Lenio Luiz Streck - A Revolução Copernicana do Neoconstitucionalismo e a (baixa) Compreensão do...

download Lenio Luiz Streck - A Revolução Copernicana do Neoconstitucionalismo e a (baixa) Compreensão do Fenômeno no Brasil - uma ab

of 34

Transcript of Lenio Luiz Streck - A Revolução Copernicana do Neoconstitucionalismo e a (baixa) Compreensão do...

  • 7/28/2019 Lenio Luiz Streck - A Revoluo Copernicana do Neoconstitucionalismo e a (baixa) Compreenso do Fenmeno no

    1/34

    A revoluo copernicana do (neo)constitucionalismo e a (baixa) compreenso dofenmeno no Brasil uma abordagem luz da hermenutica filosfica

    Lenio Luiz Streck1

    1. Sage mir Deine Einstellung zur Verfassungsgerichtsbarkeit und ich sage Dir, manfr einen Verfassungsbegriff Du hast

    2

    A compreenso acerca do significado do constitucionalismo contemporneo,entendido como o constitucionalismo do Estado Democrtico de Direito, a toda evidnciaimplica a necessria compreenso da relao existente entre constituio e jurisdioconstitucional. Nesse sentido, a ilustrativa assertiva de Werner Kgi, ao colocar, j nolongnquo ano de 1945, o seguinte repto: diga-me o que pensas sobre a jurisdioconstitucional e eu te direi qual o conceito que tens acerca da Constituio.

    Isso significa afirmar que, enquanto a Constituio o fundamento de validade(superior) do ordenamento e consubstanciadora da prpria atividade poltico-estatal, ajurisdio constitucional passa em determinados aspectos condio de condio depossibilidade do Estado Democrtico de Direito.3 Em verdade, ocorre uma verdadeirarevoluo copernicana (Jorge Miranda) quando o novo constitucionalismo supera opositivismo. Afinal, el constitucionalismo tradicional era sobre todo una ideologa, unateora meramente normativa, mientras que el constitucionalismo actual se h convertido enuna teora del Derecho opuesta al positivismo jurdico como mtodo.4 Dito de outro modo,

    1 Procurador de Justia-RS; Doutor e Ps-Doutor em Direito; Professor do PPG Direito - Mestrado eDoutorado da UNISINOS-RS; Professor colaborador de Universidades brasileiras (Unesa) e estrangeiras

    (Faculdade de Direito de Lisboa e de Valladolid); autor de Hermenutica Jurdica e(m) Crise. 5. ed. PortoAlegre: Livraria do Advogado, 2004, Jurisdio Constitucional e Hermenutica: uma nova crtica doDireito. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003, entre outras.2Diz-me a tua posio quanto jurisdio constitucional e eu te direi que conceito tens da Constituio. Cfe.KGI, Werner. Die Verfassung als rechliche Grundordnung des Saates: Untersuchungen ber dieEntwicklungstendenz im modernen Verfassungsrecht. Zurich: Polygraphischer Verlag, 1945. p. 147.3 No discutirei a problemtica que contrape o constitucionalismo democracia. Nesse sentido, coloco-meao lado de autores como Ackerman, Ferrajoli e Dworkin, que no vem uma contradio entre democracia,constitucionalismo e jurisdio constitucional. Assim, entendo corretas as observaes de Pea Freire, paraquem os juzes constitucionais podem participar do dilogo coletivo, recordando aos cidados e a seusrepresentantes o peso de certos direitos, enriquecendo a deliberao pblica com argumentos e pontos de vistano levados em conta na discusso parlamentria. Se esta prtica valiosa, quem sabe merea ser protegida egarantida, evitando, por exemplo, que a maioria parlamentar possa solapar sem custo algum o poder dos

    juzes mediante uma reforma constitucional meramente formal. O juzo de inconstitucionalidade tem que teralgum efeito no sistema institucional e poltico e alterar significativamente os termos em que se desenvolve odebate poltico, fundamentalmente obrigando o legislador a oferecer razes adicionais que contrastem com asque foram postas pelo juiz constitucional e que justifiquem decisivamente sua pretenso. Essa operatividade,de todo modo, deve ter um limite, para que no seja bloqueada a atividade do legislador democrtico. Porisso, o peso do controle de constitucionalidade deve ser compensado com o poder dos rgos polticos deresponder de algum modo aos juzes constitucionais, j que, de outro modo, a instituio do controle

    judicial perderia sua legitimidade. Em suma, acrescenta o autor, pode no ser razovel que o rgo decontrole de constitucionalidade tenha a ltima palavra sobre o alcance e os limites de nossos direitos, porm,desde logo, o que me parece conveniente que tenha a palavra. Cfe. PEA FREIRE, Antonio Manuel.Constitucionalismo Garantista y Democracia. Crtica Jurdica,n. 22, Curitiba, p. 63, 2003.4 Cfe. FIGUEROA, Alfonso Garcia. La teora del Derecho en tiempos de constitucionalismo. In:CARBONELL, Miguel (Ed.). Neoconstitucionalismo(s) . Madrid: Trotta, 2003. p. 165.

  • 7/28/2019 Lenio Luiz Streck - A Revoluo Copernicana do Neoconstitucionalismo e a (baixa) Compreenso do Fenmeno no

    2/34

    se h denominado genricamente constitucionalismo (y ms precisamenteneoconstitucionalismo con el fin de acentuar el nuevo carcter que ha adquirido en laactualidad) a la teora o conjunto de teoras que han proporcionado una cobertura iusterica

    conceptual y/o normativa a la constitucionalizacin del Derecho en trminos normalmentepositivistas.5

    Pode-se dizer que a superao do velho constitucionalismo ou, se se quiser, doconstitucionalismo ideolgico ocorre em trs frentes: primeiro, pela teoria das fontes,uma vez que a lei j no nica fonte, aparecendo a prpria Constituio como auto-aplicativa; a segunda ocorre com a substancial alterao da teoria da norma, em face doaparecimento dos princpios, problemtica que tem relao com a prpria teoria das fontes;a terceira frente d-se no plano da interpretao.6 Da incindibilidade entre vigncia evalidade e entre texto e norma, caractersticas do positivismo, um novo paradigmahermenutico-interpretativo aparece sob os auspcios daquilo que se convencionou chamar

    de giro lingstico-hermenutico. Esse linguistic turn, denominado tambm de girolingstico-ontolgico , proporciona um novo olhar sobre a interpretao e as condies sobas quais ocorre o processo compreensivo. No mais interpretamos para compreender e, sim,compreendemos para interpretar, rompendo-se, assim, as perspectivas epistemolgicas quecoloca(va)m o mtodo como supremo momento da subjetividade e garantia da segurana(positivista) da interpretao.

    Os trs aspectos (as trs frentes antes especificadas) que caracterizam esse novoconstitucionalismo provocam profundas alteraes no direito, proporcionando a superaodo paradigma positivista, que pode ser compreendido no Brasil como produto de umasimbiose entre formalismo e positivismo, no modo como ambos so entendidos pela(s)teoria(s) crtica(s) do direito.7 Na verdade, embora o positivismo possa ser compreendido

    no seu sentido positivo, como uma construo humana do direito enquanto contraponto aojusnaturalismo, e tenha, portanto, representado um papel relevante em um dado contextohistrico, no decorrer da histria acabou transformando-se e no Brasil essa questoassume foros de dramaticidade em uma concepo matematizante do social,8 a partir deuma dogmtica jurdica formalista, de ntido carter retrico.

    5 Ibidem, p. 164.6 Ver, nesse sentido, a excelente abordagem feita por Luis Prieto Sanchs, in Justicia Constitucional y

    Derechos Fundamentales. Madrid, Trotta, 2003.7 Desse modo, levando em conta a relevante circunstncia de que o direito adquire foros de maioridadenessa quadra da histria, de pronto deve ficar claro que no se pode confundir direito positivo com

    positivismo, dogmtica jurdica com dogmatismo, e tampouco se pode cair no erro de opor a crtica (ou o

    discurso crtico) dogmtica jurdica. O direito no pode continuar a ser entendido apenas como uma (mera)racionalidade instrumental. A dogmtica jurdica pode ser crtica; e pode (vir a) ser o modo-de-ser do direitode vis emancipador, prprio do paradigma institudo pelo Estado Democrtico de Direito. Ou seja, adogmtica jurdica trata do direito positivo; mas, para tanto, no necessita dogmatizar, a partir de umimaginrio exegtico-positivista.8 Sempre bom lembrar as crticas ainda atuais feitas por Roberto Lyra Filho ao positivismo, herana,segundo ele, do momento em que a ideologia burguesa abandonou o jusnaturalismo originrio. De um ououtro modo, o positivismo se concretiza na viso do direito como ordem e controle social; esttico, emqualquer de suas formas, pois, com toda a flexibilidade que se atribua hermenutica e aplicao das normas,ou por mais que corra no encalo de novas ordens, capta-as, sempre, quando j passaram fase de estruturaimplantada. O limite o marco normativo, que o Estado ou, diretamente, a ordem social que ele representa,instituem e refletem, no esprito dos aplicadores do direito. Lyra tambm critica os vrios positivismos: no

    positivismo lgico, o limite a lei; no sociologista, o controle social, tomado como ponto de partida e

  • 7/28/2019 Lenio Luiz Streck - A Revoluo Copernicana do Neoconstitucionalismo e a (baixa) Compreenso do Fenmeno no

    3/34

    Com efeito, se o formalismo e o positivismo marca(ra)m indelevelmente opensamento jurdico moderno, no Brasil possvel dizer que em muitos aspectos ambos(ainda) se confundem, isso porque se engendrou um imaginrio jurdico atrelado, ao mesmo

    tempo, ao formalismo e s suas insuficincias para explicar o direito e a realidade (o direito concebido no plano abstrato e entendido como sendo apenas um objeto histrico-cultural)e ao positivismo, com as suas caractersticas que vm delineando os caminhos da doutrina ejurisprudncia, como a no-admisso de lacunas; o no-reconhecimento dos princpioscomo normas; as dificuldades para explicar os conceitos indeterminados, as normaspenais em branco e as proposies carentes de preenchimento com valoraes, resvalando,com isto, em direo quilo que o positivismo visou evitar: a discricionariedade do juiz,que acaba se transformando em arbtrio judicial (ou decisionismo voluntarista); refira-se,ainda, a inoperncia em face dos conflitos entre princpios, culminando, via de regra, na suanegao, com a remessa da soluo discricionariedade do juiz; por ltimo, tem ficadovisvel que o positivismo no tem como tratar da questo da legitimidade do direito. Por

    isso, a legalidade ocupa o lugar da legitimidade.9Como conseqncia dessa (con)fuso entre normativismo e positivismo, tem-se uma

    verdadeira blindagem contra a interveno da Constituio10 (entendida nos quadros doneoconstitucionalismo), que introduz as condies para a superao do problema daequiparao normativista-positivista entre vigncia e validade: na verdade, a novacompreenso acerca da Constituio no interior desse novo paradigma

    chegada ao mesmo tempo e atribudo sociedade ou a um evanescente esprito do povo, em que aparece,na realidade, como scubo, sendo ncubo (disfarado) o poder social daqueles grupos e classes. H tambm o

