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Letramentos, ensino e os desafios da globalizaoRoxane Rojo (IEL/UNICAMP)Jacqueline Peixoto Barbosa (PUC-SP)

Lcia Santaella, em seu livro Culturas e artes do ps-humano, prope uma diviso das eras culturais em seis tipos de formaes (SANTAELLA, 2010, p. 13) que pode nos ajudar a compreender como as prticas de letramento e, em especial, interessam-me aqui as prticas escolares de letramento mudam com as mudanas tecnolgicas trazidas pela globalizao. Essas eras culturais so: a cultura oral, a cultura escrita, a cultura impressa, a cultura de massas, a cultura das mdias e a cultura digital. Vejamos como esses conceitos de Santaella podem nos ajudar a compreender a realidade das nossas prticas escolares de letramento e os desafios postos para ns na era digital.Na era da cultura oral, no havia nem escola nem ensino, tais como os compreendemos hoje. A escola e o ensino, como bem diz Lahire (1993), so instituio e prticas derivadas da lgica da cultura da escrita. H, na Internet, um vdeo de animao A histria das tecnologias na educao[footnoteRef:1] que mostra bem como as diversas tecnologias do quadro negro aos celulares, tablets e lousas digitais foram adentrando as escolas e modificando as prticas, conforme as eras mencionadas por Santaella. Vale a pena ver. [1: The history of technology in education. Disponvel em https://www.youtube.com/watch?v=UFwWWsz_X9s. Acesso em 06/06/2014.] Fonte: The history of technology in education. Disponvel em https://www.youtube.com/watch?v=UFwWWsz_X9s. Acesso em 06/06/2014.

Esse vdeo data a educao pblica, ainda oral, do sculo XVII e o aparecimento da escrita em sala de aula (o quadro negro), de 1700. Mas a cultura do impresso (isto , o livro e os textos mimeografados ou xerocados) somente adentram a escola no final do sculo XIX e no sculo XX. Nesses sculos, consolidaram-se na escola prticas de letramento prprias das funes da escola e das mentalidades letradas neste perodo. A cpia do quadro negro e depois do livro, o ditado, as questes fechadas de avaliao baseadas em localizao de trechos escritos, as chamadas orais, as provas, os seminrios, as descries vista de gravura, as narraes ou histrias, as dissertaes, todas essas eram e so prticas da escola da modernidade, em que o ensino visava disciplinar corpo, linguagem e mente (CHERVEL, 1990) e em que o texto, escrito ou impresso, convoca prticas letradas muito especficas, de confiana, respeito e repetio/reproduo; de reverncia. Essas prticas, embora modificadas, permanecem ainda hoje fortemente na escola, pois nem a escrita, nem os impressos e nem essa mentalidade escolar disciplinadora desapareceram: ainda so teis sociedade.Em minha opinio, tanto as tecnologias da cultura de massas (rdio e TV) como as da cultura das mdias (retroprojetores, episcpios, reprodutores de videocassete e de fitas cassete etc.) penetraram fraca, lateral e incidentalmente na escola e nunca foram incorporadas constitutivamente ao currculo e s prticas letradas escolares fundantes da cultura escrita e da cultura impressa: a escola , ainda hoje, principalmente um lugar de livros, de oralizao do escrito e do impresso. No entanto, nas casas do sculo XX (segunda metade), essas so tecnologias onipresentes e extremamente importantes na vida cotidiana das pessoas em geral e dos alunos em particular. A cultura de massas preserva a unidirecionalidade (de um para muitos as massas , sem possibilidades de retroalimentao) das culturas do escrito e do impresso. Mas a cultura das mdias, no. Pela primeira vez na histria, eu posso adequar os bens de consumo simblicos (filmes, vdeos, msicas etc.) ao meu gosto e s minhas colees (GARCA-CANCLINI, 2008[1997]): alugo o filme que quero, gravo fitas de minhas msicas preferidas, ao invs de ficar submetida ao que me oferecem as culturas do impresso e de massas. Isso, de certa forma, preparou-nos para a cultura digital: aumentou nossa capacidade de deciso, escolha e seleo de quais produtos culturais preferamos ler, ver ou consumir e, com isso, ampliou nosso raio de ao e influncia sobre a produo cultural. Tambm nos levou a prticas multiletradas de leitura de textos escritos, impressos ou no, mas tambm de imagens em movimento (vdeos e filmes) e de udio. Mas a escola no incorporou centralmente essas linguagens em suas prticas: ateve-se, como os impressos, imagem esttica (foto, ilustrao etc.), quando muito. Com isso, de certa forma, os multiletramentos[footnoteRef:2] ainda no adentraram a escola. [2: Multiletramentos so as prticas de trato com os textos multimodais ou multissemiticos contemporneos majoritariamente digitais, mas tambm impressos , que incluem procedimentos (como gestos para ler, por exemplo) e capacidades de leitura e produo que vo muito alm da compreenso e produo de textos escritos, pois incorporam a leitura e (re)produo de imagens e fotos, diagramas, grficos e infogrficos, vdeos, udio etc. ]

