Lemony Snicket - Quem Poderia Ser a Uma Hora Dessas.pdf

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  • Caro leitor, Foi pensando em voc, que sabe o que procura nas estantes e est sempre ligado nas novidades,

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  • PARA: WalleyeDE: LSARQUIVAR EM: Manchado-pelo-mar,relatrios sobre; roubo, investigaes sobre; Tiro Furado; boas; tinta;traies; et cetera.1/4cc: VFDh9

  • 1Havia um vilarejo, uma garota e tambm um roubo. Eu estava no vilarejo, fora contratadopara investigar o roubo, e achava que a garota no tinha nada a ver com aquilo. Eu tinha quase trezeanos e estava errado. Sobre tudo. Eu devia ter feito a pergunta: Por que algum diria que roubaramuma coisa que nunca foi sua, pra comear?. Em vez disso, fiz a pergunta errada quatro perguntaserradas, mais ou menos. Esta a histria da primeira delas.

    A Casa de Ch e Papelaria Cicuta o tipo de lugar onde o cho parece estar sempre sujo, mesmoquando est limpo. E no estava limpo nesse dia em questo. A comida no Cicuta ruim demaispara se comer, em especial os ovos, que provavelmente so os piores ovos da cidade, incluindoaqueles que esto expostos no Museu do Mau Caf da Manh, onde os visitantes aprendem at queponto podem arruinar seus ovos. O Cicuta vende canetas e papis danicados e inteis, mas o chat que bebvel, e sua localizao bem em frente estao de trem faz dele um bom lugar para agente sentar com nossos pais antes de embarcar num trem rumo a uma nova vida. Eu estava usandoo terno que ganhei de presente de formatura. Tinha cado pendurado no meu armrio por semanas,como se fosse uma pessoa oca. Eu estava de mau humor e com sede. Quando o ch chegou, por ummomento s pude ver o vapor. Eu havia dito adeus a uma pessoa muito rpido, e agora queria quetivesse demorado mais. Disse a mim mesmo que aquilo no importava e que, certamente, no erahora pra car emburrado. Voc tem trabalho a fazer, Snicket, disse a mim mesmo. No htempo para ficar triste.

    De qualquer forma, voc vai encontr-la em breve, pensei, equivocadamente.Ento o vapor se dissipou e eu olhei para as pessoas que estavam comigo. interessante olhar para

    a famlia de algum e imaginar como ela pareceria a um estranho. Eu via um homem de ombroslargos enado em um terno marrom e felpudo, que parecia deix-lo desconfortvel, e uma mulhertamborilando a mesa com as unhas, sem parar, o som parecendo o galopar de um cavalo pequeno.Ela tinha uma flor no cabelo. Os dois estavam sorrindo, especialmente o homem.

    Voc ainda tem muito tempo antes do seu trem partir, lho ele disse. Voc gostaria depedir alguma coisa pra comer? Ovos?

  • No, obrigado eu disse. Estamos to orgulhosos do nosso garotinho disse a mulher, que talvez pudesse parecer

    nervosa a algum que a estivesse observando com cuidado. Ou talvez no. Ela parou de tamborilaros dedos na mesa e os passou pelo meu cabelo. Em breve, precisarei de um corte. Voc deve estartinindo de entusiasmo.

    Acho que sim eu disse, mas no estava tinindo. E no estava sentindo absolutamente nada. Ponha o guardanapo no colo ela me disse. J pus. Bem, ento beba seu ch ela disse, e outra mulher entrou no Cicuta. No olhou para mim

    ou minha famlia, nem para qualquer outro lugar. Passou raspando na minha mesa, muito alta ecom uma grande cabeleira selvagem. Seus sapatos faziam barulho quando ela caminhava. Ela parounuma gndola de envelopes e pegou o primeiro que viu. Depois jogou uma moeda para a mulheratrs do balco, que a pegou quase sem olhar, e ento saiu pela porta. Com todo aquele ch sobre asmesas, parecia que um dos seus bolsos estava fumegando. Fui o nico que a notou. Ela no olhoupara trs.

    Existem dois bons motivos para se pr um guardanapo no colo. Um que a comida pode cair, e melhor que manche o guardanapo do que a roupa. O outro que pode servir como umesconderijo perfeito. Praticamente ningum seria intrometido a ponto de tirar o guardanapo do colode algum para ver o que est escondido embaixo. Dei um longo suspiro e olhei para o meu colo,como se estivesse perdido em meus pensamentos, e ento, rpida e silenciosamente, desdobrei e li obilhetinho que a mulher havia deixado ali.

    saia pela janela no banheiroe me encontre no beco atrs desta loja.estarei esperando no esportivo verde.voc tem cinco minutos. s Esportivo, eu sabia, era uma maneira afetada de dizer carro, e eu no conseguia parar de

    imaginar que tipo de pessoa perderia seu tempo escrevendo esportivo quando bastava usar carro.Tambm no conseguia parar de imaginar que tipo de pessoa assinaria um bilhete secreto, ainda quefosse apenas com a letra S. Um bilhete secreto secreto. No h motivo para assin-lo.

    Tudo bem, filho? Com licena eu disse, levantando. Coloquei o guardanapo sobre a mesa e quei segurando

    o bilhete amassado na mo. Beba seu ch. Me eu disse.

  • Deixe-o, querida disse o homem de terno marrom. Ele tem quase treze anos. umaidade difcil.

    Levantei e caminhei at os fundos do Cicuta. Provavelmente, j tinha passado um minuto. Amulher atrs do balco cou me observando enquanto eu olhava para os lados. Nos restaurantes,eles sempre nos obrigam a perguntar onde ca o banheiro, mesmo quando a nica coisa quepoderamos estar procurando. Disse a mim mesmo que no devia ficar envergonhado.

    Se eu fosse um banheiro perguntei mulher , onde eu ficaria?Ela apontou para um corredorzinho. Notei que a moeda ainda estava em sua mo. Entrei

    rapidamente no corredor, sem olhar para trs. Eu no veria a Casa de Ch e Papelaria Cicuta outravez por muitos e muitos anos.

