lírica poesia são tomé e príncipe francisco josé tenreiro alda do espírito santo.pdf

12
119 Itinerários, Araraquara, n. 35, p.119-130, jul./dez. 2012 VERSOS PÓS-COLONIAIS: MANIFESTAÇÕES POÉTICAS EM SÃO TOMÉ E PRÍNCIPE Anselmo Peres ALÓS * RESUMO: Este artigo pretende analisar alguns aspectos da poesia de São Tomé e Príncipe, particularmente os trabalhos de Francisco José Tenreiro, Alda do Espírito Santo e Maria Manuela Margarido, vozes fundacionais no que diz respeito à literatura desse país. Realiza-se aqui uma reflexão sobre a questão da memória e do imaginário pós-colonial no campo da escritura poética. Busca-se compreender de que maneira a poesia pode colaborar para uma descolonização do imaginário nas literaturas das ex- colônias portuguesas, dando particular atenção ao caso de São Tomé e Príncipe. Os aspectos dialógicos entre margens e centro no que diz respeito à poesia africana escrita em português são também observados em suas relações com as contingências do mundo pós-colonial. PALAVRAS-CHAVE: São Tomé e Príncipe. Literatura. Poéticas fundacionais. Pós- colonialismo. Lusofonia. O despontar das literaturas africanas de expressão portuguesa não pode ser devidamente compreendido sem que se faça menção ao processo histórico que possibilitou a sua origem: a expansão do Império lusitano mediante as grandes navegações que tiverem início no século XIV, as quais se iniciaram com a rota pela África, e depois se estenderam rumo a Ásia, Oceania e Américas. Em nome da expansão da fé cristã em um mundo dominado pela barbárie, os portugueses exerceram uma das maiores empreitadas de imperialismo e dominação cultural da história ocidental. Mesmo na epopeia camoniana, é possível vislumbrar como a cultura foi colocada a serviço da justificação da missão civilizadora do colonialismo lusitano, de maneira metafórica, como no episódio do Gigante Adamastor, descrito no Canto V, no qual os portugueses vencem o gigante em razão de uma torção que fazem na própria retórica de Adamastor. Paradoxalmente, será por meio da retórica do lirismo que se textualizam as primeiras manifestações do veio nacionalista nas ex-colônias portuguesas. De acordo com Manuel Ferreira (1977, p.8), a chegada dos portugueses à Foz do Zaire ocorre em 1842, e a fundação do primeiro vilarejo em África se dá em * UFSM – Universidade Federal de Santa Maria. Centro de Artes e Letras – Departamento de Letras Vernáculas. Santa Maria – RS – Brasil. 97105-900 – [email protected]

Transcript of lírica poesia são tomé e príncipe francisco josé tenreiro alda do espírito santo.pdf

  • 119Itinerrios, Araraquara, n. 35, p.119-130, jul./dez. 2012

    VERSOS PS-COLONIAIS: MANIFESTAES POTICAS EM SO TOM E PRNCIPE

    Anselmo Peres ALS*

    RESUMO: Este artigo pretende analisar alguns aspectos da poesia de So Tom e Prncipe, particularmente os trabalhos de Francisco Jos Tenreiro, Alda do Esprito Santo e Maria Manuela Margarido, vozes fundacionais no que diz respeito literatura desse pas. Realiza-se aqui uma reflexo sobre a questo da memria e do imaginrio ps-colonial no campo da escritura potica. Busca-se compreender de que maneira a poesia pode colaborar para uma descolonizao do imaginrio nas literaturas das ex-colnias portuguesas, dando particular ateno ao caso de So Tom e Prncipe. Os aspectos dialgicos entre margens e centro no que diz respeito poesia africana escrita em portugus so tambm observados em suas relaes com as contingncias do mundo ps-colonial.

    PALAVRAS-CHAVE: So Tom e Prncipe. Literatura. Poticas fundacionais. Ps-colonialismo. Lusofonia.

