LEX MERCATORIA E COMÉRCIO INTERNACIONAL: … · e OAB-MG (1999). Autor de vários livros sobre...

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Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 4 | n. 8 | jul./dez. 2002. 69 LEX MERCATORIA E COMÉRCIO INTERNACIONAL: UNIDADE OU PLURALISMO DE ORDENS JURÍDICAS? A CONCEPÇÃO DE BERTHOLD GOLDMAN Valerio de Oliveira Mazzuoli 1 INTRODUÇÃO Há mais de trinta e cinco anos se discute na doutrina a existência de uma nova lex mercatoria, nascida das modernas operações comerciais internacionais. Mas apesar do grande número de trabalhos teóricos escritos durante esse tempo, não está à vista o fim das discussões que se firmaram em torno dela. A proposta deste ensaio é estudar a nova lex mercatoria como fonte do direito do comércio internacional, na concepção de Berthold Goldman, que estudou adequadamente a matéria em questão e lançou as grandes bases para as futuras discussões a respeito do tema. ANTECEDENTES DA NOVA LEX MERCATORIA Com o crescente desenvolvimento das relações comerciais internacionais, novos fenômenos vêm surgindo cujo exame merece a acurada atenção dos especialistas. O Estado, nos tempos atuais, deixou de ser o único ator das relações internacionais, passando a conviver com outros sujeitos, antes desconsiderados como tal. Tornou-se freqüente a participação de empresas privadas em inúmeros acordos e contratos do comércio internacional, tendo os Estado estrangeiros como contraparte. Esse afastamento do Estado de algumas atividades internacionais, permitiu o desenvolvimento de regras disciplinadoras do comércio internacional, nascidas de sua aplicação e uso reiterados entre a sociedade internacional dos comerciantes. 2 1 Advogado no Estado de São Paulo. Mestrando na Faculdade de Direito da Universidade Estadual Paulista (UNESP) – Campus de Franca. Professor de Direito Internacional Público e Direitos Humanos na Faculdade de Direito de Presidente Prudente-SP (Associação Educacional Toledo) e de Direito Constitucional na Universidade do Oeste Paulista – UNOESTE. Classificado em primeiro lugar no “Primeiro Concurso Nacional de Monografias” sobre os 50 Anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, realizado pela PUC-Minas, UFMG e OAB-MG (1999). Autor de vários livros sobre direito internacional e direitos humanos e de diversos artigos publicados em revistas jurídicas especializadas. E-mail: [email protected]. 2 .Cf. JOSÉ CARLOS DE MAGALHÃES. “Lex Mercatoria: evolução e posição atual”, in Revista dos Tribunais, vol. 709, São Paulo, nov./1994, p. 42.

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LEX MERCATORIA E COMÉRCIO INTERNACIONAL:UNIDADE OU PLURALISMO DE ORDENS JURÍDICAS?

A CONCEPÇÃO DE BERTHOLD GOLDMAN

Valerio de Oliveira Mazzuoli1

INTRODUÇÃO

Há mais de trinta e cinco anos se discute na doutrina a existência deuma nova lex mercatoria, nascida das modernas operações comerciaisinternacionais. Mas apesar do grande número de trabalhos teóricos escritosdurante esse tempo, não está à vista o fim das discussões que se firmaramem torno dela.

A proposta deste ensaio é estudar a nova lex mercatoria como fonte dodireito do comércio internacional, na concepção de Berthold Goldman,que estudou adequadamente a matéria em questão e lançou as grandesbases para as futuras discussões a respeito do tema.

ANTECEDENTES DA NOVA LEX MERCATORIA

Com o crescente desenvolvimento das relações comerciaisinternacionais, novos fenômenos vêm surgindo cujo exame merece aacurada atenção dos especialistas. O Estado, nos tempos atuais, deixoude ser o único ator das relações internacionais, passando a conviver comoutros sujeitos, antes desconsiderados como tal. Tornou-se freqüente aparticipação de empresas privadas em inúmeros acordos e contratos docomércio internacional, tendo os Estado estrangeiros como contraparte.Esse afastamento do Estado de algumas atividades internacionais, permitiuo desenvolvimento de regras disciplinadoras do comércio internacional,nascidas de sua aplicação e uso reiterados entre a sociedade internacionaldos comerciantes.2

1Advogado no Estado de São Paulo. Mestrando na Faculdade de Direito da Universidade Estadual Paulista(UNESP) – Campus de Franca. Professor de Direito Internacional Público e Direitos Humanos na Faculdadede Direito de Presidente Prudente-SP (Associação Educacional Toledo) e de Direito Constitucional na Universidadedo Oeste Paulista – UNOESTE. Classificado em primeiro lugar no “Primeiro Concurso Nacional de Monografias”sobre os 50 Anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, realizado pela PUC-Minas, UFMGe OAB-MG (1999). Autor de vários livros sobre direito internacional e direitos humanos e de diversos artigospublicados em revistas jurídicas especializadas. E-mail: [email protected] .Cf. JOSÉ CARLOS DE MAGALHÃES. “Lex Mercatoria: evolução e posição atual”, in Revista dos Tribunais,vol. 709, São Paulo, nov./1994, p. 42.

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Tais usos e costumes, nascidos da prática contratual internacional, foramqualificados como verdadeira lex mercatoria, uma ordem jurídica doscomerciantes a reger os usos profissionais do comércio no cenáriointernacional.

Tendo como antecedentes a Lex Rhodia – Lei do Mar de Rodes (300a.C.), adotada inicialmente pelos gregos e troianos e, posteriormente,disseminada no restante da Europa, e o Jus Mercatorum (séc. XIV), a“lex mercatoria” nasceu das feiras da Idade Média, em resposta aosdireitos feudais que, com seus inúmeros privilégios, entravavam asrelações comerciais da época.3 Nas palavras do Prof. ROBERTO LUIZ

SILVA, atualmente “fala-se em uma Lex Mercatoria moderna, baseada,além de nos usos e costumes, em contratos-padrão, preparadospor entidades estrangeiras e, mais recentemente, composta deinúmeros outros elementos, inclusive Direito Internacional Público,leis uniformes e regras das organizações internacionais”.4

Essa “nova lex mercatoria” é que é o objeto desse nosso estudo, e nela éque iremos nos fundamentar. Embora se discuta há mais de trinta anos nadoutrina a nova lex mercatoria, não está à vista o final das controvérsiasque se formam em torno dela.

A NOVA LEX MERCATORIA E AS FRONTEIRAS DODIREITO NA CONCEPÇÃO DE BERTHOLD GOLDMAN

Foi Berthold Goldman quem, em 1964, detectando a existência dessedireito costumeiro internacional, nascido das práticas comerciaisinternacionais, trouxe à tona a doutrina da nova lex mercatoria, em trabalhopublicado nos Archives de Philosophie du Droit, n.º 09, intitulado “Frontièresdu droit et lex mercatoria”. Foi neste estudo, considerado a certidão denascimento da nova lex mercatoria, que GOLDMAN lançou as bases parauma ardente e profunda discussão sobre a sua caracterização como fontedo direito do comércio internacional, passando este momento a ser

3Cf. HERMES MARCELO HUCK. Sentença estrangeira e “lex mercatoria”: horizontes e fronteiras docomércio internacional. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 104.4.ROBERTO LUIZ SILVA. Direito internacional público, 2.ª ed. rev, atual. e ampl. Belo Horizonte: Del Rey,2002, p. 24.

