Literatura e Conhecimento

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Literatura e Conhecimento

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  • Literatura e Conhecimento

    SNIA RGIS

    Resumo Na acepo dominante, a meta da cincia continua sendo a de ordenar as experi-

    ncias em sistemas ditos racionais (discursos objetivos) e a da literatura, a de transform-

    las em razes poticas (discursos subjetivos), dando continuidade a uma falsa ruptura

    (surgida no Iluminismo) entre essas duas experincias psquicas. Nossa proposta rever

    essa concepo para devolver literatura o seu lugar de conhecimento.

    Palavras-chave cincia, literatura, conhecimento, linguagem.

    Abstract Under the dominant acception, the goal of science continues to be the ordination

    of experiences within the so called rational systems (objective discourse). On the other

    hand the goal of literature is to transform these experiences into poetical reasons

    (subjective discourse), giving continuity to a false rupture (that came up during

    Enlightment) between these two psychological experiences. Our proposal is to review

    this conception in order to give back to literature its place as a producer of knowledge.

    Key words science, literature, knowledge, language.

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    Se hoje podemos apreciar o vigor descritivo dos textos antigos e na veracidadede suas narrativas porque a literatura tem a generosidade de acolher todos ossaberes, oferecendo-nos o roteiro da constncia humana em sua busca de conheci-mento. As errncias dessa busca, tanto quanto seus acertos, formam a imorredourapaisagem literria de todos os tempos. A qualquer momento podemos apreciar agrandeza e a falncia dos sonhos humanos guardados na memria da literatura.

    Aproximar literatura e conhecimento demanda uma inevitvel reviso concei-tual. Literatura e cincia tm sido consideradas duas representaes irreconciliveisno campo do saber humano. Na acepo mais corrente, a meta da cincia pareceser a de ordenar as experincias em uma lgica racional e a da literatura a detransform-las em razes poticas. Acompanhada mais de perto, no entanto, a ques-to se esvai at perder a validade.

    Para Niehls Bohr (1995), um dos cientistas que se preocupou em entender oslimites desses dois saberes, a diferena entre a cognio propiciada pela cincia e apropiciada pela literatura est baseada em duas consideraes. Primeira, a de quena cincia feito um esforo conjunto e sistemtico para ampliar a experincia edesenvolver conceitos que possibilitem a sua compreenso; segunda, a de que naarte e na literatura esse esforo individual, mais intuitivo, se faz de modo a evocaros sentimentos da situao humana.

    Tais consideraes do ao discurso da cincia a objetividade aparente da siste-matizao calcada na aprovao comunitria. Ao discurso da literatura empres-tado o lugar subjetivo da intuio sentimental e da individualidade. dito que acincia ordena e analisa seu conhecimento e a literatura compe uma seqnciade modos de expresso em que a renncia cada vez mais ampla definio (...) d fantasia uma liberdade maior de manifestao (Bohr, 1995: 101) . Embora apreocupao de Bohr seja a de criar uma unidade de conhecimento, temos a arepetio clssica da configurao de uma falsa ruptura entre expresso e comuni-cao, fazendo esquecer que tanto a compreenso conceitual quanto a sensorial,no final, so experincias psquicas significativas. E no podemos descartar, na pr-tica, que tanto cincia quanto literatura fazem uso da definio conceitual na mes-ma medida em que expressam a imaginao e a fantasia. Temos a comprovaodesse comportamento nas declaraes dos cientistas. O livro de Beveridge (1981)sobre as descobertas cientficas ilustra de modo exemplar a situao. A literatura, importante ressaltar, tambm lida com esforos conjuntos, pois o discurso do escri-tor no nasce de sua solido, mas do discurso de seus precedentes, sendo seu fun-damento comunicar experincias de um modo esttico1.