    O despontar das literaturas africanas de expresso portuguesa no pode ser devidamente compreendido sem que se faa meno ao processo histrico que possibilitou a sua origem: a expanso do Imprio lusitano mediante as grandes navegaes que tiverem incio no sculo XIV, as quais se iniciaram com a rota pela frica, e depois se estenderam rumo a sia, Oceania e Amricas. Em nome da expanso da f crist em um mundo dominado pela barbrie, os portugueses exerceram uma das maiores empreitadas de imperialismo e dominao cultural da histria ocidental. Mesmo na epopeia camoniana, possvel vislumbrar como a cultura foi colocada a servio da justificao da misso civilizadora do colonialismo lusitano, de maneira metafrica, como no episdio do Gigante Adamastor, descrito no Canto V, no qual os portugueses vencem o gigante em razo de uma toro que fazem na prpria retrica de Adamastor. Paradoxalmente, ser por meio da retrica do lirismo que se textualizam as primeiras manifestaes do veio nacionalista nas ex-colnias portuguesas.

    De acordo com Manuel Ferreira (1977, p.8), a chegada dos portugueses Foz do Zaire ocorre em 1842, e a fundao do primeiro vilarejo em frica se d em

    * UFSM Universidade Federal de Santa Maria. Centro de Artes e Letras Departamento de Letras Vernculas. Santa Maria RS Brasil. 97105-900 [email protected]

  • 120 Itinerrios, Araraquara, n. 35, p.119-130, jul./dez. 2012

    Anselmo Peres Als

    1575: So Paulo de Assuno de Loanda, hoje Luanda, capital de Angola. Todavia, os navegadores portugueses j haviam abarcado em Cabo Verde em 1460, e em So Tom e Prncipe em 1470. A chegada a Moambique ocorre apenas mais de vinte anos depois, em 1498. Entretanto, a produo literria impressa inicia-se muito mais tarde, apenas nos anos 40 do sculo XIX, com a instalao do primeiro prelo. As primeiras mquinas de imprensa foram instaladas nas ex-colnias portuguesas nas seguintes datas: em Cabo Verde, no ano de 1842; em Angola, no ano de 1845; em Moambique, no ano de 1854; em So Tom e Prncipe, no ano de 1857; e em Guin-Bissau, no ano de 1879 (FERREIRA, 1977, p.94). Entre as primeiras obras impressas em frica em lngua portuguesa, cabe registrar o livro Espontaneidades da minha alma (1849), do angolano Jos da Silva Maia Ferreira, considerado o primeiro livro impresso na frica lusfona.1

    Manuel Ferreira distingue dois momentos precisos da produo literria nas ex-colnias portuguesas: a literatura colonial e a literatura africana de expresso portuguesa. No primeiro grupo, estariam includas as obras que, mesmo tendo sido escritas por africanos e publicadas em frica, no refletem o espao cultural africano. Pelo contrrio, essas obras, marcadas por um etnocentrismo de matriz europeia, reiteram os mitos da supremacia da raa branca e da inferioridade da raa negra, abonando a misso civilizadora dos portugueses em frica:

    A literatura africana chama a si mais de um sculo de existncia. Este longo perodo de mais de um sculo de actividade literria est, porm, contido em duas grandes linhas: a literatura colonial e a literatura africana de expresso portuguesa. A primeira, a literatura colonial, define-se essencialmente pelo facto de o centro do universo narrativo ou potico se vincular ao homem europeu e no ao homem africano. No contexto da literatura colonial, por dcadas exaltada, o homem negro aparece como que por acidente, por vezes visto paternalisticamente e, quando tal acontece, j um avano, porque a norma a sua animalizao ou coisificao. O branco elevado categoria de heri mtico, o desbravador das terras inspitas, o portador de uma cultura superior. (FERREIRA, 1977, p.10, grifo do autor).

