Limites - é só disciplina?

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Autora: Bel Linares - Capítulo 16 do livro A Saúde mental na atenção à criança e ao adolescente: os desafios da prática pediátrica, organizado por Vera Ferrari Rego Barros.

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Bel LinaresI

Limites – é só disciplina?

Capítulo 16

Os limites são como as margens do rio. O rio só existe porque tem margens, a criança só se forma como indivíduo, se tem limites. (may, 1978)1

Gosto muito dessa frase, pois ela mostra a real importância dos limites para a formação da criança. tenho usado essa afirmação no atendimento a pais e também na formação de educadores do recreio, berçário e educação infantil, onde tra-balho desde 1982. a criança precisa de parâmetros, de limites dentro dos quais possa atuar. as margens do rio não são retas, há curvas, sinuosidades, mas para ser rio, as águas precisam estar entre mar-gens. Os limites e os parâmetros dados às crianças também não precisam ser retos, inflexíveis, mas devem ser colocados para que se tornem um indivíduo e consigam ter consideração a si mesma e ao outro.

i Bel linares – isabel Figueira de mello linares.

a colocação de limites deve levar em conta a formação da criança. pensando na educação dela: que adulto esperamos que a criança seja? Queremos ajudar a ser au-tônoma ou heterônoma (que obedece, que faz o que os outros lhe pedem)? Queremos que a criança seja autora, criativa, que se importe com a realidade e os outros, ou egoísta, destrutiva, dominadora, que só pen-sa em si e na satisfação de seus desejos?

a meu ver, a educação deve visar a formação de pessoas independentes, que pensam e agem por si próprias, segundo valores morais. a educação deve visar a au-tonomia, não o conformismo e a obediência.

Segundo Piaget, autonomia signifi-ca a capacidade de se autogovernar, de pensar por si mesmo e decidir entre o certo e o errado, na esfera moral, e entre o verdadeiro e o falso, na área intelectual, levando-se em consideração todos os fatores relevantes da situação, independentemente de recompensa ou punição2.

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autonomia moral significa ser capaz de tomar decisões por si mesmo, coordenar os diferentes fatores relevantes, para agir da melhor maneira para todos os envolvi-dos, levando em consideração os direitos e o ponto de vista do outro.

É a partir da interação com as inú-meras e cotidianas experiências que tem com as pessoas, com as situações e com os problemas que enfrenta, e também ex-perimentando e agindo, que a criança vai, aos poucos, construindo sua moralidade (sentimentos, crenças, juízos e valores). É por meio da vivência que vai percebendo a si mesma e aos outros, que há coisas que podem ou não ser feitas, que há coisas certas e erradas. necessita das regras e referências para sentir-se protegida, segura e amada, assim como para aprender a es-colher e priorizar suas vontades. no início, o controle é mais externo, promovido pelos adultos, mas com a experiência vai se tor-nando interno, um autocontrole. a criança gradualmente aprende a se autorregular, a considerar não somente o seu ponto de vista, mas também o ponto de vista dos outros.

a criança se depara com limites e regras que a própria convivência impõe. Vai aprendendo a ser educado, saber como comportar-se nas diferentes situa-ções, usar expressões de cortesia, saber aguardar sua vez, não bater ou agredir, tratar os outros como gostaria de ser tra-tado... essas normas, a partir da própria vivência e do modelo dos adultos, pas-sam a fazer sentido para ela, que as vê como necessárias para o convívio social. É vendo os adultos, por exemplo, agirem de forma cortês, falando obrigado, por favor, bom dia, agindo com justiça, não mentindo, que a criança vai validando normas adequadas de conduta.

a moralidade é construída, não vem pronta. uma criança aprende o que vive e se torna o que experimenta. (Vinha, 1999, p.6-12)3

autOridade, autOritariSmO, permiSSiVidade

Os limites dão segurança, permitem crescimento, não cerceiam a criança, pelo contrário, uma criança educada com limites é mais criativa, mais segura, mais flexível.

imagine-se no topo de um arranha--céu de 100 andares em que não há grades ao redor. Sua tendência certamente seria ficar num espaço seguro, central. Chegar muito perto da borda seria perigoso. Se, ao contrário, esse espaço tiver grades, você se sentiria mais seguro e poderia explorá-lo completamente. Os limites nos dão segurança para ir mais longe, explorar, aproveitar mais plenamente.

