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LENDO, ESCREVENDO E PRODUZINDO JORNAL: A APROPRIAÇÃO DA ESCRITA POR ALUNOS DE EJA CENTRO MUNICIPAL DE REFERÊNCIA DE EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS PROFESSORA FABÍOLA DANIELE DA SILVA “A lingüística moderna já demonstrou que não há línguas melhores ou piores, nem variedade lingüística que não tenha gramática articulada e consistente. Mais ainda, tem bem estabelecido que a variação é intrínseca ao fenômeno das línguas humanas. A idéia de uma forma ideal de expressão oral e escrita e sua associação à inteligência humana, que dominou o pensamento europeu até o século 18, resultou de uma visão simplista e etnocêntrica de sociedade.” Luiz Percival Leme Britto e Wilmar da Rocha D’Angelis Associação de Leitura do Brasil, UNICAMP, Campinas, SP

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LENDO, ESCREVENDO E PRODUZINDO JORNAL: A APROPRIAÇÃO DA ESCRITA POR ALUNOS DE EJA

CENTRO MUNICIPAL DE REFERÊNCIA DE EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS PROFESSORA FABÍOLA DANIELE DA SILVA

“A lingüística moderna já demonstrou que não há línguas melhores ou piores, nem variedade lingüística que não tenha gramática articulada e consistente. Mais ainda, tem bem estabelecido que a variação é intrínseca ao fenômeno das línguas humanas. A idéia de uma forma ideal de expressão oral e escrita e sua associação à inteligência humana, que dominou o pensamento europeu até o século 18, resultou de uma visão simplista e etnocêntrica de sociedade.”

Luiz Percival Leme Britto e Wilmar da Rocha D’Angelis Associação de Leitura do Brasil, UNICAMP, Campinas, SP

LENDO, ESCREVENDO E PRODUZINDO JORNAL:

A APROPRIAÇÃO DA ESCRITA POR ALUNOS DE EJA Fabíola Daniele da Silva∗

Coordenadora Pedagógica – SME/RJ

O projeto “Lendo, escrevendo e produzindo jornal: A apropriação da escrita por alunos de

EJA” foi pensado com alunos de bloco II, do PEJA I, do Centro Municipal de Referência de

Educação de Jovens e Adultos, teve a duração de um semestre letivo e ainda encontra-se em

andamento, o produto final da primeira etapa foi uma coletânea de textos produzidos pelos

alunos em grupo e individualmente que resultou em um jornal onde as tipologias textuais

trabalhadas se apresentaram.

Utilizou-se a classificação da tipologia textual proposta por Lluís Maruny Curto e

constatamos que o jornal é o suporte onde a quase totalidade desta tipologia é encontrada.

Partimos do pressuposto de que a aprendizagem se dá em um contexto histórico cultural

no qual o meio social tem papel preponderante uma vez que é a partir das experiências

anteriores que o indivíduo significa, ressignifica e decodifica o mundo a sua volta.

Podemos dizer que a língua escrita representa um grande obstáculo à aprendizagem dos

alunos de classes populares durante a escolarização. Em se tratando de EJA, as marcas da

oralidade se apresentam de forma significativa em oposição ao conhecimento científico

proposto pela escola.

O trabalho com jornal representou a tentativa de se romper com este obstáculo e levar o

aluno a apropriar-se da variante culta de sua língua materna no sentido de usufruir os bens

culturais produzidos pela humanidade, além de tornar-se produtor de conhecimento.

O fortalecimento da auto-estima do aluno passa pelo resgate de sua identidade cultural

quando ele percebe que, embora exista uma norma culta a ser aprendida na escola, ele possui

a competência lingüística inerente a qualquer usuário da língua. Esta discussão nos remete à

questão da identidade, pois o processo de apropriação da norma culta por parte do aluno não

pode resultar na negação de sua identidade cultural e lingüística, mas, ao contrário, apenas ∗Por ocasião da realização do trabalho, regente do Centro Municipal de Referência de Educação de Jovens e Adultos – RJ.

aquele que se reconhece competente lingüisticamente é capaz de utilizar o conhecimento

técnico da norma culta em favor da expressão e afirmação de seus valores humanos e

culturais.

Neste trabalho, os alunos utilizaram o jornal, não apenas como fonte de informação, mas

como base para o exercício da consciência crítica através da leitura, reflexão, debate e

reescrita. Este trabalho tornou-se a alavanca para todo o processo de alfabetização, digo,

aprimoramento do processo.

Pretende-se, com este projeto, propiciar aos alunos oriundos de classes populares o

contato cotidiano com tecnologias através de diversas mídias de forma a exercitar a

consciência crítica e compreender-se como agente produtor de informação, conhecimento e

cultura.

Contribuir para a ampliação do universo cultural dos alunos, desenvolver a competência

lingüística no que se refere à linguagem escrita, assim como a capacidade de reconhecer e

classificar os diferentes tipos de textos. O aluno deverá ser capaz de reconhecer e utilizar os

aspectos formais pertinentes a cada tipo de texto como vocabulário e layout e de produzir

textos coerentes e coesos a partir de modelos trabalhados.

A APROPRIAÇÃO DA ESCRITA

Ao longo do semestre, trabalhamos com notícias de jornais cotidianamente que se

transformaram em fio condutor para debates, reescrita, atividades de compreensão e mesmo

problemas matemáticos.

