Liberalismo e feminismo

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135 RESUMO LIBERALISMO E FEMINISMO: IGUALDADE DE GÊNERO EM CAROLE PATEMAN E MARTHA NUSSBAUM Rev. Sociol. Polít., Curitiba, v. 18, n. 36, p. 135-146, jun. 2010 Recebido em 27 de junho de 2009. Aprovado em 22 de dezembro de 2009. Ingrid Cyfer O artigo discute a relação entre liberalismo e feminismo a partir de duas autoras feministas, Carole Pateman e Martha Nussbaum. Trata-se de uma questão importante para o feminismo, para o qual são fundamentais problemas associados às dicotomias público-privado e cultura-natureza – herdadas do liberalismo. Nesse sentido, discutimos as posições de Carole Pateman e Martha Nussbaum referentes a esses problemas. A escolha das autoras deveu-se ao fato de que ambas compartilham muitas premissas e conclusões, e por suas divergências situarem-se principalmente ao redor de problemas em que o feminismo é acrescentado ao liberalismo político. Assim sendo, fazer uma discussão entre as suas posições minimiza o risco de que a análise do debate não vá muito além das críticas que diversas teorias dirigem ao liberalismo, podendo funcionar, enfim, como uma boa porta de entrada para alguns dos pontos mais controversos da teoria feminista contemporânea. Nussbaum e Pateman parecem coincidir a respeito da concepção de igualdade de gênero. A crítica que ambas dirigem à relação entre natureza e cultura e ao formalismo da igualdade abstrata torna evidente que nenhuma delas pretende atribuir o poder ou a opressão da mulher a desígnios da natureza. Em ambas está muito claro que o que consideram relevante na organização de uma sociedade justa quanto ao gênero é a forma como uma sociedade valora as diferenças biológicas, bem como as implicações dessa valoração na distribuição de bens sociais. Nussbaum, porém, acredita que essa equação seja possível dentro da teoria liberal, desde que esta seja submetida a transformações que eliminem detur- pações teóricas decorrentes do conservadorismo dos primeiros filósofos liberais. PALAVRAS-CHAVE: feminismo; teoria feminista; liberalismo político; igualdade de gênero; natureza e cultura; público e privado. I. INTRODUÇÃO “Feminismo” é ao mesmo tempo um termo maldito e impreciso. Maldito porque é na maior parte dos casos associado à defesa de uma su- posta superioridade feminina, que exprimiria o mesmo sexismo do discurso que inferioriza as mulheres. Outra crítica comum é a de que o fe- minismo seria cego às diferenças biológicas entre homens e mulheres devido a um inconformismo injustificado e imponderado em relação às dife- renças naturais, moralmente neutras. Diz-se ain- da que o discurso feminista vitimaria a mulher na medida em que responsabilizaria exclusivamente o homem pela condição subalterna feminina. E, finalmente, é bastante freqüente também associá- lo a discursos moralistas que, em nome da igual- dade, reprimiriam a sexualidade de homens e mu- lheres ao identificar a sedução e a relação sexual como locus de discriminação, nos quais a mulher estaria reduzida à condição de objeto. A maior parte dessas críticas poderia atingir facilmente muitos alvos feministas. No entanto, dificilmente abalariam uma significativa gama de movimentos e teorias que se denominam feminis- tas e, se fizessem-no, isso seria devido à impreci- são do termo “feminista”, que mascara as inúme- ras nuances e divergências comportadas pelo con- ceito. A conseqüência dessa imprecisão é que as discussões acerca da igualdade entre homens e mulheres são freqüentemente deslegitimadas por críticas que tomam o feminismo por um termo unívoco. Diante disso, deve-se reconhecer que a adequação conceitual e mesmo estratégica da in- sistência no termo “feminismo” deve ser questio- nada. Com Simone de Beauvoir e Gayle Rubin, o feminismo incorporou a idéia de que a identidade feminina não é uma simples decorrência da biolo- gia, mas sim uma condição apreendida ao longo da vida na relação com o outro. Assim, as refle-

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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 18, Nº 36: 135-146 JUN. 2010

RESUMO

LIBERALISMO E FEMINISMO:IGUALDADE DE GÊNERO EM CAROLE PATEMAN E

MARTHA NUSSBAUM

Rev. Sociol. Polít., Curitiba, v. 18, n. 36, p. 135-146, jun. 2010Recebido em 27 de junho de 2009.Aprovado em 22 de dezembro de 2009.

Ingrid Cyfer

O artigo discute a relação entre liberalismo e feminismo a partir de duas autoras feministas, Carole Patemane Martha Nussbaum. Trata-se de uma questão importante para o feminismo, para o qual são fundamentaisproblemas associados às dicotomias público-privado e cultura-natureza – herdadas do liberalismo. Nessesentido, discutimos as posições de Carole Pateman e Martha Nussbaum referentes a esses problemas. Aescolha das autoras deveu-se ao fato de que ambas compartilham muitas premissas e conclusões, e por suasdivergências situarem-se principalmente ao redor de problemas em que o feminismo é acrescentado aoliberalismo político. Assim sendo, fazer uma discussão entre as suas posições minimiza o risco de que aanálise do debate não vá muito além das críticas que diversas teorias dirigem ao liberalismo, podendofuncionar, enfim, como uma boa porta de entrada para alguns dos pontos mais controversos da teoriafeminista contemporânea. Nussbaum e Pateman parecem coincidir a respeito da concepção de igualdadede gênero. A crítica que ambas dirigem à relação entre natureza e cultura e ao formalismo da igualdadeabstrata torna evidente que nenhuma delas pretende atribuir o poder ou a opressão da mulher a desígniosda natureza. Em ambas está muito claro que o que consideram relevante na organização de uma sociedadejusta quanto ao gênero é a forma como uma sociedade valora as diferenças biológicas, bem como asimplicações dessa valoração na distribuição de bens sociais. Nussbaum, porém, acredita que essa equaçãoseja possível dentro da teoria liberal, desde que esta seja submetida a transformações que eliminem detur-pações teóricas decorrentes do conservadorismo dos primeiros filósofos liberais.

PALAVRAS-CHAVE: feminismo; teoria feminista; liberalismo político; igualdade de gênero; natureza ecultura; público e privado.

I. INTRODUÇÃO

“Feminismo” é ao mesmo tempo um termomaldito e impreciso. Maldito porque é na maiorparte dos casos associado à defesa de uma su-posta superioridade feminina, que exprimiria omesmo sexismo do discurso que inferioriza asmulheres. Outra crítica comum é a de que o fe-minismo seria cego às diferenças biológicas entrehomens e mulheres devido a um inconformismoinjustificado e imponderado em relação às dife-renças naturais, moralmente neutras. Diz-se ain-da que o discurso feminista vitimaria a mulher namedida em que responsabilizaria exclusivamenteo homem pela condição subalterna feminina. E,finalmente, é bastante freqüente também associá-lo a discursos moralistas que, em nome da igual-dade, reprimiriam a sexualidade de homens e mu-lheres ao identificar a sedução e a relação sexualcomo locus de discriminação, nos quais a mulherestaria reduzida à condição de objeto.

A maior parte dessas críticas poderia atingirfacilmente muitos alvos feministas. No entanto,dificilmente abalariam uma significativa gama demovimentos e teorias que se denominam feminis-tas e, se fizessem-no, isso seria devido à impreci-são do termo “feminista”, que mascara as inúme-ras nuances e divergências comportadas pelo con-ceito. A conseqüência dessa imprecisão é que asdiscussões acerca da igualdade entre homens emulheres são freqüentemente deslegitimadas porcríticas que tomam o feminismo por um termounívoco. Diante disso, deve-se reconhecer que aadequação conceitual e mesmo estratégica da in-sistência no termo “feminismo” deve ser questio-nada.

