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CURSO DE LICENCIATURA EM GEOGRAFIA LIANA MACABU DE SOUSA SOARES IDENTIDADE CULTURAL E GLOBALIZAÇÃO: INFLUÊNCIAS SOBRE A CIDADE Campos dos Goytacazes - RJ 2007

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CURSO DE LICENCIATURA EM GEOGRAFIA

LIANA MACABU DE SOUSA SOARES

IDENTIDADE CULTURAL E GLOBALIZAÇÃO: INFLUÊNCIAS SOBRE A CIDADE

Campos dos Goytacazes - RJ

2007

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LIANA MACABU DE SOUSA SOARES

IDENTIDADE CULTURAL E GLOBALIZAÇÃO: INFLUÊNCIAS SOBRE A CIDADE

Trabalho monográfico apresentado ao Centro Federal de Educação Tecnológica de Campos como requisito parcial para a conclusão do curso de Licenciatura em Geografia. Orientador: Prof. Celso Vicente Mussa Tavares

Campos dos Goytacazes – RJ

2007

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Este trabalho, nos termos da Legislação que resguarda os direitos autorais, é considerado Institucional. É permitida a transcrição parcial de trechos do trabalho ou menção ao mesmo para comentários e citações desde que sem finalidade comercial e que seja feita referência bibliográfica completa. Os conceitos expressos neste trabalho são de responsabilidade da autora.

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LIANA MACABU DE SOUSA SOARES

IDENTIDADE CULTURAL E GLOBALIZAÇÃO: INFLUÊNCIAS SOBRE A CIDADE

Trabalho monográfico apresentado ao Centro Federal de Educação Tecnológica de Campos como requisito parcial para a conclusão do curso de Licenciatura em Geografia.

Aprovada em: Banca Avaliadora:

---------------------------------------------------------------------------------------------------------- Prof. Celso Vicente Mussa Tavares (orientador)

Mestre em Geografia/ UFRJ Centro Federal de Educação Tecnológica de Campos – CEFET Campos

---------------------------------------------------------------------------------------------------------- Profª Ana Beatriz Machado Alves Especialista em História - FAFIC

Centro Federal de Educação Tecnológica de Campos – CEFET Campos

---------------------------------------------------------------------------------------------------------- Profª Rita Maria de Abreu Maia

Doutora em Línguas Vernáculas - UFRJ CEFET Campos/Universidade Estácio de Sá

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Dedico este trabalho aos meus pais que me apoiaram durante toda esta árdua trajetória de estudos.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço a Deus que me guiou e iluminou neste caminho de grandes alegrias, mas

também de muitos medos e incertezas.

À minha família, um agradecimento especial por estarem sempre presentes na minha

vida me apoiando e compreendendo minhas angústias e meus momentos de nervosismo.

Ao meu orientador, muito obrigada pela paciência com que me acompanhou e pelo

incentivo, que me fez ultrapassar os obstáculos desta caminhada.

Agradeço também a professora Rita Maia que me iniciou na pesquisa científica

quando tive a oportunidade de ser bolsista no projeto “A metáfora do rio no percurso da

Literatura Brasileira” que me fez despertar a importância da pesquisa no trabalho acadêmico.

Aos meus professores que contribuíram neste processo de aprendizado durante todo o

período da graduação e os que direta ou indiretamente contribuíram para a realização desta

monografia.

À banca, formada pelos professores, Celso Mussa, Ana Beatriz Machado e Rita Maia,

que prontamente aceitaram o convite de analisar e contribuir com esta pesquisa.

À professora Maria Inês Albernaz que colaborou na correção do abstract desta

monografia.

Aos meus colegas, sempre presentes que fizeram com que esta caminhada fosse mais

proveitosa e menos árida. Obrigada pelo carinho, e aos que acompanharam mais diretamente a

elaboração desta monografia obrigada pelas sugestões.

Aos meus queridos amigos, pelo apoio, compreensão e pela paciência, por estarem

sempre presentes, mesmo que não seja fisicamente, nos momentos de angústia e de alegria.

Obrigada pela atenção e pela amizade que me são tão caros.

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O território identitário não é apenas ritual e simbólico; é também o local de práticas ativas e atuais, por intermédio das quais se afirmam e vivem as identidades. Mathias Le Bossé

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RESUMO

A globalização é um fenômeno que exerce influência direta nas grandes cidades através dos fluxos globais, sejam eles de informação ou de pessoas. Tal fenômeno é discutido em diversos aspectos, como o econômico e o cultural. Propomos neste trabalho uma discussão ainda nova neste contexto a da construção de identidades culturais locais, pautada na relação existente entre o global e o local. O lugar de nossa referência são as cidades grandes, que se tornam nosso objeto de estudo por ser um espaço privilegiado de análise da influência dos fluxos globais sobre diversos aspectos, inclusive na temática trabalhada. Para uma melhor análise serão trabalhados três conceitos-chave: enraizamento, desenraizamento e reenraizamento, que irão permear toda a discussão. Este trabalho realiza-se como pesquisa teórica com referencial de diversos autores das Ciências Sociais, especialmente da Geografia. Ao final, apresentam-se alguns exemplos empíricos de como as pessoas se identificam ou não com os seus lugares. Palavras-chave: Globalização. Identidade Cultural. Enraizamento. Desenraizamento. Cidade

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ABSTRACT

The globalization is a phenomenon which has a direct influence in the large cities through the global flows, which may be of information or of people. This phenomenon has been discussed in different aspects, such as the economic and cultural ones. We propose, in this work, a new discussion about the construction of the local cultural identities in this context, based on the existing relation between the global and the local. The place of our reference are the large cities, which become our study object for being a privileged space of analysis of the global flows influence on different aspects, including our subject matter. For a better analysis, three key concepts will be used: “enraizamento”, “desenraizamento” and “reenraizamento”, which will be present in the whole discussion. This work is based on a theoretical research concerning different Social Sciences, especially Geography. In the end, some empirical examples are presented showing how people become identified or not with their places. Key-words: Globalization. Cultural identity. “Enraizamento”. “Desenraizamento”. City

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 09

1) PROPOSTA DE TRABALHO ................................................................................. 11 1.1) A questão da identidade ........................................................................................... 11 1.2) Enraizamento ou territorialização? ........................................................................ 12 1.3) O recorte espacial ..................................................................................................... 15 1.4) O recorte temporal .................................................................................................... 17 2) A GLOBALIZAÇÃO, UM FENÔMENO IDENTITÁRIO? ................................ 20 2.1) O Global e o Local ..................................................................................................... 22 2.2) A Cidade ..................................................................................................................... 24 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 36

REFERÊNCIAS .................................................................................................................... 39

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INTRODUÇÃO

O presente trabalho monográfico busca discorrer acerca da temática das identidades

culturais e de seu processo de construção, focando no contexto da globalização. Para delimitar

tal temática a hipótese que pretendemos defender é a de que as identidades se constroem a

partir do sentimento de pertencimento ao lugar de origem, e que, com a globalização, as

culturas tendem a se misturar produzindo uma perda de identidade. Este fenômeno pode ser

melhor observada nas classes mais ricas da população de uma cidade grande, com a

possibilidade de ocorrer, paralelamente, um movimento contrário de busca de raízes ou

identidades perdidas. A temática das identidades culturais não é muito desenvolvida numa

perspectiva geográfica, porém se mostra valioso quando pretendemos entender o contexto

global em que vivemos desde a década de 1970. O conceito de identidade não se restringe

apenas a uma experiência antropológica ou sociológica, como muitos podem pensar, mas é

campo de estudo geográfico já que é preciso um lugar de referência para ocorrer o processo

de construção de uma identidade. Nossa proposta se atém a tratar da identidade enquanto

sentimento de pertencimento ao lugar no qual vivemos ou de nossa origem.

O interesse por tal temática surge da necessidade de demonstrar que o ser humano

necessita de raízes culturais, principalmente num contexto de globalização, no qual há uma

tendência à homogeneização de idéias e culturas que pode levar a uma perda das raízes. Faz-

se necessário pensar em que medida somos enraizados culturalmente em nossa cidade e até

que ponto vivenciamos um processo não muito perceptível de desenraizamento. E podemos

pensar ainda, se pode ou não ocorrer paralelamente à perda de raízes uma retomada dos

valores e costumes próprios de seu lugar.

Para melhor análise da temática e defesa da hipótese apresentada, elegemos como

objeto de estudo as grandes cidades, especialmente as brasileiras, que se tornam espaço

privilegiado da expressão identitária. Dentro deste recorte espacial analisaremos o contexto

global em que vivemos e a influência que as identidades culturais sofrem através de tal

fenômeno. Os conceitos-chave deste trabalho serão enraizamento, desenraizamento e

reenraizamento.

Esta monografia tem como objetivo principal propor um olhar cultural ao analisar o

fenômeno da globalização, trazendo à tona a construção de identidades culturais locais.

Objetivamos, ainda, oferecer ao leitor uma discussão acerca da realidade vivenciada por ele já

que tratamos da identidade dos indivíduos com a sua cidade. Fazemos isso para que

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entendamos em que medida estamos incluídos neste processo global, seja através da Internet,

da televisão ou do consumo de bens importados que pouco ou nada condizem com a nossa

maneira de viver.