    Caminhei at o banheiro e vi que no estava s. Consegui pensar em apenas duas coisas para fazerno banheiro enquanto aguardava car s. Fiz uma delas, que era ir at a pia e jogar gua gelada norosto. Aproveitei a oportunidade para enrolar o bilhete numa toalha de papel e enar embaixo dagua para destru-lo. Joguei tudo fora. provvel que ningum procure por ele.

    Um homem saiu do reservado. Nossos olhares se cruzaram no espelho. Voc est bem? ele perguntou. Eu devia estar parecendo nervoso. Eu comi aqueles ovos disse. Ele lavou as mos e saiu. Fechei a torneira e olhei para a nica

    janela. Era pequena, quadrada e tinha uma tranca muito simples. At uma criana poderia abri-la, oque era bom, j que eu era uma criana. O problema que cava a uns trs metros de altura, numaquina do banheiro. Mesmo na ponta dos ps eu no conseguia nem chegar perto da tranca.Qualquer idade seria difcil para algum que precisasse sair por aquela janela.

    Entrei no reservado. Atrs do vaso havia um grande embrulho feito com papel pardo e barbante,mas meio frouxo, como se ningum se importasse se poderia ou no ser aberto. Encostado na parededaquele jeito, no chamava muito a ateno. Dava a impresso de ser alguma coisa de que o Cicutapoderia precisar, ou uma ferramenta esquecida pelo encanador. No parecia ser da minha conta. Euo puxei para o meio do reservado e fechei a porta enquanto rasgava o papel. No a tranquei. Umhomem com ombros fortes seria capaz de abrir uma porta dessas fora mesmo que estivessetrancada.

    Era uma escada dobrvel. Sabia que estava ali. Eu mesmo a havia colocado.Devo ter levado um minuto at encontrar o bilhete, mais um para ir at o banheiro, mais um

    esperando que o homem sasse, e outros dois para armar a escada, destrancar a janela e dar um meiosalto, meio escorrego pela janela e cair sobre uma poa de gua no beco. No total, cinco minutos.Limpei a gua enlameada das minhas calas. O esportivo era pequeno e verde, parecia ter sido umcarro de corrida algum dia, mas agora havia s rachaduras e rangidos em toda sua carroceriaarredondada. Aquele esportivo fora negligenciado. Ningum tinha cuidado dele, e agora era tardedemais. Quando entrei, a mulher estava sria, sentada no banco do motorista. Sua cabeleira havia

  • sido domada por um pequeno capacete de couro. As janelas estavam abertas, e a atmosfera chuvosacombinava com o clima dentro do carro.

    Eu sou S. Theodora Markson ela disse. Eu sou Lemony Snicket respondi e entreguei-lhe um envelope que trazia no bolso. Dentro

    havia o que poderamos chamar de carta de apresentao, alguns pargrafos me descrevendo comoexcelente leitor, bom cozinheiro, msico medocre e pssimo lutador. Tinha recebido instruespara no ler minha carta de apresentao, e acabei perdendo um tempo abrindo e depois fechando oenvelope novamente.

    Sei quem voc ela disse, jogando o envelope no banco traseiro. Ela olhava pelo para-brisacomo se j estivssemos em movimento. Houve uma mudana nos planos. Estamos com muitapressa. A situao mais complicada do que voc imagina ou do que poderia explicar diante da atualcircunstncia.

    Diante da atual circunstncia repeti. Voc quer dizer agora? Claro que isso que eu quero dizer. Se estamos com pressa, por que voc no diz simplesmente agora?Ela se inclinou na minha direo e abriu a porta. Saia ela disse. O qu? Ningum fala comigo desse jeito. Seu antecessor, o jovem que trabalhou para mim antes de

    voc, nunca falou comigo desse jeito. Nunca! Saia! Desculpe eu disse. Saia. Desculpe eu disse. Voc quer trabalhar pra mim, Snicket? Voc quer que eu seja sua tutora? Sim respondi, olhando para o beco. Ento preste ateno. No sou sua amiga. No sou sua professora. No sou sua me ou uma

    guardi ou algum que v tomar conta de voc. Sou sua tutora, e voc meu aprendiz, palavra quesignifica pessoa que trabalha para mim e que faz absolutamente tudo que eu mando fazer.

    Estou contrito eu disse , palavra que significa Voc j pediu desculpas disse S. eodora Markson. No se repita. Isso no apenas

    repetitivo, redundante, e as pessoas j ouviram isso antes. No adequado. No inteligente. Eusou S. eodora Markson. Voc pode me chamar de eodora ou de Markson. Voc o meuaprendiz. Voc trabalha para mim, e voc vai fazer tudo que eu mandar. Vou te chamar de Snicket.No existe jeito fcil de treinar um aprendiz. Minhas ferramentas so o exemplo e a cobrana. Voumostrar a voc o que eu fao, e depois vou mandar voc fazer outras coisas. Entendeu?

    O que o S quer dizer?

  • Sempre fazendo as perguntas erradas ela retrucou, e ento ligou o motor. Voc deveachar que sabe tudo, Snicket. Voc deve estar muito orgulhoso por ter se formado e por terconseguido escapar pela janela de um banheiro em cinco minutos e meio. Mas voc no sabe denada.

    S. eodora Markson tirou uma de suas mos do volante e esticou o brao sobre o painel doesportivo. Ela usava luvas. Foi s ento que vi a xcara de ch, ainda fumegante. Na sua lateral estavaescrito cicuta.

    Voc nem deve ter notado que eu peguei o seu ch, Snicket ela disse, inclinando-se sobremim e arremessando o ch pela minha janela. O ch cou fumegando no cho e, por algunssegundos, vimos uma nuvem estranha se formar naquele beco. O cheiro era doce e inadequado,como o de uma flor perigosa.