    A chamada literatura colonial, relativa s naes africanas de lngua oficial portuguesa, no deve ser considerada como expresso literria nacional legtima, a no ser na forma de antecedente histrico do fenmeno literrio em Moambique, Angola, Cabo Verde, So Tom e Prncipe e Guin-Bissau, que nessa poca ainda eram territrios ultramarinos sob a jurisdio de Portugal. Essas manifestaes literrias, escritas majoritariamente por portugueses, brancos ou mestios, no instauram um imaginrio africano local, mas sim um imaginrio portugus com relao aos territrios sob o jugo colonial: esta literatura, nascida de uma

    1 Da primeira edio deste livro, so conhecidos dois exemplares: um est na New York Public Library; o outro, na Biblioteca da Companhia de Diamantes de Angola.

  • 121Itinerrios, Araraquara, n. 35, p.119-130, jul./dez. 2012

    Versos ps-coloniais: manifestaes poticas em So Tom e Prncipe

    experincia planetria, em uma poca em que o mundo cristo reconhecia o direito dominao, depredao e at barbrie (a cruz numa mo, e a espada noutra) nada tem a ver com a literatura africana de expresso portuguesa (FERREIRA, 1977, p.8). Mais apropriado, talvez, seria incluir essas produes no rol da literatura de viagem dentro do sistema literrio portugus.

    A ttulo de exemplo, pode-se elencar, entre tais obras, Os sertes dfrica, de Alfredo de Sarmento (1880); Nova largada, de Augusto Casimiro (1929); Almas negras, de Joo de Lemos (1937); Ana a Calunga, de Hiplito Raposo (1926); A primeira viagem, de Maria da Graa Freire (1952); Sangue cuanhama, de Antnio Pires (1949); e Roteiro de frica, de Jos Osrio de Oliveira (1936). De acordo com Manuel Ferreira, entretanto, tais obras no so dignas da ateno da crtica literria:

    Hoje, no h lugar para dvidas: muitas dessas obras esto condenadas ao esquecimento, salvando-se aquelas que, apesar de prejudicadas pelas contingncias de uma poca e de uma mentalidade coloniais, evidenciam contudo um certo esforo humanstico e uma real qualidade esttica. Mas, no conjunto, a histria vai ser de uma severidade implacvel e arrumar a quase totalidade desta literatura no discurso da aco colonizadora ou no nacionalismo imperial, saudosista e deslumbrado. (FERREIRA, 1977, p.12-13).

    Ao contrrio dos temas abordados pela literatura colonial, as primeiras manifestaes da poesia de So Tom e Prncipe so fortemente marcadas por uma tendncia de resistncia ao jugo colonial portugus. Embora a literatura de So Tom e Prncipe seja uma das menos estudadas no conjunto das literaturas africanas lusfonas, cabe reservar um lugar de destaque a Francisco Jos Tenreiro, um dos primeiros poetas do mundo lusfono africano a tentar recuperar a voz e a cultura autctones dos africanos em seus versos, ainda que, para tanto, utilizasse a lngua do colonizador europeu.

    A Repblica de So Tom e Prncipe est localizada situada na costa oeste africana, no Golfo da Guin, com uma rea de aproximadamente 1.001 quilmetros quadrados e uma populao de cerca de 74 mil habitantes. Trata-se de uma jovem e pequena nao (independente desde 1975) cujo territrio constitudo por duas ilhas vulcnicas (So Tom e Prncipe), por dois ilhus (denominados Ilhu das Rocas e Ilhu das Cabras, e ainda por dois penedos desabitados, as Pedras Tinhosas (Tinhosa Grande e Tinhosa Pequena). Trata-se de um pequeno pas agrrio, produtor de banana, coco, azeite de dend e cacau. A pesca tambm sempre foi uma atividade de grande importncia. Tal como ocorre na literatura cabo-verdiana, a condio insular uma das determinantes que recorre a obra de muitos dos poetas desse arquiplago.

