Linguagem e trabalho: a figura do trabalhador em Lima Barreto.

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1 LINGUAGEM E TRABALHO: A FIGURA DO TRABALHADOR EM LIMA BARRETO Letícia L. Meirelles 1 [email protected] Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Letras Avenida Antônio Carlos, 6627 Pampulha 31270-901 Belo Horizonte, MG - Brasil Resumo: O presente artigo pretende mostrar como é possível entender relações trabalhistas a partir da análise linguística de textos da literatura brasileira. Nosso foco é entender o papel do trabalhador enquanto personagem no discurso literário na obra de Lima Barreto. Serão analisadas duas crônicas do autor: Maio e A matemática não falha. Pretende-se apresentar um pouco da vida de Lima Barreto e sobre o Pré-Modernismo, fase esta da literatura brasileira da qual o autor fez parte, a fim de se corroborar com a ideia de que a literatura funciona como uma forma de representação da realidade, ou seja, ela é capaz de explicitar as relações e costumes de cada época. No trabalho aqui presente, serão postos em evidência as relações entre os trabalhadores e os costumes e sensações vivenciados pelos mesmos no século XX, século este no qual Lima Barreto viveu. Palavras-chave: Trabalho, Lima Barreto, Crônica, Linguagem, Literatura 1 INTRODUÇÃO Linguística e Literatura não constituem uma dicotomia. Ao contrário do que muitos pensam, elas estão intimamente relacionadas. O linguista tem como objeto de estudo a linguagem, seja esta escrita ou oral. Assim sendo, cabe ao mesmo analisar todos os tipos de discurso, inclusive o literário. Este último carrega grande informação do contexto social, político, econômico e histórico relativo à época em que foi produzido. O presente artigo visa fazer uma análise linguística da figura do trabalhador como personagem do discurso de Lima Barreto. Procura-se atentar para como o discurso literário é capaz de mostrar, através de recursos linguísticos, as relações de trabalho existentes no seu período de produção. Serão analisadas duas crônicas do autor, o que ressalta que não só o 1 Aluna de graduação da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais

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Apresentado no SITRE/2012.

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LINGUAGEM E TRABALHO:

A FIGURA DO TRABALHADOR EM LIMA BARRETO

Letícia L. Meirelles1 – [email protected]

Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Letras

Avenida Antônio Carlos, 6627 – Pampulha

31270-901 – Belo Horizonte, MG - Brasil

Resumo: O presente artigo pretende mostrar como é possível entender relações trabalhistas

a partir da análise linguística de textos da literatura brasileira. Nosso foco é entender o

papel do trabalhador enquanto personagem no discurso literário na obra de Lima Barreto.

Serão analisadas duas crônicas do autor: Maio e A matemática não falha. Pretende-se

apresentar um pouco da vida de Lima Barreto e sobre o Pré-Modernismo, fase esta da

literatura brasileira da qual o autor fez parte, a fim de se corroborar com a ideia de que a

literatura funciona como uma forma de representação da realidade, ou seja, ela é capaz de

explicitar as relações e costumes de cada época. No trabalho aqui presente, serão postos em

evidência as relações entre os trabalhadores e os costumes e sensações vivenciados pelos

mesmos no século XX, século este no qual Lima Barreto viveu.

Palavras-chave: Trabalho, Lima Barreto, Crônica, Linguagem, Literatura

1 INTRODUÇÃO

Linguística e Literatura não constituem uma dicotomia. Ao contrário do que muitos

pensam, elas estão intimamente relacionadas. O linguista tem como objeto de estudo a

linguagem, seja esta escrita ou oral. Assim sendo, cabe ao mesmo analisar todos os tipos de

discurso, inclusive o literário. Este último carrega grande informação do contexto social,

político, econômico e histórico relativo à época em que foi produzido.