    Ludano ela disse. um opiceo. Um medicamento. Um sonfero. Ela se virou e meolhou pela primeira vez. Pareceu-me simptica, eu diria, mas no a ela. Parecia ser uma mulher quetinha muito o que fazer, que era exatamente o que eu imaginava. Trs goles dessa coisa e voccaria incoerente, palavra que quer dizer que voc balbuciaria, no falaria coisa com coisa e cariaquase desacordado. Voc jamais teria embarcado naquele trem, Snicket. Seus pais o levariamcorrendo daquele lugar para outro lugar, lugar em que, posso garantir, voc no gostaria de estar.

    A nuvem desapareceu, mas eu continuei olhando em sua direo. Eu me senti completamentesozinho naquele beco. Se tivesse tomado meu ch, nunca estaria naquele esportivo, e se nunca tivesseestado naquele esportivo, eu nunca terminaria caindo dentro da rvore errada, ou entrando noporo errado, ou destruindo a biblioteca errada, ou encontrando todas aquelas respostas erradas paraas perguntas erradas que eu estava fazendo. S. eodora Markson tinha razo. Eu no tinhaningum para cuidar de mim. Eu estava com fome. Bati a porta do carro e olhei nos seus olhos.

    Aqueles no eram meus pais eu disse, e ento ns partimos.

  • 2Se voc pedir bibliotecria certa, e conseguir o mapa certo, poder encontrar o minsculovilarejo de Manchado-pelo-mar, que ca a meio dia de distncia viajando de carro. O vilarejo noca nada perto do mar, mas no nal de uma longa e acidentada estrada sem nome e que no podeser encontrada em nenhum mapa. Sei disso porque foi em Manchado-pelo-mar que passei pelo meuaprendizado, e no na cidade grande, onde supus que seria. Eu no sabia disso at que S. eodoraMarkson passou pela estao de trem sem sequer diminuir a velocidade.

    No vamos pegar o trem? perguntei. Outra pergunta errada ela disse. Avisei que houve uma mudana nos planos. O mapa

    no o territrio. Essa expresso signica que o mundo no corresponde imagem que temos emnossas cabeas.

    Pensei que trabalharamos na cidade. Foi exatamente o que eu disse, Snicket. Voc pensou que iramos trabalhar na cidade, mas ns

    no vamos.Meu estmago bateu no piso do carro, que tremeu todo quando zemos uma curva fechada

    prxima a um canteiro de obras. Uma equipe de operrios estava escavando para dar incio construo da Fonte da Finana Vitoriosa. Amanh, se fosse possvel para um aprendiz dar umaescapadinha na hora do almoo, eu deveria me encontrar com algum bem ali, na esperana demedir a profundidade do buraco que eles estavam cavando. Eu tinha conseguido uma nova trenajustamente para esse propsito, uma que alcanava grande distncia e voltava rapidinho para dentrodo suporte com apenas um clique. O suporte tinha o formato de um morcego, e a ta era vermelha,dando a impresso de que o morcego tinha uma lngua enorme. Eu me dei conta de que nunca maisvoltaria a v-la.

    Meu casaco eu disse ficou na estao de trem. Comprei algumas roupas pra voc disse eodora, inclinando a cabea protegida pelo

    capacete na direo do banco traseiro, onde avistei uma mala pequena, toda danicada. Mepassaram as suas medidas, elas devem servir. Se no servirem, voc vai ter de ou perder ou ganhar

  • peso ou altura. So roupas bem simples. A ideia no chamar ateno.Pensei que se eu usasse roupas muito grandes ou muito pequenas chamaria ateno das pessoas, e

    lembrei-me da pilha de livros que eu tinha escondido perto do morcego. Um deles era muitoimportante. Era sobre a histria do sistema de esgotos da cidade. Eu tinha planejado tomar notassobre o captulo cinco do livro enquanto o trem atravessasse a cidade. Quando desembarcasse naestao Bellamy, eu amassaria as notas at formar uma bolinha e a arremessaria para a minha aliadasem ser visto. Ela estaria perto da prateleira de revistas da Livraria Bellamy. Tudo j havia sidomapeado, mas agora o territrio era diferente. Ela deve ter lido revistas por horas antes de pegar seuprprio trem para o seu prprio aprendizado, mas, e depois, o que ela faria? O que eu faria? Franzi atesta olhando pela janela, enquanto me fazia essas e outras perguntas inteis.

    No gosto de sua reticncia disse Theodora, quebrando meu silncio amargo. Reticncia uma palavra que quer dizer que voc no est falando o suficiente. Diga alguma coisa, Snicket.

    J chegamos? perguntei, esperanoso, muito embora todos saibam que essa uma perguntaque no se deve fazer ao motorista de um carro. Ento tentei um para onde estamos indo?, maseodora no respondeu imediatamente. Ela mordia os lbios, como se tambm estivessedecepcionada com alguma coisa, ento tentei outra pergunta que achei que ela pudesse gostar mais. O que o S quer dizer?

    S Deus sabe ela respondeu, e era verdade. Em pouco tempo havamos deixado para trs avizinhana, o bairro e a cidade, e agora seguamos por uma estrada cheia de curvas, que me fezagradecer por ter comido pouco. O ar tinha um cheiro to estranho que tivemos de fechar as janelasdo esportivo, e parecia chover. Fiquei olhando pela janela, vendo o dia entardecer. Havia poucoscarros na estrada, mas todos estavam em melhor estado que o de eodora. Quase ca no sono duasvezes, pensando nos lugares e pessoas daquela cidade que eram muito importantes para mim, e nadistncia entre ns que ia aumentando cada vez mais, at car to grande que mesmo o morcegomais linguarudo do mundo no poderia encostar de novo a lngua na vida que eu estava deixandopara trs.

    Um novo barulho me despertou de meus pensamentos. A estrada tinha se tornado irregular equebradia. eodora dirigia por uma colina to inclinada que eu nem conseguia ver o seu m pelasjanelas sujas do esportivo.

    Estamos andando sobre conchas disse minha tutora. Esta ltima parte da estrada todade conchas e pedras.

    Quem faria uma estrada assim? Pergunta errada, Snicket ela respondeu. Ningum fez nada, isso no exatamente uma

    estrada. Todo este vale cava embaixo da gua. Ele foi drenado h alguns anos. Entende agora porque seria impossvel pegarmos o trem?