    A primeira obra literria publicada em portugus da qual se tem conhecimento, e que est relacionada com So Tom e Prncipe, o livro de poemas Equatoriaes (1896), do poeta portugus Antnio Almada Negreiros (1868-1939), que ali viveu

  • 122 Itinerrios, Araraquara, n. 35, p.119-130, jul./dez. 2012

    Anselmo Peres Als

    muitos anos. De acordo com Manuel Ferreira, os primeiros indcios de produo potica de veio nacionalista esto associados, nas naes africanas de expresso portuguesa, com os seguintes marcos fundadores, embora j houvesse, na maior parte dessas naes, a presena da literatura colonial:

    Ora, os fundamentos irrecusveis de uma literatura africana de expresso portuguesa vo definir-se, com preciso, deste modo: a) em Cabo Verde a partir do revista Claridade (19361960); b) em S. Tom e Prncipe com o livro de poemas Ilha de nome santo (1943), de Francisco Jos Tenreiro; c) em Angola com a revista Mensagem (19511952); d) em Moambique com a revista Msaho (1952); e) na Guin-Bissau com a antologia Mantenhas para quem luta! (1977). (FERREIRA, 1977, p.32).

    O poeta so-tomense Francisco Jos Tenreiro, ademais de ser um marco na literatura de seu pas, tambm credenciado como o primeiro poeta africano de lngua portuguesa a refletir, em sua produo literria, elementos advindos do movimento da negritude. Francisco Jos Tenreiro nasceu na ilha de So Tom, de onde partiu para estudar em Lisboa. Tenreiro chega em Lisboa em um momento histrico no qual os ecos da ngritude, advindos dos Estados Unidos e da Frana, comeavam a influenciar a produo potica dos emigrantes vindos das colnias africanas. Entre suas obras, destacam-se Ilha do nome santo (1942); Obra potica, que inclui os poemas de Ilha do nome santo (1967); e o livro A ilha de So Tom: estudo geogrfico (1961). A Obra potica foi reeditada, em 1982, com um novo ttulo: Corao em frica. Em parceria com o angolano Mrio Pinto de Andrade, publica, em Lisboa, o volume Poesia negra de expresso portuguesa (1953).

    Mrio Pinto de Andrade descreve Tenreiro como um dos representantes da primeira fase do que chama de a moderna poesia africana de escrita portuguesa, na qual se vislumbra a presena de ecos da negritude e do pan-africanismo (ANDRADE, 1975, p.7). No contexto do projeto potico de Francisco Jos Tenreiro, a negritude no se define como uma busca por uma suposta identidade nacional so-tomense, mas pela busca de uma esttica transnacional de matriz africana cuja principal caracterstica a busca pela ruptura com os temas e modelos poticos consagrados pela esttica eurocntrica.

    A presena da esttica da negritude na poesia de Tenreiro o coloca, de partida, em um complexo jogo de relaes textuais, uma vez que a potica da negritude teve uma gnese disseminada pela Amrica, pela Europa e pela frica. Cite-se, a ttulo de ilustrao, as reflexes desenvolvidas por Lopold Sedar Senghor (Senegal), por Emilio Ballagas e por Nicols Guilln (Cuba), por Aim Cesaire (Martinica) e por Lon Damas (Guiana Francesa), apenas para ficar em uns poucos exemplos. Entre escritores e pensadores de origens to diversas, possvel encontrar, como denominador comum, a reivindicao pela legitimao da voz dos africanos

  • 123Itinerrios, Araraquara, n. 35, p.119-130, jul./dez. 2012

    Versos ps-coloniais: manifestaes poticas em So Tom e Prncipe

    diaspricos que se propem a realizar suas prprias leituras e interpretaes do mundo, utilizando-se para tanto de procedimentos epistemolgicos no reconhecidos pelos esquemas de compreenso socioculturais etnocntricos. A revalorizao do negro pode ser mapeada em razo dos consequentes ideologemas projetados nos textos ficcionais de Tenreiro. Dito de outra forma, o que importa aqui no a enunciao de um discurso sobre o negro, mas de um discurso que seja produzido pelo sujeito social negro. Nessa busca esttica, ganha espao a busca de temas da frica ancestral, uma espcie de terra prometida para os intelectuais afrodescendentes da dispora negra.