aldo naouri4 afirma que, para a crian-ça, viver é atravessar uma ponte suspensa sobre um abismo:

Se esta ponte não tem parapeitos, a criança fica tão assustada que não cami-nha, volta, retrocede. Se há parapeitos, a criança se sente segura e avança sem hesitação no caminho da vida. não se deve, portanto eliminar os parapeitos de um ou outro lado da ponte, mas, ao contrário, erigi-los e mantê-los firmes. (naouri, 2013, p.145-95)4

Os parapeitos, os limites, dão pa-râmetros e segurança à criança e devem ser colocados com firmeza, tranquilidade e autoridade.

para ajudar a criança a crescer, é necessário que os pais assumam sua autoridade, apresentando parâmetros, limites e regras claras; que a ajudem no controle de sua impulsividade, condição para a convivência social e a constru-ção de valores morais; e permitam um espaço de liberdade em que o conflito e o confronto possam emergir. É neste espaço de liberdade que a criança vai testar regras e normas, validando-as ou descartando-as.

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Os pais que têm autoridade não se colocam como iguais com os filhos, pois dessa forma perderiam o distancia-mento necessário à isenção para impor limites, fazer questionamentos, propor mudanças, proporcionando crescimento. não há fórmulas mágicas ou receitas a serem seguidas na educação dos filhos. É na convivência que filhos e pais vão se conhecendo e descobrindo formas de atuação um com o outro. no entanto, é importante que os pais se posicionem em suas interações com os filhos, que sejam coerentes em suas colocações, buscando construir a autonomia das crianças.

diante da filha de três anos que não quer parar de assistir à tV e ir dormir, a mãe que tem autoridade e que considera a criança e sua fase de desenvolvimento poderia dizer: “Filha, agora está na hora de você dormir, descansar, vamos para o quarto”, desligando a tV e pegando-a no colo. a firmeza e a segurança da mãe nesse momento são importantes para que a criança sinta o limite claro. a filha pode até falar: “Só mais um pouquinho”, chorar. a mãe pode então dizer: “eu sei que você ficou chateada por não poder ver mais tV, mas agora é hora de dormir”. É importante a criança perceber que o “não” não vai virar “sim”. a mãe mostrou que entendeu e validou o sentimento da filha, mas não cedeu, foi firme e ao mesmo tempo aco-lhedora. desta forma, aos poucos e com a constância e consistência dos limites, a criança vai entendendo e aceitando-os melhor e construindo regras de convivência.

Já na educação autoritária, o peso maior está com os pais que assumem a autoridade, abusando do poder, negando o espaço de liberdade e o conflito. no autoritarismo, os pais impõem decisões, soluções e regras de modo arbitrário, sem levar em consideração desejos, vontades e necessidades dos filhos e sem explicar o porquê das decisões tomadas. pais autoritá-rios têm necessidade de exercer o controle.

na situação descrita anteriormente, a mãe autoritária simplesmente diria que está na hora de dormir, desligaria a tV e levaria a criança para dormir, sem dar espaço para a argumentação e expressão da criança. a criança não é levada em consideração, o que vale é a ordem do adulto. a educação autoritária forma crianças heterônomas e não autônomas, a criança obedece, mas não constrói valores morais.

na educação permissiva, há ausên-cia de autoridade. as regras estão pouco definidas, há insuficiência de limites e são os desejos das crianças que movem as ações dos pais. Os filhos detêm o poder, dominando os pais. muitos acham que para serem bons pais devem satisfazer todas as vontades dos filhos, o que é um engano. A criança cresce com dificuldade de ouvir o “não”, “não agora”, “não pode”, e acha-se poderosa e torna-se prepotente. alguns pais cedem à tirania dos filhos, não conseguem frustrá-los, com medo de choros e escânda-los. agindo dessa maneira, perdem as rédeas da situação e a criança os domina, mas ao mesmo tempo se sente insegura com tanto poder, pois é muita responsabilidade para ela. na situação mencionada anteriormente, pais permissivos simplesmente deixariam a criança continuar a ver tV, achando que estão lhe fazendo bem, mas na verdade não, o que ela precisa é ir dormir. Se o limite é dado, deve ser mantido, senão os pais ficam desacreditados e o “não” perde todo o significado para a criança.