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considerado um marco no processo de evolução do conceito.5O Prof. GOLDMAN, em seu texto, propõe colocar à prova de uma

experiência contemporânea alguns dos critérios pelos quais se pode sonharem se referir às fronteiras do direito. E esta experiência é a das normasoriginais do comércio internacional (lex mercatoria), as quais cobrem todoo conjunto das relações econômicas internacionais. Para GOLDMAN, ai seengloba

Em outros termos, as relações internacionais de troca nas quaisparticipe pelo menos uma empresa privada (ou uma empresa públicaque não faça uso das prerrogativas das quais ela está investida comotal) – e a outra participante, podendo ser ou uma empresa da mesmanatureza, ou uma pessoa moral de direito público, como umaorganização internacional, ou mais praticamente um Estado ou umacoletividade pública subordinada (portanto, na hipótese freqüente,e de grande interesse, dos investimentos nos países em via dedesenvolvimento).6

O que este grande jurista pretende mostrar é que cada dia mais, essasrelações parecem escapar à influência de um direito interno estatal, ouaté mesmo de um direito uniforme integrado na legislação dos Estadosque a ele aderiram, por serem regidas e governadas por normas de origemprofissional, ou regras costumeiras e princípios internacionais reveladosnotadamente pelas sentenças arbitrais.

Para a resposta do que pretende, GOLDMAN qualificará o fenômeno emrelação a vários critérios propostos para definir o direito, ou a “regra dedireito”, dispensando uma escolha prévia que, à primeira vista, poderiaparecer logicamente necessária.

OPERAÇÕES INTERNACIONAIS DE VENDA, CRÉDITO,TRANSPORTE E DE SOCIEDADES.

Internacionais ou não, as trocas econômicas, nas palavras do Prof.GOLDMAN, encontram seu principal molde contratual na venda; elas se5 .Cf. também, a esse respeito, PHILIPPE KAHN, “Droit international économique, droit du développement, lexmercatoria: concept unique ou pluralisme des ordres juridiques?”, in Le droit des relations économiquesinternationales: études offertes à Berthold Goldman, Paris: Librairies Thechiniques, 1982, p. 97.6 .BERTHOLD GOLDMAN. “Frontières du droit et lex mercatoria”, in Archives de Philosophie du Droit, n.º09, Paris: Sirey, 1964, p. 177. Nota: todas as citações no decorrer deste trabalho são tradução livre e originaldo Autor a este texto em francês do Prof. BERTHOLD GOLDMAN.

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acompanham de operações de crédito, e se traduzem materialmente pelotransporte de pessoas ou de bens; por pouco que eles sejam importantes,seus atores são sociedades, antes que pessoas físicas. É à vista dessasoperações e desses “operadores” que Goldman verificou, primeiramente,o arranjo autônomo deles, quando eles são internacionais. Depois oconsagrado jurista lembrou

Que os litígios que deles decorrem são muito freqüentementeregulados de maneira igualmente específica, no quadro da arbitragemcomercial: constatação importante, porque se é verdade que o direitoultrapassa largamente o contencioso, é igualmente seguro que umconjunto de modos de conduta humana não pode formar umsistema de direito, a menos que exista uma jurisdição apta para velarpela sua interpretação e observância.7

A VENDA COMERCIAL INTERNACIONAL

Segundo Goldman, apesar de se poder perfeitamente conceber que avenda comercial internacional dependa sempre da lei de um determinado Estado,designada por uma regra de conflito, em casos bastantes numerososconstata-se, igualmente, que no comércio internacional, vendedores ecompradores procuram muito freqüentemente fugir da influência de leisinternas estatais, submetendo o contrato às normas de uma outra origem,visto que as necessidades do comércio internacional não se adequam,muitas vezes, às lei comerciais nacionais existentes nos diversosordenamentos jurídicos dos Estados – mesmo aqueles industrializados –bem como não encontram nos sistemas de direito internacional privadouma certeza de sua designação.8

Por estes motivos é que o século XX não viu nascer, mas renascer, segundoele, usos profissionais comuns da venda internacional, tendo em vistaque em outras épocas, o comércio internacional havia seguido suas própriasnormas, como por exemplo, nas operações entre cidadãos e peregrinos,encontrando-se tais costumes provavelmente na origem dos contratos deboa-fé do direito romano, ou ao jus mercatorum e ao direito das feiras dofim da Idade Média e do início da época moderna.9

7.BERTHOLD GOLDMAN. Idem, p. 178.8 .Idem, pp. 178-179.9.Idem, p. 179.

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Berthold Goldman começa o seu rol de exemplos lembrando os costumescomerciais internacionais nascidos com a London Corn Trade Association.Eis sua lição:

Mas para limitar-se ao nosso tempo, nós lembraremos que a LondonCorn Trade Association, criada em 1877 e refundada em 1886 se propôs,entre outras, ‘provocar a introdução no comercio de cereais dauniformidade nas transações, favorecer a adoção de usos fundadossobre princípios justos e eqüitativos, e isso mais particularmentepara os contratos, cartas-partes, nota de despacho de mercadoriase polícias de segurança; estabelecer, provocar, encorajar a difusão ea adoção de fórmulas-tipo para os contratos, para os outrosdocumentos pré-citados e em geral todos aqueles dos quais fazemuso o comércio dos cereais [tradução nossa].E continua: “Este programa foi totalmente realizado, uma vez quea London Corn Trade Association estabeleceu e colocou à disposiçãodos negociantes de cereais várias dezenas de contratos-tipo, cujadifusão e aplicação são consideráveis: nós os utilizamos, com efeito,em numerosíssimas vendas internacionais, independentemente detoda participação de empresas inglesas, e até mesmo de membrosda Associação” [tradução nossa].10

Tais contratos-tipo foram amplamente divulgados também em outrosdomínios do comércio internacional, a exemplo do comércio de produtosagrícolas, florestais, mineiros, petroleiros, siderúrgicos, têxteis e bens deequipamento. São eles emanados de “de associações profissionais, ou deagrupamentos de empresas mais estreitamente integradas, até mesmoisoladas, mas poderosas; e nas últimas épocas, vários foram elaborados,sob a égide da Comissão Econômica para a Europa das Nações Unidas,essencialmente para servir de quadro às relações comerciais entre o Lestee o Oeste”.11

Segundo o Prof. Goldman, estes fatos comprovam, portanto, aexistência “de uma rede densa e extensa de documentos, cobrindoa maioria dos países com um bom número de bens trocados nocomercio internacional; e a considerar o fenômeno sem idéia pré-

10.BERTHOLD GOLDMAN. Idem, ibidem.11.Idem, ibidem.