Esta abordagem é um convite para que reflitamos em que proporção fazemos parte do

contexto local de nossas cidades e o quanto nos identificamos com elas. Se nos sentimos

pertencentes ou não ao contexto sócio-cultural em que vivemos, principalmente se formos

moradores de uma cidade grande.

Nesta introdução apresentamos o tema a ser trabalhado, a hipótese a ser defendida, a

importância de se observar essa temática numa perspectiva geográfica, a delimitação espacial

e temporal, o objetivo do trabalho monográfico e a reflexão que pretendemos suscitar nos

leitores e as partes que compõem esta monografia.

A primeira parte deste trabalho monográfico, o qual denominamos “Proposta de

Trabalho”, explicitará os conceitos com os quais pretendemos desenvolver a temática

escolhida traçando o fio condutor desta monografia, delimitando a temática, os conceitos

básicos, o objeto de estudo e o recorte temporal. Utilizaremos conceitos geográficos e outros

que tomamos de empréstimo da Sociologia e da Antropologia.

Na segunda parte, denominada “A Globalização enquanto fenômeno identitário”,

abordaremos a influência do fenômeno da globalização no processo de construção de

identidades nas cidades grandes. Neste capítulo desenvolveremos a temática utilizando os

conceitos apresentados no capítulo anterior, fazendo uma análise de como o processo de

globalização influencia as grandes cidades principalmente do ponto de vista das identidades

culturais. Para uma melhor análise, ao final do capítulo, traremos alguns exemplos empíricos

de como ocorre a construção de identidades culturais locais num contexto de globalização.

A parte final trará uma síntese da análise realizada propondo não apenas uma reflexão

acerca do tema apresentado, mas também um alargamento desta discussão.

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CAPÍTULO I – Proposta de Trabalho

1.1 – A Questão da Identidade A construção de identidades se dá a partir do encontro com o outro. É preciso que haja

uma relação entre grupos diversos para que as pessoas se identifiquem como pertencentes a

um grupo e não a outro, a certo lugar e não a outro. É a partir deste encontro que nos

entendemos como pertencentes a determinado grupo ou lugar, ao descobrirmos as diferenças,

as identidades se revelam mais claramente. Como diz Stuart Hall “... as identidades são

construídas por meio da diferença e não fora dela.” (2003, p. 110). Essas diferenças podem se

revelar de diversas maneiras, podem ser sociais, político-ideológicas, econômicas, mas a que

serve de base para nosso estudo é a perspectiva cultural, a partir da qual nos sentimos

pertencentes a um certo lugar ou grupo social por termos gostos, tradições e costumes

semelhantes. Para exemplificar, pensemos em um indivíduo originário da zona rural que

migra para a zona urbana, percebe muito bem a realidade que surge a partir do encontro dele

(zona rural) e o outro (zona urbana) e a conseqüente identificação de seu pertencimento ao

lugar de origem. Contudo, às vezes, não é necessária uma mobilidade espacial para se obter

esta percepção. Os moradores de uma cidade grande, por exemplo, especialmente os das

classes mais elevadas, verificam as diferenças culturais no seu dia-a-dia por conviverem com

pessoas de outras cidades, estados e até de outros países. “A cidade é o espaço da diversidade

criativa, lugar onde a comunicação entre pessoas de diferentes procedências, perspectivas,

idades, gêneros, etnias e classes sociais geram os instrumentos da criatividade humana”

(2004, p.3), e, portanto, se torna um lugar privilegiado para o encontro com o outro porque

por ela transitam pessoas de vários lugares, cada qual com sua cultura e suas tradições.

O encontro da alteridade é uma experiência que nos coloca em teste. Dele pode nascer a tentação de reduzir a diferença à força, mas é deste encontro que é gerado o desafio da comunicação, com um empenho constante e renovado. (BAUMAN, 1999 apud PROCHET, 2005, p. 2).

As pessoas que vivem em uma cidade, ou seja, no espaço urbano, criam uma maneira

própria de lidar com aquele lugar, uma forma específica de se relacionar com os semelhantes

e com os diferentes, uma cultura e identidade urbanas manifestadas por costumes e tradições

próprios. Desta maneira podemos compreender a identidade segundo a perspectiva de

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Castells, enquanto “... fonte de significado e experiência de um povo” (1999, p. 22), que deve

ser contextualizada a partir de “um espaço e tempo de referência” (HAESBAERT, 2001, p.

5). Podemos dizer então que as identidades são construídas a partir do enraizamento do

indivíduo com o lugar de origem ou no qual estabeleceu sua vida, suas relações profissionais

e pessoais.

1.2 – Enraizamento ou territorialização?

O conceito de enraizamento é pouco difundido na literatura geográfica, porém é de

grande relevância para o estudo das identidades, principalmente na Geografia, por trazer à

tona uma metáfora interessante, a da raiz. A raiz que nos liga ao chão, ao lugar. Segundo

Ortiz, o enraizamento ou a “busca das raízes” é o “ponto de inflexão entre a identidade

idealizada e o solo no qual ela se introduz”. A idéia de raiz “revela uma relação social colada

ao terreno no qual viceja.” (2000, p. 58). Porém, o mesmo autor ressalta outro aspecto

importante desta metáfora, que contraria uma característica importante da modernidade (ou

pós-modernidade, como queiram), a fluidez. Segundo ele “Toda raiz requer um solo para se

fixar. Ela é o contrário da fluidez. O enraizamento é fruto da existência de uma cultura cujo

território encontra-se cartografado.” (2000, p.69).

Outros autores com uma concepção mais psicológica e filosófica também destacam a

importância da “raiz” para o ser humano na busca por sua identidade. Segundo a filósofa

francesa Simone Weil:

O enraizamento é talvez a necessidade mais importante e mais desconhecida da alma humana. É uma das mais difíceis de definir. Um ser humano tem raiz por sua participação real, ativa e natural na existência de uma coletividade que conserva vivos certos tesouros do passado e certos pressentimentos de futuro (...). Cada ser humano precisa ter múltiplas raízes. Precisa receber a quase totalidade de sua vida moral, intelectual, espiritual, por intermédio dos meios dos quais faz parte naturalmente. (WEIL, 2001, p. 43 apud OLIVEIRA:BARTHOLO, 2006, p.3).

Este conceito é bastante empregado em análises psicológicas e psicanalíticas. Dentro

desta mesma concepção de raiz, a psicanalista Neyza Prochet nos diz que “um homem sem

raízes é alguém desterrado de si mesmo.” (PROCHET, 2005, p. 7).

De acordo com estas vertentes aqui apresentadas sobre o conceito de enraizamento, a

análise que fazemos é que este conceito tem um caráter bastante subjetivo e emocional. Como

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falar de identidade com o seu lugar sem falar em emoção? Por isso entendemos que a

utilização deste conceito se torna imprescindível em um trabalho que se propõe a discutir a

construção de identidades locais.

Entretanto, o conceito de enraizamento por si só não explica o fenômeno identitário

num contexto de globalização, por isso torna-se necessária a utilização do conceito de

desenraizamento, que como podemos observar, semanticamente, significa exatamente o

oposto do termo do qual deriva.

Se enraizamento nos traz a idéia de fixidez, desenraizamento nos leva à sensação de

mobilidade, flexibilidade. Retomando a metáfora da raiz, poderíamos dizer que a raiz foi

retirada do solo. Segundo Ortiz, “o desenraizamento é visto, portanto, como uma perda, um

perigo, uma ameaça.” (2000, p. 58).

Paralelamente a essa sensação de perda e mobilidade subjacente à idéia de

desenraizamento, ocorre um outro fenômeno ainda pouco estudado pelas Ciências Sociais

(incluindo a Geografia), que é o fenômeno do re-enraizamento. Neste processo ocorreria a

retomada da raiz, ou seja, um retorno às origens depois de um processo desenraizante, o

indivíduo retoma as suas raízes reconhecendo o valor da cultura do seu lugar.

Poderíamos utilizar também outros conceitos mais desenvolvidos na literatura

geográfica e que igualmente tratam do tema proposto, como é o caso dos conceitos que

explicitaremos a seguir. São eles territorialização, desterritorialização e re-territorialização.

Para compreendermos estes três conceitos estudados pela Geografia, teremos primeiro

que apreender o que é território. Segundo Haesbaert, geógrafo estudioso destes três

fenômenos acima referidos: “Território, assim, em qualquer acepção, tem a ver com poder,

mas não apenas ao tradicional ‘poder político’. Ele diz respeito tanto ao poder no sentido mais

concreto, de dominação, quanto ao poder no sentido mais simbólico, de apropriação.” (2005,

p.1).

Entendendo território como apropriação ou dominação, passamos a uma

territorialidade que lhe dá outro sentido.

A territorialidade, como um componente do poder, não é apenas um meio para criar e manter a ordem, mas é uma estratégia para criar e manter grande parte do contexto geográfico através do qual nós experimentamos o mundo e o dotamos de significado. (SACK, 1986, p.219 apud HAESBAERT, 2005, p.3).

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Retomando Haesbaert, compreendemos então que: “(...) todo território é, ao mesmo

tempo e obrigatoriamente, em diferentes combinações, funcional e simbólico, pois exercemos

domínio sobre o espaço tanto para realizar ‘funções’ quanto para produzir ‘significados’”.

(2005, p.3).