    positivismo psicologista, que parte em busca do direito na alma dos intrpretes e aplicadores. Essa captaodo direito vale-se, ento, de mais de um procedimento alternativo. Pode ele ser a busca interior de umaessncia, ou pode tambm ser a expresso de um sentimento jurdico (tal como o chamado direitolivre). Cfe. LYRA FILHO, Roberto. Problemas atuais do ensino jurdico. Braslia, Obreira, 1981. p. 23 esegs.9 Sobre formalismo e positivismo, ver GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. 5. Ed.So Paulo: Malheiros, 2003. p. 30 e segs.10 Essa blindagem tpica manifestao da resistncia do positivismo exegtico e dedutivista frente aoneoconstitucionalismo. Trata-se de um fenmeno que denomino de baixa constitucionalidade, idia quedesenvolvo no meu Jurisdio Constitucional e Hermenutica Uma Nova Crtica do Direito (Forense,2003), que pode ser percebido de vrios modos, como, por exemplo, pelo nfimo nmero de incidentes deinconstitucionalidade nos tribunais; a convivncia da comunidade jurdica com leis e dispositivosflagrantemente inconstitucionais (v.g., art. 9 da Lei 10.684 - Refis; a Lei dos Juizados Especiais, quetransformou delitos de alta potencialidade lesiva em soft crimes, como abuso de autoridade, sonegao de

    tributos, crimes contra a criana e o adolescente, desacato, desobedincia, para citar apenas estes; o art. 107,VIII, do Cdigo Penal, pelo qual o casamento da vtima de crime sexual com terceiro extingue a punibilidade;o art. 94 do Estatuto do Idoso, que rebaixa os crimes com penas at 4 anos para a categoria de crimes demenor potencial ofensivo); a resistncia ao uso, em sede de controle difuso, dos mecanismos da interpretaoconforme a Constituio (verfassungskonforme Auslegung) e a nulidade parcial sem reduo de texto(Teilnichtigerklrung ohne Normtextreduzierung); o no questionamento, pela via da jurisdioconstitucional, de vrios dispositivos do novo Cdigo Civil, flagrantemente inconstitucionais; adesproporcionalidade dos bens jurdicos e das penas no Cdigo Penal (protege-se mais a propriedade do que avida e a dignidade da pessoa); a crena na liberdade de conformao legislativa, impedindo um controle deconstitucionalidade mais efetivo em reas como o direito penal e direito civil (o foco do controle deconstitucionalidade est centrado na matria tributria); enfim, essa baixa constitucionalidade fica ntida a

    partir da equiparao que a dogmtica jurdica faz entre os mbitos da vigncia e da validade das leis, o quedificulta, sobremodo, o controle de constitucionalidade.

  • 7/28/2019 Lenio Luiz Streck - A Revoluo Copernicana do Neoconstitucionalismo e a (baixa) Compreenso do Fenmeno no

    4/34

    (neoconstitucionalismo) que permite a introduo da diferena (ontolgica)11 entre vignciae validade, alando a validade condio primeira, caindo por terra a plenipotenciariedadeda lei e tudo o que isso vem representando no campo jurdico. Isso implica afirmar que o

    significado do constitucionalismo depende da avaliao das condies de possibilidade dacompreenso desse fenmeno. A plenipotenciariedade da lei como fonte e pressuposto dosistema cede lugar aos textos constitucionais que daro guarida s promessas damodernidade contidas no modelo do Estado Democrtico (e Social) de Direito.

    Portanto, a interveno da Constituio nos mais variados aspectos da vidajurdico-social vai depender de como compreendemos esse fenmeno pelo qual o direitopblico, representado pela assuno do constitucionalismo compromissrio e social,suplanta o arcabouo positivista que sustenta(va) o primado das relaes privadas sobre opblico. Conceitos como soberania popular, separao de poderes e maioriasparlamentrias cedem lugar legitimidade constitucional,12 instituidora de um constituir dasociedade. Do modelo de constituio formal (constitucionalismo ideolgico), no interior

    da qual o direito assumia um papel de ordenao, passa-se revalorizao do direito, quepassa a ter um papel de transformao da realidade da sociedade, superando, inclusive, omodelo do Estado Social.

    2. A Constituio do Brasil e o resgate das promessas da modernidade: os obstculosrepresentados pela resistncia positivista

    No Brasil, os principais componentes do Estado Democrtico de Direito, nascidosdo processo constituinte de 1986-88, ainda esto no aguardo de sua implementao. Velhosparadigmas de direito provocam desvios na compreenso do sentido de Constituio e dopapel da jurisdio constitucional. Antigas teorias acerca da Constituio e da legislao

    ainda povoam o imaginrio dos juristas, a partir da diviso entre jurisdio constitucionale jurisdio ordinria, entre constitucionalidade e legalidade, como se fossemmundos distintos, metafisicamente cindveis. Essa ciso ocorre graas ao esquecimentodaquilo que na hermenutica de cariz filosfico-fenomenolgico chamamos de diferenaontolgica.13 Essa mesma separao metafsica denuncia, em certa medida, o modelo frgilde jurisdio constitucional que praticamos no Brasil, o que inexoravelmente redunda emum conceito frgil de Constituio, fenmeno que no difcil de constatar a partir de umaanlise acerca do grau de (in)efetividade do texto constitucional em vigor.

    Afinal, passados dezesseis anos desde a promulgao da Constituio, parcelaexpressiva das regras e princpios nela previstos continuam ineficazes. Essa inefetividadepe em xeque, j de incio e sobremodo, o prprio artigo 1 da Constituio, que prev a

    dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos da Repblica brasileira, que,segundo o mesmo dispositivo, constitui-se em um Estado Democrtico de Direito. Da anecessria pergunta: qual o papel (e a responsabilidade) do jurista nesse complexo jogo de

    11 A expresso ontolgica deve ser entendida no como produto da metafsica clssica, mas, sim, a partir dafenomenologia hermenutica (ontologia fundamental), em que o ser sempre o ser de um ente, e o ser existe

    para dar-sentido-aos-entes.12 No esqueamos, aqui, a advertncia feita na nota n. 2, retro.13 Permito-me remeter o leitor para o captulo quinto do meu livro Jurisdio Constitucional eHermenutica: uma nova crtica do Direito. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003.

  • 7/28/2019 Lenio Luiz Streck - A Revoluo Copernicana do Neoconstitucionalismo e a (baixa) Compreenso do Fenmeno no

    5/34

    foras, no interior do qual Konder Comparato14 denuncia a morte espiritual daConstituio? Quais as condies de acesso justia do cidado, visando ao cumprimento(judicial) dos direitos previstos na Constituio?

    por demais evidente que se pode caracterizar a Constituio brasileira de 1988como uma Constituio social, dirigente e compromissria, alinhando-a com asConstituies europias do segundo ps-guerra. Mas isto no suficiente. Textos jurdicosineficazes, mais do que apontar para a resoluo de problemas, podem transformar aConstituio em uma Constituio simblica, para usar as palavras de Marcelo Neves.Da que a eficcia das normas constitucionais exige um redimensionamento do papel dojurista e do Poder Judicirio (em especial da Justia Constitucional) nesse complexo jogode foras, na medida em que se coloca o seguinte paradoxo: uma Constituio rica emdireitos (individuais, coletivos e sociais) e uma prtica jurdico-judiciria que,reiteradamente, (s)nega a aplicao de tais direitos.

    Sendo a Constituio brasileira, pois, uma Constituio social, dirigente e

    compromissria conforme o conceito que a doutrina constitucional contemporneacunhou e que j faz parte da tradio (no sentido que lhe d Gadamer) , absolutamenterazovel afirmar que o seu contedo est voltado/dirigido para o resgate das promessas damodernidade. Da que o direito, enquanto legado da modernidade, deve ser visto, hoje,como um campo necessrio de luta para implantao das promessas modernas (igualdade,justia social, respeito aos direitos fundamentais, etc.).

    No h dvida de que no Brasil, naquilo que se entende por Estado Democrtico deDireito em que o direito deve ser visto como instrumento de transformao social ,ocorre uma desfuncionalidade do direito e das Instituies encarregadas de aplicar a lei. Odireito brasileiro e a dogmtica jurdica15 que o instrumentaliza esto assentados em umparadigma (ou modelo de direito) liberal-individualista que sustenta essa

    desfuncionalidade, que, paradoxalmente, vem a ser a sua prpria funcionalidade! Ou seja,no houve ainda, no plano hermenutico, a devida filtragem em face da emergncia deum novo modelo de direito representado pelo Estado Democrtico de Direito desse(velho/defasado) direito, produto de um modelo liberal-individualista-normativista dedireito.16 Nesse sentido, a percuciente assertiva de Alonso Garcia, quando diz que a tarefada jurisdio constitucional tornar as normas infraconstitucionais como equivalentes Constituio mesma.

    14 O jurista Fbio Konder Comparato publicou artigo no jornal Folha de So Paulo de 10.05.98, p. 1-3,fazendo veementes crticas s reformas constitucionais.15 As crticas deste texto so dirigidas, evidncia, dogmtica jurdica no-garantista, que no questiona asvicissitudes do sistema jurdico, reproduzindo esta injusta e desigual ordem social. Ou seja, as crticas aqui

    feitas ressalvam e reconhecem os importantes contributos crticos e no so poucos construdos/elaborados ao longo de dcadas em nosso pas.16 preciso que se alerte o leitor para a seguinte questo: a crise do modelo liberal-individualista uma crisede modelo de direito, que engloba o modo de fazer/compreender o direito para alm dos textosconstitucionais. No se est a ignorar, por exemplo, que as Constituies de 1934 e a de 1946, de algummodo, no tenham tido uma certa programaticidade. Por isso, quando falo em modelo de direito liberal-individualista-normativista, quero me referir a essa modalidade de Direito, e no propriamente scaractersticas das Constituies anteriores. Trata-se de trabalhar com a noo de efetividade aliada questoda materialidade dos textos constitucionais e o que isso representa no processo de recepo da tradiorepresentada pela noo de Estado Democrtico de Direito e suas implicaes (fora normativa daConstituio, programaticidade dirigente e noo de Estado Social nsita nos textos, naquilo que aqui sedenomina deplus normativo que tais caractersticas representam no interior da revoluo copernicana por que

    passou o Direito Pblico).

  • 7/28/2019 Lenio Luiz Streck - A Revoluo Copernicana do Neoconstitucionalismo e a (baixa) Compreenso do Fenmeno no

    6/34

    Institutos jurdicos importantes como a argio de descumprimento de preceitofundamental cuja regulamentao demorou longos onze anos , o mandado deinjuno,17 a inconstitucionalidade por omisso e tantos outros dispositivos previstos na

    nova Constituio no alcanaram ainda a eficcia esperada. O controle difuso deconstitucionalidade ainda no uma prtica cotidiana dos juristas e dos tribunais, bastandoverificar, para tanto, o nfimo nmero de incidentes de inconstitucionalidade suscitados,alm da enorme dificuldade em convencer os operadores do direito (leia-se, juzes etribunais) a lanarem mo dos mecanismos da interpretao conforme e da nulidade parcialsem reduo de texto, sem falar na aplicao do princpio da proporcionalidade, com o queconsidervel parte das controvrsias poderiam ser resolvidas, a partir de uma filtragemhermenutico-constitucional. H um certo fascnio pelo direito infraconstitucional frutoda resistncia do paradigma positivista , a ponto de ocorrer, em determinados casos, umaadaptao da Constituio s leis ordinrias... Enfim, continuamos a olhar o novo com osolhos do velho...