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concebida, constatamos que os contratos aí referidos não são regidosnem pela lei de um Estado, nem por uma lei uniforme adotada poruma Convenção entre Estados, mas sim pelos próprios contratos-tipo”. Segundo ele: “É preciso ainda sublinhar que estes [contratos]não se limitam a codificar usos preexistentes: eles consagram tambémnormas novas, diferentes daquelas dos direitos estatais tradicionais,algumas vezes inspirados, é verdade, pelo interesse dos parceirosmais poderosos, mas em outros casos também pelo interessecomum dos contratantes” [tradução nossa].12

O valor significativo de tais exemplos poderia, segundo o citadointernacionalista, ser contestado à primeira vista, porque, poder-se-á dizer,as partes neste caso, referindo-se aos contratos-tipo, estão fazendo usosimplesmente da liberdade contratual que lhes reconhecem os sistemasjurídicos dos seus respectivos Estados. Os contatos concluídos por taispartes tornar-se-iam, então “normas individuais” para cada uma delas –concepção kelseniana – sem se integrar às respectivas ordens jurídicasnacionais, mais precisamente nas normas de direito internacional privadoque designam a regra de conflito a ser aplicada.13

Uma postura análoga é encontrada nos comentários de PAUL LAGARDE arespeito. Este professor da Universidade de Paris I, acredita que o contratocelebrado entre os comerciantes é o modo de se inserir, na ordem jurídicaestatal, toda ou parte dessa ordem não estatal. Mas nem por isso o juizestatal, segundo ele, poderia aplicar as regras da lex mercatoria sem ointermédio da vontade das partes.14

E o Prof. BERTHOLD GOLDMAN, rebatendo a colocação daqueles queentendem que as partes, neste caso, fazem uso simplesmente da liberdadecontratual que lhes reconhecem os sistemas jurídicos dos seus respectivosEstados, que poderia à primeira vista parecer correta, assim leciona:

Mas na verdade, semelhante objeção ultrapassa o domínio dadescrição do fenômeno, para contestar, a não ser que ele possa ser

12 .BERTHOLD GOLDMAN. Idem, pp. 179-180.13 .Idem, p. 180.14 .Cf. PAUL LAGARDE. “Approche critique de la lex mercatoria”, in Le droit des relations économiquesinternationales: études offertes à Berthold Goldman, Paris: Librairies Thechiniques, 1982, pp. 140-145. Nota: todas as citações a este texto do Prof. PAUL LAGARDE são tradução livre e original do Autor aorespectivo texto em francês.

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qualificado como um conjunto de normas jurídicas “individuais”,pelo menos a especificidade dessa qualificação. Nós a encontraremos,sob este ângulo. Limitemo-nos aqui a dizer que a visão que elaexprime não presta contas do arranjo concreto do comerciointernacional; é certo, com efeito, que quando eles se referem aoscontratos-tipo seus “atores” decidem regular – e em todos os casosnão-contenciosos , regulam efetivamente – sua conduta segundonormas outras que as leis estatais. Não é seguro, nós o veremos, queesta decisão somente possa receber eficácia da liberdade contratualsobre a qual convergem um certo número de direitos estatais; masseria ela mesmo assim, ainda que não se pudesse, entretanto, negarque as normas concretas escolhidas no exercício dessa liberdadefossem diferentes por sua origem, e freqüentemente também porseu conteúdo, daquelas que as partes expressamente, ou melhor,tacitamente, extraíram de um direito estatal, se elas aí fossem citadas[tradução nossa].

E Goldman finaliza o seu raciocínio dizendo o seguinte: “Acrescentemosque do ponto de vista descritivo, que é por enquanto o nosso, não é maispossível considerar tais normas como ‘individuais’. Se referindo a isso, oscontraentes não têm, com efeito, nem a intenção, nem o sentimento decriar vínculos jurídicos singulares, mas sim de submeter uma operaçãoparticular e concreta à regras gerais e abstratas. Isto é tanto mais verdadeque para a própria interpretação dos termos empregados, os contratos-tipo em uso no Leste como no Oeste se referem freqüentemente aosIncoterms (Internacional Comercial Terms) da Câmara de ComercioInternacional [de Paris]. Este documento, que não é aliás, sobre todos ospontos, um simples ‘glossário’ fornece assim, aos quadros gerais, que jásão os contratos-tipo, um quadro mais geral ainda, submetendo-os a ummétodo uniforme de interpretação. É necessário então admitir que, narealidade, as operações do comercio internacional que se desenrolam nessesquadros, por assim dizer concêntricos, escapam largamente às leis estatais,sem prejulgar aqui o caráter jurídico ou não das normas ou dos ‘modos deconduta’ que se substituem a elas” [tradução nossa].15

15 BERTHOLD GOLDMAN. Op. cit., pp. 180-181.

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Exemplificado o seu raciocínio com a venda comercial internacional, passaGoldmana tratar das operações internacionais de crédito, e o faz da maneiraabaixo exposta.

AS OPERAÇÕES INTERNACIONAIS DE CRÉDITO

O fenômeno acima descrito pode ser constatado, da mesma forma, nasoperações internacionais de crédito, em especial quando elas assumem aforma de crédito documentário. Trata-se, aqui, de um mecanismo “triangular”,onde o importador encarrega o banqueiro de pagar o preço ao exportador,com a apresentação por parte deste, dos documentos constatando oembarque da mercadoria. O esquema é completado, freqüentemente, coma confirmação do crédito por parte do banqueiro, imprimindo um caráterabstrato com a obrigação deste para com o beneficiário.16

E o Prof. Goldman, a esse respeito, assim leciona: (…) uma codificação internacional das normas geralmente seguidasnessa matéria foi elaborada em 1933, ainda sob os auspícios daCâmara de Comercio Internacional [de Paris]: são as ‘Regras e Usosuniformes relativos ao crédito documentário’, refeitas em Lisboa,em 1951 e revisada em 1962. De origem puramente profissional,essas regras não são geralmente muito menos observadas pelosbanqueiros, e os próprios tribunais se referem a elas, notadamentena França: elas fornecem assim, concretamente, as normas daoperação de crédito, e a seu sujeito ainda podemos nos perguntarse elas não são normas jurídicas, se bem que elas não tenham tomadocorpo nem nas leis internas dos Estados, nem em suas Convençõesinternacionais” [tradução nossa].17

Tais regras, como se denota, são usualmente aplicadas em se tratandodas referidas operações, o que demonstra a existência de usos e costumesprofissionais que escapam à legislação doméstica dos Estados.

O terceiro exemplo referido por Goldman diz respeito aos transportesinternacionais, nos termos do tópico seguinte.

16Cf. BERTHOLD GOLDMAN. Idem, p. 181.17BERTHOLD GOLDMAN. Idem, ibidem.

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OS TRANSPORTES INTERNACIONAIS

Os transportes internacionais, da mesma forma, formam também o objetode um complexo de normas profissionais geralmente muito aplicadas. Jáse falou das cartas-partes e dos conhecimentos-tipo da London Corn TradeAssociation; no domínio do transporte marítimo, a prática inglesa – lecionaGOLDMAN – propõe outras normas, correntemente empregadas entre oscontraentes dos quais nenhum é inglês, e não têm sequer algum vínculocom a Inglaterra.18

O mesmo ocorre com o transporte aéreo internacional, que é reguladopelos contratos-tipo da International Air Transport Association (IATA),utilizado pela quase totalidade das companhias aéreas.

Como leciona o Prof. GOLDMAN:A generalidade de sua aplicação torna aqui difícil a distinção entreestes contratos-tipo e os usos codificados encontrados em matériade crédito documentário; mas, seja como for, para uns e para outros,como para os contratos-tipo utilizados na venda internacional, nãobasta dizer que a liberdade contratual, princípio de direito interno,permite se referir a isso para lhes recusar toda especificidade”[tradução nossa].19

Por fim, termina GOLDMAN esta escolha de exemplos citando aquele dealgumas sociedades internacionais, cuja estrutura e funcionamento são decerta forma completamente subtraídos tanto do direito interno estatal,como do próprio direito internacional.