O conceito de desterritorialização tem sido bastante estudado na Geografia dos anos

90 e 2000, e foi primeiramente cunhado pelo filósofo Felix Guattari, tendo sido amplamente

discutido pelas Ciências Sociais. No âmbito da Geografia brasileira, o geógrafo Rogério

Haesbaert é o grande estudioso deste conceito, segundo a Wikipédia, a enciclopédia livre da

Internet:

Haesbaert (em “O Mito da Desterritorialização”) defende que desterritorialização seja um termo utilizado não para o simples aumento da mobilidade ou para fenômenos como a hibridização cultural, mas para a precarização territorial dos grupos subalternos, aqueles que vivenciam efetivamente (ao contrário dos grupos hegemônicos) uma perda de controle físico e de referências simbólicas sobre/a partir de seus territórios.

Como podemos observar, para Haesbaert a desterritorialização se transformou em um

mito e segundo ele, pode ser entendida a partir de várias vertentes, quais sejam, a perspectiva

econômica, a cartográfica, a de domínio da imaterialidade, a do esvaziamento das fronteiras e

a cultural. Numa perspectiva culturalista (que é a que nos interessa neste estudo), a

desterritorialização, se percebida a partir do entendimento do território como fonte de

identificação cultural, muda seu significado e se transforma em um “não-lugar”. Nas palavras

de Haesbaert:

Estes ‘não-territórios’, culturalmente falando, perdem o sentido/o valor de espaços aglutinadores de identidades, na medida em que as pessoas não mais se identificam simbólica e afetivamente com os lugares em que vivem, ou se identificam com vários deles ao mesmo tempo e podem mudar de referência espacial-identitária com relativa facilidade. (2002, p.131).

Segundo o mesmo autor, “mais do que a desterritorialização desenraizadora,

manifesta-se um processo de reterritorialização espacialmente descontínuo e extremamente

complexo”. (HAESBAERT, 1994, p.214 apud HAESBAERT, 2005, p.1). Outro autor que nos

fala sobre o fenômeno da reterritorialização é o sociólogo Renato Ortiz, para quem “(...) toda

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desterritorialização é acompanhada de uma reterritorialização”, acrescentando que “a

desterritorialização tem a virtude de afastar o espaço do meio físico que o aprisionava e a

reterritorialização o atualiza como uma dimensão social. Ela o localiza.” (2000, pp. 64 e 65).

Portanto, é necessário compreender que mesmo havendo uma perda da relação simbólica com

o território (desterritorialização) institui-se um retorno, uma nova apropriação do território,

uma re-territorialização que se segue.

Apesar de os conceitos de territorialização, desterritorialização e re-territorialização

apresentarem uma concepção de apropriação simbólica, e por isso serem utilizados também

na compreensão das identidades, não julgamos os mais apropriados para desenvolver este

trabalho por entendermos que tais conceitos não destacam a participação do Homem no

processo identitário como os conceitos de enraizamento, desenraizamento e re-enraizamento.

No nosso entendimento, a construção de identidades tem um caráter extremamente emotivo,

por isso optamos por trabalhar com a metáfora da raiz que se aproxima mais das relações

humanas e não apenas das espaciais.

1.3 – O recorte espacial

O conceito de lugar é muito utilizado na Geografia, tendo sido estudado,

especialmente, por duas vertentes: a Geografia Humanística e a Geografia Crítica.

A Geografia Humanística, segundo Leite (1998), caracteriza-se pela valorização das

relações de afetividade desenvolvida pelos indivíduos em relação ao seu ambiente. Para os

seguidores de tal corrente, o lugar é um produto da experiência humana, como veremos em

alguns autores. Para Relph, “(...) lugar significa muito mais que o sentido geográfico de

localização. Não se refere a objetos e atributos das localizações, mas a tipos de experiência e

envolvimento com o mundo, a necessidade de raízes e segurança” (1979 apud LEITE, 1998,

p.10). Para Tuan, “lugar é um centro de significados construído pela experiência” (1975 apud

LEITE, 1998, p.10). E para Buttimer, “lugar é o somatório das dimensões simbólicas,

emocionais, culturais, políticas e biológicas”. (1985b, p. 228 apud LEITE, 1998, p.10).

Já para a Geografia Crítica, a concepção de lugar diz respeito à sua compreensão

enquanto expressão geográfica da singularidade, descentrada, universalista e objetiva.

Segundo Leite:

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(...) trata-se na realidade de uma visão na qual o lugar é considerado tanto como produto de uma dinâmica que é única, ou seja, resultante de características históricas e culturais intrínsecas ao seu processo de formação, quanto como uma expressão da globalidade. (LEITE, 1998, p. 15).

Para Santos, “quanto mais os lugares se mundializam, mais se tornam singulares e

específicos, isto é, únicos”. (1988, p. 34 apud LEITE, 1998, p. 18).

O lugar é o “espaço” no qual vivemos e vivenciamos nossa identidade, é lá que nos

encontramos com o outro, podendo assim definirmos e redefinirmos nossa identidade. É no

lugar que nós moramos, que estabelecemos nossas relações sociais, profissionais e culturais.

Esta escala de análise é a mais próxima da nossa realidade cotidiana, “porque participa

inteiramente da vida dos indivíduos e dos grupos, o lugar influencia, até mesmo constrói,

tanto subjetivamente como objetivamente, identidades culturais e sociais”. (LE BOSSÉ, 2004,

p.166).

A utilização do conceito de lugar, portanto, se torna imprescindível neste trabalho

monográfico, por nos resgatar o sentimento de pertencimento e, principalmente, porque o

nosso objeto de estudo é a cidade, o lugar por excelência, o nosso lar com o qual

identificamos a nós mesmos e o outro. Para Dematteis cidade é

“um conjunto de nós pertencente a diferentes redes”, “um conjunto de sujeitos fisicamente coexistentes, mas que pertencem a redes de organização diferentes, e cujos interesses podem divergir à escala local (...). Assim, o espaço físico de cada cidade seria a sede de vários ‘nós’ pertencendo a sistemas diferentes, cada um com formas de enraizamento local (relações ‘verticais’) distintas. (1992, p.2 apud HAESBAERT, 2005, p.182).

Já segundo Gomes, “A cidade converte-se em depositária de todas as paixões. As

diversas linguagens e aspirações artísticas e ideológicas medem-se por sua relação com o

metropolitano.” (1994, p. 35). Segundo Milton Santos “(...) a cidade grande é um enorme

espaço banal, o mais significativo dos lugares. Todos os capitais, todos os trabalhos, todas as

técnicas e formas de organização podem aí se instalar, conviver, prosperar.” (2004, p.322).

Por isso entendemos que para estudar a construção de identidades através do enraizamento do

indivíduo com o seu lugar é preciso estudar a cidade, principalmente as de grande porte, pois

a cidade é o lugar da diversidade, é nela que se encontram diversas culturas e nos é permitido

interagir com o diferente, criar e recriar nossa identidade.

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1.4 – O recorte temporal

Neste trabalho monográfico, nos propusemos a analisar a construção de identidades

locais no contexto de um mundo globalizado, para isso fizemos um recorte temporal que vai

dos anos 1970 até os dias atuais. Há uma polêmica entre os cientistas sociais sobre quando

teria se iniciado o fenômeno da globalização, alguns dizem que foi no século XVI com a

intensificação das grandes navegações européias; outros a datam no século XIX, com o

processo da Revolução Industrial, e há os que entendem que a globalização surge a partir da

década de 70 do século XX, quando da emergência do que chamamos mundo técnico-

científico-informacional. Tomaremos como base de nosso trabalho monográfico o

posicionamento defendido pelos adeptos desta última vertente.

O que denominamos de meio técnico-científico-informal é um conceito lapidado pelo

geógrafo brasileiro Milton Santos, que designa o contexto atual do meio geográfico o qual

tem seu início após a Segunda Guerra Mundial e sua afirmação na década de 70. Este período

se distingue do anterior, em que o meio geográfico é entendido como meio técnico-científico,

revelando uma profunda interação da ciência e da técnica.

No atual período técnico-científico-informal, os objetos técnicos (utilizando a

expressão de Santos) são ao mesmo tempo técnicos e informacionais.

(...) a informação não apenas está presente nas coisas, nos objetos técnicos, que formam o espaço, como ela é necessária à ação realizada sobre as coisas. A informação é o vetor fundamental do processo social e os territórios são, desse modo, equipados para facilitar a sua circulação. (SANTOS, 2004, p.239).

Para Santos, os espaços passam a atender aos interesses dos atores hegemônicos sejam

eles da economia, da cultura ou da política sendo incorporados pelas correntes mundiais.

Segundo ele, “o meio técnico-científico-informacional é a cara geográfica da globalização.”

(2004, p. 239).