    A Constituio e tudo o que representa o constitucionalismo contemporneo ainda no atingiu o devido lugar de destaque (portanto, cimeiro) no campo jurdicobrasileiro. Da a pergunta: ou a Constituio , na medida em que organiza a vida poltico-estatal e regula a relao Estado-cidado, apenas um ordenamento marco e, portanto, oentendimento dos direitos fundamentais se resume a direitos subjetivos de liberdadevoltados para a defesa contra a ingerncia indevida do Estado, ou a Constituio a ordemjurdica fundamental de uma comunidade em seu conjunto e a isso corresponde umaconcepo dos direitos fundamentais como normas objetivas de princpio que atuam emtodos os mbitos do direito? Lamentavelmente, a cultura jurdica brasileira (pensamentojurdico-dogmtico dominante), positivista e privatista, defende uma concepo deConstituio que est inserida na primeira hiptese.18 E os prejuzos so incalculveis, na

    medida em que o mundo da infraconstitucionalidade supera a fora normativa emergente danorma superior. A Constituio transforma-se, assim, em um territrio inspito (espcie delatifndio improdutivo), pela falta de uma pr-compreenso adequada acerca de seu papelno interior do novo paradigma do Estado Democrtico de Direito.

    Na verdade, o pensamento jurdico brasileiro no percebeu que o direito pblicopassou por uma revoluo copernicana, isto , ocorreu a passagem de uma fase em que asnormas constitucionais dependiam da interpositio legislatori a uma fase em que se aplicam(ou so suscetveis de se aplicar) diretamente nas situaes de vida no resultou s emmudanas do regime poltico ou da idia de Constituio. Resultou, sobretudo, noaparecimento de umajustia constitucional, como tal estruturada e legitimada.19 Por isso,assevera Jorge Miranda, no bastam proclamaes como as do art. 1, n 3, da Lei

    17 Em alentada pesquisa que continua atual, principalmente porque, depois de 2000, por cansaoinstitucional, os pedidos de mandado de injuno praticamente desapareceram do cenrio dos tribunais - ,Carlos Alberto Colombo demonstra que, no perodo compreendido entre outubro de 1988 e maro de 2000,dos 627 pedidos de mandado de injuno junto ao STF, 66% foram indeferidos, 7% foram julgados

    prejudicados, 11% foram parcialmente deferidos, 13% aguardavam julgamento e 3% estavam seminformao. Cfe. COLOMBO, Carlos Alberto. Os julgamentos do Supremo Tribunal Federal: violaes aosdireitos constitucionais e ilegitimidade poltica. Democracia & Mundo do Trabalho, Porto Alegre, n. 3, dez.2001. Camargo Coelho Maineri e Advogados Associados S/C, 2001.18 Cfe. CITTADINO, Gisele. Pluralismo: Direito e justia distributiva: Elementos da Filosofia ConstitucionalContempornea. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1999. p. 32.19 Cfe. MIRANDA, Jorge. Apreciao da dissertao de doutoramento de Rui Medeiros. Direito e justia.Lisboa: Universidade Catlica, 1999. v. 13, t. 2.

  • 7/28/2019 Lenio Luiz Streck - A Revoluo Copernicana do Neoconstitucionalismo e a (baixa) Compreenso do Fenmeno no

    7/34

    Fundamental da Alemanha, do art. 18 da Constituio de Portugal, do art. 53, n 1, daConstituio da Espanha ou do art. 5, 1, da Constituio brasileira para assegurar a foranormativa dos preceitos constitucionais. Sem a justia constitucional, o princpio da

    constitucionalidade fica sem traduo prtica.Desse modo, o problema eficacial do texto constitucional passa, fundamentalmente

    ou tambm, pelo tipo de justia constitucional praticado em cada pas e peloredimensionamento do papel dos operadores do direito. Permito-me insistir: a funo dodireito no modelo institudo pelo Estado Democrtico de Direito no mais aquela doEstado Liberal-Abstencionista. O Estado Democrtico de Direito representa um plusnormativo em relao ao Estado Liberal e at mesmo ao Estado Social. A Constituio doBrasil, como as de Portugal, Espanha e Alemanha, por exemplo, em que pese o seu carteraberto, uma Constituio densa de valores, compromissria e voltada para atransformao das estruturas econmicas e sociais.20

    possvel, pois, sustentar que, no Estado Democrtico de Direito, em face do

    carter compromissrio dos textos constitucionais e da noo de fora normativa daConstituio, ocorre, por vezes, um sensvel deslocamento do centro de decises doLegislativo e do Executivo para o plano da jurisdio constitucional. Isso porque, se com oadvento do Estado Social e o papel fortemente intervencionista do Estado o foco depoder/tenso passou para o Poder Executivo, no Estado Democrtico de Direito h (oudeveria haver) uma modificao desse perfil. Inrcias do Poder Executivo e falta de atuaodo Poder Legislativo pode(ria)m ser supridas pela atuao do Poder Judicirio, justamentemediante a utilizao dos mecanismos jurdicos21 previstos na Constituio que estabeleceuo Estado Democrtico de Direito.

    Na verdade, o Estado Democrtico de Direito tem a pretenso de proporcionar umregime poltico que objetiva abranger o mximo possvel de democracia e de Estado de

    Direito no conjunto das suas recprocas implicaes substantivas e adjetivas (JorgeMiranda). Os valores que as constituies substantivam representam um processo deruptura com os modelos do constitucionalismo anterior. A forma e a prpria previso deprocedimentos cedem considervel espao para os valores substantivos, representados pelosdireitos sociais e fundamentais que os textos estabelecem.

    Tais valores substantivos fazem parte do ncleo poltico da Constituio, que apontapara o resgate das promessas de igualdade, justia social, realizao dos direitosfundamentais. Dito de outro modo, da materialidade do texto constitucional possvelextrair a assertiva de que o Estado Democrtico de Direito, na esteira do constitucionalismodo segundo ps-guerra, consagra o princpio da democracia econmica, social e cultural,mediante os seguintes pressupostos deontolgicos:

    a) constitui uma imposio constitucionaldirigida aos rgos de direo poltica eda administrao para que desenvolvam atividades econmicas conformadoras etransformadoras no domnio econmico, social e cultural, de modo a evoluir-se

    20 Nesse sentido, ver comentrio de Jorge Miranda ao art. 9 da Constituio de Portugal, In: Apreciao,1999, p. 262.21 Afinal, o constituinte brasileiro legou sociedade instrumentos aptos a suprir a inrcia dos PoderesExecutivo e Legislativo, como caso do mandado de injuno, a inconstitucionalidade por omisso, aargio de descumprimento de preceito fundamental, s para citar alguns. toda evidncia, o instituto maiscaracterstico que deixa claro esse deslocamento da esfera de tenso o mandado de injuno, cujo comandodetermina a concesso do writna falta de norma regulamentadora que torne inviveis os direitos e garantiasfundamentais...!

  • 7/28/2019 Lenio Luiz Streck - A Revoluo Copernicana do Neoconstitucionalismo e a (baixa) Compreenso do Fenmeno no

    8/34

    para uma sociedade democrtica cada vez mais conforme aos objetivos dademocracia social;

    b) representa uma autorizao constitucional para que o legislador e os demaisrgos adotem medidas que visem a alcanar, sob a tica da justiaconstitucional, nas vestes de uma justia social;

    c) implica a proibio de retrocesso social, clusula que est implcita naprincipiologia do estado social constitucional;

    d) perfila-se como elemento de interpretao, obrigando o legislador, aadministrao e os tribunais a consider-lo como elemento vinculado dainterpretao das normas a partir do comando do princpio da democraciaeconmica, social e cultural;

    e) impe-se como fundamento de pretenses jurdicas aos cidados, pelos menosnos casos de defesa das condies mnimas de existncia.22

    Nesse contexto, na medida em que a Constituio agrega tais valores substantivos, a

    justia constitucional adquire fundamental relevncia, sendo-lhe reservada uma atuaoconcreta no plano do controle concentrado e dos rgos do Poder Judicirio no plano docontrole difuso de constitucionalidade, no sentido da verificabilidade acerca do contedo(no somente adjetivo, mas substantivo) dos atos e procedimentos legislativos eadministrativos.

    evidente que isto no pode significar que a justia constitucional possa vir a setornar uma espcie de superego da sociedade, como se fosse a soluo (mgica) dosproblemas sociais.23 No entanto, h que se ter claro, tambm, que os valores constitucionais

    22 Para tanto, ver CANOTILHO, J. J. Gomes; MOREIRA, Vital. Fundamentos da Constituio. Coimbra:Coimbra Editores, 1991. p. 87.23 Essa advertncia pe-se como necessria: o redimensionamento do papel do judicirio (e, em especial, da

    justia constitucional) no pode significar que os juzes e tribunais possam substituir-se ao legislador, a partirde decisionismos e voluntarismos, numa espcie de retorno ao positivismo ftico (realismo jurdico). Nessesentido, h que se advertir para a relevante circunstncia de que a hermenutica aqui trabalhada e utilizadacomo matriz terica no relativista. No se pode dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa, em umcompleto desprezo pelo texto (ver, para tanto, meu livro Hermenutica Jurdica, item 12.10, 2004). Assim,dizer que a norma produto da interpretao do texto no pode significar uma atribuio arbitrria de sentido.Afinal, como bem alerta Gadamer, se queres dizer algo sobre um texto, deixe que o texto te diga algo. Entretexto e norma no h completa separao e tampouco equiparao. Portanto, no se pode confundir o espaointerpretativo e a conseqente applicatio que sempre exige uma discusso contextual com um livrearbtrio de sentidos, a partir das convices pessoais do intrprete. A Constituio no o que o SupremoTribunal diz que ; h um plus no processo e conjugao de foras que aponta para o fato de que aConstituio o resultado de sua interpretao, que se d a partir de um complexo jogo de foras sociais. Dao acerto de Radbruch, ao dizer que a interpretao o resultado de seu resultado...! A atuao da justia

    constitucional para ficar especificamente neste stio tem um espao de atuao delimitado pelaConstituio. Assim, por exemplo, haver os casos simples de controle de constitucionalidade (difuso econcentrado), que no acarretam maiores problemas; de outra banda, quando se est em face de um direitofundamental garantido pela Constituio, como o direito sade, a justia constitucional poder intervir,concedendo esse direito atravs dos mecanismos de acesso justia. Nesse sentido, as crticas a uma decisoconcessiva estaro fixadas discusso dos limites da jurisdio constitucional, da liberdade de conformaolegislativa e da problemtica das polticas pblicas, alm da compatibilidade entre o constitucionalismo, a

    jurisdio constitucional e a democracia. Mas no se questionar a existncia do direito sade no textoconstitucional. A luz amarela se acender nas hipteses em que juzes e tribunais, revelia do que se entende

    por significado mnimo de base dos textos jurdicos (infraconstitucionais e constitucionais), constroemnovos textos, substituindo-se ao legislador, a, sim, assumindo a postura de superego da sociedade. O direito

    brasileiro prdigo em exemplos desse quilate. Registre-se, nesse diapaso, que a pretensa seguranajurdica defendida e propalada pelo positivismo no passa de uma forma acabada de discricionariedade

  • 7/28/2019 Lenio Luiz Streck - A Revoluo Copernicana do Neoconstitucionalismo e a (baixa) Compreenso do Fenmeno no

    9/34

    no podem ficar a descoberto. Por isso e esta circunstncia pode ser observada a partir daatuao dos principais tribunais constitucionais do mundo, em determinados casos aatuao da jurisdio constitucional mediante a utilizao dos instrumentos de controle

    de constitucionalidade pode servir como via de resistncia s investidas dos PoderesExecutivo e Legislativo, que representem retrocesso social ou a ineficcia dos direitosindividuais ou sociais. Alm disso, o papel de filtragem constitucional, a ser realizada noplano da jurisdio constitucional, pode representar a revogao de toda legislao anteriorincompatvel com o novo texto constitucional e sua principiologia. E, convenhamos, issono pouca coisa!