A quarta revoluo da escrita, como a chama Chartier (1997), a cultura digital, pe por terra todo o edifcio de prticas letradas cultuadas e perpetuadas pela escola. Nela, o leitor no mais reverente ao texto, concentrado e disciplinado, mas disperso, plano, navegador errante; no mais receptor ou destinatrio sem possibilidade de resposta, mas comenta, curte, redistribui, remixa. As fronteiras entre leitura e autoria se esfumaam. Surge o lautor ou o produsurio[footnoteRef:3]. Posso dizer que nem as tecnologias digitais e nem os novos multiletramentos da cultura digital efetivamente chegaram ainda s prticas escolares, que continuam aferradas ao impresso e a suas prticas. No entanto, essas so as prticas letradas das pessoas, dos trabalhadores e dos cidados no sculo XXI. [3: Produsurios no esto envolvidos em uma forma de produo tradicional de contedo, mas esto envolvidos em produsagem a construo contnua e colaborativa e a ampliao do contedo existente, na busca de novas melhorias. (BRUNS, 2008, p. 21)]

Convido neste texto o leitor a refletir sobre a urgncia de incorporar essas prticas, mentalidades e multiletramentos escola o quanto antes, de maneira a formar pessoas, cidados e trabalhadores para o sculo em que estamos. Como pergunta o vdeo de animao que mencionei antes: Como voc vai moldar a sala de aula de amanh?

1. Os letramentos da letra ou convencionais: dominando as ferramentas do Estado-Nao

Claro est que a escola guardi patrimonial dos letramentos convencionais, i.e., das prticas de leitura e escrita da era do impresso, em esferas dominantes de circulao de discursos (como a iluminista esfera da divulgao cientfica ou a moderna esfera do jornalismo de massa ou da grande imprensa), que, entre outras conquistas, garantem o acesso lngua padro, norma culta, aos formatos cannicos dos textos e gneros, aos textos valorizados socialmente. Ningum pensaria em propor que a escola abandonasse essa sua vocao fundante.Assim que faz todo sentido propor que certas reas ou disciplinas se encarreguem de certas esferas ou campos de circulao de discursos, como a jornalstica ou a de divulgao cientfica, para formar o leitor/produtor de textos escritos desses campos. Isso no deve significar grandes desafios ao professor, j que didatizaes da abordagem de gneros do campo da divulgao cientfica tais como verbetes, notcias e notas, artigos etc. e do campo jornalstico como notcias, reportagens, artigos de opinio, editorial etc. j circulam h pelo menos 15 anos em livros e sequncias didticos.No entanto, h que entender tambm que mesmo essas esferas da cultura do impresso se valem de diferentes modalidades (oral/escrita) e semioses (linguagem verbal, imagens, udio) para significar. Tratar de um grfico ou de um mapa um letramento to convencional quanto a leitura/escrita de um verbete enciclopdico, que pode, alis, inclu-los.Como lembra Lemke (1998, s/p, traduo nossa),As habilidades multimdia de autoria ou de anlise crtica correspondem de perto s habilidades tradicionais de produo de textos e de leitura crtica, mas preciso que entendamos o quo restritivas foram no passado nossas tradies de educao para os letramentos, de maneira a compreendermos o quanto os alunos precisaro no futuro alm daquilo que lhes damos no presente. No ensinamos os alunos nem como integrar desenhos ou diagramas em sua escrita, que dir arquivos de imagem fotogrfica, videoclipes, efeitos sonoros, udio de voz, msica, animao ou representaes mais especializadas (frmulas matemticas, grficos e tabelas etc.) [...] O que realmente precisamos ensinar e entender antes de podermos ensinar - como vrios letramentos, vrias tradies culturais combinam essas diferentes modalidades semiticas para gerar significao que mais abrangente que a soma do que cada uma das linguagens significa separadamente.