A necessidade de desenvolver um estudo acerca da identidade cultural pautado no

fenômeno da globalização advém do entendimento de que este não é apenas um fenômeno

econômico, como é mais difundido, mas é também cultural. Nossa intenção não é a de

dissociar essas duas vertentes do fenômeno, pois elas estão articuladas, inclusive porque a

cultura cada vez mais tem se tornado uma cultura de consumo, ela tende a virar uma

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mercadoria no grande mercado global, nas palavras de Stuart Hall, “foi a difusão do

consumismo, seja como realidade, seja como sonho, que contribuiu para esse efeito de

‘supermercado cultural’”. (2003b, p.75). Além disso, a globalização não engloba apenas estas

duas vertentes, já que também podemos analisá-la de acordo com as vertentes, política e

social, porém se torna necessário entender que todas essas perspectivas fazem parte da

totalidade do complexo contexto de um mundo globalizado. Nenhuma das perspectivas

mencionadas pode ser analisada desarticulada da perspectiva econômica, pois esta perpassa

todas as outras, não podemos esquecer que a principal característica do fenômeno global é o

fluxo de capitais e mercadorias. “A economia da sociedade global envolve também aspectos

políticos, históricos, geográficos, demográficos, culturais e outros. A cultura da globalização

passa pela cultura de massa, indústria cultural, mídia impressa e eletrônica, religiões e

línguas.” (IANNI, 1994).

A globalização implica uma nova configuração espacial da economia mundial, como resultado geral de velhos e novos elementos de internacionalização e integração. Mas se expressa não somente em termos de maiores laços e interações internacionais, como também na difusão de padrões transnacionais de organização econômica e social, consumo, vida ou pensamento, que resultam do jogo das pressões competitivas do mercado, das experiências políticas ou administrativas, da amplitude das comunicações ou da similitude de situações e problemas impostos pelas novas condições internacionais de produção e intercâmbio. As principais transformações acarretadas pela globalização situam-se no âmbito da organização econômica, das relações sociais, dos padrões de vida e cultura, das transformações do Estado e da política. (VIEIRA, 1997, pp. 73-74).

Na medida em que se globalizam sistemas econômicos, globalizam-se também

costumes, sejam eles gastronômicos, de vestuário ou de outro tipo.

As sociedades se abrem para a importação e exportação de bens materiais, que passam de um país para outro, e também para a circulação de mensagens co-produzidas em vários países, expressando, no plano do simbólico, processos de cooperação e intercâmbio. Por exemplo, músicas que fundem tradições outrora distantes e filmes produzidos com capitais, atores e cenários multinacionais. (...) Até aquilo que eventualmente persiste da cultura brasileira ou mexicana numa telenovela, da francesa num perfume, da japonesa num televisor, é integrado em discursos e práticas que podemos ver multiplicados em sessenta ou cem sociedades. A época globalizada é esta em que, além de nos relacionarmos efetivamente com muitas sociedades,

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podemos situar nossa fantasia em múltiplos cenários ao mesmo tempo. (CANCLINI, 2003, p.30).

Observamos que a globalização tende à homogeneização do pensamento e das

culturas, do estilo de vida. Segundo Ramalho Filho:

Tal homogeneização cultural, põe em risco a identidade e o simbolismo do patrimônio cultural local, regional e nacional, misturando-lhes, ou mesmo superpondo-lhes concepções e valores de uma cultura mundial, decretando a morte da tradição, provocando segregações e frustrações sociais e, graves conflitos entre classes sociais e entre o local e o universal. (2002, p.3).

Na tentativa de compreender como as relações econômicas e culturais, influenciadas

pelo processo global, se difundem na sociedade brasileira no contexto de nossas cidades, o

recorte temporal feito com base no que entendemos como período em que se inicia a

globalização é o que vai permear este trabalho. Para que reflitamos sobre as conseqüências de

um mundo global e as relações que estabelecemos com ele culturalmente.

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CAPÍTULO II - A globalização, um fenômeno identitário?

Entendendo que a construção de identidades sobrevém do encontro com o outro, do

contato com a diferença e que é preciso um local e um período de referência, podemos

constatar a influência da globalização neste contexto.

A globalização intensifica o fluxo de pessoas e informações, viabiliza o contato entre

as diferentes culturas. Não é preciso sair de casa para conhecer novas pessoas, lugares e

culturas. Na chamada sociedade de informação, as identidades estão sendo relativizadas e

fragmentadas. Utilizando-se de uma metáfora teatral, Costa analisa a globalização, dizendo:

Os objetos de cena foram deslocados, a iluminação ganhou novas cores e ângulos nunca antes tentados e, principalmente, mudaram os atores, mudou o público e as fronteiras que os tinha mantido, por muito tempo, separados, definíveis e facilmente classificáveis. (2002, p.1).

Partindo da idéia de que a (re)construção da identidade ocorre por meio do contato

com a diferença, com a alteridade, podemos definir várias faces para esse “outro”. Ele é o

migrante ou o turista ou apenas alguém conectado aos fluxos de informação globais. Como

nosso trabalho se atém a identidades culturais de indivíduos de cidades grandes, em especial

as brasileiras, buscamos verificar o encontro com a alteridade dentro delas. Tal encontro pode

acontecer de diversas maneiras, seja através do contato com o migrante ou com o turista (que

representaria o fluxo de pessoas), ou do contato com a tecnologia das telecomunicações (fluxo

de informações). O fluxo global que mais nos interessa neste trabalho é o que não necessita de

deslocamento, por gerar trocas por meio da cultura em suas diversas manifestações (na

música, na moda, na culinária etc). Este fluxo é transmitido para as pessoas através da mídia

(TV, rádio, Internet) normalmente denominado de fluxo de informações, contudo

interessando-nos apenas as informações de cunho cultural, por isso resolvemos denominá-lo

de fluxo cultural.

O fluxo cultural influencia no processo identitário tornando o espacialmente distante

em próximo e muitas vezes distanciando o espacialmente próximo. Ou seja, a cultura local é

muitas vezes substituída ou influenciada pela cultura de outros estados ou países. Ocorre

assim, um desenraizamento do indivíduo que não se identifica com a cultura de seu lugar, mas

com a cultura do outro. Esse fluxo influencia de maneira mais direta os indivíduos de classes

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mais altas das grandes cidades, pois são eles que têm um acesso maior às diversas formas de

mídia proporcionadas pelo avanço tecnológico. É o que observamos quando Vieira expõe a

idéia de Anthony Giddens sobre a globalização ao dizer que:

A globalização provoca um “desencaixe”, um desenraizamento de certos segmentos sociais de uma nação, afastando-os dos grupos mais pobres que estão fora do mercado e interligando-os a outros segmentos sociais situados em outros países, criando, assim, um verdadeiro circuito mundial. Os ricos de São Paulo ou Rio de Janeiro estão mais próximos dos ricos de Nova York ou Paris do que de seus conterrâneos pobres que moram na periferia ou nas favelas de suas cidades. (VIEIRA, 1997, p.99).

Isso ocorre porque, como nos lembra Sene:

(...) a globalização é um processo temporal e espacialmente desigual. Não são todos os lugares nem todas as pessoas que fazem parte do espaço de fluxos. Os fluxos hegemônicos se dão em redes e há enormes porções do espaço geográfico mundial à margem deles. (2004, p.133).

Outro aspecto importante da globalização que influencia na (re)construção identitária é

a chamada compressão espaço-tempo, que altera os referenciais de tempo e espaço

necessários no processo de construção identitária. A referida expressão foi cunhada pelo

geógrafo David Harvey. Nas palavras dele,

Pretendo indicar com essa expressão processos que revolucionam as qualidades objetivas do espaço e do tempo a ponto de nos forçarem a alterar, às vezes radicalmente, o modo como representamos o mundo para nós mesmos. Uso a palavra “compressão” por haver fortes indícios de que a história do capitalismo tem se caracterizado pela aceleração do ritmo da vida, ao mesmo tempo em que venceu as barreiras espaciais em tal grau que por vezes o mundo parece encolher sobre nós. (2004, p.219).

Em outro trecho de seu livro Condição Pós-moderna, Harvey faz uma referência mais

explícita acerca do impacto desse fenômeno global sobre a cultura, ao dizer:

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Desejo sugerir que temos vivido nas últimas duas décadas uma intensa fase de compressão do tempo-espaço que tem tido um impacto desorientado e disruptivo sobre as práticas político-econômicas, sobre o equilíbrio do poder de classe, bem como sobre a vida social e cultural. (2004, p.257).1

Assim o processo identitário tem sido modificado, nos deparamos com um indivíduo

que não está mais enraizado no lugar, que não se sente mais pertencente ao lugar em que vive.

Agora, seu sentido de pertencimento foi desconstruído pela influência dos fluxos globais.

Ao falar nesta transformação da percepção dos referenciais de tempo e espaço,

trazemos à tona a retomada que Liszt Vieira faz do sociólogo Alain Touraine, quando este

entende que a globalização está apoiada em quatro grandes transformações, sendo a primeira

delas a criação de uma sociedade informatizada “(...) com a difusão mundial de indústrias de

comunicação que modificam nossa experiência do tempo e do espaço, a natureza das cidades

e a relação entre culturas.” (VIEIRA, 1997, p.78).

A partir da percepção de que somos influenciados por fluxos globais, entendemos que

há assim uma mistura de idéias, comportamento, costumes e identidades proporcionada pela

globalização. Segundo Haesbaert, Stuart Hall em seu livro “Identidades culturais na pós-

modernidade”, defende que “as ‘identidades modernas’ estão sendo descentradas, deslocadas

e fragmentadas pela globalização em seus impactos sobre os referenciais modernos de sujeito,

tempo e espaço.” No entanto, o mesmo autor diz que “a globalização caminha paralelamente

ao refortalecimento de identidades locais.” (2001, p.6). Ou seja, para ele, ao mesmo tempo em

que a globalização promove o desenraizamento do indivíduo com relação a sua identidade

local, também ocasiona um enraizamento e até um re-enraizamento.