    A natureza atribuda aos dois saberes no dessemelhante, pelo contrrio, mos-

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    tra caractersticas comuns. A lngua, que a literatura busca comprometer no esfor-o de uma significao aparentemente individual (tomando-se a o estilo como re-ferncia bsica), oferece a mesma resistncia ao pesquisador cientfico. falsa asoluo da aparente neutralidade em que mantido o discurso cientfico. Comonos mostrou Barthes, no se pode, pelo voluntarismo individual, e sem preparo,inserir sua liberdade de escritor na opacidade da lngua, porque atravs delatoda a Histria se mantm, completa e unida maneira de uma Natureza (1974:121). Natureza essa que tambm objeto da literatura.

    O embate se amplia. O enriquecimento que a arte pode nos trazer origina-seem seu poder de nos relembrar harmonias que ficam fora do alcance da anlisesistemtica, continua Bohr (1995:101), tentando uma justificativa. Quando falaem arte, Bohr est tambm se referindo literatura. Devemos concordar com ele. Aliteratura a relembrana constante das harmonias encontradas ou perdidas, por-que a capacitao mais lcita de nossa experincia de conhecimento, sem se sub-meter a nenhum parmetro sistemtico de verdade. Embora esses esforos, o daproduo cientfica e o da produo literria, possam se diferenciar at mesmo nacaracterstica de seus discursos, o cientista, tanto quanto o escritor ou poeta, estoambos referendados pela mesma conveno. A lngua delimita o escritor na formade um corpo fechado, a que deve trapacear de modo salutar, como chega a suge-rir Barthes (1979), assim como delimita o cientista que, necessariamente tem de sedebater com ela na descrio que j vai fundar seu olhar antes mesmo de se preo-cupar em delimitar o quadro conceitual de sua escolha terica.

    A lngua o n que amarra todas as experincias psquicas. E, por estranho queparea, o n de uma certa desavena entre cientistas e poetas. Aperta o enlaceentre as duas experincias de conhecimento e, ao mesmo tempo, entrava a com-preenso da ardilosa separao entre os dois possveis modos de observao domundo. Ambos estreitados e impossibilitados de liberao pelo hbito arraigado,nascido no Renascimento, de privilegiar a observao material e aliar o conheci-mento ao mecanismo da repetio dessa experincia. Essa postura mudou um pou-co depois do nascimento da microfsica, quando a noo de uma realidade inde-pendente do observador surgiu como desprovida de sentido, como nos faz verMoles (1990:18), depois da comprovao de que a realidade pode se apresentartanto como partcula quanto como energia, e que isso no depende do observador,mas vai determinar a sua observao.

    1. A esttica, para Peirce, encarnando o summum bonum, a condutora da tica. Ver Rgis, Snia (2000)A literatura como cincia. http://www.rocket-ibrary.com/stream.asp?keywords=R%E9gis2C+S%F4nia.

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    Se a definio do objeto depende do aparato conceitual do observador, pode-mos aproximar mais a pesquisa cientfica do modo inventivo da literatura e a ob-servao de mundo da literatura do modo conceitual da cincia. Mesmo porque, aexistncia de uma cincia totalmente precisa h muito foi perdida. Moles no foi opioneiro a obrigar a comunidade cientfica a se voltar para as cincias do impreci-so, mas foi o mais convincente. Afinal, os objetos que se situam em nossa vidacotidiana no fazem mais parte da natureza comensurvel, como afirma Moles(1990: 24):

    so impresses dentro do nosso campo de conscincia e todas estas se repetem ou se renovamsegundo as leis que ignoramos por muito tempo mas das quais nenhum de ns inclusive fsicos,astrnomos e bilogos pode recusar a evidncia nem o carter geral

    Sabemos que a experincia psquica no pode ser mensurada fisicamente, masque ela fundamenta toda a prtica cientfica. Mesmo assim, persiste o alerta co-mum de que o observador subjetivo incompatvel com a objetividade da descri-o cientfica (Bohr, 1995: 115) , como se o observador cientfico pudesse se des-pir de sua condio humana de simbolizao no exerccio da lngua e da experin-cia. No podemos nos esquecer que, se existe uma cincia estabelecida, isto , umcorpo de conhecimentos em evoluo, expandindo-se a cada instante, e que cons-titudo por um conjunto de comunicaes e publicaes cientficas, existe tambmuma cincia se configurando em uma construo potica e a partir de uma paisa-gem mental circunstancial. O verdadeiro e o falso no so nunca eternos nestecampo, eles so subjetivos: eles so a iluso, a cada instante, de cada pesquisa-dor, reitera Moles (1990: 34-35).

