Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas · apenas no final da primeira década...

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Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLT 55 – Narrativas em Língua Brasileira: estudo de oralidade e escritas. 1 NARRANDO O NORDESTE: A IMAGEM DO NORDESTE BRASILEIRO NA LITERATURA DE CORDEL Lucie Costa ŠAFRÁNKOVÁ 1 RESUMO Apesar de se tratar de uma região diversificada, o Nordeste brasileiro costuma ser retratado, tanto na literatura como na mídia, como uma região pobre e atrasada, habitada pelo povo simples, conservador e supersticioso. Uma das fontes que ao mesmo tempo cria, sustenta e espalha essa idéia de Nordeste estereotipada é a literatura de cordel. Os temas tradicionalmente presentes na literatura popular brasileira, como messianismo e cangaço, miséria, fome e seca, foram agenciados pelas produções culturais eruditas, tomando-os como manifestações que revelam a essência da região. Por não se tratar de uma manifestação esporádica ou esparsa, de acordo com os números estimados à respeito da quantidade de títulos de cordeis editados – que podem ser calculados em milhares e milhares de exemplares – pretendemos demonstrar, portanto, que esse gênero de literatura popular representa um rico repositório de imagens, histórias e formas de expressão que refletem o Nordeste assim como o vêem os próprios nordestinos, constribuindo para fixar esta imagem regional como um contraponto ao mundo industrializado das metrópoles no Sul do país. PALAVRAS-CHAVE literatura de cordel; Nordeste brasileiro; poesia popular Introdução Quando se fala do Nordeste brasileiro, difícilmente alguém o imagina apenas como uma das cinco regiões do Brasil, um recorte geográfico natural ou um simples espaço físico composto por alguns estados e cidades. No mapa do Brasil e na mente dos brasileiros a região do Nordeste representa um lugar real e imaginário, um universo de imagens, de mitos, de estereótipos e preconceitos, que podem até não estar sempre corretos, mas que são plenamente reconhecidos e consagrados por toda a sociedade brasileira e até pelos próprios nordestinos. Na literatura e também nas outras formas de produções culturais eruditas brasileiras, como teatro ou cinema, a imagem do Nordeste, apesar de se tratar de uma área imensa que abrange espaços culturalmente e geograficamnete tão diversificados como o Recôncavo baiano, o litoral 1 Universidade de Masaryk, Faculdade de Letras, Departamento de Línguas e Literaturas Românicas, Gorkého 7 , 602 00, Brno, República Tcheca, [email protected]

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NARRANDO O NORDESTE: A IMAGEM DO NORDESTE BRASILEIRO NA LITERATURA DE CORDEL

Lucie Costa ŠAFRÁNKOVÁ1

RESUMO Apesar de se tratar de uma região diversificada, o Nordeste brasileiro costuma ser retratado, tanto na literatura como na mídia, como uma região pobre e atrasada, habitada pelo povo simples, conservador e supersticioso. Uma das fontes que ao mesmo tempo cria, sustenta e espalha essa idéia de Nordeste estereotipada é a literatura de cordel. Os temas tradicionalmente presentes na literatura popular brasileira, como messianismo e cangaço, miséria, fome e seca, foram agenciados pelas produções culturais eruditas, tomando-os como manifestações que revelam a essência da região. Por não se tratar de uma manifestação esporádica ou esparsa, de acordo com os números estimados à respeito da quantidade de títulos de cordeis editados – que podem ser calculados em milhares e milhares de exemplares – pretendemos demonstrar, portanto, que esse gênero de literatura popular representa um rico repositório de imagens, histórias e formas de expressão que refletem o Nordeste assim como o vêem os próprios nordestinos, constribuindo para fixar esta imagem regional como um contraponto ao mundo industrializado das metrópoles no Sul do país. PALAVRAS-CHAVE literatura de cordel; Nordeste brasileiro; poesia popular

Introdução

Quando se fala do Nordeste brasileiro, difícilmente alguém o imagina apenas como uma das

cinco regiões do Brasil, um recorte geográfico natural ou um simples espaço físico composto por

alguns estados e cidades. No mapa do Brasil e na mente dos brasileiros a região do Nordeste

representa um lugar real e imaginário, um universo de imagens, de mitos, de estereótipos e

preconceitos, que podem até não estar sempre corretos, mas que são plenamente reconhecidos e

consagrados por toda a sociedade brasileira e até pelos próprios nordestinos.