    Para ser mais especfico: em termos de jurisdio constitucional, duas so asalternativas que se estabelecem no constitucionalismo contemporneo (ps-guerra): ou ostribunais apenas garantem os direitos fixados no ordenamento-marco, sem qualquercapacidade de estabelecer posies jurdicas singulares, ou esto vinculados eticidadesubstantiva da comunidade e podem, portanto, agir de forma a aproximar a norma da

    realidade.24 evidncia, na segunda hiptese que se encontra a concepo de jurisdiocompatvel com os objetivos do Estado Democrtico de Direito. Exemplo disso pode serconstatado em importante deciso do Tribunal Constitucional de Portugal, mediante aadoo da clusula da proibio do retrocesso social:

    ... a partir do momento em que o Estado cumpre (total ou parcialmente) as tarefasconstitucionalmente impostas para realizar um direito social, o respeitoconstitucional deste deixa de consistir (ou deixa de consistir apenas) numaobrigao positiva, para se transformar ou passar tambm a ser uma obrigaonegativa. O Estado, que estava obrigado a atuar para dar satisfao ao direitosocial, passa a estar obrigado a abster-se de atentar contra a realizao dada aodireito social. (Ac. 34/84 TC)

    judicial. A partir de redefinies dos textos, a dogmtica jurdica tem conseguido sem gerar maioresperplexidades estabelecer no somente sentidos contra legem e/ou inconstitucionais, como tambm novostextos. Veja-se, para tanto, o contedo de parcela considervel das smulas editadas pelos tribunais (v.g., aSmula n. 2 do STJ, que regulamentou o habeas data de forma inconstitucional e o enunciado 310 do TST,em flagrante contrariedade Constituio), alm de construes jurisprudenciais como embargosdeclaratrios com efeitos infringentes. Isso para dizer o mnimo: h, no Brasil e a denncia de Joo

    Maurcio Adeodato um irracionalismo decisionista que despreza inteiramente o texto. Seus representantesno chegam a dizer que a concretizao pelo Judicirio resolver, pois so mais cpticos. Mas dizem que,independentemente de juzos sobre se isso bom ou mau, o juiz faz o direito. A cpula do Judicirio,

    acrescenta o mesmo autor, no s ganha poder jurdico e poltico s expensas do Legislativo, mas tambm doMinistrio Pblico. Mesmo sem esquecer a posio mais difusa, no rastro de Hberle, segundo a qual toda acomunidade concretiza a Constituio, ainda assim o texto perde importncia (Cfe. ADEODATO, JooMaurcio. Jurisdio Constitucional brasileira: situaes e limites. In: Neoconstitucionalismo: ontem, oscdigos; hoje, as Constituies. Revista do Instituto de Hermenutica Jurdica, Porto Alegre, n. 2, p. 180,2004). Claro que sempre restar a pergunta: qual o sentido da Constituio? Qual o limite dainterpretao? A resposta est na prpria concepo da hermenutica filosfica, na qual h limites bem postos

    para o ato de atribuio de sentido, isto , o texto deve ser compreendido a partir da tradio, datemporalidade, da conscincia de histria efetual, da faticidade e da situao hermenutica em que seencontra(m) o(s) intrprete(s). Nesse sentido, a importncia dos indcios formais (formale Anzeige), queantecipam a possibilidade de nossa pr-compreenso, impedindo-nos de atribuir sentidos de forma arbitrria,questo que aparece bem explicitada em Gadamer, em seu Wahrheit und Methode.24 Cfe. CITTADINO, op. cit., p. 32.

  • 7/28/2019 Lenio Luiz Streck - A Revoluo Copernicana do Neoconstitucionalismo e a (baixa) Compreenso do Fenmeno no

    10/34

    Veja-se, nesse diapaso, o denominado effet cliquetinstitudo pela jurisprudncia doConselho Constitucional francs no domnio das liberdades fundamentais, na sua decisoDC 83-165, de 20 de janeiro de 1984, considerando que no possvel a revogao total de

    uma lei, nesse tipo de matria, sem a substituir por outra que oferea garantias com eficciaequivalente. J em 1991, passou a admitir que o effet cliquetpudesse tambm operar nombito dos direitos econmicos e sociais.25

    Mais ainda, com Canotilho, possvel dizer que os direitos derivados a prestaes,naquilo que constituem a densificao de direitos fundamentais, passam a desempenharuma funo de guarda de flanco(J.P. Muller) desses direitos garantindo o grau deconcretizao j obtido. Conseqentemente, eles radicam-se subjectivamente no podendoos poderes pblicos eliminar, sem compensao ou alternativa, o ncleo essencial jrealizado desses direitos. Ou seja, o princpio da democracia econmica e social apontapara a proibio de retrocesso social. (...) A liberdade de conformao do legislador nas leissociais nunca pode afirmar-se sem reservas, pois est sempre sujeita ao princpio da

    proibio de discriminaes sociais e polticas anti-sociais.Foi exatamente seguindo esse padro de proteo dos direitos sociais-prestacionais

    que o Tribunal Constitucional de Portugal declarou, recentemente, a inconstitucionalidadede dispositivo de lei que reduzia a idade mnima para auferimento de renda mnima desubsistncia de 18 para 25 anos, por violao do direito a um mnimo de existnciacondigna inerente ao princpio do respeito da dignidade humana, decorrente das disposiesconjugadas dos artigos 1, 2, nos 1 e 3, da Constituio da Repblica Portuguesa (Ac.509/02).

    Na mesma linha, deciso do Tribunal Constitucional da Itlia (sentena n. 1, de1969), pela qual ficou assentado que a lei de indenizao por erros judicirios no realizavaplenamente o princpio constitucional enunciado no art. 24 da Constituio. Entretanto,

    negou-se justamente a declarar a inconstitucionalidade da lei para no suprimir o poucoque j se havia feito naquele sentido. Nesse sentido, no sera inconstitucional una ley que,respecto del momento actual, redujera la ya de por si estrecha esfera de intervencin delEstado para reparar los errores judiciales?.26

    V-se, assim, que a proteo dos direitos fundamentais, nos quadros doconstitucionalismo do Estado Democrtico de Direito, j no se d apenas no seu vis deproteo contra os excessos (arbtrio) do Estado, naquilo que, no mbito do respeito aoprincpio da proporcionalidade, a doutrina e jurisprudncia alem vem denominando debermassberbot, e, sim, tambm naquilo que, na mesma doutrina, denominado deproibio de proteo deficiente (Untermassverbot), isto , trata-se de cobrarconstitucionalmente uma atitude positiva com a qual o Estado deve proteger os direitos

    fundamentais. No fundo, a se entender como parece correto que a dimenso dos direitosfundamentais j de h muito ultrapassou a proteo do cidado contra o Estado mau,

    25 Cfe. Jurisprudncia Constitucional, n. 1 jan./mar. 2004, no corpo do acrdo n. 509/02 (Lisboa,AATRIC, 2004), p. 11; tb. FAVOREU, Louis; L. Philippe. Les grandes dcisiones du ConseilConstitutionnel. 10. ed. Paris: Dalloz, 1999. p. 581 e segs; FAVOREU, Louis. Recueil de jurisprudenceconstitutionelle. 1959-1993, p. 432 e segs.26 Cfe. BONIFCIO, Francisco P. Constitucionalidad, legislacin regresiva y civilidad jurdica. In: LOPEZPINA, Antonio (Ed.). Divisin de poderes e Interpretacin: Hacia una teora de la praxis constitucional.Madrid: Tecnos, 1987. p. 80.

  • 7/28/2019 Lenio Luiz Streck - A Revoluo Copernicana do Neoconstitucionalismo e a (baixa) Compreenso do Fenmeno no

    11/34

    ocorre, na frmula criada por Jorge Pereira da Silva,27 um dever de legislar e um dever deproteo jurisdicional contra omisses legislativas, e, ao mesmo tempo, para preservaraquilo que j foi conquistado, para evitar retrocesso social, o Estado est proibido de

    recriar omisses inconstitucionais.Esse o panorama do direito no Estado Democrtico de Direito. Como bem assinala

    Vieira de Andrade,28 nos seus comentrios ao acrdo 509/02, no se trata de concretizar adignidade da pessoa humana, enquanto valor absoluto o direito positivo no poderiapretender designar em frmulas capazes e isentas de dvida a riqueza complexa dos valoresda pessoa. O que est em causa determinar o que se entende que so, numa sociedadeconcreta, as condies mnimas para uma existncia digna que o Estado deve garantir aquem delas carea. Da o carcter varivel, relativo e particular do contedo da garantia,em contraposio com o carcter constante, absoluto e universal da dignidade da pessoa.

    O padro normativo complementa que se constri a partir dos contedosmnimos dos vrios direitos pessoais livre desenvolvimento da personalidade e sociais

    educao, cuidados de sade, assistncia na necessidade, assistncia judiciria , dependedo tempo e lugar e tambm da estrutura econmico-financeira da sociedade. E, alm disso,porque se refere a condies, pode ser diverso, conforme as situaes em que se pe oproblema: por exemplo, o mnimo de que o Estado no pode privar nenhuma pessoa notem de corresponder exactamente ao mnimo que o Estado tenha de assegurar a quemprecisa.

    Toda essa problemtica merece uma profunda reflexo por parte da comunidadejurdica. Sem dvida, h que se investigar e indagar acerca do papel do direito na sociedadecontempornea, com nfase em pases que historicamente relegaram o Estado de Direito aum papel secundrio, dando sempre nfase razo de Estado em detrimento do (eventual)conjunto de textos garantidores dos direitos da cidadania. Nesse sentido, a lio de

    Landelino Lavilla, para quem o caracterstico do Estado de Direito precisamente atransmutao dos fenmenos de poder em direito e, sobretudo, que a atividade poltica, umavez cristalizada em forma jurdica, fica submetida ela mesmo ao direito. Negam esta notaqualificativa todos os que, explcita ou implicitamente, sustentam a crena de que o poderprima sobre o direito e consideram, em conseqncia, que no cabe controle jurdico sobrea atividade poltica.

    3. O confinamento do Direito ao habitus: elementos paraa reflexo da crise de pr-compreenso da revoluocopernicana do Direito Constitucional no Brasil e de como o paradigma da linguagem(lin guistic turn) no foi recepcionado pelo pensamento dogmtico do direito

    No h como negar que sempre houve, no Brasil, uma imensa dificuldade para ocumprimento at mesmo dos pressupostos mnimos da legalidade formal-burguesa,entendida como as conquistas da revoluo francesa (direitos de primeira dimenso). Ohistrico de golpes, contragolpes e perodos de ditadura militar mostra que a busca pelorespeito s liberdades negativas foram os principais pontos de luta daqueles que fizeram

    27 Cfe. SILVA, Jorge Pereira da. Dever de legislar e proteo jurisdicional contra omisses legislativas .Coimbra, 2003. p. 282 e segs.28 Cfe. Jurisprudncia Constitucional, 2004, p. 29.