ESTRUTURA E FUNCIONAMENTO DAS SOCIEDADESINTERNACIONAIS

Ao tratar do funcionamento das sociedades internacionais, observa-se deinício, que não se trata, aqui, de estudar aquelas sociedades cujofuncionamento escapa realmente a todo o direito interno estatal, mas quebuscam o conjunto de regras que as governam nos tratados internacionaisque as instituíram, porque, neste caso, “o caráter jurídico de seu estatuto

19 BERTHOLD GOLDMAN. Idem, ibidem.20 Idem, p. 182.

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somente poderia então ser controverso com o do direito internacionalpúblico no seu conjunto, que permanece fora desse nosso propósito”.21

GOLDMAN aqui irá partir da análise daquelas sociedades que, emboracriadas por tratados internacionais constitutivos, são reguladas pelos seusestatutos e, subsidiariamente, pelas leis do país de sua sede social. ParaGOLDMAN, os estatutos são:

Efetivamente, nesse caso, obra de empresas associadas, distintas dosEstados dos quais elas se libertam; quanto à lei de referênciasubsidiária, ela somente permanece estatal em aparência, porque elaé ‘cristalizada’ em seu estado no dia da constituição da sociedade, esuas modificações ulteriores não podem ser impostas a esta. Ela éassim conduzida por uma coletânea de normas supletivas de naturezamais próxima dos estatutos de uma sociedade, que do ato legislativode um Estado soberano.22

Mais característico ainda, segundo ele, é o caso daquelas sociedadesque, criadas ou não por convenções internacionais, referem-sedeliberadamente aos “princípios comuns” de várias legislações, até mesmoa fontes ainda indeterminadas, para preencher eventuais lacunas de seusestatutos. Foi o que aconteceu com a União Carbonífera Sarro-Lorraine(Saalor), sociedade franco-alemã regida, nos termos do artigo 1º de seusestatutos, pelo Tratado franco-alemão de 27 de outubro de 1956, “pelospresentes estatutos e pelos princípios comuns do direito francês e do direitoalemão”. Segundo GOLDMAN, na ausência de disposições dos tais textos ede tais princípios comuns, o tratado levaria em consideração “para ainterpretação dos estatutos e para a solução das questões não reguladaspor estes, o espírito de cooperação que inspirou a transformação da sociedadeem sociedade franco-alemã”. Da mesma forma – leciona ele –, osestatutos da sociedade “Air Afrique” dispõem que esta será regida pelotratado que a criou, pelos próprios estatutos, e “a título subsidiário, esomente na medida em que eles sejam compatíveis com as disposições dotratado e dos estatutos, pelos princípios comuns da legislação dos Estadossignatários do tratado”.23

21 BERTHOLD GOLDMAN. Idem, ibidem.22 Idem, ibidem.23 Idem, pp. 182-183.

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Lembra GOLDMAN, enfim, o exemplo do Scandinavian Airlines System,“consortium” criado por uma convenção entre companhias de transporteaéreo, não se ligando a nenhuma lei nacional: as cláusulas de seu contratoconstitutivo são pouco numerosas, e não se vê quase nada para completá-las senão os princípios comuns às três legislações escandinavas, e maisgeralmente, talvez, o direito comum das sociedades internacionais se seadmite a existência delas.24

Mas aqui fica uma pergunta: quem descobrirá tais “princípios comuns”?Segundo GOLDMAN, a questão aparece, para as sociedades, “porque osseus estatutos a eles apelam expressa ou implicitamente, mas a questãose põe, na realidade, também para os contratos do comércio internacional,na medida em que pode ser necessário completar ou interpretar as normasdos contratos-tipo ou das ‘Regras e Costumes’, em que se recusa a buscar[resposta], exclusivamente para isso, em um sistema jurídico estatal cujaspartes pretenderam se separar”.25

A resposta definitiva à indagação competirá ao juiz do contrato, ou daestrutura e do funcionamento da sociedade, “porque se ele não for pegode surpresa, a lacuna das ‘normas específicas’ terá sido facilmentepreenchida, ou a dificuldade de interpretação resolvida sem o recurso deum aparelho de aspecto jurídico”. Este juiz é, para os contratos desociedades que nos ocupam, quase sempre um tribunal arbitral. Assim,sendo, “é a arbitragem comercial internacional que nos colocará napresença do aspecto contencioso do fenômeno que nós acabamos, assim,de descrever, antes de tentar qualificá-lo”.26

Em resumo, segundo BERTHOLD GOLDMAN, as operações internacionaisde venda, crédito, transporte e de sociedades, já bastam para indicar a existênciareal de uma nova lex mercatoria a reger a sociedade internacional doscomerciantes.

A ARBITRAGEM INTERNACIONAL E A RESOLUÇÃO DOS LITÍGIOS

ADVINDOS DO COMÉRCIO INTERNACIONAL

São os chamados árbitros – institucionais (isto é, designados para oquadro dos grandes organismos de arbitragem, a exemplo da Corte de24 BERTHOLD GOLDMAN. Idem, p. 183.25Idem, ibidem.26Idem, ibidem.

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Arbitragem da Câmara de Comércio Internacional, a American ArbitrationAssociation, etc) ou ad hoc – aqueles comumente encarregados de resolveros litígios advindos do comércio internacional. E para a resolução de taisconflitos – leciona GOLDMAN – os mesmos se referem, primeiramente, àsnormas específicas que têm ligação direta com o contrato ou com asociedade em litígio (contratos-tipo, usos codificados, estatutos sociais),não podendo entretanto se limitar a um pano de fundo de regras geraisque lhes são freqüentemente indispensáveis, embora eles não façam sempreapelo explícito a isso.27

O fato é que, segundo tem atestado a experiência, os árbitros não têmprocurado resposta para o caso concreto submetido à sua apreciação, emuma lei estatal nem em um tratado internacional, mas sim em um “direitocostumeiro” do comércio internacional – chamado de lex mercatoria – sendoinútil perquirir se tais julgadores apenas a constatam ou se, ao contrário, aelaboram, posto que estas duas diligências estão, segundo GOLDMAN,intimamente misturadas, como toda vez que um juiz exerce uma talatividade.28

A última constatação que faz GOLDMAN é que os contraentes não deixamfreqüentemente de convidar os árbitros para julgarem seus litígios,recusando-se a escolher uma lei estatal para reger as suas relações, atémesmo declarando expressamente que não querem a tais leis se referir.Mas como também esclarece o Prof. GOLDMAN:

A despeito de uma confusão tenaz, isto não significa que nos seusespíritos os contraentes querem concluir um ‘contrato sem lei’, nemmesmo que o contrato, considerado como um conjunto de ‘normasindividuais’, deva inteiramente bastar-se a si mesmo; eles sentem, aocontrário, embora confusamente, a necessidade de colocá-lo noquadro das normas gerais, mas pensam também que essas normaspodem ser encontradas no direito profissional, nos usos ou nosprincípios gerais [de direito] ultrapassando as fronteiras nacionais”.29

A arbitragem, é, assim, um dos instrumentos fundamentais da nova lexmercatoria, e não pode deixar de ser levada em consideração quando se

27 BERTHOLD GOLDMAN. Idem, ibidem.28Idem, ibidem.29Idem, pp. 184-185.

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trata de analisar a ordem mercatória sob a ótica do sistema jurídico.30

A efetividade da decisão arbitral não repousa na força do Estado, masna da corporação em que se integram as partes litigantes. O vencido quenão acatar os mandamentos do laudo arbitral, de tal corporação seráautomaticamente excluído, ante a falta de credibilidade e de confiabilidadeque passará a caracterizá-lo perante os demais atores do comérciointernacional.31

Entretanto, nem a constatação material da existência de uma nova lexmercatoria, nem a constatação psicológica da referência que a ela é feita,bastam ao Prof. GOLDMAN para conferir a estas normas costumeiras docomércio internacional o caráter de regras de direito, sendo necessárioverificar se a nova lex mercatoria é merecedora ou não desta qualificação.

