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1 Limpe todo o sangue antes que manche o carpete de Jô Bilac Personagens: Wilson, Bonito apesar do porte pequeno, ar simpático, óculos com armação média, transpiração incontrolável. Sabrina, Olhar distante, triste por natureza, meia calça cor da pele, cabelos escovados. Pierre, Alinhado, desenvolto, charmoso, arrogante, dentes muito branco. Geda, Jovem com aspecto vulgar, cabelos tingidos, com a leveza dos fudidos.

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Limpe todo o sangue antes que manche o carpete

de Jô Bilac

Personagens:

Wilson, Bonito apesar do porte pequeno, ar simpático,

óculos com armação média, transpiração incontrolável.

Sabrina, Olhar distante, triste por natureza, meia calça cor da pele,

cabelos escovados.

Pierre, Alinhado, desenvolto, charmoso, arrogante, dentes muito branco.

Geda, Jovem com aspecto vulgar, cabelos tingidos, com a leveza dos fudidos.

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Cena 1 (sala de espera) (Wilson, nitidamente apreensivo, manuseando de um lado para o outro uma maletinha ordinária da cor marrom. Tira um lenço limpa os óculos sem disfarçar o nervosismo, em seguida enxuga a testa repetidamente, parece uma panela de pressão prestes a explodir, mas ainda guarda em si um sorriso meigo e subserviente. A sala de espera é miúda e claustrofóbica, parece encolher a cada minuto, indicado por um relógio pendurado na parede com ponteiros pretos girando tal qual um inseto preso na lâmpada esperando por findar. Tudo está quieto. Existe um bebedouro, desses de garrafão azul, com copos descartáveis do lado. Wilson pega um novo copo e bebe em um só gole, amassa o copo e arremessa num cesto de lixo no canto da sala,errando o alvo, somando aquele descartável a mais dezenas de outros , igualmente infelizes na tentativa do acerto, espalhados no pé da lixeira. Wilson levanta.Senta. Volta a levantar-se. Anda de um lado para o outro. Consulta o seu relógio com pulseira de couro. Novo copo d'água, novo arremesso mal sucedido, nova levantada, nova sentada, nova caminhada, nova consulta ao relógio. Mais um copo d'água, mais um arremesso mal sucedido, e assim segue a seqüência apreensiva, da qual o término inicia novo ciclo. Pânico. Respira fundo. Sossega. Fecha os olhos. Transpira muito. A mala ordinária no colo. Começa a rir baixinho,quase inaudível. Vai controlando, no entanto uma vontade incontrolável vai se dando e o tomando em uma crise de riso nervosa, tremula, numa tentativa inútil de autocontrole. A gargalhada não é querida, mas vai dominando seu espírito, numa convulsão que quase se confunde com o choro. cai no chão com tanta intensidade. Vai levando ao limite máximo. Por fim vai se esgotando. Se esgotando. Até virar um chiadinho longe.Interno.Recuperando a normalidade de sua respiração. A porta se abre. Luz intensa vindo dela. Ele entra.) Cena 2 (Casa da velha) (Uma vitrola, um disco girando. Sabrina dançando. Está descalça, anéis em todos os dedos, muitos colares, usa um vestido de festa. No entanto fica evidente que se trata de uma caricatura, como uma criança que veste roupas da mãe e se exibe diante do espelho. Ela parece transportada num outro universo que não esse. Contudo não há entusiasmo na cena, somente uma estranheza diluída em uma quase melancolia.) ( o relógio de Sabrina desperta em sinal de atividade. Rompendo a realidade.) (a dança pára.) (tempo) (ela tira a música) (fica parada, apática. Fitando o nada) (tempo) (relógio insiste) (ela vai tirando os anéis e os colares.)

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(suspira resignada. Sai.) (tempo) (retorna empurrando uma velha numa cadeira de rodas. A velha se assemelha a um boneco de cera, imóvel e branco. Murcha e esquelética, protegida da luz com enormes óculos escuros.) (Sabrina, com muita destreza, coloca um babador em torno do pescoço da velha e uma bandeja que se encaixa na cadeira. Sai.) (tempo) (Sabrina retorna com uma lata, um abridor e uma colher.) (Apatia sempre.) (Abre a lata.) Sabrina: Maravilha... (notando que a pintura da unha do seu polegar foi danificada no processo da abertura da lata) (deixa a lata de lado e se detém com a unha.) Sabrina: (em resmungos quase inaudíveis) Merda... Eu mereço... Agora você vai esperar. (pega a acetona, limpa a unha e inicia o processo de pintura.) (telefone toca.) (Sabrina saturada. Suspira.). (atende) Sabrina: Pronto. Wilson: (agastado. Visível em outro plano) Casa comigo! Sabrina: Wilson… Wilson: (em uma respiração) Dentro de mim tem um demônio que às vezes ri e às vezes chora e às vezes me morde com tanta vontade que até dá vontade de gritar… Sabrina: Wilson, eu já te disse mil vezes que não é pra ligar na hora do meu expediente. Wilson: (Urgente.) Sai daí, vamos botar o pé na estrada, esquece essa vida! Arruma as suas coisas, nós vamos embora agora! Sabrina: (natural) Wilson, você bebeu? Wilson: Escuta! Está tudo apodrecendo por aqui, vamos cair fora antes que a gente estrague! Sabrina: Não é assim…

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Wilson: Será possível que você não percebe? Hoje é o nosso dia. Suje-se gordo! Vai dar tudo certo. Vai dar tudo certo. Vai dar tudo certo. (vai repetindo numa violência introspectiva.) Sabrina: (Agoniada com as repetições) Wilson, onde você está, estou ficando preocupada. Você está me assustando com isso… Eu não gosto desse tipo de conversa, você sabe disso… Pára com isso, Wilson… Pára com isso! Wilson: (num transe ininterrupto) Vai dar tudo certo, vai dar tudo certo, vai dar tudo certo… Sabrina: (aflita) Pára com isso, Wilson! Pára! Pára! (ao grito) Pára!!! (silêncio. Regularização respiratória.) Wilson: Me desculpa. É que eu precisava falar com alguém... Você sai daí que horas? Sabrina: A de sempre. Wilson: Ah... Eu posso passar aí pra te buscar? Sabrina: Pode claro, se eu não estiver em casa eu devo estar na rua com a velha, mas deixo a chave na portaria e você me espera aqui. Pode ser? Wilson: Pode. Eu queria te falar uma coisa... Sabrina: Estou ouvindo. Wilson: Esqueci... (tempo) Sabrina: Wilson, você está com algum problema? Wilson: Não. Sabrina: Então? Wilson: O que? Sabrina: O que você quer, Wilson, eu estou trabalhando. Wilson: Ah, só liguei pra saber como você está. Sabrina: Eu estou bem. Wilson: Ah... Sabrina: E você? Wilson: O que que tem eu? Sabrina: Como você está?