Na literatura e também nas outras formas de produções culturais eruditas brasileiras, como

teatro ou cinema, a imagem do Nordeste, apesar de se tratar de uma área imensa que abrange

espaços culturalmente e geograficamnete tão diversificados como o Recôncavo baiano, o litoral 1 Universidade de Masaryk, Faculdade de Letras, Departamento de Línguas e Literaturas Românicas, Gorkého 7 , 602

00, Brno, República Tcheca, [email protected]

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pernambucano, a úmida zona da mata na parte amazônica do Maranhão, ou caatingas no sertão

cearense, costuma ser reduzida numa região ensolarada, mas ao mesmo tempo pobre e esquecida,

habitada pelo povo simples, conservador e supersticioso. A região do Nordeste frequentemente se

confunde com o espaço de sertão, porque é este o espaço que ocupa a maior parte do Nordeste e que

também foi reconhecido como o mais caraterístico da região.

Para podermos entender e decifrar este arquivo de imagens e enunciados estereotipados que

direcionam as atitudes e comportamentos da sociedade brasileira em relação ao nordestino e

dirigem, inclusive, o olhar da mídia, temos que deixar de pensar no Nordeste como numa identidade

homogênea presente na natureza e passar a considerá-lo, como se faz com as outras regiões, apenas

como uma construção imagético-discursiva, ou „...uma identidade espacial construída em um

preciso momento histórico,“ (ALBUQUERQUE, 1996). Em outras palavras, o que define a região

não são as fronteiras naturais ou políticas, mas sim os enunciados e as imagens que se repetem em

diferentes discursos e épocas e que, portanto, podem ser considerados definidores do caráter da

região e de seu povo.

É bom lembrar que aquilo que hoje chamamos de Nordeste, aquilo que tantas vezes serviu

como tema principal dos romances, filmes, pinturas ou peças teatrais, até o início do século XX não

existia. O termo Nordeste, que substituiu antiga divisão regional do país entre Norte e Sul, surgiu

apenas no final da primeira década de século XX com o simples objetivo de designar a área

periodicamente atingida por secas. E é justamente o fenômeno da seca periódica e com ele

relacionado modo de vida e mentalidade que diferencia o Nordeste do restante do país e,

principalmente, do Sul. Naquele momento os grupos políticos do Norte, inicialmente dispersos,

afundados nos seus interesses locais e particulares eram obrigados a unir-se para finalmente serem

ouvidos e poderem assim chamar a atenção maior do público e, principalmente do Estado. A série

de práticas regionalistas motivadas pelas condições particulares e problemas das províncias do

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Norte, vinculadas ao combate à seca, ao cangaço, às manifestações messiânicas junto com a

concentração dos jovens intelectuais no centro regional - no Recife - deram o início ao surgimento

de vários movimentos que tinham como objetivo a busca de solidariedade e da cultura regional.

Fundou se assim a idéia de uma região não só com os interesses comuns, mas também com os laços

históricos e culturais. Passo a passo esta região deixou de ser apenas uma área seca do Norte e se

tornou uma identidade econômica, social e cultural. A tarefa de estabelecer uma imagem

homogênea do Nordeste cruzou-se com o momento em que o Brasil inteiro estava à procura de uma

caraterística nacional. Os intelectuais e ecritores regionais começaram a retratar o Nordeste como

uma região tradicional que mantêm as tradições e costumes na sua forma original, considerando-se

esta região ser a única autêntica (por ser isenta de influências estrangeiras), e também a mais

caraterística do Brasil. Esta visão do Nordeste tradicionalista confirmou-se e ganhou repercussão

nacional nas obras dos novos regionalistas que formaram esta sua visão de Nordeste como resposta

ao modernismo paulistano. Os regionalistas nordestinos sentiam-se ameaçados pela progressiva

centralização do poder político, econômico e cultural no Sul, por isso voltaram-se para dentro de si,

e procuravam, o caráter, a alma e os valores dos brasileiros no passado, nas manifestações culturais,

no folclórico e no tradicional que segundo eles vagarosamente entrava em decadência. Esta visão

tradicionalista de Nordeste se baseia na antiga tensão entre o litoral e o interior, o urbano e o rural, o

moderno e o tradicional, tão caraterística para toda a cultura brasileira e representa assim o

contraponto ao industrializado meio urbano que estava se desenvolvendo no Sul do país. Uma das

fontes fundamentais de inspiração, que contribuiu para criar, espalhar e fixar as imagens,

enunciados e temas que agora compõem a idéia do Nordeste, foi a literatura de cordel.

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História da literatura de cordel brasileira e sua função

A literatura de cordel simplesmente pode ser definida como um gênero literário que abrange

todas as manifestações de origem popular que existem, em prosa2 ou verso, na forma impressa.

Chamam-na literatura de cordel pela forma como originalmente eram vendidos os livretos –

pendurados num barbante ou corda nas feiras, mercados e praças. Originalmente tratava-se de

folhetos de papel de baixo preço, tipo jornal, com as capas coloridas, muitas vezes ilustradas com

xilogravuras que representavam uma cena ou personagem principal da história narrada. O tamanho

do folheto costuma ser 11,5 x 16 cm, que é exatamente o tamanho de uma folha A4 dobrada em

quatro. E apesar de que a literatura de cordel não é coisa exclusivamente brasileira, por sabermos

que existiu em diversos países, como na França, na Espanha ou em Portugal de onde desapareceu

logo depois da divulgação do jornal no início de século XX, foi porém, no Brasil que ela ganhou

sua caraterística própria e se tornou um dos símbolos da cultura nordestina.