  • 7/28/2019 Lenio Luiz Streck - A Revoluo Copernicana do Neoconstitucionalismo e a (baixa) Compreenso do Fenmeno no

    12/34

    oposio aos regimes autoritrios. Veja-se que o mais longo perodo de regime autoritrio,nascido de um golpe militar em 1964, conseguiu arrastar-se at meados da dcada de 80,quando o regime, no seu estertor, aceitou a convocao de uma assemblia nacional

    constituinte, a partir da aprovao de uma emenda constitucional.O processo de elaborao do texto constitucional durou dois anos. Do entrechoque

    ideolgico, nasce um texto programtico, social, compromissrio e dirigente, espelhado nasConstituies europias. Entretanto, o advento do novo texto constitucional no teve opoder de construir um novo imaginrio na sociedade. Dito de outro modo, expressivaparcela dos juristas no se deu conta do que representou esse processo de re-fundaosocial. Afinal, acostumados a lidar com um emaranhado de textos jurdicosinfraconstitucionais, em vigor h muitas dcadas, o advento do novo fundamento devalidade no chegou a criar a necessria empolgao nem a angstia do estranhamento no seio dos operadores do Direito.

    Presos s velhas prticas, mergulhados em um habitus29 (sentido comum terico),

    os juristas continuaram seu labor cotidiano como se nada acontecera. No houve oengendramento de um adequado ferramental para compreender a irrupo do novo. Porisso, a correta observao de Mller,30 no sentido de que a concretizao normativa daConstituio apenas se d pela via de uma interpretao que ultrapassa o texto da normajurdica e atinge uma parte da realidade social enquanto prxis que inclui o processolegislativo, a atuao dos rgos de governo, a administrao da justia, etc. A ausnciadesse processo de ruptura hermenutica, isto , de um agir constitucionalizante de parte dadoutrina jurdico-constitucionalizante, teve (e tem) como resultado a falta daquilo que omesmo Friedrich Mller chama de domnio normativo do texto constitucional, resultanteda imbricao do texto com os fatores normativos de carter material.

    Dito de outro modo, nessa caminhada de dezesseis anos ocorre(ra)m diversas

    circunstncias que obstaculiza(ra)m o caminho de afirmao do texto constitucional. Atradio de democracia delegativa, de cunho hobbesiano,31 no interior do qual osgovernantes governam atravs de medidas provisrias, colocaram em xeque (e ainda tmcolocado) o Supremo Tribunal Federal. Com efeito, instado a se manifestar sobre medidasde impacto tomadas pelo Poder Executivo via medidas provisrias, o Supremo Tribunal

    29 O habitus (sentido comum terico dos juristas) pode ser entendido como o conjunto de crenas e prticasque compem os pr-juzos do jurista, que tornam a sua atividade refm da cotidianidade (algo que podemosdenominar de concretude ntica), d'onde falar do e sobre o Direito. o desde-j-sempre e o como-sempre-o-Direito-tem-sido, que proporciona a rotinizao do agir dos operadores jurdicos, propiciando-lhes, emlinguagem heideggeriana, uma tranqilidade tentadora. O habitus uma espcie de casa tomada, onde o

    problema de estar-refm-do-habitus nem sequer se apresenta como (als) um problema-de-estar-refm-do-

    habitus. o lugar onde a suspenso dos pr-juzos no ocorre, impossibilitando-se a sua confrontao com ohorizonte crtico. Em sntese, o habitus vem a ser o locus da decada para o discurso inautntico repetitivo,

    psicologizado e desontologizado.30 Cfe. MLLER, Friedrich. Direito, Linguagem e Violncia: elementos de uma teoria constitucional. PortoAlegre: Fabris, 1997.31 Em 1991, Guillermo O'Donnel escreveu um texto chamando a ateno para um fenmeno que estavaocorrendo (e estava por ocorrer) em pases da Amrica Latina recentemente sados de regimes autoritrios.Referia-se, pois, a um novo tipo/modelo de democracia a democracia delegativa, que se fundamenta emuma premissa bsica: quem ganha a eleio presidencial autorizado a governar o pas como lhe parecerconveniente, e, na medida em que as relaes de poder existentes permitam, at o final de seu mandato. O

    presidente , assim, a encarnao da nao, o principal fiador do interesse maior da nao, que cabe a eledefinir. Cfe. O'DONNEL, Guillermo. Democracia Delegativa? Novos Estudos Cebrap, So Paulo, n. 31,out./1991.

  • 7/28/2019 Lenio Luiz Streck - A Revoluo Copernicana do Neoconstitucionalismo e a (baixa) Compreenso do Fenmeno no

    13/34

    Federal preferiu adotar, muitas vezes, a tcnica do fato consumado (basta ver, por exemplo,o problema do congelamento dos ativos pelo governo Collor de Mello).

    As vrias tentativas de reforma do Poder Judicirio e da sistemtica do controle de

    constitucionalidade (com a tentativa, v.g., de extinguir o controle difuso deconstitucionalidade), fizeram com que no se construsse um ambiente doutrinrio com anecessria perenidade. O passar do tempo mostrou que a doutrina brasileira tornou-se cadavez mais caudatria da jurisprudncia, em vez de ser o fio condutor das decises dostribunais. Ou seja, a doutrina no doutrina!

    Tem havido, pois, uma baixa pr-compreenso acerca do significado daConstituio e sua insero no paradigma do Estado Democrtico de Direito, e que decorreda falta de uma teoria do Estado e uma teoria constitucional aptas construo dascondies para a implementao do novo paradigma representado pelo triunfo do novoconstitucionalismo. Trata-se, fundamentalmente, de uma crise de paradigmas,32 isto , acrise do modelo liberal-individualista e a crise dos paradigmas metafsicos clssico

    (objetivista) e moderno (subjetivista).Nesse contexto, no h como negar que a ausncia de um ensino jurdico adequado

    ao novo paradigma do Estado Democrtico de Direito torna-se fator decisivo para a criserepresentada pela baixa efetividade dos valores constitucionais. Acostumados com aresoluo de problemas de ndole liberal-individualista, e com posturas privatsticas queainda comandam os currculos dos cursos jurdicos (e os manuais jurdicos), os operadoresdo direito no conseguiram, ainda, despertar para o novo. O novo continua obscurecidopelo velho paradigma, sustentado por uma dogmtica jurdica entificadora. Dizendo deoutro modo: a revoluo copernicana ocorrida no direito constitucional e na cincia polticaainda no foi suficientemente compreendida/recepcionada pelos juristas brasileiros. Domesmo modo que, para Kgi, a posio que temos acerca da jurisdio constitucional

    implicar o tipo de Constituio que queremos, possvel dizer que o modelo de ensinojurdico que praticamos est umbilicalmente ligado ao futuro da Constituio que teremos.

    Da a necessria denncia: estando em vigor a nova Constituio, os cursosjurdicos no Pas no alteraram seus currculos visando construo de um imaginriovoltado construo do Estado Democrtico de Direito. Se, por exemplo, durante o ancinregime, as disciplinas de direito civil ocupavam duas, trs e at quatro vezes o espaodestinado ao direito constitucional, aps a entrada em vigor do novo texto constitucional asituao se manteve. No ocorreu repita-se a angstia do estranhamento. No lugar emque deveria ex-surgiro novo, continuaram as velhas prticas, insuladas no sentido comumterico, de cariz exegtico-normativista-positivista.

    Nesse sentido, calha frisar que, no fosse pelo aparecimento do novo, enfim, da re-

    fundao da sociedade, a partir de um pacto constituinte que estabeleceu em seus textos ascondies de possibilidades para o resgate de um passado que relegou milhes de pessoas excluso social, ao menos a comunidade jurdica deveria ter dado nfase Constituioenquanto fundamento de validade, mesmo no (velho) sentido kelseniano da palavra. Istopara dizer o mnimo!

    De observar, nessa trilha, que, se a doutrina constitucional brasileira, durante asordens constitucionais anteriores, trabalhara com uma classificao de normas

    32 Sobre a crise de paradigmas a que me refiro, consultar meu livro Hermenutica Jurdica E(m) Crise. 5.ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004..

  • 7/28/2019 Lenio Luiz Streck - A Revoluo Copernicana do Neoconstitucionalismo e a (baixa) Compreenso do Fenmeno no

    14/34

    constitucionais que relegava as normas programticas33 a um plano secundrio, parecerialgico que, na presena de um novo texto constitucional inspirado no contemporneoconstitucionalismo europeu, tornar-se-ia necessria uma nova teoria acerca da eficcia das

    normas. Recorde-se que essa discusso acerca da (des)classificao das normasconstitucionais j estava superada desde h muito no direito contemporneo, valendo trazera lume a polmica Crisafuli e Azzaritti e os escritos de autores como Canotilho, JorgeMiranda, Konrad Hesse e Bonavides, apenas para citar alguns autores. Mas, no Brasil, no!

    As faculdades de Direito passam por uma dupla crise: por um lado, devido ao fatode no produzirem uma dogmtica jurdica dotada de uma tcnica atualizada perante asnovas demandas do capitalismo tardio; de outro, por no terem uma efetiva funo social,notadamente em relao aos segmentos marginalizados da populao. Deste modo, muitomais do que uma crise da cincia do direito, h crise na reproduo legtima da dogmticajurdica que no consegue justificar a sua ideologia de bem comum devido ausncia decrticas mais efetivas racionalidade jurdica e formao dos juristas. 34

    Ao tentarem separar teoria e prtica, os cursos jurdicos no conseguem atingirnenhum dos dois objetivos: no conseguem formar nem bons tericos nem bonstcnicos (operadores sic). No difcil constatar essa dicotomizao de cartermetafsico que tem dominado a assim chamada cincia do direito. Isso ocorre porque opensamento dogmtico inserido no paradigma positivista-exegtico sustenta-se nodualismo teoria e prtica. Assim, a teoria seria aquela feita nas academias; a prticaseria aquela atividade realizada na efetiva aplicao do direito.

    Para quem tem dvidas acerca desse dualismo, basta um olhar acerca do que temsido ensinado nos cursos de direito: os alunos desdenham as matrias ditas tericas, comofilosofia, introduo ao estudo do direito, sociologia jurdica, etc, preferindo as disciplinasprticas (direito processual civil, penal, etc). A proliferao dos manuais prticos d

    mostras da gravidade e da dimenso dessa problemtica. Registre-se, neste aspecto, queesse imaginrio, no interior do qual os juristas separam a teoria da prtica, tem um fundofilosfico. Com efeito, separam o processo de compreenso/interpretao em partes (emfatias), questo, alis, que autores como Gadamer criticam com veemncia.35 Com eleaprendemos, de h muito, que hermenutica no mtodo, filosofia.

    Assim, se interpretar aplicar, no h um pensamento terico que flutua sobre osobjetos do mundo, apto a dar sentido ao mundo sensvel. O sentido de algo se d; eleacontece. Ou seja, o pensamento dogmtico do direito no conseguiu escapar ainda doelemento central da tradio kantiana: o dualismo. por ele que fomos introduzidos namodernidade numa separao entre conscincia e mundo, entre palavras e coisas, entrelinguagem e objeto, entre sentido e percepo, entre determinante e determinado, entre

    teoria e prtica. Heidegger vai dizer que esses dualismos somente puderam ser instalados33 Preocupado com a problemtica relacionada ineficcia histrica das normas programticas, Ingo Sarlet,em percuciente abordagem, prefere cham-las de normas de cunho programtico, asseverando, desde logo,que todas as normas consagradoras de direitos fundamentais so dotadas de eficcia. Cfe. SARLET, Ingo. Aeficcia dos direitos fundamentais. 2. ed. rev. e atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. p. 271 esegs. J Marcelo Neves, embora reconhea o forte componente ideolgico e a profunda impreciso semntica(vagueza e ambigidade) das normas programticas, deixa claro seu entendimento no sentido de que pordescumprimento de norma programtica, sempre possvel, nos sistemas de Constituio rgida, oquestionamento jurdico da inconstitucionalidade de lei. NEVES, Marcelo. Teoria da inconstitucionalidadedas leis. So Paulo: Saraiva, 1988. p. 103.34 Cfe. ROCHA, Leonel Severo. Epistemologia Jurdica. So Leopoldo: Ed. UNISINOS, 1999.35 Para tanto, ver STRECK, Hermenutica Jurdica E(m) Crise, 2004.