    Essa busca temtica no subsume, entretanto, toda a esttica da negritude. Tambm constante uma espcie de arqueologia na qual so denunciados os abusos, as atrocidades e as arbitrariedades sofridos pelos negros em razo dos regimes escravocratas colonialistas:

    O sol golpeia as costas do negroe rios de suor ficam correndo.Ardor!O machim golpeia o paue rios de seiva escorrendo.Ardor!Os olhos do brancocomo chicotesferem o mato que est gritando [...]. (TENREIRO, 1982, p.86).

    Pode-se notar a denncia dos trabalhos forados como forte caracterstica a denunciar a potica de Tenreiro como uma potica de denncia e resistncia. Esse elemento, quando analisado em conjunto com a eleio do negro como personagem a ser liricamente construdo em seu discurso potico, inscreve a lrica de Tenreiro em um conjunto amplo de textos de resistncia anticolonialista que comea a ganhar espao nas pginas literrias das dcadas de 1940 e 1950 em todo o mundo luso-africano. H tambm, nos poemas de Tenreiro, a presena de um sorriso de escrnio a funcionar como resistncia aos esteretipos raciais:

    Ah!Mas eu no me danei...e muito calminhoarrenpanhei o meu cabelo para trsfiz saltar fumo do meu cigarrocantei do altoa minha gargalhada livreque encheu o branco de calor!...

  • 124 Itinerrios, Araraquara, n. 35, p.119-130, jul./dez. 2012

    Anselmo Peres Als

    Mestio!Quando amo a brancasou branco...Quando amo a negrasou negro.Pois [...]. (TENREIRO, 1982, p.61).

    O jogo com os esteretipos raciais na hierarquia social tambm retratado na enunciao de uma persona mulata assumida pelo poeta. Em vez de subsumir sua identidade a um lugar proscrito, o discurso potico valoriza o sujeito mulato, hbrido por excelncia, colocando-o em um entrelugar cultural estratgico que permite, na vida cotidiana, tirar proveito dessa condio mediante um facilitado trnsito entre dois espaos sociais marcados pela diferena tnico-racial. Tal como sugere Homi Bhabha (1998, p.198-207) em O local da cultura, o entrelugar construdo pela enunciao potica de Tenreiro dialoga concomitantemente com o mbito do pedaggico, que traz ecos das tradies estabelecidas, e do performativo, instncia na qual a linguagem proferida busca interferir no campo das produes simblico-culturais, instaurando uma temporalidade ambivalente. O u t r o nome importante da poesia so-tomense o de Alda do Esprito Santo. Nasceu em 1926, e estudou em Portugal, tendo posteriormente regressado a So Tom, onde trabalhou como professora primria. Posteriormente, foi ministra da Cultura e da Informao, aps a independncia de So Tom e Prncipe, chegando at mesmo a ocupar a presidncia da Assembleia Nacional. Faleceu em 2010. Publicou dois volumes de poesias: O jogral das ilhas (1976) e nosso o solo sagrado da Terra (1978). Ela tambm autora do Hino Nacional de So Tom e Prncipe, intitulado Independncia total, e musicado pelo compositor brasileiro Heitor Villa-Lobos.

    Uma das constantes na busca potica de Alda do Esprito Santo so as imagens insulares e os elementos marinhos, a partir dos quais a poeta pinta cenas do cotidiano das mulheres so-tomenses, como no trecho a seguir:

    Canoa frgil, beira da praia,

    panos presos na cintura,uma vela a flutuar...Caleima, mar em foracanoa flutuando por sobre as procelas das guas,

    l vai o barquinho da fome.

    Rostos duros de angolares

  • 125Itinerrios, Araraquara, n. 35, p.119-130, jul./dez. 2012

    Versos ps-coloniais: manifestaes poticas em So Tom e Prncipe

    na luta com o gandu

    por sobre a procela das ondasremando, remandono mar dos tubares pla fome de cada dia.

    L longe, na praia, na orla dos coqueiros,

    quissandas em fila, abrigando cubatas,izaquente cozido em panela de barro.(ESPRITO SANTO, 1978, p.49-50).