    Imediatamente soou um apito. Decidi no falar nada. eodora olhou pra mim do mesmo jeito,

  • e depois voltou-se para a janela. No muito distante de ns corria um apressado e delgado trem,equilibrando-se bem no alto do vale acidentado por onde seguamos. Os trilhos passavam sobre umaponte enorme e muito alta, que fazia curva para fora da costa e chegava a uma ilha, que ento nopassava de uma montanha de pedras erguendo-se do vale ressecado. eodora dirigiu o esportivorumo ilha e, medida que nos aproximvamos, comecei a ver um conjunto de prdios prdiosde tijolos desbotados, cercados por um muro de tijolos desbotados. Uma escola, talvez, ou apropriedade de alguma famlia burra. Os prdios tinham sido elegantes algum dia, mas agora amaioria das janelas estava quebrada, e no havia sinal de vida. Fiquei surpreso ao ouvir, quando oesportivo passou debaixo da ponte, o som grave e profundo de um sino, vindo de uma torre alta, detijolos, que parecia abandonada e triste sobre uma pilha de pedras.

    Theodora limpou a garganta. Deve ter duas mscaras atrs de voc. Mscaras? perguntei. No repita o que eu disse, Snicket. Voc um aprendiz, no um papagaio. Tem duas mscaras

    no banco traseiro. Ns precisamos delas.Virei-me e encontrei os itens em questo, mas precisei dar uma boa olhada neles at criar coragem

    para peg-los. As duas mscaras, uma para adulto e outra para criana, eram feitas de um metalprateado brilhante, com um emaranhado de cabos de borracha e ltros na parte de trs. Na frentehavia pequenas aberturas para os olhos e uma pequena dobra para o nariz. No havia nada no lugarda boca, de modo que as mscaras me encaravam de forma silenciosa e assustadora, como sesoubessem que toda essa jornada era uma m ideia.

    Concordo totalmente eu disse a elas.Theodora franziu a testa. Aquele sino signica que devemos vestir essas mscaras. A palavra vestir signica que

    devemos pr em nossas cabeas. Se no, a presso nessa profundidade vai dicultar a nossarespirao.

    Presso? Presso da gua, Snicket. Ela est em toda parte ao nosso redor. Com ou sem mscara, voc

    precisa usar a sua cabea.Minha cabea me disse que no entendeu como poderia haver presso da gua ao nosso redor.

    No havia nenhuma gua ali. Eu me perguntava pra onde a gua teria ido quando drenaram aquelaparte do mar, e devia mesmo ter perguntado. Mas achei que era a pergunta errada e perguntei algodiferente no lugar:

    Por que fizeram isso? Por que drenaram a gua do mar?S. Theodora Markson pegou uma das mscaras das minhas mos e a colocou em sua cabea, sobre

    o capacete.

  • Para salvar o vilarejo ela disse, com a voz abafada. Ponha sua mscara, Snicket.Fiz o que eodora mandou. A mscara era escura por dentro e tinha o cheiro levemente

    parecido com o de uma caverna ou de um armrio que no foi aberto por um tempo. Alguns tubosse amontoavam na frente da minha boca, como minhocas diante de um peixe. Eu pisquei paraTheodora atravs da abertura, e ela piscou de volta.

    A mscara est funcionando? ela perguntou. Como que eu sei se ela est? Se voc consegue respirar, ela est funcionando.Eu no disse a ela que j estava respirando antes. Algo mais interessante havia chamado minha

    ateno. Pela janela do esportivo, vi uma leira de barris, grandes, velhos, redondos e destampados,posicionados prximos a umas mquinas enormes e muito estranhas. Elas lembravam grandesagulhas hipodrmicas, como se um mdico estivesse planejando dar vrias injees em um gigante.Havia pessoas, aqui e ali era impossvel dizer se eram homens ou mulheres, pois usavam mscaras, vericando as agulhas para se assegurarem de que estavam funcionando corretamente. Eestavam. Com o movimento de dobradias e o giro de engrenagens, as agulhas mergulhavam fundoem buracos feitos no cho coberto de conchas e depois voltavam cheias de um lquido negro. Asagulhas depositavam o lquido dentro dos barris, num jorro negro silencioso, e voltavam amergulhar nos buracos. Elas faziam isso sem parar, e eu observava tudo atravs das aberturas deminha mscara.

    Petrleo arrisquei. Tinta eodora me corrigiu. O nome do vilarejo Manchado-pelo-mar. Claro que no

    mais pelo mar, j que ele foi drenado. Mas o vilarejo ainda produz uma tinta que j foi famosa porfazer as manchas mais escuras e permanentes de que se tem notcia.

    E a tinta est naqueles buracos? Aqueles buracos so cavernas longas e estreitas disse eodora , como poos. E elas esto

    cheias de polvos. deles que vem a tinta.Pensei numa amiga que tambm havia acabado de se formar, uma garota que sabia tudo sobre a

    vida marinha. Pensei que os polvos s produzissem tinta quando esto assustados. Aquelas mquinas devem ser bem assustadoras para um polvo disse eodora, conduzindo

    o esportivo por um caminho estreito e inclinado, que subia em direo ao alto de uma colinangreme e escarpada. L de cima pude ver uma luz fraquinha e pulsante em meio ao acinzentado datarde. Levei um minuto para perceber que era um farol, construdo no penhasco para que se pudesseobservar o que um dia foram ondas e guas e agora era apenas uma paisagem assustadora. Oesportivo seguia escalando a colina quando olhei pela janela de eodora e notei que, do ladooposto aos poos de tinta, a viso era ainda mais estranha.

  • a Floresta Aglomerada disse eodora, antes que eu pudesse perguntar. Quandodrenaram o mar, todos acharam que as algas iam denhar e morrer. Mas sei que, por alguma razomisteriosa, as algas aprenderam a crescer na terra seca, e agora h uma oresta enorme delas, que seestende por quilmetros e quilmetros. Nunca entre ali, Snicket. um lugar selvagem e sem leis,imprprio tanto para homens quanto para feras.