  • 7/28/2019 Lenio Luiz Streck - A Revoluo Copernicana do Neoconstitucionalismo e a (baixa) Compreenso do Fenmeno no

    15/34

    atravs do esquecimento do ser, atravs da introduo de um universo de fundamentaofilosfica conduzida apenas pelo esquema da relao sujeito-objeto.36 esse esquemasujeito-objeto que sustenta as dicotomias ou os dualismos que povoam o imaginrio dos

    juristas.Do mesmo modo, essa dualizao metafsica d azo tese de que as faculdades

    devem dedicar-se, preferentemente, formao de tcnicos (o que isso significa ningumconsegue explicar!). Para tanto, engendrou-se um imaginrio positivista-normativista-formalista que sustenta que o direito uma (mera) tcnica (racionalidade instrumental).Esse processo sobremodo retroalimentado37 pelas escolas de preparao para concursospblicos de carreiras jurdicas e pelo formato das provas desses concursos. Os cursinhosprocuram ensinar o que ser perguntado nos concursos pblicos, formando-se um crculovicioso. Conseqentemente, ter as suas chances de aprovao sensivelmente reduzidasaquele que no freqentar curso de preparao. Essa problemtica repete-se nas provas deExame de Ordem realizadas pela Ordem dos Advogados do Brasil.

    Forjou-se, assim, um imaginrio no interior do qual o ensino jurdico (de graduaoe ps-graduao) tem a precpua finalidade de atender s demandas (imediatas) dosoperadores (leia-se mercado).38 Esse processo se estabelece a partir da prtica de umametodologia didtico-casustica, que (re)produz uma cultura estandardizada, dentro daqual o jurista vai trabalhar, no seu dia-a-dia, com solues e conceitos lexicogrficos (queso transformados em categorias, como se fossem universais, aptos ao exercciodedutivo-subsuntivo do intrprete), recheando, desse modo, metafisicamente, suaspeties, pareceres e sentenas com ementas (verbetes) jurisprudenciais ahistricas eatemporais. A proliferao de manuais jurdicos no pode ser subestimada, uma vez queconsubstanciam tanto as disciplinas jurdicas ministradas nas faculdades de direito como oprocesso de aplicao cotidiana do direito.

    3.1. O novo e o velho: a obrigatoriedade de interpretar (todo o direito) emconformidade com a Constituio: a necessria superao do modelo interpretativodogmtico sustentado no esquema sujeito-objeto

    36 Ver, nesse sentido, STEIN, Ernildo. Pensar pensar a diferena. Iju: Ed. Uniju, 2002. p. 88 e 89.37 As leis, a jurisprudncia e a doutrina se retroalimentam em um processo circular indefinidamente repetido:as leis cristalizam os conceitos doutrinais e os autores se apoiam nas leis, porm sempre com uma deciso

    judicial de fundo que atua como pedra de toque do que os textos estabelecem. Cfe. NIETO, Alejando. Laslimitaciones del conocimiento jurdico. Madrid: Trotta, 1994. p. 24.38 No se pode olvidar um outro fator que colabora para a crise do ensino jurdico. Trata-se do alarmanteaumento do nmero de faculdades de direito no Brasil, a ponto de existirem faculdades em cidades com nomais do que cinco mil habitantes. Embora essa expanso ainda encontre respaldo no mercado, h um visveldficit no nmero de docentes com capacidade para o adequado enfrentamento das demandas das salas deaula dos mais de seiscentos cursos espalhados por todo o Brasil. Na medida em que o mercado, pordeterminao da Lei de Diretrizes e Bases, necessita de docentes com formao mnima em nvel demestrado, ocorre igualmente um aumento no nmero de programas de ps-graduao. Por outro lado, osrgos institucionais, em face do aumento da demanda por mestres e doutores, diminuem drasticamente os

    prazos para a defesa das dissertaes de mestrado (vinte e quatro meses) e teses de doutorado (trinta e seismeses), fatores que tero considerveis reflexos na qualidade dos novos docentes, que, muitas vezes,ingressam na carreira acadmica com pouqussima experincia.

  • 7/28/2019 Lenio Luiz Streck - A Revoluo Copernicana do Neoconstitucionalismo e a (baixa) Compreenso do Fenmeno no

    16/34

    Reproduzindo uma cultura estandardizada, a dogmtica jurdica torna-se refm deum pensamento metafsico, tornando possvel, com isto, separar o direito da sociedade,enfim, de sua funo social. Se a Constituio o elo conteudstico que liga o direito e a

    poltica, a dogmtica jurdica tem despolitizado o direito, a partir de um formalismotecnicista que foi sendo construdo ao longo de dcadas, com o que esqueceu-se dosubstrato social do direito e do Estado. Transformado em uma mera instrumentalidadeformal, o direito deixou de representar uma possibilidade de transformao da sociedade.

    Tal circunstncia ter reflexos funestos no processo de compreenso do juristaacerca do papel da Constituio, que perde, assim, a sua substancialidade. Veja-se, apropsito, a dificuldade que os juristas tm em lanar mo da jurisdio constitucional;veja-se, por tudo, a inefetividade da Constituio, passados dezesseis anos de suapromulgao!

    O novo paradigma constitucional no foi devidamente recepcionado pelopensamento jurdico brasileiro. Trata-se, efetivamente, de um enfrentamento de

    paradigmas. O arcabouo infraconstitucional, sustentado por um modelo de ntido perfilliberal-individualista e instrumentalizado por uma dogmtica jurdica de cariz positivista-exegtico, continua a obstaculizar as possibilidades transformadoras do direito provenientesda (nova) Constituio, que aponta para o resgate das promessas at ento incumpridas de realizao dos direitos sociais-fundamentais. a dvida social que tem seureconhecimento explicitado na repactuao constitucional.

    O sentido comum terico dos juristas continua assentado nos postulados dahermenutica clssica, de cunho reprodutivo. Continua-se a acreditar que as palavrasrefletem a essncia das coisas, e que a tarefa do intrprete resume-se a acessar essesentido (unvoco) ontolgico (no sentido da ontologia clssica).39 o preo que ahermenutica (ainda) paga concepo realista das palavras, que teve uma recepo

    incomensurvel no direito (sem mencionar, aqui, o papel desempenhado pelo paradigmaepistemolgico da filosofia da conscincia).40 Explicando melhor como isso funciona:para o jurista mergulhado no sentido comum terico (habitus), se no tiver coisas nomundo, as palavras ficam sem significado (sic). Para tanto, os juristas inventam, criam omundo jurdico, a partir de algo que se pode denominar de uso reificante dalinguagem, isso porque a crena nas palavras mantm a iluso de que estas so parteintegrante das coisas a conhecerou, pelo menos, com isso podem postular a adequaodos conceitos ao real; por outro lado, com a ajuda dos recursos lingsticos de que ointrprete dispe, o mximo que pode fazer proceder a decomposies arbitrrias ou assimilao de realidades que, em sua estrutura interna, so muito dessemelhantes.41 Nesse

    39 Na verdade, no plano do que se pode entender como senso comum terico, tais questes aparecem de formadifusa, a partir de uma amlgama dos mais distintos mtodos e teorias, na sua maioria calcados eminconfessveis procedimentos abstrato-classificatrios e lgico-subsuntivos, em que o papel da doutrina, nomais das vezes, resume-se a um constructo de cunho conceitualizante, caudatrio das decises tribunalcias; ja jurisprudncia, nesse contexto, reproduz-se a partir de ementrios que escondem a singularidade dos casos.Trata-se de um conjunto de procedimentos metodolgicos que buscam garantias de objetividade no

    processo interpretativo, sendo a linguagem relegada a uma mera instrumentalidade. O resultado disto ecalha registrar neste contexto a bem fundada crtica de Friedrich Mller que esse tipo deprocedimentalismo metodolgico acaba por encobrir lingisticamente, de modo permanente, oscomponentes materiais do domnio da norma.40 Ver, para tanto, STRECK, Hermenutica, 2004.41 Sobre esse uso reificante, consultar GARRIGOU, Alain e Lacroix; BERNARD, Norbert Elias. A polticae a histria. So Paulo: Perspectiva, 2001. p. 54 e 55.

  • 7/28/2019 Lenio Luiz Streck - A Revoluo Copernicana do Neoconstitucionalismo e a (baixa) Compreenso do Fenmeno no

    17/34

    universo metafsico, os conceitos lembremos, aqui, os verbetes e as smulas passam aser coercitivos, amarrando o intrprete a categorias,42 espcie de conceitos coletivosindiferenciados utilizados pela linguagem corrente que recobre/esconde as coisas nas suas

    singularidades.Mesmo algumas posturas consideradas crticas do direito, embora procurem romper

    com o formalismo normativista (onde a norma uma mera entidade lingstica), acabampor transferir o lugar da produo do sentido do objetivismo para o subjetivismo; da coisapara a mente/conscincia (subjetividade assujeitadora e fundante); da ontologia (metafsicaclssica) para a filosofia da conscincia (metafsica moderna). No conseguem, assim,alcanar o patamar da viragem lingstico/hermenutica, no interior da qual a linguagem,de terceira coisa, de mero instrumento e veculo de conceitos, passa condio decondio de possibilidade.

    Permanecem, desse modo, prisioneiros da relao sujeito-objeto (problematranscendental), refratria relao sujeito-sujeito (problema hermenutico). Sua

    preocupao de ordem metodolgica e no ontolgica (no sentido hermenutico aquitrabalhado). A revoluo copernicana provocada pela viragem lingstico-hermenuticatem o principal mrito de deslocar o locus da problemtica relacionada fundamentaodo processo compreensivo-interpretativo do procedimento para o modo de ser. Apesarda recepo da hermenutica pelas diversas concepes da teoria do direito, com ahermenutica da faticidade de Gadamer, caudatrio da antimetafsica heideggeriana, que ahermenutica vai dar o grande salto paradigmtico, porque ataca o cerne da problemticaque, de um modo ou de outro, deixava a hermenutica ainda refm de uma metodologia,43por vezes atrelada aos pressupostos da metafsica clssica e, por outras, aos parmetrosestabelecidos pela filosofia da conscincia (metafsica moderna). No se pode deixar dedenunciar, nesta altura, que, enquanto tentativa de elaborao de um discurso crtico ao

    normativismo, a metodologia limita-se a procurar traar as regras para uma melhorcompreenso dos juristas (v.g. autores como Coing, Canaris e Perelman), sem que se dconta daquilo que o calcanhar-de-aquiles da prpria metodologia (que tem um cunhonormativo): a da absoluta impossibilidade da existncia de uma regra que estabelea o uso

    42 Uma parte desse mundo jurdico prt--porterpode ser percebido pelo uso dos conceitos (verbetes) nafundamentao freqentemente utilizada nas condenaes baseadas na palavra da vtima, verbis: Noscrimes cometidos na clandestinidade, como cedio, as palavras da ofendida adquirem especial realce e, nomais das vezes, servem para alicerar a condenao (TJSP RT 730/512). Ou, ainda: Prova. Roubo.Palavra da vtima. Valor. Como reiteradamente se vem decidindo, se o delito praticado, sem que outra

    pessoa o presencie, a palavra da vtima que prepondera. (JTARGS 103/89). Esse tipo de prtica - hojeabsolutamente dominante na cotidianidade dos operadores do Direito nada mais do que ainstitucionalizao do uso reificante de conceitos jurdicos, transformados em significantes primordiais-fundantes. como se as palavras carregassem o seu prprio sentido, um sentido-em-si-mesmo. Comeste procedimento interpretativo, esconde-se a singularidade do caso (concreto) sob exame. Dito de outromodo: no incorreto dizer que se o delito praticado, sem que outra pessoa o presencie, a palavra davtima que prepondera. O problema saber se, no exame daquele caso, na sua singularidade, possveldar palavra da vtima essa credibilidade fundadora...!43 Nessa linha calha a observao de Lamego, lembrando que a linha da fratura representada pela viragemontolgica da hermenutica operada por Heidegger e Gadamer no , em regra, perceptvel para ageneralidade das abordagens jusmetodolgicas, assumindo apenas uma evidncia clara em impostaes decariz genuinamente jusfilosfico, como, por exemplo, as de Arthur Kaufmann. Cfe. LAMEGO, Jos.Hermenutica e jurisprudncia:anlise de ma recepo. Lisboa: Fragmentos, 1990. p. 56.

