhos sãos e salvos, que logo correram para

junto das mães, e o cão que, a julgar pelos ferimentos que

apresentava, lutara aguerrida e destemidamente com os lo‑

bos para os resgatar. O pastor olhou agradecido para o céu

e agarrou ‑se paterna e afetuosamente aos cordeirinhos e ao

cão. E todas as ovelhas baliram alegremente.

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O CROCODILO DO RIO

Era uma vez uma aldeia que tinha assentado arraiais

há muitos anos numa floresta junto a um rio. Todas as fa‑

mílias se sentiam felizes pois nada lhes faltava. Além da paz

que reinava por aquelas bandas e da paisagem paradisíaca,

as águas do rio ofereciam ‑lhes muito e variado peixe e o bos‑

que dava ‑lhes diversos frutos e saudáveis produtos agrícolas.

Havia, contudo, uma coisa que os começara a ator‑

mentar nos tempos mais recentes. Havia pessoas da aldeia

que tinham avistado um crocodilo no rio e o medo tinha ‑se

apoderado de toda a gente. Era verdade que os crocodilos

despertavam curiosidade e admiração em virtude do seu

tamanho, força e por causa do seu olhar penetrante e pose

misteriosa, mas ter nas imediações um exemplar daqueles

répteis aterrorizava toda a população.

O ancião da aldeia, que era uma daquelas pessoas sábias

que todos respeitavam e estimavam, reuniu toda a gente

e, em tom solene e persuasivo, disse que era preciso muita

atenção e cuidado pois o perigo ameaçava, de uma forma

real e concreta, a vida e a tranquilidade de todos.

Disse que aqueles répteis, que habitavam a Terra há cer‑

ca de duzentos milhões de anos, podiam pesar até oitocen‑

tos quilos e tinham uma pele grossa e áspera. Referiu, ainda,

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Paulo Costa

como curiosidade, que eles eram tão

fortes que, quando um crocodilo perdia

um dente, ele era rapidamente substi‑

tuído, podendo chegar a ter até oito mil

dentes ao longo da vida e que, como não

produziam calor, estavam sempre com a boca

aberta.

Depois, chamou a atenção para a força extraordinária dos

crocodilos, explicando que as suas mandíbulas podiam apli‑

car mais de três mil quilos de pressão em comparação com

a mandíbula das pessoas que produzia apenas quarenta

e cinco quilos de intensidade. Apercebendo ‑se do ar ater‑

rorizado de todos, sorriu e disse que, por outro lado, a man‑

díbula do crocodilo tinha pouca força de abertura, poden‑

do, por exemplo, ser mantida fechada usando apenas um

elástico.

A população estava amedrontada e já não conseguia

dormir sossegada. Decidiram fazer orações para que nada

de mal acontecesse à aldeia e organizaram turnos de vigilân‑

cia para que o réptil não se atrevesse a sair do rio em direção

ao povoado.

Passados uns dias, a meio da noite, e quando tudo pa‑

recia calmo, a aldeia acordou sobressaltada com os gritos

do vigilante. Um cão tinha sido atacado pelo crocodilo que,

sorrateiramente, o capturara quando se tinha deslocado

ao rio para beber água. Todos choraram imenso e o medo

avolumou ‑se ainda mais entre todos.

Passados uns dias, a menina mais pequenita da aldeia

brincava à porta da sua casa, quando, olhando para o rio,

lhe chamou a atenção aquilo que parecia ser um pedaço de

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Contos da Arca de Noé

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madeira a flutuar na água. Aproximando ‑se da margem do

rio, depressa ficou estarrecida ao dar ‑se conta de que afinal

era a cabeça do famoso e terrível crocodilo que a olhava de

forma imóvel e sinistra.

Como que enfeitiçada pelos seus olhos penetrantes e

enigmáticos, a menina olhava ‑os fixamente e, começando

a sentir compaixão pelo bicho que parecia chorar, aproxi‑

mou ‑se da água e estendeu os bracitos com vontade de

abraçá ‑lo.

Em poucos segundos, o crocodilo aproximou ‑se da me‑

nina e, abrindo a boca, preparava ‑se para a atacar não fosse

a rápida chegada de vários homens que o afugentaram

impetuosamente com varapaus e gritos. Toda a aldeia agra‑

deceu o milagre que acabara de acontecer pois a menina

tinha sido salva no derradeiro segundo.

Quando ela explicava que tinha tido pena do crocodilo

que parecia estar triste e a chorar, o ancião sorriu e lembrou

a todos a célebre frase ‘chorar lágrimas de crocodilo’. Expli‑

cou que se utilizava quando uma pessoa tentava expres‑

sar artificialmente um remorso que não era sincero ou era

hipócrita, fingindo um sentimento que não era autêntico.

E havia, efetivamente, muita gente com lágrimas de crocodi‑

lo por esse mundo fora.

A verdade é que, em virtude do susto que o crocodilo

apanhara ou por outra razão qualquer, o crocodilo nunca

mais incomodou ninguém e até começaram a oferecer ‑lhe

alimentos como bons vizinhos. E a tranquilidade voltou à

aldeia.

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O PIRILAMPO DO PÂNTANO

Era uma vez um jovem pirilampo que vivia nas mar‑

gens de um pântano. Como todos os seus familiares e amigos,

a emissão de luz fosforescente tornava ‑o um inseto muito

especial e original, sobretudo nos meses mais quentes, onde

as luzinhas a piscar entre as árvores e arbustos, acompa‑

nhadas pelas estrelas cintilantes do céu, ofereciam um espe‑

táculo único a toda a floresta, qual festa psicadélica na escu‑

ridão das noites.

O pirilampo tinha aprendido desde jovem que a luz que

os pirilampos esplendorosamente ostentavam e exibiam

devia ‑se a um singular processo biológico e que tinham

essencialmente uma importante função de defesa em rela‑

ção aos predadores e se constituíam como um ímpar instru‑

mento de sedução.

No entanto, o jovem pirilampo não se sentia feliz nem

realizado. Não queria ter nascido pirilampo e estava sempre

a comparar ‑se com os demais animais da floresta. Res‑

mungava com o seu pequeno tamanho diante da imponên‑

cia dos elefantes, hipopótamos, girafas, leões e crocodilos

e achava ridículos os seus dois centímetros. Lamentava ‑se,

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Paulo Costa

também, que tivesse dois minúsculos

e frágeis pares de asas e que voasse tão

lentamente e a tão baixa altitude em

comparação com as águias, milhafres,

falcões, andorinhas e melros. Queixava ‑se,

ainda, de não pertencer a uma espécie bonita

pois não apreciava as formas nem as tonalidades acas‑

tanhadas do seu corpo e invejava a formosura dos tigres,

zebras, pavões, papagaios e borboletas.

Um dia, houve uma enorme tempestade que se esten‑

deu por vários dias seguidos. As chuvas fizeram trasbordar as

águas dos rios e do pântano e encharcaram toda a floresta.

Com as agruras do temporal, os animais deixaram de ter ali‑

mento para saciar a sua fome e os ventos deitaram abaixo

inúmeras árvores, dificultando decisivamente a sua mobili‑

dade habitual.

A intensidade da pluviosidade e do vendaval era tama‑

nha que a visibilidade se tornou quase impossível, como se

um denso nevoeiro ou a escuridão da noite tivesse coberto

toda a floresta permanentemente. Todos os animais da flo‑

resta ficaram apavorados e tropeçavam frequentemente

nas árvores e uns nos outros a esgueirar ‑se de um lado para

o outro.

Todos não. Apenas o jovem pirilampo parecia manter al‑

guma serenidade diante daquele caos da natureza. Dentro

do buraco de uma velha árvore junto ao pântano, o pirilam‑

po esforçava ‑se por observar o que estava a acontecer, e, em

vez de lamentar as trevas, pensava o que fazer para ajudar os

amigos a resistir e lutar contra a tempestade que assolava

a floresta.

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Contos da Arca de Noé

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A família do pirilampo chamava ‑o angustiadamente

para que fugisse dali como todos os outros animais pois pa‑

recia que a morte era mais que certa se ali permanecesse,

mas ele dizia que não podia nem queria abandonar a sua

terra de sempre sem tentar fazer algo de útil.

Os pais do pirilampo lembraram ‑lhe que ele sempre

admirara a força e o tamanho dos grandes animais da flores‑

ta e que até esses já se tinham escapulido dali há muito sem

que tivessem ajudado a arrastar as árvores caídas. Os tios

recordaram que as aves, que ele tanto invejava por voarem

alto e velozmente, podiam ter ajudado a avisar a aproxima‑

ção da tempestade ou a orientar os demais animais e tam‑

bém eles já se tinham sumido. E os avós disseram ‑lhe que

de nada serviu a beleza dos animais que ele apreciava pois

também eles tinham desaparecido egoisticamente e sem

deixar rasto.

O pirilampo deu ‑lhes toda a razão, mas disse ‑lhes que

ele tinha que fazer alguma coisa pela floresta e pelos seus

habitantes e pediu encarecidamente para que se juntassem

todos de forma a que a intensidade da luz que naturalmente

emitiam fosse maior e fosse vista por toda a fauna. Assim,

quando as chuvas pararam, o jovem pirilampo liderou um

grupo de muitos pirilampos e no meio da penumbra foram

por toda a floresta chamar todos animais.

Uma extensa fila formada por toda a bicharada da flo‑

resta seguiu o jovem pirilampo e sua equipa em direção à

zona do pântano onde todos viviam e durante vários dias ca‑

pitaneou sábia e heroicamente os trabalhos de reconstrução

dos habitats. Todos os animais reconheceram e agradece‑

ram a inteligência, sagacidade e capacidade de liderança do

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Paulo Costa

pequeno jovem pirilampo que salvara

a floresta e ele, orgulhoso, nunca mais

voltou a desejar ser outra coisa qual‑

quer.