    A imagem de uma feminilidade telrica, remetendo ancestralidade das origens africanas, tambm pode ser vislumbrada na obra de Alda do Esprito Santo. Ao contrrio do imaginrio europeu, que v o arqutipo da Me-frica de maneira abstrata e despersonalizada, por vezes quase que simplesmente conceitual, essa feminilidade emerge na voz da poeta a partir de imagens de mulheres concretas, como a das mams na lida com a venda de peixe, buscando em um comrcio precrio a luta para combater a fome prpria fome, ao mesmo tempo que, ironicamente, colaboram para saciar a fome alheia:

    Mam caminhando pra venda do peixe e tu, na canoa das guas marinhas Ai peixe tardinha na minha baa mam minha serena na venda do peixe pela luta da fome da gente pequena. (ESPRITO SANTO, 1978, p.48-49).

    O universo lrico construdo pela autora caracteriza-se tambm pela tnica na defesa dos desvalidos de seu pas, dando especial ateno pelas crianas e pelas mulheres. Ganham espao nesses versos as mes-pretas, subjugadas pelos patres eternamente a colher o milho e a lidar nas plantaes, sem se livrarem do rduo trabalho nem mesmo durante a gestao, dividindo as parcas foras entre o peso do ventre dilatado e o cabo das enxadas. Nesse contexto, o lirismo de Alda do Esprito Santo projeta performativamente, por meio da enunciao da crueza das realidades do seu tempo, um futuro de afeto e de esperanas projetadas na tematizao da infncia:

  • 126 Itinerrios, Araraquara, n. 35, p.119-130, jul./dez. 2012

    Anselmo Peres Als

    Criana minha Gerada de milhares De ventres Das razes do mundo Eu queria escrever para ti.

    [...]

    Eu prosseguirei No meu sonho De tentar Construir para ti Uma histria bela. (ESPRITO SANTO, 1978, p.42).

    Maria Manuela Margarido, natural de Prncipe (1925-2007), outra das vozes femininas a destacar-se na lrica de resistncia a denunciar os abusos colonialistas no arquiplago africano. Publicou apenas um volume de poesias, intitulado Alto como o silncio (MARGARIDO, 1957), embora tenha publicados poemas esparsos em antologias, das quais cabe destacar a Antologia de poesia da Casa dos Estudantes do Imprio. Os vnculos estticos e ideolgicos de sua potica alinham-se aos de outros autores, tais como Francisco Jos Tenreiro, em busca da constituio de uma identidade coletiva de veio anticolonialista e nacionalista. Em seus escritos, denuncia a explorao colonial, advinda particularmente da explorao pela metrpole portuguesa e pelo sistema de monoculturas cafeeiras e cacaueiras praticado nas ilhas:

    MEMRIA DA ILHA DO PRNCIPE

    Me, tu pegavas charroconas guas das ribeirasa caminho da praia.Teus cabelos eram lemba-lembasagora distantes e saudosas,mas teu rosto escurodesce sobre mim.Teu rosto, liliceairrompendo entre o cacau,perfumando com a sua sombrao instante em que te descubrono fundo das bocas graves.

  • 127Itinerrios, Araraquara, n. 35, p.119-130, jul./dez. 2012

    Versos ps-coloniais: manifestaes poticas em So Tom e Prncipe

    Tua mo cor-de-laranjaoscila no cu de zincoe fixa a saudadecom uns grandes olhos taciturnos.

    (No sonho do Pico as mangas percorrem a rbita lentadas oraes dos ocs e todas as feiticeiras desertama caminho do mal, entre a doura das palmas).

    Na varanda de marapioos veios da madeira guardama marca dos teus ps levese lentos e suaves e prximos.E ambas nos lanamosnas grandes flores de banoque crescem na gua clidadas vozes clarividentesenchendo a nossa fricacom sua mgica profecia. (MARGARIDO, 1957, p.16).