É importante ressaltar que no caso do Brasil não se trata de uma manifestação esporádica,

porque mesmo que a grande parte da poesia popular se tenha perdido, existe no Brasil, segundo as

mais modestas estimativas, aproximadamente 15 – 20 mil títulos de folhetos editados (LUYTEN,

1983). Desde o fim do século XIX, os poetas populares brasileiros, sobretudo nordestinos,

2 Na verdade o aparecimento da prosa popular nesta forma é muito raro no Brasil. Às vezes a literatura de cordel

engloba ainda as folhas soltas dos poemas ou canções, orações aos santos ou cartelões – folha grande de papelão com os versos e desenhos relativos a eles que ajudam o autor a declamar a história. (LUYTEN, 1983)

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utilizavam a escrita para se comunicarem com leitores e ouvintes e pode-se constatar que, por muito

tempo, o folheto mantinha sua liderança como meio de informação nas zonas menos desenvolvidas

do interior nordestino, habitado pelos trabalhadores e camponeses, ou seja, como alguns costumam

dizer, por gente simples e humilde. Os poetas populares viajavam por fazendas, vilas e cidades

pequenas, e traziam as notícias do litoral para o povo que vivia praticamente isolado no sertão e que

não podia obter as informações do mundo senão por esta forma. O matuto nordestino se acostumou

a ouvir as histórias da literatura de cordel em suas idas às feiras, nas quais podia, além de fazer

compras e vender seus produtos, divertir-se e tomar conhecimento das mais diversas notícias.

Pode-se dizer que no Nordeste brasileiro o poeta popular desempenhava o papel de

verdadeiro líder informal da opinião pública. Os poetas naturalmente refletiam, na temática de suas

poesias e na maneira como se relacionavam com seus leitores, o ambiente em que viviam.

Pertenciam à mesma classe social, tinham os mesmos costumes, as mesmas tradições, a mesma

linguagem, tinham que enfrentar as mesmas dificuldades e era por isso que o público sentia-se tão

atraído por sua obra. Tornou-se o papel fundamental do poeta popular versar histórias, fatos,

reivindicações, críticas, queixas e aspirações do homem nordestino, ou simplesmente de tudo que o

povo pensava. Como sua sobrevivência dependia sobretudo da venda de seus poemas, o poeta

popular tratava somente dos assuntos que o povo entendia e que o interessava, refletindo assim a

realidade nordestina sob o ponto de vista de seus leitores - dos camponeses e dos matutos. Isso

também é a razão do porque a literatura de cordel é atualmente considerada ser um dos mais

fascinantes e férteis campos de estudos onde linguistas, antropólogos, historiadores, folcloristas ou

escritores se deparam com o acervo inesgotável de materiais para pesquisas. Mas todos que

trabalham com a literatura de cordel têm que ter cuidado porque o esforço dos poetas em

transformar a informação mais ao gosto popular acabava, muitas vezes, na formação de verdadeiros

mitos. Os poetas misturavam fatos com ficção, faziam anacronismos, conferiam às personagens

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poderes sobrenaturais, etc., como ocorreu, por exemplo, nos ciclos de cordel de cangaceiro

Lampião, de Padre Cícero ou também do presidente Getúlio Vargas. Assim sendo, trabalhando com

a literatura de cordel, é sempre bom lembrar que os poetas populares:

[…] optam por não usar o seu real senso crítico e assim omitem fatos que comprometem os relatos dando-lhes caráter mítico. (FREITAS, 2005)

Ou seja, o poeta popular não é um jornalista, portanto seu objetivo não é descrever fatos reais, mas

sim vender o maior número de folhetos possível. Então, mesmo quando os poetas gostam de

proclamar a veracidade e objetividade de seus versos, nos folhetos os fatos parecem sempre mais

sensacionais, as histórias mais dramáticas, os heróis mais valentes e os desastres mais pavorosos.

Como mais uma prova podem servir os versos do poeta baiano Jotacê Freitas (2000):

[...]saibam que o bom poeta para seu público não mente mas pode alterar os fatos ou em galinha botar dente.

Temas principais da literatura de cordel

Não há limite na escolha do tema de um folheto. Os temas incluem fatos do cotidiano,

episódios históricos, lendas, temas religiosos ou histórias de amor, como também existem inúmeros

folhetos que retratam as façanhas dos cangaceiros ou do suicídio do presidente Getúlio Vargas.