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OS DINOSSAUROS E A MÁQUINA DO TEMPO

Era uma vez um homem que gostava muito de estu‑

dar dinossauros. Desde pequenino se interessara pelos ani‑

mais que durante mais de 167 milhões de anos dominaram

a Terra entre o Triássico e o final do Cretáceo e sabia qua‑

se tudo sobre as conclusões científicas dos paleontólogos

relativamente às mais de mil espécies de dinossauros her‑

bívoros e carnívoros, bípedes e quadrúpedes que tinham

conseguido identificar.

Apaixonara ‑se entusiasticamente pela vida dos dinos‑

sauros e o que mais o entristecia era a sua extinção em

massa há 65 milhões de anos em virtude da queda de um

meteorito. Sabia que ele ao colidir com a Terra, originou uma

grande explosão que carbonizou biliões de animais, levan‑

tando uma nuvem de poeira tão espessa que bloqueou a

luz do sol e transformou o planeta num local extremamente

frio. Os efeitos da colisão do meteorito eliminaram quase

todas as espécies existentes de dinossauros, à exceção de

algumas espécies emplumadas, as aves, que não depen‑

diam das árvores das florestas que haviam sido dizimadas

pelo fogo.

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Paulo Costa

O homem acreditava em Deus e sabia

que nele estava a origem, o sentido e o

fim de toda a realidade, mas percebera

há muito tempo que o âmbito da Religião

não era a explicação científica da realidade.

Pensava que as religiões deviam dialogar com

as ciências e que a fé e a cultura só tinham a ganhar se

caminhassem juntas. Apesar da Bíblia não se ter referido

aos dinossauros, o homem sabia que antes de Adão e Eva já

havia indubitavelmente imensa vida.

Como o grande sonho do homem era conseguir ver

dinossauros verdadeiros no seu habitat natural, desde há vá‑

rios anos andava a tentar construir uma máquina do tempo

que lhe permitisse ir ao passado. Depois de muito investi‑

mento financeiro e tecnológico, conseguiu dar por concluí‑

do o seu inverosímil, excêntrico e mirabolante projeto e, em

poucos instantes, fez ‑se recuar no tempo em várias dezenas

de milhões de anos.

O homem não cabia em si de satisfação e felicidade.

Diante de si uma extensa planície verdejante com um enor‑

me lago azul e majestosas montanhas em toda a volta. Por

todo o lado via inúmeros dinossauros e não lhe era difícil

identificar os estegossauros, os anquilossauros, os ornitó‑

podes, os ceratopsídeos, os paquicefalossauros, os sauropo‑

domorfos e os terópodes.

Facilmente o homem se deu conta dos famosos tiranos‑

sauros, com uns 13 metros de comprimento, 6,5 metros de

altura e 8 toneladas. Ali, bem à sua frente, alguns dos maio‑

res dinossauros carnívoros, ferozes, velozes e ágeis de todos

os tempos. Havia machos solitários e outros que andavam

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Contos da Arca de Noé

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em grupos, tal como havia bandos de fêmeas adultas com

as crias.

Contudo, sem que nada o fizesse prever, o homem viu‑

‑se no meio de um conflito entre tricerátopos, espinossauros,

iguanodons, dilofossauros, velociraptores e pterodáctilos e a

sua vida correu perigo pois alguns correram atrás de si para

o devorar. A sua sorte foi que dois imponentes braquiossau‑

ros aproximaram ‑se e puseram ‑se entre os predadores e o

homem para o proteger e salvar.

Os seus corpos enormes com umas 115 toneladas, 15

metros de altura, 25 metros de comprimento e 10 metros de

pescoço valeram ‑lhe a vida. Eram saurópodes que, por se‑

rem herbívoros, se alimentavam de umas duas toneladas de

plantas diariamente e, por isso, não fariam mal ao homem

pois não fazia parte da sua cadeia alimentar.

O susto foi tão grande que o homem trepou pelo pesco‑

ço de um deles até junto da sua cabeça e ficou ali agarrado

até que as coisas se apaziguassem. Quando os braquios‑

sauros se afastaram e foram serenamente comer folhas das

mais altas árvores das colinas, o homem conseguiu descer

e apressadamente foi procurar a sua máquina do tempo

para regressar a casa.

Viu, com imensa apreensão, que o engenho que cons‑

truíra tinha ficado danificado e ficou em pânico com a pos‑

sibilidade de não mais voltar ao presente. Tinha saudades da

família e dos amigos e pediu ao Criador que ajudasse aquela

pobre criatura a consertar o equipamento.

O homem vivera a melhor experiência da sua vida e

sentia ‑se grato por ter tido a oportunidade única de estar

perto dos maiores e mais incríveis animais que o planeta

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conhecera, mas estava apavorado e

arrependido pelo seu atrevimento tec‑

nológico e sentia, como nunca, a fragi‑

lidade e a limitação humana. E foi, então,

que acordou. Afinal, tudo não tinha passado

de um sonho.

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AS VACAS E O TOURO DA HERDADE

Era uma vez uma família que tinha uma herdade.

Além de cultivarem milho e centeio pela vasta extensão de

terra que possuíam, tinham porcos e vacas que passeavam

livremente pelo montado e que eram uma boa fonte de

rendimentos. A verdura abundante da erva oferecia uma be‑

leza singular à propriedade, pincelada aqui e acolá por azi‑

nheiras, sobreiros e oliveiras e ornada pela água fresca de um

enorme tanque para rega e bebida dos animais.

A filha mais nova dos proprietários gostava particu‑

larmente das vacas e ia frequentemente falar com elas.

Conhecia cada uma pelo seu mugido e todas se davam pelo

nome que ela lhes dava. Eram animais mansos e obedien‑

tes e tinha sempre muita pena quando os pais matavam ou

vendiam alguma. A menina gostava de ajudar a ordenhar as

vacas, a fazer queijos e manteiga com o seu leite e a levar

palha e erva para os currais para as alimentar. O leite diário,

bem como a carne e a pele eram muito importantes para

a subsistência da família.

Apesar da tradicional afabilidade das vacas e dos bois da

herdade, o último bezerro que nascera tinha características

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Paulo Costa

diferentes. Era mais bravio, irrequieto

e indomável e afastava ‑se frequente‑

mente do grupo durante as pastagens.

Os donos não conseguiam fazer farinha

com o pequeno touro que apenas respei‑

tava e obedecia à menina que, por acaso, o vira

nascer.

Um dia, a menina, num dos seus habituais passeios pelo

montado para visitar as vacas, deu ‑se conta que estavam

invulgarmente agitadas, nervosas e barulhentas. Perplexa,

chamou cada uma pelo nome para as acalmar e acariciar

e, depressa tomou consciência de que o pequeno touro

tinha desaparecido. Procurou por todo o lado e nada. Rapi‑

damente foi chamar os pais e eles rapidamente descobriram

as marcas das rodas de um camião na terra e a cerca cor‑

tada numa das extremidades da herdade. Tinham roubado

o touro.

A menina ficou amargurada e atormentada e, apesar

das preocupações e trabalhos que o touro dava aos seus

pais, também eles estavam prostrados e desconsolados.

Durante meses, procuraram o touro por todo o lado sem su‑

cesso e a tristeza apoderara ‑se de todos irremediavelmen‑

te. Nunca a herdade tinha sido assaltada e da primeira vez

que o fora, deixara marcas indeléveis.

Um ano mais tarde, tiveram lugar as festas populares

mais famosas da região e os donos da herdade levaram lá

os filhos para descontrair. Num piscar de olhos a menina

deu ‑se conta de que ia haver uma corrida tauromáquica e,

fazendo ‑se perder no meio da multidão, procurou a praça de

touros. Esgueirando ‑se por entre os inúmeros aficionados,

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Contos da Arca de Noé

157

viu uma árvore ali nas cercanias e, subindo ‑a de forma

astuta e expedita, conseguiu observar o que se passava

lá dentro.

Sob fortes aplausos, viu entrar na arena cavaleiros, for‑

cados, bandarilheiros, novilheiros e campinos que saudavam

toda a gente e, depois de todos saírem, não tardou a que

entrasse de forma impetuosa e célere um touro. De repente,

o coração da menina começou a bater de maneira acelera‑

da e galopante. Era ele. Não havia qualquer dúvida. Apesar

de estar bem mais corpulento, possante e robusto, não foi

difícil reconhecê ‑lo.

O seu touro começou a ser lidado por um cavaleiro

tauromáquico que lhe cravou cruel e impiedosamente vá‑

rias bandarilhas no dorso para gáudio do público. A menina

começou a chorar compulsivamente, enquanto o touro per‑

seguia desenfreadamente o cavalo, jorrando muito sangue

e ficando progressivamente mais debilitado. Depois, entrou

um homem que efetuou algumas manobras com um capo‑

te vermelho para posicionar o touro para a pega dos forcados

que, após três tentativas, conseguiram imobiliza ‑lo à força

de braços.

A menina, não aguentando mais, gritou de forma en‑

colerizada e tanto o público como o touro olharam para si.

Inesperada e subitamente, o touro galgou as barreiras e

vedações e conseguiu sair da praça ao encontro dela.

A menina desceu ansiosamente da árvore e, subindo para

cima do touro, conduziu ‑o desembaraçada e diligentemente

para a herdade.

A menina ficou feliz e orgulhosa por ter conseguido sal‑

var a vida do touro que voltou a passear livremente com as

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vacas no montado e ficou famosa por

ter iniciado uma luta sem tréguas con‑

tra a crueldade injustificável das toura‑

das a que muitos chamavam arte, cultura

e tradição.

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O GORILA E OS DIREITOS DOS ANIMAIS

Era uma vez um velho gorila que vivia numa longín‑

qua floresta montanhosa. Tinha sido apanhado bebé por

caçadores furtivos, depois de terem assassinado a mãe, e fora

criado na casa de um fazendeiro que o maltratou durante

anos a fio. Como era muito inteligente, aprendia quase tudo

como uma criança e, após várias tentativas, conseguiu fugir

para a sua terra natal.