Sem limites, a criança sente-se insegura, desprotegida, a sensação pode ser de desamparo, de abandono e falta de proteção. “papai me deixa fazer tudo que quero, não cuida de mim, não se importa comigo.” a criança pede limites, precisa deles para que tenha capacidade de con-trolar sua impulsividade, de esperar e de tolerar frustrações. essa capacidade se desenvolve aos poucos, com a maturidade e a vivência de situações da realidade que não satisfazem todos os seus desejos.

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muitas vezes, a criança se revolta com os limites colocados, o que faz parte do seu crescimento, da aprendizagem do controle da impulsividade, autorregulação, e da conquista de autonomia. mas nem por isso os pais devem ceder. Voltando à imagem de aldo naouri, da ponte com parapeitos:

...a criança não apenas chacoalha o parapeito, mas também lhe dá chutes e pontapés. assim como a confiança que a criança espera investir nele, o parapeito não pode se dobrar nem ce-der. Comportar-se de modo mais firme possível, portanto, é prestar à criança o maior dos favores, no médio e no longo prazo. (naouri, 2013, p.145-95)4

toda criança testa os limites esta-belecidos, desrespeitando-os, e é natural e esperado que teste. essa “indisciplina” é saudável, pois ao desafiar uma norma, uma regra dada, a criança está testando sua validade. Os limites e as normas devem ser bem claros, e se a criança ultrapassá-los, o adulto tem que ser firme e coerente, não fazendo “vista grossa”, “fingindo que não está vendo”, “deixando passar”, deve cobrar seu cumprimento, revalidando o sentido da regra. Se não acontecer nada quando a criança des-respeitar a regra ou o combinado, esta perde o sentido, e o adulto fica desacre-ditado. ao contrário, se o adulto mostrar que devem ser cumpridos, a criança os validará.

aos poucos, a criança aprende a lidar com pequenas frustrações, contra-riedades e limites estabelecidos. não vai deixar de testar, mas vai aprendendo o que não adianta testar e descobrindo outras brechas ou situações para exercer sua força, e é dessa maneira que constrói uma autoestima positiva e realista e se desenvolve sócio e afetivamente sau-dável.

puniçãO e SançãO. reCOmpenSa. reSpOnSaBilidade

a disciplina é o ponto em que convergem a autoridade e a liberdade. a criança disciplinada não é aquela que foi treinada para obedecer, mas sim aquela que sabe o porquê de agir ou não de determina-da maneira de acordo com a situação, pautando suas ações em valores morais, independentemente da presença ou não do adulto. (Castro, 1996)5

associar a necessidade de cumprir uma norma à simples obediência ou a al-gum ganho em troca desse cumprimento (seja uma recompensa qualquer, seja para evitar receber alguma punição), não leva a criança a crescer, a se tornar autônoma.

É importante que os limites dados sejam formativos, isto é, levem a criança a se rever, a entender o porquê da proibi-ção, a se responsabilizar por suas ações. as regras, quando construídas junto com a criança, têm mais sentido para ela, que as cumpre entendendo o porquê de cumpri-las. a punição não ajuda a criança a deixar de fazer algo por ela mesma, mas sim por obediência a alguém ou a uma regra arbitrária (pelo menos de seu ponto de vista). punição e recompensa geram a heteronomia moral e intelectual e impedem o desenvolvimento da autonomia.

“Se você fizer a lição direitinho, antes do jantar, vai ganhar um doce de sobre-mesa”; “arrume a bagunça que você fez, senão vou tirar de você o jogo que te dei”. prêmios e punições levam ao conformismo. pessoas autônomas são governadas por aquilo que é moralmente certo e pelo que é intelectualmente verdadeiro, em vez de agir por causa de recompensas e punições. envolver a criança na solução de embates ou impasses a leva a se responsabilizar por suas ações. “Filho, acho melhor você fazer a lição antes do jantar, porque você

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está mais descansado. O que você acha?”; “Filha, você fez a maior bagunça no seu quarto. Como você vai fazer para arrumar? Quer minha ajuda?”. essas situações se referem a crianças que têm por volta de cinco anos e já vivenciaram situações anteriores em que não houve punição e recompensa para cumprimento de regras.

proibir a criança de assistir à tV porque quebrou o brinquedo do irmão de propósito, é uma punição, não tem rela-ção direta com a ação da criança e não é construtiva. Já dizer para a criança que não pode quebrar o brinquedo e pedir para que escolha um seu, para dar ao irmão, é uma sanção, e isso leva a criança a se responsabilizar por suas ações. a sanção ajuda a criança a construir regras internas de condutas.