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Através da poesia de cordel divulgam-se os acontecimentos recentes, curiosidades ou as mais

diversas notícias que chamaram a atenção da população. Na literatura do cordel encontra-se o

retrato do Nordeste construído a partir das narrativas dos camponeses, das suas lembranças pessoais

e fatos épicos ligados com esta região misturados com os fragmentos da história. E é exatamente

esta variedade temática que faz da literatura de cordel tão fascinante arquivo de imagens do

Nordeste como existe no imaginário coletivo.

O cordel do Nordeste tradicionalista

É interessante notarmos que, apesar do cordel, como todas as manifestações folclóricas,

estar sendo constantemente modernizado e atualizado, aparece nele, ao longo do tempo, uma

variação e reatualização dos mesmos enunciados, imagens e temas que compõem esta idéia popular

de Nordeste como uma região tradicional. Como os produtores de folhetos de cordel eram e são, na

maioria das vezes, pessoas oriundas ou residentes do interior nordestino, também os folhetos

refletem a opinião matriz do público do ambiente interiorano do Nordeste brasileiro. E sendo este

meio conservador, retrógrado e resistente às mudanças tanto na política, como na religião e na

moral, a produção poética mantêm-se também nessas linhas, refletindo as idéias conservadoras,

contrárias às novas práticas, idéias e tecnologias. Este gênero da literatura popular representa,

devido as suas estruturas narrativas bem definidas e seu caráter conservador, uma forma não

moderna de expressão para apresentar uma região também não moderna. Os cordelistas de todas as

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épocas demonstram sua ideologia conservadora lamentando pelas dificuldades devidas aos

problemas econômicos, às mudanças de costumes e queixando-se dos novos modos, de tudo que já

não é mais como antigamente ou do mal-estar geral da sociedade.

A literatura de cordel apresenta-nos o Nordeste não somente como o espaço conservador,

mas também como o lugar onde viver significa sofrer e lutar constantemente quer contra difíceis

condições climáticas, quer contra coronéis ou mais tarde políticos poderosos. Na literatura de cordel

frequentemente nos deparamos com o Nordeste retratado como um inferno terrestre, onde a seca e

os ricos são reponsáveis por todos os problemas trazendo para o povo só pobreza, fome e

sofrimento, um lugar onde as pessoas não têm escolha e vivem sob a impressão firme que a história

é sempre feita pelos outros, que o homem simples vive sempre a mesma injustiça, miséria e

discriminação, simplesmente porque nesta região, „[...] o pobre nada valia e só rico tinha valor.“

(NASCIMENTO (s/d)). O mesmo sentimento expressou nos seus versos Jurivaldo Alves da Silva

(s/d):

O Nordeste era terra Dos coronéis e barões Detentores do poder E de grandes possessões Como ocorre ainda hoje Em muitas situações.

[…] Ao rico não interessa, Se o pobre tem poupança Se tem conta na bodega Se tem uma herança Seu poder não contagia E o pobre é quem dança!

Já pelos títulos de alguns folhetos famosos como O salário mínimo e o aumento... da fome“

(Abraão Batista, s/d), Misérias da época (Leandro Gomes de Barros) Os horrores do Nordeste (José

Bernardo da Silva), A praga no sertão paraibano (Caetano Cosme), Só o Louco não entende e o

Cego não vê (João Ferreira da Silva) ou A invasão da carestia (Erotildes Santos da Miranda)

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podemos ver que é bastante comum mostrar o Nordeste como uma região miserável, esquecida e

marginalizada pelos poderes políticos.

Como mais um exemplo pode servir este poema de reclamação contra a carestia, isto é, o

alto custo da vida, porque com nada o povo se identifica melhor que com as lamentações e queixas

contra os políticos e o governo, onde Cuíca de Santo Amaro (s/d) expressa tal situação na Bahia dos

anos 40 com seguintes palavras:

Triste e muito triste é nossa situação com todas as misérias subiram o preço do pão arrancando ao operário até o ultimo tostão

e um pouco mais adiante continuava-se queixando:

Como é que o operário vive sempre noite e dia Oprimido! Explorado! Aqui dentro da Bahia sem achar um protetor para lhe dar garantias?

Das mesmas dificuldades corriqueiras e do desinteresse dos políticos fala o poeta contemporâneo João Ferreira da Silva (s/d):

O homem pobre, hoje em dia o que faz para viver? A casa cheia de filhos e não ganha pra comer Tem que pedir ou roubar pois o que ganha não dar Isto alguém precisa ver..

A consciência de que o lugar do pobre sempre vai ser o mesmo e que o apoio dos poderes políticos

provavelmente nunca vai chegar, faz os nordestinos levarem as dificuldades da vida como parte do

destino e procurarem soluções noutros lugares.