A fama do espécime dos maiores primatas do mundo,

que partilhava quase a totalidade do ADN dos humanos,

levou a que um dia todos os animais da floresta o procuras‑

sem. Argumentavam que todos os animais possuíam di‑

reitos e tinham dignidade e que o seu desconhecimento e

desprezo levavam o Homem a cometer crimes contra eles

e contra a natureza. Diziam que o reconhecimento pela es‑

pécie humana do direito à existência das outras espécies

constituía o fundamento da coexistência harmoniosa de

todas e que o respeito dos homens pelos animais estava

intimamente relacionado ligado com a consideração e apre‑

ço pelos seus semelhantes.

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Paulo Costa

O velho gorila ficou muito sensibilizado

com as preocupações dos animais da

floresta que eram, sem dúvida alguma,

as inquietações e dramas dos animais de

todo o planeta e, depois de muito pensar e

dialogar, redigiu uma declaração universal dos

direitos dos animais onde enunciava os princípios que

deviam ser reconhecidos por toda a humanidade. Afirmava:

Todos os animais nascem iguais perante a vida e têm os

mesmos direitos à existência. Todos os animais têm o direito

a ser respeitados. O Homem, como espécie animal, não pode

exterminar os outros animais ou explorá ‑los e tem o dever

de pôr os seus conhecimentos ao serviço deles. Todos os ani‑

mais têm o direito à atenção, aos cuidados e à proteção do

Homem e nenhum será submetido nem a maus tratos nem

a atos cruéis. Se for necessário matar um animal, ele deve de

ser morto instantaneamente, sem dor e de modo a não lhe

provocar angústia.

Todo o animal pertencente a uma espécie selvagem

tem o direito de viver livre no seu próprio ambiente natural,

terrestre, aéreo ou aquático e tem o direito de se reproduzir.

Toda a privação de liberdade, mesmo que tenha fins edu‑

cativos, é contrária a este direito.

Todo o animal pertencente a uma espécie que viva tra‑

dicionalmente no meio ambiente do Homem tem o direito

de viver e de crescer ao ritmo e nas condições de vida e de

liberdade que são próprias da sua espécie e todas as modifi‑

cações que forem impostas pelo Homem com fins mercan‑

tis são contrárias a este direito.

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Contos da Arca de Noé

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Todo o animal que o Homem escolheu para seu com‑

panheiro tem direito a uma duração de vida conforme a

sua longevidade natural e o seu abandono é um ato cruel e

degradante. Todo o animal de trabalho tem direito a uma

limitação razoável de duração e de intensidade de trabalho

e a uma alimentação reparadora e ao repouso.

A experimentação médica, científica, comercial ou qual‑

quer outra nos animais, que implique sofrimento físico ou

psicológico, é incompatível com os seus direitos e as técni‑

cas de substituição devem de ser utilizadas e desenvolvidas.

Quando o animal é criado para alimentação, ele deve de ser

alimentado, alojado, transportado e morto sem que disso

resulte para ele nem ansiedade nem dor.

Nenhum animal deve de ser explorado para divertimen‑

to do Homem e as exibições e espetáculos que utilizem ani‑

mais são incompatíveis com a sua dignidade. Todo o ato que

implique a morte de um animal sem necessidade é um cri‑

me contra a vida e todo o ato que implique a morte de um

grande número de animais selvagens é um genocídio, isto

é, um crime contra a espécie. A poluição e a destruição do

ambiente natural dos animais conduzem ao genocídio e os

animais mortos devem de ser tratado com respeito.

As cenas de violência com animais devem de ser inter‑

ditas no cinema e na televisão e os organismos para a sua

proteção devem estar representados a nível governamental.

Os direitos do animal devem ser defendidos pela lei tal como

acontece com os direitos do Homem.

Os animais da floresta ficaram muito orgulhosos com

aquela declaração solene do velho e sábio gorila e decidiram

divulgá ‑la e defendê ‑la junto dos humanos de todo o planeta.

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OS PORCOS E A REVOLVA DA POCILGA

Era uma vez um velho porco que vivia na pocilga de

uma quinta. Por especial simpatia da filha do proprietário,

escapara à morte habitual entre os membros da sua espécie

e isso sempre lhe causara problemas de consciência pois não

se achava diferente nem melhor que os demais.

Perturbava ‑o seriamente que os porcos como ele fossem

tratados como coisas que eram exploradas ao máximo e no

mínimo espaço de tempo pelos humanos. Sofria ao dar ‑se

conta que o abate dos leitões acontecia após o desmame e a

maioria não chegava a viver sequer um mês.

Ficava muito triste ao ver que na suinicultura da quin‑

ta,  os porcos eram criados para consumo humano e não

costumavam passar dos 4 meses de vida, altura em que atin‑

giam cerca de 100 quilos de peso e, graças às rações de en‑

gorda que lhes eram dadas e ao confinamento em que eram

mantidos, ficavam prontos para o inevitável e fatal abate.

Irritava ‑o solenemente que os homens permitissem que

dentro da suinicultura o ar estivesse frequentemente poluí‑

do com poeira e gases irritantes resultantes das fezes e que

a fraca qualidade do ar, aliada à sobrelotação e a condições

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Paulo Costa

pouco higiénicas, tornassem aqueles

espaços propícios à proliferação de di‑

versas doenças. 

O ancião suíno tinha ouvido dizer que,

lamentavelmente, por altura do abate, as

viagens eram mais um momento de profundo

stress e sofrimento pois os porcos eram amontoados

em camiões para serem levados para o matadouro e  mui‑

tos não resistiam à dureza do percurso. No matadouro, eram

atordoados antes de serem degolados, mas tal nem sempre

funcionava bem e  alguns ainda estavam completamente

conscientes  enquanto eram içados pelas patas traseiras,

degolados e se esvaiam em sangue.

Aquilo era grave demais e não podia continuar. Sentia

o dever de fazer tudo o que estava ao seu alcance para que

as coisas mudassem. Os porcos também tinham dignidade.

Apesar da reputação de animais sujos, malcheirosos e sem

um paladar muito refinado, a realidade que tinha que ser

reconhecida por todos os humanos do mundo é que os por‑

cos eram inteligentes, sociáveis e limpos e que eram seres

incríveis, capazes de aprender tarefas complexas e de comu‑

nicar entre si de forma elaborada.

Então, o velho porco decidiu convocar todos os porcos da

quinta e convidou ‑os a realizarem uma revolução. Em pouco

tempo, prenderam os donos da quinta e todos os seus em‑

pregados e chamaram a comunicação social dos humanos

para uma conferência de imprensa a ser transmitida direta‑

mente para todo o mundo.

O velho porco começou por desfiar as atrocidades de

que os porcos eram alvo. Depois, disse que os estudos mais

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Contos da Arca de Noé

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recentes sobre a estrutura genética dos suínos mostraram

similaridades extraordinárias com os humanos. Os porcos

eram sociáveis, sendo capazes de formar laços com pessoas

e outros animais e de demonstrar afeto. De seguida, refe‑

riu que os porcos comunicavam entre si continuamente e

tinham mais de vinte tipos de sons usados em diferentes

situações.

Argumentou, também, que os porcos eram curiosos e

perspicazes, tinham uma excelente memória e estavam em

quarto lugar entre as espécies mais inteligentes do plane‑

ta, à frente até dos cães. O nível de inteligência cognitiva,

semelhante à de uma criança de três anos, permitia que eles

reconhecessem os seus nomes, obedecessem a comandos

e sonhassem durante o sono. Explicou que estudos mos‑

travam que eram capazes de lembrar direções e encontrar

o caminho de casa, mesmo a longas distâncias, além de

recordarem pessoas e outros porcos.

Referiu, também, que os porcos eram bastante brinca‑

lhões, e mesmo depois de se tornarem adultos, gostavam de

brincar às apanhadinhas, que havia muitas histórias de por‑

cos que tinham salvo a vida de pessoas e de outros animais

de incêndios, afogamentos e até assaltos e terminou dizen‑

do que, por tudo aquilo, não era justo o tratamento cruel de

que eram vítimas.

O silêncio e a estupefação tomaram conta de todo o

planeta durante mais de uma hora e, após inúmeros con‑

tactos entre os principais líderes mundiais, decidiu ‑se mu‑

dar radicalmente o tipo de relacionamento entre os porcos

e os humanos. Estabeleceu ‑se, então, uma nova harmonia

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planetária de amizade e concórdia e

o velho porco da pocilga da quinta foi

aclamado herói.

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AS GIRAFAS DO SAFARI

Era uma vez um homem que gostava muito de ani‑

mais, mas achava que a natureza não tinha estado muito

inspirada no caso da girafa. Considerava ‑a o animal mais inú‑

til e imperfeito de todos e julgava ‑a bem distante da beleza,

imponência, força e inteligência da maior parte dos demais

que, esses sim, davam lindas pinturas e podiam constar dos

mais belos álbuns de fotografias.

O homem não se cansava de argumentar que o bicho

com o pescoço mais comprido de todo o planeta não era

mesmo nada bonito e que aquela altura toda de quase seis

metros não lhe oferecia elegância alguma. Achava que o dito

cujo mamífero não era um animal normal já que passava

quase vinte horas por dia a comer folhas de árvores e dormia,

imagine ‑se, em pé e por períodos reduzidos de menos de

três horas por jornada.

Um dia, o homem conseguiu realizar um sonho antigo

e foi à savana africana num safari para ver ao vivo elefantes,

leões e leopardos, que considerava os mais belos espécimes

do reino animal. Qual não foi o seu espanto, quando logo

na primeira hora de passeio, viu, através dos seus binóculos,

uma girafa a dar à luz. Durante o nascimento da cria, a mãe

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Paulo Costa

permaneceu de pé e o filhote caiu de

uma altura de mais de dois metros.

O que lhe valeu foi que a vegetação da

savana amorteceu a queda e rapidamen‑

te a girafinha se pôs em pé.

Em poucos minutos, leões, hienas e leopar‑

dos aproximaram ‑se, mas a chegada de outras girafas

intimidou ‑os. O guia do safari disse que as pernas de dois

metros e meio da girafa podiam desferir um coice capaz

de matar qualquer leão e era a patada mais forte que se

conhecia.