O presente artigo visa fazer uma análise linguística da figura do trabalhador como

personagem do discurso de Lima Barreto. Procura-se atentar para como o discurso literário é

capaz de mostrar, através de recursos linguísticos, as relações de trabalho existentes no seu

período de produção. Serão analisadas duas crônicas do autor, o que ressalta que não só o

1 Aluna de graduação da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais

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discurso literário, mas também o jornalístico serão postos em evidência. Pretende-se

explicitar os fatores e aspectos linguísticos analisados.

2 LINGUÍSTICA X LITERATURA

Línguas e literatura formam uma parceria inquestionável, apesar de muitas vezes

serem vistas como uma dicotomia por força de contingências institucionais. Entretanto,

inúmeros trabalhos feitos por gramáticos, linguistas e teóricos da linguagem literária ou

cotidiana têm mostrado o quanto é artificial tal dicotomia. Roman Jakobson apud BRAIT

(2010), nos mostra como aquilo, que para muitos constitui uma dicotomia, na verdade parece

ser algo totalmente dependente:

A análise da língua parecia-me, com efeito, essencial à assimilação tanto

da literatura quanto do folclore e da cultura em geral. A ligação entre

língua e literatura estava fortemente enraizada na Universidade de Moscou

desde o século XVIII, uma verdadeira tradição, e foi particularmente

cultivada por um dos maiores eslavistas do século passado, Fiódor

Ivanovitch (1818 – 1897), que havia herdado do romantismo a correlação

entre a lingüística e a literatura sob seus dois aspectos, escrito e oral. O

termo ―sloviesnost‖ [N.T.: deriva de slovo, ―palavra‖], que ainda hoje é

empregado para designar a literatura enquanto objeto de estudo e que a

situa em forme laço etimológico com a palavra, caracteriza claramente essa

tendência.

(JAKOBSON apud BRAIT, 2010, p.17.)

A língua não é um organismo autônomo. Apesar de dinâmica, ela não existe sozinha,

independente de uma sociedade. Pelo contrário, ela só existe ligada ao homem e evolui junto

com ele. Assim sendo, a linguagem é o reflexo da sociedade, o que faz com que possa

mostrar a realidade de cada época. O discurso literário, por sua vez, dialoga com os discursos

histórico, antropológico, cultural e sociológico, uma vez que estes perpassam pelo primeiro,

recriando linguisticamente todos os aspectos sociais. Sobre a relação da literatura com a

realidade, Jakobson faz a seguinte afirmação:

Estudo comparativo da língua e da literatura – era justamente essa a sua

importância- dava destaque à comunidade dos problemas e mencionava, de

maneira oportuna, a existência de uma relação mútua entre literatura (e

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também a língua) e as diferentes séries contíguas do contexto cultural.

(Idem, p.18.)

Ainda mencionando linguistas russos, se tomarmos como base o dialogismo de

Mikhail Bakhtin, que diz respeito ao processo de interação entre os textos, também podemos

percebemos o quanto língua e literatura estão entrelaçadas. O autor defende a ideia de que

nenhum texto/ diálogo que produzimos é totalmente original. Baseamos nossa fala e

comunicação em discursos de outros, discursos já ditos anteriormente. Bakhtin define como

diálogo todo tipo de comunicação verbal, seja esta oral ou escrita, o que nos mostra que tanto

a linguagem oral, como os textos literários se encaixam no seu dialogismo. Ou seja, ambos

sempre serão discursos de outrem e dificilmente se chegará ao discurso original.

Após termos mostrado a importância de se ver linguística e literatura como disciplinas

complementares e não opostas, faremos uma análise linguística de duas crônicas de Lima

Barreto: Maio e a Matemática não falha. A seção 3 trata um pouco do Pré – Modernismo,

fase da literatura brasileira da qual o autor fez parte. A seção 4 traz um panorama geral das

crônicas de Lima Barreto. A seção 5 apresenta uma análise lingüística da crônica Maio e a

seção 6 faz o mesmo em relação à crônica A matemática não falha. A seção 7 conclui o

artigo.