Num primeiro momento, realizamos leituras das notícias explorando a oralidade em

debates sobre o tema abordado. Após, passamos à reescrita feita de forma coletiva. Com a

reescrita pronta, fizemos nova leitura buscando corrigir problemas de concordância, coesão,

coerência e ortografia.

Num segundo momento, passamos a reescrita individual, seguindo a seqüência relatada

anteriormente: leitura, debate, reescrita. Dois tipos de correção foram priorizadas nesse

processo, a correção coletiva e a realizada individualmente.

Depois foram apresentados outros tipos de textos: descritivo, narrativo, quadrinhos,

prescritivo, publicitário, charge, imagem (fotografia), com propostas de atividades variadas,

como interpretação, reescrita coletiva e individual, produção de texto argumentativo, leitura

de tabelas, etc.

Observe a proposta de trabalho que se segue:

Escrever não é fácil pra ninguém. Para alunos de EJA que estão em processo de

alfabetização a escrita torna-se mais difícil e assustadora. As questões “o quê, onde, quando,

como, por quê” nortearam todos os trabalhos de reescrita de textos jornalísticos/informativos.

Com esse modelo, o aluno sabe o que fazer sentindo-se mais seguro para se lançar ao

mundo da escrita. Seguir modelos favorece, o aluno, no processo de apropriação da tipologia

de texto que esteja sendo trabalhada. O conhecimento e domínio do modelo, ajuda a

desconstruir a idéia de que os alunos da EJA não são capazes de escrever, transformando-os

em escritores conscientes de suas potencialidades.

O trabalho de aperfeiçoamento da escrita deve ser diário, constante e não tenhamos

dúvidas, durará por toda a vida, enquanto nos dispusermos ao trabalho da escrita.

A reportagem seguinte está acompanhada do trabalho de um dos alunos. Nele

podemos perceber como acontece o processo de apropriação da escrita, tendo como base um

modelo. Ortográficas não é o foco da atividade e sim a apropriação da escrita, no caso, um

texto jornalístico.

Nesse texto, embora ainda se apresentem as marcas da oralidade, é possível visualizar

a apropriação pelo tipo de escrita que se deve ter num texto informativo. Nota-se que as

perguntas “o quê, onde, quando, como, por quê” foram respondidas.

Essa atividade deve ser realizada após leitura do texto, conversa na turma, explorando

a oralidade e, por conseqüência, favorecendo a organização do texto na mente do aluno-

escritor.

Diferente do anterior, essa produção não se prende à reescrita. A aluna começa bem,

mas se empolga ao escrever e coloca todo o seu sentimento num texto que deveria ser de

reescrita. As marcas da oralidade estão presentes de forma acentuada neste texto.

Isso nos mostra que, mesmo com a utilização de modelos, é preciso que a atividade

seja realizada diversas vezes até o aluno se sentir seguro para realizá-la de forma autônoma. A

intervenção do professor deve ser feita de forma a ajudar o aluno-escritor a identificar os

problemas em seu texto, ajudando-o a pensar criticamente sobre o processo de escrita.

O aluno, regra geral, acredita que o professor é a pessoa indicada para escrever.

Acredita que o texto do professor é produzido “em uma tacada só”. Nesse sentido, é

importante que o aluno acompanhe o processo de escrita coletiva, momento em que o

professor escreve, lê, apaga, reescreve, corrige. Isso faz com que ele perceba que o processo

de escrita é demorado, trabalhoso, árduo não só pra ele, mas para qualquer pessoa que se

aventure nesse trabalho.

Com os textos prontos, passamos à seleção dos que seriam publicados. A digitação dos

textos escolhidos foi feita em sala em meu notebook pessoal, uma vez que, naquela época a

escola não possuía o equipamento para uso dos alunos. O tratamento estético para a

publicação foi relativamente simples, já que usamos o programa Publisher, que oferece

modelos prontos. Ainda assim, coube aos alunos a escolha do modelo a ser utilizado.

Realizamos, também, duas entrevistas. Para tanto, um roteiro foi elaborado coletivamente,

neste momento foi necessário conciliar a curiosidade dos alunos ao elaborarem as perguntas e

o pensamento sintético de forma a contemplar as curiosidades em um número reduzido de

perguntas. Outro desafio foi a transcrição das entrevistas devido a grande dificuldade de

transformar a linguagem oral em escrita. Esta etapa foi feita por mim, mas o resultado final

foi discutido com os alunos que puderam vivenciar as diferenças reais entre as duas formas de

linguagem – oral e escrita.

O jornal foi lançado e distribuído na Mostra Pedagógica ocorrida em agosto de 2006, o

que causou grande orgulho por parte das turmas, que mesmo sendo turmas de PEJA I, foram

responsáveis pela produção do “Jornal do CREJA”. Tivemos ainda, a colaboração do

professor Adelino Matias de Carvalho, de História/Geografia na conversão do jornal para

formato de web. Desta forma o jornal pôde ser manuseado no computador que ficou

disponível aos alunos e convidados durante a Mostra, além do seu formato impresso.

O projeto começou em fevereiro de 2006 com as turmas 193 e 196, e continuou sendo

coordenado por mim até final de 2006, quando saiu uma nova edição. A proposta é que o

jornal seja apropriado por todos os alunos da escola e passe a representar suas vozes. Para

tanto, fizemos uma consulta à comunidade escolar, onde o nome definitivo foi escolhido.

Esperamos que esse seja apenas um passo na construção da identidade coletiva do Centro

de Referência de Educação de Jovens e Adultos.