O homem ficou impressionado com a sagacidade das

girafas na proteção da cria, enquanto o guia alegava que

elas eram, efetivamente, animais tranquilos e pacíficos e

que tínhamos muito a aprender consigo. Disse que eram

dos poucos animais que nasciam com chifres, apesar de se‑

rem cobertos por pele, e que raramente os machos lutavam

entre si.

Entretanto, alguns antílopes e avestruzes aproximaram‑

‑se e parecia haver boa convivência com as girafas. O guia foi

explicando que as girafas viviam entre os quinze e os vinte

anos, que eram animais muito rápidos graças às suas lon‑

gas pernas e que eram quase silenciosas, comunicando com

ruídos impercetíveis para os ouvidos humanos. Referiu,

ainda, que as girafas eram herbívoras, gostando de comer

folhas de acácias e, para isso, eram dotadas de uma língua

de quase cinquenta centímetros e que, por isso, eram o úni‑

co animal capaz de alcançar as próprias orelhas com ela.

O homem estava verdadeiramente admirado com as

informações do guia e ainda mais ficou quando disse que

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Contos da Arca de Noé

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as manchas das girafas eram únicas e funcionavam como as

impressões digitais humanas pois o padrão de pelagem de

cada uma era exclusiva e diferente das outras.

Distraídos com a conversa, inexplicavelmente, o jeep

bateu num velho tronco e capotou e o homem e o guia

foram projetados por uma ribanceira abaixo para um lago.

Subitamente, dois leões aproximaram ‑se perigosamente

e o que valeu aos homens foi o aparecimento repentino

de duas girafas que, estendendo os seus longos pescoços,

permitiram que se salvassem. O homem nem queria acre‑

ditar que depois de ter pensado tão mal das girafas, fossem

elas o salvá ‑lo de morte certa.

O guia, feliz da vida, dizia que as girafas tinham, literal‑

mente, um coração muito grande e explicava que a cabeça

da girafa ficava a mais de dois metros de distância do cora‑

ção e que para fazer o sangue subir, ele precisava ser muito

forte. Por isso, o seu coração era quarenta e três vezes maior

que o do ser humano.

Depois referiu que era por estas e por outras que as gi‑

rafas dormiam muito pouco e que apenas quando se sen‑

tiam completamente seguras é que se deitavam no chão

para descansar. É que no caso de um predador se aproximar,

demorariam muito tempo a levantar ‑se.

O homem estava maravilhado com aquilo tudo e depois

daquele safari nunca mais ousou dizer que havia animais

melhores que outros, já que cada espécie tinha as suas pró‑

prias características e virtudes. O homem regressou a casa

feliz com a aventura singular que tivera o privilégio de viver

e as girafas ficaram definitivamente no seu coração.

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AS CABRAS E OS EXTRATERRESTRES

Era uma vez um grupo de extraterrestres que tinham

decidido invadir o planeta Terra. Os preparativos já tinham

começado há muito tempo e faltava apenas realizar de uma

missão de exploração e reconhecimento ao planeta azul para

que o conhecessem melhor e não fossem surpreendidos.

Outras naves já haviam sobrevoado a Terra e até contactado

com alguns habitantes e as impressões gerais eram de que

se tratava de um sítio muito verde, com muita água e muitos

animais e que os humanos viviam em grupos e eram muito

estranhos.

No dia previsto a nave aterrou num prado de uma mon‑

tanha junto a um pequeno lago. Quando se desligavam os

motores e se abriam as portas, os extraterrestres foram sur‑

preendidos com a chegada de um velho pastor que acompa‑

nhava um rebanho de cabras.

O homem ficou assutado, as cabras berravam aflitas e

apenas o cão do pastor parecia enfrentar corajosamente o

objeto voador não identificado, ladrando ‑lhe heroicamen‑

te. O pastor escondia os olhos para evitar os portentosos

focos de luz e, inesperadamente, três seres, em tudo nada

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semelhantes a gente terráquea, saíram

misteriosamente.

Olharam ‑se durante alguns instantes

e o pastor, depois de se recompor e ter

serenado as cabras, praguejou contra eles,

ameaçou ‑os com a ira divina e ordenou que se

fossem embora.

Os extraterrestres não perceberam o que é que o

humano tinha dito, mas, apesar de não terem ficado bem

impressionados com a sua atitude, tiveram mais medo do

cão e das cabras.

Então, pegaram numa espécie de motas voadoras e

foram sobrevoar a região, aproximando ‑se de várias cidades.

Chamou ‑lhes a atenção o frenesim de humanos muito apres‑

sados, de um lado para o outro e com ar zangado e cansado.

As ruas estavam cheias de veículos, e algumas construções

lançavam para o céu através de chaminés enormes fumara‑

das negras. Havia muito barulho e muita confusão por todo

o lado e apenas sentiam que não gostavam de viver ali.

Passado algum tempo, ao dirigirem ‑se novamente para

a nave, viram muitas pessoas nas ruas de uma povoação pró‑

xima a sair de um edifício grande de cor branca com uma

torre. O que foram lá fazer não sabiam, mas não pareciam

muito contentes a julgar pelos seus rostos carrancudos. Para

seu espanto, passados uns momentos avistaram o velho

pastor da montanha a chegar. Quando ele os viu, começou

a barafustar e até os ameaçou com o cajado pois por sua cau‑

sa não tinha chegado a tempo a alguma coisa importante.

Depois, um dos extraterrestres olhou para a porta e viu

um papel e apontou para ele. O pastor virou ‑se e arrancou

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a folha que parecia ter alguma coisa escrita. Leu, voltou a sentar ‑se e ficou em silêncio pensativo. Os visitantes de outro planeta ficaram com pena do pastor e, submetendo a mensagem ao seu sistema de tradução, perceberam que dizia ‘Eu também estou aí fora’, apesar de não entenderem o que aquilo significava.

Entretanto, aproximou ‑se uma menina curiosa com a presença daqueles seres tão diferentes e com o pastor ali sentado e triste. A menina revelava uma tranquilidade e uma alegria que deixou os extraterrestres intrigados. Um deles, tocou ‑lhe no rosto com suavidade e apontou para o pastor e para outros humanos parecendo querer dizer que ela era simpática e sorridente e os outros pareciam tristonhos e aborrecidos. Então, a menina disse ‑lhes que os terráqueos normalmente eram bons, só que às vezes esqueciam ‑se e não o demonstravam. E confessou ‑lhes que tinha um segre‑do: Não deixava que ninguém saísse da sua presença sem se sentir melhor e mais feliz e que descobrira que amar era a coisa mais importante da vida.

O pastor levantou ‑se com lágrimas nos olhos e abraçou a menina. Tinha acabado de receber a maior lição da sua vida da boca de uma criança. Os extraterrestres, sem saber como, estavam emocionados, sentiam o coração a bater de uma forma especial e sorriram pela primeira vez nas suas vidas. Então, desistiram da intensão de conquistar o planeta Terra pois tinham ‑se dado conta de que havia muito espaço no universo para uma convivência cordial e pacífica entre todos.

Depois, a menina deu ‑lhes um vaso com uma planta cheia de flores e o velho pastor ofereceu ‑lhes um cabritinho do seu rebanho como sinal de amizade. E partiram, prome‑tendo voltar.

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O COELHO DA PÁSCOA

Era uma vez um menina que fora passar alguns dias

na casa dos avós por ocasião das férias da Páscoa. Gostava

muito de ir à aldeia, longe do bulício habitual da cidade onde

vivia e esperava sempre ansiosamente essas épocas para

embrenhar ‑se na natureza rural que apreciava bastante,

onde podia respirar ar puro, correr e saltar quase sem limites

pelos campos verdejantes e desfrutar do carinho, aconchego

e sabedoria dos avós.

Como a primavera tinha vestido de lindas e variadas

cores toda a montanha e a passarada chilreava alegremente

saudando o radiante dia de sol, o avô do menino convidou‑

‑o um dia a ir dar um passeio, enquanto a avó preparava

o almoço.

Quando estavam os dois numa pequena e velha ponte

de madeira que ligava as duas margens de um riacho a ver

os peixes que nadavam irrequietos nas suas águas trans‑

parentes, ouviram uns tiros e o menino ficou assustado.

O avô abraçou ‑o afetuosamente e disse ‑lhe que não tivesse

medo pois eram os caçadores que andavam à caça de coe‑

lhos e perdizes.

Ainda explicava ao menino a razão dos tiros, quan‑

do ele avistou dois coelhos que fugiam por entre a erva a

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Paulo Costa

alta velocidade e ficou com pena dos pobres bichos que sempre lhe pare‑

ceram dóceis e pacíficos. O avô sorriu e disse que, de facto, os homens eram os

seus grandes predadores, mas eles também eram perseguidos por  lobos, raposas, fuinhas,

gaviões e corujas, entre outros. Contudo, os coelhos eram imensamente velozes e eram dotados de uma audi‑ ção privilegiada e de um olfato singular que lhes permitia andar até de noite e abrigar ‑se em tocas e, assim, fugir dos seus inimigos.

O menino ficou mais descansado e lembrou ‑se que, realmente, já tinha lido algures que os coelhos podiam fa‑zer o movimento simultâneo ou separado das suas orelhas compridas para a captação de qualquer som, viesse de que direção viesse e que, como os olhos estavam localizados nos lados direito e esquerdo da cabeça, podiam ter a visão perfei‑ta das coisas que estavam atrás deles e dos dois lados do seu corpo, além de que a movimentação ininterrupta do nariz significava que eram muito sensíveis a qualquer odor.

O avô assentiu com a cabeça e, como passavam por ali perto mais uns quantos coelhos, explicou ao neto que, diante da aproximação do perigo, os coelhos faziam rápidas corridas para se salvarem e que, por causa das suas patas compridas, um coelho assustado podia saltar a uma distância superior três metros e a uma velocidade de quase cem quilómetros por hora. Depois, referiu que os coelhos habitualmente po‑diam tentar confundir o predador fazendo a corrida em zi‑guezague, alternando entre sair e voltar ao caminho certo do seu próprio trilho até se meterem numa toca  ou entre

muitos galhos que lhe servissem de esconderijo.