  • 7/28/2019 Lenio Luiz Streck - A Revoluo Copernicana do Neoconstitucionalismo e a (baixa) Compreenso do Fenmeno no

    18/34

    dessas regras, portanto, da impossibilidade da existncia de um Grundmethode.44 Da ocontraponto hermenutico: o problema da interpretao fenomenolgico, existencialidade.

    Como saber operacional, domina no mbito do campo jurdico o modeloassentado na idia de que o processo interpretativo possibilita que o sujeito (a partir dacerteza-de-si-do-pensamento-pensante, enfim, da subjetividade instauradora do mundo)alcance a interpretao correta, o exato sentido da norma, o exclusivocontedo/sentido da lei, o verdadeiro significado do vocbulo, o real sentido da regrajurdica, etc. Pode-se dizer que o pensamento dogmtico do direito acredita napossibilidade de que o intrprete extrai o sentido da norma, como se este estivesse contidona prpria norma, enfim, como se fosse possvel extrair o sentido-em-si-mesmo. Trabalha,pois, com os textos no plano meramente epistemolgico, olvidando o processo ontolgicoda compreenso.

    Dito de outro modo, h, no plano do sentido comum terico, um mais do que a

    filosofia da conscincia, estando em pleno vigor tambm o paradigma metafsicoaristotlico-tomista, de cunho dedutivista-subsuntivo,45 ambos consubstanciando as prticasargumentativas dos operadores jurdicos. Como o processo de formao dos juristas tempermanecido associado a tais prticas, tem-se como conseqncia a objetificao dos textosjurdicos, circunstncia que, para a interpretao constitucional, constitui forte elementocomplicador/obstaculizador do acontecer (Ereignen) da Constituio.

    Trata-se de no esquecer, aqui, a relevante circunstncia de que os textos nocarregam o seu sentido, isto , os textos no carregam a prpria norma. Essa questo fulcral para a compreenso crtica do direito, o que se pode ver nitidamente em autorescomo Paulo de Barros Carvalho, que, embora calcado em matriz terica diferente dahermenutica filosfica, deixa claro que existe uma diferena entre enunciados e normas: a

    norma jurdica juzo implicacional produzido pelo intrprete em funo de experincia notrato com os suportes comunicacionais, que so os textos jurdicos.46

    A norma ser, sempre, produto da interpretao do texto. Mas, ateno: entre texto enorma h uma diferena, e no uma equiparao (e, tampouco, uma total abissalidade). Otexto no contm a norma. A norma no pode ser vista. Somente o texto que existe comoconseqncia da norma. Ou seja, o texto no existe em sua textitude, assim como o enteno subsiste como ente. Ele s no seu ser. Por isso, a interpretao implica, sempre, umaatribuio de sentido (Sinngebung). Desenha-se, nessa diferena entre texto e norma, umimportante ponto de ruptura com o pensamento metafsico que predomina no positivismojurdico. O pensamento metafsico, ao equiparar ser e ente e, no caso, texto e norma ,provoca o seqestro da temporalidade, congelando os sentidos.

    44 Sobre o problema da metodologia e a ausncia/impossibilidade de metacritrios, ver o captulo quinto domeu livro Jurisdio Constitucional, 2003.45 Por incrvel que parea e a denncia de Alejandro Nieto la comunidad jurdica no se ha percatadotodava del desmoronamiento fuera de los medios escolsticos de la lgica aristotlica a partir do

    Renacimiento y de la aparicin de las nuevas lgicas informales o, si se quiere, de las otras lgicasque tanadecuadas son para el desarollo del conocimiento jurdico. Cfe. NIETO, Alejandro. Las limitaciones delconocimiento jurdico. Madrid: Trotta, 1994. p. 45.46 Para Paulo de Barros Carvalho, o direito positivo se apresenta como objeto cultural por excelncia,

    plasmado em uma linguagem que porta, necessariamente, contedos axiolgicos. Agora, esse oferecer-se emlinguagem significa dizer que aparece na amplitude do texto, fincado este em um determinado corpus que nos

    permite construir o discurso. Cfe. CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributrio: fundamentos jurdicosda incidncia. So Paulo: Saraiva, 1998. p. 57 e 60.

  • 7/28/2019 Lenio Luiz Streck - A Revoluo Copernicana do Neoconstitucionalismo e a (baixa) Compreenso do Fenmeno no

    19/34

    Tome-se, paradigmaticamente, a problemtica do entrechoque entre velhos textos enovos fundamentos de validade, a partir da problemtica relacionada interpretao dosmesmos textos ou expresses de textos sob o regime constitucional anterior e sob o novo.

    Analisando o caso da Constituio da Espanha, Hernandez Gil lembra da necessidade demudar radicalmente a linguagem jurdica, o sistema de linguagem ou o marco de refernciajurdico de todos os operadores do direito da Espanha para uma compreenso adequada donovo paradigma constitucional. O ano de 1981 pode ser considerado crucial para esseintento. Com efeito, basta que se examine a correlao semntica que os juristas tinhamantes e tm agora acerca de expresses como igualdade, discriminao, inocncia, prova,domiclio ou lei fundamental, cujos significados sofreram radical alterao se comparadoscom a verso a-tcnica e pr-tcnica que tinham antes da entrada em funcionamento doTribunal Constitucional. Sem a existncia de um Tribunal Constitucional, tais modificaesno teriam se firmado com tanta firmeza ou, ao menos, tal fenmeno no teria ocorridocom tanta rapidez. E isso pode servir para colocar uma questo de relevante interesse: o

    Tribunal Constitucional no somente utiliza normas de interpretao, como as constri eimpe comunidade jurdica. Assim, na sentena 64/83, imps aos juzes e Tribunais aobrigao de interpretar as leis em conformidade com a Constituio.47

    3.2. Rompendo com os tetos hermenuticos: o sentido da Constituio e aconstituio do sentido

    Em face do que at aqui foi dito, no pode causar maiores surpresas o fato de aConstituio no provocar imediata modificao no processo hermenutico dos textosinfraconstitucionais, uma vez que, obstaculizando a imediatez constitucionalizadora,forjou-se no campo jurdico uma espcie de teto hermenutico, estabelecido exatamente a

    partir de uma tradio no interior da qual o direito constitucional nunca teve a devidaimportncia. Ou seja, o limite do sentido e o sentido do limite de o jurista (operador dodireito lato sensu) poder dizer que o direito permaneceu confinado a um conjunto derepresentaes permeado pelas crises de paradigmas, isto , de um lado a doutrina e ajurisprudncia trabalham ainda sob a perspectiva de um modelo liberal-individualista-normativista, e, de outro, como que a avalizar esse (velho) modelo, esto o paradigmaepistemolgico da filosofia da conscincia e o paradigma essencialista aristotlico-tomista.Graas a isso, os operadores do Direito (professor, advogado, juiz, promotor, estudante dedireito) se conforma(ra)m com aquilo que (e, portanto, estava) pr-dito acerca do direitona sociedade brasileira.

    No ocorreu, pois, uma insurreio contra essa fala falada, submergindo o jurista no

    mundo de uma tradio inautntica, onde os pr-juzos (inautnticos) provoca(ra)m um(enorme) prejuzo. E, assim, alm da falta da elaborao de uma filtragem hermenutico-constitucional, o que implica a inefetividade lato sensu dos textos entendidos em suamaterialidade, desde as assim denominadas normas programticas at os preceitos maisespecficos , os juristas no conseguiram elaborar uma consistente resistncia contra os

    47 Cfe. HERNANDEZ GIL, Antonio. La justicia en la concepcin del derecho segn la Constitucin espaola.In: LOPEZ PINA, Antonio (Ed.). Divisin de Poderes y interpretacin: Hacia una teora de la praxisconstitucional. Madrid: Tecnos, 1987. p. 155. No caso brasileiro, veja-se, p. ex., os conceitos de direitoadquirido, ato jurdico perfeito, uso da propriedade, etc., cujos conceitos continuam sendo buscados emdoutrina e textos legais infraconstitucionais escritos h dezenas de anos, como se os textos e as expressestivessem conceitos-em-si-mesmos, metafsicos, portanto.

  • 7/28/2019 Lenio Luiz Streck - A Revoluo Copernicana do Neoconstitucionalismo e a (baixa) Compreenso do Fenmeno no

    20/34

    sucessivos ataques ao texto constitucional, fruto de uma fria legiferante patrocinada pelossucessivos governos e pelo Congresso Nacional. Dizendo de outro modo, possvelafirmar que no houve a devida compreenso do sentido do Estado Democrtico de Direito,

    ou seja, o Estado Democrtico de Direito no foi compreendido como (esse como ohermenutico als). Em face de uma baixa constitucionalidade, o ser do ente EstadoDemocrtico de Direito e suas possibilidades da realizao da funo social do direito ficou difuso, diludo, mal-compreendido.

    Destarte, se todos os textos jurdico-normativos do sistema jurdico somente podemser considerados como vlidos se interpretados em conformidade com a Constituio, e se acompreenso que depende de uma pr-compreenso condio de possibilidade para ainterpretao, e se isto no ocorreu na devida medida e continua a no ocorrer, ento possvel dizer que no est havendo a compreenso (no sentido gadameriano). Isso porquea linguagem morada do ser est tomada pelo sentido comum terico (domnio da baixaconstitucionalidade), que, e aqui parafraseio Bachelard, antes de ser juiz ou testemunha do

    processo interpretativo, deve ser visto como ru. E, como ru, deve ser acusado, suspenso,interditado, para que, a partir disto, possamos compreender o novo, deixando a linguagemdo novo vir ao ente, com o conseqente desvelar do sentido.

    Por isso, insisto na importncia da relao entre o modo-de-fazer direito e aconcepo de Estado vigente/dominante. Isso porque a inefetividade de inmerosdispositivos constitucionais e a constante redefinio das conquistas sociais atravs deinterpretaes despistadoras/redefinitrias feitas pelos Tribunais brasileiros tm uma diretarelao com o modelo de hermenutica jurdica que informa a atividade da comunidadejurdica.