É importante que a criança tenha possibilidade de se rever, de reparar o que fez, de se responsabilizar por sua ação. no caso que acabamos de descrever, pode--se pedir que a criança ajude a consertar o brinquedo que quebrou. Se uma criança espalha todos os brinquedos na sala de espera do consultório ou em casa, deve--se pedir para que os arrume ao final. Se houver resistência, pode-se dizer: “Você consegue fazer sozinha ou quer que eu a ajude?”. mas a criança tem que arrumar, responsabilizar-se pelo que fez.

Se uma criança, num grupo, fica atrapalhando, desmanchando a brincadei-ra, e não consegue atender aos pedidos para parar, podemos dizer: “Você não está conseguindo ficar aqui sem atrapalhar os outros, fique aqui fora da roda e quando achar que pode ficar com todos numa boa, volte”. dessa forma, estamos implicando a criança, responsabilizando-a, acreditando em suas potencialidades.

O princípio essencial para o de-senvolvimento da autonomia é perguntar à criança “O que você acha mais certo fazer?”, em vez de tentar manipulá-la com prêmios e punições.

COnFlitOS em qualquer relação educativa há

conflitos, brigas, crises periódicas e atritos. Os conflitos são positivos e necessários, mesmo que desgastantes, pois são opor-tunidades para auxiliar as crianças a reco-nhecerem os pontos de vista dos outros e aprenderem, aos poucos, a buscar soluções aceitáveis para todas as partes envolvidas. Os conflitos são boas oportunidades para demonstrar a necessidade da existência de normas para as relações sociais. por exemplo, em situações de agressão físi-ca ou verbal entre as crianças, podemos buscar a resolução das brigas por meio do diálogo; se a criança mente, pode-se refletir sobre a necessidade da verdade; pequenos furtos servem para a criança ir aprendendo a não pegar o que não lhe pertence sem autorização...

a maioria dos adultos resolve as brigas entre as crianças, separando-as, pedindo para que parem de brigar ou decidindo como resolver o conflito. essas intervenções fazem com que o problema desapareça momentaneamente, mas não ajudam as crianças a se tornarem mais autônomas, pois não são envolvidas na busca de soluções para a disputa. por exemplo: se o filho mais novo diz que o irmão mais velho sempre quer ser o pri-meiro a brincar com o tablet, o pai pode impor uma solução: rodízio entre os dias da semana, sorteio para ver quem será o primeiro ou pedir que os filhos pensem numa solução, numa regra para o uso do tablet. nesta última, os filhos se respon-sabilizam pela regra acordada entre eles, que pode até incluir rodízio ou sorteio. em geral, as crianças respeitam muito mais as regras que elas mesmas fizeram.

a pronta intervenção ou a apresen-tação, pelo adulto, de solução para um conflito, condicionam a criança a depender dos outros para conseguir o que quer. muitas vezes, a intervenção do adulto

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menospreza a capacidade da criança, passa-lhe a informação de que não é capaz, que não tem recursos para resol-ver sozinha, que precisa do adulto para ajudá-la a resolver impasses. É importante dar responsabilidade à criança, deixando, pouco a pouco, de fazer por ela coisas que ela já sabe fazer sozinha, ou de interferir em situações que ela já sabe resolver, mas mostrando-lhe que pode contar com o adulto, caso necessite.

Se uma criança pequena, brincan-do numa praça, chega ao pai chorando e dizendo que outra criança tirou seu brinquedo, o pai pode encorajá-la a ir, com seu apoio: “Vamos lá conversar com ela?”, resolver a situação pedindo o objeto de volta, ou simplesmente ir até a outra criança e pegar de volta o brinquedo de seu filho. acredito que a primeira solução seja a mais adequada, formativa, pois o pai acredita que o filho tem possibilidades, está a seu lado, caso necessite, e incentiva a escolha da maneira adequada de agir.

a FaSe da OpOSiçãO na tentativa de exercer sua onipo-

tência, a criança pequena mais ou menos hábil no uso da linguagem, diz “não” a todas as ordens e desafia todos os “nãos” que ouve. a criança de repente passa a dizer “não” para tudo: para o banho; para a oferta de um alimento, mesmo que seja de seu agrado; para trocar a roupa; para pôr sapato; para brincar... a princípio, a tudo responde “não”. deve-se deixar a criança dizer esse “não” e, em vez de negar, o melhor é dizer: “eu já entendi que você é capaz de dizer não, mas agora é hora de tomar banho”. a criança se sente ouvida, e ao mesmo tempo percebe a condução do adulto. da mesma forma, quando a criança não atende ao “não” que ouve, é preciso retomá-lo. Se é uma proibição, a criança deve atender.

