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Faculdade Pio Décimo Curso de Pedagogia
Profª Esp. Ana Paula Fernandes Yajima Antropologia Cultural 1
Associação de Ensino e Cultura Pio Décimo
Faculdade Pio Décimo
Curso de Pedagogia
Profª Esp. Ana Paula Fernandes Yajima
Antropologia Cultural
Faculdade Pio Décimo Curso de Pedagogia
ASSOCIAÇÃO DE ENSINO E CULTURA “PIO DÉCIMO” S/C LTDA
FACULDADE “PIO DÉCIMO”
COORDENAÇÃO DO CURSO DE PEDAGOGIA
DISCIPLINA: Antropologia Cultural
CÓDIGO DA DISCIPLINA: PD.315.5 CARGA HORÁRIA: 40 CRÉDITOS: 02
DOCENTE: Profª Esp. Ana Paula Fernandes Yajima
1. EMENTA
Conceito básico. Reflexão sobre os padrões culturais em sua diversidade, explorando os valores do comportamento social e cultural sob uma visão
antropológica, com ênfase na educação, escola, religião e instituições. Discriminação de arquétipos, estereótipos, parentesco, arte, tabus, mitos,
ritos. Análise sobre aculturação, etnocentrismo, juízo de valor e de realidade.
2. OBJETIVO GERAL
Apresentar a Antropologia Cultural como uma vertente da Antropologia que trata da compreensão do “outro” (alteridade), da diversidade
cultural e da interpretação e análise dos sistemas simbólicos da vida social;
3. OBJETIVOS ESPECÍFICOS
Conhecer a Antropologia Cultural como campo do conhecimento importante para a compreensão de conceitos fundamentais na formação
dos diversos grupos sociais;
Identificar as concepções de homem: do natural ao cultural, a evolução humana;
Discutir as concepções de sociedade e de cultura: mitos, tabus, arquétipos e estereótipos;
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Possibilitar a reflexão de temas como: ideologia, relativismo moral e cultural, multiculturalidade e identidade nacional;
Fornecer elementos para que os discentes possam desenvolver uma visão ampla e contextualizada dos fatos culturais: notícias, eventos,
costumes, educação, religião, etc;
Refletir acerca das questões básicas sobre a organização das comunidades e instituições sociais, especialmente a escola;
Estimular o desenvolvimento da capacidade de redação dos alunos, através da elaboração de pequenos textos em sala de aula.
4. UNIDADES DE ENSINO
1. A Antropologia como campo de conhecimento: conceito e principais escolas:
Escolas :evolucionista; difusionista, funcionalista, estruturalista, o particularismo histórico e a antropologia interpretativa;
Antropologia no Brasil: Darcy Ribeiro e Roberto Damatta;
A formação do conceito de homem: a condição humana – do natural ao cultural;
As estruturas elementares do parentesco.
2. Concepções de Sociedade e de Cultura:
Mito e Ideologia;
Relativismo Moral e Cultural;
A questão da Identidade Nacional;
Conceitos de Cultura: símbolos e valores.
3. Antropologia Cultural e Educação:
Cultura Popular e Educação;
Antropologia e Educação: origens de um diálogo;
A crítica da Modernidade;
4. Antropologia na Sociedade Contemporânea:
A Indústria Cultural;
As novas tecnologias e as formas de sociabilidade;
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Pluralidade Cultural e Democracia: analisando valores da sociedade brasileira.
5. METODOLOGIA
A disciplina será ministrada numa sistemática de trabalho que privilegie a interação entre docente e alunos, buscando uma práxis ativa destes em
todos os momentos. Serão utilizados procedimentos de ensino-aprendizagem como: aulas expositivas, leituras e discussão de textos,
acompanhamento em análise de vídeo, estudos em grupo, orientação individual e em grupo, propiciando-se, assim, uma vivência efetiva das
diferentes abordagens de ensino durante a disciplina. Os recursos didáticos empregados serão: Data show, tv/vídeo, transparências, textos e outros
materiais que venham a ilustrar os conteúdos estudados.
6. AVALIAÇÃO
A Avaliação de desempenho do aluno incide sobre a freqüência e aproveitamento, abrangendo assimilação progressiva de conhecimento, trabalho
individual expresso em tarefa de estudo e de aplicação de conhecimento, trabalho em grupo, avaliações de rendimento acadêmico e seminário. As
notas referentes aos trabalhos serão cumulativas e se somarão as notas finais de cada bimestre. Teremos duas avaliações de rendimento acadêmico
e uma prova final. Cada avaliação será aplicada com data previamente marcada, de acordo com a Portaria do Exmº Sr. Diretor da Faculdade e com o
Calendário Acadêmico, ao final de cada bimestre. A prova final será para aqueles que não obtiverem a média estabelecida no Regimento da
Faculdade (5,0), em data posterior ao período da última avaliação.
7. BIBLIOGRAFIA BÁSICA
BORDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Traduzido por Fernando Tomaz. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.
CARVALHO, Maria do Carmo Brant de (org). A família contemporânea em debate. São Paulo: EDUC/Cortez, 1995.
CHAUÍ, Marilena. Brasil: mito fundador e sociedade autoritária. Coleção História do Povo Brasileiro. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2000.
DAMATTA, Roberto. O que faz o Brasil, Brasil? 11ª Ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1987.
________________ Relativizando: uma introdução à antropologia social. 6. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.
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GEERTZ, Clifford. O saber local. Petrópolis: Vozes, 1997.
______________ Nova luz sobre a antropologia. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2001.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Traduzido por TomazTadeu Silva; Guacira Lopes Louro. 6ª Ed. Rio de Janeiro: DP & A, 2001.
LAPLANTINE, François. Aprender Antropologia. Traduzido por Marie-Agnes Chauvel. 1ª Ed. São Paulo: Brasiliense, 2006.
LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000. (Coleção Antropologia Social).
LEAL, Ondina Fachel (org). Corpo e significado: ensaios de antropologia social. Porto Alegre: UFRGS, 1995.
MALINOWSKI, Bronislaw. Coleção grandes cientistas sociais. Nº 55. Eunice Durham (org) e Florestan Fernandes (coord.) São Paulo: Ática, 1986.
RIBEIRO, Darcy. O Povo Brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. 2ª Ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
SANTOS, José Luiz dos. O que é cultura. 16ª Ed. São Paulo: Brasiliense, 2005. (Coleção Primeiros Passos, 110).
VELHO, Gilberto. Individualismo e cultura: notas para uma antropologia da sociedade contemporânea. 5ª ed. R.Janeiro: Zahar ed., 1999.
Contatos com a Professora:
Fone: (079) 9949-4907/2106-3071.
E-mail: [email protected]
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Breve introdução à Antropologia
Definição
A Antropologia é a ciência que estuda o homem por
inteiro, como um todo, preocupando-se com os vários
aspectos da existência humana.
A Antropologia, sendo a ciência da humanidade e da
cultura, tem um campo de investigação extremamente vasto:
abrange, no espaço, toda a terra habitada; no tempo, pelo
menos dois milhões de anos, e todas as populações
socialmente organizadas. Divide-se em duas grandes áreas
de estudo, com objetivos definidos e interesses teóricos
próprios: a Antropologia Física (ou Biológica) e a Antropologia
Cultural, que se centram no desejo do homem de conhecer a
sua origem, a capacidade que ele tem de conhecer-se, nos
costumes e no instinto.
Para pensar as sociedades humanas, a antropologia
preocupa-se em detalhar, tanto quanto possível, os seres
humanos que as compõem e com elas se relacionam, seja
nos seus aspectos físicos, na sua relação com a natureza,
seja na sua especificidade cultural. Para o saber
antropológico o conceito de cultura abarca diversas
dimensões: universo psíquico, os mitos, os costumes e rituais,
suas histórias peculiares, a linguagem, valores, crenças, leis,
relações de parentesco, entre outros tópicos.
Principais Escolas Antropológicas:
Evolucionista
Marcada pela discussão evolucionista, a antropologia
do Século XIX privilegiou o Darwinismo Social, que
considerava a sociedade europeia da época como o apogeu
de um processo evolucionário, em que as sociedades
aborígenes eram tidas como exemplares "mais primitivos".
Esta visão usava o conceito de “civilização” para classificar,
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julgar e, posteriormente, justificar o domínio de outros povos.
Esta maneira de ver o mundo a partir do conceito
civilizacional de superior, ignorando as diferenças em relação
aos povos tidos como inferiores, recebe o nome de
etnocentrismo. É a Visão Etnocêntrica, o conceito europeu do
homem que se atribui o valor de “civilizado”, fazendo crer que
os outros povos, estavam “situados fora da história e da
cultura”.
Nesta forma de apreender a experiência humana,
todas as sociedades, mesmos as desconhecidas,
progrediriam em ritmos diferentes, seguindo uma linha
evolutiva. Isso balizou a idéia de que a demanda colonial
seria "civilizatória", pois levaria os povos ditos "primitivos" ao
"progresso tecnológico-científico" das sociedades tidas como
"civilizadas". Há que ver estes equívocos como parte da visão
de mundo que pretendiam estabelecer as diretrizes de uma lei
universal de desenvolvimento.
A sistematização do conhecimento acerca destes
povos, primitivos, ocorreu em gabinetes, sem qualquer
contato com os povos, recorrendo apenas a relatos escritos
de viajantes diversos.
Difusionista
A Antropologia Difusionista reagiu ao evolucionismo e
foi sua contemporânea. Privilegiava o entendimento da
natureza da cultura, em termos de origem e extensão, de uma
sociedade a outra. Para os difusionistas, o empréstimo
cultural seria um mecanismo fundamental de evolução
cultural. O difusionismo acreditava que as diferenças e
semelhanças culturais eram consequência da tendência
humana para imitar e a absorver traços culturais.
Funcionalista
O Funcionalismo inspirava-se na obra de Èmile
Durkheim. Advogava um estreito paralelismo entre as
sociedades humanas e os organismos biológicos (na forma
de evolução e conservação) porque em ambos os casos a
harmonia dependeria da inter-dependência funcional das
partes. As funções eram analisadas como obrigações, nas
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relações sociais. A função sustentaria a estrutura social,
permitindo a coesão, fundamental, dentro de um sistema de
relaçoes sociais.
Estruturalista
A Antropologia Estrutural nasce na década de 40. O
seu grande teórico é Claude Lévi-Strauss. Centraliza o debate
na idéia de que existem regras estruturantes das culturas na
mente humana, e assume que estas regras constroem pares
de oposição para organizar o sentindo.
Para fundamentar o debate teórico, Lévi-Strauss
recorre a duas fontes principais: a corrente psicológica criada
por Wilhelm Wundt e o trabalho realizado no campo da
lingüistica, por Ferdinand de Saussure, denominado
Estruturalismo. Influenciaram-no, ainda, Durkheim, Jakobson
(teoria linguística), Kant (idealismo) e Marcel Mauss.
Para a Antropologia Estrutural as culturas definem-se
como sistemas de signos partilhados e estruturados por
princípios que estabelecem o funcionamento do intelecto. Em
1949 Lévi-Strauss publica “As estruturas elementares de
parentesco”, obra em que analisa os aborígenes australianos
e, em particular, os seus sistemas de matrimônio e
parentesco. Nesta análise, Lévi-Strauss demonstra que as
alianças são mais importantes para a estrutura social que os
laços de sangue. Termos como exogamia, endogamia,
aliança, consagüinidade passam a fazer parte das
preocupações etnográficas.
Culturalista ou Particularismo Histórico
Defendida por Franz Boas, rejeita, de maneira
marcante, o evolucionismo que dominou a antropologia
durante a primeira metade do século XX.
A discussão desta corrente gira em torno da idéia de
que cada cultura tem uma história particular e de que a
difusão cultural se processa em várias direções.. Cria-se o
conceito de relativismo cultural, vendo também a evolução
como fenómeno que pode decorrer do estado mais simples
para o mais complexo.
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Interpretativa
A Antropologia Interpretativa analisa a cultura como
hierarquia de significados, pretendendo que a etnografia seja
uma “descrição densa”, de interpretação escrita e cuja análise
é possível por meio de uma inspiração hermenêutica. É
crucial a leitura da leitura que os “nativos” fazem de sua
própria cultura.
Seu principal ícone é Clifford Geertz, que
provavelmente, depois de Claude Lévi-Strauss, é o
antropólogo cujas idéias causaram maior impacto na segunda
metade do século 20, não apenas no que se refere à própria
teoria e à prática antropológica mas também fora de sua área,
em disciplinas como a psicologia, a história e a teoria
literária.Considerado o fundador da chamada Antropologia
Hermenêutica ou Interpretativa.
Diferenças entre as expressões
Vale salientar que:
“a etnografia, a etnologia e a antropologia constituem os três momentos de uma mesma
abordagem. A etnografia é a coleta direta, e o mais minucioso possível, dos fenômenos que observamos, por uma impregnação duradoura e contínua e um processo que se realiza por aproximações sucessivas (...). A etnologia consiste em um primeiro nível de abstração: analisando os materiais colhidos, fazer aparecer a lógica específica da sociedade que se estuda. A antropologia, finalmente, consiste em um segundo nível de inteligibilidade: construir modelos que permitam comparar as sociedades entre si...” (Laplantine, 1996:25).
Mas no final das contas é tudo Antropologia.
Alteridade
Descoberta proporcionada pela distância em relação a nossa sociedade: “aquilo que tomávamos por natural em nós mesmo é, de fato, cultural; aquilo que era evidente é infinitamente problemático” (Laplantine, 1996:21).
Daí a necessidade na formação antropológica do
“estranhamento”, isto é, a perplexidade provocada pelo
encontro das culturas que são para nós as mais distantes,
levando tal encontro à modificação do olhar que se tinha de si
mesmo.
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Presos a uma única cultura ficamos cegos às outras e
míopes em relação a nossa.
A experiência e elaboração da alteridade levam a ver
aquilo que nem se consegue imaginar devido à dificuldade em
prestar atenção ao que é habitual, familiar, cotidiano e
considerado evidente.
Através da experiência da “diferença” passa-se a notar
que o menos dos comportamentos não é natural, causando
surpresa sobre nós mesmos.
O conhecimento antropológico de nossa cultura passa
pelo conhecimento das outras culturas.
Para a antropologia o que caracteriza “unidade” do
homem é sua aptidão para inventar modos de vida e formas
de organização social muito diversos. O que seres humanos
têm em comum é a capacidade para se diferenciar uns dos
outros, para elaborar costumes, línguas, modos de
conhecimento, instituições, jogos muito diversos.
O projeto antropológico consiste no reconhecimento e
conhecimento junto com a compreensão de humanidade
plural. A abordagem antropológica provoca a revolução do
“olhar”, implicando num descentramento radical, ruptura com
a idéia de há um “centro do mundo”.
Descoberta da alteridade é descobrir relação que nos
permite deixar de identificar nossa pequena província de
humanidade como a humanidade e assim deixar de rejeitar o
presumido “selvagem” fora de nós.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
DAMATTA, Roberto (1987) Relativizando; Uma Introdução à Antropologia Social. Rio de Janeiro, Rocco.
LAPLANTINE, François (1996) Aprender Antropologia. 9ª edição. São Paulo, Editora Brasiliense.
MELLO, Luiz Gonzaga (1987) Antropologia Cultural. Iniciação, Teoria e Temas. 4ª edição. Petrópolis, Editora Vozes.
O INCESTO COMO REGRA DE PROIBIÇÃO UNIVERSAL
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Paulo Santos Dantas, UFS
Os pressupostos básicos do estruturalismo vão
verificar uma certa regularidade nas relações humanas de
sociedades tradicionais. Tais pressupostos são fundados em
aspectos observáveis, tanto nessas sociedades tradicionais
quanto nas modernas. Contudo, Claude Lévi- Strauss
preferirá trabalhar com “estruturas elementares” e “estruturas
complexas”, em vez de sociedades tradicionais e sociedades
complexas. Antes de prosseguirmos na descrição do que
esse autor entende por estruturas elementares e estruturas
complexas, em detrimento das chamadas sociedades
tradicionais e complexas, é importante descrevermos o que o
mesmo entende por “estrutura”. A partir de sua definição
sobre esse termo, Lévi-Strauss concentrará sua atenção na
forma como as relações de parentesco se constituem, e é em
razão disso que se torna imprescindível apreendermos o seu
conceito, pois ele é o centro do seu debate.