    Ela no precisava ter me dito para no entrar na Floresta Aglomerada. J era assustador o bastanteapenas olhar pra ela. No parecia bem uma oresta, mas uma massa innita de arbustos, com asfolhas brilhosas das algas retorcendo-se por todos os lados, como se as plantas ainda estivessemdebaixo da gua. Mesmo com as janelas fechadas, eu sentia o cheiro da oresta, um aroma salgadode peixe e terra, e ouvia o farfalhar de milhares de feixes de algas que tinham, de alguma forma,sobrevivido drenagem do mar.

    O sino tocou mais uma vez quando o esportivo nalmente chegou ao topo da colina, indicandoque o perigo havia passado. Tiramos nossas mscaras, e eodora guiou at uma estradapavimentada de verdade, que passava pelo farol piscante e descia por um caminho cheio de rvores.Passamos por um pequeno chal branco e acabamos parando na entrada de uma manso to grandeque parecia que diversas manses tinham se amontoado no mesmo lugar. Algumas parteslembravam um castelo, com torres compridas se estendendo para o cu. Outras, com uma lonagrossa e cinzenta esticada sobre um jardim ornamentado com fontes e esttuas, pareciam mais umacampamento. E havia partes que lembravam mais um museu, com uma imponente porta deentrada e enormes leiras de janelas. A vista daquelas janelas deve ter sido bonita um dia, as ondasquebrando embaixo dos penhascos. Mas agora no era mais. Olhei para baixo e vi a FlorestaAglomerada tremulando lentamente, como roupas estranhas penduradas num varal. Ao longe, aviso das agulhas esguichando tinta dentro dos barris.

    eodora parou o carro, saiu, alongou-se e tirou as luvas e o capacete de couro. Finalmente pudedar uma boa olhada naquela cabeleira densa e comprida, que era uma viso quase to estranhaquanto tudo que eu tinha visto no caminho. Eu precisava cortar o cabelo, mas S. eodoraMarkson fazia com que eu parecesse careca. Seu cabelo se expandia em todas as direes em longasleiras cacheadas, como uma cachoeira de l emaranhada. Era muito difcil ouvi-la com tantos osna minha frente.

    Oua, Snicket disse minha tutora. Voc est em perodo de experincia. Sua tendnciade fazer muitas perguntas e se portar de modo rude est me deixando relutante em contrat-lo.Tendncia uma palavra que, neste contexto, quer dizer hbito.

    Eu sei o que tendncia quer dizer respondi. exatamente disso que estou falando disse eodora, de forma severa, passando a mo nos

    seus cabelos na tentativa de dom-los. Mas era impossvel dom-los. Eram como sanguessugas. Nosso primeiro cliente mora aqui, e esta a primeira vez que vamos encontr-lo. Voc deve falar o

  • mnimo possvel e me deixar fazer todo o servio. Sou excelente no meu trabalho, e voc poderaprender muito desde que fique quieto e lembre-se de que apenas um mero aprendiz. Entendeu?

    Entendi. Logo depois da formatura recebi uma lista de pessoas das quais eu poderia ser aprendiz,organizada de acordo com o sucesso delas em suas empreitadas. Havia cinquenta e dois tutores nalista. S. eodora Markson era a nmero cinquenta e dois. Ela estava errada. Ela no era excelenteno seu trabalho, e era por isso que eu queria ser seu aprendiz. O mapa no o territrio. Eu tinhaimaginado trabalhar como aprendiz na cidade grande, onde eu poderia executar alguma tarefaimportante, com algum em quem eu poderia conar inteiramente. Mas o mundo no batia com aimagem na minha cabea, ento, em vez disso, eu estava com essa pessoa esquisita e despenteada,diante de um mar sem gua e uma floresta sem rvores.

    Acompanhei eodora por uma longa escadaria de tijolos at a porta da frente, onde ela tocou acampainha seis vezes seguidas. Ali, parados na porta errada do lugar errado, aquilo parecia a coisaerrada a se fazer. Mas zemos mesmo assim. Saber que uma coisa est errada e mesmo assim faz-la algo que acontece com bastante frequncia na vida, e duvido que algum dia eu saiba o porqu.

  • 3Depois do sexto toque da campainha, pude ouvir passos se aproximando da porta, mas meuspensamentos tinham me levado a outro lugar. Em vez de estar diante da porta de uma manso numlugar estranho e longnquo, eu me imaginava de volta cidade, ao lado de um buraco, com a minhatrena e a minha el escudeira. Eu me imaginava em posse de todas as coisas que havia colocado naminha mala. Fingia que no precisava de uma mscara estranha e brilhosa. E, o mais importante, naviso que fazia de mim mesmo eu no estava com tanta fome. Eu tinha planejado comer algumacoisa no trem, mas em vez disso viajara uma grande distncia no esportivo de eodora sem comersequer um msero biscoito. Embora em minha mente eu estivesse bastante satisfeito aps umaexcelente refeio, em Manchado-pelo-mar meu estmago roncava de forma bastante horrorosa.

    Por causa disso, no prestei muita ateno no mordomo que nos deixou entrar, nem no corredorpelo qual ele nos levou antes de abrir uma porta dupla e nos pedir para esperar na biblioteca. Eudevia estar mais atento. Um aprendiz deve prestar muita ateno aos detalhes de um novo lugar,especialmente se os mveis parecem no combinar com a sala, ou se a biblioteca possui apenas meiadzia de livros. Mas sequer olhei para trs quando o mordomo fechou a porta. Em vez disso,percorri com os olhos a sala grande e mal iluminada at encontrar uma mesinha clara, onde haviauma bandeja contendo um prato com uma dzia de biscoitos. Fui at l para ver mais de perto.Eram biscoitos de amndoas, mas se fossem de espinafre e sola de sapato eu no me importaria.Comi onze, um atrs do outro. falta de educao pegar o ltimo.