Torna-se importante neste momento ressaltar que os fluxos globais não influenciam as

pessoas numa escala global, mas na escala local. Como nos lembra Sene, “Ninguém vive na

escala do mundo nem da nação ou da região, todos vivemos no lugar. Pois é no lugar que se

instauram os fluxos da globalização.” (2004, p.136).

2.1 - O Global e o Local

Globalização é esse novo palco, onde fronteiras são destruídas e reconstruídas pelo toque sublime das novas luzes da comunicação e

1 As duas décadas referidas por Harvey seriam as décadas de 70 e 80 do século XX.

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informação, das redes virtuais e humanas que abrem novos fluxos e criam novos espaços, onde se enfrentam homogeneização e resistência cultural; hegemonias e identidades, o local e o global. (COSTA, 2002, p.1)

Torna-se importante neste momento falarmos sobre a relação existente entre as escalas

local e global. Podemos afirmar que o local contém o global e vice-versa. Por causa desta

relação direta entre as duas escalas (provocada pela globalização), alguns autores utilizam o

conceito de glocal para especificá-la. Santos nos diz que segundo Serres, (1990) “(...) nossa

relação com o mundo mudou. Antes, ela era local-local; agora ela é local-global (...)” (2004,

p.313), ou, como lembra Vieira, ao citar Boaventura de Sousa Santos, que faz uma

diferenciação entre localismo globalizado e globalismo localizado: localismo globalizado “se

refere à globalização bem sucedida de um fenômeno local como, por exemplo, a atividade de

uma empresa multinacional”. Alguns exemplos citados por Viera são: a transformação da

língua inglesa em língua franca e a globalização da música popular. Já globalismo localizado

“diz respeito ao impacto específico de práticas transnacionais sobre condições locais que se

desestruturam ou se reestruturam para atender aos imperativos transnacionais” (VIEIRA,

1997, p.73), exemplo disso é a influência de grandes empresas e corporações como o FMI

sobre o local. Esses dois fenômenos também podem ser entendidos sob a perspectiva das

identidades culturais por influenciarem as relações existentes no local fortalecendo os fluxos

globais e, portanto, a intercessão local-global.

Essa relação global-local, local-global, influenciada pelos fluxos da globalização, pode

tanto tender a uma homogeneização cultural como a uma individualização. Os lugares podem

perder seu sentido se os fluxos globais forem absorvidos inteiramente, é o que podemos

observar com relação ao consumo de comida de grandes redes multinacionais de lanchonete

que padronizam a alimentação, assim como ocorre com a moda, roupas feitas para um

determinado país com um contexto climático e social próprio que são utilizadas por pessoas

do resto do mundo. Esse processo de homogeneização acaba por gerar indivíduos

desenraizados que não mais se reconhecem nem se identificam com a cultura de seu lugar.

Porém, essa homogeneização é muito discutida e para alguns autores não existe de

verdade. Segundo Abascal: “Canclini argumenta que a pretensão de que a globalização

uniformiza o mundo e a sua produção cultural é um mito. Não há evidência empírica de que a

globalização achate a diversidade ou decomponha a ordem social.” (2005, p.4). Entendemos

que a globalização tem uma tendência homogeneizante que não pode ser descartada em nossa

análise

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Uma outra tendência também pode ser observada neste contexto, a da valorização da

diversidade cultural local. Na posição da Agenda 21 da Cultura, “A diversidade cultural é o

principal patrimônio da humanidade. É o produto de milênios de evolução, fruto da

contribuição coletiva de todos os povos, através de suas línguas, imaginários, tecnologias,

práticas e criações.” No Brasil, temos uma diversidade cultural muito grande que é valorizada

através do turismo, do reconhecimento das vocações locais, como, por exemplo, os bordados

do nordeste, a culinária indígena do norte, as influências européias do sul. Tudo formando um

imenso caldeirão cultural. Por mais que as nossas grandes cidades sofram com a influência do

fluxo cultural da globalização, também valorizam, nem que seja por considerar exótica, a

cultura de outras regiões do país e inclusive a sua própria, até porque, segundo Milton Santos,

“a uma maior globalidade, corresponde uma maior individualidade.” (2004, p.314). A

valorização da diversidade cultural e o processo de individualização podem gerar indivíduos

enraizados e re-enraizados com o seu lugar, um indivíduo que saiba reconhecer e valorizar

suas raízes.

A relação existente entre o global e o local é muito estreita, uma escala perpassa a

outra diretamente, afetando as pessoas que vivem no local e ao mesmo tempo estão

interconectadas com o mundo. Dessa forma, como diz Milton Santos, “cada lugar é, à sua

maneira, o mundo.” (2004, p. 34) e é “(...) ao mesmo tempo, objeto de uma razão global e de

uma razão local, convivendo dialeticamente.” (2004, p. 339). O mesmo autor conclui dizendo

que “os lugares são, pois, o mundo, que eles reproduzem de modos específicos, individuais,

diversos. Eles são singulares, mas são também globais, manifestações da totalidade-mundo,

da qual são formas particulares.” (2003, p.112).

2.2 – A Cidade

O lugar de nosso estudo é a cidade, especialmente a maior porte, ela que recebe todos

os fluxos da globalização e é por eles afetada. Falamos de cidade não como uma entidade, um

ser com vida própria, mas de uma cidade que é construída e vivenciada por pessoas que,

mesmo estando nela “fixadas”, participam dos fluxos de um mundo que se diz global,

entendendo que a cidade como receptora de tais fluxos também se torna parte do contexto

global. Sendo assim, “a cidade passou a configurar um nó num sistema em rede ou de fluxos.”

(ABASCAL, 2005, p.3).

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A cidade, sendo o lugar por excelência, participa ativamente das relações globais, está

inserida em nosso cotidiano como algo que nos é familiar e ao mesmo tempo nos proporciona

uma familiaridade com símbolos que não pertencem ao nosso cotidiano por receber

diretamente os fluxos globais. “Sistemas complexos de circulação, redes e fluxos coexistem

com os espaços cotidianos, estabelecendo a simultaneidade e a heterogeneidade da

experiência urbana contemporânea.” (ABASCAL, 2005, p.5).

Mesmo estando inserida neste contexto global, as cidades não perdem sua

particularidade, pois ela é uma construção coletiva e sua percepção depende do olhar de quem

faz e vive esta cidade, o que está relacionado, dentre outras coisas, ao seu grau de inclusão

social. Segundo Ítalo Calvino “[...] cada pessoa tem em mente uma cidade feita

exclusivamente de diferenças, uma cidade sem figuras e sem forma, preenchida pelas cidades

particulares” (CALVINO, 1990 apud SANTOS, p.1), portanto, “a relação que o morador

mantém com a cidade determina seu olhar sobre ela.” (SANTOS, p.1). Por exemplo, os

cidadãos das classes mais abastadas interconectados com a cultura global podem entender a

cidade apenas como o lugar da moradia não estabelecendo nenhum vínculo afetivo e de

identidade com ela.

Ao mesmo tempo em que a cidade se torna mais uma num contexto global, apenas um

referencial territorial, ela pode se tornar singular por alguma especificidade que oferece.

Segundo Milton Santos, “o fato, é que pela estruturação do seu território e do seu mercado –

uno e múltiplo -, as cidades atuais, sobretudo as metrópoles, abertas a todos os ventos do

mundo, não são menos individualizadas.” (SANTOS, 2004, p.319). Tudo depende da

maneira como olhamos a cidade, como ela se apresenta para nós. Tanto podemos entender

uma cidade grande como difusora de valores globais como podemos analisá-la como sendo

lugar privilegiado para se difundir a produção cultural local, haja vista que essas cidades

oferecem uma boa estrutura cultural com grandes teatros, cinemas, museus. O olhar vai

depender do referencial de valores que as pessoas têm, se procuram conhecer, defender e

difundir a cultura local ou se não se interessam e não entendem aquela cultura como sua, de

seu local. Na verdade depende de seu sentimento de pertencimento àquele lugar.

Em um depoimento publicado do livro “A metrópole e a arte” o urbanista Jaime

Lerner faz uma descrição bastante poética do que a cidade representa para ele, do seu olhar

sobre ela.

“A vida é a arte do encontro, embora haja tantos desencontros pela vida.”