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Wilson: Eu estou bem também, por que? Sabrina: Nada, só estou perguntando. Wilson: Ah... Sabrina: E a entrevista? Wilson: Que entrevista? Sabrina: (Pega a latinha, passa o dedo indicador e lambe.) A entrevista de emprego. Wilson: Ah! (mais aflito) Foi boa. Sabrina: (comendo a comida da velha) Legal. Wilson: Eles aprovaram o meu projeto. Gostaram muito. Sabrina: Que ótimo. Wilson: Pois é... Eles disseram que é um projeto muito inovador e que eu sou um jovem talento no mercado. Acho que eles lembraram do “Wilsinho nota dez”. Sabrina: Não delira, ninguém lembra. Wilson: (desapontado) É né... Mas eles gostaram muito... De verdade. Sabrina: Me promete. Wilson: Prometo. O que? Sabrina: Não vá se meter a balão e cantar aquela musiquinha, pelo amor de deus, Wilson! Wilson: Não canto, claro que não canto. Tem cabimento! Sabrina: Você tem mania, Wilson! Não vá perder essa oportunidade por conta dessa estupidez! Wilson: Não é estupidez, Sabrina. Sabrina: É uma estupidez, sim, Wilson. Coloca uma coisa na cabeça: isso é página virada. Tem que ter ambição, homem. Você tem que parar de ser tão aparvalhado. (silêncio) Sabrina: (amorosa) Desculpa, não foi isso que eu quis dizer. Desculpa. Mas é que eu fico co medo… Justamente agora, quando tudo está caminhando, fico com medo de que você meta os pés pelas mãos e faça alguma bobagem. Você batalhou tanto nesse projeto… Por favor, não faz bobagem. Wilson: Eu não vou fazer bobagem. Sabrina: Nada de “Wilsinho nota dez”, não precisa.

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Wilson: Juro. Sabrina: Você agora tem um emprego, Wilson! Você agora é um empregado! Wilson: Eu sei disso. Sabrina: Você está feliz? Wilson: Pra dedéu! Sabrina: Que bom, então eu também estou. Wilson: Que bom. Sabrina: Você merece, viu? Wilson: Eu mereço, né? Sabrina: E eles vão pagar o que você pediu? Wilson: Vão sim. Vai dar pra dar entrada no nosso apartamento. Sabrina: (paralisa) Sério? Wilson: Pois é. Sabrina: (transportada) O nosso apartamento perto da praia. Wilson: De frente! Vai ser de frente! Sabrina: Desde pequena. Wilson: O que? Sabrina: Eu tenho esse sonho desde pequena. Wilson: Eu sei. Sabrina: Conjugado não, Wilson. Wilson: Não! Conjugado não. Sabrina: Conjugado espreme a alma. Wilson: Conjugado não. Sabrina: Eu te disse: o que é do homem, o bicho não come! Estou muito feliz agora, Wilson. Wilson: Que bom. (sorri) (tempo longo) Sabrina: Tenho que desligar.

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Wilson: Claro! Sabrina: (de repente) Espera! Wilson: Sim. Sabrina: (tempo. Em seus olhos um abismo. Transportada num desespero mudo) Wilson: Sabrina… você está aí? Sabrina: (numa tristeza infantil) Eu te amo. Wilson: Eu te amo mais. (desligam) (foco nos dois. Sabrina com certo desprezo para a velha. Wilson em silencio, transpirando, com sua maleta marrom na mão, olhar fixo no nada.). Sabrina: (animada) Viu velha, eu não vou morar em conjugado. Vou acordar de manhã e ver o mar... (Wilson com um revolver na mão. ) Sabrina: (gira a cadeira da velha) Vou ver um monte de ondas , uma atrás da outra, vai ter pôr do sol... Vai ser lindo demais. (Wilson analisa o revolver) Sabrina: (girando com a velha na cadeira) Eu vou te levar no meu apartamento, velha! Vou lavar a sua bunda no mar... (Wilson, abstrato. Tira um cartão do bolso, olha com fixação.). (Sabrina rindo e girando com a velha) (delírio) Cena 3 (Rua. Wilson esbarra em Pierre, provocando a abertura de sua pasta de couro preto, fazendo com que papéis se espalhem pelo chão) Wilson: Desculpa! Pierre: Tudo bem... Wilson: Caramba! (ajudando a catar) Eu sou muito distraído mesmo! (sorri amarelo) Pierre: (sempre cordial) Acontece. (demoram-se por uns instantes até que todo o papel seja recolhido) Wilson: (estende a mão) Wilson.

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Pierre: Pierre. Wilson: Prazer conhece-lo. Pierre: Prazer. (sorri e dá as costas) Wilson: Pierre! (Pierre volta-se para ele) (Wilson saca o revolver) (Wilson dispara um tiro contra ele) (Pierre cambaleia, sem compreensão da situação, e cai morto.) Cena 4 (Rua. Wilson esbarra em Pierre, provocando a abertura de sua pasta de couro preto, fazendo com que papéis se espalhem pelo chão) Wilson: Desculpa! Pierre: Tudo bem... Wilson: Caramba! (ajudando a catar) Eu sou muito distraído mesmo! (sorri amarelo) Pierre: (sempre cordial) Acontece. (demoram-se por uns instantes até que todo o papel seja recolhido) Wilson: (estende a mão) Wilson. Pierre: Pierre. Wilson: Prazer conhecê-lo. Pierre: Prazer. (sorri e da as costas) Wilson: Pierre! Pierre: (volta-se) Wilson: (saca o cartão) Seu cartão... Caiu aqui... Pierre: Ah... (pega no cartão, Wilson faz resistência , os dois presos no cartão, Pierre sem entender) Wilson: Toma um café comigo? Pierre: O que?