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Contos da Arca de Noé

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A caminho de casa, o avô viu ali perto um coelho que

saía de um buraco e logo foram os dois espreitar lá para den‑

tro. Para surpresa mútua, havia ali uma ninhada de seis coe‑

lhinhos que haviam nascido há poucos dias e, por isso, não

tinham pelos nem sequer abriam os olhos e o menino ficou

embevecido com aquele cenário encantador.

O avô explicou que os coelhos tinham uma enorme

capacidade reprodutiva, já que as fêmeas podiam dar à luz

a partir dos seis meses de vida, que o período de gestação

tinha uma duração pouco inferior a seis semanas e que

durante um ano podiam ter entre quatro e seis ninhadas,

de quatro a oito filhotes.

Quando chegaram a casa para o almoço, o menino

quase não comia, empenhado que estava em contar tudo à

avó. Como era tempo de Páscoa, a avó aproveitou para lhe

explicar que o coelho se tornara desde há muitos séculos

um símbolo primaveril e pascal por representar a renovação,

a fertilidade, o nascimento e a esperança da vida. Depois, re‑

feriu que havia até uma lenda que dizia que Maria Madalena

quando foi ao túmulo de Jesus na manhã de domingo,

encontrou a sepultura entreaberta e viu sair de lá um coelho

que, assim, se tornara o primeiro ser a testemunhar a sua

ressurreição.

O menino sorriu e disse que nunca mais queria comer

carne de coelho. No final do almoço, manifestou o desejo de

ter um só para si em sua casa e pediu ao avô para apanhar e

lhe oferecer um daqueles que vira de manhã. Ele abraçou ‑o

e disse que sim. Seria o seu Coelho da Páscoa.

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A ÁGUIA E A SABEDORIA DOS PROVÉRBIOS

Era uma vez uma águia que vivia no cume de uma

montanha e era admirada e respeitada por todos os ani‑

mais. Como todos lhe reconheciam, além da força, grandeza

e majestade, virtudes como a perspicácia, lucidez e inteli‑

gência, decidiram ir ter com ela pois tinha ‑se gerado uma

enorme discussão entre todos sobre qual era o melhor e o

mais apreciado pelos humanos. Então, de forma serena e

paciente, a águia pediu que se sentassem todos e começou

a enunciar algumas ideias que poderiam ser lições de vida,

tanto para o ser humano como para o reino animal.

Sobre os cães disse: O cão e o menino vão para onde lhes

fazem o miminho… Os cães ladram, mas a caravana passa…

Quem com cães se deita, com pulgas se levanta… Quem tem

medo compra um cão… Se queres que te siga o cão, dá ‑lhe

pão… Quem não tem cão, caça com gato.

Relativamente aos burros, afirmou: Quando um burro

fala, os outros baixam as orelhas… Burro velho não aprende

línguas… Vale mais um burro que nos leve que cavalo que

nos derrube… Se a ferradura desse sorte, o burro não puxa‑

va carroça… Vozes de burro não chegam ao céu… Quem tem

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Paulo Costa

burro e anda a pé mais burro é... Pela

repetição, até o burro aprende.

A propósito dos peixes, declarou: Pela

boca morre o peixe… O maior peixe é o

que escapa do anzol… O peixe graúdo come

o miúdo… Peixe não puxa carroça… Peixe velho

entende de anzóis... Quem a truta come assada e cozida

a perdiz, não sabe o que faz e menos o que diz… Quem quer

sardinha assada, chega ‑lhe a brasa.

Depois, referiu ‑se aos lobos: Quem não quer ser lobo,

não lhe vista a pele… Nunca o lobo matou outro lobo... O que

a loba faz, ao lobo apraz... Quem faz do lobo pastor perde

as ovelhas… Quem com lobo anda, aprende a uivar.

Sobre os pássaros, disse: Mais vale um pássaro na mão

que dois a voar... O primeiro milho é para os pardais… Para o

passarinho não há como seu ninho... Pássaro que madruga

apanha minhoca… Pássaro que não canta, tem nó na gar‑

ganta… Por morrer uma andorinha não acaba a primavera…

Quem passarinhos receia, milho não semeia.

Referindo ‑se aos macacos, alegou: O macaco ri ‑se do

rabo da macaca, mas não vê o seu... O macaquinho não

se habitua a dois bosques. Haverá um em que se perde…

Quando a árvore cai, os macacos dispersam ‑se... Quem quer

divertir ‑se compra um macaco.

Relativamente às galinhas, afiançou: Todos os dias gali‑

nha, enfastia a cozinha… Triste da casa onde a galinha canta

e o galo cala... O pinto já sai do ovo com a pinta que o galo

tem… Pé de galinha não esmaga os pintos… A galinha da vizi‑

nha é sempre melhor que a minha.

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Contos da Arca de Noé

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Falando de ratos, disse: Onde há ratos, há buracos… Para

o rato, o gato é um leão… Os ratos são os primeiros a abando‑

nar o navio… Quando o rato ri do gato há um buraco perto...

Vão ‑se os gatos, passeiam os ratos... Triste do rato que não

conhece mais do que um buraco... Um rato não faz sombra

a um elefante.

Referindo ‑se às galinhas, afirmou: Ovelha que berra,

bocado que perde… Ovelhas estúpidas, por onde vai uma

vão todas... Quem ovelha se faz, o lobo o come… O bom pas‑

tor tosquia, não esfola as suas ovelhas... Tola é a ovelha que

ao lobo se confessa… Uma ovelha ruim faz perder um re‑

banho... Quem cabritos vende e cabras não tem, de algum

lugar lhe vem.

Finalmente, declarou: Quem com porcos vive, deita‑

‑se na lama… Quem a raposa tem de enganar, cumpre ‑lhe

muito madrugar... Gato escaldado de água fria tem medo…

Quem foi mordido pela cobra tem medo até da minhoca…

Quem faz o bom cavalo é o cavaleiro… Quem nasceu lagarti‑

xa nunca chega a jacaré… O que é bom para a colmeia é bom

para a abelha… Para a formiga, o orvalho é uma inundação…

Quando o mar bate na rocha quem se trama é o mexilhão…

No baile de cobra o sapo não dança… Não se caçam lebres to‑

cando tambor… Não vendas a pele do urso antes de o matar.

Como todos os animais estavam em silêncio absoluto

e boquiabertos com a sabedoria e clarividência da rainha

das aves, a águia fitou diretamente o sol e, após abrir as suas

imponentes e suntuosas asas, sobrevoou placidamente a

cordilheira ao sabor do vento. Depois, todos regressaram

a casa a refletir naquelas afirmações que eram verdadeiros

provérbios para a vida.

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O ESQUILO CURIOSO

Era uma vez um esquilo que vivia num belo a apra‑

zível bosque. De pelagem avermelhada, cauda longa e

pelos compridos nas orelhas, deslocava ‑se com uma in‑

vulgar agilidade a subir e a descer pelos troncos e copas

das árvores a brincar com os amigos, à procura de avelãs

e nozes para comer e a conversar animadamente com

outros animais.

Como era muito astuto, viajara bastante e conhecia

muito bem a bicharada toda, um dia os animais da flo‑

resta pediram ‑lhe que lhes falasse das suas inúmeras via‑

gens e contactos com a fauna das mais diversas origens.

Surpreendido e orgulhoso com o pedido, aceitou e, após

reunir todos numa clareira da floresta, expôs algumas

curiosidades que descobrira.

Disse que os polvos tinham três corações, que uma asa

de mosquito movia ‑se mil vezes por segundo, que a formi‑

ga levantava cinquenta vezes o seu peso e nunca dormia,

que as moscas domésticas viviam apenas duas semanas,

que a pulga saltava 350 vezes a sua altura, que 24 horas

era a esperança média de vida de uma libelinha e que os

cangurus não conseguiam andar para trás.

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Paulo Costa

Depois, referiu que os gatos tinham

cerca de cem sons vocais, enquanto

que os cães só tinham dez, que todos

os porcos ‑espinhos flutuavam na água,

que os elefantes não conseguiam saltar,

ao contrário de qualquer outro mamífero, e

que era o único animal com quatro joelhos, que o olho

de uma avestruz era maior do que o seu cérebro, que o

tubarão era o único peixe que podia piscar os dois olhos,

que a lula gigante tinha os maiores olhos do mundo e que

o crocodilo não podia pôr a língua para fora.

De seguida, declarou que as borboletas sentiam o

gosto com os pés e não com a língua, que os ratos não

vomitavam, que o material mais resistente criado pela na‑

tureza era a teia de aranha, que quando as cobras nasciam

com duas cabeças, estas lutavam entre si por comida, que

os coalas não bebiam água, que uma girafa podia limpar

as suas orelhas com a língua e não tinha cordas vocais,

que o porco era o único animal que se queimava com o sol

além do Homem, que as formigas se espreguiçavam pela

manhã quando acordavam e que os golf inhos dormiam

com um olho aberto.

Posteriormente, mencionou que os morcegos, que

eram os únicos mamíferos que podiam voar, viravam sem‑

pre para a esquerda quando saiam da caverna, que os

camarões tinham o coração na cabeça, que alguns sapos

podiam puxar os olhos para a garganta para ajudar a em‑

purrar a comida para baixo, que os chimpanzés usavam

ferramentas mais do que qualquer outro animal à exceção

dos humanos, que os elefantes ronronavam como os gatos

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Contos da Arca de Noé

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como meio de comunicação, que os beija ‑flores batiam as

suas asas entre cinquenta e setenta vezes por segundo, que

quando um polvo se irritava, disparava uma corrente de tinta

preta e que as leoas faziam 90% da caça.

Depois, disse que no caso de uma  tarântula  perder

uma perna, outra nascia no mesmo lugar, que se a cabeça

de uma  barata  fosse cortada, ela continuaria viva durante

alguns dias, que as abelhas nunca dormiam, que os cavalos

marinhos formavam pares para o resto da vida e quando nada‑

vam juntos não se largavam, ficando unidos pela cauda, que

as vacas podia dormir em pé, mas só sonhavam deitadas.