3 LIMA BARETO E O PRÉ – MODERNISMO

O Pré - Modernismo foi um momento de transição entre o Realismo/ Naturalismo e o

Modernismo propriamente dito. Por não ter sido uma ação organizada e nem um movimento,

não é considerado uma escola literária brasileira, sendo encarado apenas como uma fase na

literatura do país. Serviu de ponte para unir conceitos prevalecentes do Parnasianismo,

Simbolismo, Realismo e Naturalismo. Para Alfredo Bosi (1981), é pré-modernista tudo o que

rompe, de algum modo, com a cultura oficial, alienada e verbalista dos movimentos literários

anteriores, e abre caminho para sondagens sociais e estéticas, tendo como característica

marcante o descontentamento com a República do café- com- leite.

Enquanto a Europa se preparava para a Primeira Guerra Mundial, o Brasil começou a

viver, a partir de 1894, um novo período de sua história republicana: com a posse do paulista

Prudente de Morais, primeiro presidente civil, iniciou-se a República do café-com-leite, dos

grandes proprietários rurais, em substituição a República da Espada (governos do marechal

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Deodoro e do marechal Floriano). Foi a áurea da economia cafeeira no Sudeste; o movimento

de entrada de grandes levas de imigrantes, notadamente os italianos; o esplendor da

Amazônia com o ciclo da borracha; o surto de urbanização de São Paulo. Entretanto, toda

esta prosperidade deixou cada vez mais claros os fortes contrastes da realidade brasileira.

Foi, também, o tempo de agitações sociais, de modo que estas eram sintomas de crise na

República do café-com-leite, que se tornaria mais evidente na década de 1920, servindo de

cenário ideal para os questionamentos da Semana da Arte Moderna em 1922.

Assim sendo, as obras pré - modernistas, apesar de alguns conservadorismos, foram

obras inovadoras, apresentando uma ruptura com o passado e com o academismo, tendo

como características principais:

1. O regionalismo, montando-se um vasto painel brasileiro: o Norte e Nordeste com

Euclides da Cunha; o Vale do Paraíba e o interior paulista com Monteiro Lobato; o Espírito

Santo com Graça Aranha; o subúrbio carioca com Lima Barreto;

2. Os tipos humanos marginalizados: o sertanejo nordestino, o caipira, os funcionários

públicos, os mulatos;

3. Uma ligação com fatos políticos, econômicos e sociais contemporâneos, diminuindo a

distância entre a realidade e a ficção.

Ao fazermos uma leitura das obras de Lima Barreto, não é difícil perceber o quanto o

autor era engajado com os problemas sociais, com a vida do trabalhador e o quanto fora

marcado pelo preconceito sofrido por ser mestiço e de origem pobre. Tais fatores ficam

claros nas duas crônicas que serão analisadas nas seções 5 e 6, uma vez que estas retratam

importantes relações de trabalho da época em que foram produzidas.

4 A CRÔNICA DE LIMA BARRETO

Lima Barreto fez de suas crônicas um instrumento direto e explícito de seu

posicionamento perante a realidade. Essa explicitude, segundo Assis (2008) deve-se

principalmente a dois motivos: o gênero não sofria imposições de editores, como os livros; e

atingia mais diretamente a camada popular, camada esta cuja Lima Barreto procurava

defender.

Suas crônicas, normalmente originam-se de fatos já noticiados pela imprensa e é a

partir deles que o autor critica a vida pública, a ética dos governantes, o comportamento

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popular e a educação pública, tudo isso buscando a cumplicidade do leitor. O literato também

procurava utilizar uma linguagem mais próxima daquela utilizada pelo real cidadão

brasileiro, se livrando de todo o purismo do passado, como mostra Resende (1993) apud

Assis (2008):

Numa cidade (país), onde a letra, a linguagem, funcionava (funciona ainda)

como alavanca social, condição de respeitabilidade pública e de

incorporação ao poder, a linguagem do intelectual precisa se fazer

específica. Do ponto de vista da observação lingüística, é curioso

observarmos como, neste momento de construção da modernidade, se

evidenciam duas possibilidades de utilização da língua: uma de aparato a

doutores, a ser usada publicamente, e outra popular e cotidiana. Daí a

importância por uma dicção próxima do modelo popular dos folhetins nos

contos e nos romances de Lima Barreto, dicção que se acentua nas

crônicas, buscando aproximar-se dos leitores.