    Theodora estava sentada em um sof pequeno e me encarava, aborrecida. Isso no foi adequado, Snicket ela disse, sacudindo a cabea. No foi mesmo. Guardei um pra voc eu disse. Sente aqui do meu lado e pare de falar disse eodora, batendo no sof com uma das

    luvas. O mordomo nos disse para esperar, e isso que vamos fazer.E foi isso que zemos. Esperamos tanto que fui procurar alguma coisa para ler. Os poucos livros

    que estavam nas estantes pareciam ser do tipo que se larga na metade e nunca mais se volta a ler. Licinco captulos de um livro sobre um garoto chamado Johnny. Ele vivia nos Estados Unidos quando

  • os Estados Unidos ainda pertenciam Inglaterra. Um dia ele queimou a mo e no pde maistrabalhar fundindo prata, que parecia ser um ramo muito desgraado mesmo, ento acabou seinteressando pela poltica local. Lamentei pelo cara, mas tinha outras coisas na cabea e coloquei olivro de volta na estante, bem no momento em que a porta dupla se abriu e uma velhinha entrou nabiblioteca mancando, apoiada numa bengala negra.

    Obrigada por esperar ela disse, numa voz ainda mais chiada do que eu esperava. Sou asenhora Murphy Sallis.

    S. eodora Markson disse S. eodora Markson, levantando-se rapidamente e mepuxando junto. Eu havia sido informada que o meu cliente era um homem.

    Eu no sou um homem disse a mulher, fechando o rosto. Estou vendo disse Theodora. um prazer conhec-la eu disse. eodora me censurou com o olhar, mas a sra. Murphy

    Sallis abriu um breve sorriso e me estendeu sua mo, suave e mole como uma alface velha. Que menino encantador ela disse, e depois voltou a fechar a cara para eodora. O que

    o S quer dizer? Saiba que este o meu aprendiz disse Theodora, entregando um envelope velhinha.A sra. Sallis o abriu e se acomodou na maior cadeira para ler a carta que havia dentro, sem nos

    oferecer mais biscoitos. Mesmo na sala mal iluminada eu conseguia ver uma insgnia no papel, igual que havia na minha carta de apresentao. Mas no dei muita bola. A velhinha parecia tointeressada na carta quanto eu estava na histria de Johnny, o ferreiro.

    Isso o suciente ela disse, colocando a carta na bandeja e dando uma rpida olhada noprato coberto de migalhas. Ento, depois de soltar um profundo suspiro, como se estivesse sepreparando para uma performance importante, a sra. Sallis olhou para Theodora e comeou a falar.

    Preciso desesperadamente da sua ajuda disse. Um objeto inestimvel foi roubado deminha casa, e preciso reav-lo.

    Antes disse Theodora , precisamos saber que objeto este. Sei disso ela disse, irritada. Eu j ia dizer. uma estatueta pequena, quase do tamanho

    de uma garrafa de leite. feita de uma espcie extremamente rara de madeira, muito negra ereluzente. Essa estatueta est na minha famlia h vrias geraes e vale uma grande quantia emdinheiro.

    Uma grande quantia em dinheiro repetiu Theodora, pensativa. Quando ela foi roubada? Isso eu no sei disse a sra. Sallis. Faz algum tempo que no venho a esta sala, e

    normalmente a estatueta ficava aqui, na biblioteca, naquela prateleira.Olhamos para a prateleira. Realmente no havia nada ali. Dois dias atrs entrei aqui para procurar alguma coisa e notei que ela no estava l. Ando

    muito chateada desde ento.

  • Hum disse eodora, caminhando rapidamente at as janelas, que estavam cobertas porcortinas pesadas. Ela as afastou e tentou abrir as janelas, primeiro uma e depois a outra. Elas estotrancadas.

    Elas esto sempre trancadas respondeu a sra. Sallis. Hum eodora foi lentamente at a prateleira e inclinou a cabea para poder v-la mais de

    perto. Mais uma vez constatou que no havia nada l. Ela deu dois passos longos e lentos para trs eento olhou para o teto. O que tem em cima desta sala?

    Uma pequena sala de estar, acredito disse a velhinha. O ladro pode ter entrado por essa sala disse eodora. Ele ou ela teria de fazer um

    buraco no teto, claro, mas depois a gravidade faria o resto, deixando-o bem na frente da prateleira.Todos na biblioteca olharam para o teto, que era vermelho e inexpressivo como a superfcie de

    uma ma. Cola disse Theodora. Cola e gesso podem ter encoberto tudo. Eu sei quem a roubou disse a velhinha, pondo a mo na testa.Theodora tossiu: Bom, isso no quer dizer necessariamente que eles no teriam entrado pelo teto. Quem a roubou? perguntei.A velhinha levantou-se e foi mancando at uma das janelas. Ela apontou para o farol pelo qual

    passamos no caminho. A famlia Mallahan ela disse. Eles tm sido inimigos da minha famlia h muito tempo.

    Sempre ameaaram roubar a estatueta, e agora, finalmente, conseguiram. Por que a senhora no chamou a polcia? perguntei.A sra. Murphy Sallis pareceu surpresa e desorientada por alguns segundos at que eodora

    interferiu. Porque ela nos chamou disse. Pode car tranquila, senhora Sallis. Ns vamos encontrar

    sua estatueta e entregar os ladres nas mos da Justia. S quero que a estatueta volte para o seu legtimo dono disse rapidamente a velhinha.

    No quero que ningum saiba que vocs esto trabalhando para mim, e no quero que faam nadacontra os Mallahan. Eles so boa gente.

    No comum ouvir algum se referir a antigos inimigos de famlia como boa gente, masTheodora balanou a cabea e disse:

    Entendi. Voc entendeu mesmo? a velhinha quis saber. Promete trazer a estatueta de volta ao seu

    legtimo dono e promete ser discreta com relao minha identidade? Sim, sim, claro disse minha tutora, fazendo um gesto rpido com a mo, como se um

    inseto tivesse passado perto do seu rosto.