    Deve ser outra, portanto, a via de nossas inquietaes. Muitos filsofos da cin-cia e cientistas nos tm alertado para uma outra questo. Como o esprito humano ambguo em seus conceitos e como so vagas as suas definies, faz-se necess-rio analisar e estudar a criao intelectual, considerando de modo especial aheurstica ou cincia da descoberta. Foi assim que brotaram, na literatura, muitasconcepes que estimularam descobertas cientficas e foi assim que a cincia nu-triu muitas obras literrias, como a de Borges, por exemplo, a de Julio Verne, de Poee tantos outros. Talvez, a insistncia em privilegiar os modelos cientficos objetivoscomo limites positivos do conhecimento se d pelo fato de a literatura no ter sedeixado comandar pelo conceito de verdade sistemtica, imposta cincia, man-tendo a liberdade de registrar toda e qualquer experincia humana como vlidas.At mesmo a decadncia de uma descoberta ou lei cientfica tem valor de experi-

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    ncia e pode servir de material motivador para a literatura. Um romancista, hoje,pode criar uma personagem que viva ainda nos tempos da teoria heliocntrica, semperder sua atualidade e pertinncia literria.

    Ao perceber as aproximaes do discurso cientfico com o potico entranhan-do as hesitaes do pensamento que busca o objeto, Bachelard faz o elogio doesprito cientfico como necessariamente produto de um inconsciente psicanali-sado (1996: 122). Procurou ele exorcizar os processos do que chamou de pensa-mento inconsciente e decidiu pelo percurso terico que obriga o esprito cientfi-co a criticar a sensao (1996: 127). O mais potico filsofo da cincia compre-endeu que a viso de um objeto num dado momento uma viso determinada pelaconveno, e por isso o discurso cientfico est eivado de figuras de linguagem querepresentam os hbitos da observao e do conhecimento; as imagens que alcan-amos nos limites de nosso conhecimento, amparadas pela capacidade de signifi-cao que a linguagem projeta sobre o mundo que nos cerca so geradas por umpensamento mitopotico (Jakobson, 1974).

    Longe das lgicas tradicionais que herdamos de Aristteles e da demonstraomatemtica, sistemas binrios em que uma proposio s pode ser verdadeira oufalsa e o que no verdadeiro excludo, o discurso cientfico apresenta ao mundoa verdade como sonho, presenteando-nos com o desconhecido; o literrio, o sonhocomo verdade, mostrando-nos a possibilidade da representao criativa da mentehumana. Nos dois movimentos, como nota Rouanet , percebemos que

    a rigor, o pensamento se inscreve no intervalo entre o percebido e o desejado. Pensar pensar esseintervalo, o pathos de um movimento que visa um telos, e que morre quando o telos atingido.

    E esclarece,

    mas como o mundo exterior prope continuamente novas percepes, que coincidem apenasem parte com as imagens mnmicas das antigas percepes, o pensamento est continuamen-te [se] confrontando com a diferena, e com a tentativa de elimin-la, produzindo o conheci-mento (1990: 180-181).