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É obra do poeta Vinícius de Moraes esse conceito tão próximo do que a arte e a cidade representam para mim. A arte como expressão da busca. E a cidade como cenário do encontro. Ambas são o resultado concreto desse desejo de partilhar o sentimento de vida com os demais. Ambas existem para abrir caminhos, traçar um mapa para o encontro. Dos homens com os outros homens e do homem consigo mesmo. “Embora haja tantos desencontros”. Talvez as pessoas não percebam, entorpecidas pela rotina, o quanto de si já se impregnou em cada detalhe de sua particular paisagem. E quanto dessa paisagem já se incorporou a si. Talvez as pessoas não percebam que toda cidade tem um desenho escondido, traços sutis com que se vai tecendo a teia urbana. Com os olhos da sensibilidade, é possível perceber uma lógica no que é aparentemente aleatório. O que se vê todos os dias, nos múltiplos espelhos da cidade, vai compondo devagar o mosaico de imagens e de impressões de que é feita a vida. Se as feições urbanas começam a modificar a visão interior que cada um de nós tem da cidade, é preciso preservar o patrimônio de afeto que cada pedra, cada monumento, cada detalhe da arquitetura representa para os que nela vivem. Somente os que conhecem a aridez de uma cidade sem passado sabem avaliar a importância dessa lenta e imperceptível sedimentação de vivências que cada cenário urbano significa. Se a mais simples das ruas preenche o coração dos que com ela partilham a aventura de existir, pode-se aquilatar o sentido universal que adquire a aldeia toda. E as obras de arte que marcam a sua personalidade única. Os equipamentos urbanos, para além de seu aspecto funcional, cumprem também essa finalidade. E devem estar à altura dessa responsabilidade. Estruturas sem alma não merecem que nelas a alma se expresse. Algumas obras captam essa verdade. São justamente as que testemunham a perenidade do homem. (LERNER apud FLÓRIDO, 1992, p.104).

É nesta cidade do encontro e dos desencontros que podemos melhor analisar os três

processos de construção da identidade de que estamos tratando, o enraizamento, o

desenraizamento e o re-enraizamento. É importante neste momento entender que a

globalização acentua esses três processos. Citando o poeta Drummond, quando este diz que

está “sempre em construção, demolição, reconstrução” (1998 apud SANTOS, p.3),

observamos o que ocorre com o fenômeno identitário dentro de uma cidade grande. Nesta

parte do trabalho, vamos explicitar com alguns exemplos como esses processos ocorrem de

fato no contexto das cidades brasileiras, sem nos atermos a um caso específico, nem a todas as

complexidades analíticas da questão. Pretendemos demonstrar empiricamente nossa tese.

A “construção” ou enraizamento do indivíduo sucede quando este não está totalmente

inserido num contexto global, quando ainda mantém suas raízes e não foi afetado (ou não se

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deixou afetar) diretamente pelos fluxos culturais da globalização. Para melhor compreender

este fato, é necessário entendermos que “os lugares permanecem fixos; é neles que temos

‘raízes’” (HALL, 2003, p.72). O enraizamento é muito afetado pelo processo de globalização,

já que pressupõe uma fixidez que se mostra como oposição à fluidez do processo globalizante,

tornando difícil a observação deste fenômeno empiricamente. Encontramos exemplos em

autores como Luís Fernando Veríssimo, ao falar de sua Porto Alegre,

Não é bairrismo visual, não. Nenhum lugar do mundo tem esta luz de primavera, que não é igual à luz de nenhuma outra parte e também não tem nada a ver com a luz do outono aqui mesmo. No nosso outono a luz parece pousar nas coisas. Na primavera ela penetra, e dá a impressão de chegar intocada por qualquer filtro, forte e pura como no primeiro dia da terra.

O enraizamento, mesmo num contexto globalizante, é uma necessidade humana, pois

“estar enraizado é estar domiciliado em sua própria morada, ou, em outras palavras, sentir-se

em casa.” (SANTOS: TUNES: BARTHOLO, 2006, p.8). Para se sentir em casa o indivíduo

pode manter uma relação de resistência a favor de sua cultura local, como pode ser observado

na valorização das tradições como o carnaval do Rio de Janeiro com as suas marchinhas ou o

de Recife com o tradicional frevo. Estas cidades, mesmo estando inseridas no contexto dos

fluxos globais, mantêm a tradição da festa popular, buscando manter suas raízes fixas ao solo,

ou ao lugar. As festas populares manifestam uma cultura popular, uma cultura arraigada no

solo, segundo nos é apresentada por Milton Santos:

A cultura popular tem raízes na terra em que se vive, simboliza o homem e seu entorno, encarna a vontade de enfrentar o futuro sem romper com o seu lugar, e de ali obter uma continuidade, através da mudança. Seu quadro e seus limites são as relações profundas que se estabelecem entre o homem e seu meio, mas seu alcance é o mundo. (2004, p.327).

A cultura popular gera um enraizamento com o seu lugar, os costumes e tradições são

reverenciados mesmo que os fluxos culturais interfiram nas cidades, os agentes da cultura

popular se encarregam de não deixar morrer a identidade própria daquele lugar, das pessoas

daquele lugar. Porém, este processo só ocorre se as pessoas não se deixarem influenciar

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completamente pelos fluxos globais, tornando suas identidades resistentes frente ao processo

globalizante.

Na cidade também há a “demolição” ou desenraizamento das identidades locais. “Uma

das características do mundo atual é a exigência de fluidez para a circulação de idéias,

mensagens, produtos ou dinheiro, interessando aos atores hegemônicos” (SANTOS, 2004,

p.274), portanto há uma tendência à perda de sua identidade local, ou seja, à inserção num

contexto global, no qual as pessoas não mais se sentem pertencentes ao contexto de seu local

de origem.

Efetivamente, a interação da própria cidade às redes regionais, nacionais e transnacionais, a "modernização" e a transformação, ou a eliminação de lugares e edifícios significativos, ou mesmo suporte de formas culturais e experiências comuns, constituem sempre uma grande ameaça à manutenção dos valores locais não globalizados, levando à perda de referências, de identidade, de pertencimento. (RAMALHO FILHO, 2002, p.5).

Para exemplificar, destacamos o caso de certas pessoas que, por causa da crescente

violência nas grandes cidades, tem se fechado em condomínios de luxo e usufruído das

comodidades que têm. Por exemplo, acesso às redes de TV a cabo, nas quais assistem a

seriados e filmes americanos em canais como a Sony e aos shows de bandas estrangeiras em

canais como a MTV. O que acaba ocorrendo é uma identificação com aquele estilo de vida,

aqueles costumes, com a cultura de um outro lugar, sentindo-se atraídos por contextos

culturais externos, por uma cidade que não é a sua estranhando, pouco a pouco, o contexto

social e cultural no qual vive. Além da TV, os fluxos culturais desenraizantes também são

difundidos para essas pessoas através do rádio e da Internet, que é o meio de comunicação

mais globalizado que existe, estando inserido cada vez mais na vida dos brasileiros, esta

constatação é recorrente entre os jovens que ficam conectados em jogos eletrônicos e sites de

bate-papo e de relacionamento como o Orkut. Os pais têm dificuldades de retirá-los da frente

do computador e se desesperam. É o caso, por exemplo, de uma mãe, que relata no texto

“Ameaça Virtual” publicada na Revista O Globo, sua angústia com relação à criação do filho

diante do uso das tecnologias contemporâneas, ao não conseguir fazer seu filho sair de casa

nas férias. Isso expressa de forma clara o que vem ocorrendo com grande parcela das famílias

brasileiras.

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Ela não conseguia tirar Eduardo, de 13 anos, de casa para nada: praia, amigos, cinema, tudo era desinteressante diante dos jogos interativos — entre eles, o Tibia — que botavam o menino em contato com parceiros de todo o planeta. Sem saber mais o que fazer, Graça baixou uma nova lei: duas horas por dia e nada mais. Se não fosse cumprida, no dia seguinte não teria computador. (...) Diante das novas regras domésticas, Eduardo diz que não tem o que discutir. “— Ela em parte tem razão quando diz que eu perco muito tempo no computador. Mas não gosto mais de vôlei, nem de basquete, nem de futebol.” (2007)

Os jovens estão perdendo seu referencial, ficam horas na frente do computador

conversando com pessoas de todo o mundo, absorvendo valores de outras culturas e

desconhecendo a cultura própria de seu lugar e, ao saírem do mundo virtual não se

identificam com o mundo real. Essa relação com a internet é colocada por Gilberto Gil em sua

canção “Pela Internet”, que demonstra bem como este instrumento de difusão de informação e

culturas está inserido no nosso cotidiano e no próprio indivíduo.

Criar meu web site Fazer minha home-page Com quantos gigabytes Se faz uma jangada Um barco que veleje Que veleje nesse infomar Que aproveite a vazante da infomaré Que leve um oriki do meu velho orixá Ao porto de um disquete de um micro em Taipé Um barco que veleje nesse infomar Que aproveite a vazante da infomaré Que leve meu e-mail até Calcutá Depois de um hot-link Num site de Helsinque Para abastecer Eu quero entrar na rede Promover um debate Juntar via Internet Um grupo de tietes de Connecticut De Connecticut acessar O chefe da Macmilícia de Milão Um hacker mafioso acaba de soltar Um vírus pra atacar programas no Japão

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Eu quero entrar na rede pra contactar Os lares do Nepal, os bares do Gabão Que o chefe da polícia carioca avisa pelo celular Que lá na praça Onze tem um vídeopôquer para se jogar (1994)

A violência urbana também faz com que as pessoas, quando resolvem sair de casa,

procurem lazer nos shopping centers, onde encontram cinemas, teatros, restaurantes e, lógico,

lojas dos mais diversos artigos. Os shoppings além de serem o templo do consumismo, já que

shopping, palavra em inglês, significa comprar, são lugares comuns em qualquer parte do

mundo, ou seja, não se identificam com este ou aquele lugar, são a expressão do

desenraizamento. Ao entrar num shopping as pessoas ficam tão imersas naquele ambiente que

se esquecem da cidade real. Encontramos um exemplo bastante interessante de shopping

center em uma matéria da revista Domingo do Jornal do Brasil, que falava sobre o Barra

World Shopping & Park. A revista descreve o lugar dizendo:

Crianças passam correndo pela Torre Eiffel, com seus balões de gás coloridos, seguindo um grande gorila que carrega um caçador inglês na jaula. No caminho, em frente à Esfinge Egípcia, uma bailarina de dança do ventre recebe aplausos entusiasmados da platéia que assiste sua coreografia, com direito a espadas e lenços coloridos. Enquanto os pais fazem suas compras pelas ruas das principais capitais do mundo, príncipes e princesas começam a chegar para a grande festa de coroação da Cinderela, que acontecerá em instantes na Praça da França. (2006, p.38).