  • E quanto a voc, jovenzinho? Promete? disse a sra. Sallis olhando para mim.Olhei pra ela tambm. Pra mim, uma promessa no um inseto voando perto do meu rosto.

    uma promessa. Sim eu disse. Prometo trazer a estatueta de volta ao seu legtimo dono, e prometo ser

    discreto com relao identidade de quem nos contratou. A senhora Sallis me contratou disse Theodora, muito sria. Voc apenas meu aprendiz.

    Bem, senhora Sallis, acho que terminamos a nossa conversa. Talvez a senhora Sallis pudesse nos dizer com o que a estatueta se parece eu disse. Perdo disse eodora sra. Sallis. Meu aprendiz aparentemente no estava ouvindo.

    Mas eu estava. do tamanho de uma garrafa de leite e feita de uma madeira negra e reluzente. Mas o que era a estatueta?A sra. Murphy Sallis aproximou-se mancando e nos lanou um olhar longo e sombrio. A Fera Ressoante ela disse. uma criatura mtica que lembra um pouco um cavalo-

    marinho. Sua cabea assim.Ela tirou uma das mos da bengala, revelando a cabea de uma criatura esculpida em sua

    extremidade. Lembrava um cavalo-marinho tanto quanto um gavio lembra uma galinha. Os olhoseram pequenos e ferozes, e os lbios se abriam num rosnado que revelava leiras e mais leiras dedentes minsculos e aados. Mesmo na ponta de uma bengala, parecia o tipo da coisa que ningumia gostar de ver. Mas muita gente coloca coisas esquisitas em suas prateleiras.

    Obrigada disse eodora, num tom jovial. Daremos notcias, senhora Sallis. Estamosindo embora.

    Obrigada disse a velhinha, soltando mais um longo suspiro, enquanto caminhvamos pelocorredor at deixar a manso. O mordomo estava no gramado, de costas para ns, com uma tigelacheia de sementes que ele jogava para alguns pssaros barulhentos. Eles assobiavam para ele e eleassobiava de volta, imitando perfeitamente aquele canto. Teria sido bom ficar observando a cena pormais alguns minutos, e era o que eu queria ter feito. Mas, em vez disso, eodora ligou o motor doesportivo, colocou seu capacete e, antes mesmo que eu pudesse fechar a porta, j estvamos emmovimento.

    Esse caso vai ser fcil! ela comemorou alegremente. No toda hora que um cliente nosd o nome do criminoso. Voc est me dando sorte, Snicket.

    Se a senhora Sallis sabia quem era o ladro perguntei , por que ela no chamou a polcia? Isso no importa disse eodora. O que precisamos descobrir como os Mallahan

    entraram pelo teto. Ns no sabemos se eles entraram pelo teto eu disse. As janelas estavam trancadas disse eodora. No havia outro jeito de entrar na

    biblioteca.

  • Ns entramos por uma porta dupla eu disse, mas eodora sacudiu a cabea e seguiudirigindo. Passamos novamente pelo chal branco e acabamos parando na frente do farol, queprecisava de pintura e parecia estar meio inclinado.

    Escuta, Snicket ela disse, tirando novamente o capacete. No podemos simplesmentebater na porta de uma casa de ladres e dizer que estamos procurando as mercadorias roubadas.Precisamos de uma artimanha, palavra que signica pequena armao. E no venha me dizer quevoc j sabia o que significava. Na verdade, no diga nada. Voc me ouviu, Snicket?

    Eu a ouvi e, portanto, no disse nada. Ela marchou at a porta do farol e tocou a campainha seisvezes.

    Por que voc sempre Eu falei pra no dizer nada sussurrou eodora, bem quando a porta se abriu. Era um

    homem com roupo de banho e chinelos. Ele deu um enorme bocejo. Parecia pretender carvestido daquele jeito por um bom tempo.

    Sim? ele disse, quando terminou de bocejar. Senhor Mallahan? perguntou Theodora. Sou eu. O senhor no me conhece ela disse, forando um tom amigvel. Eu e meu marido

    estamos aqui em lua de mel, e somos loucos por faris. Ser que poderamos entrar e conversar poralguns minutos?

    Mallahan coou a cabea. Pensei em esconder as mos nas costas porque no estava usando umaaliana, mas me ocorreu que havia muitos outros motivos para algum no acreditar que um garotode quase treze anos se casara com uma mulher da idade de eodora, ento acabei deixando as mosonde estavam.

    Acho que sim disse o homem, nos convidando a entrar numa pequena sala com umagrande escada em caracol. No havia dvidas de que a escada levava ao topo do farol, mas parachegar l seria preciso passar por cima da garota sentada nos degraus com uma mquina de escrever.Ela parecia ter a minha idade, muito embora a mquina de escrever parecesse bem mais velha. Eladatilografou algumas linhas e parou para olhar e sorrir pra mim. Seu sorriso era bonito, bem comoo chapu que ela usava, marrom e arredondado como uma letra a minscula. Ela cou me olhandopor trs da mquina, e eu percebi que seus olhos estavam cheios de perguntas. Eu estava tentandoachar o caf disse Mallahan, gesticulando na direo de uma porta aberta atravs da qual eu podiaver uma pequena cozinha repleta de pratos. Voc quer?

    No disse Theodora , mas podemos conversar a enquanto as crianas brincam.Mallahan deu de ombros e entrou na cozinha, enquanto eodora fez alguns gestos como se

    estivesse me enxotando. sempre terrvel quando nos dizem para brincar com algum que a genteno conhece, mas subi as escadas at ficar de frente para a garota com a mquina de escrever.

  • Sou Lemony Snicket eu disse.Ela parou de datilografar, tirou um cartozinho de dentro da faixa do seu chapu e me deu para

    ler. moxie mallahan. as novas. As novas repeti. Quais so as novas, Moxie? o que estou tentando descobrir ela respondeu, e datilografou mais algumas palavras.

    Quem aquela mulher que tocou a campainha? Como ela poderia ser casada com voc? De ondevocs vieram? Por que vocs so loucos por faris? Por que ela o enxotou? E Snicket se escreve comose fala?