(Resende, 1993 apud Assis, 2008, p. 94.)

A questão da cidadania é invariavelmente contemplada nas crônicas de Lima Barreto.

O autor critica o uso e abuso de poder pelos dirigentes, os processos de exclusão social e a

violência a qual a população encontra-se submetida. Também procura tratar de fatos

históricos importantes para a civilização, como a abolição da escravatura na crônica Maio e a

Revolução Russa na crônica Vera Zasulich.

Para concretizar suas críticas aos modelos excludentes da época, Lima discorre sobre

temas variados, como a modificação nos espaços urbanos, a extrema importância do título de

doutor, a qualidade e o papel da educação pública, o preconceito racial e o papel da mulher.

Faremos a seguir uma pequena análise de duas crônicas do autor a fim de explicitarmos

algumas das características presentes nas mesmas.

5 MAIO

Maio é uma crônica de Lima Barreto que relata o dia da abolição da escravatura: dia

13 de maio de 1888. O autor começa contando o quanto o mês em questão é importante por

ser o mês das flores e o mês sagrado pela poesia. Posteriormente afirma que maio torna-se

ainda mais importante por ser o mês de seu nascimento, cujo dia coincide com o da abolição.

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Aí talvez possamos perceber uma forte ligação de Lima com o tema da escravidão, já que o

autor era mestiço e sofreu preconceito racial durante toda a vida.

A crônica trata de um fato histórico altamente importante para a história dos

trabalhadores e dos negros. Ela marca a passagem de uma relação senhor x escravo para

patrão x empregado, mesmo que essa mudança ainda não tivesse sido colocada totalmente

em prática.

O autor narra minuciosamente o caminho percorrido junto com o pai para chegarem ao

local onde o evento seria realizado. Nesse trecho da crônica podemos perceber a existência

de dois tempos distintos: o tempo da abolição no qual Lima descreve o que acontecia e o

tempo no qual o autor escreve o texto. Tal fato fica facilmente perceptível com a seguinte

passagem:

Na minha lembrança desses acontecimentos, o edifício do antigo paço, hoje

repartição dos Telégrafos, fica muito alto, um sky- scraper; e lá de uma das

janelas eu vejo um homem que acena para o povo.

(BARRETO, Feiras e Mafuás, 1956, p.255)

Note que o edifício do antigo paço se refere ao tempo da abolição da escravatura e a

repartição dos Telégrafos ao tempo em que o autor produziu a crônica. No trecho acima

também podemos destacar uma outra característica importante da obra de Lima: o uso de

estrangeirismos, rompendo com a linguagem purista dos movimentos literários passados.

O léxico também é um dos importantes recursos da obra do autor. É facilmente

notável como, em trechos descritivos, Lima seleciona cuidadosamente as palavras para tentar

transmitir ao leitor cada sensação vivenciada pela população da época.

(...) Foi uma ovação: palmas, acenos com lenço, vivas... (...) Era como se o

Brasil tivesse sido descoberto outra vez... Houve o barulho de bandas de

música, de bombas e girândolas, indispensável aos nossos regozijos; e

houve também préstitos cívicos. Anjos despedaçando grilhões, alegorias

toscas passaram lentamente pelas ruas.(...)

(Idem, p.255-256)

Observe como palavras como palmas, acenos com lenço, vivas e a descrição que o

autor faz das bandas de música e dos desfiles parecem nos transportar diretamente para o dia

do evento, produzindo em nossa mente uma imagem viva de como tudo aconteceu.

Por fim, num determinado momento da crônica, o autor fala sobre a liberdade,

sensação esta que estava presente na mente de todos os cidadãos da época. Entretanto, a fim

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de se apontar para os problemas sociais ainda existentes e talvez até mesmo para a falta de

cumprimento da lei da abolição, faz a seguinte afirmação:

Mas como ainda estamos longe de ser livres! Como ainda nos enleamos

nas teias dos preceitos, das regras e das leis!