    O eu-lrico que se projeta nos versos de Manuela Margarido enceta um olhar sobre mundo que se constitui por meio da enunciao de uma fratura no tempo e no espao, conjugando o registro de uma viso intimista da realidade exterior e a busca de elementos da natureza. Tais elementos, antes de se transformarem em matria potica para a construo de um projeto literrio de carter afirmativamente nacionalista, so submetidos a um processo semitico que os utiliza como material de constituio de uma persona individual. Essa busca foi assumida pela prpria escritora, em depoimento a Michel Laban (2002, p.119, grifo do autor):

    Interrogo-me muitas vezes se sou uma escritora portuguesa ou africana. Acho que sou africana, porque os problemas do meu pas e de todo o continente africano me interessam enormemente, mas tambm no sou indiferente ao que se passa em Portugal. Vivi l muitos anos, passei grande parte da minha infncia e a minha juventude em colgios portugueses e religiosos. De maneira que eu mesma me interrogo: o que que eu sou?

    Os motivos e temas de Manuela Margarido incluem o mundo do trabalho nas roas de cacau e caf, bem como referncias a uma figura feminina, de ndole materna, que pode ser lida metonimicamente como o coletivo das mulheres trabalhadoras, ou metaforicamente, assinalando a enunciao potica de uma me arquetpica e telrica, referncia ancestral aos mitos da africanidade. Tais mitos

  • 128 Itinerrios, Araraquara, n. 35, p.119-130, jul./dez. 2012

    Anselmo Peres Als

    so de fundamental importncia no apenas na potica de Margarido, mas, de maneira estendida, se encontram presentes nas primeiras insurreies poticas de grande parte dos escritores fundadores das literaturas nacionais africanas de lngua portuguesa. A mesma recorrncia, sintomtica, pode ser encontrada, por exemplo, nos poemas da moambicana Nomia de Sousa.2

    Em sua busca pela criao de um espao potico, possvel vislumbrar tambm a recorrncia ao tema da insularidade, presente j no prprio ttulo do poema. Todavia, a insularidade surge com mais fora no poema Socop, no qual se alinham as referncias insularidade juntamente com referncias explcitas flora de Prncipe (verdes longos da minha ilha), aos rduos trabalhos nas roas (copra, caf ou cacau tanto faz). Ao final do poema, anuncia-se o desejo pela mudana social, manifesto pela oposio s arbitrariedades do colonialismo (at explodir / na nsia pela liberdade):

    SOCOP

    Os verdes longos da minha ilhaso agora a sombra do oc,nvoa da vida, nos dorsos dobrados sob a carga(copra, caf ou cacau tanto faz).Ouo os passos no ritmocalculado do socop,os ps-razes-da terraenquanto a voz do coroinsiste na sua queixa(queixa ou protesto tanto faz).Montona se arrastaat explodirna alta nsia de liberdade. (ACEI, 1994, p.322).

    A partir da leitura dessas trs vozes da lrica de So Tom e Prncipe, podem-se delinear algumas observaes pertinentes. A primeira delas diz respeito ao fato de que o dilogo das primeiras manifestaes literrias do arquiplago esteve diretamente ligado ao desejo de construo de uma ptria livre do colonialismo. Ainda que relativamente isolados das outras colnias portuguesas em frica, os interesses poticos de Tenreiro, Esprito Santo e Margarido estavam sintonizados com as preocupaes de outros intelectuais africanos de seu tempo. O dilogo, ainda que no favorecido pela geografia, tornou-se possvel graas ao deslocamento 2 A obra completa de Nomia de Sousa foi publicada postumamente pela Associao dos Escritores Moambicanos, sob o ttulo Sangue negro, com organizao e fixao do texto realizadas por Nelson Sate, Francisco Noa e Ftima Mendona, em 2001.

  • 129Itinerrios, Araraquara, n. 35, p.119-130, jul./dez. 2012

    Versos ps-coloniais: manifestaes poticas em So Tom e Prncipe

    desses escritores para Portugal, onde puderam travar contato com outros intelectuais da dispora africana, de forma a incorporar em sua poesia um lirismo marcado pela busca da liberdade, autonomia e independncia de sua nao.