Com Simone de Beauvoir e Gayle Rubin, ofeminismo incorporou a idéia de que a identidadefeminina não é uma simples decorrência da biolo-gia, mas sim uma condição apreendida ao longoda vida na relação com o outro. Assim, as refle-

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xões acerca da igualdade de gênero passariam aconsiderar concepções de identidades construídasculturalmente, que estão além de uma essênciainscrita na anatomia. É preciso reconhecer quenão é exatamente isso que se observa em umaparcela do discurso feminista, que focaliza unica-mente um dos pólos da relação de gênero (a mu-lher), e não na própria relação da qual emergemas identidades masculina e feminina.

Por outro lado, há razões para que o termo per-maneça. Além de ser uma herança histórica dosmovimentos e teorias pioneiros nessa discussão, étambém muitas vezes o único adjetivo que unificaas inúmeras vertentes feministas. No campo da te-oria política, há feminismos liberais, marxistas, pós-modernos, existencialistas, e outros tantos. Identi-ficar aquilo que há em comum entre eles não é umatarefa fácil, pois cada teoria irá propor seu próprioentendimento de discriminação de gênero, bemcomo suas próprias fórmulas para combatê-la.

O traço comum entre essas teorias não estáem princípios éticos ou em uma concepção depolítica comum. A identidade entre elas restringe-se a seu objeto. Boa parte das teorias políticasqualificadas como feministas têm por objeto oestudo da igualdade de gênero, ou seja, são teori-as que investigam em que homens e mulheres de-vem ser iguais, para que uma sociedade seja justaquanto ao gênero.

Neste artigo serão discutidas as posições deCarole Pateman e Martha Nussbaum acerca des-se tema1. A escolha das autoras deveu-se ao fatode que ambas compartilham muitas premissas econclusões; e por suas divergências situarem-seprincipalmente ao redor de problemas em que ofeminismo é acrescentado ao liberalismo políti-co2. Assim sendo, fazer uma discussão entre assuas posições minimiza o risco de que a análise

do debate não vá muito além das críticas que di-versas teorias dirigem ao liberalismo, podendofuncionar, enfim, como uma boa porta de entradapara alguns dos pontos mais controversos da teo-ria feminista contemporânea.

II. FEMINISMO E LIBERALISMO

Um dos poucos pontos consensuais entre asteorias políticas feministas é o bordão o pessoal épolítico, ou seja, a idéia de que as circunstânciaspessoais são estruturadas por fatores públicos(PATEMAN, 1989). O sentido e a extensão queesse bordão assume em cada uma delas, porém, ébastante variável. As teorias liberais tenderão arestringi-lo, uma vez que terão de combinar essaidéia com a preservação do espaço privado, sobpena de comprometerem sua identidade liberal. Asteorias não-liberais, por sua vez, têm geralmentemenos problemas em conciliá-lo com sua matrizteórica; mas, de outro lado, dificilmente poderãorenunciar totalmente à noção liberal de autonomiado sujeito, que tem sido palavra de ordem domovimento feminista desde o século XIX.

Disso decorre que toda teoria feminista, inde-pendentemente de como seja classificada, jamaisreproduzirá fielmente a sua origem teórica. O fe-minismo apresenta tanto para teses que tendempara o coletivismo quanto para o individualismo,para o universalismo quanto para o relativismo,problemas que lhes obrigam a fazer concessõesàs teorias adversárias. Essas concessões, porém,não serão referentes às mesmas questões nemtampouco serão feitas em um mesmo grau. Asvariações e combinações são inúmeras, o que ex-plica a impressionante ramificação das teoriaspolíticas feministas contemporâneas(KYMLICKA, 2006).

Entretanto, ainda que as ramificações sejammuitas, o liberalismo político tem uma relação pri-vilegiada com o discurso feminista, que desde suaorigem incorporou muitos de seus conceitos epremissas. As primeiras feministas encontraramna dicotomia liberal público-privado o argumento

1 A intenção do artigo é reconstruir e confrontar as posi-ções de Nussbaum e Pateman. No entanto, elas não dialo-gam diretamente. Nussbaum, porém, menciona Patemancomo uma autora adversária em nota de rodapé, aliando-a aAllison Jaggar, sua interlocutora direta (NUSSBAUM,1999, p. 384). Anne Phillips, em artigo em que discute ofeminismo liberal de Nussbaum, também reconhece emPateman uma tese que contesta a posição de Nussbaum(PHILLIPS, 2001).2 Nussbaum e Pateman utilizam a expressão “liberalismopolítico”, mas não lhe atribuem exatamente o mesmo senti-do. Pateman, ao sustentar que o liberalismo é necessaria-

mente patriarcal, assume John Locke como seu principalinterlocutor. Nussbaum, por sua vez, ao salientar as contri-buições do liberalismo político para o feminismo inspira-se no “liberalismo igualitário”, especialmente o de AmartyaSen. Essa divergência explica em grande parte a oposiçãoentre as posições de Nussbaum e Pateman, conforme severá adiante.

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para salvaguardar um espaço em que a mulherpudesse gerir sua conduta sem a interferência es-tatal na distribuição de papéis sociais. Reivindica-ções feministas típicas como o direito ao aborto,ao trabalho, à liberdade sexual, entre outros, apa-recem freqüentemente atreladas à noção de auto-nomia, entendida principalmente como não-inter-venção estatal na esfera da privacidade do sujeito.

No entanto, os limites do liberalismo políticopara o feminismo tornar-se-iam evidentes já emfins do século XIX. Elizabeth Cady Stanton, umadas principais vozes do feminismo liberal da épo-ca, foi alvo de críticas por reivindicar direitos paraas mulheres isolando-as do contexto que restrin-ge seu acesso ao trabalho e à participação política(BRYSSON, 1992). Sem questionar a distribui-ção de tarefas e de poder na esfera doméstica, ofeminismo liberal do século XIX encontrava suaspróprias limitações.

Desde aquela época, a maior parte das críticasdirigidas ao feminismo liberal tem como alvo adicotomia público-privado em sua versão clássi-ca, com fundamento em Locke. Nessa vertente,a linha divisória separa a sociedade civil do Esta-do. A sociedade representa o espaço da liberdadepessoal, a esfera em que os indivíduos experimen-tariam a “independência perfeita”, uma vez que aliestariam a salvo da coerção do Estado, restrita àesfera pública.

Além dessa, há ainda outra forma de distinguiro público do privado, segundo a qual os pólosopostos correspondem não à sociedade civil e aoEstado, mas ao social e ao pessoal. Na origem,essa foi uma distinção proposta pelo romantismopara se contrapor ao liberalismo, que não teriareservado nenhuma esfera para a intimidade. Osromânticos afirmavam que mesmo a esfera socialnão libera o indivíduo de forças coercitivas, umavez que as expectativas sociais constrangeriamos sujeitos a representarem papéis. O comporta-mento do indivíduo estaria, enfim, sob constantevigilância e julgamento também na esfera social.Os indivíduos, porém, diziam os românticos, pre-cisam de tempo para si, precisam ter um espaçoem que possam abandonar todos os papéis da vidacivil, em que estejam protegidos do olhar e dojulgamento do grupo (político e social) a que per-tencem. A esse espaço chamaram de esfera pes-soal ou íntima, na qual estariam incluídas apenasas relações de amizade e de amor (ROSENBLUM,1987)

A reação de boa parte dos liberais diante dodiscurso romântico foi a de incorporá-lo ao seuprojeto. A noção de intimidade foi traduzida pelosliberais como “direito à privacidade”, cuja identi-ficação com o liberalismo tornou-se intensa a pontode ofuscar sua origem romântica (BENN &GAUSS, 1999).