Assim que um professor dever conhecer tanto os gneros de texto verbais como os multimodais (grficos, infogrficos, mapas, lbuns de fotos, videoclipes etc.), para poder abordar com adequao os letramentos ou prticas de leitura/produo que sobre eles se exercem. No leio/produzo da mesma forma um texto geogrfico impresso com mapas ou grficos, uma notcia de relevncia histrica que apresenta uma linha do tempo ou um verbete cientfico de divulgao que conta com um infogrfico. No momento em que esses impressos entram em sala de aula nessas reas/disciplinas, para a construo de conhecimentos, conceitos, competncias e habilidades especficos, o professor tambm tem de ter em mente as propriedades desses textos e gneros, para encaminhar adequadamente leituras e produes. E isso significa conhecer bem esses gneros, seu funcionamento e circulao, para poder abordar adequadamente seus modos de ler/produzir especficos. E no campo dos gneros multimodais, o professor se encontra um pouco mais desvalido, pois h poucas didatizaes para a abordagem eficiente desses gneros que se valem da linguagem escrita e da imagem/diagramao.Um outro campo em que o professor se encontra um pouco desamparado e trabalha de maneira muitas vezes intuitiva ainda o campo dos textos na modalidade oral formal e pblica (debates, depoimentos, entrevistas, pesquisas, exposies ou apresentaes orais etc.), indicados em diferentes referenciais e orientaes curriculares, mas ainda raramente abordados em materiais didticos[footnoteRef:4]. [4: Uma das fontes de referncia importantes para a abordagem dos gneros orais formais e pblicos com os alunos Schneuwly, Dolz et al. (2004).]

Embora esses gneros multimodais, sejam aqueles em linguagem oral formal e pblica, sejam os que combinam escrita e imagem/diagramao, no venham sendo tradicionalmente abordados com efetividade na escola como lembra Lemke (1998) , eles no so gneros que surgiram com os novos multiletramentos digitais, como os clipes, a animao, os games, os remixes. Ao contrrio, so gneros que surgem nos letramentos convencionais. Que outros desafios nos reservaro os novos letramentos[footnoteRef:5]? [5: Novos letramentos, ou letramentos digitais, so um subconjunto dos multiletramentos, definido, segundo Lankshear e Knobel (2007), pela nova tecnologia (digital) adotada, mas no principalmente. O que define fundamentalmente os novos letramentos, segundo os autores, um novo ethos, isto uma nova maneira de ver e de ser no mundo contemporneo, que prioriza a interatividade, a colaborao e a (re)distribuio do conhecimento, ao invs da hierarquia, da autoria e da posse controlada e vigiada do conhecimento por diversas agncias, como a escola, as editoras e a universidade.]

2. Os novos multiletramentos: um mundo de misturas de lnguas e linguagens e de produsagem[footnoteRef:6] [6: Produsurios no esto envolvidos em uma forma de produo tradicional de contedo, mas esto envolvidos em produsagem a construo contnua e colaborativa e a ampliao do contedo existente, na busca de novas melhorias. (BRUNS, 2008, p. 21)]

Como diz Ronaldo Lemos, em novembro de 2011, em um vdeo do MODMTv[footnoteRef:7], [7: Disponvel em http://mtv.uol.com.br/programas/mod/videos/02x08-educacao, acesso em 10/06/2014.]

um dos problemas da educao no mundo de hoje o apego excessivo ao texto [escrito]: a expresso de ideias no acontece mais s escrevendo alguma coisa. A vida, ela muito mais multimdia hoje em dia.