Segundo Lévi-Strauss, as relações de parentesco
descrevem também outras formas possíveis de estrutura, e
por isso a definição: “Entendemos por estruturas elementares
do parentesco os sistemas nos quais a nomenclatura permite
determinar imediatamente o círculo dos parentes e dos
aliados, isto é, os sistemas que prescrevem o casamento com
um certo tipo de parente. Ou, se preferirmos, os sistemas
que, embora definindo todos os membros do grupo como
parentes, dividem-nos em duas categorias, a dos cônjuges
possíveis e a dos cônjuges que se limitam a definir o círculo
dos parentes e que deixam a outros mecanismos,
econômicos e psicológicos, a tarefa de proceder à
determinação do cônjuge” (LÉVI-STRAUSS, 1982:19). Essa é
a conceituação e esse o centro do seu argumento em favor
da regularidade das relações elementares de parentesco.
O “parentesco” acima citado nos permite perceber,
segundo Lévi-Strauss, os impedimentos e as alianças
possíveis entre indivíduos dentro de um grupo. O que
antecipadamente podemos observar é que há uma regra
segundo a qual são possíveis ou não os matrimônios. Tal
regra refere-se à proibição do incesto, e se constitui dentro de
um campo universal, pois poderá ser encontrada, conforme o
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autor, desde as estruturas elementares de parentesco até as
estruturas complexas.1 O incesto é, desta forma, a regra
proibitiva que tem um caráter universal, constitui um tipo de
relação que impõe sua própria norma e a transcende. Ou
seja, na medida em que os impedimentos de alianças entre
“parentes próximos” num mesmo grupo (para as sociedades
tradicionais) ou de matrimônios entre indivíduos de uma
mesma família (para as sociedades modernas), constitui uma
regra social generalizante, é nesse nível que a proibição do
incesto transcende a própria regra, pois não é uma proibição
particular a um caso específico ou a uma família. Tal
proibição é partilhada, como regra, nas famílias de uma
sociedade moderna, ou nos grupos2 de uma sociedade
tradicional. Para Claude Lévi-Strauss, este é o aspecto
universal da proibição do incesto.
Entretanto, para compreendermos o estruturalismo,
precisamos nos apropriar de sua lógica de explicação a partir
de um aspecto da vida sexual duplamente exterior (pré-social)
ao grupo. Na mesma direção conforme a qual Lévi-Strauss
explica esse duplo aspecto exterior ao grupo, ele também irá
comentar a passagem do estado de natureza para o estado
de cultura, relacionando esse fenômeno com o momento em
que o ser humano inicia um processo de linguagem. A lógica
estruturalista, segundo a qual os impedimentos da vida sexual
estão constituídos como aspecto duplamente exterior ao
grupo social (tradicional ou moderno), tem essa característica
devido a duas razões: a primeira diz respeito ao fato de já
existir a proibição do incesto antes mesmo da organização
mais “social” e do domínio da natureza dos grupos humanos;
a segunda razão, que se configura como exterior ao grupo,
está no fato de essa regra se estender aos demais grupos ou
às demais sociedades (modernas ou tradicionais). Dessa
forma, o aspecto duplamente exterior da regra do incesto está
relacionado, segundo Lévi-Strauss, tanto à idéia
(inconsciente) de preservação do grupo, quanto à extensão
da regra às demais sociedades humanas.
Então, para Lévi-Strauss, a proibição do incesto como
regra (“social por sua natureza de regra”) é pré-social porque,
segundo ele, “exprime no mais alto grau a natureza animal do
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homem e atesta, no próprio seio da humanidade, a
sobrevivência mais característica dos instintos”. (...)
Depois, “seus fins são transcendentes, novamente de duas
maneiras, pois visam satisfazer os desejos individuais, que se
sabe suficientemente constarem entre os menos respeitosos
das convenções sociais, ou tendências específicas que
ultrapassam igualmente, embora em outro sentido, os fins
propostos da sociedade” (LÉVI-STRAUSS, 1982:50).
Claude Lévi-Strauss se opõe a duas explicações
tradicionais acerca da passagem do estado de natureza para
o estado de sociedade (ou para o estado de cultura, como ele
prefere). A primeira convenção combatida por Lévi-Strauss
diz respeito à separação entre natureza e cultura. Para ele, o
ser humano é, ao mesmo tempo, um ser bilógico e um ser
social. Entre as respostas que o ser humano dá às suas
excitações (exteriores ou interiores), nos diz Lévi-Strauss,
algumas vão depender de sua natureza, e outras de sua
condição social. Aqui se apresenta um problema intrigante:
para Lévi Strauss, o Homem de Neanderthal, com o seu
provável conhecimento da linguagem, suas indústrias e seus
ritos, não pode ser considerado como vivendo no estado de
natureza, pois tais instrumentos (linguagem, rituais, costumes,
etc., etc.) se apresentam como um novo aspecto de sua
“natureza”, a cultura (LÉVI-STRAUSS, 19982:41).
Ou seja, segundo o autor, o problema está no fato de,
a partir desse indivíduo, o estado de natureza não ser mais
um aspecto unicamete determinante na vida humana. Agora o
ser humano tem o domínio da linguagem, fabrica instrumentos,
constrói os seus mitos, enfim, a cultura aparece como um
novo instrumento de sobrevivência. Sobre a análise estrutural
em lingüística e em antropologia, Lévi-Strauss vai dizer que o
estruturalismo recusa opor o concreto ao abstrato, não
reconhecendo neste último um valor privilegiado. Mas
adiante, o autor vai dizer que “a forma se define por oposição
a uma matéria que lhe é estranha; mas a estrutura não tem
conteúdo distinto: ela é o proprio conteúdo, apreendido numa
organização lógica concebida como propriedade real”
(LÉVISTRAUSS, 1993, pp. 121-123). Em outras palavras, a
linguagem, segundo o estruturalismo de Lévi-Strauss, não
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está no campo “privilegiado” do abstrato em oposição ao que
pode ser percebido corretamente. Isto porque, segundo ele,
citando um outro autor (Vladimir Propp), na lingüística, “cada
frase constrói um motivo, e a análise dos contos deve ser
conduzida a um nível que chamaríamos hoje ’molecular’ ”
(Lévi-Strauss, 1993:123).
Mas se o Homem de Neanderthal não está mais no
estado de natureza, está no estado de cultura. Portanto,
marca uma passagem onde a natureza cede o seu lugar à
cultura. Essa é a concepção corrente em boa parte dos
estudos sobre natureza e cultura. Contudo, tal teoria, segundo
Lévi-Strauss, é apressada e distorcida, na medida em que
dispensa a natureza humana, estando ela presente no seu
cotidiano, apesar da cultura. Em outras palavras, é certo que
o surgimento da cultura sugere a “passagem” de um estado a
outro, mas essa não se dá como num desligamento físico.
Para Lévi-Strauss, o ser humano responde às suas
excitações (interiores e exteriores) algumas vezes, segundo a
sua natureza, e outras conforme a condição social, sem uma
relação necessariamente hierárquica entre elas. Ambos os
aspectos da “natureza humana” funcionam segundo as suas
particularidades. Apesar de haver uma evolução humana, não
no sentido que o termo ganhou quanto na escola
evolucionista, mas do ponto de vista de uma transformação
tanto física qunto social, natureza e cultura não são etapas
sobrepostas. Segundo a teoria de Lévi-Strauss, elas se
associam como atributos que se complementam, não
enquanto aspectos que se separam. Tais são os
pressupostos básicos do estruturalismo.
O conceito de cultura, segundo o estruturalismo, já
estaria apresentado acima, mas essa questão tem outros
desdobramentos que se tormam importantes e merecem ser
discutidos. O primeiro ponto levantado por Lévi-Strauss
remonta à natureza humana. Ou seja, para ele, “o homem é
um ser biológico ao mesmo tempo que um indivíduo social”
(Lévi-Strauss, 1982:41). Esse é o ponto de partida que levará
este debate para um campo extremamente controverso nas
ciências sociais. A questão que se apresenta indaga sobre
onde acaba o estado de natureza e onde começa o estado de
cultura.
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Segundo Lévi-Strauss, diversos métodos foram
organizados na tentativa de perceber o instante em que a
natureza humana dá lugar à cultura. Todos eles, contudo,
segundo esse autor, decepcionaram. E as razões para as
decepções não são difíceis de ser entendidas. Conforme sua
análise, as experiências que pretenderam resolver essa
questão partiam do princípio (equivocado) de que o ser
humano poderia regredir ao estágio temporal anterior. “As
’crianças selvagens’, quer sejam produto do acaso quer sejam
da experimentação, podem ser mostruosidades culturais, mas
em nenhum caso testemunhas fiéis de estado anterior” (Lévi-
Strauss, 1982:41).
O conceito de cultura, para o estruturalismo, pode ser
compreendido, portanto, segundo um aspecto universal
conforme o qual a) natureza e cultura constituem, ao mesmo
tempo, o ser humano; b) as regras de impedimento
matrimoniais (incesto) são encontradas em todas as
sociedades humanas, isto é, assinalam um aspecto unitário,
nesse ponto de vista; e c) a cultura é inerente à espécie
humana, mas não exclui a natureza do gênero humano.
O estado de cultura ainda nos coloca diante das formas
como as representações coletivas e individuais vão se
apresentar num grupo. Marcel Mauss, comentado por Roberto
Cardoso de Oliveira, vai dizer que, nas consciências, as
representações coletivas são distintas das representações
individuais. Essas representações coletivas dizem respeito às
representações do inconsciente. Para Mauss, as consciências
individuais agem e reagem umas sobre as outras num grupo
formado e esse aspecto constitui, segundo ele, as
representações coletivas. Tais representações coletivas,
segundo Marcel Mauss, terão, contudo, um papel autônomo
em relação às consciências individuais. Para Mauss, “Não
somente as representações coletivas são feitas de outros
elementos diferentes das representações individuais, mas
ainda têm na verdade um outro objeto. O que elas exprimem,
com efeito, é o próprio estado de sociedade” (in CARDOSO
DE OLIVEIRA, 1979)3
Em As estruturas elementares do parentesco (1982),
Claude Lévi-Strauss explicará como as formas do
inconsciente de um grupo constituído perpassam seus fins;
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nesse sentido, é interessante perceber como este autor
avança sobre Marcel Mauss. Essa discussão se estende
sobre toda a obra As estruturas elementares do parentesco,
mas aqui retomaremos o debate sobre o Problema do
Incesto, bastante discutido neste trabalho. Neste ponto,
veremos que, segundo Lévi-Strauss, a vida sexual é
duplamente exterior ao grupo, tendo em vista que – conforme
citação já comentada - “exprime no mais alto grau a natureza
animal do homem, e atesta, no próprio seio da humanidade, a
sobrevivência mais característica de instintos” (LÉVI-
STRAUSS, 1982:50).
Ou seja, Lévi-Strauss avança sobre as explicações de
autores como Marcel Mauss, na medida em que perceberá
um aspecto transcendente das representações em relação ao
grupo constituído. Para Lévi-Strauss, o grupo ou a sociedade
tem a consciência e o controle das convenções gerais de sua
vida, entretanto algumas representações os ultrapassam, no
sentido de terem uma independência em relação ao que se
espera dos mesmos (enquanto unidade geral).
Em As estruturas elementares do parentesco, o
método estruturalista de Lévi-Strauss se efetiva com o rigor
da observação que, em geral, se espera das ciências sociais,
mas este aspecto não é constituído como “uma camisa de
força”. O método estruturalista, segundo Lévi-Strauss,
percebe um caráter universal nas estruturas elementares do
parentesco, do ponto de vista da proibição do incesto,
contudo, tal aspecto estrutural (segundo o sentido
convencional que o mesmo ganhou nas ciências sociais,
sobretudo) não será levado às “últimas conseqüências” do
que se espera de uma explicação “estrutural”. O método
estruturalista, conforme nossa compreensão, se efetiva, não
procurando se legitimar em torno dele próprio, mas perpassa
essa possível pretensão, na medida em que percebe a
elasticidade da regra de proibição do incesto, por exemplo.
Esse é um aspecto bastante interessante das explicações
estruturalistas de Lévi-Strauss. Para ele, a proibição do
incesto não cria apenas relações sociais; ela tende ainda a
relacionar a natureza com a cultura.
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Do nosso ponto de vista, as explicações do método
estruturalista de Claude Lévi-Strauss sobre os impedimentos
sociais, dos quais a proibição de alianças4 num mesmo grupo
(o incesto) se efetiva segundo um caráter universal, traz para
a Antropologia uma discussão muito presente e forte no
campo da Psicologia ou da Psicanálise freudiana. Embora
esse debate talvez tenha ganho maior destaque e talvez
maior acúmulo de pesquisas no âmbito da Psicanálise,
principalmente pelo pioneirismo de Freud, Lévi-Strauss o
discute com muita propriedade e independência teórica. Para
nós, acerca desse tema, essa é a maior contribuição do
estruturalismo de Claude Lévi-Strauss para as Ciências
Humanas.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Cardoso de Oliveira, Roberto. Apresentação in Mauss. São Paulo: Ática, 1979 (Grandes cientistas sociais; 11).
Lévi-Strauss, Claude. As estruturas elementares do parentesco; tradução de Mariano Ferreira; 2ª edição, Petrópolis: Vozes, 1982.
Lévi-Strauss, Claude. Antropologia estrutural, dois. 4ª edição; Tempo Brasileiro, 1993.
_________________________________________________
1 Contudo, para efeitos de uma maior clareza, utilizaremos os termos sociedades tradicionais, para estruturas elementares e sociedades modernas, para estruturas complexas. Além disso, procuraremos fazer pouco uso de aspas, tendo em vista que a discussão sobre a propriedade ou não de um ou outro termo não é objeto deste artigo.
2 A diferenciação de “grupo” em relação à “família” e de “aliança” em relação ao “matrimônio” refere-se mais à dificuldade de termos comuns às chamadas sociedades tradicionais em relação às modernas que uma relação hierárquica entre os termos. Seja como for, preferimos “conceder” os termos grupo e aliança às sociedades tradicionas, e os termos família e matrimônio às sociedades complexas.
3 Esta citação está em Cardoso (1979), e foi extraída de: Mauss, Marcel. Oeuvres. V.III, pp. 160-61.
4 O termo aliança é, também para nós, o mais adequado para as análises que fazemos sobre os “matrimônios” ou “casamentos” internos aos grupos sociais – tradicionais ou modernos, contudo, os termos matrimônios ou casamentos dizem respeito às sociedades modernas, marcadamente ocidentais, capitalistas etc.
CULTURA – uma visão dialética
É sempre uma dificuldade discutir o conceito de cultura,
mesmo entre os profissionais vinculados a esse campo de
atividade. O que existe mesmo é uma miscelânea de concepções
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que mais expressam um “ninho de casaca de couro”, na acepção
viva de Jackson do Pandeiroi. Apesar desse elemento complicador,
tido por outros como elemento alimentador de perspectivas
culturais, faz-se necessário a apresentação de uma visão que
retoma o movimento como uma categoria teórica norteadora da
tentativa de um conceito de cultura.
Pode-se observar, ainda, que a multiplicidade conceitual de
cultura também traduz e revela, do ponto de vista político, a visão
alicerçada nas bases explicativas e dominantes da sociedade, em
seus variados modos de produção. Entre os gregos, pode-se
destacar que cultura e religião estiveram interligadas, expressando
explicações da natureza, porém, cheias de atributos religiosos.
Essa visão de cultura é idealizada já em Homero, tornando
a beleza o ideal educativo e dominante daquela cultura, presente
até os dias de hoje. Contudo, é Hesíodo, outro poeta grego, que,
sem negar o ideal homérico, apresenta uma outra perspectiva de
educação. Elege o trabalho como referência para a educação grega
do homem e da mulher. Entretanto, verifica-se entre os sofistasii,
pensadores gregos, a separação entre a religião e a cultura. Apesar
dessa separação, todavia, só tem significado de totalidade ao
assumir como cultura e como conteúdo da cultura, também, o
mundo da cultura espiritual: “o mundo em que nasce o homem
individual, pelo simples fato de pertencer ao seu povo ou a um
círculo social determinado” (Paidéia, 1995: 354). Tudo isto,
entretanto, expressa visões idealizadas sobre cultura de
diferenciados setores dominantes da sociedade, em suas épocas.