As duas versões da dicotomia público-privadosão problemáticas para o feminismo. A primeira,como foi dito acima, porque assumiria que solu-ções meramente formais, como o direito ao voto,seriam medidas suficientes para emancipar as mu-lheres de papéis subordinados. A segunda, por suavez, porque resguardaria da intervenção pública asrelações amorosas, familiares e sexuais, que são osespaços em que a discriminação de gênero aparecemais intensamente. As teorias feministas, por maisdiversas que possam ser suas concepções de igual-dade, têm de lidar simultaneamente tanto com ademanda pela reserva de um espaço de não-inter-ferência social e estatal nas escolhas e na condutaindividual das mulheres, como com a demanda deintervenção estatal na esfera privada quando é pre-ciso evitar ou coibir práticas sexistas de grupossociais conservadores (NUSSBAUM, 1999).

As criminalizações da violência doméstica e,em particular, do estupro marital estão entre asdiscriminações de gênero que mais desafiam adicotomia público-privado, em qualquer de suasversões. Afinal, mesmo na concepção mais res-trita de privado do liberalismo de influência ro-mântica, pode ser difícil justificar a intervençãoestatal em relações conjugais que pertencem àesfera de intimidade (MACKINNON, 1987). Deoutro lado, a fusão do publico e do privado tam-bém apresenta problemas para o feminismo. Afi-nal, como defender, por exemplo, a liberdade se-xual feminina ou o direito ao aborto se não houverlimites à interferência estatal no controle do com-portamento individual?

Como se vê, os debates acerca do feminismoconvergem para a dicotomia público-privado.Pateman chega a afirmar que o feminismo define-se por essa discussão (PATEMAN, 1989), umavez que a posição acerca daquela dicotomia ex-primiria a concepção de igualdade que fundamen-ta uma teoria feminista. Quanto mais abstrata eformalista a concepção de igualdade, mais intensaserá a separação entre o público e o privado; aopasso que, quanto mais focada na igualdade ma-terial, mais essa separação terá de ser atenuada.

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As teorias de Pateman e de Nussbaum, res-pectivamente, não estão em pólos diametralmenteopostos em relação a essa questão. Nenhuma de-las defende a separação ou a fusão total entre opúblico e o privado. No entanto, enquantoNussbaum sustenta que é possível e necessárioflexibilizar essa dicotomia sem comprometer idéi-as basilares do liberalismo, como individualidadee autonomia, Pateman acredita que o liberalismonão sobrevive sem que essa oposição permaneçaforte, pois é precisamente nesse aspecto teóricoque o liberalismo revelaria seu comprometimentohistórico e ideológico com o conservadorismopatriarcal.

III. A CRÍTICA DE PATEMAN À DICOTOMIAPÚBLICO-PRIVADO

Embora reconheça que o feminismo tenha nas-cido com o discurso liberal e que o ideal de liber-dade e igualdade abstratas tenha sido a tônica domovimento feminista por décadas, Pateman sus-tenta que o liberalismo e o patriarcalismo sempreestiveram mutuamente implicados. Segundo ela,as teorias sobre o contrato social jamais estendeusua doutrina da liberdade e da igualdade universalàs mulheres (idem). As características atribuídasao “ser humano universal” eram característicasmasculinas. Apesar das marcantes diferenças en-tre os contratualistas clássicos, a origem do polí-tico em todos eles é um contrato social do qual asmulheres são excluídas. A racionalidade e a liber-dade não são atributos universais quanto ao gêne-ro. Por isso, diz ela, o contrato social é tambémum contrato sexual (PATEMAN, 1993, p. 69ss.).

Pateman sustenta que a sociedade civil, queresulta do contrato social, está ancorada nopatriarcalismo. É a sujeição da mulher que garan-te as condições para a fruição da liberdade no es-paço público pelo homem. A “liberdade civil de-pende do direito patriarcal” (idem, p. 19). EmLocke, afirma Pateman, o fundamento patriarcalda divisão entre os direito político e o patriarcalaparece claramente. Ao definir a especificidade dopoder político, Locke assumiria que o caráter hi-erárquico da relação entre marido e mulher nãoseria político, mas natural (PATEMAN, 1989).Isso fica claro quando ele distingue o poder polí-tico do poder do “pai de família” no âmbito do-méstico, afirmando que na esfera política o poderseria convencional e, por isso, passível de serexercido sobre adultos; enquanto que o poder noâmbito doméstico subordinaria os indivíduos às

ordens do chefe de família. Os indivíduos a queLocke se refere não são apenas as crianças, umavez que ele assume que o papel dos maridos emrelação às mulheres está incluído em formas nãopolíticas de poder. A conseqüência disso seria aexclusão da mulher da esfera pública, pois aqueleque é subordinado por natureza não poderia parti-cipar do espaço que é governado por princípiosque universalizam a liberdade e a igualdade. Deoutro lado, essa divisão implica também a exclu-são da aplicabilidade desses princípios à únicaesfera destinada à mulher, a doméstica (idem).

Pateman observa ainda que a esfera domésti-ca não está incluída no conceito de público nemno conceito de privado (social) de Locke. A soci-edade civil teria abstraído o ambiente doméstico,tornando-o invisível. Sinal disso estaria nas ex-pressões “sociedade e estado”, “economia e polí-tica”, “social e político” que muitas vezes são uti-lizadas como equivalentes de “privado e público”,respectivamente. O espaço familiar, onde se cons-troem e reproduzem as identidades de gênero,permaneceria esquecido na discussão teórica li-beral (OKIN, 1989).

Para Pateman, esse esquecimento não foi ques-tionado pelo feminismo liberal. As sufragistas doséculo XIX teriam confrontado apenas a idéia deque o espaço privado não seria a única esfera aque a mulher deveria ter acesso. Não teriam, por-tanto, chegado a questionar o espaço domésticocomo o lugar feminino por excelência (PATEMAN,1989). Stuart Mill poderia ser alvo dessa mesmacrítica. O autor reivindicou reformas legais como objetivo de emancipar as mulheres do jugo deseus maridos, e contribuiu para forjar o bordãofeminista “o pessoal é político” na medida em queutiliza termos políticos quando qualifica a condi-ção da mulher no espaço doméstico. Palavras como“escravas”, “igualdade”, “liberdade” e “justiça”foram trazidas para o âmbito doméstico por Mill.No entanto, o autor sustenta que mesmo após asreformas legais que equiparassem maridos e es-posas, o casamento deveria continuar represen-tando uma carreira para a mulher (idem; MILL,1970).

Com essa idéia, afirma Pateman, Mill deixaintacta a divisão de trabalho na esfera doméstica erevela uma concepção de igualdade de gêneromeramente formal, porque parece acreditar nasuficiência da supressão de entraves legais paragarantir o acesso feminino à esfera pública. A di-

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visão do trabalho doméstico não é objeto de críti-ca de Mill. Ao contrário, o autor afirma que a divi-são tradicional é um acordo que convém tanto ahomens quanto a mulheres, sugerindo a justifica-ção dessa repartição de tarefas na natureza (idem;idem).

A íntima relação entre o privado e o naturalestá, segundo Pateman, na base da interconexãoentre liberalismo e patriarcalismo, e aparece mes-mo em liberais considerados feministas, comoStuart Mill. O público e o privado podem, portan-to, ser também denominados espaço da cultura eda natureza, respectivamente, mas qualquer queseja a nomenclatura utilizada, o espaço masculinoserá o primeiro, e o feminino, o segundo.