Isso significa que no basta mais a escola enfatizar os letramentos da letra e os gneros discursivos escritos e impressos da tradio e do cnone. urgente enfocar os multiletramentos e os novos letramentos que circulam na vida contempornea de nossos alunos, tais como os vdeos e clipes, as postagens de blogs, os painis (ou lbuns) fotogrficos etc.A maior parte dos gneros discursivos que esto presentes nas atividades letradas de nossa vida contempornea, nas vrias mdias (impressa, televisiva, radiofnica, digital), incorpora textos escritos, mas no unicamente e nem principalmente. Apresentam tambm diagramas, tabelas, campos, formulrios, boxes (como e-mails, torpedos e agendas) ou fotos, imagens, mapas, plantas, vdeos, animaes, sons, msica, fala e uma multido de outras linguagens. Isso quer dizer que as capacidades de leitura e escrita dos letramentos da letra no so mais suficientes para a vida contempornea. Assim, no bastam mais para compor os currculos nas escolas.Os currculos escolares devem comear a incluir mais decisivamente a leitura e escrita de gneros de texto multissemiticos ou multimodais (compostos por todas essas linguagens, para significar e funcionar) e os multiletramentos e novos letramentos requeridos pelas prticas em que eles esto inseridos. E quais as caractersticas desses textos e gneros desses novos multiletramentos? Quais delas deveriam os currculos e prticas escolares enfatizar e encampar?Para alm de se caracterizarem pela multiplicidade de linguagens ou semioses que os compem e pela diversidade de culturas a que remetem (COPE; KALANTZIS, 2000), esses novos textos e gneros tambm derivam de prticas letradas que adotam um nova mentalidade ou tica (um novo ethos, no dizer de Lankshear e Knobel (2007)) que torna seu funcionamento e seus modos de produo, de circulao e de recepo muito diferentes dos modos do letramento convencional da letra e do impresso na modernidade. o que os autores nomeiam mentalidade 2.0 em analogia com o modo de funcionar da WEB 2.0[footnoteRef:8]. [8: A primeira gerao da Internet (WEB 1.0) principalmente dava informao unidirecional (de um para muitos), como na cultura de massa. Com o aparecimento de sites como Facebook e Amazon, a WEB tornou-se cada vez mais interativa. Nesta WEB 2.0, so principalmente os usurios que produzem contedos em postagens e publicaes, em redes sociais como Facebook, Twitter, Tumblr, Google+, na Wikipedia, em redes de mdia como YouTube, Flickr, Instagram etc. A medida que as pessoas se familiarizaram com a WEB 2.0, foi possvel a marcao e etiquetagem de contedos dos usurios que abre caminho para a prxima gerao da Internet: WEB 3.0, a dita internet inteligente. Por um processo de aprendizagem contnua por meio da etiquetagem, a WEB 3.0 pretende antecipar o que o usurio gosta ou detesta, suas necessidades e seus interesses, de maneira a oferecer contedos e mercadorias em tempo real. Os efeitos dessa inteligncia j comeam a se fazer sentir em diferentes sites.]

Citando Lemke (2010[1998], s/p, traduo nossa),A primeira gerao das tecnologias de aprendizagem interativas foi, no surpreendentemente, uma simples transposio do modelo de educao do livro texto para uma nova mdia de demonstrao. As rvores podem estar agradecidas, mas pouco muda em relao natureza da aprendizagem, talvez apenas a motivao crescente para alguns alunos gerada pela novidade. Mas to logo os textos online se tornem digitais (em oposio a imagens em bitmap da pgina), ele facilmente pesquisvel. E se pode [o texto] ser pesquisvel, pode ser indexado e estabelecer referncia com outros textos. Agora, o texto simultaneamente um banco de dados, e o hipertexto nasce (NELSON 1974, LANDOW 1992, BOLTER 1991 e 1998). [] Agora, a aprendizagem muda. Ao invs de sermos prisioneiros de autores de livros texto e de suas prioridades, escopos e sequncia[footnoteRef:9], somos agentes livres que podem encontrar mais sobre um assunto que os autores sintetizaram, ou encontrar interpretaes alternativas que eles no mencionaram (ou com a qual concordam ou at mesmo consideram moral ou cientfico). Podemos mudar o assunto para adequ-lo ao nosso juzo de relevncia para nossos prprios interesses e planos e podemos retornar mais tarde para um desenvolvimento padro baseado no livro texto. Podemos aprender como se tivssemos acesso a todos estes textos e como se tivssemos um especialista que pudesse nos indicar a maioria das referncias entre tais textos. Temos agora que aprender a realizar formas mais complexas de julgamento e ganhamos muita prtica fazendo isso. [9: Como diria Chartier (1994), dos protocolos de leitura de autores e de editores.]