Finalmente, referiu que os dentes do castor nunca pa‑

ravam de crescer, que um camaleão cego também conse‑

guia imitar as cores do seu ambiente, que o ser humano

tinha 98,4% do DNA de um chimpanzé, que os pintainhos

podiam comunicar com os irmãos e mãe ainda dentro dos ovos,

que o coração de uma baleia batia uma vez por minuto, que

os  crocodilos  podiam sobreviver três anos sem alimentos

e que o suor dos hipopótamos era cor ‑de ‑rosa.

Enquanto os animais comentavam aquela autêntica

aula de zoologia, a coruja recordou que o esquilo não se refe‑

rira a nenhuma curiosidade da sua espécie. Então, disse que

os esquilos adotavam bebés esquilos abandonados e que

eram responsáveis por milhões de árvores plantadas porque

muitas vezes não se lembravam onde enterravam as semen‑

tes e os frutos. Então, os animais felicitaram a sabedoria

e bondade do esquilo e, sorrindo, agradeceram ‑lhe as dis‑

trações.

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O CHIMPANZÉ DA CASA DA ÁRVORE

Era uma vez um rapaz chamado David e uma menina

de nome Deborah. Eram gémeos e tinham um chimpanzé

que fora oferecido pelo avô Abigail. Eram da mesma idade,

tinham crescido juntos e nada nem ninguém os conse‑

guia separar, tal a cumplicidade e aventuras vividas desde

bebés. O chimpanzé vivia numa casa de madeira que fora

construída pelos pais das crianças em cima de uma árvore

do quintal.

Um dia, estavam os três a brincar na casa da árvore,

quando ouviram um burburinho pouco habitual. O chim‑

panzé saiu logo da casa e subiu pelos galhos da árvore para

conseguir observar o que se passava. Dadas as grandes

dimensões da árvore, a casa era um local privilegiado para

ver tudo nas redondezas.

Os gémeos viram uma multidão que acompanhava um

homem e aclamavam ‑no alegremente com ramos de olivei‑

ra. Não sabiam de quem se tratava, mas o homem, ao passar

por eles, olhou para cima e sorriu, pois achara graça à casa

da árvore e ao chimpanzé a fazer barulho.

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Paulo Costa

Quando tudo acalmou, desceram da

árvore e, como o avô Abigail acabara de

chegar, perguntaram ‑lhe que confusão

era aquela lá fora.

Então, sentando ‑se num banco, pegou no

chimpanzé ao colo, enquanto os gémeos se

sentaram aos seus pés. Depois de uns instantes em si‑

lêncio, disse ‑lhes que eles ainda não conseguiam entender

muita coisa da história do seu povo. Explicou ‑lhes que todos

esperavam há muito tempo que Deus lhes enviasse alguém

que os salvasse e libertasse dos romanos que tinham invadi‑

do cruelmente a sua terra, tal como havia feito com Moisés

no tempo dos avós quando haviam sido escravizados no

Egito.

Confessou ‑lhes, de seguida, quase em segredo para

que ninguém ouvisse, que se falava pela região num jovem

de Nazaré que vivia a religião de uma forma diferente. Ele

contava histórias muito bonitas e fazia coisas muito como‑

ventes que havia até quem pensasse que Deus tinha voltado

a visitar a sua terra.

Davi e Deborah acharam tudo aquilo muito estranho

e misterioso, mas não mais descansaram enquanto não

foram à procura daquele homem. Durante os dias seguin‑

tes, armados em detetives, vasculharam toda a Jerusalém

a investigar o que estava a acontecer. O chimpanzé era uma

ajuda preciosa pois rápida e facilmente subia muros e cons‑

truções e chamava ‑os quando avistava alguma coisa suspei‑

ta. A verdade é que os soldados romanos andavam nervosos

e eram mais numerosos do que nunca.

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Contos da Arca de Noé

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Num dia, ao final da tarde, o chimpanzé espreitou pela

janela de uma casa e viu, finalmente, o tal homem e chamou

logo os gémeos. O David e a Deborah viram o tal nazareno,

a cear com um grupo de amigos e ouviram ‑nos a chamar‑

‑lhe Jesus. No final da refeição, o grupo foi para o jardim das

oliveiras e o chimpanzé e os pequenos aventureiros se‑

guiram ‑nos. O mistério adensou ‑se quando um grupo de sol‑

dados romanos irrompeu por ali e levou o jovem de Nazaré

de forma agressiva.

No dia seguinte, encontraram ‑no na praça de Pretório

a ser julgado por Pôncio Pilatos e perceberam que quase

todos gritavam desejando a sua morte. Não percebiam nada.

Uns dias antes, todos gostavam dele e agora queriam que

morresse. E ficaram com pena dele, pois parecia ser uma

pessoa muito boa e incapaz de fazer mal a uma mosca.

Seguiram ‑se umas horas muito cruéis para Jesus pois

os soldados romanos batiam ‑lhe muito e até o obrigaram a

levar uma cruz às costas até ao monte Calvário. Os gémeos

tiveram que segurar veementemente o chimpanzé pois ele

puxava para atacar os soldados romanos.

Depois, escondidos e assustados, viram Jesus ser cruci‑

ficado junto a dois outros homens. Quase todos tinham ido

embora e à beira da cruz, o Davi, a Deborah e o chimpanzé

olhavam com ternura para Jesus e choravam a sua morte.

No domingo bem cedinho, os dois gémeos foram acor‑

dados pelo chimpanzé que os chamava ruidosa e insistente‑

mente e os conduziu ao local onde haviam sepultado Jesus.

E o inacreditável aconteceu. Ele estava ali vivo e sorridente

e deu um abraço apertado aos três.

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A CEGONHA DA TORRE DA IGREJA

Era uma vez uma aldeia onde nunca acontecia nada.

O tempo e a vida pareciam ter ‑se ausentado dali e, por en‑

tre as ruelas estreitas do velho casario não se viam crianças

e as poucas pessoas que viviam na pequena e pobre povoa‑

ção eram maioritariamente idosas.

Um dia, quando o sol já se escondia no horizonte, as pes‑

soas foram surpreendidas com o ruído estridente do sino da

igreja a tocar a rebate. Todos se dirigiram apressadamente

para a praça da pacata localidade e ninguém conseguia

disfarçar o nervosismo e a ansiedade. Todos conversavam

assustados com o insólito e raro acontecimento, enquanto

olhavam para a torre branca da igreja à espera de descobri‑

rem o que estava a acontecer.

A única coisa estranha que chamava a atenção era o

padre e o sacristão da paróquia de braços no ar a tentar afu‑

gentar uma cegonha que teimava em entrar e permanecer

na torre e o receio generalizado depressa se transformou em

alívio e em grande risada. Na verdade, a sensação era a de

que parecia que a montanha tinha parido um rato, já que,

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Paulo Costa

afinal, o sino não avisava a aldeia de

nenhuma invasão inimiga, tragédia ou

catástrofe.

Alguma coisa anormal devia ter levado a

cegonha à aldeia. Era costume ver cegonhas

em campos abertos, margens de lagos e lagoas,

zonas pantanosas, prados húmidos, várzeas, pastagens

e falésias, mas nunca ninguém ouvira dizer que alguma

tivesse visitado a povoação. Por outro lado, o tempo quente

já tinha ido embora e o habitual é que, sendo um tipo de ave

migratória, já devia estar bem longe daqueles sítios à pro‑

cura de calor.

Numa das suas descidas à calçada da praça, todos se

deram conta de que a cegonha mancava e estava muito

magra. Rapidamente as pessoas ficaram cheias de compai‑

xão da pobre cegonha que não conseguira acompanhar os

amigos e a família na tradicional viagem para longínquas

paragens menos frias naquela época e gritaram ao padre

e ao sacristão para que parassem de molestar a visita.

A verdade é que as pessoas da aldeia depressa ganha‑

ram afeto pela cegonha que parecia meiga e, pelos vistos,

a proximidade dos humanos não a amedrontava. Era uma

fêmea, tinha cerca de um metro de altura e a famosa pluma‑

gem branca, pontas das asas negras e bico, pernas e patas

de coloração avermelhada.

A ave tornou ‑se aos poucos o grande assunto da aldeia

e todos se empenhavam em tentar ajudá ‑la a recuperar a

saúde visivelmente abalada. As pessoas chamaram o vete‑

rinário da vila mais próxima para que lhe tratasse das patas

e lhe administrasse alguma medicação e não lhe faltavam

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Contos da Arca de Noé

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com alimentos que habitualmente as cegonhas apreciavam,

como minhocas, rãs, gafanhotos e outras coisas que tinham

mais à mão. Ela refugiava ‑se tranquilamente dentro da torre

da igreja junto ao sino e, para satisfação de todos, foi melho‑

rando a olhos vistos, caminhando por toda a aldeia e esvoa‑

çando jovialmente pelos céus de toda a região.

Para espanto de todos, passados uns meses, a cegonha,

começou a trazer paus, galhos e folhas para a torre da igre‑

ja. As pessoas sabiam que as cegonhas gostavam de fazer

os seus ninhos em árvores altas, postes de eletricidade e em

suportes rochosos e sentiam ‑se muito felizes e honradas pela

decisão da nova habitante da aldeia de construir ali o seu.

Com os dias a crescer e a ficar mais quentes, outras

cegonhas começaram a ser vislumbradas pelos céus e era

evidente a cumplicidade entre a cegonha da aldeia e uma

outra. As pessoas da aldeia passavam horas a olhar para a

torre onde viam o casal no ninho a bater os bicos e a exibir

animados e românticos movimentos de cabeça. Passadas

umas semanas, o sacristão anunciou jubilosamente a toda

a gente da aldeia que havia cinco ovos no ninho e quando

as pequenas cegonhas nasceram fez ‑se uma grande festa

popular na praça central.