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Wilson: (sorri desconcertado) É que na verdade eu esbarrei de propósito em você. Eu já sabia quem você era... Pierre: Sabia? Wilson: O nosso projeto ficou pra final da seleção. Pierre: projeto? Wilson: O projeto industrial, jovens talentos. Pierre: Ah, sim! O projeto! (conclusivo) Que bacana, você foi selecionado. Wilson: Na verdade não. Pierre: Não? Que pena... Wilson: Eles selecionaram o seu. Pierre: ( Atônito.). Wilson: Pelo visto você não sabia. Pierre:... Você está de brincadeira? Wilson: (sorrindo) Não, seu projeto foi selecionado. Eu acabei de voltar lá do escritório. Eles disseram que apesar do meu ser muito inovador, o seu estava mais de acordo com o propósito deles. Parabéns. Pierre: (zonzo com a noticia.) Ual... (vai entusiasmando-se) Você tem certeza disso ? Wilson: Sim. O seu cartão ... Eu peguei da mesa deles. Você é o novo talento industrial do país. Pierre: (muito esfuziante) Caramba! Puta merda! Caramba!!!!(abraça Wilson com muita força, balança o rapaz pra um lado e pro outro, joga ele pra cima,) Wilson: Então? Você aceita tomar um café comigo? Pierre: Um café não! Nós vamos tomar um porre! Nós vamos beber até cair, muito!!! Wilson: Eu não bebo. Pierre: Faço questão... Wilson: Wilson. Pierre: (efusivo) Wilson! Faço questão Wilson. Nós vamos comemorar! Nós vamos beber que nem gambá! Você já encheu a cara? (discando seu telefone) Wilson: Uma vez... Mas faz muito tempo... Pierre: Então, hoje fica por minha conta (atende) Alô? Pai? Você não vai acreditar... (o que se segue são dois diálogos simultâneos: Pierre com o pai ao telefone, muito empolgado contando seu sucesso com o projeto e Wilson em suas lembranças etílicas)

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Wilson: (transportado) Uma vez eu e o namorado da minha irmã enchemos a cara. Ele é quatro anos mais velho que eu. A gente tava numa chácara e tinha uma neblina chata, que deixava tudo meio turvo... Roubamos umas sete garrafas de vinho, nada muito sofisticado, vinho vagabundo, mas bom pra esquentar... Minha irmã caiu bêbada logo na segunda garrafa, mas nós continuamos... A gente bebeu, bebeu, bebeu... Tem uma música que fala justamente disso... Acho que é do Bob Dylan... Ele fala do primeiro porre dele, o lance de se manter entorpecido... Bob Dylan é legal... Queria ouvir mais... A tia da minha noiva tem uma história ótima_ já te falei da minha noiva? Sabrina. Nós vamos nos casar. Acho. Ela quer um apartamento de frente pra praia, acho que vai demorar um pouco... Mas um dia, quem sabe, não é mesmo? _ Então, a tia dela estava em Londres, e usava umas pulseiras bem coloridas, dessas bem ordinárias que vendem em qualquer camelô... Ela entrou numa livraria e tinha um cara lá que adorou as pulseiras, ficou pedindo "poxa, me dá essas pulseiras, me arranja aí..." tal, tal... Mas ela disse "Não, quem me deu não vai poder dar de novo...etc"... Dois anos depois ela ta andando na rua e dá de cara com um outdoor imenso... E quem tava lá? O cara da livraria. Bob Dylan. O Bob Dylan lembra um pouco o Lui, o namorado da minha irmã. Acho que é a boca. O Lui tinha boca de mulher. Eu fiquei muito bêbado e o Lui disse que era bom se eu forçasse o vomito... Colocou o dedo dele na minha boca, dois... Eu estava muito tonto... Nós dois... E os dedos dele na minha boca, segurando minha língua... Entrando... Coçando o céu da boca... A mão toda... E a gente tonto, e nada de eu vomitar... A mão do cara já tava toda babada... E a gente ria... Ria muito... Que situação!... Aí a gente se pegou. (Pierre vira pára a conversa ao telefone, olhando surpreso para Wilson.) Cena 5 (Rua. Wilson esbarra em Pierre, provocando a abertura de sua pasta de couro preto, fazendo com que papéis se espalhem pelo chão) Wilson: Desculpa! Pierre: Tudo bem... Wilson: Caramba! (ajudando a catar) Eu sou muito distraído mesmo! (sorri amarelo) Pierre: (sempre cordial) Acontece. (demoram-se por uns instantes até que todo o papel seja recolhido) Wilson: (estende a mão) Wilson. Pierre: Pierre. Wilson: Prazer conhecê-lo. Pierre: Prazer. (sorri e da às costas) (Wilson sozinho. Esbofetea-se. Uma, duas, três vezes, aumentando a intensidade do golpe. Quatro, cinco, seis. Pára. Respira fundo. Enxuga a testa. Acerta os óculos no rosto. E Segue)

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Cena 6 (Praça. Sabrina, uniforme branco, com a velha na cadeira de rodas. A velha usa um enorme chapéu de palha, assemelhando-se ainda mais com um espantalho. A praça é agradável. Só tem gente velha em cadeiras de rodas sendo carregadas por jovens auxiliares. Som de crianças brincando ao longe. Carro passando. Sabrina observa tudo com muita indiferença, ou melhor, em seu intimo há um vago sentimento de vazio e tristeza. Chega Geda, igualmente uniformizada, uma jovem auxiliar, carregando seu espantalho na cadeira de rodas, as duas sorriem uma para a outra e se cumprimentam com beijinhos no rosto.) Sabrina: pensei até que você não viesse mais... Geda: Essa aí atrasou o meu lado, legal! A gente já estava saindo e ela se cagou toda. Sabrina: Que merda, héin?! Geda: Literalmente! (as duas riem.) (As duas tiram da bolsa um maço de cigarro e fumam) (tragam com calma.) Geda: (explosiva) Santíssima! (tomando a mão de Sabrina, quase hipnotizada) Que lindo! É de verdade? (um anel com uma pedra reluzente) Sabrina: (constrangida, recolhendo a mão) É. Geda: Wilson que te deu? Sabrina: (não muito convincente) Foi. Geda: Você chora de barriga cheia! O Alex não me compra nem um chiclete. Sabrina: O Wilson é um amor. Geda: E tá com bala na agulha! Vocês casam quando? Sabrina: Eu ainda não sei... Acho que em setembro, talvez... Estamos juntando um dinheiro e pode ser que aconteça. Não sei... Eu quero que saia tudo direitinho, como manda o figurino, sabe? Se for pra ser esculhambado eu não quero, melhor não fazer. Geda: E você está feliz? Sabrina: Eu estou feliz sim. (tempo) Em que sentido? Geda: Feliz de feliz, criatura. Sabrina: Ah, sim. Quer dizer, ninguém é feliz o tempo todo, não dá pra ser. Mas eu vou sendo quando dá. (tempo) Por que saber se eu estou feliz? Geda: Você não tira essa cara de quem fica pensando na morte da bezerra. Sabrina: Mas eu gosto de pensar na morte da bezerra... Fico horas... De verdade... A bezerra me interessa muito. (ri sem muito entusiasmo)