    No se podendo mais separar o sujeito de seu objeto de conhecimento, na atua-lidade, tambm no mais possvel abandonar ao esquecimento as cincias de in-terao fraca com o mundo, pois que isso no indica fragilidade de conhecimen-to, mas diferena no modo de percepo. Tais conhecimentos so produtos do queMoles vai chamar de uma determinada atitude fenomenolgica, aquela que pro-cura acariciar delicadamente os fenmenos para apreender sua autonomia e par-

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    ticularidade (1990: 148). Em verdade so os inmeros filiados da micropsicologia,os que se encarregam dessas vaguezas que, na opinio de Moles,

    o que outrora se chamou introspeco, porque o ser possui uma sensibilidade particularmenteapurada: o caso do escritor e do poeta, que a psicologia triunfalista do incio do sculo remeteuum pouco rpido demais categoria de um saber pr-cientfico, portanto, indigna da razo posi-tiva (1990:320).

    Se os saberes sofreram categorizaes que os confinaram a determinados al-cances da memria, realizando uma espcie fragmentada de verdade, foi pelo exer-ccio consentido de uma poltica dos saberes. Isabelle Stengers levanta o vu demuitas questes relacionadas a essas decises apriorsticas. Percebe ela que a in-veno de um sujeito transcendental, por Kant, possibilita que apenas o filsofofale sobre os fenmenos, categorizando-os. Desde ento, tal poder no questionanada do que interessa filosofia. Stengers identifica a cincia com o saber que dizo que cientfico. E vai mais adiante, afirmando que a cincia faz falar: a fsicafaz falar o que define como objeto, a psicanlise faz falar sujeitos. Para ela, ascontrovrsias cientficas tm como problema a legitimidade desses testemunhos(controvrsias experimentais) e o seu alcance (controvrsias tericas ou concei-tuais) (1990: 84). Mesmo antes do esgaramento do tecido cientfico, sabemosque a literatura faz falar o homem na sua experincia integral, pois ele seu fatoobservado e sua testemunha. E sabemos tambm que a cincia muitas vezes prati-ca a extoro de um testemunho, criando um artefato para tanto, na opresso dedemonstrar uma verdade como lhe tem sido exigido.

    Evidentemente, na produo de conhecimento, que produo de sentido, enorme o poder do conceito, pois ele organiza tanto aquilo de que trata o sabercientfico quanto cria uma hierarquia entre as cincias sob seu domnio. ParaStengers, essa implicao clara: as cincias no se desenvolvem em um contex-to, mas criam seu prprio contexto (1990: 146). Essa uma questo clssica deepistemologia que pe em cena os conceitos; afinal, pergunta ela, o Egito dosegiptlogos no existia antes que os egiptlogos inventassem suas categorias?(1990: 153). O que nos faz crer que a cincia tambm abandonou muitas vezes averdade em prol da verossimilhana.

    O artista e o escritor sabem que seu conhecimento no depende da imediatici-dade, a verdade que representam no tem vida curta, no vai ser superada por ou-tra, pois aspira a eternidade, como observou Picasso:

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    Para mim, no h passado nem futuro em arte. Se uma obra de arte no pode existir sempreno presente, no pode ser levada em considerao. A arte dos gregos, a dos egpcios, a dos grandespintores que viveram em outras pocas, no so artes do passado; talvez estejam mais vivas hojedo que nunca (Apud Boorstin 1995, epgrafe inicial).

    A literatura, por ser o testamento da humanidade, no precisa criar testemu-nhos, mas deix-los falar. Tambm preciso levar em conta que se fez uma grandemodificao nesse aspecto. A cincia j se conformou, depois da Teoria da Relativi-dade, em aceitar que uma variedade de modelos utilizados para a observao dosfenmenos pode comprovar do mesmo modo o objeto final.

    Kant considerava impossvel o objeto da arte, por ser imune objetabilidadeconstruda segundo leis cientficas, por isso dele subtraiu sua importncia, emfavor dos efeitos que a obra de arte produz em quem a contempla (Hbner, 1993:19-20). Foi no Iluminismo que gerou-se a opinio de que s a cincia abre o justoacesso verdade. Para Hbner,

    o otimismo emprico-racionalista relativo cincia funda-se, pelas razes seguintes, numa iluso:1. no h nem fatos cientficos absolutos nem princpios absolutos em que se possam apoiar ascincias; 2. a cincia no proporciona necessariamente uma imagem continuamente melhorada eampliada dos mesmos objetos e do mesmo contedo, e 3. no existe o mnimo motivo para suporque ela se aproxime, no decurso da histria, de qualquer verdade absoluta, isto , isenta de teorias(1993: 127).