Após muitos anos sem crianças na aldeia, surpreenden‑

temente começaram a nascer vários bebés e a vida tinha re‑

gressado com todo o esplendor. O padre não se cansava de

dizer que as cegonhas representavam bom augúrio e eram

símbolo de fertilidade, longevidade, contemplação e pieda‑

de filial. Na aldeia onde nada acontecia, a alegria tinha vol‑

tado e todos viam as cegonhas da torre da igreja como um

presente dos céus.

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O LOBO E OS ANIMAIS EM VIAS DE EXTINÇÃO

Era uma vez um Lobo Ibérico que decidiu convocar

uma reunião de emergência com representantes de todas as

espécies animais em vias de extinção. As coisas não podiam

continuar assim e se não fossem tomadas medidas drásti‑

cas, o planeta ficaria, mais cedo ou mais tarde, sem fauna e

habitado unicamente por humanos e isso não seria bom

nem justo.

Então, o Lobo Ibérico procurou um espaço para todos

se poderem encontrar e escolheu o sopé de uma montanha

que se debruçava sob uma bela praia de areia branca onde

desaguavam suavemente as águas cristalinas de um rio e,

reunidos em assembleia, todos tomaram a palavra.

O Coala, que habitava essencialmente na Austrália, refe‑

riu que os incêndios florestais e os lenhadores eram o maior

perigo, uma vez que destruíam grandes áreas de habitat e

alimento, e disse que os cães de caça eram também um ris‑

co, tal como os atropelamentos noturnos.

O Leopardo das Neves, que vivia maioritariamente nas

montanhas da China, queixou ‑se da caça de que eram alvo,

sobretudo para aproveitamento das suas peles para confeção

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Paulo Costa

de casacos, dos seus ossos e mesmo de

alguns dos seus órgãos para serem uti‑

lizados pela medicina asiática.

O Bufo Real, que era a maior espécie de

coruja do mundo, lamentou o perigo de

extinção devido à perseguição humana que a

considerava uma espécie destruidora da caça, à escas‑

sez das suas presas e à diminuição de zonas desabitadas.

O Tubarão Branco, que habitava as águas costeiras de

todos os oceanos, disse que em breve poderiam também

desaparecer devido à caça desportiva e assassina, referin‑

do que o interesse de quem os matava eram as barbatanas,

muito apreciadas na alimentação chinesa.

O Lince Ibérico considerou que corriam bastantes riscos

pois eram muito vulneráveis aos efeitos das alterações climá‑

ticas, por causa da destruição do seu habitat pelos incêndios

florestais, da escassez de alimento e dos surtos de doenças

nas espécies que constituíam a sua alimentação.

A Coruja ‑das ‑Torres confessou que a sua extinção se

devia aos atropelamentos automóveis e à intensificação da

agricultura, utilização de pesticidas, armazenamento dos ce‑

reais em silos e subsequente redução de roedores e ao desa‑

parecimento de cavidades para nidificação.

O Golfinho considerou que uma das principais causas

para o risco de extinção era a poluição, em virtude do lixo,

produtos químicos e esgotos que eram despejados para o

mar. E lamentou, ainda, que os pescadores também os cap‑

turassem e matassem, por comerem o “seu” peixe.

O Panda Gigante, que vivia nas florestas de bambu das

regiões montanhosa da China, referiu que a baixa taxa de

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Contos da Arca de Noé

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natalidade, a alta taxa de mortalidade infantil e a destrui‑

ção de seu ambiente natural colocavam ‑nos sob ameaça de

extinção.

A Onça Pintada, que era o maior felino das florestas e

savanas americanas, disse que o desaparecimento da Mata

Atlântica era muito grave e lamentou a perseguição dos ca‑

çadores, pastores e fazendeiros e o comércio ilegal da sua

pele e carne.

O Elefante Africano argumentou que o desaparecimen‑

to dos animais da sua espécie se devia essencialmente à sua

caça pelos humanos da China e da Índia para extração do

marfim.

Finalmente, o Lobo Ibérico referiu que as principais cau‑

sas da sua diminuição populacional eram a perseguição

direta dos caçadores e pastores por se alimentarem dos seus

animais e falou da fragmentação e destruição do seu habitat

e do aumento do número de cães famintos.

Depois de muitos outros animais terrestres, voadores e

marinhos terem discursado, o Lobo Ibérico sugeriu que fos‑

sem falar com os governantes de todo o mundo que, por

acaso ou talvez não, estavam reunidos numa cidade próxima.

A chegada de centenas de animais alarmou toda a gente,

mas os políticos depressa perceberam que eles queriam

apenas falar e abeiraram ‑se.

Em nome de todos, o Lobo Ibérico disse que os ecossis‑

temas mais frágeis estavam a ser vítimas do egoísmo huma‑

no e que o mundo animal estava a entrar em rutura. Estava

na hora de colocar um travão na destruição da natureza e

da vida animal. Depois de um longo e pesado silêncio, os

governantes de todo o mundo deram toda a razão aos

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animais e decidiram mudar radical‑

mente de políticas e atitudes, pois o

Planeta era a casa comum de todos e

era a própria humanidade dos huma‑

nos que estava em vias de extinção. Então,

todos os animais regressaram felizes a casa.

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AS RÃS DO LAGO

Era uma vez um homem que decidira ir acampar na

floresta, junto a um lago. Como se sentia cansado da rotina

do trabalho e do barulho e confusão da cidade onde habita‑

va, optara por passar uns dias mergulhado na natureza para

descansar o corpo e a mente. Estava a precisar de parar para

relaxar e pensar na sua vida e, por isso, o silêncio do bosque

era o ambiente ideal para descontrair e escutar a sua cons‑

ciência.

Montada a tenda, deitou ‑se e sentia ‑se encantado por

estar longe das preocupações mundanas e dos ruídos urba‑

nos habituais que eram verdadeiramente ensurdecedores e,

rapidamente, adormeceu. Caiu nos braços de Morfeu e era

mesmo isso que estava a precisar para retemperar energias

e voltar a sentir ‑se revitalizado.

Passada cerca de meia hora e quando nada o fazia prever,

acordou sobressaltado com um ruído insólito. Estremunhado,

olhou em toda a volta e, surpreendido, não viu nada de anor‑

mal, mas, como o barulho continuava a ecoar, abriu mais os

olhos, prestando maior atenção e viu bem perto de si uma

pequena rã a coaxar muito tranquilamente como se uma

música estivesse a cantar.

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Paulo Costa

O homem sentou ‑se lentamente e

olhou ‑a com um ar de reprovação por

o ter acordado, mas achou graça ao seu

atrevimento e mais pasmado ficou quan‑

do mais umas quantas rãs se lhe juntaram

na cantoria. O homem, que tinha ido para junto

do lago à procura de silêncio, em pouco tempo se deu

conta que a floresta tinha a sua própria vida e ele é que era

o invasor. Então, sorrindo, disse para os seus botões que

durante uns dias ia ter uns vizinhos ruidosos, mas que pode‑

ria ser interessante observá ‑los e aprender com eles.

O homem que sabia que as rãs costumavam viver à beira

de rios, lagos e riachos, decidiu ver com olhos de ver aqueles

pequenos anfíbios de cor esverdeada a quem, na verdade,

nunca prestara atenção alguma.

Tinham a pele lisa, o corpo curto e inflexível e as patas

traseiras bem desenvolvidas e maiores que as da frente. Deu‑

‑se conta que possuíam quatro dedos nas patas dianteiras e

cinco nas traseiras e que isso lhes permitia obter forte impul‑

so e velocidade nos saltos e na natação. A sua alimentação

era constituída essencialmente por insetos e vermes e eram

predadores sedentários que ficavam de tocaia pacientemen‑

te à espera que a presa passasse perto do seu esconderijo.

Então, lançavam a sua língua pegajosa em direção à presa

para a capturar.

Ao longo dos dias, o homem percebeu que os sons emi‑

tidos pelas rãs, deveriam ser dos machos para estabelecer

domínio do território e para atrair as fêmeas para o acasa‑

lamento e aconteciam principalmente no período noturno.

A fecundação era externa e a postura acontecia na água

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Contos da Arca de Noé

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onde a fêmea colocava centenas de ovos protegidos por

gelatina. Os girinos nasciam passados alguns dias e pareciam

peixes por apresentarem uma pequena cauda e, ao longo

do tempo, iam ganhando a forma tradicional das rãs adultas.

O homem estava deslumbrado com as coisas que estava

a descobrir e com as lições de vida que as rãs lhe ensinavam.

Tirava muitas fotografias e escrevia num caderninho por‑

menores curiosos do seu quotidiano e, maravilhado, apesar

de não ter fé, sentiu, pela primeira vez, que tinha que existir

alguma coisa ou alguém muito grande, poderoso e sábio

que estivesse por trás de tudo.

Ao contemplar a beleza, riqueza e harmonia das mais

pequenas e insignificantes coisas da natureza, representa‑

das ali nas rãs, o homem olhou o céu e disse para si mesmo

que a ciência podia tentar explicar tudo e mais alguma coisa,

e fazia ‑o bem, mas talvez fosse Deus a dar sentido a todas

as coisas e nele estivesse a razão de ser, a origem e o fim de

toda a vida.

Os dias previstos pelo homem para estar acampado

tinham chegado ao fim. Despediu ‑se do lago e das rãs com

quem tinha convivido e regressou a casa. Para seu espanto,

quando retirava as suas coisas do carro, uma rã saltou ‑lhe de

forma destemida para o ombro.

O homem, sem saber bem o que fazer, pegou carinho‑

samente na rã e ela coaxou. Era um sinal claro de que aque‑

les dias tinham transformado a sua visão da existência e do

mundo. Com as inúmeras fotografias que tirara e com as

infindáveis notas que tinha escrito, decidiu escrever um li‑

vro sobre rãs. O livro foi um sucesso de vendas e o homem

sentiu ‑se feliz e realizado.