A identificação do feminino com a natureza teriatrês conseqüências. A primeira seria a desvalori-zação das atividades consideradas femininas. Issoporque teríamos herdado dos gregos o valor dasuperação da existência meramente natural. A cul-tura seria a expressão do potencial criativo dosseres humanos, que os singulariza e distingue dosanimais (PATEMAN, 1989). A segunda conseqü-ência, por sua vez, consiste em considerar essadicotomia inquestionável e imutável. Se for a na-tureza que distribuiu as tarefas referentes à cria-ção dos filhos, por exemplo, os seres humanosnão teriam muito a fazer a não ser adaptar à vidaem sociedade a distinção entre tarefas (e identida-des) femininas e masculinas. Finalmente, a ter-ceira conseqüência diz respeito à abstração histó-rica implícita na dicotomia público-privado. Aoconsiderá-la uma imposição da natureza, além deimutável e amoral, a divisão entre o público e oprivado será assumida também comodescontextualizada. Assim, fundamentada na na-tureza, a dicotomia obscureceria a relação entreliberalismo e patriarcalismo, e a relação de amboscom o capitalismo. Este último teria incorporadoa dicotomia público-privado à medida que se de-senvolvia, concentrando tanto a teoria quanto aprática políticas na esfera pública e civil, margi-nalizando a esfera doméstica. O capitalismo nãoteria, portanto, definido apenas uma divisão declasses, mas também uma divisão sexual com aqual se relaciona a primeira.

A divisão sexual do trabalho afastaria as mu-lheres do mercado ou inseri-las-ia ali em condi-ções desvantajosas, mas o liberalismo seria inca-paz de diagnosticar como desigualdade de gêneroa desigualdade nas condições de inserção da mu-

lher no mercado de trabalho, uma vez que a gêne-se dessa desigualdade estaria na divisão de traba-lho no âmbito doméstico, que para a teoria liberalnão é política ou socialmente relevante. P e l amesma razão, o liberalismo tampouco forneceriauma resposta para o problema da precariedade dostrabalhos das mulheres que, por necessidade, es-tão no mercado de trabalho, como é o caso dasmulheres da classe trabalhadora. Estas sempre ti-veram de trabalhar, mas a elas foram destinadasapenas tarefas mal remuneradas, desvalorizadas eque muitas vezes são meras reproduções das ati-vidades domésticas, tal como ocorre com os em-pregos de babá, faxineira, empregada domésticaetc. Portanto, no que se refere à condição femini-na, a dicotomia público-privado teria a conseqü-ência de, a um só tempo, confinar a mulher aoespaço doméstico, subordiná-la economicamenteao homem e/ou empobrecê-la, restringir sua par-ticipação política e atribuir tudo isso a razões imu-táveis de ordem metafísica (idem).

Em síntese, a conclusão de Pateman é a deque o liberalismo está estruturalmente ligado aopatriarcalismo e, por isso, a dicotomia público-privado seria uma armadilha para o movimentofeminista. Armadilha porque à primeira vista ser-ve-lhe aos propósitos da emancipação, mas logose revela um modelo de perpetuação da rigorosadivisão sexual dos papéis sociais. O sujeito libe-ral, ou seja, o indivíduo autônomo, singular e ca-paz de possuir propriedades em nome próprio nãoseria, portanto, um sujeito universal (do ponto devista do gênero), pois o argumento conservador epatriarcal a respeito da natureza da mulher teriasido incorporado pelo liberalismo em um de seuselementos mais estruturais, a separação entre asesferas pública e doméstica. Por isso, um femi-nismo liberal padeceria de inconsistênciasincontornáveis, uma vez que, aceitando a dicotomiapúblico-privado, não poderia evitar seu caráterpatriarcal e, aceitando o bordão feminista “o pes-soal é político”, não poderia conciliá-lo com o li-beralismo (OKIN, 1992).

A identificação entre liberalismo e patriarcalismoque Pateman sustenta pode ser atestada em Lockee na maior parte dos autores liberais clássicos, atémesmo em Stuart Mill. No entanto, isso não éuma particularidade do liberalismo político. Osautores clássicos no melhor dos casos calaram-se e no pior deles opuseram-se abertamente à idéiada igualdade de gênero. A teoria política feministanão é uma construção dos filósofos clássicos, mas

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uma interpretação de suas teorias para tomá-lascomo fundamento da igualdade de gênero (idem).

Pateman tem razão quando denuncia as impli-cações do liberalismo clássico na discriminaçãode gênero. No entanto, isso ainda não é razão su-ficiente para afastar o liberalismo da fundamenta-ção da igualdade de gênero. Sem avançar para alémde Locke, ou mesmo de Mill, dificilmente o libe-ralismo serviria à fundamentação de qualquer re-lação de igualdade. O formalismo liberal já foi hámuito denunciado e, dentro do liberalismo con-temporâneo, foram propostas fórmulas para a suasuperação.

O feminismo liberal percorreu esse mesmocaminho, de modo que a maior parte dessas teori-as está atualmente bem além de Locke. Para des-cartar o liberalismo como fundamento da igualda-de de gênero é preciso, portanto, analisar se o queessas teorias contemporâneas acrescentam à suamatriz teórica é suficiente para desfigurá-la porcompleto ou não.

O argumento de Pateman de que o feminismonão se compatibiliza com a separação estanqueentre o público e o privado é corroborado pelamaior parte das teorias feministas liberais contem-porâneas. Entretanto, enquanto as feministas li-berais flexibilizam a relação entre o público e oprivado, Pateman sustenta que o liberalismo nãosobrevive sem essa oposição fortemente marcada,tanto por razões teóricas quanto ideológicas. Issonão significa, porém, que Pateman defenda a fu-são do público e do privado. Sua idéia é a de quea crítica feminista adote uma perspectiva dialéticada vida social, de modo a evitar tanto a separaçãoestanque entre o público e o privado, quanto orisco de o bordão “o pessoal é político” confundirpúblico e privado a ponto de não restar nenhumadimensão da vida humana preservada da exposi-ção pública. A autora não sugere outra teoria polí-tica em substituição ao liberalismo. Sua conclu-são é a de que “o feminismo ainda aguarda a suafilosofia” (PATEMAN, 1989).

IV. A DICOTOMIA PÚBLICO-PRIVADO NOFEMINISMO LIBERAL DE MARTHANUSSBAUM

Nussbaum reconhece que as críticas dePateman sejam válidas para alguns autores libe-rais, e que algumas delas deveriam ser incorpora-das ao liberalismo político feminista. No entanto,sua posição é a de que elas não seriam suficientes

para ruir a sustentação e a consistência do femi-nismo liberal. Segundo ela, o liberalismo precisaser modificado pela crítica feminista, mas essasmudanças não o descaracterizariam. Ao contrá-rio, elas torná-lo-iam mais consistente com seuspróprios fundamentos. Para justificar essa posi-ção, Nussbaum primeiramente define os contor-nos do liberalismo em que apóia sua concepçãode igualdade de gênero, para então formular suadefesa do liberalismo como fundamento da igual-dade de gênero (NUSSBAUM, 1999).

Da teoria liberal (em particular a kantiana), aautora extrai duas idéias centrais. A primeira é ada igual dignidade entre os seres humanos e a se-gunda, o poder de escolha moral do indivíduoentendido como habilidade de planejar uma vidade acordo com sua própria avaliação de fins. Des-sas idéias decorreriam compromissos políticos quea autora julga serem indispensáveis a uma teoriafeminista. O primeiro é o de não tornar diferençasmoralmente irrelevantes fontes sistemáticas dehierarquia social. Assim, o liberalismo seria ne-cessariamente crítico da discriminação racial, declasse, de gênero, ao sistema de castas etc. Alémdisso, o liberalismo opor-se-ia também a formasde política cooperativas ou organicamente orga-nizadas. A finalidade da política liberal seria o bem-comum, universal, sem privilegiar determinadosgrupos em detrimento de outros. Esse bem-co-mum, porém, jamais poderia perder de vista queo fim último da política é o bem-estar dos indiví-duos. Por fim, a política liberal estaria compro-metida com a tolerância e com a diversidade, nosentido de que não poderia se voltar a uma formaparticular de bem, fosse ela religiosa ou laica(idem).

