Lira de Brumirá - andrepiquet.com.br · Mas de um jeito tão brejeiro, Tão antigo… – Como...

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Lira de Brumirá

ANDRÉ PIQUET LIRA DE BRUMIRÁ

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Análise

Se cada rua de Brumirá Fosse apenas uma, Talvez eu pudesse esquecê-la. Mas aquela passagem, Aquele mesmo corredor de pequenas lojas, Foi uma promessa de sonho americano Em minha infância, Com melodias açucaradas emanando da parede multicor, Das estampas joviais, Dos anúncios de calça jeans. Depois, na adolescência, As casas deram de parecer Galerias do imaginário pop. Fachadas contavam segredos, Convidavam a brindar A velhas emoções setentistas, Metade memória, metade invenção. Acabou que na idade adulta A rua, veja o senhor, Se pôs a flertar comigo, Mas de um jeito tão brejeiro, Tão antigo…

– Como ficaste linda (Antes de ficares triste), Ó velha-menina Do interior!

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Eu bem me le– (O súbito devaneio obriga o psiquiatra a interferir, advertindo o paciente de que tal rua não existe, nunca existiu, a não ser em sua cabeça)

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Campo

Poeira que dorme nas flores Desta beira de estrada, Tua tristeza é a minha, A dos meus. Tens a confissão do tempo Nas rugas do teu leito. O DNA de Deus. Pareces querer ensinar – “Ouve: O vento me chama, Mas eu não vou. Percebes? Atenta, menino: Eu não vou.” Poeira que dorme nas flores Desta beira de estrada, És triste E feia. Mas eu te amo Como a mim mesmo E aos meus.

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Girando, Girando

O menino que descansava No chão de piche Daquela rua Um dia levou um susto Ao perceber-se deitado Sobre a Terra.

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Os Coronéis

– Por estas ruas, meu filho, Andaram os homens de branco.

(À noite, meus sonhos exalaram Um aroma de medo, tabaco e café)

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Caminhos

Os manuais do mundo Gritavam-lhe a todo momento: “É preciso ser um! Não mais que um!”. Porém o menino, Pequeno turrão, Fincava os dois pés no ar: “Conversa! Uma via estreita, Uma vida gris. Bom é o tudo-mudar Feliz!”

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Arrás

Aqui, No meu quarto, Escondidas no ar, Quatro rainhas. Ébano sobre mármore, Olhos postos em desafio. De seus vestidos longos Escorrem cores mortas, Murchas flores de imperiais procissões, Lágrimas de um sem-fim De paixões Sem sol.

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A Iniciação

O ritmo se impôs, maciço. Tambores,

pés e palmas.

Três golpes, uma pausa. Três golpes, uma pausa.

Elas estavam lá, Me olhavam de cima, As quatro, Num pedestal de vento. Eu, Corpo quente, Sentia o batucão tribal (A voz sinistra, arrastada, Que saía das mãos, do couro e do chão). A massa sonora (Assanhada senhora) Ia se refestelando Nos ombros meus.

Então a rainha negra Fez soar um canto duro, Um árido canto escuro, E foi como se soubesse Tudo de mim, O que eu era,

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O que eu inda viria a ser.

“Vejo lama em teu rosto”, Berrou de repente, Com a voz rascante De bruxa má.

(Ssss! Calafrio me lambeu o lombo).

Ele viria... Ele... O balanço que pega. O balanço.

As frases

eram confusas ideias no turbilhão.

“Tu, grande vergonha!” Mas que não me preocupasse, Pois ali Era o início Nascendo do fim. O balanço que pega. O balanço.

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E o coração Crescia de assustar, E batia afogueado,

TUM-TUM-TÁ! TUM-TUM-TÁ!

E agora ela dizia Que era sangue o que via No rosto meu (Oh, mãe, Agora é sangue?)

N Mas nada, nada – H O início Ó Nascendo do fim Ó (o balanço...) Ó “Pra lá e pra cá, a bandeira – ” Ó (o balanço...) Ó “Tu ficaste muito velho – ” Ó (o balanço...) I “Nós vamos te dar um eixo – ” M!!! (O BALANÇO!)

Metalissoante era a voz a rainha era branca falava bonito da

origem do tempo de longe que vinha rolando semente de tudo que toca no fundo da alma do homem menino que dança contente que sonha que sonha que sonha que sou eu que sou eu que sou EU

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A Intelectual

Mulher, Fumaça de vela, Oriental plenitude Lunar.

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A Tela

No sábado, Ao cair da tarde, Estrelas do rock Ganharão o céu. Fade in, fade out, Etérea sessão no firmamento.

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Três Guris

Três guris, Três esboços de Hardy Jenns, Pararam ali, Beirando o portão da noite. A cidade! Bateu o tambor do medo. As pernas ficaram bambas. Eram três guris, eu me lembro. O suor Espalhou ao seu redor Um desabusado olor De Azzaro.

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As Mãos de Kate Bush

Bailinho, balbúrdia, balcão. Enluarado, Olhos grudados na tela, O menino se pergunta Como é que ninguém assunta O feitiço dela.

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Os Quatro Heróis

Sorrateiros vieram, Tropeçando em cobras-cabo, Sitiando aquele morro No breu. Dava para ouvir O dragão-de-mil-cabeças, Dura massa movediça Esparramada no fosso De éter. Era mister Ter a prontidão Dos grandes.

(– Não enxergo nada. – Será que essa porra dá choque?)

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O Passado

– Brumirá, pros olhos meus, É campo de estrelas, senhor! O velho astrônomo Ouviu, Compreendeu e Sorriu tristonho.

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O Vinil de Pandora

Não, minha filha, esse não! Melhor nem tirar da capa, Que do disco saltarão Sátiros, fúrias, harpias, Empedernida paixão, Passado mal-assombrado Querendo meu coração.

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Sir Galahad da Ipiranga

Hoje, Quem sabe hoje, Senhor, A virada. Buscar o sinal: Na lenta combustão das horas, A fagulha mágica. Recuperar o sonho, A urgência, a prontidão. Revirar as gavetas, As canastras, Os mochilões da alma. Reencontrar a fé. Hoje, Quem sabe hoje, Senhor.

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Rock’n’rollers

Eles estarão sempre lá, Em ação, Nalgum canto do ser, A crer Que a alma é nova, O delírio é sagrado E aquele terno sonho Ainda serve em mim.

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Plano de Voo

Tome como missão, meu filho. Não espere nada, não. Grande, pequeno, Quem se poderá saber? Abrace sua arte Com o espanto alegre Dos que voam imaculados. No fim, O sorriso de Deus lhe bastará.

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Sequestro

O crime foi cometido Na modorra da tarde De domingo. Segundo testemunhas, A cidade entrou inteira Pela boca do violão Do meliante.