OS VÁRIOS MÉTODOS DE CARACTERIZAÇÃO DO DIREITO E A LEX

MERCATORIA

Para tanto, BERTHOLD GOLDMAN transita à segunda parte de seu estudo,a fim demonstrar os diversos métodos que podem ser empregados paracaracterizar o direito. Ou seja, sua proposta é verificar quais são os critériosdeterminadores das condutas humana, as que constituem regras (isto é,que não são seguidas de maneira unicamente espontânea, mas que sedeve seguir) e além disso, as que constituem regras jurídicas. Para GOLDMAN,pode-se “definir a regra de direito por seu domínio ou por seu objetivo – oque vem a ser, de uma ou outra maneira, a incorporação à sua substância;mas pode-se também qualificá-la por meio de critérios formais – buscados,deve-se compreender, na sua origem, no seu alcance e na sua utilização”.E é sob este duplo esclarecimento que GOLDMAN coloca, alternadamente,a experiência descrita anteriormente, para indagar se ela depende ou nãodo direito.32

A questão crucial de determinar se a lex mercatoria constitui ou não umaordem jurídica, também é enfrentada por PAUL LAGARDE, para quem tal

30 Cf. PHILIPPE KAHN, “Droit international économique, droit du développement, lex mercatoria: concept uniqueou pluralisme des ordres juridiques?”, cit., p. 106.31 Cf. JOSÉ CARLOS DE MAGALHÃES. Op. cit., p. 43. Vide, ainda, PHILIPPE KAHN, “Droit internationaléconomique, droit du développement, lex mercatoria: concept unique ou pluralisme des ordres juridiques?”, cit.,pp. 102-103.32 BERTHOLD GOLDMAN. “Frontières du droit et lex mercatoria”, cit., p. 185.

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questão é bastante embaraçosa, pois obriga o intérprete a arriscar umadefinição de “ordem jurídica” antes de verificar se a lex mercatoria respondea essa definição. Mas esta primeira questão, para LAGARDE, supondo queela possa trazer uma resposta pelo menos parcialmente positiva, desembocainfalivelmente em uma outra:

Se a lex mercatoria constitui uma ordem jurídica, esta ordem coexistenecessariamente com as ordens estatais e com a ordem internacional?Essas ordens mantêm mutuamente relações de coexistência ou deexclusão? Mais precisamente, qual é a atitude das ordens estatais emrelação à lex mercatoria? Elas a ignoram, negam sua existência ouaceitam de lhe ceder um lugar, por quais meios e em quaiscondições?” [tradução nossa].33

É sob esse ponto de vista que o assunto deverá ser tratado, de maneiraa se chegar num consenso sobre a viabilidade de se considerar a lexmercatoria como pertencendo ao domínio do direito, ou ao mundo jurídico.

A SEPARAÇÃO ENTRE O DOMÍNIO DO DIREITO E O DO NÃO-DIREITO

Como se sabe, o domínio do direito separa-se de diferentes maneirasdaquele do não-direito, podendo este situar-se além ou aquém do direito.

A primeira constatação que GOLDMAN faz aqui, é que o direito se compõedas regras do jogo econômico, onde estariam incluídos os princípios, asdisposições e contratos-tipo e os usos seguidos no comércio internacional.Eis sua lição:

Pode-se primeiramente estimar que o direito se compõe das regrasdo jogo econômico – embora esta concepção pareça ter somentevalor estatístico: porque se é verdade que a maioria das normasjurídicas dizem respeito às relações econômicas, está, entretanto, claro,que o direito intervém para proteger interesses afetivos ou moraiscuja repercussão patrimonial é nula ou pelo menos muito indireta.Mas, seja como for, os princípios, as disposições e contratos-tipo eos usos seguidos no comércio internacional, se situamincontestavelmente no domínio econômico, de modo que eles

33PAUL LAGARDE. “Approche critique de la lex mercatoria”, cit., pp. 126-127.

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mereceriam, nesse ponto de vista, ser considerados como jurídicos”[tradução nossa].34

E assim conclui o eminente internacionalista:De maneira mais variada – e a nosso ver mais justa – observou-seque o círculo da família e os vínculos de amizade, se eles não sãointeiramente impermeáveis ao direito, englobam, entretanto, amplaszonas de ‘não-direito’, e que pode ser mesmo assim quando assituações que se formam não são desprovidas de toda incidênciaeconômica (como por exemplo nas disposições testamentáriasprecatórias, ou o transporte gratuito). Ainda aí, tais limitações nãopoderiam evidentemente excluir as relações comerciais internacionaisdo domínio do direito, admitindo mesmo uma certa forma de‘amizade’ (que deveria, de preferência, chamar-se ‘confraternidade’ou ‘solidariedade profissional’) que unem os que aí participam, eexplica, entre outros fatores, a observação espontânea de normasnão-estatais” [tradução nossa].35

Esta última constatação, entretanto, segundo GOLDMAN, não autorizaconcluir que se submetendo a tais normas, os participantes do comérciointernacional teriam o sentimento de se colocarem em uma situação de purofato. O exportador de trigo, por exemplo, que vende se referindo a umcontrato-tipo da London Corn Trade Association, ou o banqueiro que confirmaum crédito documentário segundo as Regras e Costumes da C.C.I pensa –se está de boa-fé – que deverá seguir as prescrições desses documentos.Para GOLDMAN, eles não se consideram, em absoluto, “à margem” do mundojurídico.36

O Prof. Goldman a esse respeito, faz a seguinte indagação:Mas o caráter ‘amistoso’ das relações comerciais internacionais e oregulamento pela via da arbitragem das dificuldades que podemsurgir não justificaria considerá-las senão como fenômenos de ‘não-direito’, pelo menos como situando-se além do direito (a menosque esteja aquém)?”. Como se lê no primoroso trabalho de BERTHOLD

GOLDMAN, sobre este assunto, RENÉ DAVID escreveu que “a

34BERTHOLD GOLDMAN. Op. cit., p. 185.35Idem, pp. 185-186.36Idem, p. 186.

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arbitragem é, na sua essência, outra coisa diferente do direito”; este“visa a fazer reinar a ordem, assegurando a cada um o que lhe édevido (suum cuique) enquanto que aquela é uma instituição de paz...O recurso à arbitragem, tem por objeto restaurar a harmonia entreos interessados, organizar suas relações para o futuro, muito maisque fixar, voltando-se ao passado, o que é devido a cada um. É oque explica o motivo pelo qual a arbitragem intervém, em particular,nos litígios do comércio internacional” onde ela viria “suprir aausência do direito verdadeiramente internacional que seria normalaplicar nesse caso”.37

Goldman não concorda plenamente com as afirmações do Prof. RenéDavid, e justifica o seu ponto de vista nos termos seguintes:

Nós não podemos concordar plenamente com essas afirmações. Aexperiência concreta da arbitragem no comércio internacional mostra,nos parece, que muito freqüentemente a sentença resolve um litígio,como o faria uma decisão judicial; e se é verdade que após aintervenção dos árbitros, os adversários reatam (ou prosseguem)suas relações comerciais mais freqüentemente do que fazem após aintervenção de um tribunal, é antes de tudo porque, no comérciointernacional o amor próprio representa um papel menor que emcertas relações cujos juízes estatais têm que conhecer, e tambémporque a ausência de publicidade da sentença acelera a cura dasferidas que ele pode receber. Também é verdade que, quando elessão amáveis compositores, os árbitros estatuem com eqüidade tantoou mais que um direito; mas eqüidade não é caridade, nem mesmoindulgência – e particularmente no domínio do comérciointernacional ela é, precisamente, em boa parte, a aplicação decostumes que corrigem a rigidez das leis estatais, como a equity doChanceler corrigiu primeiramente aquela da common law do Bancodo Rei, para se cristalizar, por sua vez, em seguida. Sem dúvida,acontece também que os árbitros conciliem as partes – e se assistirá,em semelhante caso, a um arranjo de suas relações futuras,acrescentando-se, senão se substituindo para a solução das

37 Apud. BERTHOLD GOLDMAN. Idem, ibidem.

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dificuldades passadas; somente, não se está mais, então, no domíniodo contencioso, e sabe-se já que o contencioso não é todo o direito”[tradução nossa].38

Como conclui o Prof. BERTHOLD GOLDMAN, é suficiente, em definitivo,para não admitir que em razão do recurso à arbitragem, o comérciointernacional deva ser considerado como superando o direito, ou como semantendo à margem dele, deduzir que esse recurso não é uma recusa docontencioso. E parece difícil, para ele, fazer de outra maneira.39

O COMÉRCIO INTERNACIONAL NÃO É EXCLUSIVAMENTE DOMINADO PELO

SUUM CUIQUE – DAR A CADA UM O QUE LHE É DEVIDO

O fato de o comércio internacional não ser exclusivamente dominadopelo suum cuique (dar a cada um o que lhe é devido), pode também colocarem dúvida o caráter jurídico de seu arranjo, tendo em vista que, segundo atradição aristotélica, aí está o objetivo a que se destina o direito.

O Prof. Goldman, a esse respeito, se pergunta se o suum cuique nãoé, mais uma vez, um princípio de regulamento do contencioso, emvez de arranjo de relações contratuais. Para ele, o juiz tem,“certamente, por missão, conceder a cada qual o que lhe é devido,mas se atendo, quase sempre, ao que as partes combinaram que lheseria respectivamente devido, e que não corresponde necessariamenteao que deveria, na justiça, lhes caber. A justiça positiva, é o respeitodo contrato, não o respeito do equilíbrio das prestações; e na medidaem que o árbitro pode, mais freqüentemente que o juiz, estatuircom eqüidade, é talvez sua justiça que atingirá mais facilmente overdadeiro suum cuique”. E acrescenta que para BENTHAN, porexemplo, “é o útil, mais que o justo assim compreendido, que é oobjetivo da regra de direito; ora, na medida em que ele permite queas trocas sobrevivam aos litígios, a arbitragem comercial internacionalresponde a este objetivo, sem dúvida melhor que o regulamentojurisdicional estatal”.40

38 BERTHOLD GOLDMAN. Idem, pp. 186-187.39 BERTHOLD GOLDMAN. Idem, p. 187.40 BERTHOLD GOLDMAN. Idem, ibidem.

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OS CRITÉRIOS FORMAIS HABITUALMENTE UTILIZADOS PARA

CARACTERIZAR AS REGRAS DE DIREITO

A conclusão do Prof. GOLDMAN, então, é a de que não é, portanto, odomínio, nem o objetivo das normas do comércio internacional, que permiteconsiderá-las como estranhas ao direito. Entretanto, tais normasrespondem, igualmente, aos critérios formais habitualmente utilizados paracaracterizar a regra de direito? Em outras palavras, as regras da nova lexmercatoria são regras editadas por uma autoridade e contendo uma sanção?Todos aqueles – diz GOLDMAN – que estimam que é difícil determinar odomínio do direito em um momento de sua história, sem levar em conta oque é geralmente, senão exclusivamente, considerado nesse mesmomomento, como dele fazendo parte, julgarão que aí está o teste decisivo.41

A DEFINIÇÃO DE “REGRA” NA CONCEPÇÃO DE BATIFFOL E APRETENSA EXISTÊNCIA DE UM “CONJUNTO DE NORMAS” DA LEX

MERCATORIA SEGUNDO PAUL LAGARDE

O primeiro passo do Prof. Goldman, então, para caracterizar, porcritérios formais, a lex mercatoria como direito, foi o de definir o conteúdodo termo regra, e para tanto, tomou emprestada a conceituação, àqueletempo ainda inédita, de BATIFFOL, para quem uma regra “é uma prescriçãode caráter geral, formulada com uma precisão suficiente para que osinteressados possam conhecê-la antes de agir”.42

E a esse respeito o Prof. Goldman assim leciona:Admitiremos, sem dificuldade, que as cláusulas dos contratos-tipo,ou os usos codificados correspondem a esta definição, pelo menosno que concerne à generalidade, à precisão e à publicidade. Ahesitação é, sem dúvida, permitida quanto trata-se das ‘regras’costumeiras do comércio internacional, como aquelas das quais nóscitamos alguns exemplos: se se pode, notadamente, considerar quea sanção do abuso de direito ou a oponibilidade das cláusulasimpressas têm sido realmente tiradas pelo árbitro de um fundocomum preexistente e conhecido, senão formulado com precisão,

41BERTHOLD GOLDMAN. Idem, ibidem.42Apud. BERTHOLD GOLDMAN. Idem, pp. 187-188.

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é mais difícil de admiti-lo, por exemplo, para a presunção de garantiade troca nos contratos internacionais. Mas, para dizer a verdade, adificuldade não é específica às normas do comércio internacional.Ela se encontra cada vez que o juiz passa insensivelmente dainterpretação de uma regra preexistente – escrita ou não, mas certae conhecida, ou pelo menos conhecível – para a elaboração de umaregra nova; em resumo, para contestar o caráter de regras às normasou princípios extraídos pelos árbitros do comércio internacional,poder-se-ia também recusá-los para a ‘presunção deresponsabilidade’ do guarda, da qual ninguém sustentará que ela foiextraída do Código Civil. Dir-se-á que estas normas ou princípiossão menos conhecidos que as soluções constantes da jurisprudênciaestatal? A observação é exata, mas não revela uma diferençafundamental, porque as soluções arbitrais não são realmenteignoradas no meio profissional ao qual elas dizem respeito” [traduçãonossa].43

A indagação que Goldman coloca aqui é a seguinte: de onde vem,entretanto, que se decide mal, sob o ângulo da regra, em equipararinteiramente estas normas às leis ou aos costumes dependendo de umaordem jurídica estatal?

a) Segundo Goldman, inicialmente pode-se hesitar em admitir que asregras da lex mercatoria sejam efetivas prescrições – porque esta noção implicana de comando. As cláusulas dos contratos-tipo ou os usos codificados nãose impõem às partes, poderia se pensar, em virtude de sua livre adesão; eesta não é, ela própria, constrangida senão em virtude de uma lei estatal –o artigo 1.134 do Código Civil francês, e os textos correspondentes nosoutros países. Para ele, encontra-se aqui “a objeção precedentementereservada, que recusaria às normas estudadas, o caráter de regras (partindo-se das regras de direito) porque a abstração mesmo feita com toda ainvestigação de uma sanção, elas são, em si, radicalmente incapazes decomandar”.44

Mas tal objeção, para o Prof. Berthold Goldman, não é sem réplica.Nas suas palavras:

43 BERTHOLD GOLDMAN. Idem, p. 188.44 Idem, ibidem.

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Por um lado, a experiência concreta do comércio internacional parecerealmente estabelecer que de fato, ‘os pequenos são obrigados aseguir as regras estabelecidas pelos grandes’ – em outros termos,que a maioria das empresas deverão realmente, se elas queremparticipar do comércio internacional, adotar os contratos-tipoelaborados pelas organizações profissionais ou pelas maioresempresas do seu ramo de atividade. Por outro lado, de um pontode vista menos rasteiro, não é de modo algum correto que as partesem um contrato internacional observem suas cláusulas (elas própriasemprestadas de um contrato-tipo) porque cada qual estima que sualei estatal da qual ela depende a constrange, nem que seja por referênciamais ou menos implícita a uma tal lei estatal que árbitros imporãoeventualmente o respeito; encontra-se, de certo modo, tanto emuns como nos outros, a consciência de uma regra comum do comérciointernacional, muito simplesmente expressa no adágio pacta suntservanda. E pouco importa, para nosso propósito, que esse adágiocoincida com as regras estatais do tipo do artigo 1.134 do CódigoCivil; porque se é dele que os contratos-tipo e os usos codificadosemprestam sua força constrangedora, eles são prescrições, da mesmamaneira que as regras supletivas de um direito interno” [traduçãonossa].45

b) Na seqüência de seu raciocínio, o Prof. GOLDMAN faz a seguintecolocação:

Permanece, entretanto, que a existência, hipoteticamente admitida,de uma regra comum pacta sunt servanda não basta para conferir aoconjunto das normas do comércio internacional, no estágio atualde seu desenvolvimento o caráter de um sistema de direito”. E conclui:“Assim, por exemplo, não se encontrará regras relativas à capacidadedos contraentes, ou aos vícios do consentimento – cuja necessidadeé, além do mais, bastante teórica; mas, praticamente, a medida dospoderes dos órgãos ou dos representantes de uma sociedadecomercial é determinada de maneira variável pelas diversas leis estatais,sem que se aperceba como uma regra costumeira comum poderia

45BERTHOLD GOLDMAN. Idem, pp. 188-189.

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unificá-las; a mesma observação vale para a prescrição liberatória, ese poderia dizer sem dúvida lhe encontrar outras ilustrações”.46

Está provavelmente aí – segundo ele – a segunda explicação do malestar que se prova querendo assimilar completamente as normas das quaisse trata para regras de direito. Ela procede do sentimento mais ou menosdefinido de que somente é verdadeira regra de direito aquela que se integraem um sistema completo e que se basta a si mesma. A regra isolada, paraGOLDMAN, parece capenga, devendo apoiar-se em uma muleta buscadaem uma ordem diferente.

A conclusão que chega o então professor da Faculdade de Direito deParis, aqui, é a seguinte:

Tomar partido nessa exigência suplementar da definição do direito,ultrapassaria o quadro dessas observações. Notemos somente queela não impediria que em si, cada norma específica do comérciointernacional tivesse realmente as características de uma regra; ésomente seu conjunto que não formaria um sistema de direito. Masobservamos também que uma concepção monista da ordem jurídicadas relações econômicas faria desaparecer a objeção: admitiria-seentão, que um contrato do comércio internacional seja submetidoàs suas próprias regras, ultrapassando as fronteiras dos Estadoseventualmente completadas por regras estatais. E é aqui o momentode acrescentar que sendo obra de árbitros internacionais, a designaçãodestas regras estatais poderia progressivamente ser feita em virtudede um sistema de solução dos conflitos ele mesmo comum, em vezde ser fundada sobre o direito internacional privado de um paísdeterminado, mas cuja escolha não é jamais isenta de arbitrariedade”[tradução nossa].47

A conclusão aqui, é no sentido de que “o caráter de regras não pode serrecusado aos elementos constitutivos da lex mercatoria”, embora esta aindanão forme um sistema inteiramente autônomo.

A LEX MERCATORIA COMO REGRA JURÍDICA EMANADA DE UMA

AUTORIDADE

Resta saber, então, se as regras da lex mercatoria são jurídicas pela sua

46BERTHOLD GOLDMAN. Idem, p. 189.47Idem, ibidem.

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origem, ou seja, se emanam de uma autoridade. Para o Prof. BERTHOLD

GOLDMAN: “Colocar a questão é postular que uma tal ‘proveniência’ éindispensável para que uma norma seja jurídica – e este postulado não éuniversalmente admitido. As escolas históricas do direito vêem neste umfenômeno espontâneo, nascido do ‘espírito do povo’ (Volksgeist); e a escolasociológica, vê um fato social. E parece efetivamente difícil unirindissoluvelmente direito e autoridade: não se chegaria assim a negar queo direito costumeiro seja [parte] do direito, ou pelo menos a não lhereconhecer este caráter senão a partir do momento em que ele é consagradopor uma aplicação judiciária, o que seria de novo confundir direito econtencioso? A mesma observação valeria para amplos setores do direitointernacional público – que se hesita, entretanto, a considerar sempre comoestranhos ao domínio do direito” [tradução nossa].48

E continua este mesmo jurista dizendo o seguinte:De resto, as cláusulas dos contratos-tipo, como os usos codificadosdo comércio internacional não são, em seu estado atual, frutos deuma elaboração espontânea, mas sim de uma ‘edição’, ou de umaconstatação ‘informadora’. Estas emanam, o mais freqüentemente,de organismos profissionais que não são certamente autoridadespúblicas (embora, no caso importante dos contratos-tipo daComissão Econômica para a Europa das Nações Unidas, seja ainstituição internacional suprema que tenha suscitado e orientadosua elaboração); mas os ‘operadores’ do comércio internacional nãoas consideram como menos qualificadas para definir suas normas.Ora, admitindo mesmo que para merecer, sem reserva, oqualificativo de ‘jurídico’, uma regra deva ter sido editada ouformulada por uma autoridade – ou pelo menos que um conjuntode regras permaneceria à margem do direito se nenhuma delastivesse uma tal origem – semelhante condição somente se justificariaporque ela traduziria, com outras (a precisão, a generalidade, apublicidade e a sanção) a necessidade de certeza, de previsibilidadee de efetividade da regra do direito. Mas seria então satisfeito,entretanto, que a regra seja obra de uma autoridade profissional, oude uma autoridade pública” [tradução nossa].49

48BERTHOLD GOLDMAN. “Frontières du droit et lex mercatoria”, cit., p. 190.49BERTHOLD GOLDMAN. Idem, ibidem.