    No se pode esquecer, assim, os fatores poltico-ideolgicos relacionados sconseqncias (e reaes) que uma Constituio nova provoca. Nesse sentido, Canotilho

    anota dois tipos de postura assumidos face Constituio:A primeira, adotada por aqueles que optarem por concepes ideolgicas e polticas

    substancialmente diferentes das mensagens ideolgicas consagradas na Constituio,conduz eleio de fundamentos interpretativos que lhes permitam vulnerar, direta ouindiretamente, a estrutura normativa constitucional.

    A segunda adotada por aqueles que guardam sintonia com os princpiosfundamentais atinentes conformao poltica e jurdica da sociedade que a Constituiocontempla, exercitam um prudente positivismo, indispensvel manuteno daobrigatoriedade normativa do texto constitucional. A primeira orientao foi seguida,durante o conturbado perodo da Repblica de Weimar, por todos aqueles que, combatendoo carter progressista, liberal e democrtico da Constituio, acabaram por sobreacentuar a

    constituio real com a conseqente infravalorizao do carter normativo da constituiojurdica.48

    Assim, se de um lado existem vrios fatores que colaboram para a crise deconstitucionalidade, parte dos quais podem ser denominados de endgenos, porquedebitveis prpria crise paradigmtica que atravessa a dogmtica jurdica, do outro hfatores exgenos que provocam fortes abalos no direito e debilitam o texto constitucional eas condies de sua aplicao. Refiro-me ao crescente processo de desregulamentao

    48 Ver, para tanto, CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional. 3. ed. Coimbra: Coimbra Editora,1994. p. 224; GRAU, Eros. A ordem econmica na Constituio de 1988: interpretao e crtica. 2. ed. SoPaulo: Revista dos Tribunais, 1991. p. 176 e 177.

  • 7/28/2019 Lenio Luiz Streck - A Revoluo Copernicana do Neoconstitucionalismo e a (baixa) Compreenso do Fenmeno no

    21/34

  • 7/28/2019 Lenio Luiz Streck - A Revoluo Copernicana do Neoconstitucionalismo e a (baixa) Compreenso do Fenmeno no

    22/34

  • 7/28/2019 Lenio Luiz Streck - A Revoluo Copernicana do Neoconstitucionalismo e a (baixa) Compreenso do Fenmeno no

    23/34

    constituio, como o que a linguagem se torna condio de possibilidade do processo deinterpretao do direito.52 Assim, alada a linguagem ao patamar cimeiro da relao denosso modo-de-ser-no-mundo, e sendo inexoravelmente a compreenso dependente de

    nossa pr-compreenso, no difcil entender as razes pelas quais a comunidade jurdicademorou a dar-se conta da dimenso da revoluo paradigmtica que representaram ostextos constitucionais dirigentes e compromissrios no seio da teoria do Estado e daConstituio. Sejamos claros: no havia um caldo de cultura apto a recepcionar essaverdadeira revoluo copernicana que alou o Direito constitucional ao status dedisciplina dirigente, questo que assumia contornos mais relevantes ainda se levado emconta o problema de ser o Brasil um pas de modernidade tardia. No ocorreu no Brasilalgo similar ao Debate de Weimar, onde foi discutida, nos idos de 1919, a crise da TeoriaGeral do Estado, a partir da insuficincia da Teoria Geral do Estado enciclopdica deJellinek.53

    As mesmas insuficincias terico/paradigmticas que preocuparam os juristas

    alemes no alcanaram o mesmo tratamento em terrae brasilis. O novo paradigma doEstado Democrtico de Direito, no interior do qual o constitucionalismo porqueumbilicalmente ligado Teoria do Estado assume contornos transformadores da realidadesocial, vem sendo trabalhado a partir de uma ultrapassada Teoria Geral do Estado, que norene as condies suficientes para a elaborao de um discurso que imbrique Constituioe Estado. Mais do que uma crise na Teoria (Geral) do Estado, h uma crise da Constituio,que, segundo Bercovici, pode ser superada ao compreendermos a Constituio nestespressupostos da Teoria do Estado, em conexo com a poltica e a realidade social (e aquiassume relevncia a circunstncia de vivermos em um pas de modernidade tardia). Afinal,aduz o autor, ao contrrio do que alguns juristas defendem, no possvel entender aConstituio sem o Estado. A existncia histrica e concreta do Estado soberano

    pressuposto, condio de existncia da Constituio. Talvez aqui esteja um dos problemasfundamentais da crise que obstaculiza a compreenso do papel da Constituio no Brasil (econseqentemente do porqu de sua inefetividade, passados quinze anos): a Constituiotem sido compreendida apenas como normativa, desconectada da poltica (onde entra, pordecorrncia lgica, o Estado). H uma necessria conexo/imbricao entre Estado,Constituio e poltica. S assim ser possvel perceber que a Constituio pertencetambm realidade histrico-social. 54

    52 Cfe. CARVALHO, op.cit., p. 57.53 A crise da Teoria Geral do Estado gerou trs grandes propostas para a sua superao, todas descartando asconcepes de Jellinek. Duas propostas vo substituir a velha Teoria Geral do Estado pela nova Teoria daConstituio. De um lado, a viso da Constituio exclusivamente como norma jurdica (Kelsen). De outro, asTeorias Materiais da Constituio, vista agora como algo mais do que uma simples norma jurdica, mas comolei global da vida poltica do Estado e da sociedade (Carl Schmitt e Rudolf Smend). Finalmente, a terceira

    proposta busca a renovao metodolgica completa da Teoria Geral do Estado, que deveria ser substitudapela Teoria do Estado como cincia da realidade (Hermann Heller). Cfe. BERCOVICI, Gilberto. AConstituio Dirigente e a Crise da Teoria da Constituio. So Paulo, 2003, indito.54 Cfe. BERCOVICI, A Constituio, 2003.

  • 7/28/2019 Lenio Luiz Streck - A Revoluo Copernicana do Neoconstitucionalismo e a (baixa) Compreenso do Fenmeno no

    24/34

    5. guisa de concluso a tarefa dos juristas no novo paradigma institudo peloneoconstitucionalismo: a necessria superao das crises do direito e do Estado comocondio de possibilidade para o resgate de um direito comprome-

    tido com as transformaes sociais

    De tudo o que foi dito, no h como negar a existncia de uma crise no e do direito,cujos desdobramentos no so difceis de perceber. No implementamos, ainda, ummnimo hermenutico, isto , no elaboramos uma filtragem hermenutico-constitucionaldos textos infraconstitucionais incompatveis com a Constituio (vigncia versusvalidade).

    O modelo de direito predominante no Brasil longe est de atender s demandasprovenientes de uma sociedade complexa, no interior da qual convivem os maissignificativos contrastes. No imaginrio dos juristas prevalece ainda o modelo forjado pararesolver conflitos de ndole interindividual. Essa crise pode ser detectada nas prticas

    cotidianas dos juristas, na cultura manualesca que as informam, bem como nas salas de aulados cursos de direito, dos cursos de preparao e em significativos setores da prpria ps-graduao.

    H uma dificuldade enorme em convencer a comunidade jurdica acerca do valor daConstituio e do constitucionalismo. Esse problema ocorre em vrios nveis. Em um nvelmais simples, h a inefetividade da Constituio, que decorre da mera ignorncia acercada diferena entre texto e norma ou entre vigncia e validade. Nesse patamar, opensamento dogmtico-objetificante do direito faz com que a validade se equipare vigncia, sendo ainda raros os operadores jurdicos que conseguem avanar para alm dessaarmadilha do objetivismo metafsico. Isso acarreta um enfraquecimento da jurisdioconstitucional, problema que tambm pode ser detectado pelo reduzido nmero de

    incidentes de inconstitucionalidade suscitados pelos rgos fracionrios dos Tribunais. Domesmo modo, so raras as decises que aplicam as tcnicas da interpretao conforme aConstituio e da inconstitucionalidade parcial sem reduo de texto (sem falar de outrassentenas interpretativas que poderiam servir de importantes mecanismos derealizao/concretizao da Constituio).

    Em outro nvel, ocorre a inefetividade da Constituio assentada num plano maiscomplexo, a partir da negativa dos Tribunais (assumindo maior relevncia, aqui, osTribunais Superiores) em dar efetividade aos princpios e s assim denominadas normasprogramticas, ainda consideradas como meramente programticas. Veja-se adificuldade em fazer valer o valor da parametricidade do art. 3o da Constituio, queconsubstancia o Welfare State na Constituio. Uma hermenutica adequada aponta, por

    exemplo,para a nulidade/inconstitucionalidade de muitas das privatizaes realizadas nosltimos dez anos; muito embora tais teses tenham recebido guarida na justia federal, foramesvaziadas em grau de recurso pelo Superior Tribunal de Justia e pelo Supremo TribunalFederal. Isso para dizer o mnimo.

    Na verdade, formou-se um habitus, no interior do qual a Constituio apenas maisuma lei (relembre-se, aqui, a crise da Teoria da Constituio, ao entender a Constituioapenas como norma), espcie de capa de sentido, circunstncia que fragiliza sobremodoqualquer possibilidade de prevalncia do sentido de fora normativa. Nesse universo,freqentemente a Constituio (ainda) interpretada de acordo com os Cdigos ou deacordo com smulas. O prprio Supremo Tribunal Federal recentemente declarou ainconstitucionalidade de dispositivo de medida provisria tendo como parametricidade uma

  • 7/28/2019 Lenio Luiz Streck - A Revoluo Copernicana do Neoconstitucionalismo e a (baixa) Compreenso do Fenmeno no

    25/34

    smula de origem anterior Constituio.55 Veja-se o episdio que envolveu a aplicao,por centenas de juzes, de um dispositivo fantasma introduzido de forma clandestina nocorpo da Lei 9.639 (pargrafo nico do art. 11).56

    A crise alcana e atravessa inexoravelmente a jurisdio constitucional e o que estarepresenta no plano da discusso da efetividade do processo.Na busca de uma efetividadequantitativa, so enfraquecidas as instncias inferiores, mormente a justia de primeirograu, em favor da justia de segundo grau e dos tribunais superiores. Para tanto, veja-se opoder conferido ao relator na apreciao dos recursos, que transforma um julgamentocolegiado de segundo grau em uma manifestao monocrtica. Considere-se, ademais, aautntica aporia representada pela possibilidade de o relator dos recursos especial eextraordinrio determinar o arquivamento de plano do recurso, quando a matria contrariarsmula (e isso j existe desde 1990 e no causou maiores perplexidades na comunidadejurdica...!). A edio das Leis 9.868 e 9.882 d uma amostra dessa busca incessante dosanto graal da efetividade do processo, em que constam os mais variados tipos de

    violaes de princpios e preceitos constitucionais, que vo desde o indevido efeitovinculante s decises positivas de constitucionalidade, a possibilidade de inverso dosefeitos em sede de ao direta de inconstitucionalidade (ADIn) e ao declaratria deconstitucionalidade (ADC), alm dos instrumentos avocatrios constantes em ambas as leis.

    A recente aprovao de emenda constitucional institucionalizando as smulasvinculantes por certo agravar o estado da arte do problema. A institucionalizao dassmulas vinculantes no encontra precedente em outro sistema jurdico de cariz romano-germnico. Os antigos assentos portugueses de onde se originou a smula brasileira foram declarados inconstitucionais pelo Tribunal Constitucional de Portugal h duasdcadas. Obrigatria ou no a smula, preciso ter em conta que parcela considervel dadoutrina e da jurisprudncia sempre foram caudatrias das smulas (mesmo antes destas

    terem fora vinculativa constitucional, como agora), das jurisprudncias dominantes edas famosas co