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Geda: Aí é que tá, não é na bezerra que você tem que ficar pensando, é no seu noivo, no Wilson! Sabrina: Pois é... Geda: Você ama esse cara? Sabrina: (abrupta) Naturalmente. Geda: (sardonica) Sabrina! Olha nos meus olhos. (irônica) Você ama o Wilson? Sabrina: (sem muita convicção) Amo. Geda: (com desdém, prática) Ama nada, Sabrina. Sabrina: (feroz) Amo. (firme, num autoconvencimento, olhar vidrado) Eu amo o Wilson. Geda: Mas isso é o de menos… Sabrina: O amor? Geda: O amor. A gente às vezes tem tanta vontade de amar, que se um dia abraçar uma vassoura e ficar repetindo “Eu amo você, eu amo você, eu amo você…” a gente acaba amando! Chora de tristeza e tudo se a vassoura for embora! Sabrina: E qual é a fórmula? Geda: (analítica, quase doutoral) Vejamos: ele é bonito? Sabrina: Normal. Geda: Descreve. Sabrina: Ah… Ele é normal, Geda. Altura mediana, cabelos castanhos… Enfim, normal… Geda: Criatura! Que falta de criatividade… (baforada reflexiva) Mas em todo caso, não é mau negócio… Homem bonito é bucha. Sabrina: Desenvolve. Geda: O Alex é medonho e isso não me dá trabalho! Me incomoda o fator pobreza, não a feiura em si, pelo contrário. A maior furada do universo é se casar com um homem bonito. Os feios carregam em si uma rejeição crônica, e isso faz com que o amor deles seja sincero e devoto. (segreda) Amar um feio é arrebatar um altar para si mesma. (tempo. tragada.) Sabrina: O Wilson não é feio… O Wilson tem cara de Wilson (maliciosa) e vai me comprar um apartamento… Geda: Onde?

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Sabrina: De frente pra praia. Geda: Qual? Sabrina: Isso ainda não sei... Geda: Não é vantagem. Sabrina: Morar de frente pra praia? Geda: Não é vantagem. A maresia acaba com tudo! Não dura um ano. Sabrina: Não por isso. Em minha casa não haverá móveis, nem geladeira, nem eletros, nada. Quero uma casa vazia. Ampla. Só com uma cama pra dormir. Uma cama bem grande. Geda: Que diferente... Sabrina: Esse negócio de entulhar casa, não gosto. Geda: Mas criatura, nem uma mesinha de centro? Um escorredor de pratos... Sabrina: Nada, Geda. Nada. Só a cama... (visualiza) Pode ter um mosqueteiro em cima, eu acho até bonito. Ou uma cortina clarinha pra me esconder do mar. Mas nada além disso. Geda: Vai ser conjugado? Sabrina: Isola! Tenho pavor! Eu e o Wilson batendo cabeça...? Deus me livre! Geda: Poxa, então não custa nada colocar um sofazinho, um conjuntinho de cozinha, um guarda - vestidos! Onde você vai colocar a sua roupa?... Sabrina: Debaixo da cama pra não pegar poeira... Geda: Você é... Como é que se fala? (num esforço) É...Ai gente... (lembra) Excêntrica! Isso: (num desdém) Você é excêntrica! Pois eu não sou dada a sua moda. A minha casa eu quero bem confortável e enfeitada. Adoro enfeite, tenho loucura. A vida sem um bibelôsinho, um frufru, não tem a mínima graça! Fica uma vida pura. Não é “pura” de “pureza” não. É “pura” de “pura”. Sabe? Pura: sem nada, oco, que nem dispensa vazia. O que seria da vida sem um gatinho siamês de porcelana te sorrindo o tempo todo...?! Sabrina: Enfeita a alma, é mais prudente. Geda: Enfeitar a alma dá muito trabalho. Não é todo dia que você está afim. Enfeitinhos de papel são mais baratos... Não serve pra nada, né? Só pra enfeitar mesmo. Que nem essas velhas. Mas deus me livre ter um enfeite feio desses na minha sala. (as duas riem) (esvaziam) Sabrina: Geda...

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Geda: Oi... Sabrina: Você acha que a gente vai virar espantalho...? Geda: (reflete) Pode ser... Não sei. Pela lei natural das coisas... (vazio. Silencio. Fumam) Geda: Você fica pensando nisso? Sabrina: Às vezes... Geda: Bom... Eu levo uma vida tão ordinária, que seu chegar na idade delas, só por castigo divino. Sabrina: E se chegar...? Geda: Ah... Sei lá. Se chegar chegou. Tomara que eu tenha dinheiro pra pagar uma mocinha fudida pra cuidar de mim. Do contrario...do contrario nem sei... Sabrina: Eu fico olhando pra ela, horas... Fico tentando enxergar alguma coisa, um sinal de alguém, um resquício... Geda: Eu acho até melhor assim. Acho mesmo. A última que eu trabalhava, não tinha a razão muito boa, mas atinava de vez em quando... Um dia a criatura desapareceu na fumaça. Assim!Puff! Sumiu e ninguém sabia onde tinha se metido. Mas como uma velha em uma cadeira de rodas iria desaparecer assim sem mais nem menos? Pois bem, se passou um dia, passaram dois, quatro, seis...uma semana e nada da velha! Até que começou a dar um fedor danado na casa. Uma coisa insuportável, menina. Um cheiro podre que empesteou tudo. E da-lhe que da- lhe a procurar de onde vinha o cheiro, até que encontraram a fonte da fedentina: era a velha! Encolhida. Debaixo da cama. Apodrecida. O cadáver já estava se decompondo todo... Uma coisa horrível. Entende? A velha morreu foi por vergonha. Por isso que eu digo que com juízo é mais difícil levar a vida. Fiquemos todas desmemoriadas e cegas, catando folhas secas no jardim! Sabrina: Você acha que a vida é isso? Geda: O que? Sabrina: Murchar... Geda: (sem muita paciência) Ih, vem cá, você está deprimida? Sabrina: (sorri) Não. Geda: Então o que é? Sabrina: Nada. É que essa velha está morta há quatro dias. Cena 7 ( rua. Wilson e Pierre.)