Nesse arcabouço, a autora identifica aquilo queconsidera o conceito liberal mais valioso para ofeminismo: a autonomia do indivíduo. Tomando oindivíduo como unidade básica do pensamentopolítico, a teoria liberal opor-se-ia à idéia de que oindivíduo funde-se à coletividade, seja ela a co-munidade política, seu grupo social ou mesmo afamília.

O liberalismo político, porém, tem sido objetode inúmeras críticas de teorias feministas influen-tes, como a de Pateman. As críticas de Patemancomentadas no item anterior referem-se a duasquestões centrais: a relação entre natureza e cul-tura e o caráter abstrato da igualdade liberal. Aprimeira questão seria tratada pelo liberalismo de

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forma a justificar em bases amorais e apolíticas adistribuição de papéis no âmbito privado e públicoe, dessa forma, torná-la imutável; enquanto que asegunda cavaria um fosso entre a igualdade for-mal e as hierarquias e desigualdades sociais, demodo a afastá-las do campo de visão e ação daspolíticas liberais.

As posições de Pateman e Nussbaum são muitosemelhantes no que se refere ao questionamentoda origem natural da distribuição de papéis. Emambas as autoras encontram-se críticas tanto aodiscurso conservador tradicional (antifeminista),quanto a teorias feministas essencialistas, que de-fendem uma espécie de “direito à identidade femi-nina”. A valoração dos atributos femininos “natu-rais” é a característica mais central do chamadofeminismo essencialista. Esses atributos sãofreqüentemente relacionados à maternidade, en-tendida como a experiência que define o femini-no. Os hormônios são também assumidos comofatores determinantes do comportamento da mu-lher. A carência de testosterona diminuiria suaagressividade e tornaria seu desejo sexual maisdomesticável; ao passo que o estrogênio torná-la-ia propensa a assumir cuidados com crianças, aser mais emotiva e naturalmente inclinada ao pa-cifismo (NUSSBAUM, 1997).

A idéia de que os hormônios determinam ocomportamento maternal (que aqui equivale a fe-minino) baseia-se no aumento das taxas deestrogênio no período pós-parto, que a preparariapara assumir os cuidados de seu filho. Assim, asquantidades maiores de estrogênio nas mulheres(ao longo da vida) moldariam o comportamentofeminino, dotando-o dos atributos necessários paraa maternidade, ou seja, tornando-o mais terno doque agressivo (idem).

Em relação a essa questão, Nussbaum obser-va que as implicações do efetivo aumento das ta-xas de estrogênio no período pós-parto são inter-pretadas por essas teorias com um viés simplistae ideológico. Afinal, o comportamento maternaltambém inclui a agressividade, que ora é dirigidaa possíveis agressores de seus filhos, ora é dirigidaa seus próprios filhos3. Há muito já foi reconheci-do, tanto científica quanto juridicamente, que o

período pós-parto pode gerar emoções confusase conflitantes, que incluem a depressão, o ódio, aagressividade e também a ternura e o amor.

Embora o discurso tradicional e o feminismoessencialista sustentem-se na mesma fundamen-tação biológica dos comportamentos humanos, aconseqüência política de ambos é distinta. O pri-meiro conduz à marcada dicotomia entre públicoe privado com todas as implicações éticas e polí-ticas apontadas por Pateman. Já o segundo justi-fica discursos que consideram que a igualdade degênero depende de que as diferenças naturais se-jam eliminadas. Firestone, uma das feministas ra-dicais mais influentes, chega a sustentar que aigualdade de gênero requer que a reprodução na-tural seja substituída pela artificial, de modo a abo-lir a gravidez e, com isso, as desigualdades degênero que dela decorreriam.

As críticas de Pateman e Nussbaum acerca dafundamentação natural das identidades do femini-no e do masculino convergem para os mesmospontos. Ambas sustentam que o feminismoessencialista reproduz a idéia tradicional de que asubordinação da mulher é decretada pela nature-za. Ambas as autoras estão de acordo com a idéiade que a tradução da dicotomia público-privadoem cultural-natural revela um traço sexista do li-beralismo político tradicional e também de algu-mas vertentes do feminismo. No entanto, tantoNussbaum quanto Pateman rejeitam também a idéiade que as características biológicas sejamirrelevantes na definição das identidades sexuais.Em ambas, está expressamente presente a idéiade que biologia, embora não determine comporta-mentos, cumpre um papel na delimitação do fe-minino e do masculino, colocando limites na de-signação do que seria característico de cada umdessas representações.

Portanto, a identidade de gênero nessas auto-ras seria resultante da interação entre as dimen-sões biológica e cultural do ser humano. Dissodecorre que o feminismo em Pateman e Nussbaumnão fará reivindicações de reconhecimento de iden-tidades nem tampouco de desconstrução do fe-minino ou do masculino (NUSSBAUM, 1997;PATEMAN, 1989). Em ambas o conceito de igual-dade de gênero aplica-se à valoração dessas iden-tidades e às implicações dessa valoração na distri-buição de oportunidades entre homens e mulhe-res. Essas oportunidades incluem a realização pes-soal, a possibilidade de planejar a própria vida, a

3 O Direito brasileiro, por exemplo, considera o estadopuerperal como um atenuante no crime em que a mãe mataseu filho (infanticídio).

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participação política e o acesso ao trabalho semcustos adicionados em razão da identidade de gê-nero. No entanto, Pateman sustenta que oformalismo da igualdade liberal compromete-o compolíticas indiferentes às desigualdades sociais,especialmente àquelas que decorrem da distribui-ção de poder no espaço doméstico.

Nussbaum também parece estar de acordo comPateman neste ponto. Ela admite que é necessárioir além da igualdade abstrata para garantir a igual-dade de gênero. Os estatutos antidiscriminação eas decisões judiciais neles baseados teriam semostrado insuficientes para evitar e combater arestrição de oportunidades das mulheres em di-versos setores da vida. Embora tenham efetiva-mente promovido o acesso da mulher a esferasque lhe eram proibidas, não teriam levado em contaque a facilidade desse acesso vê-se afetada pelainterconexão entre a distribuição de tarefas noespaço doméstico e público. Se no campo do tra-balho, por exemplo, determinadas funções impu-serem exigências que são mais facilmente ade-quadas a pessoas que não são as principais res-ponsáveis pelos cuidados de crianças em idadepré-escolar, a divisão sexual de tarefas no âmbitodoméstico será determinante na competição pelavaga de trabalho, ainda que formalmente não sejaimposta nenhuma restrição quanto ao sexo(NUSSBAUM, 1999; MACKINNON, 1987).

Entretanto, sua visão crítica da igualdade abs-trata não se estende ao liberalismo em todas assuas versões. Nussbaum não estabelece uma re-lação automática ou necessária entre ambos, e citaconcepções de igualdade de liberais igualitárioscomo Amartya Sen e Rawls, nas quais está pre-sente a idéia de que a igualdade de oportunidadesexige pré-requisitos materiais, e que esses pré-requisitos materiais devem variar conforme a po-sição real dos sujeitos na sociedade.

Em síntese, Nussbaum e Pateman estão deacordo quanto às implicações sexistas da dicotomiapúblico-privado na qual estão implícitas tanto afundamentação biológica da identidade sexual,quanto a igualdade abstrata. No entanto, elas di-vergem no que se refere à possibilidade de esseproblema ser superado dentro do liberalismo. En-quanto Pateman considera que o feminismo não écompatível com a dicotomia público-privado, e,portanto, com o liberalismo, Nussbaum conside-ra que o feminismo não pode prescindir de con-ceitos - chave liberais chave como a autonomia e

a individualidade. A questão central desse debate,portanto, diz respeito à possibilidade de ir-se alémda dicotomia liberal e ainda assim preservar a au-tonomia e a individualidade.