A reportagem, cujo título é “Nem parece shopping”, prossegue:

A própria apresentação do shopping já foge aos padrões tradicionais. Seus corredores são ao ar livre, com a reprodução dos principais monumentos do mundo e a arquitetura típica de países como França, Alemanha, Inglaterra, Holanda, Itália e Mundo Árabe.

Além de todo este aparato cenográfico, o shopping oferece aproximadamente 400

lojas. “Em meio a príncipes e princesas, o shopping não se descuida da maior atração para os

adultos: o consumo”. (2006, p.39). A matéria ainda traz depoimentos dos freqüentadores,

como o da arquiteta Flávia Araújo.

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Acho que é um dos poucos lugares em que podemos nos divertir com nossos filhos. Podemos jantar ou assistir a shows enquanto as crianças se divertem no teatrinho ou com os personagens que andam pelo shopping. (...) O bom desse shopping é que tem programa para todas as idades. Além disso, é muito mais saudável, pois tudo acontece ao ar livre.

As pessoas que vão a esse shopping localizado na Barra da Tijuca, um dos bairros

mais nobres do Rio de Janeiro, convivem neste mundo de contos de fada, como se entrando lá

a realidade da cidade ficasse para trás e elas viajassem pelo mundo sem sair do lugar. O

desenraizamento surge da fuga da realidade, ocorrendo uma identificação, principalmente por

parte das crianças, com os monumentos e costumes de outros lugares, outras cidades que não

a sua, ao saírem daquele espaço não encontram do lado de fora aquela representação

espetacular da realidade e podem passar a não se identificar com a realidade cultural da cidade

em que vivem. Além das atrações para as crianças, há o fascínio consumista das lojas e

restaurantes que afeta os pais, especialmente porque as lojas são normalmente grandes redes

que difundem a moda utilizada nos países chamados desenvolvidos, grandes difusores dos

fluxos globais, quer dizer, uma moda padronizada. Nos restaurantes e lanchonetes

dificilmente se encontra comida brasileira, são restaurantes japoneses, chineses, árabes,

alemães, americanos, mexicanos etc, para deleite dos freqüentadores que não precisam mais

viajar até esses lugares para deliciar tais iguarias.

Todo este processo desenraizante analisado no exemplo apresentado pode ser

entendido como fruto de uma cultura de massa que tende à homogeneização e à

desvalorização da cultura popular e do enraizamento cultural local, gerando,

conseqüentemente, identidades desenraizadas.

A cultura de massa, denominada cultura por ser hegemônica, é, frequentemente, um emoliente da consciência. O momento da consciência aparece, quando os indivíduos e os grupos se desfazem de um sistema de costumes, reconhecendo-os como um jogo ou uma limitação. (SANTOS, 1987, 1992, p.64 apud SANTOS 2004, p.327).

Milton Santos nos diz que a cultura de massa busca homogeneizar a cultura popular,

gerando um movimento que segundo ele,

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(...) é resultado do empenho vertical unificador, homogeneizador, produzido por um mercado cego, indiferente ás heranças e às realidades atuais dos lugares e das sociedades. Sem dúvida, o mercado vai impondo, com maior ou menor força, aqui e ali, elementos mais ou menos maciços da cultura de massa, indispensável como ela é, ao reino do mercado, e a expansão paralela das formas de globalização econômica, financeira, técnica e cultural. (2003, p.143).

Como podemos observar, os exemplos mostrados anteriormente elucidam bastante

esta manifestação cultural comandada pelo mercado e pelos atores hegemônicos da

globalização, uma cultura que tende a homogeneizar e está diretamente ligada ao mercado, ao

consumo. Gera indivíduos desenraizados de seu lugar cada vez mais integrados à cultura de

massa e a um contexto global. Concluindo com Milton Santos, “as classes médias amolecidas

deixam absorver-se pela cultura de massa e dela retiram argumento para racionalizar sua

existência empobrecida.” (2004, p.327).

O processo de desenraizamento é inerente à globalização, porque é muito difícil conter

os fluxos globais. Segundo Ortiz “o desenraizamento é uma condição de nossa época, a

expressão de um outro território.” (2000, p.69). Um outro território que é reconstruído através

dos fluxos e que se torna por isso fruto da fluidez global.

Existe ainda na cidade o processo de “reconstrução” ou re-enraizamento, outra

tendência da globalização que além de construir e desconstruir identidades acaba também por

reconstruí-las, dando-lhes outro formato. Esse processo tende a unir o global ao local, quer

dizer, sente a influência dos fluxos globais, mas valoriza a diversidade local tentando misturar

essas duas realidades. Ocorre uma movimentação de reencontro com a identidade perdida,

através da qual se passa por um processo de revalorização da cultura local sem deixar de

percebê-la enquanto pertencente a um contexto global. Este processo é o de mais difícil

constatação empírica, por pressupor a perda anterior das raízes, porém podemos entendê-lo

também como a revalorização da cultura local, é com este entendimento que trouxemos o

exemplo a seguir.

No Brasil existe um movimento musical que se revela bastante elucidativo deste

processo de revalorização das raízes que gera um ser reenraizado com sua cultura, é o

movimento Manguebeat.

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O manguebeat enquanto fenômeno cultural, é resultado da confluência de diversas experiências estéticas/sociais, de um grupo de jovens que através das músicas por eles produzidas começam a delinear uma nova situação (se não diferente), onde o campo artístico se mostra um terreno fértil na produção de uma atitude perceptiva, marcada por um lado, pela necessidade de conhecer o outro e experimentar o diferente, por outro, e ao mesmo tempo, conhecer-se e torna-se conhecido como parte de uma sociedade marcada por um contexto urbano de forte exclusão social. (SOUZA, 2001, p.1).

Este movimento nasce na cidade de Recife, no estado de Pernambuco, na década de

1990 e une o maracatu, expressão da cultura popular pernambucana, com vários estilos do

pop ocidental. Na música “Etnia 41” temos a expressão desta mistura.

(...)costumes é folclore, é tradição/capoeira que rasga o chão/samba que sai da favela acabada/é hip hop na minha embolada/é povo na arte/e arte no povo/e não o povo na arte/de quem faz arte com o povo/maracatus psicodélicos/capoeira da pesada/bumba meu rádio/birimbau elétrico/frevo, samba e cores/(...). (SCIENCE, Chico: NAÇÃO Zumbi In: Afrociberdélia; Sony Music: 1996 apud SOUZA, 2001, p.9).

Até no nome dado ao movimento, vemos a união do global e do local ao trazer um

aspecto geográfico da cidade de Recife - o mangue – e o termo em inglês “beat” que significa

“batida”, “ritmo”, ou seja, Manguebeat é o ritmo do mangue. A metáfora utilizada para definir

a cena mangue é a de “uma parabólica enfiada na lama dos manguezais” (SOUZA, 2001,

p.17), quer dizer, eles estavam ligados ao seu lugar, e antenados com o mundo, ao mesmo

tempo em que valorizavam a cultura local utilizando, em suas músicas, ritmos recifenses

como: o coco, a ciranda, o frevo e o maracatu. Apesar de ser uma manifestação de jovens das

classes não abastadas, é um movimento que salta aos nossos olhos como expressão de uma

reconstrução da identidade local do cenário recifense, por isso não podia deixar de ser citado.

O manguebeat (...), buscou lançar-se neste "mundo globalizado" (algo que discutimos tanto na intenção que motivou seu surgimento, quanto nas músicas por eles produzidas), mas ele não o fez sem reconhecer sua condição sócio-econômica, precária (por isso falou da cidade, da forma como falaram em sua música de mesmo nome), se furtando a condição de produzir uma música que buscasse estabelecer um diálogo com a produção musical de outras localidades, transmitindo sua experiência a outros.

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É neste sentido, que a metáfora mangue ganha sentido: num primeiro momento, ela busca dar conta da experiência musical "própria" de sua cidade (maracatu, frevo, coco, baião, ciranda, etc), num segundo momento (simultâneo) ela busca dar conta da experiência do "outro". Estabelecendo assim, um diálogo com a música punk, o new wave, o rock, o hip hop etc. A metáfora mangue pode ser vista como sendo o próprio elemento definidor da cena mangue. A partir de sua simbolização, o manguebeat conseguiu produzir uma música, que define-se pelo reconhecimento do outro. (SOUZA, 2001, p.24).