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Religiosidade

Uma das possíveis saídas mostrou-se na aceitação do destino e submissão completa à ordem

divina, porque é a única que neste momento poderia-lhes ouvir, sua esperança, portanto, voltava-se

à Deus.

Na esperança de melhora As ‚mocinha e muié‘ Velhos, jovens e meninos Todos vão seguindo a pé Domingo para capela Pra rezar e acender vela Munidos de muita fé. (BARRETO, 2008)

De forma ainda mais complexa versejou o mesmo tema o poeta Erotildes Miranda dos Santos (s/d)

Deste jeito a pobreza Vai marchando dia a dia Caminhando sem parar Prá cima da carestia Se Jesus não socorrer Todo pobre vai morrer Duma noite pra um dia. Porque do jeito que vai Não pode mais viver A conversa é subir Nada fala em descer Sobe pão, sobe farinha Sobe ovos e galinha Só Deus pode nos valer. Vamos ver se o governo que tem muita competência pode fazer qualquer coisa contra essa inclemência Se ele não controlar Nos só temos que implorar a Divina Providência.

O desespero e a miséria conduziam as pessoas humildes do Nordeste a procurarem ajuda

não só nos santos católicos e nos milagres de Nossa Senhora, mas também nas figuras messiânicas

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de Antônio Conselheiro, Padre Cícero entre o povo conhecido como Padim Ciço, ou Frei Damião e

em suas profecias, exatamente como nos versos de Antonio Carlos de Oliveira Barreto (2008):

O sertanejo vai fazer Pedido ao seu protetor Seja São Roque, São Pedro Santo Antõe, Nosso Senhor O beato Conselheiro Qualquer santo milagreiro Que alivie a sua dor.

Esta resignação com a ausência dos poderes políticos e seus desmandos produz um

pessimismo conformista que mantém a população calada mesmo diante das injustiças. Os poetas

nordestinos comentando esse fato nos seus versos, sem querer, reforçaram assim a imagem do povo

nordestino como um povo passivo, resignado e carente de atenção e ajuda que nunca chegam. A

resignação, entretanto, torna-se revolta quando surge um líder messiânico – como os acima citados

–afirmando-se portador da mensagem divina e conduz as pessoas da resignação passiva à revolta

violenta. Assim estão marcados os movimentos de rebelião mais famosos do Nordeste, dos quais

podemos citar a Guerra de Canudos e seu líder Antônio Conselheiro, sobre o qual também existem

dezenas de folhetos retratando este de todos os possíveis pontos de vista.

É necessário mencionar que estando os nordestinos acostumados a conviver diariamente

com a natureza e seu fatalismo, a sua religiosidade naturalmente interfere com o sobrenatural. Na

literatura de cordel facilmente mistura-se o fantástico e o real, o sagrado e o profano, o mundano e o

divino. Nos folhetos encontramos referências do catolicismo tradicional ao lado das mais absurdas

superstições populares. Os demônios e os santos aparecem com caraterísticas humanas e ao

contrário, as figuras de padres populares e cangaceiros famosos são venerados como santos. Os

poetas atribuem-lhes poderes sobrenaturais, poderes de profetizar e de fazer milagres, e tentam

convencer os leitores que se não mostrarem fé suficiente ou se desobedecerem as palavras de Jesus,

ou do padre divinizado, a punição na forma de seca, fome ou guerra certamente seguirá.

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Citamos aqui alguns dos inúmeros folhetos mais expressivos ligados com esta temática:

Profecias do Padre Cícero Romão até o Ano dois mil (Apolônio Alves dos Santos); O protestante

que virou urubu porque quis matar Frei Damião (Manoel Serafim); História de um crente que foi

castigado por Frei Damião (Amaro Cordeiro); A História verídica e o milagre do Padre Cícero (

Abraão Batista); A surra que o Pe. Cícero deu no diabo (António Caetano), etc.

Cangaço

Entre os ciclos temáticos mais marcantes na literatura de cordel encontra-se, sem dúvida, o

fenômeno do cangaço. O contexto que deu início ao surgimento do banditismo e os esforços do

governo para combaté-lo, serviu como tema de uma vasta produção literária, não somente da

literatura do cordel, mas também dos inúmeros textos históricos, jornalísticos e na literatura erudita.