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Wilson: Pierre! Pierre: (volta-se) Wilson: Oi. Eu sou o Wilson, esbarrei em você. Pierre: (curioso) Eu sei. Wilson: (tenso) Então... É... (engole seco) Eu pensei... Assim... É... Pierre: Você está bem? Wilson: Sim... Sim... Estou. É que está muito quente. Pierre: Então? Wilson: Você acredita em coincidências? Pierre: Não. Wilson: (sorri amarelo) Que bom, pois não foi uma coincidência eu ter esbarrado em você. Pierre: (nitidamente sem entender, procurando esclarecimento) Ah... Não? Wilson: Não. Na verdade eu já sabia quem era você. Pierre: Eu te conheço de algum lugar? Wilson: Não, eu sei quem você é, mas você não sabe quem eu sou. Ainda. Pierre: E quem é você? Posso saber? Wilson: “Wilsinho nota dez.” Pierre: (sem reação alguma) Wilson: (cantarola) “Wilsinho responde tudo! Wilsinho sabe tudo! Wilsinho é nota dez.!” “Wilsinho sabe a capital da Argélia, Wilsinho sabe tudo sobre moléculas, Wilsinho é bom em matemática, Wilsinho decorou a gramática. Wilsinho sabido! Wilsinho sabido! Wilsinho nota dez...” Pierre: (num leve constrangimento) Esse é você? Wilsinho: (faz que sim com a cabeça) Ou pelo menos foi um dia. Mais precisamente há doze anos atrás... O pequeno gênio. Lembra? Pierre: (mais constrangido) Não. Wilson: (nova cantarolada) “ Seja como o Wilsinho, use a caneta carinho! Azul, vermelha, amarela, caneta carinho das mãos aos pés, caneta carinho do Wilsinho nota dez!” Jingle coqueluche da “caneta carinho” a mais usada pelos estudantes na época. Pierre: Olha... Realmente, eu não consigo lembrar. È que eu não via muita tv, enfim... Eu não lembro. (faz que vai sair, Wilson se mete na frente impedindo a passagem)

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Wilson: Não era tv, era rádio. Era um programa de rádio. Você ligava e fazia uma pergunta para o Wilsinho nota dez. E ele respondia. Pierre: Legal. Mas eu também nunca fui muito de ouvir rádio. Wilson: Dois anos de audiência. Sucesso nacional. Pierre: Meu amigo, eu já falei: eu não sei quem você é. Wilson: A capital da Croácia, sabe? Pierre: (impaciente com a resistência de Wilson em seu caminho) Não. Wilson: Zagreb. Pierre: Impressionante. Muito. Mas o que tem haver tudo isso comigo? Wilson: Nada. Pierre: Foi o que eu imaginei. (vira-se para sair) Wilson: Espera! (Pierre estanca) Pierre: (num suspiro longo) Sim? Wilson: Você sabe qual é a capital da Romênia? (Pierre faz que vai sair) Wilson: Espera! (segura Pierre pelo braço) E a capital da Sérvia? Pierre: (irritado) Me solta, cara! Me solta! Wilson: A capital da Itália? Essa é bem fácil... Fala... Pierre: Eu vou partir pra ignorância contigo! Me solta! Wilson: Calma, eu só quero falar com você um pouco... Pierre: O que foi? Fala! O que é que você quer comigo? (agressivo) Fala de uma vez! Como você sabe quem eu sou? Por que está me enchendo o saco? Fala! Onde você ouviu o meu nome? Por que esbarrou em mim ? Fala! Você me achou atraente é isso? Mas eu não estou interessado, ouviu? Assim como não estou interessado no “Wilsinho sabe demais” e nem nesse seu papo de pomba rolou! NÃO ENCHE MEU SACO. Wilson: Não é “Wilsinho sabe demais...” é “Wilsinho nota dez!” (cantarola quase ao berro) “Wilsinho responde tudo! Wilsinho sabe tudo! Wilsinho é nota dez.!” “Wilsinho sabe a capital da Argélia, Wilsinho sabe tudo sobre moléculas, Wilsinho é bom em matemática, Wilsinho decorou a gramática. Wilsinho sabido! Wilsinho sabido! Wilsinho nota dez...” (Pierre parte pra cima de Wilson e os dois rolam no chão num briga explosiva. O combate vai perdendo o tônus, até que os dois se apartam)

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Wilson: (num extremo, recuperando o ar, ainda no chão) Para tudo existe uma explicação coerente e um motivo contundente. Nada é por acaso, e isso não tem haver com algum plano que não seja esse. (Pierre encara com um olhar fuzilante, noutro extremo.) Pierre: (em falsa calma) Eu só vou perguntar mais uma vez: Quem é você? Wilson: Eu sou do grupo industrial para o qual você enviou seu projeto. (silencio) Wilson: Seu projeto... Ele foi analisado com muito interesse em nosso grupo, por grandes profissionais, que avaliaram o valor... E a... Inovação de suas idéias. Pierre: Não acredito em você. (Wilson estende o cartão da indústria em questão, joga para o outro) (Pierre atento, de gatinhas buscando o cartão) Wilson: Pierre Renault, 26 anos, descendência francesa, gosta de cavalos, tem uma cicatriz no cotovelo esquerdo por conta de um acidente de moto, estudou dois anos engenharia química, pai diplomata, mãe falecida, fala três línguas, católico não praticante, tem uma mitsubishi amarela, é alérgico a dipirona e não há registros de precedentes criminais. Eu sei tudo sobre você. Pierre: (impressionado) Wilson: Seu projeto é muito bom, contudo, parece que existe um outro que se assemelha ao seu, quanto à inovação e rendimento prático. (ganhando segurança e eloqüência à cada frase) O grupo está em fase de escolha e pretende nomear o mais rápido possível o projeto ao qual pretende ser representado. Como as análises técnicas, já foram avaliadas e devidamente consideradas, restou assim, a avaliação humana! Pierre: Avaliação humana? Wilson: É. A Avaliação humana. Justo não é? Justíssimo. O camarada não pode ser avaliado apenas tecnicamente, mas também avaliamos o seu caráter e conduta social. Pierre: Mas já passei por entrevistas e... Wilson: Rapaz! Não se trata disso! Essa é uma avaliação subjetiva e irrevogável! Pierre: Não questiono o método, mas a abordagem. Wilson: E o que esperava? Um escritório? Uma mesa de mármore separando-nos? Não. Essa fase é diferente. Muito. Pierre: Mas você poderia ter se apresentado... Wilson: Foi a primeira coisa que fiz. Pierre: Digo, quanto ao seu cargo. Deveria ter me falado, tudo seria diferente.