A concepção de individualismo que Nussbaumtem em mente sugere que a dicotomia público-privado seja traduzida como esfera pública e es-fera da intimidade. Isso porque Nussbaum de-fende a substituição da idéia da dicotomia pela dainterdependência, o que suporia uma esfera pri-vada mais reduzida do que a esfera social de Locke.A idéia de interdependência difere da dicotomiaexatamente na definição da divisória entre o públi-co e o privado. Ambas exigem a preservação deuma esfera de não intervenção estatal, mas a no-ção de interdependência traz para o debate públi-co as desigualdades no interior de associações ci-vis que em Locke estariam a salvo da ingerênciapública.

Os pontos comuns entre Nussbaum e Patemanrevelam que a primeira corrobora as críticas dePateman à dicotomia liberal concebida por Locke.Portanto, para analisar a divergência entre ambasacerca da relação entre a dicotomia público-pri-vado e o feminismo, deve-se, avaliar se as críti-cas de Pateman estender-se-iam também à ver-são da dicotomia público-privado de influênciaromântica, ou seja, se a separação entre intimida-de e social também tornaria invisíveis asassimetrias de poder no domínio doméstico.

O conceito de intimidade ou privacidade, comofoi dito, amplia a esfera de intervenção do Estado.Todas as associações formais com outras pesso-as, ao invés de serem localizadas na “esfera daliberdade”, como em Locke, são consideradaspúblicas. A esfera da intimidade, porém, imporiauma barreira à regulação e ao controle da condutado indivíduo. Nesse arranjo seria, enfim, evitadaa fusão entre o público e o privado ao mesmotempo em que se validaria a submissão das asso-ciações civis à regulação pública.

Entretanto, como foi dito anteriormente, mes-mo essa versão da dicotomia público-privadoapresenta problemas para o feminismo. Se as re-lações amorosas e de amizade forem totalmenteimpermeáveis à intervenção estatal, o estupromarital e a violência doméstica não poderiam sercriminalizados, pois isso poderia ser entendidocomo uma violação da privacidade. Kymlicka re-lata que o “direito à privacidade” na Suprema Cortedos Estados Unidos foi inicialmente celebrado pelo

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feminismo, mas que, posteriormente, o própriomovimento feminista denunciaria esse direito comouma justificativa para a negligência do Estado naproteção dos direitos das mulheres (KYMLICKA,2006).

A primeira decisão embasada no direito à pri-vacidade é de 1965 (caso Griswold contraConnecticut). Neste caso, discutiu-se uma lei quenegava o acesso de mulheres casadas a meiosanticoncepcionais. O tribunal decidiu que essa leiseria nula por ferir o direito à privacidade, pois adecisão de ter filhos ou não seria exclusiva docasal. Em decisões posteriores, tornou-se evidente,porém, que a proteção “das decisões do casal” daintervenção estatal aprofundou a divisão entre opúblico e o privado, despolitizando as desigualda-des existentes nas relações intrafamiliares(MACKINNON, 1987). O direito à privacidadeterminou, enfim, sendo uma barreira que protegeas famílias do “teste da justiça pública”(KYMLICKA, 2006).

A interpretação do direito à privacidade comoprivacidade conjugal tem por base uma concep-ção coletivista da família. A família substitui o in-divíduo como unidade básica do pensamento po-lítico. O sujeito do direito à privacidade, portanto,foi o casal, e não o indivíduo; a autonomia famili-ar substituiu a autonomia individual. SegundoKymlicka, a concepção coletivista (familiar) deprivacidade não encontra fundamento na teoria li-beral, mas sim em idéias pré-liberais a respeito danaturalidade da família tradicional. A proteção dafamília em nome do direito à privacidade teria sidoconseqüência da adoção da linguagem liberal daprivacidade pelos “protetores da domesticidade”(idem). Assim, a medida adequada para combaterdesigualdades de gênero no âmbito familiar nãoestaria em abandonar o discurso liberal. Ao con-trário, seria preciso aprofundá-lo até finalmentedissociar o direito à privacidade da “autonomiafamiliar”, retomando o indivíduo como o núcleofundamental.

Nussbaum parece entender a dicotomia priva-do-público (de influência romântica) de formamuito semelhante à de Kymlicka, vendo ali umpotencial para justificar a politização das relaçõesfamiliares. Isso fica claro quando a autora afirmaque os liberais clássicos teriam se revelado poucoliberais quando conceberam o espaço domésticocomo uma esfera em que a mulher desaparececomo unidade. Por isso, diz Nussbaum, a teoria

feminista teria de ser ainda mais liberal do que oliberalismo clássico, que teria servido aopatriarcalismo por razões unicamente ideológicase não por limitações teóricas (NUSSBAUM, 1999).

Em síntese, a idéia fundamental de Nussbaumé a de que o feminismo deve aprofundar a noçãode autonomia e de individualismo, e deve fazê-locom as ferramentas teóricas que o liberalismofornece. Contra essa idéia levantam-se inúmerasteses. Uma das críticas mais contundentes refe-re-se justamente à idéia de que a autonomia indi-vidual como bem-social fundamental traz implici-tamente dois problemas para as teorias que se pre-tendem igualitárias: o egoísmo psicológico e osolipsismo político.

O egoísmo psicológico consiste na caracteri-zação do sujeito como alguém que age motivadosomente pelo auto-interesse. Esse sujeito não se-ria capaz de ocupar-se do interesse dos demaismembros do grupo. Não existiria entre os sereshumanos qualquer empatia ou sentido de solidari-edade (JAGGAR, 1983). Nussbaum concorda queisso poderia ser dito das teses de Hobbes eBentham, mas afirma que não funciona para inú-meras outras teorias liberais que costumam serobjeto dessa mesma crítica. Segundo ela, AmartyaSen e Rawls teriam de ser excluídos desse grupo,já que em ambos está explicitamente presente aidéia de vinculação entre indivíduos. Em Sen issofica claro quando critica o utilitarismo por subes-timar a importância da empatia e do compromis-so como motivos da ação, enquanto que em Rawlsessa mesma idéia fica clara com a caracterizaçãodos sujeitos na posição original, que devem assu-mir a perspectiva de todos4 (NUSSBAUM, 1999).

Mesmo o utilitarismo e o kantismo, mais fre-qüente e facilmente associados a essa crítica, nãopoderiam ser acusados de egoísmo psicológico.Em defesa do utilitarismo, Nussbaum salienta quea maximização da utilidade de todos requer gran-des sacrifícios individuais e, em favor de Kant, aautora sustenta o fato de que a imperfeição dosdeveres de benevolência é decorrente do fato deos sujeitos tenderem a privilegiar as pessoas maispróximas e queridas, em prejuízo de um

4 Nussbaum cita como exemplo o budismo que, mesmosem considerar o sujeito como uma unidade destacada dosdemais, considera o indivíduo auto-suficiente a ponto depoder ser indiferente a fatos (NUSSBAUM, 1999).

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universalismo humanista, que somente a razãopoderia fundamentar.

O solipsismo político, por sua vez, relaciona-se à suposição de que os indivíduos seriam auto-suficientes. Nussbaum, porém, observa que essaidéia não é necessariamente vinculada ao indivi-dualismo. Além disso, ela acrescenta que mesmoque a psicologia do liberalismo considerasse o in-divíduo auto-suficiente, essa seria uma apostanormativa e não uma descrição da realidade.

O significado do individualismo no liberalismo,enfim, seria o de que a pessoa não se funde à coleti-vidade ainda que faça parte dela. Nussbaum salienta,porém, que isso não implicaria numa concepção“atomista” de sujeito, que desconsideraria os laçosque unem as pessoas, mas apenas que a distribuiçãojusta de recursos e oportunidades deve levar em contaa condição de cada pessoa individualmente.