É importante que a atitude do adulto seja sempre coerente. Se a criança chora por uma faca que não pode ter, não pode mesmo. E dar o motivo: “Não dou a faca porque ela pode cortar o seu dedo, não precisa chorar desse jeito, por que você não brinca com uma coisa que não tem perigo?” E manter sempre essa mesma postura. A criança vai entender? Não. Mas aos poucos percebe que a negativa tem um motivo. “Vai machucar”, esta ainda não é uma razão muito clara para a criança. Mas de alguma forma ela vai entender que há uma razão. Que você não está negando por negar. Agora, se amanhã, para não ouvir mais um choro, você dá a faca, confunde tudo. Uma razão existe ou não existe. Vale ou não vale. Se pode dar, dê. Não pode, não dê. Nem hoje, nem amanhã, nem por bem, nem por birra. (nereide tolentino)6

mOrdidaS, BirraS, aGreSSiVidade, COmBatiVidade

É importante para qualquer pessoa ter agressividade para lutar por seus ob-jetivos, pelo que quer, para se posicionar. neste sentido, a agressividade é positiva, impulsiona a criança a lutar para conseguir o que quer.

A combatividade, uso de uma força interna para conseguir algo por conta própria, é a canalização positiva da agressividade. Uma das primeiras for-mas de relação de uma criança com as outras é a disputa por um objeto qualquer. É a primeira manifestação de combatividade, e na criança pequena (um ano a um ano e meio) lutar pelo que quer, é morder. A liberdade de disputar as coisas (mesmo com risco de mordidas) é fundamental para a criança aprender a lutar por seus ob-jetivos. (nereide tolentino)6

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Devemos aceitar as mordidas? As crianças que mordem são agressivas? E as birras? Como agir?

a mordida da criança pequena (até dois anos) não é agressão ao outro, é demonstração de sua combatividade. a criança pequena ainda está na fase oral e oral é a manifestação de sua for-ça, portanto, morde. não entende que dói, que machuca o outro. Quando uma criança maior morde, é para agredir, é intencional. O importante é mostrar à criança pequena que a outra chora porque doeu, que pode querer o brinquedo, mas não machucar. Já com a criança maior, que morde na disputa por brinquedos, e já tem condições de falar o que quer, de pedir o brinquedo e trocar, a atitude deve ser mais firme. “Você sabe falar, pedir o brinquedo, não pode morder, machuca seu irmão (ou colega)”; “Você já sabe que não deve morder. Fique um pouco aqui a meu lado para se acalmar.”

duas crianças pequenas, por exem-plo, estão brigando por um brinquedo. uma puxa, a outra segura, uma morde e a outra chora. pode-se dizer: “Você não precisa morder, peça o brinquedo emprestado”. isso é o suficiente para que ela consiga pedir emprestado? Claro que não, se conseguisse pedir, provavelmente teria pedido, não teria mordido. mas, agindo dessa maneira, está se legitimando a importância da criança lutar pelo brinquedo e valorizando o uso da palavra como a forma adequada de relação quando duas crianças querem a mesma coisa.

Se uma criança pequena (até dois anos) morde e bate nos pais, é importante que reajam sem colocar valores morais. “não quero que me morda, dói, machuca.” ela entende que há uma razão. dizer: “É feio morder a mamãe, peça desculpas”, não tem sentido algum para ela. O que é “feio”? O que é “desculpas”? e se a

criança não falar desculpas, como se vai agir? ninguém consegue obrigar alguém a falar se este alguém não quiser.

a birra é a forma que a criança pe-quena encontra de manifestar sua força interna, sua capacidade de lutar por um objetivo, perante o adulto: grita, deita no chão, bate o pé, chora. tem um desejo, quer algo que não consegue e, diante da frustração, reage com birra. está demons-trando seu descontentamento, exercendo sua combatividade. no entanto, se seu desejo não pode ser atendido, os pais não devem voltar atrás, e o melhor é explicar, demonstrar o entendimento da situação: “eu sei que você está bravo por que queria comer bolo, mas antes do jantar, não pode”. Se uma criança maior apresentar birra, a atuação deve ser mais firme: “deste jeito você não vai conseguir nada, você já sabe conversar e explicar o que quer”. em geral, a criança só continua a fazer a birra quando tem plateia. nesse caso, se o adulto se afasta dizendo, por exemplo: “Vou para a sala, você pode ficar aí...”, é muito comum que a criança pare com seu show.