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Wilson: O anonimato faz parte da avaliação. Pierre: (se recompondo) De qualquer forma, desculpe a minha aspereza. É que está muito quente. Não se raciocina direito debaixo de um calor desses. O homem não poderia nunca ser condenado se por um acaso matasse alguém num dia tão quente. O calor deturpa tudo. Wilson: Concordo. Tudo isso será levado em conta. Pierre: Que bom. Podemos recomeçar tudo isso de forma diferente, o que acha? Wilson: Sim, podemos. Quer tomar um café comigo? Pierre: Quero. Cena 8 (praça. Sabrina e Geda.) Geda: (após longa tragada) Você está fudida. (silencio.) (as duas fixas no horizonte) Geda: Como foi isso? Sabrina: Não sei... Quando eu reparei, ela já estava morta. Isso há quatro dias atrás. Não sei se morreu muito antes. Creio que não... É incrível, mas ainda não começou a feder... Geda: E você não reparou nada de estranho antes? Sabrina: Geda! Olha pra ela. Ela ta com a mesma cara da semana passada, do mês retrasado, com a cara de sempre! Geda: Ai, não! Um morto é um morto, não dá pra confundir. Sabrina: Você tem certeza que a sua está viva? (Geda reflete por um segundo e corre para a sua velha checando o coração. Ao verificar que ainda bate, alivio imediato, agradece a deus.) Geda: Você contou pra alguém? Sabrina: Pra você agora. Geda: E como você está fazendo...? Sabrina: Como sempre fiz. Tenho cuidado dela naturalmente. Geda: Você está cuidando de uma mulher morta? Sabrina!

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Sabrina: É preciso, para não levantar suspeitas. Geda: E Você fica andando pra cima e pra baixo com essa mulher morta há quatro dias e ninguém reparou nada? Sabrina: Nadinha. Geda: E o que você vai fazer? Sabrina: Trocar. Geda : O que? Sabrina: Trocar. Essas velhas são todas parecidas. Ninguém vai reparar. Geda: Minha filha, isso não é roupa em promoção! Sabrina: Eu já pensei em tudo... Geda: Você só pode estar maluca! Completamente! Sabrina: Você vai me ajudar. Geda: Maluca de pedra! Sabrina: Por favor, Geda! Está muito quente, daqui a pouco ela vai começar a feder, daí não vai ter mais como enganar ninguém. Geda: E você acha que ninguém vai reparar os espantalhos trocados? Sabrina: Você mesma seria incapaz de reconhecer o seu espantalho no meio de vários. Eles são todos iguais. Geda: (entra em histeria) Sei não Sabrina, isso vai dar bode!... Sabrina: Não vai! Geda: (mais histérica) Vai sim! Ninguém é retardado! Sabrina: Você distrai uma dessas meninas enquanto eu troco a velha... Geda: Não vai rolar, Sabrina. Eu acho melhor você contar tudo, você não teve culpa de nada, a velha morreu, pronto e acabou. Sabrina: Eu não posso perder esse emprego, não agora. Ta começando a dar tudo certo com o Wilson, eu não posso... Geda: Acorda! Você arruma outro emprego em dois palitos! O que não pode é você entrar nessa onda. Sabrina: Vai dar tudo certo! Eu só preciso de uma velha viva. Confia em mim! Geda: Não é questão de confiança, criatura. Mas tem certas coisas que, francamente, não dá! Pra que se emaranhar toda? Não tenta complicar o que a vida já fez tão simples! Você não tem culpa de nada, não é?

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(tempo) Geda: (assombrada) Ai meu deus... Você não...? Sabrina: Não! Não, juro que não. Quando reparei, ela já estava morta, eu não tenho nada haver com isso... Eu não seria capaz de matar uma mosca e você sabe disso! (tempo) Sabrina: Mas Tem uma coisa... Um complicador... Geda: Um complicador? Sabrina: Sim. Desde que eu descobri que ela está morta eu fiz uma coisa. Não é nada demais. Quer dizer, é. Mas não é. Geda: Desembucha! O que você fez? Sabrina: Algumas Compras. Geda: Algumas Compras? Sabrina: Algumas Compras. Geda: Que tipo de compras? Sabrina: Coisas. Geda: Que tipo de coisas...? Sabrina: ... Vestidos... Sapatos... Jóias... (indica o anel de brilhantes) Geda: (num gemido pasmado) Sabrina: E... Um carro. Geda: (vidrada) Você comprou um carro? (Sabrina faz que sim com a cabeça) Geda: (vidrada) Púrpura? Sabrina: Púrpura... Geda: (num lamento conclusivo) Você ta muito fudida... Sabrina: Não se você me ajudar... Geda: Você está em maus lençóis!!! A família da velha vai descobrir tudo... Sabrina: Eles estão se lixando pra ela. Pra eles tanto faz que tanto fez. A gente coloca uma outra velha no lugar e cai fora. Quando se derem conta de alguma coisa, eu já vou estar léguas daqui. De frente pro mar. Bebendo água de côco! Percebe? Negócio da china! E você pode ser sócia.

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Geda: (curiosa) Sócia? Sabrina: (ávida) Claro, sócia sim, por que não? A velha tem muita grana, muito mais do que você pode imaginar... Geda: Mas é dela, não tem nada haver com a gente... Sabrina: Ela não pode gastar! Faremos isso por ela! Você deve estar precisando de um vestido novo, é ou não é? Um bom par de sapatos, um não: dois, cinco, quantos quiser! Jóias... Já teve jóia na vida? Geda: (transportada) Nunquinha. Sabrina: Pois bem, que tal um colar? Um bracelete... Um par de brincos de safira, jade, rubi! ... Geda: Amo rubi, acho lindo! Sabrina: É um bom enfeite, não é? Vai ficar mais digna que a rainha de Sabah! Geda: Eu sempre quis ser a rainha de Sabah, é meu sonho! Desde pequena! Sabrina: (tomada) Eu sei! Então: vai ser rainha de Sabah como? Limpando bunda de velha pra sempre? Rezando pro dia acabar logo, pra você dormir e esquecer que tem uma vida cheia de possibilidades se esgotando lá fora! Vai ser rainha de Sabah como? Mofando num quartinho de empregada apertado? Dura que nem côco? Namorando um pé rapado que só tem grana pra te pagar um milkshake! Não da pra ser rainha de Sabah assim, não da pra ser nada! Acorda Geda! Sabe quando é que você vai poder tocar num rubi, minha filha? Nunca! Vai ficar lambendo revista pra sempre! Geda: (hesitante) Não sei... É arriscado demais... Sabrina: Coragem, mulher! Enfeita a sua alma! Geda: Não vai ser pecado? Sabrina: Você não quer ser feliz! Geda: Eu quero ser feliz! Sabrina: Você não quer! No fundo no fundo você gosta de ser corvo pra espantalho! Geda: Não é verdade, eu odeio isso! Odeio! Juro por minha mãe mortinha de baixo do trem! Sabrina: E o que você quer? Geda: Eu não sei, to confusa! Sabrina: Você sabe o que você quer! Geda: Eu não sei! Juro que não sei! Sabrina: sabe! Você sempre soube!