(Idem, p.257)

6 A MATEMÁTICA NÃO FALHA

Nesta crônica Lima Barreto faz uma severa crítica à burguesia e aos burocratas da

época. Narra a história de Agostinho Petra de Bittencourt, um negro de quase 70 anos que

trabalhava na Secretaria como funcionário público juntamente ao autor. No passado havia

sido músico de um batalhão de Voluntários da Pátria, que estivera no Paraguai. O Ministério

da Guerra dava aos voluntários da Pátria que haviam sobrevivido uma espécie de pensão que

foi requerida por Agostinho. O negro dizia-se filho de um padre chamado Petra, morto há

mais de cinquenta anos, do qual havia herdado uma grande herança. Entretanto o padre era

branco e por isso, ninguém acreditava que Agostinho era filho do falecido. Quanto ao

requerimento da pensão, o ex-músico do batalhão de Voluntários da Pátria obteve a maior

dificuldade para consegui-la, pois os Generais não o queriam concedê-la alegando que o

negro havia sido apenas músico e não soldado. Entretanto, outros músicos de cor branca

receberam a pensão.

A crônica também conta a história de um major chamado José Carlos Vital que

também era negro e perdera seu emprego por ter aparecido um homem branco dizendo ser o

verdadeiro Major José Carlos Vital. O negro foi julgado como mentiroso e perdera toda a

crença perante a sociedade.

Apesar de esta ser uma crônica que conta a história de dois personagens específicos,

tais personagens são personagens metonímicos, ou seja, eles são uma parte que representam

um todo. Representam a injustiça e o preconceito que muitas vezes são sofridos pelos negros

em geral.

Nessa mesma crônica também podemos perceber como o homem encontra-se

submisso ao trabalho e isto é mostrado logo no começo do texto, num trecho em que Lima

Barreto discorre sobre os burocratas e a relação de trabalho no capitalismo.

Neste como naquele, nesta ou naquela profissão, tenham-se as melhores ou

piores aptidões, o que nos pedem nessa sociedade burguesa e burocrática, é

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muita abdicação de nós mesmos, é um apagamento da nossa

individualidade particular, é um enriquecimento de ideias e sentimentos

comuns e vulgares, é um falso respeito pelos chamados superiores e uma

ausência de escrúpulos próprios, de modo a fazer os tímidos e delicados de

consciência não suportar sem os mais atrozes sofrimentos morais a dura

obrigação de viver, respirar a atmosfera deletéria de covardia moral, de

panurgismo, de bajulação, de pusilanimidade, de falsidade, que é a que

envolve este ou aquele grupo social e traz o sossego dos seus fariseus e

saduceus, um sossego de morte da consciência. Os delicados de alma, nos

nossos dias, mais do que, em outros quaisquer, estão fatalmente

condenados a errar por toda a parte. A grosseria dos processos, a

embromação mutua, a hipocrisia,e a bajulação, a dependência canina, é o

que pede a nossa época para dar felicidade ao jeito burguês. E' a época dos

registros e dos tabeliães; é a época dos códigos, sendo também o tempo das

mais vastas ladroeiras; é a época das polícias aperfeiçoadas, apesar de que

é o tempo dos crimes monstruosos e impunes; é o tempo dos fiadores

endossantes, etc, verificando-se nele os maiores "calotes"; é a época dos

diplomas e das cartas, entretanto, sobretudo, entre nós — é o tempo da

mediocridade triunfante, da ignorância arrogante, escondida atrás de

diplomas de saber; etc.etc.