Mas, o que se pretende é a retomada da perspectiva conceitual
de cultura, embalada pela categoria teórica movimento e fruto
inerente a cada modo de produção. Isto é, a perspectiva do
conceito de cultura nos marcos da produção, expressa na visão de
Álvaro Vieira Pintoiii. A produção que se manifesta como
expressivo parâmetro de universalidade, considerando a sua
presença em todos os tipos de grupos sociais, presentes nos mais
diferenciados rincões e em qualquer tempo da história humana. E
aí, como produto do processo produtivo, cultura é criação do
próprio homem. É resultante, portanto, das diferenciadas formas de
tentativas do humano no trato com a natureza material, na medida
em que está sempre em luta pela própria sobrevivência. As
capacidades intelectiva e manual humanas possibilitaram um maior
crescimento e intensidade desses fazeres para a sobrevivência. Os
produtos daí gerados constituem-se como produtos culturais.
Dessa capacidade, foram criados os instrumentos de sobrevivência
e todos os tipos de expressão espiritual e, posteriormente, as
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religiões. Tudo isso foi sendo transmitido e conservado de geração
para geração.
O início da cultura não é datado, mas coincide com o processo de hominização. “A criação da cultura e a criação do homem são na verdade duas faces de um só e mesmo processo, que passa de principalmente orgânico na primeira fase para principalmente social na segunda, sem contudo, em qualquer momento, deixarem de estar presentes os dois aspectos e de se condicionarem reciprocamente” (Pinto, 1979: 122). Como se vê, as dimensões culturais presentes nos gregos estão mais ampliadas com esta perspectiva. Os produtos culturais são aqueles gerados dos mecanismos nos mais variados processos produtivos e aqueles, também culturais, gerados da dimensão social presente nas relações humanas. Nesse sentido, torna-se ente cultural o museu, o quadro de famoso e do não famoso pintor, as esculturas de famosos e não famosos escultores... São expressões culturais os óculos que se usam no cotidiano, a caneta, a ferramenta de trabalho, o computador, uma peça teatral, um trator, um ‘software’, as técnicas educativas de organização social, o processo de produção de conhecimento e a tecnologia. Todos estes entes são frutos do processo produtivo e resultantes da dimensão manual e da dimensão intelectiva da espécie humana.
A cultura, na perspectiva apresentada, isto é, como produto do
processo produtivo, adquire a sua dupla natureza. Cultura,
traduzida pelo bem produzido, torna-se bem de consumo, enquanto
resultado expresso em coisas e artefatos e subjetivado em idéias
gerais do mecanismo produtivo. Cultura se converte, ainda, em
bem de produção, subjugando a realidade e submetendo-a às suas
reflexões, gerando novos produtos e novas técnicas de exploração
do mundo, dando-lhes, pelas idéias, significados e finalidades para
as suas ações.
Dessa perspectiva conceitual de cultura, resultam dois
fenômenos, sendo mais explicitados no atual modo de produção –
o capitalismo. O primeiro diz respeito ao acervo cultural que é cheio
de máquinas e entes tecnologizados, além das tantas idéias
geradoras dos processos produtivos. Não se produz sem idéias. Os
setores dominantes, por sua vez, valorizam mais a segunda
dimensão, considerando que já controlam os aspectos
materializados. Há, então, a exaltação às posses das idéias e
desvalorização do trabalho próprio da produção daqueles entes
materiais. O segundo resultado é o apoderamento dos bens
materiais produzidos, frutos das idéias geradoras dos bens
culturais. Assim, é que o trabalhador ou o produtor cultural, além de
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ter perdido os bens materiais produzidos por ele mesmo, também,
está excluído dos bens ideais geradores dos produtos culturais.
A partir dessa visão, pautada no marco da produção, torna-se
possível dessacralizar as marcas ideológicas de outras
perspectivas de cultura, quaisquer que sejam, imputando aos mais
aquinhoados o ter cultura e convencendo os “excluídos” de que
têm cultura aqueles que estiveram na escola, pura e simplesmente.
Numa sociedade de pouco acesso aos tantos meios de
socialização do conhecimento, certas visões só aprofundam a
“apartação social”, alimentando os mecanismos de exclusão e
fortalecendo a dominação dessas elites.
Assim, cabe aos que produzem os entes culturais - bens
materiais e bens ideais - o resgate da posse de seu próprio
processo de se tornarem humanas(os), edificando os vetores das
lutas por trabalho, igualdade, liberdade e de sua felicidade mesma.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
JAEGER, Werner. PAIDÉIA – a formação do homem grego. Tradução de Artur M. Parreira. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
PINTO, Álvaro Vieira. Ciência e existência – problemas filosóficos da pesquisa científica. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.
i Casaca de Couro – pássaro que faz o seu ninho de espinhos. Esta expressão foi utilizada pelo cantor e compositor paraibano, tido como um dos nomes da trilogia da música nordestina, juntamente com Luiz Gonzaga e Luiz Vieira.
ii Pensadores gregos que desenvolveram, com destaques, a retórica, a eloqüência e a linguagem.
iii Filósofo brasileiro. Ver: Ciência e Existência – problemas filosóficos da pesquisa científica. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.
CULTURA POPULAR E EDUCAÇÃO
VOCÊ SABE DE QUEM ESTA FALANDO?
PATRIMÔNIO IMATERIAL: NOVAS LEIS PARA PRESERVAR... O QUÊ?
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LETÍCIA VIANNA, Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular/FUNARTE
Quando falamos em patrimônio, estamos nos referindo a uma porção de coisas consagradas e que têm grande valor para pessoas, comunidades ou nações. E também de coisas que podem ter valor para todo o conjunto da humanidade. A idéia remete à riqueza construída e transmitida, herança ou legado que influencia o modo de ser e a identidade dos indivíduos e grupos sociais.
Mas a noção exata do que seja patrimônio é relativa, pois depende de quem fala e de que ponto de vista fala. As definições podem partir de diferentes perspectivas, que podem ou não se sobrepor, como a perspectiva afetiva, a econômica, a ambiental, a cultural.
Patrimônio cultural diz respeito aos conjuntos de conhecimentos e realizações de uma sociedade, que são acumulados ao longo de sua história e lhe conferem os traços de sua singularidade em relação às outras sociedades.
Uma das características mais marcantes da espécie humana é a grande diversidade de configurações socioculturais possíveis no tempo e no espaço. Diferente das sociedades de abelhas e formigas, sempre idênticas, as sociedades humanas são sempre únicas em função das especificidades culturais nelas desenvolvidas. Cada sociedade possui um sistema cultural, no qual, entretanto, vários sistemas simbólicos são incorporados e compartilhados.
Entende-se aqui por cultura os sistemas de significados, os valores, crenças, práticas e costumes; ética, estética, conhecimentos e técnicas, modos de viver e visões de mundo que orientam e dão sentido às existências individuais em coletividades humanas.
I
Desde pelo menos o século XIX e ao longo de todo o século XX, existem dois grandes pressupostos teóricos que orientaram o entendimento científico e políticas relativas à diversidade cultural humana: a perspectiva do etnocentrismo e a do relativismo cultural.
O etnocentrismo é uma tendência que considera a cultura (valores, princípios, conhecimentos, modo de vida) de um grupo específico, seja ele qual for (uma nação, um país, um grupo religioso, uma tribo urbana de adolescentes, um time de futebol...), como medida para todos os outros. Sob essa perspectiva, o grupo a partir do qual se fala é
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comparado e valorado positivamente em detrimento dos outros grupos humanos.
No contexto das sociedades integradas ao mercado industrial globalizado contemporâneo, por exemplo, o ponto de vista etnocêntrico tende a privilegiar o grau de desenvolvimento tecnológico e especialização da sociedade como modelo de “vida de qualidade superior, mais evoluída” em relação à vida nas sociedades menos integradas àquele modelo. A história oficial tende a reafirmar a idéia de que as sociedades industriais são mais desenvolvidas, com qualidade de vida superior à das sociedades pouco ou diferencialmente integradas ao modelo de referência. E, sob a luz desses argumentos, legitimaram-se muitas guerras, genocídios e massacres imperialistas a culturas genuínas.
Na contra-tendência do etnocentrismo desenvolveu-se o relativismo cultural, pressuposto teórico construído não sob o ponto de vista de um grupo ou coletividade específica, mas, pretensamente, sob o ponto de vista amplo, de toda a humanidade. Entende-se, assim, que todas as sociedades e culturas, por mais diversas, são análogas, pois têm suas próprias racionalidades e irracionalidades intrínsecas, formas, funções e expressões específicas, e que essa diversidade é característica de toda a espécie humana.
Tudo depende do ponto de vista de quem olha. Podemos ver que as sociedades com alto grau de desenvolvimento tecnológico e industrialização podem não ter encontrado as melhores soluções para sua existência no
tocante à ecologia, questão relativamente bem resolvida em outras sociedades distantes do modelo produtivo tecno-industrial, como as sociedades seminômades, caçadoras e coletoras que fazem manejo rotativo de pequenas roças em meio à Floresta Amazônica, por exemplo.
Enquanto a tendência da perspectiva etnocêntrica é subordinar o diferente sob a lógica da desigualdade econômica – na maioria das vezes de maneira violenta e extrema –, a perspectiva relativista é ideologicamente pontuada pelo pacifismo, justiça, eqüidade social e pluralidade cultural e pelo esforço constante de conhecer para poder preservar essa pluralidade como possibilidade concreta da experiência humana. Pois o potencial criativo é um dos maiores patrimônios da humanidade; um dos traços mais marcantes que nos distingue e define enquanto espécie.
II
Desde o final da Segunda Guerra Mundial as questões internacionais gerais sobre o tema do patrimônio cultural da humanidade são conduzidas para os fóruns da Unesco, seminários e conferências internacionais de diferentes ordens. E, de maneira geral, as bases de entendimento para as ações cooperativas entre as nações estão no documento da Unesco “Recomendações sobre a salvaguarda do folclore e da cultura popular”, de 1989.
Esse documento enfatiza a necessidade de cooperação internacional para o desenvolvimento de
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instrumentos de salvaguarda, tanto dos processos de produção e transmissão de conhecimentos genuínos e tradicionais, quanto dos direitos das coletividades sobre seus conhecimentos, cosmologias e técnicas aplicadas.
A atual legislação que trata da proteção do patrimônio cultural brasileiro tem seguido as recomendações da Unesco; é fundamentada em bases relativistas que já vinham sendo construídas e amadurecidas ao longo da história.
Nos artigos 215 e 216 da Constituição promulgada em 1988, o conceito de Patrimônio Cultural abarca tanto obras arquitetônicas, urbanísticas e artísticas de grande valor o patrimônio material quanto manifestações de natureza “imaterial”, relacionadas à cultura no sentido antropológico: visões de mundo, memórias, relações sociais e simbólicas, saberes e práticas; experiências diferenciadas nos grupos humanos, chaves das identidades sociais. Incluem-se aí as celebrações e saberes da cultura popular as festas, a religiosidade, a musicalidade e as danças, as comidas e bebidas, as artes e artesanatos, os mistérios e mitos, a literatura oral e tantas, tantas expressões diferentes que fazem nosso país culturalmente tão diverso e rico.
O principal instrumento de preservação do patrimônio material é o instituto do tombamento, cuja legislação está sendo amadurecida desde pelo menos a primeira metade do século XX.
A legislação para o patrimônio imaterial, entretanto, é recente. No Decreto n. 3.551 de 04 de agosto de 2000, os principais instrumentos de salvaguarda desse patrimônio, até hoje instituídos, são o inventário permanente, o registro em livros análogos aos livros de tombo e as políticas de preservação e fomento que devem ser estabelecidas.
Esses instrumentos não são fechados, normativos e restritivos, mas abertos aos pontos de vista e expectativas dos portadores de tradições culturais específicas. Pressupõem a dinâmica própria dessas tradições, sem pretender, portanto, “engessar” suas formas e conteúdos no tempo e no espaço, o que é fundamental, pois a questão não é nada, nada simples.
Apenas a legislação não basta para garantir a salvaguarda desses bens. De fato, muitas expressões culturais da maior importância se perderam por falta de legislação eficiente, mas também existem muitos bens culturais que se conservaram por séculos e séculos sob nenhuma ou apenas incipiente legislação de proteção. As leis, sem dúvida, podem favorecer as condições para a preservação do patrimônio cultural; mas ele só é efetivamente preservado por meio da vivência voluntária das pessoas.
Os documentos engavetados, os inventários, a descrição dos bens contidas nos livros do Iphan são apenas referências dos bens, mas não dão conta dos bens em si, que têm natureza dinâmica e intangível. O patrimônio imaterial como as festas e celebrações, as músicas, danças, comidas,
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saberes e técnicas próprias da cultura popular só se conservarão, efetivamente, se vividos por pessoas em condições, com garantias, liberdade e interesses em vivenciá-los de modo dinâmico e criativo.
Assim, a nova legislação de preservação do patrimônio cultural só será eficaz na medida em que seja amplamente conhecida pelos diferentes segmentos da sociedade e que as comunidades locais e a sociedade abrangente tenham condições de estar mobilizadas para a prática permanente, para a transmissão e aprendizado de saberes, a pesquisa, documentação, apoio e reconhecimento da riqueza cultural brasileira, de maneira crítica e participativa.
Destaca-se, então, o fundamental papel da escola, e dos educadores em geral, na atualização constante dos princípios
do relativismo cultural para as novas gerações; na valorização da diversidade cultural com respeito e tolerância; no estímulo permanente à curiosidade pelas culturas e identidades tradicionais das comunidades locais, divulgando-as para que sejam conhecidas e reconhecidas na própria comunidade e na sociedade abrangente. De modo que seja preservada a vontade de apreender, compreender, vivenciar, repassar e reinventar as tradições com liberdade, criatividade e senso de justiça social. Posto que a preservação da diversidade cultural e a superação das desigualdades socioeconômicas são um dos maiores desafios que a sociedade brasileira enfrenta neste século XXI.
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O Povo Brasileiro: a Formação e o Sentido do Brasil O Brasil e os brasileiros, sua gestação como povo, é o que trataremos de reconstituir e compreender nos capítulos seguintes. Surgimos da confluência, do entrechoque e do caldeamento do invasor português com índios silvícolas e campineiros e com negros africanos, uns e outros aliciados como escravos. Nessa confluência, que se dá sob a regência dos portugueses, matrizes raciais díspares, tradições culturais distintas, formações sociais defasadas se enfrentam e se fundem para dar lugar a um povo novo (Ribeiro 1970), num novo modelo de estruturação societária. Novo porque surge como uma etnia nacional, diferenciada culturalmente de suas matrizes formadoras, fortemente mestiçada, dinamizada por uma cultura sincrética e singularizada pela redefinição de traços culturais delas oriundos. Também novo porque se vê a si mesmo e é visto como uma gente nova, um novo gênero humano diferente de quantos existam. Povo novo, ainda, porque é um novo modelo de estruturação societária, que inaugura uma forma singular de organização sócio-econômica, fundada num tipo renovado de escravismo e numa servidão continuada ao mercado mundial. Novo, inclusive, pela inverossímil alegria e espantosa vontade de felicidade, num povo tão sacrificado, que alenta e comove a todos os brasileiros. Velho, porém, porque se viabiliza como um proletariado externo. Quer dizer, como um implante ultramarino da expansão européia que não existe para si mesmo, maspara gerar lucros exportáveis pelo exercício da função de provedor colonial de bens para o mercado mundial, através do desgaste da população que recruta no país ou importa.
A sociedade e a cultura brasileiras são conformadas como variantes da versão lusitana da tradição civilizatória européia ocidental, diferenciadas por coloridos herdados dos índios americanos e dos negros africanos. O Brasil emerge, assim, como um renovo mutante, remarcado de características próprias, mas atado genesicamente à matriz portuguesa, cujas potencialidades insuspeitadas de ser e de crescer só aqui se realizariam plenamente.