No cordel os pistoleiros são observados com uma mistura de temor e admiração, representam o

herói verdadeiro, o vingador das injustiças feitas ao povo, o misto de criminoso e o lutador,

admirado ainda mais quando atacava os ricos para distribuir entre pobres como por exemplo

acontece no folheto Lampião – Justiceiro de Norte de João Sabino Nascimento (s/d):

E assim foi se tornando o mais cruel bandoleiro por uns era estimado para outros carniceiro mostrando espírito nobre ajudava sempre o pobre tomando de fazendeiro

A mesma fama acompanha também outro famoso cangaceiro, Antônio Silvino, conhecido como

protetor da família e vingador do sertão:

Tomei dinheiro dos ricos

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E aos pobres entreguei Protegi sempre a família Moças pobres amparei O bem que fiz apagou Os crimes que pratiquei. (CHAGAS, 1954)

No ciclo do cangaço, mais do que em qualquer outro tema do cordel, vê-se o processo de

idealização e com o tempo também de mitificação das personagens. O célebre Lampião, o mais

famoso dos cangaceiros, que aterrorizou o Nordeste por mais de vinte anos, tornou-se uma

verdadeira lenda que continua viva ainda quase setenta anos depois de sua morte. E o mesmo

aconteceu com o Antônio Silvino. Os poetas chamam-nos de Rei do Cangaço, Rei do Sertão, Leão

do Norte, Rifle de Ouro, seus atos sangrentos foram quase esquecidos e os matadores

transformaram-se com o tempo em vítimas da sociedade injusta que foram levadas ao caminho do

crime por razões de honra – para vingar os nunca castigados crimes contra suas famílias.

Eu hoje podia ser Um distinto cavaleiro Meu pai foi assassinado Devido a não ter dinheiro Eu para me ver vingado Fiquei sendo cangaceiro. Não foi tanto por instinto Assim por uma vingança Porque mataram meu pai Minha única esperança E eu vingar sua morte Pra mim era uma herança. (CHAGAS, 1954)

São incontáveis os folhetos que descrevem as verdadeiras ou inventadas histórias de valentões,

bandidos ou pistoleiros famosos, que além de já mencionado Lampião e sua companheira Maria

Bonita e Antônio Silvino contam as aventuras de Lucas de Feira, Jesuíno Brilhante ou dos últimos

cangaceiros Corrisco e Dadá. Mas poucas descrevem os cangaceiros como assassinos perversos

segundo o fez João Martins de Athayde (s/d) neste folheto, escrito poucos anos depois da morte do

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Lampião, onde ele narra o drama da última luta do bandido e mostra também a sua opinião à

respeito de seus admiradores:

O cangaceiro é doente É um indivíduo anormal Recebendo influência Do ambiente social Com justiça e instrução É difícil um Lampião Cair na trilha do mal. [...] Também não está direito Ter pena dele demais Dizer que eles são heróes Como muita gente faz Cadéia para esta gente Com tratamento decente Em prisões especiais.

O capítulo do cangaço não se encerrou com a morte de seus protagonistas, ao contrário, a

partir daquele momento os poetas populares literalmente podiam abrir as asas de sua imaginação e

começar a inventar novas histórias, algumas baseadas nos velhos folhetos ou na realidade histórica,

outros completamente ficcionais, ampliando assim, cada vez mais o mito do cangaço. Entre dezenas

de títulos que se preocupam não somente com a vida e morte do bandido, mas principalmente de

sua vida após a morte, podemos agora mencionar alguns que se tornaram clássicos na literatura de

cordel: A chegada de Lampião no Inferno (José Pacheco); A chegada de Lampião no Céu (Rodolfo

Coelho Cavalcante); A briga do Antônio Silvino com Lampião no Inferno (José Costa Leite); A alma

de Lampião faz Misérias no Nordeste (Franklin Maxado); O grande debate que teve Lampião com

São Pedro (José Pacheco) ou A Grande briga de Lampeão com a moça que virou cachorra

(Rodolfo Coelho Cavalcante), etc.

A religiosidade e o cangaceirismo são sem qualquer dúvida os traços considerados mais

caraterísticos e dominantes do Nordeste. Assim, por exemplo, descreve o sertanejo Darcy Ribeiro

(2007):

O sertanejo arcaico carateriza-se por sua religiosidade singela tendente ao

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messianismo fanático, por seu carrancismo de hábitos, por seu laconismo e

rusticidade, por sua predisposição ao sacrifício e a violência. Suas duas formas

principais de expressão foram o cangaço e o fanatismo religioso.

Estes temas, que também estão entre os mais recorrentes na literatura de cordel, costumam ser

interpretados pelos historiadores e antropólogos como o resultado da seca e da incapacidade dos

poderosos em resolver este problema. Contudo, enquanto à população do Sul explicava estes

fenômenos pela violência e fanatismo natural do povo do Nordeste, para os próprios nordestinos

estes movimentos representavam apenas uma das possíveis formas de resistência à dura realidade.

Nas personagens dos cangaceiros vêem os poetas, da mesma forma que no caso dos santos

milagreiros e padres populares, os porta-vozes dos pobres e sofridos, perseguidos e mal

interpretados e observa-se uma forte tendência na literatura de cordel em mitificar os cangaceiros do

mesmo modo como o fazem com as figuras messiânicas, transformando-os em verdadeiros heróis

populares, idealizados por sua audácia, força e justiça, mesmo que para muitos estes possam parecer

apenas criminosos foras-da-lei e fanáticos.