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Apesar de ser verdade que numerosos contratos-tipo são obra singularde uma única empresa, suficientemente poderosa para impô-los aos seusco-contraentes, não se pode considerar, segundo GOLDMAN, que ascláusulas de tais documentos emanam de uma autoridade exterior aoscontratos concluídos pela própria empresa; e fica difícil admiti-la, mesmoque um tal contrato-tipo seja utilizado em contratos particulares aos quaisesta empresa permaneceria estranha. E isto porque, “por mais poderosaque ela seja, esta pode, com efeito, ser considerada como uma força naprofissão, mas não como uma autoridade profissional. Quando muito seadmitirá que uma ampla difusão de um tal contrato-tipo poderia conferircom o decorrer do tempo, às suas cláusulas, o caráter de regras costumeiras,buscando sua efetividade no consensus da profissão; mas exemplos de umatal evolução parecem ter sido pouco citados”.50

Nas palavras do Prof. BERTHOLD GOLDMAN:

De maneira mais geral, uma outra reserva poderia ser empregadapara uma qualificação ‘jurídica’ das normas profissionais, mesmoemanando de órgãos representativos ou de associações: afirmou-se, com efeito, que elas não seriam de toda maneira aplicadas, emcada país, a não ser que a autoridade pública desse país admita a suaaplicação. Fontes juris originais por sua proveniência material, as novas“fontes do direito comercial internacional” não o seriam se seconsidera o poder de comando que elas manifestam”. Aindasegundo ele: “Ao nível da aplicação não contenciosa das normas,esta afirmação parece muito discutível; ela retomaria, efetivamente,nos parece, sua ‘fixação’ já contestada em uma regra de liberdadecontratual dependendo de uma ordem jurídica interna. A menosque se sustente que, mesmo uma regra comum pacta sunt servandanão poderia ser seguida senão porque cada Estado quer realmenteadmiti-la, em seu território; mas é bom levar em conta a psicologiados que a aplicam e também, recusar a hipótese de um direitocomercial internacional porque excluiu-se dela, antecipadamente essapossibilidade” [tradução nossa].51

50BERTHOLD GOLDMAN. Idem, ibidem.51Idem, pp. 190-191.

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A conclusão do Prof. GOLDMAN, aqui, é no sentido de que não é seguroque tal observação esteja fundada em relação à aplicação contenciosadas normas pelos árbitros do comércio internacional. Para ele, aexperiência ensina que estes não agem no interior de uma ordem jurídicaestatal, mas se colocam, ao contrário, imediatamente, no nível dacomunidade internacional dos comerciantes.52

A lex mercatoria dispõe de meios para assegurar ocumprimento e aplicação de suas normas?

Há ainda um último elemento formal que se diz necessário paracaracterizar as regras de direito. Trata-se da sanção, meio através do qualas regras de direito exigem o seu fiel cumprimento por parte dosdestinatários da norma.

Bastaria, para retirar da lex mercatoria o ser caráter “jurídico”, a alegaçãode que, no caso de desrespeito das normas do comércio internacional –ou mais exatamente da sentença arbitral que dela faz aplicação – por umadas partes contratantes, seria indispensável a parte prejudicada socorrer-se da força pública de um direito interno estatal, tendo em vista não existirno cenário comercial internacional uma força cogente que obrigue a partecumprir com sua obrigação.

Seria isto verdade? Para GOLDMAN, a observação é parcialmente inexatae o seu alcance ainda permanece discutível. Nas suas palavras:

A experiência prova, com efeito, ainda aqui, não somente que assentenças arbitrais são na maioria das vezes executadasespontaneamente, o que já atestaria a efetividade das regras que elascolocam em prática se fossem despojadas de sanções aplicáveispela coletividade dos comerciantes; mas também que tais sançõesexistem. Um notável inventário delas foi recentemente preparado:encontram-se aí, notadamente, sanções disciplinares aplicadas pelosagrupamentos corporativos, a sanção de ordem moral (mas comrepercussão profissional e material) consistindo na publicidade dasentença, as sanções diretamente profissionais como a eliminação

52BERTHOLD GOLDMAN. Idem, p. 191.

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de uma bolsa de comércio ou de algumas operações comerciais, [e]até mesmo as sanções pecuniárias garantidas por consignaçõesprévias. Certamente – salvo às do último tipo, praticamente limitadas,parece, à cobrança de despesas da arbitragem – estas diversas‘sanções’ são, de preferência, meios de assegurar indiretamente aexecução da sentença do que procedimentos de execução forçadapropriamente ditos; mas que elas sejam primeiramente cominatóriasnão devem dissimular seu caráter praticamente coercitivo. Seráconveniente, também, que a licitude de algumas dentre elas possaser discutida, e foi efetivamente recusada pelos tribunais, em particularna França; mas essas dificuldades dizem respeito, na maioria dasvezes, às modalidades de aplicação das sanções profissionais emlugar de seu próprio princípio” [tradução nossa].53

E GOLDMAN continua, dizendo o seguinte:Permanece que em algumas hipóteses – estatisticamente raras – aexecução da sentença arbitral aplicando as normas próprias docomércio internacional não poderá ser obtida senão pela intervençãoda força pública. Mas nós não pensamos que isso deixe essas própriasnormas fora do direito; porque precisamente, essa última sançãolhes é realmente concedida salvo se elas apareçam, através da sentença,como contrárias à ordem pública do país em que a execução érequerida. Elas não permanecem, por conseguinte, desprovidas desanção – e pode-se somente dizer que elas devem algumas vezes,para obtê-la, fazer um apelo a uma ordem jurídica estatal em relaçãoa qual elas se pretenderiam autônomas” [tradução nossa].54

O que se conclui, então, é que a sanção pretendida na lex mercatoriaexiste, apenas não é idêntica àquela conhecida pelo direito interno estatal,como meio para se fazer valer o respeito aos mandamentos de suas regrasjurídicas.

Aqui se encontra, então, a dificuldade vinda do fato de que a lexmercatoria não é um sistema jurídico completo, e acrescenta-se, também,que ela não diz respeito a uma coletividade politicamente organizada,

53 BERTHOLD GOLDMAN. Idem, pp. 191-192.54 Idem, p. 192.

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que só pode ser dotada de uma força coercitiva irresistível. Mas isso nãoé suficiente – segundo GOLDMAN – para constatar que pelo menos algumasdas normas que a compõem – e em verdade todas, com exceção doscontratos-tipo emanados de empresas isoladas – são realmente “regrasgerais de direito”, e não simples normas individuais presas a uma regraestatal que reconhece força obrigatória aos contratos. Tampouco se podedesconhecer – ainda segundo GOLDMAN – o seu movimento em direção auma sistematização certamente incompleta, mas crescente.55

A CONCLUSÃO DE BERTHOLD GOLDMAN SOBRE ASNORMAS DA NOVA LEX MERCATORIA

A conclusão que chegou GOLDMAN em seu primoroso trabalho, foi a deque a lex mercatoria situa-se, tanto substancial como formalmente, no domíniodo direito, tendo ainda a finalidade de cuidar para que os interesses queela persegue para sua satisfação permaneçam suficientemente equilibradospara garantir a legitimidade de suas prescrições.

Eis as suas palavras:La lex mercatoria se situe donc bien, substantiellement commeformellement, dans le domaine du droit; il reste encore à veiller à ceque les intérêts dont elle poursuit la satisfaction demeurentsuffisamment équilibrés pour garantir la légitimité de ses prescriptions.Mais ceci, aurait dit KIPLING, est une autre histoire”.56

Sem embargo das críticas que podem ser formuladas às suas concepções,muitas delas já expressadas pelo Prof. PAUL LAGARDE, o certo que é adoutrina da nova lex mercatoria teve o seu surgimento, em 1964, com otrabalho de BERTHOLD GOLDMAN, intitulado “Frontières du droit et lexmercatoria”, publicado nos Archives de Philosophie du Droit, n.º 09, ondedetectou ele a existência desse direito costumeiro internacional, nascidodas práticas comerciais internacionais, liberto e desvinculado de qualquerfronteira estatal.

A partir daí, GOLDMAN lança as bases para uma ardente e profundadiscussão, ainda longe de encontrar o seu fim, sobre a nova lex mercatoriae sua caracterização como fonte do direito do comércio internacional.

55BERTHOLD GOLDMAN. Idem, ibidem.56Idem, ibidem.

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BIBLIOGRAFIA

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