A confluência de tantas e tão variadas matrizes formadoras poderia ter resultado numa sociedade multiétnica, dilacerada pela oposição de componentes diferenciados e imiscíveis. Ocorreu justamente o contrário, uma vez que, apesar de sobreviverem na fisionomia somática e no espírito dos brasileiros os signos de sua múltipla ancestralidade, não se diferenciaram em antagônicas minorias raciais, culturais ou regionais, vinculadas a lealdades étnicas próprias e disputantes de autonomia frente à nação. As únicas exceções são algumas microetnias tribais que sobreviveram como ilhas, cercadas pela população brasileira. Ou que, vivendo' para além das fronteiras da civilização, conservam sua identidade étnica. São tão pequenas, porém, que qualquer que seja seu destino, já não podem afetar à macroetnia em que estão contidas. O que tenham os brasileiros de singular em relação aos portugueses decorre das qualidades diferenciadoras oriundas de suas matrizes indígenas e africanas; da proporção particular em que elas se congregaram no Brasil; das condições ambientais que enfrentaram aqui e, ainda, da natureza dos objetivos de produção que as engajou e reuniu.
Essa unidade étnica básica não significa, porém, nenhuma uniformidade, mesmo porque atuaram sobre ela três forças diversificadoras. A ecológica, fazendo surgir paisagens humanas distintas onde as condições de meio ambiente obrigaram a adaptações regionais. A econômica, criando formas diferenciadas de produção, que conduziram a especializações funcionais e aos seus correspondentes gêneros de vida. E, por último, a imigração, que introduziu, nesse magma, novos contingentes humanos, principalmente europeus, árabes e japoneses. Mas já o encontrando formado e capaz de absorvê-los e abrasileirá-los, apenas estrangeirou alguns brasileiros ao gerar diferenciações nas áreas ou nos estratos sociais onde os imigrantes mais se concentraram. Por essas vias se plasmaram historicamente diversos modos rústicos de ser dos brasileiros, que permitem distingui-los, hoje, como sertanejos do Nordeste, caboclos da Amazônia, crioulos do litoral, caipiras do Sudeste e Centro do país, gaúchos das campanhas sulinas, além de ítalo-brasileiros, teuto-brasileiros, nipo-brasileiros etc. Todos eles muito mais marcados pelo que têm de comum como brasileiros, do que pelas diferenças devidas a adaptações regionais ou funcionais, ou de miscigenação e aculturação que emprestam fisionomia própria a uma ou outra parcela da população. A urbanização, apesar de criar muitos modos citadinos de ser, contribuiu para ainda mais uniformizar os brasileiros no plano cultural, sem, contudo, borrar suas diferenças. A industrialização, enquanto gênero de vida que cria suas próprias paisagens humanas, plasmou ilhas fabris em suas regiões. As novas formas de comunicação de massa estão funcionando ativamente como difusoras e uniformizadoras de novas formas e estilos culturais. Conquanto diferenciados em suas matrizes raciais
e culturais e em suas funções ecológico-regionais, bem como nos perfis de descendentes de velhos povoadores ou de imigrantes recentes, os brasileiros se sabem, se sentem e se comportam como uma só gente, pertencente a uma mesma etnia. Vale dizer, uma entidade nacional distinta de quantas haja, que fala uma mesma língua, só diferenciada por sotaques regionais, menos remarcados que os dialetos de Portugal. Participando de um corpo de tradições comuns mais significativo para todos que cada uma das variantes subculturais que diferenciaram os habitantes de uma região, os membros de uma classe ou descendentes de uma das matrizes formativas. Mais que uma simples etnia, porém, o Brasil é uma etnia nacional, um povo-nação, assentado num território próprio e enquadrado dentro de um mesmo Estado para nele viver seu destino. Ao contrário da Espanha, na Europa, ou da Guatemala, na América, por exemplo, que são sociedades multiétnicas regidas por Estados unitários e, por isso mesmo, dilaceradas por conflitos interétnicos, os brasileiros se integram em uma única etnia nacional, constituindo assim um só povo incorporado em uma nação unificada, num Estado uni-étnico. A única exceção são as múltiplas microetnias tribais, tão imponderáveis que sua existência não afeta o destino nacional. Aquela uniformidade cultural e esta unidade nacional - que são, sem dúvida, a grande resultante do processo de formação do povo brasileiro - não devem cegar-nos, entretanto, para disparidades, contradições e antagonismos que subsistem debaixo delas como fatores dinâmicos da maior importância. A unidade nacional, viabilizada pela integração econômica sucessiva dos diversos implantes coloniais, foi consolidada, de fato, depois da independência, como um objetivo expresso, alcançado através de lutas cruentas e da
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sabedoria política de muitas gerações. Esse é, sem dúvida, o único mérito indiscutível das velhas classes dirigentes brasileiras. Comparando o bloco unitário resultante da América portuguesa com o mosaico de quadros nacionais diversos a que deu lugar a América hispânica, pode se avaliar a extraordinária importância desse feito.
Essa unidade resultou de um processo continuado e violento de unificação política, logrado mediante um esforço deliberado de supressão de toda identidade étnica discrepante e de repressão e opressão de toda tendência virtualmente separatista. Inclusive de movimentos sociais que aspiravam fundamentalmente edificar uma sociedade mais aberta e solidária. A luta pela unificação potencializa e reforça, nessas condições, a repressão social e classista, castigando como separatistas movimentos que eram meramente republicanos ou antioligárquicos.
Subjacente à uniformidade cultural brasileira, esconde-se uma profunda distância social, gerada pelo tipo de estratificação que o próprio processo de formação nacional produziu. O antagonismo classista que corresponde a toda estratificação social aqui se exacerba, para opor uma estreitíssima camada privilegiada ao grosso da população, fazendo as distâncias sociais mais intransponíveis que as diferenças raciais.
O povo-nação não surge no Brasil da evolução de formas anteriores de sociabilidade, em que grupos humanos se estruturam em classes opostas, mas se conjugam para atender às suas necessidades de sobrevivência e progresso. Surge, isto sim, da concentração de uma força de trabalho escrava, recrutada para servir a propósitos mercantis alheios a ela, através de processos tão violentos de ordenação e repressão que constituíram, de fato, um continuado genocídio e um etnocídio implacável.
Nessas condições, exacerba-se o distanciamento social entre as classes dominantes e as subordinadas, e entre estas e as oprimidas, agravando as oposições para acumular, debaixo da uniformidade étnico-cultural e da unidade nacional, tensões dissociativas de caráter traumático. Em conseqüência, as elites dirigentes, primeiro lusitanas, depois luso-brasileiras e, afinal, brasileiras, viveram sempre e vivem ainda sob o pavor pânico do alçamento das classes oprimidas. Boa expressão desse pavor pânico é a brutalidade repressiva contra qualquer insurgência e a predisposição autoritária do poder central, que não admite qualquer alteração da ordem vigente. A estratificação social separa e opõe, assim, os brasileiros ricos e remediados dos pobres, e todos eles dos miseráveis, mais do que corresponde habitualmente a esses antagonismos. Nesse plano, as relações de classes chegam a ser tão infranqueáveis que obliteram toda comunicação propriamente humana entre a massa do povo e a minoria privilegiada, que a vê e a ignora, a trata e a maltrata, a explora e a deplora, como se esta fosse uma conduta natural.
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A façanha que representou o processo de fusão racial e cultural é negada, desse modo, no nível aparentemente mais fluido das relações sociais, opondo à unidade de um denominador cultural comum, com que se identifica um povo de 160 milhões de habitantes, a dilaceração desse mesmo povo por uma estratificação classista de nítido colorido racial e do tipo mais cruamente desigualitário que se possa conceber. O espantoso é que os brasileiros, orgulhosos de sua tão proclamada, como falsa, "democracia racial", raramente percebem os profundos abismos que aqui separam os estratos sociais.
O mais grave é que esse abismo não conduz a conflitos tendentes a transpô-lo, porque se cristalizam num modus vivendi que aparta os ricos dos pobres, como se fossem castas e guetos. Os privilegiados simplesmente se isolam numa barreira de indiferença para com a sina dos pobres, cuja miséria repugnante procuram ignorar ou ocultar numa espécie de miopia social, que perpetua a alternidade. O povo-massa, sofrido e perplexo, vê a ordem social como um sistema sagrado que privilegia uma minoria contemplada por Deus, à qual tudo é consentido e concedido. Inclusive o dom de serem, às vezes, dadivosos, mas sempre frios e perversos e, invariavelmente, imprevisíveis. Essa alternidade só se potencializou dinamicamente nas lutas seculares dos índios e dos negros contra a escravidão.
Depois, somente nas raras instâncias em que o povo-massa de uma região se organiza na luta por um projeto próprio e alternativo de estruturação social, como ocorreu com os Cabanos, em Canudos, no Contestado e entre os Mucker.
Nessas condições de distanciamento social, a amargura provocada pela exacerbação do preconceito classista e pela consciência emergente da injustiça bem pode eclodir, amanhã, em convulsões anárquicas que conflagrem toda a sociedade. Esse risco sempre presente é que explica a preocupação obsessiva que tiveram as classes dominantes pela manutenção da ordem. Sintoma peremptório de que elas sabem muito bem que isso pode suceder, caso se abram as válvulas de contenção. Daí suas "revoluções preventivas", conducentes a ditaduras vistas como um mal menor que qualquer remendo na ordem vigente.
É de assinalar que essa preocupação se assentava, primeiro, no medo da rebeldia dos escravos. Dada a coloração escura das camadas mais pobres, esse medo racial persiste, quando são os antagonismos sociais que ameaçam eclodir com violência assustadora. Efetivamente, poderá assumir a forma de convulsão social terrível, porque, com uma explosão emocional, acabaria provavelmente vencida e esmagada por forças repressoras, que restaurariam, sobre os escombros, a velha ordem desigualitária.
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O grande desafio que o Brasil enfrenta é alcançar a necessária lucidez para concatenar essas energias e orientá-las politicamente, com clara consciência dos riscos de retrocessos e das possibilidades de liberação que elas ensejam. O povo brasileiro pagou, historicamente, um preço terrivelmente alto em lutas das mais cruentas de que se tem registro na história, sem conseguir sair, através delas, da situação de dependência e opressão em que vive e peleja. Nessas lutas, índios foram dizimados e negros foram chacinados aos milhões, sempre vencidos e integrados nos plantéis de escravos. O povo inteiro, de vastas regiões, às centenas de milhares, foi também sangrado em contra-revoluções sem conseguir jamais, senão episodicamente, conquistar o comando de seu destino para reorientar o curso da história. Ao contrário do que alega a historiografia oficial, nunca faltou aqui, até excedeu, o apelo à violência pela classe dominante como arma fundamental da construção da história. O que faltou, sempre, foi espaço para movimentos sociais capazes de promover sua reversão. Faltou sempre, e falta ainda, clamorosamente, uma clara compreensão da história vivida, como necessária nas circunstâncias em que
ocorreu, e um claro projeto alternativo de ordenação social, lucidamente formulado, que seja apoiado e adotado como seu pelas grandes maiorias. Não é impensável que a reordenação social se faça sem convulsão social, por via de um reformismo democrático. Mas ela é muitíssimo improvável neste país em que uns poucos milhares de grandes proprietários podem açambarcar a maior parte de seu território, compelindo milhões de trabalhadores a se urbanizarem para viver a vida famélica das favelas, por força da manutenção de umas velhas leis. Cada vez que um político nacionalista ou populista se encaminha para a revisão da institucionalidade, as classes dominantes apelam para a repressão e a força.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
RIBEIRO, Darcy. O Povo Brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. 2ª Ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.(texto introdutório).
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O VerdeamarelismoMarilena Chauí
O monumento
É de papel crepom e prata
Os olhos verdes da mulata
A cabeleira esconde atrás
Da verde mata
O luar do sertão
CAETANO VELOSO
Em 1958, quando a seleção brasileira de Futebol ganhou a Copa do Mundo, músicas populares a afirmavam que “a copa
o mundo e nossa porque com brasileiro não há quem possa”, e o brasileiro era descrito como “bom no couro” e “bom no
samba”. A celebração consagrava o tripé da imagem da excelência brasileira: café, carnaval e futebol. Em contrapartida,
quando a seleção, agora chamada de “Canarinha”, venceu o torneio mundial em 1970, surgiu um verdadeiro hino celebratório,
cujo início dizia: “Noventa milhões em ação/ Pra frente, Brasil, do meu coração”. A mudança do ritmo - do samba para a
marcha -, a mudança do sujeito - do brasileiro bom no couro aos 90 milhões em ação - e a mudança do significado da vitória -
de “a copa do mundo é nossa” ao “pra frente, Brasil” não foram alterações pequenas.
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Em 1958, sob o governo de Juscelino Kubitschek, vivia-se sob a ideologia do desenvolvimentismo, isto é, de um país que
se industrializava voltado para o mercado interno, para “o brasileiro”, e que incentivava a vinda do capital internacional como
condição preparatória para, conseguido o desenvolvimento, competir com ele em igualdade de condições. Em 1970, vivia-se
sob a ditadura militar pós-Ato Institucional nº 5, sob a repressão ou o terror de Estado e sob a ideologia do “Brasil Grande”, isto
é, da chamada “integração nacional”, com rodovias nacionais e cidades monumentais, uma vez mais destinadas a atrair o
grande capital internacional. Nas comemorações de 1958 e de 1970, a população saiu às ruas vestidas de verde-amarelo ou
carregando objetos verdes e amarelos. Ainda que, desde 1958, soubéssemos que “verde, amarelo, cor de anil! são as cores
do Brasil”, os que participaram da primeira festa levavam as cores nacionais, mas não levavam a bandeira nacional. A festa
era popular. A bandeira brasileira fez sua aparição hegemônica nas festividades de 1970, quando a vitória foi identificada com
a ação do Estado e se transformou em festa cívica.
Essas diferenças não são pequenas, porém não são suficientes para impedir que, sob duas formas aparentemente
diversas, permaneça o mesmo fundo, o verdeamarelismo.
O QUE É O VERDEAMARELISMO?7
O verdeamarelismo foi elaborado no curso dos anos pela classe dominante brasileira como imagem celebrativa do “país
essencialmente agrário” e sua construção coincidem com o período em que o “princípio da nacionalidade” era definido pela
extensão do território e pela densidade demográfica. De fato, essa imagem visava legitimar o que restara do sistema colonial e
a hegemonia dos proprietários de terra durante o Império e o início da República (1889). Como explica Caio Prado Jr.:“Se vamos à essência de nossa formação, veremos que na realidade nos constituímos para fornecer açúcar, tabaco, alguns outros gêneros; mais tarde, ouro e diamantes; depois, algodão e, em seguida, café, para o comércio europeu. Nada mais que
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isto. É com tal objetivo [...] que se organizarão a sociedade e a economia brasileiras. Tudo se disporá naquele sentido: a estrutura bem como as atividades do país”.8
Ou como nos diz Fernando Novais:“A colonização guardou em sua essência o sentido de empreendimento comercial donde proveio, a não-existência de produtos comercializáveis levou à sua produção, e disto resultou a ação colonizadora [...]. A colonização moderna, portanto, [...] tem uma natureza' essencialmente comercial: produzir para o mercado externo, fornecer produtos tropicais e metais nobres à economia européia [...] apresenta-se como peça de um sistema, instrumento da acumulação primitiva da época do capitalismo mercantil”.9
O “país essencialmente agrário”, portanto, era, na verdade, o país historicamente articulado ao sistema colonial do
capitalismo mercantil e determinado pelo modo de produção capitalista a ser uma colônia de exploração e não uma colônia de
povoamento. A primeira “tem urna economia voltada para o mercado externo metropolitano e a produção se organiza na
grande propriedade escravista”, enquanto na segunda “a produção se processa mais em função do próprio consumo interno da
colônia, onde predomina a pequena propriedade”. Em outras palavras, a colônia de povoamento é aquela que não desperta o
interesse econômico da metrópole e permanece à margem do sistema colonial, enquanto a colônia de exploração está
ajustada às exigências econômicas do sistema.