O importante é que os pais enten-dam a linguagem da criança em cada fase do seu desenvolvimento, percebam como ela está se valendo de sua força no momento, permitam o exercício da combatividade e a ajudem a se expres-sar através de maneiras mais maduras e socialmente aceitas. assim, estão possibi-litando a formação da postura interna de a criança reagir diante de obstáculos: ou se sente forte e encorajada a enfrentá--los; ou se sente reprimida e desiste, volta atrás.

A primeira infância é fundamental para a formação da personalidade. A força da criança existe, se não for bem compreendi-da, respeitada, canalizada, vai estourar de um jeito torto na adolescência ou mesmo na vida adulta. (nereide tolentino)6

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emBateS COtidianOS Quanto menor a criança, mais regras

são necessárias: hora de comer, hora de tomar banho, não poder comer doce antes das refeições, hora de dormir, escovar dentes após as refeições... essas regras, que devem considerar o desenvolvimento e as necessidades da criança, mostram a ela até onde pode ir, o que se espera dela, o que é certo ou errado. há uma fase em que as regras estão mais nas mãos dos pais, mas, conforme as crianças vão crescendo, é importante que, além de regras não negociáveis, elas participem da elaboração de regras e combinados com os pais. por exemplo: a hora de fa-zer a lição de casa, até que horas poderá brincar com os amigos, quando assistir à tV, quanto tempo despender aos jogos eletrônicos... Como dito antes, quando a criança participa da elaboração das regras e de combinados, se sente responsável por estas, e as respeita mais e cumpre o combinado. “nós combinamos que você ia jogar só depois do jantar, então...”

muitas vezes estabelecemos limites e regras que, com o passar do tempo perdem sentido, por isso é preciso levar em conta a fase de desenvolvimento da criança, suas possibilidades e recursos. um exemplo é quanto ao uso da faca. para a criança pequena, não permitir o uso é importante por sua segurança, mas para a criança que já tem condições motoras para cortar seu alimento, a regra deve ser revista. definir o horário de sono para as crianças pequenas é importante, pois precisam de mais horas de sono para seu crescimento saudável, no entanto, para a criança a partir de sete anos, combinar com ela a hora de ir dormir, considera suas possibilidades e evita embates, pois a criança se percebe como corresponsável.

explicar o porquê do limite é impor-tante para que a criança entenda a razão deste e o cumpra por isso. no entanto, a

explicação deve ser dada nas primeiras vezes em que o limite é dado. depois, o mais eficaz é dizer a ela, de modo simples e direto, que não pode fazer, que ela já sabe. por exemplo, o pai explica à criança que não deve tirar a terra do vaso, pois suja o chão e a planta precisa da terra para se desenvolver. Se a criança pequena (1 a 2 anos) testar, continuando a sua ação, é importante repetir a regra e até retirá-la do ambiente, se persistir: “não pode tirar a terra do vaso, vamos lá brincar com o carrinho” – deixando claro o limite e des-viando o foco. Já com a criança maior, se com a primeira explicação ela continuar a testar, dizer: “Você já sabe que não pode fazer isso”, não aceitando que faça o que sabe que não é para fazer, dessa maneira se transmite que se acredita em suas potencialidades e seus recursos. não cabe ficar explicando, falando novamente, a criança nem vai ouvir o que você lhe fala e você vai ficar ali sob o controle dela, que a esta altura já está pensando em outra coisa.

O limite, o corte, deve ser dado antes que o adulto passe do seu próprio limite e “perca a cabeça”, estabelecendo o limite com raiva, punindo. por exemplo: a mãe diz à criança para não mexer no aparelho de som, ela continua a mexer, a mãe repete, e ela continua a mexer, repete novamente, e ela continua. a mãe então grita, retira a criança do ambiente, fica muito brava. a criança se assusta e a mãe se arrepende de ter sido tão dura. teria sido melhor se, antes de perder a paciência, gritar, brigar, pois já se cansou, já passou de seu limi-te, a mãe tivesse apresentado o limite de maneira firme e direta: “Já falei que não é para mexer”, tirando a criança, se for pequena, da frente do aparelho de som; ou se maiorzinha, convidando-a a brincar com outro objeto.