Entendido dessa forma, Nussbaum conclui queo individualismo liberal representa um importanteinstrumento do feminismo, uma vez que aindividuação do sujeito confronta a idéia de que amulher confunda-se com a unidade familiar e que,por isso, seu valor estaria condicionado apenas àsua contribuição enquanto reprodutoras e“cuidadoras” (caregivers), ou seja, condicionadoà representação das personagens com a qual afamília tradicional define-a.

Apesar de a individualidade entendida comoseparação (separateness) funcionar para contes-tar a identificação do espaço privado com o lugarfeminino por excelência, ela apresenta também li-mitações significativas para o feminismo. Confor-me observa Anne Phillips, a individualidade emNussbaum é pensada isoladamente do contextosocial da qual ela emerge. A separação de cadaindivíduo, diz Phillips, é algo mais complexo doque reconhecer que temos mentes e corpos indi-viduais (PHILLIPS, 2001, p. 254).

A ênfase na separação (“separateness”) refor-ça a idéia que Pateman insistentemente contesta: ainterpretação da autonomia como liberdade de es-colha. Referindo-se a Locke, Pateman afirma queessa liberdade está diretamente ligada à idéia depropriedade, mais precisamente a ser “proprietá-rio de si mesmo”. Isso significa que ser livre é sero único a ter direitos sobre si, é ser livre parafazer e definir seu modo e seu plano de vida. É,enfim, ser livre para fazer escolhas (PATEMAN,1993, p. 88; PHILLIPS, 2001, p. 254).

Para o liberalismo a capacidade de fazer esco-lhas é central. Por isso, a junção entre o feminis-mo e o liberalismo pode conduzir à idéia de que ogênero é também uma escolha. A tentativa deNussbaum de desnaturalizar a identidade femini-na e a masculina sugere que o gênero é contin-gente porque podemos escolhê-lo. Mas essa idéia,conforme salienta Phillips, negligencia as limita-ções que nossa condição social impõe à nossapossibilidade de escolher nossas posições e pa-péis na sociedade em que vivemos (PHILLIPS,2001, p. 256). Grande parte da crítica feministaao liberalismo ataca justamente esse ponto. Aindaque o feminismo mais recente tenha insistido naidéia de que o corpo não determina o gênero, issonão significa dizer que o corpo não importa. Aocontrário, para o feminismo o corpo é um con-texto e esse contexto cumpre um papel decisivona definição de quem somos. Nosso corpo não éum invólucro do núcleo de nosso self. Ele tam-bém é parte constitutiva dele. Além do mais, mes-mo que pudéssemos distanciar-nos de nosso cor-po, não poderíamos evitar que os “outros” conti-nuassem associando-nos a ele Nosso corpo é umimportante aspecto do contexto em que a identi-dade de gênero é formada. Esse contexto, por suavez, não é nossa propriedade. Nossa identidadesocial não é uma invenção ou uma escolha total-mente nossa. O gênero, enfim, não está em nos-sas mãos para dispormos dele ou a respeito delecomo quisermos. Confiar nisso, diz Phillips, nãoé apenas ingênuo, é perigoso. Afinal, a centralidadeda autonomia na teoria de Nussbaum minimiza aspressões sociais que limitam nossas escolhas. Essaminimização, por sua vez, sugere que qualquercondição que não seja fruto de uma livre-escolhaé um fracasso e, ainda mais grave, sugere tam-bém que nos casos em que haveria essa livre-es-colha, nós somos totalmente responsáveis pelo quevier a ocorrer. Enfim, a força da autonomia nateoria de Nussbaum, apesar de suas tentativas deafastar-se do racionalismo moderno, traz nova-mente à tona a ficção do agente abstrato e racio-nal, um agente que a própria Nussbaum admiteser concebido a partir de valores identificados como masculino (idem; NUSSBAUM, 1999, p. 71).Confiar em nossa capacidade de assumir o con-trole total sobre nossa vida é uma ilusão que podeser perigosa. Para Phillips, Nussbaum falha aocolocar a autonomia como a questão central daigualdade de gênero porque isso minimiza as pres-sões sociais que limitam nossas escolhas. A auto-

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nomia está diretamente ligada à responsabilidade.Por isso, não levar devidamente em conta a forçadessas pressões sugere que qualquer situação quenão resulte de uma livre-escolha é um sinal defracasso pelo qual somos responsáveis (PHILLIPS,2001, p. 257).

V. CONCLUSÕES

O liberalismo abarca diversas posições políti-cas que muitas vezes fundamentam regimes pro-fundamente distintos entre si. Essa pluralidade,como já foi salientado anteriormente, é tambémcaracterística das teorias feministas, num grauainda maior. Assim, para pensar o potencial doliberalismo na fundamentação do feminismo, épreciso identificar tanto o núcleo do liberalismoquanto o da concepção de igualdade que se tomacomo ponto de partida em uma teoria política fe-minista.

Nussbaum e Pateman parecem coincidir a res-peito da concepção de igualdade de gênero. A crí-tica que ambas dirigem à relação entre natureza ecultura e ao formalismo da igualdade abstrata tor-na evidente que nenhuma delas pretende atribuir opoder ou a opressão da mulher a desígnios danatureza. Em ambas está muito claro que o queconsideram relevante na organização de uma so-ciedade justa quanto ao gênero é a forma comouma sociedade valora as diferenças biológicas, bemcomo as implicações dessa valoração na distribui-ção de bens sociais. Quanto à igualdade abstrata,os argumentos também são os mesmos. Apesarde definir-se como liberal, Nussbaum está de acor-do com Pateman acerca do curto alcance da igual-dade abstrata no combate a desigualdades soci-ais.

Dessa base comum, resultam concepções se-melhantes sobre a relação entre público e privado.A idéia de Nussbaum de que uma teoria feministadeva considerá-los interdependentes (e não opos-tos) em muito se assemelha à relação entre o pú-blico e o privado defendida por Pateman. Em ou-tras palavras: tanto Pateman quanto Nussbaumentendem que o feminismo precisa tornar a esfe-ra privada permeável à intervenção pública semsacrificar a individualidade e a intimidade.

Nussbaum, porém, acredita que essa equaçãoseja possível dentro da teoria liberal, desde queesta seja submetida a transformações que elimi-nem deturpações teóricas decorrentes do

conservadorismo dos primeiros filósofos liberais.A autora sustenta, ainda, que insistir no liberalis-mo (modificado pela crítica feminista) é indispen-sável para o feminismo, pois este não sobrevivesem a concepção de autonomia e individualidadeliberais. Pateman, por sua vez, embora não acre-dite que a consistência da teoria liberal sobrevivaàs modificações exigidas pelo feminismo,tampouco parece abrir mão da idéia de autonomiado indivíduo.

As divergências entre Nussbaum e Patemandesaguam, enfim, não tanto no potencial do libe-ralismo para o feminismo já que, quando criticamou defendem o liberalismo, elas referem-se a umatradição filosófica muito ampla privilegiando au-tores distintos como interlocutores. O ponto cen-tral aqui parece estar, sim, no modo em que cadauma delas entende a interdependência entre o pú-blico e o privado. Mas essa concepção deinterdependência não é devidamente explicitada pornenhuma delas.

Nesse aspecto, a contribuição de HannahPitikin pode sugerir algumas combinações impor-tantes entre os argumentos e preocupações deNussbaum e Pateman. Pitikin sustenta que o pú-blico e o privado relacionam-se porque as ques-tões que atingem a esfera pública somente o fa-zem porque afetam os indivíduos em suas vidascotidianas na esfera privada. As demandas e insa-tisfações da dona de casa, por exemplo, são vivi-das como uma experiência individual e excepcio-nal somente até que cada dona de casa percebaque sua situação é compartilhada por outras mu-lheres. Nesse momento, as questões individuais,sentidas na concretude da vida privada, tomamuma forma coletiva e podem aspirar ao status dequestão de interesse público (PITKIN, 1981, p.348).