Em suma, o verdeamarelismo parece ser a ideologia daquilo que Paul Singer chama de “dependência consentida”:“Depois que a América Latina se tornou independente, os donos das terras, das minas, do gado etc. tornaram-se, em cada país, a classe dominante, tendo ao seu lado uma elite de comerciantes e financistas que superintendia os canais que ligavam atividades agrícolas e/ou extrativas. A nova classe dominante via na dependência de seus países dos países capitalistas adiantados [...] o elo que os ligava à civilização, da qual se acreditavam os únicos e autênticos representantes [...]. Assim, é justo apelidar esta situação que se criou com a independência e que durou, em geral, até a Primeira Guerra Mundial de dependência consentida. Ela se caracterizava pela ausência de qualquer dinâmica interna capaz de impulsionar o desenvolvimento. [...] Sob a forma do capital público ou privado, o desenvolvimento da infra-estrutura de serviços dependia diretamente do que cada região conseguia colocar no mercado mundial. Essa realidade era compreendida e aceita pelo conjunto da sociedade”.10
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Nessa época, quando a classe dominante falava em “progresso” ou em “melhoramento”, pensava no avanço das
atividades agrárias e extrativas, sem competir com os países metropolitanos ou centrais, acreditando que o país melhoraria ou
progrediria com a expansão dos ramos determinados pela geografia e pela geologia, que levavam a urna especialização
racional em que todas as atividades econômicas eram geradoras de lucro, utilidade e bem-estar. Donde a expressão
ideológica dessa classe aparecer no otimismo da exaltação da Natureza e do “tipo nacional” pacífico e ordeiro. Além disso,
corno lembra Celso Furtado, no momento em que a divisão internacional do trabalho especializa alguns países na atividade
agrário-exportadora, há urna expansão econômica cujo excedente não é investido em atividades produtivas e sim dirigido ao
consumo das classes abastadas, que faziam do consumo de luxo um instrumento para marcar a diferença social e o fosso que
as separava do restante da população. A essa expansão e a esse consumo, a classe dominante deu o nome e “progresso”.
O que parece surpreendente, portanto, é o fato de que o verdeamarelismo se tenha conservado quando parecia já não
haver base material para sustentá-lo. Ou seja, se ele foi a ideologia dos senhores de terra do sistema colonial, do Império e da
República Velha, deveríamos presumir que desaparecesse por ocasião do processo de industrialização e de urbanização.
Seria perfeitamente plausível imaginar que desaparecesse quando as duas guerras mundiais desfizeram as bases da divisão
internacional do trabalho e do mercado mundial de capitais, cada nação fazendo um mínimo de importações, voltando-se para
o mercado interno, com estímulo à substituição das importações pela produção local das mercadorias e colocando urna
burguesia urbana industrial, comercial e financeira na hegemonia do processo histórico. Não foi o caso.
Não que não tenha havido tentativas para abandonar o verdeamarelismo. Houve, podemos, brevemente, lembrar, no
entre - guerras, o esforço demolidor feito pelo Modernismo, quando, entre 1920 e 1930, se processa o primeiro momento da
industrialização, em São Paulo, e se prepara o rearranjo da composição de forças das classes dominantes, com a entrada em
cena da burguesia industrial. No entanto, não se pode também deixar de lembrar que, significativamente, um grupo modernista
criará o verdeamarelismo corno movimento cultural e político e dele sairá tanto o apoio ao nacionalismo da ditadura Vargas (é
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o caso da obra do poeta prosador Cassiano Ricardo) corno a versão brasileira do fascismo, a Ação Integralista Brasileira, cujo
expoente é o romancista Plínio Salgado.
Podemos também mencionar a tentativa de afastar o nacionalismo do “país essencialmente agrário” com a elaboração de
uma nova ideologia, o nacionalismo desenvolvimentista, feita pelo Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB) 11, nos anos
1950, no período da industrialização promovida pelo governo Kubitschek. Se mantivermos a periodização de Hobsbawm, os
trabalhos do ISEB correspondem ao período em que a idéia de nação é construí da como “questão nacional” vinculada à
“consciência nacional” das classes sociais. E se usarmos nossa periodização, estaremos no momento de passagem da
ideologia do “caráter nacional” para a da “identidade nacional”. Conservando a terminologia proposta por Paul Singer10, a
fabricação da ideologia nacional-desenvolvimentista se dá no momento da passagem da “dependência consentida” para a
“dependência tolerada”, quando a classe dominante, dependendo dos países centrais industrializados para obter
equipamentos, tecnologia e financiamentos, julga essa situação “essencialmente provisória, a ser superada tão logo a
industrialização fizesse a economia emparelhar com a mais adiantada” e “o desenvolvimento almejado pela periferia destinava-
se a revogar a divisão colonial do trabalho que a inferiorizava perante o centro”. Nessas circunstâncias, era compreensível o
esforço para desmontar o verdeamarelismo, pois ele significava, justamente, o atraso que se pretendia superar. No entanto,
como veremos mais adiante, de maneira difusa e ambígua, o verdeamarelismo permaneceu.
Enfim, não é demais lembrar ainda, no final dos anos 1950 e início dos anos 1960 (durante o governo de Jango Goulart),
a tentativa de desmontar o imaginário verde-amarelo com a ação cultural das esquerdas, que, na perspectiva da “identidade
nacional”, focalizavam a luta de classes (ainda que na expectativa de uma “revolução burguesa” que uniria burguesia nacional
e vanguarda do proletariado) e enfatizavam o nacional-popular nos Centros Populares de Cultura (CPCs), no novo teatro, de
inspiração brechtiana, e no cinema Novo. E não menos significativas na recusa do verdeamarelismo foram a ironia corrosiva
do Tropicalismo, no final dos anos 1960 e início dos anos 1970 (durante o período do “milagre brasi1eiro”, promovido pela
ditadura), e.a poesia e música de protesto, a nova MPB, no correr dos anos 70 e início dos 80.
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No entanto, nem os modernistas, nem o ISEB, nem os CPCs, nem o Cinema Novo, nem o Tropicalismo, nem a MPB de
protesto conseguiram aniquilar a imagem verde-amarela, que se consolidou e brilha incólume naquela outra imagem,
doravante apropriada pela contemporânea indústria do turismo: café, futebol e carnaval, made in Brazil.
Essa permanência não é casual nem espontânea, visto que a industrialização jamais se tornou o carro-chefe da
economia brasileira como economia capitalista desenvolvida e independente. Na divisão internacional do trabalho, a
industrialização se deu por transferência de setores industriais internacionais para o Brasil, em decorrência do baixo custo da
mão-de-obra, e o setor agrário-exportador jamais perdeu força social e política. Se antes o verdeamarelismo correspondia à
auto-imagem celebrativa dos dominantes, agora ele opera como compensação imaginária para a condição periférica e
subordinada do país. Além disso, justamente porque aquele era o período da “questão nacional”, houve a ação deliberada do
Estado na promoção da imagem verde-amarela.
De fato, apesar do Modernismo cultural dos anos 20-30, durante o Estado Novo (1937-45), a luta contra a dispersão e a
fragmentação do poder enfeixado pelas oligarquias estaduais (ou a chamada “política dos governadores”) e a afirmação da
unidade entre Estado e nação, corporificados no chefe do governo, levaram, simbolicamente, à queima das bandeiras
estaduais e à obrigatoriedade do culto à bandeira e ao hino nacionais nas escolas de todos os graus. É dessa época a
exigência legal de que as escolas de samba utilizassem temas nacionais em seus enredos 12. Num governo de estilo fascista e
populista, o Estado passou a usar diretamente os meios de comunicação, com a compra de jornais e de rádios (como a Rádio
Nacional do Rio de Janeiro) e com a transmissão da “Hora do Brasil”. Esta possuía três finalidades: “informativa, cultural e
cívica. Divulgava discursos oficiais e atos do governo, procurava estimular o gosto pelas artes populares e exaltava o
patriotismo, rememorando os feitos gloriosos do passado”. Mas não só isso. Os programas deviam também “decantar as
belezas naturais do país, descrever as características pitorescas das regiões e cidades, irradiar cultura, enaltecer as
conquistas do homem em todas as atividades, incentivar relações comerciais” e, voltando-se para o homem do interior,
contribuir “para seu desenvolvimento e sua integração na coletividade nacional”. É dessa época a “Aquarela do Brasil” (de Ary
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Barroso), que canta as belezas naturais, mas também o “Brasil brasileiro”, isto é, o “mulato inzoneiro”, os olhos verdes da
mulata, o samba, o “Brasil lindo e trigueiro”. Não é casual que a mesma época que ouvia a “Aquarela do Brasil” também lia a
Marcha para o Oeste, de Cassiano Ricardo, para quem o Brasil era “um escândalo de cores”, escrevendo: “Parece que Deus
derramou tinta por tudo”, céu de anil, flores e pássaros em que gritam o amarelo avermelhado do sol e do ouro, riquezas
fabulosas e “todas as cores raciais, na paisagem humana”.
Esses elementos são indicadores seguros da presença do verdeamarelismo. Sua função, porém, deslocou-se. Com
efeito, se compararmos o verdeamarelismo desse período com outras expressões anteriores (como o nativismo romântico, do
século XIX, e o ufanismo do início do século XX), notaremos que, antes, a ênfase recaía sobre a Natureza, e, agora, algo mais
apareceu. De fato, não se tratava apenas de manter a celebração da Natureza e sim de introduzir na cena política uma nova
personagem: o povo brasileiro. Dada a inspiração fascista da ditadura Vargas, afirmava-se que o verdadeiro Brasil não estava
em modelos europeus ou norte-americanos, mas no nacionalismo erguido sobre as tradições nacionais e sobre o nosso povo.
Dessas tradições, duas eram sublinhadas: a unidade nacional, conquistada no período imperial - o que levou o Estado Novo a
transformar Caxias, sol dado do Império, em herói nacional da República -, e a ação civilizatória dos portugueses, que
introduziram a unidade religiosa e de língua, a tolerância racial e a mestiçagem, segundo a interpretação paternalista oferecida
pela obra de Gilberto Freyre, Casa-Brande e senzala. Em outras palavras, sublinham-se os dois elementos do “princípio da
nacionalidade”, que vimos anteriormente. No entanto, estamos também na época da “questão nacional” e por isso uma
novidade comparece na definição do povo. Embora seja mantidas a tese da democracia racial e a imagem do povo mestiço,
mescla de três raças, agora, porém, “povo” é, sobretudo, de um lado, o bandeirante ou sertanista desbravador do território e,
de outro, os pobres, isto é, “os trabalhadores do Brasil”.
Em outras palavras, o verdeamarelismo, sob a ideologia da “questão nacional”, precisa incorporar a luta de classes em
seu ideário, mas de modo tal que, ao admitir a existência da classe trabalhadora, possa imediatamente neutralizar os riscos da
ação política dessa classe, o que é feito não só pela legislação trabalhista (inspirada no corporativismo da Itália fascista) e pela
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figura do governante como “pai dos pobres”, mas também por sua participação no “caráter nacional”, isto é, como membro da
família brasileira, generosa, fraterna, honesta, ordeira e pacífica. O verdeamarelismo assegura que aqui não há lugar para luta
de classes e sim para a cooperação e a colaboração entre o capital e o trabalho, sob direção e vigilância do Estado.
Convém também não esquecermos que o pan-americanismo, instituído pelo Departamento de Estado norte-americano
durante os anos da Segunda Guerra Mundial (1939-45), promoveu a “amizade entre os povos americanos” e transformou
Carmem Miranda em embaixadora da boa-vontade, obrigando-a, com contratos de trabalho abusivos que estipulavam seu
vestuário e suas falas, a difundir a imagem telúrica e alegre do Brasil, cuja capital era Buenos Aires e c música era mescla de
samba, rumba, tango, conga e salsa. Para acompanhá-la, estúdios de Walt Disney criaram o papagaio malandro, Zé Carioca.
Sem dúvida, terminada a guerra e entrado o país na época da “dependência tolerada”, os anos 50 do século XX viram
surgir como imagem emblemática do país a cidade de São Paulo, em cujo IV Centenário (em janeiro de 1954) comemorava-se
“a cidade que mais cresce no mundo”, pois “São Paulo não pode parar”, de tal maneira que a força do capital industrial deveria
levar a uma transformação ideológica na qual o desenvolvimento econômico apareceria como obra dos homens e deixaria
para trás o país como dádiva de Deus e da Natureza. E o suicídio de Vargas, em agosto de 1954, faria supor que o
verdeamarelismo estava enterrado para sempre. Durante os anos 50, o desenvolvimentismo teve como mote “a mudança da
ordem dentro da ordem”, para significar que o país, diminuindo o poder e o atraso do latifúndio e da burguesia mercantil
(parasita alienados) e neutralizando os perigos trazidos pela classe operária (massa popular atrasada e alienada), se tornaria
um igual no “concerto das nações”. Entramos, assim, no período da “identidade nacional” e da “consciência nacional”, se
acompanharmos a periodização de Hobsbawm.
No entanto, a imagem verdeamarela13 permaneceu e isso por dois motivos principais: em primeiro lugar, ela permitia
enfatizar que o país possuía recursos próprios para o desenvolvimento e que a abundância da matéria-prima e de energia
baratas vinha justamente de sermos um país de riquezas naturais inesgotáveis; em segundo lugar, ela assegurava que o
mérito do desenvolvimentismo se encontrava na destinação do capital e do trabalho para o mercado interno e, portanto, para o
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crescimento e o progresso da nação contra o imperialismo ou a antinação. Todavia, o verdeamarelismo tradicional - o da rica e
bela natureza tropical e o do povo ordeiro e pacífico, ou o do “caráter nacional” - sofreu um forte abalo, pois passou a ser visto
pelos promotores do nacional-desenvolvimentismo como signo da alienação social dos “setores atrasados” das classes
dominantes e das massas populares, obstáculo contra o desenvolvimento econômico e social, que seria obra da burguesia
nacional industrial moderna e das classes médias conscientes, encarregadas de conscientizar as massas.
Desse modo, o verdeamarelismo comparecia sob duas roupagens antagônicas: numa delas, ele exprimia a maneira
ingênua e alienada com que se manifesta o nacionalismo natural e espontâneo das massas, as quais, dessa maneira,
reconhecem as potencialidades do país para passar da pobreza e do atraso ao desenvolvimento e à modernidade. Na outra,
ele era o signo da própria alienação social, produzida pela classe dominante do período colonial e imperial e difundida por uma
classe média parasitária, caudatário da imagem que os imperialistas ou as metrópoles inventaram e que os nacionais,
alienados, imitaram e prosseguiram. Para muitos, tratava-se de substituir o nacionalismo espontâneo, alienado e inautêntico
por um nacionalismo crítico, consciente e autêntico, o nacional-popular, graças ao qual o setor avançado da burguesia
nacional e o setor consciente do proletariado, unidos, combateriam o colonialismo e o imperialismo, realizando o
desenvolvimento nacional e dando realidade ao “ser do brasileiro”, à “identidade nacional”.
Se, em meados dos anos 50 e início dos anos 60, o verdeamarelismo foi um pano de fundo difuso e ambíguo,
significando nacionalismo espontâneo e alienação, em contrapartida foi revitalizado e reforçado nos anos da ditadura (1964-
1985) ou do “Brasil Grande”. Essa reposição verde amarela não é surpreendente.
Antes de mais nada, lembremos que a derrubada do governo de Jango Goulart é preparada nas ruas com o movimento
“Tradição, família e propriedade” para significar que as esquerdas são responsáveis pela desagregação da nacionalidade cujos
valores - a tradição, a família e a propriedade privada - devem ser defendidos a ferro e fogo. Todavia, não é essa a mais forte
razão para a manutenção do verdeamarelismo e sim a ideologia geopolítica do Brasil Potência 2000, cujo expositor mais
importante foi o general Golbery do Couto e Silva.
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Se, como no IV Centenário de São Paulo, a exibição das grandes cidades, coalhadas de arranha-céus e vias expressas
(mas, agora, em preito de gratidão pelo apoio financeiro e logístico que as grandes empreiteiras deram à obra da repressão
militar), interligadas por auto-estradas nacionais, devia oferecer a imagem do Brasil Grande, apto a receber os investimentos
internacionais e a acolher as empresas multinacionais, agora, porém, essa imagem encontrava seu fundamento na ideologia
geopolítica do Brasil Potência 2000, que tem na vastidão do território, nas riquezas naturais e nas qualidades pacíficas,
empreendedoras e ordeiras do povo os elementos para cumprir sua destinação.