Quando se fala demais, a mensa-gem principal se perde no meio de outras. Já quando se é objetivo, evidencia-se a

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mensagem, a regra, o combinado. limi-tes dados de forma direta e simples são mais eficazes: “não quero que me bata”; “não se puxa o cabelo das pessoas”; “não quebre o brinquedo de propósito”; “não se joga comida no chão”; “não bata no nenê”. Quando a fala do adulto é objetiva e breve, é levada mais a sério.

em alguns momentos, a criança “empaca”, repete, quer ver se consegue o que quer, chora, faz manha. nessas situações, o que vai ajudá-la a aceitar é mostrar que seu sentimento e seu desejo estão sendo entendidos, e continuar com o limite. “Você está chorando, está brava porque não pode mexer aí, mas realmen-te não dá, pois você pode se machucar. Vamos brincar com outra coisa”; “Sei que você quer muito subir na estante, mas não quero que você se machuque”, tirando-a da situação; “Você está brava porque quer de-senhar na parede, mas aí não pode, venha desenhar aqui”; “Sei que você gosta de ficar descalça, mas para andar na calçada, não dá”; se a criança for pequena, chorar, pode-se até dizer: “tudo bem, você pode ficar descalça, mas no meu colo”. assim, a criança se sente entendida e respeitada em seu impulso e pode então acolher a restrição com mais tranquilidade.

uma criança de 4 a 5 anos, em momento de raiva e contrariedade, co-meça a berrar e a bater em tudo e em todos. O adulto pode levá-la a ficar em seu quarto, afirmando que compreende que está zangada, mas que as agressões não serão toleradas e que ela poderá sair de lá quando achar que tem condições de conversar, sem insultar e bater nas pes-soas. essa atitude ajuda a criança a se rever e a se sentir responsável por suas ações (novamente, é importante que ela mesma decida quando tem condições de retornar, e não o adulto).

Quando possível, procure tomar ati-tudes de reciprocidade, que tenham uma relação lógica com aquilo que a criança

fez, por exemplo: “Você brincou na hora da lição, que tal agora, que você tem para brincar, fazer a lição?”. tirar da criança temporariamente algo que ela está estra-gando: “Você não está conseguindo brincar com isso, quando achar que consegue brincar sem estragar, me diga, então te devolvo”. permitir que a criança conserte algo que quebrou ou limpar o que sujou. todas essas atitudes ajudam a criança a ir entendendo que a toda ação dela há uma reação, uma consequência, e que ela é responsável por seus atos. O mais construtivo é procurar colocar o problema para a própria criança e solicitar que ela mesma apresente propostas de resolução.

nas situações de conflito, os pais devem mostrar seus limites, suas emoções e sentimentos, isso é formativo para as crianças, que entendem não ser o centro do mundo, que seus desejos nem sempre podem ser atendidos e que os outros de-vem ser considerados. “não quero brincar agora, estou cansada. Brinque um pouco sozinho, estou a seu lado”; “Veja se sua mãe pode te ajudar, agora estou cozinhan-do”; “tive um dia muito chato, preciso de um tempinho para mim”...

muito se diz sobre os limites serem comuns entre os pais, isso é importante quanto ao conteúdo de limites, combinados e regras básicas, mas a forma não precisa ser única. Cada um dos pais pode colocá--los de forma pessoal, individualizada, o que também ajuda a criança a perceber que as pessoas têm jeitos diferentes de agir, particularidades. “não gosto desta brincadeira, peça a seu pai”; “não sei jogar este jogo, mas a mamãe adora”. Outra vantagem é que, a partir de vivências com diferentes formas de agir, a criança também aprende a ser flexível.

O desenvolvimento não é linear, as conquistas não acontecem numa linha reta, tudo é dinâmico e, como numa espiral, volta-se algumas vezes à mesma ques-tão. assim, alguns testes, alguns conflitos

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158 A Saúde Mental na Atenção à Criança e ao Adolescente: os desafios da prática pediátrica

podem voltar a ocorrer após “períodos de calmaria”, o que é saudável e constituinte do crescimento.

Os relatos de exemplos aqui con-tidos são resultantes desses anos de atendimento no recreio e têm o intuito de contribuir para uma relação construtiva entre pediatra, pais e criança, visando a boa formação do indivíduo.

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