    A maioria dos filsofos e historiadores da cincia hoje afirma, como Hbner,que o universo apenas uma idia, pois seu conceito no corresponde a nenhumarealidade em si, sendo uma demonstrao da razo (1993: 174). Isso porque so ossistemas convencionais que determinam e explicam as pesquisas e descobertas dacincia, alm desses sistemas se determinarem reciprocamente. A explicao dossignificados precede sempre a explicao dos fatos; a lngua, como conveno pri-meira, imperiosa. Hbner aponta o texto de Borges que alia a linguagem potica terica sem nenhum preconceito, acostumado a considerar de modo igualitrioos dois discursos, assim como aliar o saber oriental ao ocidental. Nesse particular, bom no esquecermos uma caracterstica muito importante: o Oriente no com-partimentalizou os saberes como ns.

    Foi Feyrabend (1993) quem se indisps contra a determinao de todos os sa-beres serem comensurveis ao da cincia. A cincia, para Feyrabend, deve se livrarda petrificao ideolgica, para no obstaculizar o crescimento de uma sociedadelivre. A cincia deve ser estudada como fenmeno histrico, juntamente com ou-

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    tras histrias de fadas ou como os mitos das sociedades primitivas, como noslembra Chalmers (1993: 185). A cincia desenvolveu-se justamente a partir da des-truio do mito. S quando o logos da filosofia grega comeou a banir do mundoo elemento mtico que a religio demandou uma relao com a transcendnciaabsoluta, e a arte se transformou em aparncia dela, afirma Hbner (1993: 256).

    O ponto conflitante que as teorias, como produtos humanos, esto sujeitas amudanas constantes e o mundo fsico, no. Mesmo com a suposio de que a cin-cia constantemente aumente a verossimilhana de suas teorias, abandonando oconceito sistemtico de verdade, ou que as teorias a respeito da verdade sejammenos restritoras, parece sempre haver o esquecimento fundamental do papel daprpria linguagem no saber, a moldura que obrigatoriamente enquadra nossa visode mundo. Newton jamais poderia ter explicado sua primeira lei do movimentocom uma linguagem pr-newtoniana, assim como Einstein jamais teria explanadoa teoria da relatividade com a linguagem newtoniana.

    O perigo da ideologia da cincia defender dubiamente o conceito de cinciae de verdade dentro de um engano arrogante. O mrito de cada rea do conheci-mento no pode ser julgado pela categoria geral de cincia. O realismo no-re-presentativo uma suposio falha; o mundo fsico assim como independentedo conhecimento que dele temos. Como afirma Chalmers,

    O mundo como , seja l o que for que indivduos ou grupos de indivduos pensem sobre oassunto. (...) Podemos avaliar nossas teorias do ponto de vista da extenso em que descrevem omundo como ele realmente , simplesmente porque no temos acesso ao mundo independente-mente de nossas teorias, de maneira que nos capacite a avaliar a propriedade daquelas descries(1993: 208).

    Todo discurso sempre o reflexo dessa tentativa do pensamento humano decompreender a reallidade, essa imagem insegura e bordejante que a categoriaencobridora da razo vai cristalizar numa escala hierrquica de saberes. A percep-o humana est estruturada e enraizada no inconsciente, aflorando, transfigura-da, como pintura, poema, teorema, equao ou sbita descoberta. Todas as repre-sentaes, na verdade, so espelhamento de formas desconhecidas, quase carica-turas dos originais realmente existentes. Desse modo, o realismo de uma paisagemdescrita por Stendhal decorrente de uma mesma mitopoisis (Jakobson, 1974).A descrio cientfica tributria de um mesmo sistema de verdade que a poti-ca. Na literatura (e nas artes, de modo geral), como j nos mostraram Erwin Panofski,E. H. Gombrich, Pierre Francastel ou Arheim, as representaes correspondem smudanas associativas das coordenadas enraizadas no inconsciente, o que no

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    acontece no que considerado cincia, com seu conceito encobridor de razo everdade.