Essa ideologia assenta-se em cinco pilares: 1) a relação mecânica de conveniência entre as “forças do território” e as
“disposições nacionais”; 2) a consubstanciação entre o povo e o território, que começa pela demarcação das fronteiras nas
quais se desenvolverá a “personalidade nacional”; 3) a refração do povo sobre o território, isto é, a transformação dos valores
objetivos do território em valores subjetivos da alma ou personalidade nacional, graças ao que o Estado se torna orgânico e
nacional; 4) a “fronteira ideal”, isto é, o território completo, prometido ao povo pela ação militar e econômica; 5) a geopolítica
como “consciência política do Estado”, que se alia ao centro dinâmico da sua região (no caso, aos Estados Unidos) e da qual
emana o sistema de alianças e de conflitos leste-oeste, norte-sul. É esse o território dos “90 milhões em ação”.
A ditadura, desde o golpe de Estado de 1964, deu a si mesma três tarefas: a integração nacional (a consolidação da
nação contra sua fragmentação e dispersão em interesses regionais), a segurança nacional (contra o inimigo interno e externo,
isto é, a ação repressiva do Estado na luta de classes) e o desenvolvimento nacional (nos moldes das nações democráticas
ocidentais cristãs, isto é, capitalistas). A difusão dessas idéias foi feita nas escolas com a disciplina de educação moral e
cívica, na televisão com programas como” Amaral Neto, o repórter” e os da Televisão Educativa, e pelo rádio por meio da
“Hora do Brasil” e do Mobral (Movimento Brasileiro de Alfabetização), encarregado, de um lado, de assegurar mão-de-obra
qualificada para o novo mercado de trabalho e, de outro, de destruir o Método Paulo Freire de alfabetização.
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Assim, da Copa do Mundo de 1958 à de 1970, o verdeamarelismo, se não permaneceu intacto em todos os seus
aspectos, manteve-se como representação interiorizada da população brasileira que, sem distinção de classe, credo e etnia, o
conserva mesmo quando as condições reais o desmentem.
É interessante observar que o verdeamarelismo opera com uma dualidade ambígua. De fato, o Brasil de que se fala é,
simultaneamente, um dado (é um dom de Deus e da Natureza) e algo por fazer (o Brasil desenvolvido, dos anos 50; o Brasil
grande, dos anos 70; o Brasil moderno, dos anos 80 e 90). Assim, na perspectiva verde-amarela, o sujeito da ação é triplo:
Deus e a Natureza são os dois primeiros, e o agente do desenvolvimento, da grandeza ou da modernização é o Estado. Isto
significa que o Brasil resulta da ação de três agentes exteriores à sociedade brasileira: os dois primeiros são não só exteriores,
mas também anteriores a ela; o terceiro, o Estado, tenderá por isso a ser percebido com a mesma exterioridade e
anterioridade que os outros dois, percepção que, aliás, não é descabida quando se leva em conta que essa imagem do Estado
foi construída no período colonial e que a colônia teve sua existência legal determinada por ordenações do Estado
metropolitano, exterior e anterior a ela. É surpreendente, porém, que essa imagem do Estado se tenha conservado mesmo
depois de proclamada a República.
De fato, é curiosa a permanência dessa figura do Estado (como sujeito que antecede a nação e a constitui) no momento
em que se encerra o período colonial e a época imperial luso-brasileira. Com efeito, no período colonial, como lembra
Raymundo Faoro, a realidade é criada pela lei e pelo regulamento, isto é, “desde o primeiro século da história brasileira, a
realidade se faz e se constrói com decretos, alvarás e ordens régias. A terra inculta e selvagem [...] recebe a forma do alto e de
longe, com a ordem administrativa da metrópole”14. Se, para uma colônia, o Estado é anterior e exterior à sociedade, não pode
ser esta a situação de uma República independente. Em outras palavras, seria de esperar que, com a República, a
interioridade do Estado à nação se tornasse evidente, pois teria sido a nação o sujeito que proclamou a República e instituiu o
Estado brasileiro. Paradoxalmente, porém, a imagem do lugar do Estado não se alterou.
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De fato, embora a Proclamação da República seja antecedida e sucedida por afirmações dos vários partidos políticos
como um acontecimento que responderia aos anseios da sociedade e da nação, ou, ao contrário, que se oporia a tais anseios,
e ainda que “por anseios da nação” ora se entendessem as reivindicações liberais de não-intervenção estatal na economia, ora
a afirmação de conservadores e de positivistas sobre a necessidade dessa intervenção, em qualquer dos casos a República foi
vista por seus agentes e por seus inimigos como uma reforma do Estado. Assim, histórica ou materialmente, a República
exprime a realidade concreta de lutas socioeconômicas e os rearranjos de poder no interior da classe dominante, às voltas
com o fim da escravidão, com o esgotamento dos engenhos com os pedidos de subvenção estatal para a imigração promovida
por uma parte dos cafeicultores, com a expansão da urbanização e a percepção de que o pai precisava ajustar-se à conjuntura
internacional da revolução industrial; portanto se, de fato, a República é o resultado de uma ação social e política, todavia não
é assim que ideologicamente ela aparece.
No plano ideológico, ela aparece não como instituição do Estado pela sociedade e sim como reforma de um Estado já
existente. E ela aparece assim porque essa aparição é aquela que corresponde ao que seus agentes e adversários esperam
da República. Os liberais esperam que a separação entre Estado e sociedade seja finalmente, conseguida e não lhes interessa
considerar a República uma expressão da própria sociedade porque isso poderia estimular a perspectiva intervencionista do
Estado. Como vimos, o liberalismo não podia furtar-se a admitir as conveniências de um Estado nacional, mas teoricamente
preferia reduzi-lo à expressão de uma evolução natural da família ao Estado e à sua utilidade para o progresso, isto é, para a
competição econômica. Em contrapartida, conservadores e positivistas esperavam que justamente intervindo na sociedade, o
Estado, pudesse, enfim, fazer surgir a nação como território unificado e submetido a, mesmo código legal, com unidade de
língua, raça, religião e costumes. Exterior à sociedade, no caso dos liberais, e anterior à nação e seu institui dor, no caso de
conservadores e positivistas, o Estado republicano, cuja realidade concreta ou social permanece oculta, é, portanto, percebido
como, antes, era percebida a Coroa portuguesa (veja box).
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LIBERALISMO E POSITIVISMO NO BRASIL
Para entendermos o que representavam o liberalismo e o positivismo no Brasil do final do século XIX e início do século
XX, vejamos algumas observações de Alfredo Bosi em sua obra Dialética da colonização. De acordo com este autor, liberal
significava “conservador das liberdades” (liberdades, por seu turno, significavam: liberdade de produzir, vender e comprar,
conquistada com o fim do monopólio econômico da Coroa portuguesa; liberdade para fazer-se representar politicamente, por
meio de eleições censitárias, isto é, reservadas aos que preenchiam as condições para ser cidadão, ou seja, a propriedade ou
independência econômica; liberdade para submeter o trabalhador escravo mediante coação jurídica) e “capaz de adquirir
novas terras em regime de livre concorrência”. Como se nota, não havia nenhuma incompatibilidade entre ser liberal e senhor
de escravos ou em ser liberal e monarquista constitucional, não havendo uma conexão necessária entre liberalismo e
abolicionismo e liberalismo e republicanismo. Quanto ao positivismo, que se desenvolve, sobretudo no Rio de Janeiro e no Rio
Grande do Sul, conservavam de Auguste Comte duas idéias principais sobre o Estado: a de que cabe ao organismo estatal
realizar a economia política, isto é, controlar a anarquia econômica; e a de realizar a integração e a harmonia das classes
sociais, particularmente o proletariado. O Estado é o cérebro da nação que, regulando e controlando os movimentos e funções
de cada órgão, não permite que um se sobreponha a outros. Ordem e progresso (palavras inscritas na bandeira nacional) são
o lema próprio do positivismo comteano. Os positivistas brasileiros, sobretudo os que se agruparam no PRP (Partido
Republicano Popular), defendiam: 1) o imposto territorial; o Estado, portanto, tributando a terra; 2) a concessão de isenções
fiscais para as manufaturas locais incipientes; 3) a estatização dos serviços públicos; 4) a incorporação da massa trabalhadora
(ou os proletários) à sociedade por meio de órgãos corporativos e com a mediação do Estado nos conflitos entre capital e
trabalho, protegendo os pobres do interesse egoísta dos ricos, como propusera Comte.
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Do ponto de vista do que nos interessa aqui, ou seja, não o da produção histórica ou material concreta da nação e sim o
da construção ideológica do semióforo “nação”, a dualidade dos agentes (Deus e Natureza, de um lado, e Estado de outro),
constitutiva do verdeamarelismo, não é apenas explicável, mas necessária. De fato, vimos que com o “princípio da
nacionalidade”, a “idéia nacional” e a “questão nacional”, o poder político constrói o semióforo “nação” na disputa com outros
poderes: os partidos políticos (sobretudo os de esquerda), religião (ou as igrejas) e o mercado (ou o poder econômico privado).
Assim, não é gratuito nem misterioso que as falas e as ações do Estado brasileiro pouco a pouco se orientassem no sentido de
dar consistência ao semióforo que lhe próprio, a “nação brasileira”. Em segundo lugar, como também observamos, o campo de
construção de um semióforo é mítico e, neste caso, também não nos deve espantar que os agentes fundadores da “nação
brasileira” sejam Deus e a Natureza, pois são considerados os criadores da terra e do povo brasileiros. Ideologicamente,
portanto, o Estado institui a nação sobre a base da ação criadora de Deus e da Natureza. Essa ideologia, como veremos, nada
mais faz do que mantém vivo o mito fundador do Brasil.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:CHAUÍ, Marilena. Brasil: mito fundador e sociedade autoritária. Coleção História do Povo Brasileiro. São Paulo: Fundação
Perseu Abramo, 2000.
Profª Esp. Ana Paula Fernandes Yajima Antropologia Cultural 43
Antropologia e educação: Origens de um diálogo
Neusa Maria Mendes de Gusmão. Antropóloga e professora do Departamento de Ciências Sociais Aplicadas à Educação -
Decisae - Faculdade de Educação da Unicamp.
Profª Esp. Ana Paula Fernandes Yajima Antropologia Cultural 44
Resumo: Antropologia e educação constituem hoje, um campo de confrontação em que a compartimentação
do saber atribui à antropologia a condição de ciência e a educação, a condição de prática. Dentro dessa divergência
primordial, profissionais de ambos os lados se acusam e se defendem com base em pré-noções, práticas
reducionistas e muito desconhecimento. Muitas coisas separam antropólogos e educadores, mas muitas outras os
une. Neste texto, busca-se ressaltar o que há de comum e de diferente em ambas as áreas com base na existência
de um diálogo do passado que possibilite um diálogo futuro. Considera-se assim, a possibilidade de superação dos
preconceitos e, neste sentido, apontar para um avanço do conhecimento.
Palavras-chave: Antropologia, educação, etnografia, culturalismo, etnocentrismo, cultura, relativismo.
A alteridade, terra prometida da antropologia, é um tema difícil, principalmente quando consiste numa ambição
de disciplinas diferentes, que põem por terra a divisão clássica, diz Darnton (1996, p. 9), referindo-se às relações
entre antropologia e história. No diálogo entre antropologia e educação, a questão parece ser a mesma: a aventura
de se colocar no lugar do outro, de ver como o outro vê, de compreender um conhecimento que não é o nosso.
Nessa "encruzilhada, os não-antropólogos buscam "um olhar antropológico" pelo qual se guiarão nos mistérios da
pesquisa de campo. Por sua vez, a antropologia e os antropólogos se vêem em grandes dificuldades, quando são
chamados a tratar dessa realidade cujo nome é educação, seja por não conhecerem, ou ainda, por desligitimarem um
certo percurso do passado da antropologia. No entanto, é sabido que uma ciência não se faz a partir do nada; além
de ser fruto de necessidades fundamentais postas pelo movimento das sociedades humanas, nasce comprometida
com seu tempo, sem ser jamais verdade absoluta. A ciência como conhecimento é movimento que se constrói,
define-se e redefine-se vinculada ao contexto histórico que a origina. Nada mais legítimo, portanto, do que buscar
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conhecer os caminhos trilhados pela antropologia para dimensionar os caminhos em constituição em face de
diferentes campos.
Antropologia e educação parecem constituir, hoje, um campo de confrontação, em que a compartimentação do
saber atribui à antropologia a condição de ciência e à educação, a condição de prática. Dentro dessa divergência
primordial, os profissionais de ambos os lados se acusam e se defendem com base em pré-noções, práticas
reducionistas e muito desconhecimento. Se há muitas coisas que nos separam - antropólogos e educadores -, há
muitas outras que nos unem. Neste texto, pretende-se ressaltar o que há em comum, já que o que nos separa só
pode ser compreendido com base nesse mesmo patamar . O que nos une é, portanto, anterior ao que nos separa, e
nele se inscreve o diálogo do passado, tanto quanto a possibilidade do diálogo do futuro.
O diálogo entre antropologia e educação, percebido por muitos como uma "novidade" que se instaura com as
transformações da década de 1970, neste século, é mais antigo que isso e reporta-se a um momento crucial da
história da ciência antropológica. No âmbito deste artigo, não se poderá dar conta da totalidade dessa história;
pretende-se, no entanto, chamar a atenção para alguns pontos fundamentais. Antes de mais nada, é necessário que
se adentre no pensamento antropológico, em suas bases epistemológicas como ciência e como ciência aplicada, com
seus alinhamentos teóricos, avanços e limites. Aqui parece residir a importância do passado para nosso presente,
pois somente nesse percurso parece ser possível vencer uma certa instrumentalização da antropologia pela
educação, propiciadora de muitos equívocos, e onde, certamente, se terá, como ganho, a superação de estigmas e
preconceitos que grassam de ambos os lados dessa fronteira ou desse divisor de águas - a antropologia como
ciência, a pedagogia como prática.
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Avaliar a questão das diferenças, tão cara à antropologia e tão desafiadora no campo pedagógico justamente
por sua característica institucional homogeneizadora, não é uma tarefa simples. Desde sempre, a antropologia e a
educação têm se defrontado com universos raciais, étnicos, econômicos, sociais e de genêro, entre tantos outros,
como desafios que limitam ou impedem que se atinjam metas, engendrando processos mais universalizantes e
democráticos. No tempo presente, com tantas mudanças numa sociedade que se globaliza, estas questões não só
não se encontram resolvidas, como renascem com intensidade perante os contextos em transformação.
O interesse central é trazer o aluno da pedagogia para uma aproximação no campo teórico da antropologia,
que lhe é inteiramente desconhecido. Por outro lado, o aluno de ciências sociais, campo onde o antropólogo é
formado, no caso brasileiro, também desconhece o itinerário da antropologia no campo da educação. A razão é
simples: a educação não tem sido um dos campos privilegiados pela antropologia, da mesma forma que certas
abordagens teóricas, que estão na origem deste diálogo, também não se constituem em objeto de conhecimento e
análise, em particular, lembro aqui, o culturalismo americano, representado por Franz Boas e as gerações formadas
por ele. Poderíamos elencar um número significativo de razões para que isto ocorra, mas importa chamar
atenção para uma certa distorção de visão de que somos todos acometidos e que nos leva a considerar aprioris e ou
críticas insuficientes, deixando de entender a constituição da ciência de que somos herdeiros. Ser herdeiros não nos
torna culturalistas, acríticos ou conservadores, mas exige que reconheçamos que o conhecimento, como ciência, não
nasce e morre dentro de um tempo determinado, senão que se alimenta do que existe antes dele e fornece alimento
ao que lhe sucede, sem nunca deixar de existir como referência. Defendo, ainda, a importância desse resgate, se
quisermos cobrar alguma coerência no fazer de outros campos, quando se utilizam do referencial da antropologia na
abordagem de temas singulares, particularmente na educação. Essa é a razão pela qual esta reflexão, ainda
iniciante, parte da negação imediata de um tempo mágico - a década de 1970-, 1 como referência para as pesquisas
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educacionais de tipo etnográfico e também para as pesquisas no campo das ciências humanas, ditas pós-modernas,
que, negando todo o passado, tornam-se reificadoras de muitos limites.