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Geda: Não sei se posso! Sabrina: Você pode! Geda: Um chiclete, o Alex não me compra um chiclete! Sabrina: Suje-se gordo! Geda: Um gatinho siamês pra me sorrir o dia inteiro... Sabrina: É pegar ou largar: a escolha é sua. Geda: (alucinada) Eu quero ser rainha de Sabah!!!! Eu quero ser rainha de Sabah!!! Sabrina: (para o espantalho de Geda) Ouviu, velha? Ela vai ser rainha! Geda: Rainha de Sabah! Só serve se for essa, outra não quero! Sabrina: De Sabah, vai ser rainha de Sabah!!!!!!!!! Geda: (com olhos cheios d’água, meio rindo, meio chorando) Rainha de Sabah... Eu vou ser rainha de Sabah... (as duas alucinadas girando as cadeiras de rodas) Cena 9 (Casa da velha. Pierre e Wilson. Em silencio. Sentados um de frente pro outro. Wilson em constante analise de cada expressão de Pierre, com olhar de bicho.) Pierre: Já começou? Wilson: O que? Pierre: O teste. Wilson: Ah.. já. Pierre: Ah... (tempo) Pierre: E acaba quando? Assim, só por curiosidade, sem querer ser chato. Wilson: Acaba logo. Pierre: Ah... E eu saberei quando estiver acabado? Wilson: Sim. Pierre: E como vai ser?

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Wilson: (suspira) Escuta: ta vendo esse telefone? (o telefone bege). Pierre: O que tem? Wilson: Quando acabar ele vai tocar. E você vai saber que acabou. Pierre: Ah... É um código... Como na segunda guerra! Wilson: Podemos falar que sim. Pierre: E quem vai ligar? Wilson: Alguém. Pierre: E você vai atender? Wilson: Não. Ninguém vai atender. O telefone vai ficar tocando, tocando e pronto, acabou. Mais alguma pergunta????? Pierre: Não. (tempo) Pierre: A sua casa é bem legal. Wilson: Não é minha. É de uma velha que a minha noiva acompanha. Pierre: Interessante. Wilson: Cuidar de uma pessoa velha? Você acha mesmo interessante? Pierre: Não foi isso que eu quis dizer... Wilson: E o que você quis dizer? Pierre: Nada em especifico, quer dizer, Enfim. Só foi um comentário. (tempo) Pierre: Mas e aí? Me fala do Wilsinho sabichão... Era legal? Quero dizer, essa coisa do estrelato e tal... Deve ser bacana não é? Wilson: Nota dez. Wilsinho Nota dez. Pierre: Isso! (desconcertado) Wilsinho nota dez, “canetas carinho”! (sorri falso) Era bacana... Não era? Como é mesmo o jingle? Wilson: Não precisa fingir interesse por mim. Isso só faz dilatar sua mediocridade. Pierre: (ofendido) Também, não é assim vai. Só estou tentando restabelecer uma nova diretriz pra nossa relação. Wilson: (em resistência) As diretrizes já estão estabelecidas. Sua batata está assando. Pierre: Você não pode me julgar dessa maneira.

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Wilson: Sabe de uma coisa? Pierre: O que? Wilson: Eu posso sim. Pierre: Tudo bem. Pode. Mas não é certo julgar ninguém antes de conhecê-la melhor. (silencio) Pierre: (começa a matracar) Olha, as coisas não precisam ser dessa maneira. Você mal me conhece. Eu sou um cara legal, tenho boa escolaridade, minha família é de nome, nunca me envolvi com drogas, quer dizer... Eu não vou ser falso com você, não é mesmo? Sinceridade nessas horas é sempre bom. Na adolescência eu confesso que tive um breve contato com a maconha. Mas foi tudo por conta da influencia de colegas da escola... É sempre uma fase complicada, a gente está querendo sempre ser aceito. E tudo mais... Acontece, né? E quem nunca pensou em fumar um baseadinho, ao menos por curiosidade? Mas não foi nada além disso, juro. Eu não bebo, pratico natação. Sou muito saudável... Não tomo leite integral, acordo cedo, nunca tive uma cárie, pode ver (com a boca aberta) Tá vendo? Aqui não se acha nada, rapaz! É ou não é uma boca de boneca? Pode falar! ( Wilson olha com desprezo) Pierre: Assim realmente fica difícil. Eu estou tentando ser bacana! Wilson: Enfia sua bacanisse no rabo. Pierre: (de súbito, irritado) Eu não sou obrigado a ouvir esse tipo de coisa! Escuta aqui eu... Wilson: Escuta aqui o que, héin? (provocando, empurrando o outro) Fala, seu merda! Escuta aqui o que? O que você vai dizer? O preço da sua maleta de couro? O quanto dói pra clarear os dentes? Você não vale nada! Precisaria nascer três vezes pra adquirir o mínimo de bom senso! A sua capacidade de se rastejar que nem uma minhoca chafurdada na merda é digna de pena. E sabe qual é o pior de tudo? É que você não é o único nisso. Você se prolifera que nem doença ruim. Você é uma bosta ! Uma grande bosta fedida! Pierre: (muda o tom. Sorri de lado. Sacana.) Isso faz parte do teste, não é? (malicioso) Ah-há... Quase caí, não foi? Está tentando me desestabilizar. Me ver fora de mim. Eu entendi... Está me analisando... Genial, rapaz, genial! (comemora) Wilson: (jocoso) Você é bom. Pierre: (ri) Rapaz! Mas foi quase, viu? Por um triz... Eu já estava aqui me segurando! Mas daí eu logo vi: “Pierre, calma, isso é um teste.” Eu sou muito bom em testes. É preciso ter sangue frio! Deve ter câmeras aqui, não é? Tem sim! Eu sei! Onde estão? (de fato procura) Wilson: Ali. (aponta para um ponto qualquer) Pierre: ah-há... Genial... Muito bom... Sofisticação pura! (da tchauzinho pra câmera. Patético) Os diretores estão nos olhando agora, aposto e ganho!...