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AS GAIVOTAS DA FALÉSIA

Era uma vez uma jovem gaivota que vivia com os seus

pais numa falésia junto à praia. Tal como todas as demais

gaivotas, aprendera a voar para ir às águas do mar procurar

peixe e também para acompanhar os barcos pesqueiros que

iam àquela região para se aproveitarem da concentração

de peixes nas suas redes ou ficar com os que eram atirados

borda ‑fora.

Um dia, a jovem gaivota disse aos pais que começava

a ficar farta daquela vida monótona e sem graça alguma.

Considerava os seus dias enfadonhos à procura de marisco,

insetos, minhocas e não achava nada bem que as gaivotas

se alimentassem de forma oportunista dos ovos das outras

aves que faziam ninho perto da costa, além de não apreciar o

hábito, cada vez mais frequente, de procurarem comida

entre os animais em decomposição e nas lixeiras da zona.

A jovem gaivota tinha acesas discussões com os pais

e com as outras gaivotas adultas pois pensava que todas

viviam uma existência sem sentido, sem alegria e sem li‑

berdade, limitando ‑se a viver para comer em vez de comer

para viver. Não podia acreditar nem aceitar que aquele belo

e imenso oceano fosse apenas para ser visto de longe e não

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Paulo Costa

se usassem as suas asas para esvoaçar,

planar e viajar à descoberta de novos

mundos e à conquista de novos amigos.

Os pais da jovem gaivota esforçavam ‑se

por convencê ‑la de que não havia nada a

fazer e que aquela era a sua sina. Argumentavam

que as tradições da espécie e os costumes familiares

eram para ser mantidos e que tudo tinha uma razão de ser,

mesmo que ela não entendesse. Já eram umas privilegiadas

em viver num habitat tão encantador e agradável e que mais

importante do que o seu estilo de vida era viverem em grupo

e saberem valorizar o que eram e tinham.

Por mais razões que as gaivotas adultas dessem à jovem,

ninguém a vencia nem nada a convencia e, num fim de tar‑

de em que voavam todas à procura da última pescaria do

dia, ela decidiu afastar ‑se do grupo, deixando todo o bando

muito angustiado e apreensivo.

Os pais da jovem gaivota ficaram nervosos e aflitos com

a inesperada e arriscada decisão da filha e mais inquietos

ficaram ao darem ‑se conta da chegada de uma águia que

pairava nos céus e facilmente a atacaria por estar sozinha.

Para piorar as coisas, era possível observar no horizonte

nuvens escuras que anunciavam tormenta e a experiência

e o bom senso tinham ‑nas ensinado que uma tempestade

no mar exigia que as gaivotas fossem e permanecessem

em terra.

Depois de uma dramática, tensa e chuvosa noite à

procura da jovem gaivota, a mais velha gaivota do bando

encontrou ‑a aos primeiros raios de sol da manhã. Estava

escondida e quase sem vida debaixo de um rochedo. Como

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Contos da Arca de Noé

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era previsível, tinha sido sovada pela águia que haviam vis‑

to no dia anterior e tinha ficado muito debilitada com a im‑

petuosidade da intempérie.

Todas as gaivotas do bando acolheram e cuidaram da

jovem gaivota que, em virtude da irreverência da idade,

se julgara invulnerável. Então, os pais da jovem gaivota

aproveitaram para lhe recordar que as gaivotas ao partilha‑

rem em equipa um objetivo comum, chegavam ao destino

mais facilmente do que se o fizessem sozinhas porque se

apoiavam na confiança e na solidariedade umas das outras.

Existia mais força, segurança e coesão em grupo quando as

gaivotas iam na mesma direção do que quando atuavam

isoladamente.

De seguida, lembraram ‑lhe o exemplo de espírito de

equipa evidenciado pelas aves migratórias ao voar em “V”.

Se a da frente se cansasse era regra ela mudar ‑se para trás

da formação, enquanto a ave imediatamente atrás assumia

a liderança, num perfeito revezamento e entreajuda. Por

outro lado, as aves de trás costumavam grasnar para encora‑

jar as da frente a manterem a velocidade, já que isso ajudava

a que o ritmo de trabalho não fosse quebrado e assim todas

ficavam a ganhar.

Finalmente, disseram ‑lhe que tradicionalmente quan‑

do uma ave era atacada, adoecia ou ficava ferida, algumas

seguiam ‑na para a ajudar e proteger. Elas acompanhavam‑

‑na até à resolução do problema de forma a que se juntasse

ao grupo. Daí a importância da solidariedade que não consis‑

tia tanto em palavras, mas em gestos concretos de amizade

e altruísmo.

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Paulo Costa

A jovem gaivota ficou comovida

com a bondade e sabedoria dos seus

pais e pediu desculpa pela preocupação

que tinha provocado a todas as gaivotas

da falésia. Depois, disse que descobrira que,

afinal, era feliz ali com o seu bando e prometeu

encher de orgulho os seus pais e amigos.

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O ROUXINOL E A ORQUESTRA

Era uma vez um rouxinol que tinha criado uma or‑

questra com os animais da floresta. O seu talento natural

para a música levou ‑o a juntar a bicharada toda das redon‑

dezas para que os dias e as noites de todos fossem bem mais

animados. A orquestra era o orgulho da floresta e vinham

animais de todos os cantos do mundo assistir aos seus

concertos. Viajavam com frequência pois a sua fama de‑

pressa se espalhou por todo o lado.

Havia três naipes de instrumentos, divididos pelos gru‑

pos de cordas, sopro e percussão. O violino, o violoncelo,

o contrabaixo, a harpa e a viola de arco estavam a cargo do

leopardo, do puma, do hipopótamo, do búfalo e do rinoce‑

ronte. O violino, o violoncelo, o contrabaixo, a harpa e a viola

de arco eram os instrumentos tocados pela avestruz, pelo

panda, pelo veado, pela raposa e pelo canguru. O bombo,

os timbales, o gongo, a caixa de rufo, os sinos, o triângulo

e a pandeireta eram executados pelo castor, pela lontra,

pelo guaxinim, pelo texugo, pela suricata, pela hiena e

pelo furão.

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Paulo Costa

Um dia, o ensaio da orquestra estava a

correr muito mal e o maestro rouxinol

já estava com as penas em pé. Os mú‑

sicos distraíam ‑se facilmente, não conse‑

guiam tocar as notas que tinham à frente

e a desafinação era geral. Era verdade que o

ambiente entre os naipes de instrumentos não era pa‑

cífico há algum tempo. Havia rivalidades entre os animais

e passavam a vida a falar mal uns dos outros dentro do pró‑

prio grupo instrumental e, sobretudo, em relação aos outros

grupos da orquestra.

Os animais dos instrumentos de corda julgavam tocar

os instrumentos mais importantes da orquestra e tratavam

com desdém os outros grupos. Os bichos dos instrumentos

de sopro achavam que tocavam instrumentos muito mais

finos e nobres que os demais. A malta dos instrumentos

de percussão pensava tocar os mais potentes e sublimes

instrumentos musicais.

Cada um considerava ‑se melhor e mais importante do

que o outro, mesmo dentro do mesmo naipe de instrumen‑

tos, e as coisas degradaram ‑se ainda mais quando o maestro

rouxinol decidiu introduzir um novo instrumento na orques‑

tra, que era fundamental para interpretar uma música nova

no próximo concerto. Eram as clavas e seriam tocadas por

um caranguejo.

Todos os instrumentos achavam ridículo e até uma

ofensa para a sua dignidade instrumental, que a tão ilustres

instrumentos se juntassem as clavas e logo tocadas por um

minúsculo caranguejo. Como é que dois simples pauzinhos

poderiam ser tão decisivos numa orquestra tão importante?

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Contos da Arca de Noé

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Era o mais barato dos instrumentos musicais e talvez o mais

tradicional e arcaico, além de que não seriam precisos tantos

anos de conservatório para tocar “aquilo”.

O boicote àquele instrumento começou mal se soube

da sua iminente chegada aos ensaios. O naipe dos instru‑

mentos de percussão olhava de lado para o novo intruso,

mas como era um parente da família, preferiam abster ‑

‑se de muitos comentários. Mas os outros grupos sentiam‑

‑se enxovalhados. Alguns deixaram simplesmente de tocar,

outros desafinaram o mais possível e outros desapare‑

ceram.

O maestro rouxinol já não sabia o que fazer. Dera ‑se con‑

ta que havia alguma concorrência e competição entre os

instrumentos, mas isso até era saudável para que puxassem

dos seus galões e dessem o seu melhor. Mas, recusarem ‑

‑se a tocar, desafinarem ao máximo e até irem embora

não estava nos seus planos e era de uma imaturidade con‑

denável.

Como todos os animais se negavam a tocar por causa

das clavas do caranguejo, o maestro rouxinol decidiu que

cada concerto da orquestra passasse a ser feito apenas por

um instrumento alternadamente. Para espanto e dece‑

ção de todos, quase ninguém ia ver os espetáculos dada a

pobreza melódica, enquanto o público lamentava o colapso

da famosa orquestra.

Então, o maestro rouxinol convocou todos os instrumen‑

tistas e deu ‑lhes conta da importância de cada um para a

interpretação das peças musicais. Cada um tinha o seu pa‑

pel e todos se complementavam para conseguir harmonia

e beleza. Todos os animais se entreolharam e, após terem

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Paulo Costa

pedido desculpa uns aos outros e se

terem abraçado demoradamente, vol‑

taram aos ensaios. Em pouco tempo, a

orquestra voltou a ser o que era e tornou‑

‑se a melhor do mundo.

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PAULO COSTA é natural de Ovar e reside em V.N.Gaia.

Licenciado em Teologia, tem, ainda, um Mestrado em

Teologia Sistemática e uma Pós‑Graduação/Especialização

em Educação Sexual. É professor no Colégio de Lamas (Santa

Maria da Feira) há duas décadas, onde leciona as discipli‑

nas de EMRC, Interioridade, Cidadania e Desenvolvimento

e Educação Pessoal e Social. Além da docência, é autor

de vários livros de contos para crianças e adolescentes e

de diversas obras nas áreas da Educação, Ética e Religião.

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