O pioneirismo do diálogo entre antropologia e educação, relatado por Galli (1993),2 mostra que, já ao final do
século XIX, a antropologia tentava compreender uma possível cultura da infância e da adolescência. Eram temas de
suas pesquisas e de seus debates os processos interculturais infantis e os sistemas educativos informais, dentro de
uma concepção alargada de educação. Antropólogos participavam em processos de revisão curricular e continuaram
a participar no transcorrer do presente século, nesse e em outros movimentos ligados à escola e à educação.
Entre os anos 20 e 50 deste século, muitos antropólogos envolvidos nesses debates travaram celeumas com
os pensamentos de Freud e Piaget. O que se sabe ou se conhece desses debates no Brasil? Pouco ou nada. No
entanto, entre os anos 30 e 40, os antropólogos tiveram uma atuação importantíssima no vasto programa de reforma
curricular promovida nos EUA. Deles não se fala nem se ouve falar entre nós. No entanto, importantes aspectos para
a compreensão de nossa visão da escola estão aí contemplados, pelo fato de que muitos antropólogos que atuaram
no processo vinham de uma linha tradicional, e mesmo axial, na antropologia, posto que eram discípulos de Boas,
tais como Margareth Mead (que dedicou toda sua vida ao estudo da educação) e Ruth Benedict. Nomes que
certamente não soam estranhos aos ouvidos do estudante de antropologia, mas que certamente nunca são
pronunciados nos corredores de uma Faculdade de Educação.
Por que ser discípulo de Franz Boas importa? Antes de mais nada, por ser ele mesmo um aluno de Morgan -
outra referência axial na antropologia -, que, rompendo com o mestre, abre as portas para a fecundidade e as
multiplicidades de pensamentos que orientarão novas abordagens teóricas que alimentam a antropologia do século
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XX. Os discípulos de Boas, neste início de século, dão continuidade ao próprio Boas, quando este nos alertava para o
fato de que tínhamos um modelo pedagógico ocidental que iria nos conduzir a uma pedagogia da violência.
Hoje, quando vemos as dificuldades das escolas, em particular, das escolas públicas de periferia, o fato de a
escola como valor não fazer eco entre os estudantes, a indisciplina violenta, a evasão escolar e sua face mais cruel, a
exclusão social, só para citar alguns problemas de nosso tempo, cabe perguntar qual a natureza dos riscos de que
falava Boas. Qual a natureza dos riscos de hoje? Para ele, a realidade de seu tempo apontava um risco para os
povos do futuro e para o futuro da própria civilização. A razão era que, historicamente, a nossa sociedade e a escola
que lhe é própria não desenvolviam - e não desenvolvem - mecanismos democráticos, perante as diversidades social
e cultural.
A propriedade e a atualidade da inquietação de Boas revelam que o diálogo foi iniciado, mas não foi concluído.
A breve síntese de um processo vasto e intenso que se desenvolveu na primeira metade do século, e que não
termina aí, está exigindo olhares mais profundos na história da intersecção entre antropologia e educação. A
pergunta que muitos podem fazer é: Por que seria importante conhecer tais processos? Não estariam eles superados
pela dinâmica de um mundo moderno que se transforma continuamente e de modo acelerado?
Na relação entre antropologia e educação abre-se um espaço para debate, reflexão e intervenção, que acolhe
desde o contexto cultural da aprendizagem, os efeitos sobre a diferença cultural, racial, étnica e de genêro, até os
sucessos e insucessos do sistema escolar em face de uma ordem social em mudança. Nesse sentido, como ciência
e, em particular, como ciência aplicada, antropologia e antropólogos estiveram, no passado e no presente,
preocupados com o universo das diferenças e das práticas educativas. Se, como diz Galli, tais questões fazem
convergir os estudos da cultura, no caso da antropologia, e dos mecanismos educativos, no caso da pedagogia,
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possibilitando a existência de uma antropologia da educação - tema e produto de uma grande conversa do passado -,
isto também ocorre no presente, posto que a antropologia e a educação estabelecem um diálogo, do qual faz parte,
também, o debate teórico e metodológico das chamadas pesquisas educativas, relacionadas às diversas e diferentes
formas de vida que, neste final de século, estão ainda a desafiar o conhecimento. Em jogo, as singularidades, as
particularidades das sociedades humanas, de seus diferentes grupos em face da universalidade do social humano e
sua complexidade através dos tempos e, em particular, num mundo que se globaliza. Resta, pois, conhecer um
pouco dessa história.
Caminhos cruzados: Educação, cultura e relativismo
O fato mais curioso nesse encontro de culturas de que resultou a conquista da América foi provavelmente a
surpresa de ambos, espanhóis e indígenas, ao se depararem. Uns jamais suspeitaram da existência dos outros. Para
se livrarem do incômodo desse assombro, ambas as partes mergulharam nas suas tradições míticas, a fim de
encontrarem indícios reveladores ou presságios que os ajudassem a identificar e esconjurar os espectros com que
haviam topado. Que estranha tribo desgarrada dos filhos de Israel seriam esses gentios, perguntavam os espanhóis?
Que pavorosos deuses vingadores eram aquela gente barbada, toda revestida de metal e montada em veados
gigantes, clamavam os indígenas? (Nicolau Scevcenko. Folha de S. Paulo/Ilustrada, domingo 2/2/1985, p. 53)
O que tem a ver com antropologia e educação o texto acima? O texto conta a história do contato entre
espanhóis e indígenas (astecas, maias, incas) na conquista da América. É um fato real, histórico e concreto, em que
dois povos e duas culturas distintas mostram o espanto do olhar - do europeu e do indígena, ambos envolvendo de
imediato a percepção de um sobre o outro. Trata-se de um olhar etnocêntrico, fruto, como diz Azcona (1989), da
experiência do agir humano, segundo um modelo explicativo do conhecimento e também como realidade da cultura,
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entendida como o sentir, o pensar, o agir do homem em coletividade. Qualquer experiência vivida, referida a objetos,
situações, fatos, são, diz o autor, intersubjetivos, porque vivemos no mundo da cultura "como homens entre outros
homens, ligados a eles por influências e trabalhos comuns, compreendendo os outros e sendo objeto de
compreensão para outros" (p. 49).
A antropologia como ciência desenvolve-se preocupada em superar o mundo intersubjetivo, de modo a superar
o etnocentrismo que, resultando do encontro entre a civilização ocidental e outros povos, implicou em violência,
distorções sobre estes povos e suas culturas. O texto "Todos Nós Somos Loucos por Ti, América", de Scevcenko,
fala desse encontro/desencontro e situa para nós o papel de uma ciência preocupada com as diferenças e seu
movimento. A antropologia preocupada, antes de tudo, em superar a cultura própria do mundo que lhe dá origem - o
mundo europeu em expansão - para poder conhecer a realidade do outro, faz disso seu grande desafio. O desafio de
ver-se e ver aos outros homens, para, então, estabelecer as bases do conhecimento.
Como diz Scevcenko, "os europeus representando uma civilização mais pragmática e que lançava nesse momento as
bases da ciência positiva moderna, logo passaram a utilizar-se dos mitos indígenas a seu favor (...) os espanhóis não
tiveram escrúpulos em se aproveitar das crenças indígenas (...) para depois da conquista destruir os seus deuses e
impor-lhes o cristianismo a ferro e fogo" (op. cit., p. 53). A partir daí, segundo o autor, o que se tem é um trágico
processo de invasão, conquista e extinção da cultura indígena.
Compreende-se, então, que o mundo da cultura e seu movimento, como parte da história de um povo, de uma
tradição e herança, ao ser confrontado com outros universos, pressupõe interesses diversos postos numa relação de
alteridade (o eu e o outro em relação) mais que de diversidade (o eu e o outro). Resultam, daí, processos de
manipulação da realidade, segundo diferentes formas de percepção e conhecimento. A experiência de contato entre
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povos diferentes e culturas diversas coloca em questão um espaço de encontro, de confronto e de conflito, marcado
pelo diverso, pelo diferente. Esta tensão é essencial à constituição e ao desenvolvimento da antropologia como
ciência e como prática.
Assim, a antropologia nasce de relações historicamente constituídas entre os homens e, por sua natureza,
busca compreender o outro diferente de si - de seu mundo de origem, a Europa do século XIX - dialogando com
outras formas de conhecimento, tendo por base e pressuposto central o mundo da cultura, as relações entre os
homens e a construção do saber.
O que é o saber? Segundo Galli, é uma dimensão social holística3 que vai do caos à ordem, para outra ordem;
que se desconstrói com bases em pressupostos construtivos, postos em movimento pela experiência e pela vivência.
Trata-se da fruição da cultura, que gera um fazer reflexivo e crítico, por vezes chamado educação.
O objetivo é assimilar o indivíduo à ordem social propiciadora do nós coletivo e que, ao mesmo tempo em que
integra buscando homogeneizar, diferencia cada um por suas características pessoais, por gênero, por idade,
garantindo o equilíbrio da vida em sociedade. A educação realiza-se, então, no interior da sociedade, composta por
diferentes grupos e culturas, visando um certo controle sobre a existência social, de modo a assegurar sua
reprodução por formas sociais coletivamente transmitidas.
A educação, nessa forma primeira, é uma modalidade de ajustamento psicossocial que resulta numa forma de
controle social, com base na organização social e no horizonte cultural partilhado por um grupo. Um aspecto a
considerar é que a cultura é, aí, entendida como técnica social de manipulação da consciência, da vontade e da ação
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dos indivíduos, com a finalidade de modelar as personalidades humanas dos membros do grupo social, tal como
afirma Florestan Fernandes, ao tratar da educação entre os Tupinambás (1966).
Para exemplificar que todas as sociedades possuem técnicas para estimular e corrigir seus membros da
infância à idade adulta, via transmissão de conhecimento, valores e normas, Melatti (1979) relata o processo
educativo de uma criança marubo. Diz ele: "Durante o tempo em que o indivíduo é uma criança de colo, sem dúvida
já se inicia sua formação como marubo". Ela pressupõe desde o contato com os alimentos até outros hábitos como
amarrar os pulsos, os braços, os tornozelos e as pernas para que engrossem, fazendo dele um bom trabalhador no
futuro. À medida que cresce, está sujeito a tapas, empurrões ou ainda a punições quando faz algo de errado. Uma
punição comum é a urtiga que é passada no corpo para que a criança deixe de ter preguiça e torne-se aplicada no
trabalho. Da mesma forma, quando maiores, tomam a "injeção de sapo", uma espécie de queimadura em pele viva,
que espanta a preguiça e o panema (azar) (op. cit., pp. 291-301).
Este e outros exemplos entre grupos tribais como os Arapesh, estudados por Mead, ou os japoneses,
estudados por Ruth Benedict, revelam a existência de um sistema de interpretação de um modo de vida, mas
também uma pedagogia, como diz Galli, que se formaliza como técnica e ritual educativo, criando sistemas
especializados nessas técnicas e ritos. Nesse sentido, cultura e educação são termos que se invocam e se concitam
mutuamente, como afirmam Cazanga M. e Meza (1993). Segundo esses autores, "permanentemente envolvido no
processo educativo e pelo simples fato de estar vivendo, o homem está aprendendo na sociedade pela cultura; a
sociedade é o meio educativo próprio do homem, ainda que a todo momento não tenha consciência disso" (p. 82).4
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Isto não quer dizer que os indivíduos sejam produtos mecânicos de uma linha de montagem. O homem como
ser variável, mutável no temperamento e no comportamento, não fica à mercê de sua natureza e de sua cultura, mas
sim está sujeito a condições históricas determinadas e determinantes do universo em que está inserido.
No pano de fundo da história, os processos culturais revelam-se arbitrários, posto que objetivam não apenas a
produção e a reprodução da sociedade em que se está e se vive, mas objetivam, também, interesses e metas que,
indo além da própria sociedade, envolvem outras sociedades, outros grupos sociais, outras culturas. Tal como
aconteceu com a expansão colonial na América e, portanto, com as relações entre europeus e indígenas.
É comum entre antropologia e educação, portanto, tal como afirma Galli, a existência real e concreta de
diferentes grupos humanos. Uma existência que, segundo Lara (1990), mostra o mundo cultural marcado por uma
luta de interesses, com tudo o que ela implica: a dominação, a espoliação, entre outras coisas. Para esse autor, os
caminhos da produção cultural de um povo foram, muitas vezes, obstruídos, "enquanto memória negada ou
recalcada, enquanto memória distorcida ou mesmo completamente deturpada por aqueles que têm a força para se
impor. A história cultural de um povo, na maioria dos casos, fica sendo a história das dimensões hegemônicas dessa
cultura" (p. 104).
Retomando pois, o caso dos espanhóis e dos indígenas, fica clara a imposição das crenças dos valores dos
conquistadores em nome de um domínio que nega ao outro a própria existência de seu mundo. Diziam alguns sábios
astecas: "Somos gente simples/ somos perecíveis, somos mortais,/ deixai-nos, pois, morrer,/ deixai-nos perecer,/ pois
nossos deuses já estão mortos" (Scevcenko op. cit., p. 53). O processo político que impõe a cultura do outro à revelia
dos sujeitos sociais conduz à violência que mata o corpo (genocídio), como também mata a alma, preservando o
corpo físico (etnocídio). Os indígenas não são, assim, indiferentes às condições vividas, aprendem com elas, e se os
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espanhóis foram: "adorados inicialmente como deuses, temidos depois como demônios e desprezados por fim
apenas como bárbaros", é porque os indígenas perceberam a "cupidez dos europeus e na sua obsessão proselitista,
a raiz de todo o sofrimento em que submergiram (...) esse sentimento (...) transformou-se numa pulsação de
resistência e é até os nossos dias revivido cerimonialmente como na periódica dramatização da morte de Atahualpa"
(idem; ibidem).
Assim, num processo inverso ao da homogeneização proposta pelo campo político das relações entre povos e
culturas distintas, renasce a diferença, celebra-se a alteridade. A realidade vivida implica um fazer e refazer
constantes, via processos culturais que, no dizer de Lara, produzem e veiculam projetos de vida humana, com
propostas tidas como válidas e como tais transmitidas. Daí que o processo de ver-se e ver a outros homens, só pode
ocorrer em contextos históricos concretos, seja em termos do senso comum, seja em termos do conhecimento
científico.
A compreensão das diversas sociedades humanas, em seus próprios termos, através de questionamentos dos
valores e das convicções de nossa sociedade, como diz Novaes (1992), permite o conhecimento através da crítica
"ao etnocentrismo, à intolerância e à não aceitação da diferença" (p. 128). A superação do etnocentrismo, a
apreensão do diverso para compreendê-lo em relação, significa relativizar o próprio pensamento para construir um
conhecimento que é outro. Alargado, como diria Merleau Ponty. Um conhecimento como ciência, ou seja, a realidade
como realidade vivida e experimentada pela compreensão de outras sociedades e da própria cultura.
Nesse movimento de tensão e compreensão reside a natureza do diálogo entre antropologia e educação, já
que ambas são devedoras científicas do processo de imposição de si ao outro, posto pelo desenvolvimento do mundo
colonial e do colonialismo ocidental, cuja meta visava suprimir toda e qualquer alteridade, em nome de um modelo de
Profª Esp. Ana Paula Fernandes Yajima Antropologia Cultural 55
vida cultural e pedagógico de tipo etnocêntrico, autocentrado e homogeneizador. O diálogo revela como ponto
comum a cultura, entendida como instrumento necessário para o homem viver a vida, distinguir os mundos da
natureza e da cultura e, ainda, como lugar a partir do qual o homem constrói um saber que envolve processos de
socialização e aprendizagem. No primeiro caso trata-se de diferentes formas de transmissão de conhecimento, de
habilidades e aspirações sociais; no segundo, trata-se das formas de transmissão de herança cultural, através de
gerações implicando processos de apropriação de conhecimentos, técnicas, tradições e valores. Tudo em acordo
com a criação dos homens em situações sociais, concretas e historicamente determinadas. Situações essas,
segundo Galli e outros autores, tipicamente pedagógicas e diversas. Aqui seria possível citar inumeráveis exemplos
de diversidade social e de múltiplas situações pedagógicas que precisariam ser relativizadas para ser melhor
compreendidas.