Os argumentos de Nussbaum e Pateman su-gerem que elas subscreveriam essa relação entreo público e o privado. Isso indica que, apesar doscontrastes de suas respectivas posições acerca doliberalismo e da autonomia, suas concepções depolítica estão bem mais próximas. Por isso, o ca-minho para o livre-trânsito das mulheres do espa-ço privado para o público em condições de igual-dade com os homens parece estar antes numareflexão acerca da concepção de política do queda de autonomia. E para isso, Pateman parece serum melhor guia do que Nussbaum.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Ingrid Cyfer ([email protected]) é Doutora em Ciência Política pela Universidade de São Paulo, USP.

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FEMINISTS AND THE DIVERSITY OF REPUBLICAN ALTERNATIVES

Carla Cecília Rodrigues Almeida and José Antônio Martins

This article analyzes the critical move of certain feminists toward republicanism and explores thehypothesis that such a move represents important points of contact with a current of popularrepublicanism. Based on classical authors and adopting specific criteria for looking at the constitutivediversity of republicanism, we seek a way to define this current and as well as the aristocratic onewhich serves as its counterpoint. Our hypothesis is based, on the one hand, on analysis of feministcritiques of certain current formulations which, to a greater or lesser extent, share the republicanideal that contemporary society must endow public life with renewed meaning. On the other hand, itdraws from particular proposals that have been elaborated in order to appropriate this ideal. Ouranalysis then makes it possible to suggest that the concerns that characterize the popular republicancurrent offer more promising sources for combining the ideal of a renewed public sphere withdemands for justice. Through this focus, we emphasize feminist contributions to democratic theory.

KEYWORDS: feminist theory; popular republicanism; aristocratic republicanism; democratic theory.

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LIBERALISM AND FEMINISM: GENDER EQUALITY IN CAROLE PATEMAN ANDMARTHA NUSSBAUM

Ingrid Cyfer

This article discusses the relationship between liberalism and feminism through the work of twofeminist scholars, Carole Pateman and Martha Nussbaum. This is an important issue for feminism,and one in which the problems associated with public-private and nature-culture dichotomies, inheritedfrom liberalism, are fundamental. In this regard, we will discuss Carole Pateman and MarthaNussbaum’s positions on the matter. Our choice of authors is due to the fact that both share many ofsame premises and conclusions, and because their divergences are located primarily around problemsin which feminism is “added on” to political liberalism. Thus, in carrying out a discussion through bothpositions, we minimize the risk that the analysis of the debate move little beyond the critique thatnumerous theories have directed toward liberalism, and offer what can be a fruitful entry into one ofthe most controversial points in contemporary feminist theory. Nussbaum and Pateman seem tocoincide regarding their conception of gender equality. In the criticism that both of them directtoward the nature-culture relationship and to the formalism of abstract equality, it becomes evidentthat neither seeks to attribute either power or the oppression of women to nature’s designs. In bothauthors, it is very clear that what they consider relevant for the organization of a just society in termsof gender is the way in which a society places value on biological differences and what implicationsthis has for the distribution of social goods. Nussbaum, however, believes that this equation can bedealt with within liberal theory, as long as it is subjected to changes which free it from theoreticalproblems linked to the conservative stance of the first liberal philosophers.

KEYWORDS: feminism; feminist theory; political liberalism; gender equality; nature and culture;public and private.

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DIPLOMACY AND DOMESTIC POLITICS: THE LOGIC OF THE TWO-LEVEL GAMES

Robert Putnam

Domestic politics and international relations are often inextricably entangled, but existing theories(particularly state-centric theories) do not adequately account for these linkages. When nationalleaders must win ratification (formal or informal) from their constituents for an international agreement,their negotiating behavior reflects the simultaneous imperatives of both a domestic political game

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corps par rapport à leur propre sexualité et capacité de reproduction, soit dans les situations qui fontréference à la liberté pour consentir la prostitution, location de l’utérus, etc.

MOTS-CLES: John Locke; liberté; propriété; libéralisme; théorie féministe.

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LES FÉMINISTES ET LA DIVERSITÉ DES ALTERNATIVES RÉPUBLICAINES

Carla Cecília Rodrigues Almeida et José Antônio Martins

L’article analyse l’approche critique de quelques féministes au républicanisme et explore l’hypothèsede que tel approche exprime des points de contact importants avec la branche républicaine populaire.En se basant sur des auteurs classiques et en adoptant un critère spécifique pour approcher ladiversité constitutive du républicanisme, nous définissons les contours de la branche et de celle qui luisert de contrepoint : la branche aristocratique. Notre hypothèse s’est basée d’un côté, sur l’analysedes critiques féministes à quelques formulations courantes qui, en certaine mesure, partagent l’idéalrépublicain de que la société contemporaine a besoin de créer un nouveau sens pour la vie publique.De l’autre côté, elle est basée sur les propositions qu’elles mêmes élaborent pour s’approprier del’idéal. Cette analyse nous permet de suggérer que les préocupations qui caractérisent la brancherépublicaine populaire, offrent des sources plus prometeuses pour qu’on puisse combiner l’idéal derevitalisation de l’esphère publique avec les éxigences de justice. A partir de là, nous mettons enévidence les contributions que les féministes ont apporté à la théorie démocratique.

MOTS-CLES: théorie féministe; républicanisme populaire; républicanisme aristocratique; théoriedémocratique.

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LIBÉRALISME ET FÉMINISME: ÉGALITÉ DE GENRE EN CAROLE PATEMAN ETMARTHA NUSSBAUM

Ingrid Cyfer

L’article discute la relation entre le libéralisme et le féminisme à partir de deux auteurs féministes,Carole Pateman et Martha Nussbaum. Il s’agit d’une question importante pour le féminisme, pourlequel ce sont des problèmes fondamentaux associés aux dichotomies publiques et privés, culture etnature – héritées du libéralisme. Dans ce sens, nous discutons les positions de Carole Pateman etMartha Nussbaum qui font réference à ces problèmes. Le choix des auteurs est due au fait quetoutes les deux partagent beaucoup d’hypothèses et des conclusions, et aussi car leurs différencesse situent principalement autour de problèmes où le féminisme est ajouté au libéralisme politique.Ainsi, faire une discussion entre leurs positions, minimise le risque de que l’analyse du débat n’aillepas plus loin que les critiques lesquelles plusieurs théories dirigent au libéralisme, pouvant fonctionner,enfin, comme une bonne porte d’entrée pour quelques uns des points les plus controversés de lathéorie féministe contemporaine. Nussbaum et Pateman semblent coïncider par rapport à la conceptionde l’égalité de genre. La critique que toutes les deux dirigent à la relation entre la nature et la cultureet au formalisme de l’égalité abstraite, rend évident que aucune des deux a l’intention d’attribuer lepouvoir ou l’oppression de la femme aux objectifs de la nature. Chez toutes les deux, il est très clairque ce que c’est consideré pertinent dans l’organization d’une société juste par rapport au genre,c’est la forme dont une société valorise les différences biologiques, tout comme les implications decette valorisation dans la distribution de biens sociaux. Mais, Nussbaum, croit que cette équation estpossible dans la théorie libérale, tandis que celle-ci doit être soumise à des transformations quiéliminent des déformations théoriques qui suivent le conservatisme des premiers philosophes libéraux.

MOTS-CLES: féminisme, théorie féministe; libéralisme politique; égalité de genre; nature et culture;publique; privé.

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