No entanto, o autor insiste que, apesar de todas estas mudanas nos textos contemporneos, os novos letramentos no so assim to novos. Segundo ele, como vimos, as habilidades de autoria multimiditica e anlise crtica multimiditica correspondem, de forma aproximada, a habilidades tradicionais de produo textual e de leitura crtica (LEMKE, 2010[1998], s/p, traduo nossa).J Lankshear e Knobel (2007, p. 7) pensam diferente. Para os autores, os novos multiletramentos se caracterizam por novas tecnologias digitais que incluem os cdigos fonte (programas); os aplicativos (ferramentas de texto, som, imagem, animao, ferramentas de comunicao etc.); dispositivos digitais (computadores, consoles, tocadores de mp3/mp4, tablets, celulares etc.)[footnoteRef:10]; conexo. Estas novas tecnologias acarretam, claro, novas tcnicas e procedimentos como clicar, cortar, colar, arrastar, etc. Mas tambm tm efeitos na organizao e materialidade dos textos, constituindo-se como hipertextos, atualmente organizados como multimdia/hipermdia (mltiplas mdias organizadas em hipertextos), o que acarreta para o leitor textos multissemiticos ou multimodais (compostos por diversas linguagens). [10: Interessante pensar que quando falamos em novas tecnologias, estamos, em geral, nos referindo aos dispositivos (normalmente restritos a computadores desktops ou laptops, sem pensar na grande variedade de dispositivos de que dispomos hoje e em seus diferentes funcionamentos) e aos programas (cdigos-fonte), ignorando todos os outros elementos elencados pelos autores: aplicativos, outros dispositivos, conexo, tcnicas ou procedimentos diferenciados de acordo com dispositivos e aplicativos.]

No entanto, para os autores, o que central nos novos letramentos no o fato de que podemos agora obter informao online ou escrever ensaios usando um processador de texto em vez de uma caneta ou mquina de escrever ou, at mesmo, que possamos mixar msica, com novo e sofisticado software rodando em computadores comuns. Mas, em vez disso, o central que os novos letramentos mobilizam tipos de valores, prioridades e sensibilidades muito diferentes dos dos letramentos convencionais. A importncia das novas tecnologias reside principalmente em como permitem s pessoas participarem e construrem prticas letradas que envolvem tipos diferentes de valores, sensibilidades, normas e procedimentos em relao aos que caracterizam os letramentos convencionais. (LANKSHEAR; KNOBEL, 2007, p. 7, traduo nossa)

A esses tipos diferentes de valores, prioridades e sensibilidades os autores do o nome de novo ethos ou mentalidade 2.0. Esse novo ethos ou mentalidade 2.0 se caracteriza por apresentar letramentos mais participativos, colaborativos, distribudos e menos individualizados, autorados, controlados por agentes de publicao (editores, por exemplo). Logo, so prticas menos dominadas-por-especialistas, com regras e normas mais fluidas, que operam a partir de novas mentalidades, maximizando relaes, dilogos, redes e disperses e tendo a livre informao como valor-chave. Isso inaugura uma cultura do remix e da hibridao.Trata-se, segundo os autores, de uma mentalidade ps-industrial que teria as caractersticas apontadas na Figura 1:

Figura 1: Caractersticas das mentalidades industrial e ps-industrial, segundo Lankshear e Knobel (2007). Adaptado de Buzato (s/d, s/p), disponvel em https://www.academia.edu/3324197/Cultura_digital_e_escola_transformando_dilemas_em_reflexoes_propositivas. Acesso em 14/06/2014.

Os valores mais salientes seriam portanto: colaborao, abertura, hibridao e remix.Retomando a pergunta-chave: nessas novas prticas sociais trazidas pelos novos multiletramentos, quais delas deveriam os currculos e prticas escolares enfatizar e encampar?