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Wilson: Exatamente. Pierre: (sorri débil) Rapaz! Primeiro mundo! Coisa de primeiro mundo! E o que eles querem que eu faça? Wilson: O que eu mandar. Pierre: (animadíssimo) Ok. Vamos lá. O que você quer que eu faça? Wilson: Rola no chão. Pierre: (sorri) Você pensa que eu não vou fazer, não é? Mas eu te digo: eu vou. (sorri vaidoso. Deita no chão e rola) Está bom assim? Wilson: Fala: “Estou deitando e rolando nas industrias Belshoff!” Pierre: (rolando no chão) “Estou deitando e rolando nas industrias Belshoff!” “Estou deitando e rolando nas industrias Belshoff!” Wilson: Agora grita: “eu sou o verme da tequila!” Pierre: “Eu sou o verme da tequila” Wilson: (se divertindo) “Eu sou escroto!” Pierre: “ Eu sou escroto!” Wilson: “Eu sou um merdalhão!” Pierre: “Eu sou um merdalhão!” Wilson: “Um merdalhão escroto” Pierre: “Eu sou um merdalhão escroto!” Wilson: “Merdalhão, escroto, filho da puta!” Pierre: “Eu sou um merdalhão escroto, filho da puta!!!” Wilson: Muito bom, os diretores gostaram muito. Pierre: É mesmo? Como você sabe? Wilson: (aproxima-se, sussurra) Estou com uma escuta secreta... Pierre: (maravilhado) Ah... Wilson: Tira a roupa. Pierre: O que? Wilson: Tira a roupa! Anda! Pierre: Mas a troco de que?

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Wilson: Você por um acaso está questionando os diretores em sua decisão? Pierre: Não, é que... Wilson: Tira logo essa merda de roupa! Pierre: (de cueca e meia.) Wilson: Tira tudo. Pierre: Tudo...? Wilson: Tudo. Pierre: (tirando a meia. Humilhação. Tira a cueca.) Wilson: Enfia na boca... (Pierre enfia a cueca na boca) Wilson: Eu só vou explicar uma vez... (saca o revolver.) (Sobressalto de Pierre, cospe a cueca) Pierre: Que isso camarada? Wilson: Não é pra tirar a cueca da boca! Pierre: Você está armado! Wilson: Aqui tem só uma bala. Pierre: Pára com isso cara, não se brinca com um negocio desses. Wilson: Estamos perto do fim. Pierre: Isso não cara, você não vai pode me obrigar a mexer nisso. Wilson: De maneira alguma. Absolutamente. Longe de mim, obrigar alguém a fazer uma coisa sem sua livre e espontânea vontade. Eu não seria capaz. Isso não faz parte da minha natureza e muito menos dos procedimentos do nosso grupo industrial. Se você não está disponível para os nossos interesses, fique a vontade, pode colocar a sua roupa e ir embora. Pierre: Ir embora? Não... Esse projeto é importante pra mim, eu trabalhei firme nele. Eu não quero ir embora, eu só acho que esse tipo de coisa pode ser evitado se... Wilson: Infelizmente, não sei se você se encaixa com o perfil do funcionário que estamos procurando... Precisamos de jovens pioneiros, corajosos, jovens determinados. Acho que cometemos um engano... Você chegou bem perto... Pierre: Eu sou determinado! Eu sou muito determinado! Não existe ninguém no mundo mais determinado do que eu! Wilson: Não tenho certeza...

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Pierre: (alterado) Eu sempre me esforcei ao máximo, nunca deixei de potencializar minhas metas! Wilson: (indiferente) Chegou pertinho... Pertinho assim... Mas não vai rolar... Pierre: Vocês não podem desistir de mim assim! Wilson: Coloca suas roupas, vai embora, vai... Pierre: Me da uma chance, por favor, só mais uma! Wilson: Pierre, não se humilha, isso é feio. Pierre: (de joelhos) Por favor! Eu imploro! Esse projeto é tudo pra mim, é a chance que eu preciso pra vencer na vida. Por favor! Me da essa chance, só mais essa chance... Wilson: Isso infelizmente não é mais comigo, são decisões superiores... Pierre: ( para a câmera imaginária, choroso) Por favor senhores! Wilson: Aquela ali... (indica outra) Pierre: Senhores! Eu só peço mais uma chance! Uma oportunidade de provar o meu potencial! Eu trabalhei nesse projeto e sei que ele é o melhor que existe! Vocês sabem disso, todo mundo sabe disso, o meu pai sabe disso... Eu não posso decepcionar o meu pai... Ele vai me achar um fracassado? Eu não sou um fracassado! Eu não sou! Eu não sou um fracassado! Eu não sou um fracassado!!! (a frase ecoa dentro de Wilson. Estremece.) Wilson: (seco) Já Chega. Você terá a sua chance. Pierre: (emocionado) Obrigado! Muito obrigado! Obrigado... Wilson: O que tem a fazer é muito simples. (entrega o revolver para Pierre) Tem uma bala aí. Você tem três alvos: aquele abajur (ao longe), a sua cabeça... E o meu peito. (sentando-se numa cadeira distante). Estabeleça a ordem e inicie os disparos. Entendeu, ou quer que eu repita? Pierre: (magnetizado) Entendi. Wilson: Então é isso. Comece quando quiser. (tempo) Wilson: Ah! Só mais uma coisinha: a cueca. (Pierre coloca a cueca dentro da boca. Manuseia a arma com cuidado e pesar. Aponta para o abajur. Segura firme. Tensão. O suor escorre no corpo. Wilson sentado igualmente tenso. À espera. Silencio profundo. Pierre mira no abajur e aperta o gatilho. Sem disparo. A tensão aumenta. Wilson não move um músculo. Pierre, em desespero seco. Tensão absurda. Os dois numa linha de tiro. Ele hesita na próxima escolha. Aponta de uma vez para a cabeça. Espreme os olhos fechados, o revólver firme. O espírito trêmulo. A respiração afoita. Tempo. Aperta o gatilho. Sem disparo.)

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Pierre: (interjeições de alivio e comoção) (Mira no peito de Wilson.) Wilson: (quase num sussurro) Dentro de mim tem um demônio que às vezes ri e às vezes chora, e ás vezes me morde com tanta vontade que até dá vontade de gritar... (Pierre aperta o gatilho, e dispara um tiro em Wilson que recebe a bala no peito. Percebe o sangue que mancha aos poucos sua roupa. Olha em sua volta e vai de encontro ao olhar de Sabrina, junto a Geda, ambas carregando seus espantalhos e muitas caixas e sacolas. Paralisadas diante a imagem de Pierre nu com uma arma na mão. Todos incapazes de qualquer gesto. Wilson cambaleia em direção a Sabrina.) Sabrina: (inexpressiva, com uma lágrima que escorre em seu rosto.). Wilson: (cai de joelhos na frente da noiva. Esboça um sorriso. Cai morto) (o telefone bege tocando.) (luz caindo em resistência.) (fim)