O Manguebeat se revela, então, como uma expressão de identidade cultural ao ser

definida pelo reconhecimento do outro. Retomamos a idéia de que as identidades são

construídas através da diferença, do encontro com a alteridade. Neste caso específico, o

encontro ocorre através dos fluxos culturais globais que levam estes jovens do Recife ao

encontro de ritmos e expressões culturais diversas das suas, mas também trazem a sua “cena”,

proporcionando uma revalorização da cultura local. O Manguebeat promove uma mistura que

remete a uma das tendências da globalização a da individualização, quer dizer, o

refortalecimento da diversidade local tornando-os indivíduos reenraizados com o seu lugar.

Este exemplo apresentado lembra uma certa modalidade de manifestação da cultura

popular, que também pode ser reenraizante, na medida em que esta consegue superar ou fazer

frente à cultura de massa. Isso ocorre quando “ela se difunde mediante o uso dos instrumentos

que na origem são próprios da cultura de massa.” (SANTOS, 2003, p.144). É o que acontece

no movimento Manguebeat que começa resgatando a cultura popular recifense e se difunde

pelo país, porque “a cultura popular exerce sua qualidade de discurso dos ‘de baixo’, pondo

em relevo o cotidiano dos pobres, das minorias, dos excluídos, por meio da exaltação da vida

de todos os dias” (SANTOS, 2003, p.144). Esta última consideração reafirma o exemplo

apresentado, por demonstrar o discurso de que a cultura popular é a cultura dos excluídos, já

que os integrantes do referido movimento pertencem à classe popular e demonstram em suas

músicas a realidade de exclusão da cidade em que vivem.

O processo de reenraizamento, portanto, surge da necessidade do reencontro com as

raízes perdidas, que podem ser definidas como sendo a cultura popular. No atual contexto de

globalização que vivenciamos, o processo de reconstrução de identidades tem sido fortalecido

pela revalorização da diversidade cultural.

O que observamos no cenário das grandes cidades é uma grande rede de fluxos

globais que interferem na (re)construção de identidades culturais locais, formada pela fixidez

das raízes através das quais as pessoas estão fixadas ao solo. Tal rede de fluxos, transmitida

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através da globalização dos aspectos culturais, acaba por gerar três fenômenos identitários

distintos, enraizamento, desenraizamento e reenraizamento, a partir dos quais podemos

entender a própria natureza da globalização enquanto produtora de homogeneidade e ao

mesmo tempo de singularidade.

Nas palavras de Milton Santos, “(...) as cidades, (...) tendem a abrigar, ao mesmo

tempo, uma cultura de massa e uma cultura popular, que colaboram e se atritam, interferem e

se excluem, somam-se e se subtraem num jogo dialético sem fim.” (2004, p.327).

Entendemos, portanto, que a cidade, absorvendo os fluxos globais, pode se tornar

homogeneizada através da difusão da cultura de massas, mas pode resistir ou revalorizar a

cultura popular acentuando sua singularidade. Os indivíduos que moram nesta cidade sofrem

as influências externas e globalizantes e cada um responde de acordo com seus valores

individuais e de classe, entre outros. Podem ser afetados, sem perder seu referencial

identitário, valorizando a cultura local preservando suas raízes. Podem, também, ser

influenciados diretamente pelos fluxos culturais perdendo sua lealdade com o lugar, tendo seu

referencial deslocado, experimentando um processo sutil de desenraizamento. Outra tendência

que pode ocorrer é a de estes indivíduos serem influenciados, mas, paralelamente, tenderem à

revalorização e ao reconhecimento da cultura local, vivenciando a dinâmica peculiar do

reenraizamento.

Concluímos, portanto, que a globalização é, também, de certa forma, um fenômeno

identitário.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS A hipótese defendida neste trabalho monográfico é a de que as identidades culturais se

revelam através do sentimento de pertencimento ao lugar de origem e/ou de moradia, e que a

globalização influencia diretamente neste processo ao favorecer o contato com outras

culturas, fazendo com que o indivíduo não mais se sinta pertencente àquele lugar. Apesar

disso, pode ocorrer um processo de retomada da identidade perdida. Paralelamente a esses

dois argumentos apresentados, ocorre um processo de revalorização cultural, com o

revigoramento das tradições e dos costumes locais. Utilizamos, para argumentação de nossa

hipótese, três conceitos básicos para melhor esclarecer o argumento que nos propusemos a

defender neste trabalho. Estes conceitos diferenciam três etapas da construção de uma

identidade cultural local, demonstram que os indivíduos podem ser enraizados, quando se

sentem pertencer ao seu lugar e à sua cultura; desenraizados, ao estarem inseridos num

contexto influenciado pelos fluxos globais e rompendo suas lealdades com a cultura local,

perdendo assim suas raízes; ou, reenraizados, na medida em que retomam suas raízes,

revalorizando a cultura local e voltando a se sentir pertencentes ao seu lugar.

Para melhor analisar o processo de construção, desconstrução e reconstrução de

identidades culturais, utilizamos como objeto de estudo as grandes cidades, em especial as

brasileiras, que nos serviram de referência para exemplificar empiricamente nossa

argumentação. Além disso, o processo identitário no contexto das grandes cidades, como

demonstrada neste trabalho, sofre a influência direta dos agentes da globalização, aos quais

chamamos fluxos culturais. Tais fluxos interferem na identidade do indivíduo com o seu lugar

na medida em que evidenciam os costumes e valores de outros lugares do mundo, podendo,

assim, levar à perda da identidade com o seu lugar. Buscamos o entendimento da globalização

enquanto fenômeno identitário, uma vertente diferente que na verdade está inserida na

perspectiva cultural do processo globalizante.

Na demonstração de como o processo de globalização influencia na construção de

identidades culturais locais, partimos de dois pilares: primeiro, que a identidade é construída

por meio da diferença do contato com outro; e, segundo, que necessita de um espaço e tempo

de referência. O primeiro pilar é que sofre tal influência através do contato com outro

proporcionado pelos fluxos culturais globais, e o segundo, pela tendência de compressão

espaço-tempo.

Nestas últimas considerações, gostaríamos de destacar uma questão que entendemos

de extrema importância na intenção de repensar o contexto de construção, destruição e

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reconstrução de identidades culturais locais: a revalorização da cultura local, do resgate das

raízes que, se não tiverem sido perdidas, podem estar esquecidas por nós. Dentre os motivos

que nos levam a perder ou esquecer nossa identidade e cultura locais está a globalização,

porém, como vimos anteriormente, esta pode tanto tender à homogeneização como a

individualização. É neste sentido que queremos trabalhar destacando a singularidade como

fator de resistência ao processo desenraizante.

Segundo Sene, “a chave para a resistência à perversidade da globalização tem de ser

buscada (...) pela valorização das singularidades, das identidades, da diversidade cultural.”

(2004, p.166). Entendemos que a valorização da diversidade cultural é um fator de extrema

importância para que os nossos jovens e crianças não se sintam fascinados pela cultura de

outro lugar por achar que a sua cultura é inferior. É necessária a compreensão de que

nenhuma cultura é superior a outra, já que, cada uma tem sua especificidade. Para isso,

porém, não é preciso negar a importância dos avanços tecnológicos no contexto do meio

técnico-científico-informacional, pois as tecnologias desenvolvidas neste período têm se

mostrado importantes em diversas áreas como: a comunicação, tornando mais rápida a

interação entre as pessoas que estão próximas e as que estão distantes; a saúde, com a busca

da cura de diversas doenças; a educação, que pode ser melhor apreendida através das novas

tecnologias educacionais; dentre outras.

Temos a compreensão de que o contato entre as diversas culturas pode ser muito

proveitoso desde que sejam respeitadas as diferenças, assim podemos criar nossa própria

identidade entendendo o outro como diferente, mas não como inferior ou superior, apenas

diverso em suas características culturais. Para conhecermos e entendermos a cultura do outro

é importante que, primeiro, busquemos conhecer a nossa própria, e num segundo momento,

talvez unir as duas numa expressão cultural como, por exemplo, na música, como observamos

no exemplo citado no capítulo anterior do movimento Manguebeat. Ao unir duas culturas não

é preciso que se percam as raízes originais.

A valorização da nossa cultura passa pelo reconhecimento da cultura popular existente

em todas as cidades, algumas mais explícitas e outras esquecidas. A cultura popular pode ser

encontrada nas manifestações folclóricas, muito diversas dentro do âmbito nacional, e que

revelam a mistura com outras culturas, pois o Brasil é um imenso caldeirão que por suas

proporções geográficas, compõe um mosaico cultural de extrema riqueza, que não pode ser

perdido pelo contato direto com outras culturas através dos fluxos globais.

A identidade cultural local deve ser preservada não só para fazer frente ao outro, mas

para nos sentirmos pertencentes ao nosso lugar, para que não percamos nossas raízes através

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dos fluxos globais que só beneficiam o capital internacional e os atores hegemônicos da

globalização, que nada têm a ver com a nossa realidade e para os quais a cultura é apenas um

tipo de mercadoria conveniente ao jogo capitalista da acumulação.

Na verdade, a discussão deste processo de globalização em que vivemos não se esgota

com este despretensioso trabalho, mas se coloca aqui como contribuição a uma reflexão que é

ainda nova neste contexto. Que as indagações e afirmações constituintes desta monografia

suscitem novas discussões acerca da construção identitária do lugar, sob influencia do

fenômeno global.

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