No entanto, a dominação política e historicamente determinada nas relações entre diferentes grupos e,
principalmente, na história do mundo ocidental, revela o colonialismo como negador da diversidade humana.
Centrado num modelo cultural único e na necessidade de colocar sob controle o diferente, a sociedade ocidental
constrói uma prática pedagógica também única e centralizadora. O movimento deste mundo, de que fazemos parte,
caminha da diversidade para a homogeneidade, eixo em que também se inscreve a história da antropologia, como
ciência, e da pedagogia ocidental, como prática. Vinculadas e determinadas pela lógica impositiva dessa história
comum, defrontam-se ambas com o desafio de resgatar e redimensionar o universo das diferenças, da diversidade
que, como diz Carvalho (1989), referindo-se aos antropólogos, exige renovar a visão de mundo e das coisas (p. 20).
Antropologia e educação: O diálogo do passado
Profª Esp. Ana Paula Fernandes Yajima Antropologia Cultural 56
As origens da antropologia e do fazer antropológico como ciência, ou melhor dizendo, de um modo de fazê-la,
tem a ver com a expansão do mundo colonial que conduz o mundo europeu a defrontar-se com outros povos e outras
culturas - nas Américas e na África. O defrontar-se com o diverso, com o desconhecido, implicou fazer perguntas,
cujas respostas permitiram a constituição de um saber legítimo e reconhecido como ciência. Entre o século XIX e o
atual século XX, as perguntas e suas respectivas respostas organizaram-se em diferentes formas de interpretação da
realidade. Assim, afirma-se que o "olhar antropológico" não é um único olhar, mas qualquer que seja ele, é
dependente de pressupostos que orientam as perguntas que são feitas e indicam caminhos de busca das possíveis
respostas. Isto quer dizer que, dependendo de onde se parte, têm-se configurados modos diversos de fazer uma
mesma ciência, no caso, a ciência antropológica com base em diferentes teorias que a sustentam.
A primeira dessas teorias, que nasce junto com a própria ciência antropológica, foi o evolucionismo. As idéias
de evolução e progresso, inspirados em princípios da biologia e, portanto, das ciências naturais do século XIX,
conduzem a que se pensem as diferenças entre grupos e sociedades numa escala evolutiva que toma o mundo
europeu como modelo único de humanidade. A concepção etnocêntrica de mundo vê o "outro" a partir de si mesma e
estabelece um fazer científico de base discriminatória e racista, já que entende que branco, europeu e cristão
constituem a superioridade da condição humana, enquanto os demais povos e culturas representam um atraso, uma
sobrevivência do passado do homem e, como tal, uma condição inferior da própria humanidade. Um evolucionista
importante, no século XIX, foi L. Morgan, inspirador de muitos pensadores, entre eles seu aluno Franz Boas.
Franz Boas vivencia todas as descobertas de seu tempo e chega ao presente século trazendo para debate,
agora, através de seus próprios alunos, importantes antropólogos da primeira metade do século XX, uma crítica
contundente ao pensamento de seu mestre L. Morgan. Boas considera a idéia de que cada grupo, cada cultura têm
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uma história singular, própria, que depende do que é a vida do grupo, no aqui e agora de sua existência. Não se trata,
portanto, de olhar as diferenças próprias do modo de ser do "outro" como sobrevivência de um momento já superado
pela evolução da humanidade e, como tal, exemplo vivo de atraso social e cultural. A possibilidade de que a história
da humanidade não tenha seguido um único caminho e direção faz do pensamento de Boas uma condição
revolucionária na compreensão das realidades humanas. Como história múltipla e variada, elimina o viés do
pensamento evolucionista etnocêntrico. Com este princípio, Boas mostra a imensa riqueza do social humano e a
natureza da cultura como não determinada biologicamente. A cultura, e não a biologia, torna-se referência para
pensar as diferenças e compreendê-las em suas bases constitutivas. O pensamento de Boas, ao investir contra o
evolucionismo de Morgan, possibilita também a crítica aos valores liberais e de igualdade postos pelo campo político
do século XIX, como modelo autocentrado para as sociedades humanas e suas instituições, entre elas, a escola e
seu modelo pedagógico ocidental.
Boas será um crítico atuante diante do sistema educativo americano, denunciando, entre outras coisas, a
ideologia que lhe serve de base, centrada na idéia de liberdade, e sua prática educativa de cunho conformista e
coercitivo, visando criar sujeitos sociais adequados ao sistema produtivo, segundo um modelo ideologizado de
cidadão. Demonstra, através de estudos diretos obtidos no campo educacional, que a escola inexiste como instituição
independente e, como tal, não possibilita independência e autonomia dos sujeitos que aí estão. A meta da escola
centra-se num aluno-modelo que desconsidera a diversidade da comunidade escolar e, para contê-la, atua de forma
autoritária.
Boas revela como a diversidade do social é desrespeitada no modelo político de desenvolvimento americano, já que
diferenças sociais ou culturais, de gênero, raça ou etnia, são ainda pensadas a partir das idéias evolucionistas. Com
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isso, Boas influencia muitos outros a pensarem a questão da diferença como parte de mecanismos culturais, referidos
a pequenos grupos ou regiões, que exigem um intenso trabalho de campo junto a esses grupos, para que seja
possível compreendê-los. O fazer científico que se instaura nessa concepção particularista da história humana,
chamada também de história cultural ou culturalismo, tem por significativo o fundamental dessa ciência chamada
antropologia, o trabalho de campo, e elege como central, para pensar as sociedades humanas, o conceito de cultura.
Por outro lado, cabe dizer que esta é a vertente americana de desenvolvimento da antropologia, a antropologia
cultural. Mais centrada nos conceitos de sociedade e de estrutura, elaborada por Radcliffe-Brown e outros, constitui-
se a vertente da antropologia social, na Inglaterra, da qual emergirá uma segunda e fundamental corrente teórica da
antropologia, o funcionalismo, cujo representante maior será B. Malinowski. Boas e Malinowski, segundo Laplantine
(1987), são os pais fundadores da etnografia, na medida em que percebem e sistematizam os caminhos pelos quais
"o pesquisador deve ele mesmo efetuar no campo a própria pesquisa" (p. 75). Com eles, o trabalho de campo se
torna a própria fonte de pesquisa e a condição modular da antropologia como ciência da alteridade que, segundo
Laplantine, se dedica ao estudo das lógicas particulares de cada cultura.
A corrente americana terá maiores preocupações com a questão educacional, cuja continuidade se fará com
os alunos de Boas. Ruth Benedict e Margaret Mead dedicam-se aos estudos do campo educativo e trazem à tona a
questão da diversidade das culturas, vista por diferentes ângulos: as formas operativas da cultura dentro dos
processos educativos nos primeiros anos de vida; os ciclos de desenvolvimento da infância à idade adulta e o papel
da educação formal e informal; a questão do controle social e o campo das emoções e do sexo; as dificuldades
educativas e os relacionamentos entre grupos dentro dos estados nacionais e deles com os outros, como por
exemplo, a América e a África, o mundo ocidental e o oriental; a adolescência e a formação da personalidade, entre
tantos outros temas que se podem elencar na produção culturalista do início do século até os anos 50.
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Outros antropólogos que também discutem a escola e a educação nesse período são M. Herskovits, R.
Redfield e C. Kluckholn, que apontam para a questão da escolha cultural, do papel da cultura e das experiências
vividas que marcam e constituem um universo centrado no relativismo. São parte da discussão: a negação dos
chamados "testes de inteligência", tão em voga nos anos 30/40; as dificuldades de integração cultural do diferente,
em face da visão etnocêntrica da organização escolar; a questão da tarefa do educador perante as experiências
pessoais e a herança cultural e, ainda, a questão dos valores de cada grupo em face dos conflitos entre grupos e
perante as diferenças. A relativização dos saberes e as conexões entre saberes diversos só se fizeram possíveis em
razão das experiências vividas e da integração no mundo e na cultura de cada um. A exigência, portanto, de se
pensar um saber e uma aprendizagem diversa, porém de igual valor, coloca em vigência uma ética no fazer
antropológico e lhe dá uma dimensão política afinada com seu tempo.
Por sua vez, o funcionalismo dos anos 20/30 baseava-se no fato de que as necessidades de um povo, grupo
ou indivíduo, dadas pela vida em sociedade, encontram na cultura os caminhos de sua satisfação e conduzem às
respostas originais, singulares e coletivas, que demarcam e estruturam formas próprias de ser e de pensar o mundo,
diferentes para cada povo ou grupo, já que são dependentes da dinâmica de diversos sistemas sociais e de seu
funcionamento. Como conseqüência, a melhor forma de compreender os diferentes povos é estar com eles, viver em
profundidade o universo de suas práticas, entendendo-as como práticas "encarnadas", como diria Malinowski, ou
seja, como práticas que possuem um sentido e um significado. A perspectiva de que o homem não apenas vive, mas
que, ao viver, questiona, cria sentidos, valores, mitos, artes e ideologias que ordenam sua compreensão de mundo,
revoluciona o fazer etnográfico, pois impõe o trabalho empírico, de campo, como fundamental na compreensão de
outros povos e de nós mesmos.
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O trabalho de campo redimensiona o conhecimento científico, na medida em que exige uma rigorosa e
sistemática apreensão de uma dada sociedade ou grupo em seus múltiplos aspectos, formais, institucionais,
concretos, tal como se encontram relacionados entre si e de acordo com a representação que deles é feita. A cultura
se torna, assim, central para a compreensão das práticas humanas, vistas como práticas significantes que distinguem
o homem da natureza, o homem do animal e que fundam diferentes sistemas de interpretação da vida. Nesse
processo, o antropólogo é aquele que faz a "teoria nativa" da sociedade que estuda, ou seja, que busca explicá-la em
seus próprios termos. Isso exige desde a compreensão da especificidade de cada cultura, já posta pelo culturalismo,
como também a compreensão das partes que compõem uma dada cultura em termos de um todo integrado, de que
fala o funcionalismo. Na conjunção de ambas as teorias, torna-se possível o estudo de pequena parte da sociedade -
um microcosmo de seu universo - para compreendê-la no seu todo. A isso, se propuseram os chamados estudos de
comunidade.
Os estudos de comunidade constituem a outra ponta da perspectiva antropológica que hoje parece retornar,
sem uma efetiva consciência do fato, nas pesquisas educacionais deste fim de século. A proposta desses estudos
conduz os pesquisadores a verem no âmbito de pequenos grupos a reprodução da sociedade, elegendo no campo da
pesquisa o particular, como objeto de conhecimento, e não a generalização. A cultura vista nela mesma, no interior
do grupo e a ele referida, o contexto em si mesmo tornam-se expressão maior dessa perspectiva de análise, desse
fazer científico.5 Não dão conta, porém, do fato de que "as relações culturais estão submersas em relações de poder "
(Carvalho op. cit., p. 21) e, como tais, dizem respeito a realidades mais amplas, estruturadas em torno de relações de
classe e baseadas em mecanismos de desigualdade e dominação.
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Ainda assim, as vertentes do culturalismo e do funcionalismo, que ao final dos anos 40 começam a ser
criticadas nos EUA, terão forte influência no Brasil, primeiro via Gilberto Freyre, que estuda com Boas nos anos 30 e
escreve seu célebre e polêmico Casa grande e senzala; depois será a vez de pesquisadores americanos que, entre
os anos 40 e 50, chegam ao Brasil através da Universidade da Bahia, e aqui desenvolvem estudos de comunidade,
que serão inspiradores, mais tarde, das propostas do CBPE (Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais) dirigido
por Anísio Teixeira, em termos de pesquisas e de programas educacionais no Rio de Janeiro, entre os anos 50 e 60.
No entanto, a crítica feita a tais estudos, já a partir da década de 1940, parece não fazer parte da reflexão daquele
momento, como não o faz na atual retomada da aplicabilidade das técnicas de pesquisa antropológica aos estudos
das culturas complexas, na antropologia e na educação.
Segundo P. Sanchis (1996), nos anos 50 e 60 deste século, a descolonização e a emergência de antigas
colônias como nações independentes eliminaram a distância estrutural entre sociedades, estabelecida de modo
teórico e diverso pelo evolucionismo e pelo funcionalismo (p. 29). Nesta segunda metade do século, não se trata mais
de estudar o "outro", diferente, distante, e sua cultura. A questão agora é que a "etnografia deixou de ser privilégio de
antropólogos desde que estes mudaram seu campo para as cidades", diz Zaluar (1995, p. 85). Ao mesmo tempo, a
necessidade de aplicar seus métodos, seus conceitos e paradigmas às ditas sociedades complexas instaura o
desafio e a aventura que é "conhecer outros mundos simbólicos" no interior de nosso próprio mundo. Tal desafio,
segundo Zaluar, constitui-se numa via de mão dupla, em que estão em jogo a objetividade e a teoria científica e
também a sensibilidade interpretativa de quem se propõe a singrar mares à la Malinowski. 6 O desafio não é fácil, nem
simples.
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Segundo Ruth Cardoso (1986), no campo das ciências humanas o desafio atual é o de conciliar a conquista do
trabalho de campo, sistematizada pelo positivismo e, ao mesmo tempo, dar conta de esquemas explicativos de outra
natureza, centrados na questão das sociedades complexas, as sociedades de classe, revelada pelas teorias mais
críticas e menos positivistas, tais como o estruturalismo e o marxismo. Diante do trabalho de campo e do desafio da
interpretação, a antropologia e a educação se debatem com o fato de que sempre existiu "um modelo positivista de
sociedade (...) e uma tendência interpretativa ou compreensiva" das mesmas (Lovisolo 1984, p. 66). Para este autor,
a antropologia interpretativa é aquela que hoje é aceita, tanto no campo das ciências humanas como na educação, e
nisso consiste o desafio de agora. Em debate, o questionamento das práticas científicas e das práticas educativas no
tocante ao trabalho de campo e ao fazer etnográfico que, desenvolvidos na trajetória da antropologia como ciência,
são hoje, década de 1990, campos comuns e conflitivos no diálogo entre antropologia e educação.
Fazendo minhas as palavras de Santos (1996) e, certamente, alterando-lhes os sentidos, estamos vivendo um
tempo paradoxal, simultaneamente de conflito e de repetição. Cabe, então, perguntar: Estamos perante uma situação
nova? No presente, o relativismo e a alteridade apresentam-se de forma ambígua e até antagônica (Garcia 1994, p.
135), de modo que se torna obrigatório rever a idéia de que o passado seja reacionário, para se buscar, como diz
Santos, energias mais progressistas, menos conformadas no interior de um universo matricial, da antropologia como
ciência e da educação como prática.
Notas
1. Não se trata de negar a importância dessa década na definição temática e conceitual no campo das ciências humanas, mas de demarcar tal período como o da cristalização de processos que desde muito estavam em constituição e cujo movimento é parte integrante das conquistas desse momento.
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2. Deste ponto em diante, intercruzo, com outros autores, o trabalho de Matilde C.Galli, "Antropologia Culturale e Processi Educativi", editado pela La Nuova Italia, Scandice, Firenze, 1993, e tomo por roteiro parcial o curso de antropologia e educação que ministrei em 1996, na Faculdade de Educação da Unicamp. Agradeço à professora doutora Ana Lúcia G. de Faria por ter me apresentado à obra de Galli e ter, assim, desencadeado um processo de reflexão de que participaram também meus alunos, aos quais agradeço pelo incentivo e pela discussão.
3. O holismo tem sido abordado em diferentes estudos e, em geral, diz respeito às propriedades do todo ou da totalidade da vida social, ainda que nem todos concordem com isso.
4. No original: "Permanentemente involucrado en el proceso educativo y por el simple hecho de estar viviendo, el hombre está aprendiendo en la sociedad por la cultura, la sociedad es el medio educativo propio del hobre, aunque no en todo momento hay conciencia de esto."
5. Ver, a respeito, Josildeth da S. Gomes. "A educação nos estudos de comunidade no Brasil. Educação e Ciências Sociais." Boletim do Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais - CBPE. Ano 1, Nº. 2, Rio de Janeiro, agosto de 1956, vol. 1.
6. Ver, a respeito, Ana Lúcia F. Valente. "Usos e abusos da antropologia na Pesquisa Educacional. Proposições." Revista da Faculdade de Educação da Unicamp. Campinas, 1997 (no prelo).
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