A imagem do cangaceiro como homem forte, valente e destemido ajudou a formar outra

caraterística do nordestino. Além de ser representado nos folhetos como homem pobre, indolente e

sem iniciativa, com a mesma frequência aparece neles a imagem de homem de caráter forte, valente

e resistente que não recua frente a qualquer obstáculo social ou natural, que não desiste fácilmente,

semelhante à que observou nos seus versos Antonio Carlos de Oliveira Barreto (2007a):

O trem que me conduziu Diluiu se na estação Não há passagem de volta Pra retornar ao sertão Sem asas para voar Sem sonhos para sonhar Vou seguindo essa missão. E na selva de cimento Já não sou anjo de luz Junto aos animais falantes

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Eu vou carregando a cruz Sou mais um na multidão Perdido na contramão: O destino me conduz. Mas não me entrego porque sertanejo é mais que forte é raio rasgando céu muito mais que o vento-norte semente de luz plantada todo desafio da estrada de quem nunca teme a morte.

Por outro lado, muitas vezes esta mesma imagem gera um preconceito geral acerca do nordestino

que além da caraterística acima mencionada o marca como um tipo de bárbaro primitivo que

somente consegue resolver problemas com violência e agressividade.

Folheto dos poetas migrantes

Quando falamos do Nordeste, não podemos esquecer do grande número daqueles que,

oprimidos pela seca, tentaram pegar o destino em suas próprias mãos, revoltaram-se contra tudo e

todos e quando não se juntavam aos grupos de bandidos ou seguidores de um dos profetas

populares, abandonavam sua terra natal e mudavam-se para outros lugares onde a vida parecia ser

mais fácil. Os motivos dos retirantes relata em seu folheto „Três conselhos sagrados“ o poeta

baiano, Marco Haurélio (2006):

Descreverei neste enredo O drama de um retirante Que deixou sua família Devido à seca incessante Indo procurar trabalho Em uma terra distante.

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[...] Tendo perdido a lavoura E morrido a criação, Ele chamou a mulher E lhe disse: Coração, Vou-me embora pra São Paulo Procurar colocação.

E porque a mulher não parece gostar da idéia, ele a explica assim, como coisa do Destino:

Ele dise: - Minha prenda Nossa vida é uma estrada E o Destino nos obriga A fazer caminhada No final, a recompensa Aos que lutam é ofertada.

Os folhetos dos poetas que por alguma razão tinham que deixar a vida na roça e mudaram-se

para cidade ou mesmo para outro estado, têm em comum o fato, de que apesar de todas as misérias,

injustiças e sofrimentos, o Nordeste parece-lhes o melhor lugar para viver. Este Nordeste aparece

como um espaço idealizado, metafórico, um espaço que representa a saudade como confessa em

seus versos Aécio Alves de Freitas (2005):

E assim eu encerrei minha fase interiorana Prá Salvador me mudei essa metrópole baiana dei adeus à minha terra deixando a atrás da serra com uma saudade insana Muitos anos se passaram A saudade se aplacou, As coisas se acomodaram, Uma, porém, não mudou A roça na qual nasci, Mantém-se bem viva, aqui Comigo, por onde eu vou. Quando nós nos encontramos, Meu irmão sempre falou: A roça todos deixamos, Mas ela não nos deixou. Teima em permanecer No peito, ara o prazer De quem sempre a amou.

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Pois o nordestino verdadeiro sempre confessa, mesmo já naturalizado na cidade, que o lugar dele é

no sertão e àquele lugar nada se iguala, como versejou recentemente outro poeta baiano, já há

muitos anos residente em Salvador, Antonio Carlos de Oliveira Barreto (2007b):

Vivo na cidade grande Mas não deixo de sonhar com paisagem das caatingas e das noites de luar Neste louco desamparo: o sertão é o meu lugar Pode chover ouro em pó Nada faltar no meu lar O luxo todo do mundo Dinheiro esbanjar Eu não nego a ninguém O sertão é o meu lugar. E sendo caipira-urbano Nunca deixo de sonhar Vou rodar o mundo inteiro Com o meu cordelizar Mas vou morrer no sertão Pois ali é o meu lugar.

Ao contrário as cidades grandes costumam ser descritas como lugares cheios de perigos:

Seus pais disseram – Meu filho Por lá não vá te perder Salvador é uma cidade Difícil de se viver Os prédios são muito altos Têm também muitos assaltos Fazendo o povo correr. (SILVA, 2005)

E assim fala de São Paulo no folheto „Panvermina e Zabelê nas quebradas do sertão“ outro baiano,

Jotacê Freitas (2005):

[...] Ir pra São Paulo é tolice Mesmo que leve uma cesta De dinheiro e de riqueza Aquilo é terra bissexta.