    ALS, A. P. Post-colonial lyrics: poetic expressions in Sao Tome and Principe. Itinerrios, Araraquara, n.35, p.119-130 , Jul./Dez., 2012.

    ABSTRACT: This paper aims to analyze some aspects of So Tom and Prncipes poetry, particularly the works of Francisco Jos Tenreiro, Alda do Esprito Santo and Maria Manuela Margarido, foundational voices when it comes to the poetry of this country. It is made here a reflection about the post-colonial memories and imaginary in the field of poetic writing. It is tried to understand the ways in which this poetry can collaborate for a decolonization of the imaginary in the literatures of the Portuguese ex-colonies, giving special attention to the case of So Tom and Prncipe. The dialogical aspects between margins and center when it comes to the African poetry written in Portuguese are also observed in their relations with the post-colonial contingences.

    KEYWORDS: So Tom and Prncipe. Literature. Foundational poetics. Post-colonialism. Lusophony.

    Referncias

    ASSOCIAO CASA DOS ESTUDANTES DO IMPRIO [ACEI]. Antologia de poesia da Casa dos Estudantes do Imprio (1951-1963): Angola S. Tom e Prncipe. Lisboa: Edio ACEI, 1994. v.1.

    ANDRADE, M. P. de. Antologia temtica de poesia africana: na noite grvida de punhais. Lisboa: Livraria S da Costa Editora, 1975. v.1.

    ANDRADE, M. P. de; TENREIRO, F. Poesia negra de expresso portuguesa. Lisboa: frica, 1982.

    BHABHA, H. K. O local da cultura. Traduo de Myriam vila, Eliana Loureno de Lima Reis, Glucia Renate Gonalves. Belo Horizonte: UFMG, 1998.

    CASIMIRO, A. Nova largada: romance de frica. Lisboa: [s.n.], 1929.

    ESPRITO SANTO, A. do. nosso o solo sagrado da Terra. Lisboa: Ulmeiro, 1978.

    ______. O jogral das ilhas. So Tom: Edio da Autora, 1976.

  • 130 Itinerrios, Araraquara, n. 35, p.119-130, jul./dez. 2012

    Anselmo Peres Als

    FERREIRA, J. da S. M. Espontaneidades da minha alma. Loanda: Imprensa do Governo, 1849.

    FERREIRA, M. Literaturas africanas de expresso portuguesa. Lisboa: Instituto de Cultura Portuguesa, 1977. v.1.

    FREIRE, M. da G. A primeira viagem: romance. Lisboa: [s.n.], 1952.

    LABAN, M. S. Tom e Prncipe: encontro com escritores. Porto: Fundao Eng. Antnio Almeida, 2002.

    LEMOS, J. de. Almas negras. Lisboa: Livraria Clssica, 1937.

    MARGARIDO, M. M. Alto como o silncio. Lisboa: Publicaes Europa-Amrica, 1957.

    NEGREIROS, A. Obra completa de Almada Negreiros. Organizao de Alexei Bueno. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997.

    OLIVEIRA, J. O. de. Roteiro da frica. Lisboa: Agncia Editorial Brasileira, 1936.

    PIRES, A. Sangue cuanhama. Lisboa: Agncia Geral das Colnias, 1949.

    RAPOSO, H. Ana a Kalunga: os filhos do mar. Lisboa: [s.n.], 1926.

    SARMENTO, A. de. Os sertes dfrica. Lisboa: Francisco Arthur da Silva, 1880.

    SOUSA, N. de. Sangue negro. Organizao e fixao do texto realizada por Nelson Sate, Francisco Noa e Ftima Mendona. Maputo: Aemo, 2001.

    TENREIRO, F. J. Corao em frica. Lisboa: frica, 1982.

    ______. A ilha de So Tom: estudo geogrfico. Lisboa: Junta de Investigaes do Ultramar, 1961.

    Recebido em: 17/01/2012

    Aceito em: 18/12/2012