(BARRETO, L. Bagatelas, 1956, p.177-178)

Também é importante observar que muitos dos problemas apontados no trecho acima

ainda estão presentes na atualidade. A submissão do homem ao trabalho, a valorização

extrema do dinheiro, a perda de valores para se conseguir ascensão social, tudo isso está

presente nos dias de hoje e é característica marcante do mundo capitalista, onde o que

importa é o lucro e o prestígio. Para atingi-los as pessoas são capazes de passar por cima de

qualquer coisa, até mesmo de suas crenças. A partir daí, podemos perceber que há uma

aproximação do tempo do enunciado com o tempo da enunciação, uma vez que o primeiro

diz respeito, a grosso modo, ao tempo que o enunciado foi produzido e o segundo, ao tempo

que o enunciado é proferido. O mundo e a relação capitalista que existiam no tempo do

enunciado (tempo de produção da crônica) ainda existem hoje, tempo da enunciação.

A atualidade das idéias e dos problemas trabalhados e discutidos por Lima Barreto

também é uma das características de suas crônicas. Freire (2005) apud Assis (2008) faz a

seguinte afirmação sobre o assunto:

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Ao se considerar os temas e preocupações voltados para o Brasil, presentes

na obra do escritor, percebe-se a atualidade de suas idéias. A maior parte

dos problemas apontados continua atualíssima, basta citar a situação da

mulher e a discriminação racial. Para não dizer ainda, o imperialismo

econômico e a prepotência norte-americana.

(Freire, 2005, apud Assis, 2008, p. 96.)

Por fim, podemos dizer que A Matemática não falha é uma crônica que aborda dois

problemas importantes e atuais: a discriminação social e a submissão do homem ao trabalho

e às classes dominantes.

7 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este artigo teve como objetivo geral evidenciar como a literatura é uma das principais

formas de expressão da sociedade, devendo ser, portanto, objeto de estudo do linguista. Para

tal fez-se uma análise de duas crônicas de Lima Barreto, autor que trouxe em suas obras uma

série de críticas sociais, buscando a cumplicidade do leitor. Vários fatores lingüísticos foram

analisados, como o léxico utilizado pelo autor. Através dele, pudemos analisar as relações de

trabalhos presentes em cada crônica e o preconceito racial expresso através das narrativas, o

tempo do enunciado próximo ao da enunciação, entre outros. Isso tudo sem deixar de lado o

trabalhador como personagem protagonista do discurso do autor. Todos os personagens

tratados eram trabalhadores: escravos, funcionário público e major. Também se colocou em

evidência o problema da submissão do homem ao trabalho que vem desde antigamente e

ainda atinge os dias de hoje. Por fim, acredita-se que o presente artigo conseguiu dar um

panorama parcial da história vivenciada pelo trabalhador na primeira metade do século XX.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ASSIS, Lúcia Maria de. Lima Barreto: Língua, Identidade e Cidadania. São Paulo, 2008.

166f. Tese (Doutorado em Linguística). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas,

Universidade de São Paulo. Universidade de São Paulo.

BAKTHIN, M.M. The dialogic imagination. Austin: University of Texas Press, 1981.

BARRETO, Lima. Feiras e Mafuás: artigos e crônicas. 2.ed. São Paulo: Brasilense, 1956.

______________. Bagatelas: artigos. 2.ed. São Paulo: Brasiliense, 1956.

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BRAIT, Beth . Literatura e outras linguagens. São Paulo: Contexto, 2010.

BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo : Cultrix ,1981.

LANGUAGE AND WORK:

THE WORKER’S FIGURE IN LIMA BARRETO

Abstract: This article aims to show how it is possible to understand work relations

through the linguistic analysis of texts of Brazilian literature. Our focus is to

understand the role of the worker as a character in the literary discourse in the work of

Lima Barreto. Two chronicles the author will be analyzed: Maio and A matemática não

falha. It also intends to submit a short biography of Lima Barreto and also about Pré-

Modernismo, a kind of a literary movement which the author was a member, in order to

corroborate the idea that literature serves as a form of representation of reality. In

other words, literature is able to explain the relationships and customs of each

historical period. In this text, we will be put in evidence the relationship between

workers and the customs and feelings experienced by them in the twentieth century, the

time when Lima Barreto lived.

Key-words: Work, Lima Barreto, Chronicle, Language, Literature