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O povo não vive em paz É um corre-corre danado O nordestino ao chegar Fica longo empregado Mas quando for perceber Está sendo explorado. E pensa logo em voltar Pois foi assim que vivi Exilado do meu povo Nem conto como sofri Por isso estou de volta Eu peno mas sou feliz.

Nos versos dos poetas migrantes o Nordeste transforma-se num lugar que parece estar no passado,

onde tudo é sólido e tranquilo, onde tudo permanece imutável – a terra, as plantas, os animais, o

modo de vida simples e humilde - é o lugar para o qual todos querem voltar.

Queixas à moral feminina

Outro tema frequente, que aparece na literatura de cordel de todas as épocas e que reflete o

caráter tradicionalista dos poetas mesmo como dos seus leitores, usado para demonstrar o declínio

do mundo antigo e de seus valores, é o escandaloso comportamento dos jovens e a moda feminina.

Já Leandro Gomes de Barros, o pioneiro do cordel no Brasil, nas primeiras décadas do século XX

no folheto „As cousas mudadas“ lamentava assim:

Hoje se vê uma moça Ninguém sabe se é rapaz Anda com calça e chapéu Pouca diferença faz, Vê se até calças de velhos Com brigalhas para traz.

Os homens de hoje só querem Mulher para trabalhar A mulher da casa é ele,

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Faz tudo que ela ordenar Para ser ama de leite Só falta dar de mamar.

Outro poeta pernambucano, Tomaz de Assis, no folheto Começou o fim do mundo (1976) da década

de setenta aponta os maiores escândalos da época com estas palavras:

O escândalo está demais Do céu já desce o castigo Fome, guerra em toda parte O mundo inteiro em perigo. A desgraça continua A mulher mostra na rua A barriga e o umbigo. Não tem escândalo maior Do que seja a minisaia Essa miséria se estende Da praça ao banho de praia O mundo perde o sorriso E o céu está dando aviso Pois o desmantelo ensaia.

E somente há alguns anos atrás o poeta Antonio Alves da Silva no folheto A moda de hoje em dia,

não é como antigamente (2003) mostrava sua semelhante preocupação assim:

É por isso que afirmo Para nossa amada gente Que a moda de hoje em dia Não é como antigamente Na verdade isso me assusta Mulher usa saia justa Com tecido transparente. O tecido de algodão Agora está desprezado Porque a moça só quer Usar shortinho apertado Ou calça justa de malha Pois assim ela se espalha Fazendo o seu rebolando.

E no final do folheto ele conclui:

[...] Antigamente uma jovem Aos seus pais obedecia Toda família era unida Desenlance não havia Porém hoje a juventude

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Perde a paz e a saúde Por causa da rebeldia. Toda mocinha rebelde Só vive fazendo alarde Não atende pai nem mãe Numa atitude covarde E por causa da pendenga Vai terminar feito quenga Igual a Bela da Tarde.

Quer dizer, segundo o poeta popular a mudança de costumes e de valores morais faz com que os

jovens sejam cada vez mais desobedientes e que, claro, antigamente tudo era diferente e melhor.

Conclusão

Neste trabalho tentamos demonstrar quais são algumas das mais marcantes imagens do

Nordeste presentes na literatura de cordel e de como esse arquivo contribuiu por um lado para

manter vivas as tradições, as crenças, a cultura, a religiosidade e o pensamento da região, nos

permitindo revisitar o passado a partir da continuidade de seus temas no presente e, por outro lado,

como tal gênero literário criou e ajudou a reforçar uma série de estereótipos negativos acerca da

região e da sua gente.

Como já foi dito, no cordel atual aparecem as mesmas imagens que antigamente, os

cordelistas continuam falando da vida do pobre, do messianismo e do cangaço, queixam-se dos

políticos e dos novos modos e apesar de poder parecer que a imagem que eles nos oferecem

aproxima-se cada vez mais de uma caricatura, nas páginas do cordel o sertão continua sendo o

melhor lugar para se viver. A imagem do Nordeste que sobrevive no cordel, retomada pela literatura

erudita e principalmente pela mídia, faz com que as pessoas oriundas das demais regiões do Brasil

ou mesmo do exterior, continuem vendo o Nordeste como uma região tradicional, folclórica,

habitada pelo povo pobre e primitivo, mas também religioso e resistente. A literatura de cordel hoje

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perde um pouco de sua função original, pois desde que foi descoberta como manifestação folclórica,

tem abandonado o seu papel de difusor de notícias para uma população carente de informação e se

torna cada vez mais alegórica, voltada mais aos intersses turísticos do que aos locais, mas que

continua nos mostrando o Nordeste assim como existe no imaginário coletivo, isto é, o Nordeste de

cabras valentes, de bandidos, de santos, de coronéis, de milagres, dos crimes, das pragas e do sertão

mítico.

Referências bibliográficas

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