    A tcnica e a linguagem excessivamente cifrada da cincia atual fez com queesta perdesse seu lugar na estrutura do conhecimento, que no fosse inscrita comtanta rapidez no inconsciente coletivo, passando despercebida de seu contexto, aocontrrio da literatura, que passou a interagir com o leitor. Na mente popular, asdescobertas cientficas esto descontextualizadas, parecem interferncias de repre-sentao artstica no mundo (como a chegada do homem lua, o ratinho com umaorelha humana implantada nas costas ou a ovelha Dolly).

    Se os cientistas, como afirma Vierne, enfrentaram o desafio de expor a mu-dana na viso do mundo que as teorias mais recentes introduziram na conscin-cia e no inconsciente do homem foi porque, em primeiro lugar, a teoria cientficavem se constituindo de acordo com uma lgica muito diferente, isto , a lgica daterceira via, que tambm a do imaginrio (Centre, 1994:91). Na verdade, comoacredita a maioria dos filsofos da cincia, e at mesmo dos cientistas, cincia eimaginrio andam juntos. E, se o mito de caro funda a aviao moderna, o de dipo,narrado por Sfocles e reinterpretado por Freud, fundou a psicanlise. Do mesmomodo, os desenhos pr-figuradores de Leonardo vo dar asas imaginao tcnicapara a fabricao das mquinas do desejo humano de se libertar dos grilhes fsi-cos, desdobrando-se em helicpteros, escafandros e submarinos. Assim tambm,Jlio Verne vai organizar as conquistas tcnicas de seu tempo, ainda no rascunho; ePoe vai descrever o sonho de sua cosmogonia para facilitar as novas descobertasastronmicas. Isso porque tanto a literatura (e a arte) quanto a cincia tm comoestofo os antigos e novos sonhos da humanidade, como o de imortalidade, ao fixaro instante fugidio. Tanto a cincia quanto a literatura acabam fabricando mente-fatos (Posner, 1989) que desdobram o desejo humano de conhecimento. E, se mui-tas dessas iluses so ardis,

    se a cincia, dando corpo ao ilusrio, criando alucinaes verdadeiras conquanto no o sejam,segundo a definio de Taine, e ampliando as percepes, acaba por multiplicar ao nosso redor asarmadilhas, compete arte neutralizar essas armadilhas, reduplicando-as (Milnes, Centre, 1994:49).

    A literatura, registrando os sonhos realizados, os no realizados e os por reali-zar da humanidade permite a reviso da histria e da cincia, pois a literatura umsaber em expanso e lugar de entrecruzamento de todos os saberes. J que A cin-cia grosseira, a vida sutil, e para corrigir essa distncia que a literatura nosimporta, como ousou declarar Barthes (1979).

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    SONIA RGIS professora da PUC-SP, onde doutorou-se em

    Comunicao e Semitica com a tese Literatura como cincia, em

    1996. Na mesma instituio defendeu uma dissertao de mestra-

    do sobre a potica experimental de Gertrude Stein (A iconista e a

    rosa), em 1985. Fez um mestrado em Literatura Brasileira, na PUC-

    RJ, e graduou-se na PUC-PR pelas Faculdades de Jornalismo, Le-

    tras e Filosofia. Traduziu e colaborou com vrios jornais exercendo

    a crtica literria. Alm do trabalho acadmico publicou O brontos-

    sauro azul ou aritmtica progressiva (romance) e Efeitos do

    (in)significante (poesia).