3. Novos multiletramentos e a escola: que novas prticas encampar?Aderindo posio de Lankshear e Knobel (2007) exposta acima, podemos defender que as prticas a serem encampadas, adotadas e analisadas pelas escolas, no campo dos novos multiletramentos, seriam as que exibem um novo ethos ou mentalidade 2.0, alm de usarem novas tecnologias como mdia. No o que a escola vem fazendo, pois tem enfocado, principalmente, ferramentas de pesquisa e busca na Internet e a elaborao de textos por meio de novas tecnologias que poderiam perfeitamente ser feitos com escrita manuscrita ou mecnica e que, no mximo, sero publicados em um blog (unidirecional).Recentemente, tive a oportunidade de participar, juntamente com meus orientandos[footnoteRef:11], da elaborao de materiais para um curso de formao de professores a distncia, em nvel de especializao[footnoteRef:12], sob demanda do MEC/Proinfo e elaborado pelo Laboratrio de Novas Tecnologias (LANTEC) do Centro de Cincias da Educao (CED) da UFSC. Coube-nos o desafio de elaborar um curso de formao que enfocasse o uso das novas tecnologias e de seus textos e gneros, incorporados ao currculo de Lngua Portuguesa para o Ensino Mdio. Nesta oportunidade, trabalhamos em colaborao com a coautora deste texto, Jacqueline Peixoto Barbosa, e seus orientandos[footnoteRef:13], que liderou a elaborao do material do Curso de Lngua Portuguesa para o Ensino Fundamental. Chegamos, juntas, a um conjunto de critrios e funcionamentos relativos mentalidade 2.0 que deveriam ser enfocados neste(s) curso(s) e, como proposta mais geral, no uso de novas tecnologias na escola. [11: Jezreel Gabriel Lopes, Joo Reynaldo Pires Jr., Ktia Fujisawa e Saulo da Silva Oliveira.] [12: Curso de Especializao Educao na Cultura Digital, solicitado e financiado pelo MEC para rodar na plataforma E-Proinfo, elaborado pelo Laboratrio de Novas Tecnologias (LANTEC) do Centro de Cincias da Educao (CED) da UFSC, para atender a docentes de escolas pblicas de todo o Brasil, por intermdio das Universidades Federais, em todas as disciplinas de EF-II e EM.] [13: Eduardo de Moura, Nayara Moreira e Amanda Lacerda.]

Partimos do preceito, derivado de Cope e Kalantzis (2000), de que deveriam ser incorporadas aos respectivos currculos prticas letradas que fazem uso de diferentes mdias e, consequentemente, de diversas linguagens, incluindo aquelas que circulam nas mais variadas culturas presentes na sala de aula, para alm da cultura valorizada, tradicionalmente considerada pela escola. (BARBOSA; ROJO, 2013, s/p)

A nosso ver, tais prticas de novos multiletramentos supem:a) Novas e outras habilidades de leitura e escrita que incorporam hipertextos e hipermdia;b) Redistribuio e remixagem de contedos e informaes;c) Domnio de softwares de edio de texto escrito, foto, udio e vdeo etc.;d) Elaborao de roteiros e de outros tipos de planejamento prvio;e) Saber selecionar, tratar, analisar, redistribuir, remixar/transformar informaes;f) Assumir um lugar protagonista; eg) Usar adequadamente e eticamente a voz que lhe possibilitada.

Para alcanar, como objetivos do Curso, esses procedimentos, habilidades e posturas envolvidos nos novos multiletramentos, adotamos o encaminhamento pedaggico exibido no Mapa dos Multiletramentos de Cope e Kalantzis (2000), exibido na Figura 2, abaixo:

Ou seja, a nosso ver, no basta formar os professores como usurios funcionais que tenham apenas competncia tcnica e conhecimento prtico para manejar dispositivos, software e aplicativos, como faz a maior parte dos cursos de formao para manejo de novas tecnologias. preciso que eles o faam como analistas crticos, que entendem a ideologia materializada nos textos e enunciados, que o que lhe possibilita ser criador de sentidos novos em seus textos e enunciados, usando o que foi aprendido de maneira inovadora ou transformadora.Assim, chegamos aos objetivos gerais dos Cursos, que seriam:1. Compreender os novos multiletramentos e as prticas contemporneas de leitura e escrita (multiletramentos e novos letramentos). 2. Ser capaz de compreender e produzir aes e processos da WEB 2.0: curadoria, redistribuio de contedos e informaes, remixagem, apreciao; as prticas de seguir, curtir, compartilhar e comentar, etc. 3. Participar nas prticas de linguagem contemporneas que tm lugar no mundo digital. 4. Analisar e planejar atividades e projetos didticos na perspectiva dos novos multiletramentos.Outra questo que tivemos de enfrentar foi que ferramentas, gneros digitais e textos escolher para integrar ao currculo de Lngua Portuguesa (EF-II e EM). Para resolver esta questo, adotamos as premissas presentes nos referenciais nacionais (BRASIL, 1998; BRASIL, 2006) de que gneros e suas esferas ou campos de produo/circulao seriam bons organizadores para nossas escolhas dos textos/enunciados a serem analisados, produzidos e eventualmente incorporados nos respectivos currculos. A Figura 3 baixo, exibe este movimento de seleo:

Figura 3: Princpios de organizao curricular de Lngua Portuguesa.Na impossibilidade de abordar todas as esferas/campos e todos os gneros, priorizamos as(os) que julgamos mais importantes para a formao tica cidad e esttica dos alunos desses professores e, nelas, alguns gneros e letramentos especficos, de acordo com os objetivos selecionados para os Cursos. Assim, os Cursos foram compostos por quatro Mdulos, conforme a Figura 4 a seguir:

Figura 4: Estruturao dos Cursos em Mdulos.

O primeiro Mdulo, menor que os outros (6H) e comum aos dois Cursos, enfoca os principais conceitos e posturas envolvidos no novos multiletramentos. Os trs Mdulos seguintes, maiores (18h), enfocam contedos especficos por Curso, mas abordando nos dois Cursos gneros de trs esferas/campos comuns de circulao dos discursos (de divulgao cientfica, artstico-literria e jornalstica). As Figuras 5 a 7 abaixo exibem os principais contedos/habilidades/letramentos enfocados:

Figura 5: Sntese das principais atividades e gneros digitais enfocados no Mdulo relativo esfera da divulgao cientfica.

Figura 6: Sntese das principais atividades e gneros digitais enfocados no Mdulo relativo esfera artstico-literria.

Figura 7: Sntese das principais atividades e gneros digitais enfocados no Mdulo relativo esfera jornalstica.

Nesses Mdulos mais densos, so, portanto trabalhadas os seguintes ambientes, ferramentas e aes: Anlises, snteses e discusses sobre as referncias terico-metodolgicas e sobre os gneros e prticas de linguagem que se do nos ambientes e ferramentas do E-Proinfo: frum de discusso, questes fechadas e discursivas, portflio, blog, GoogleDocs etc.; Anlise de atividades com videominutos, lbuns e pesquisa na escola, disponibilizadas no formato e-book, pdf interativo etc.; Participao (produo colaborativa) em prticas de linguagem que envolvam os novos multiletramentos: produo de revista e reportagem digital, miniconto, poema visual, vdeoclipe de cano composta digitalmente sobre poema, playlist, edio de fotorreportagem e de reportagem multimdia, leitura transmdia de romance e conto, dentre outras; Anlise e uso de editores de vdeo, udio, foto, texto, wiki, redes sociais etc.Essas aes, nesses ambientes, seguiram o seguinte movimento metodolgico: Vivncia dos processos, prticas e aes da cultura digital e manuseio de ferramentas; Reflexo sobre esses processos, prticas e aes e sobre conceitos a eles relacionados; Reflexo sobre a relao que se pode estabelecer entre esses processos, prticas e aes (novos letramentos) e o currculo estvel na escola (letramentos escolares); Anlise de atividades didticas pontuais, prottipos, sequncias didticas ou projetos etc.; Elaborao de atividades autoria e protagonismo dos professores de forma a que possam tambm propiciar protagonismo e autonomia dos seus alunos do Ensino Fundamental II e Mdio.Acreditamos que essa primeira oportunidade que tivemos de refletir sobre quais aspectos dos novos multiletramentos poderiam interessar a e compor um currculo de Lngua Portuguesa em diferentes nveis de ensino pode dar base a uma discusso mais alentada da comunidade docente sobre quais aspectos dos novos multiletramentos devem adentrar as escolas e de que maneira. Como sabemos, essa uma discusso urgente em nossos sistemas de ensino, que esto se equipando digitalmente sem saber nem o porqu, nem para qu e nem mesmo como esses novos equipamentos sero usados. Assim, ao que visamos nesse texto responder questo que novas prticas deve a escola encampar? parece-nos uma questo urgente de ser discutida por uma comunidade mais ampla de interessados na educao lingustica.

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