    Sim eu disse, respondendo primeiro ltima pergunta. Voc reprter? Eu sou a ltima reprter que sobrou em Manchado-pelo-mar Moxie respondeu. Est

    no meu sangue. Meu pai e minha me eram reprteres quando este lugar no era apenas um farol,mas tambm um jornal. O Farol Manchado. Talvez voc j tenha ouvido falar.

    Nunca ouvi falar eu disse , mas no sou daqui. Bom, o jornal faliu disse Moxie , mas ainda tento descobrir tudo que acontece nesta

    cidade. E a? E a o qu? E a, o que est acontecendo, Snicket? Me conte o que est rolando.Ela colocou os dedos nas teclas, preparada para escrever o que eu dissesse. Seus dedos pareciam

    prontos para o servio. Voc sempre sabe tudo que acontece nesta cidade? perguntei. Mas claro ela disse. Mesmo, Moxie? Mesmo, Snicket. Me conte o que est rolando e talvez eu possa ajud-lo.Parei de olhar para a mquina e me concentrei em seus olhos. A cor era muito interessante

    tambm, um cinza escuro, como se j tivessem sido negros, mas algum os tivesse lavado ou talvez afeito chorar por muito tempo.

    Posso contar sem voc anotar? perguntei. Em off, voc quer dizer? Isso, em off.Ela enou a mo embaixo da mquina, apertou alguma coisa e o troo todo se dobrou at virar

    um quadrado com uma ala, parecido com uma maleta preta de metal. Foi um truque muito legal.O que ser isso?

    Estou tentando resolver um mistrio que diz respeito Fera Ressonante eu disse, olhando

  • para a escada, a fim de me assegurar que mais ningum estava ouvindo. A criatura mtica? No, uma estatueta. Aquela quinquilharia? ela disse, entre risos. Vem comigo.Ela levantou e subiu correndo a escada em espiral. Os sapatos faziam o tipo de barulho que

    deixaria sua me com dor de cabea, se voc tivesse uma me desse tipo. Eu a segui por alguns lancesat uma grande sala com o p-direito alto e pilhas de velharias quase to altas quanto. Havia algumasmquinas grandes e empoeiradas, com manivelas cobertas de teias de aranha e botes que no eramtocados h anos. Havia mesas com cadeiras empilhadas sobre elas, e pilhas de papis enadas debaixode escrivaninhas. Dava pra dizer que, um dia, aquele foi um lugar muito agitado, mas, agora, Moxiee eu ramos as nicas pessoas ali, e toda aquela agitao no passava de um fantasma.

    Esta a redao ela disse. O Farol Manchado cava aqui, beira-mar, produzindonotcias dia e noite; este era o centro de toda a operao. A gente revelava fotograas no poro, e osreprteres escreviam suas matrias na sala da lanterna. Imprimamos o jornal com a tinta produzidano mesmo dia, e pendurvamos as folhas para secar na longa boa que sai pela janela.

    Boa? eu disse, e ela correu para abrir a janela. Do lado de fora, pendendo sobre as rvores,dava pra ver um cabo grosso e comprido que descia pela colina at as janelas cintilantes da mansoque havamos acabado de visitar.

    Parece que vai direto at a casa da senhora Sallis eu disse. Os Mallahan e os Sallis so amigos h muitos anos disse Moxie. Ns tirvamos gua do

    poo que est na propriedade deles, e nossos reprteres de cincia e jardinagem faziam pesquisas noterreno deles. Nosso editor alugava o chal de hspedes deles, e ns costumvamos acender as luzesdo farol para iluminar as partidas deles de badminton meia-noite. Mas claro que tudo isso acabou.

    Por qu? No h tinta suciente disse Moxie. A produo est reduzida aos ltimos grupos de

    polvos. Este vilarejo inteiro est morrendo, Snicket. Temos uma biblioteca, uma delegacia de polciae algum comrcio tmido ainda funcionando, porm mais da metade dos prdios est totalmenteabandonada. O Farol Manchado teve de suspender sua publicao. A maioria dos que trabalhavamna extrao de tinta foi demitida. O trem passa aqui cerca de uma vez por ms. Em breve,Manchado-pelo-mar ter desaparecido para sempre. Minha me recebeu uma carta da cidade epartiu para trabalhar em outro jornal.

    Quando voc vai se juntar a ela? perguntei.Moxie cou por um momento olhando pela janela em silncio, me dando uma ideia de quem

    poderia t-la feito chorar. Assim que eu puder ela respondeu, suspirando, e me dei conta deque aquela tinha sido a coisa errada a se dizer.

    A Fera Ressonante eu a lembrei.

  • Ah, claro ela disse, e foi at uma mesa coberta por um lenol. A Fera Ressonante erauma espcie de mascote do jornal. Seu corpo era o F de Farol. Reza a lenda que, centenas de anosatrs, lady Mallahan havia assassinado a Fera Ressonante em uma de suas jornadas. Ento, minhafamlia sempre teve uma bela coleo de objetos relacionados Fera, muito embora ningum dessemuita bola pra isso, exceto

    Snicket! A voz de Theodora veio l debaixo. Hora de ir embora! S um minuto! gritei de volta. Desa imediatamente, Snicket! respondeu eodora, mas eu no desci. Fiquei enquanto

    Moxie puxava o lenol, revelando uma mesa repleta de objetos que ningum queria. No importavaquantas vezes a visse, a cara de cavalo-marinho da Fera Ressonante continuava horrenda. Havia trsFeras Ressonantes de pelcia, que algum poderia dar a um beb se quisesse assust-lo, e um baralhocom Feras Ressonantes impressas na parte de trs das cartas. Havia canecas e tigelas de cereais daFera Ressonante cheias de guardanapos da Fera Ressonante sobre jogos americanos da FeraRessonante. Mas atrs desse equipamento para um caf da manh feroz, ao lado dos cinzeiros daFera Ressonante e dos castiais da Fera Ressonante, havia um objeto negro muito reluzente. Moxie ohavia chamado de quinquilharia, e a sra. Murphy Sallis tinha dito que era um objeto inestimvel.Tinha mais ou menos o tamanho de uma garrafa de leite e valeria uma grande quantia em dinheiro.Era a Fera Ressonante, a estatueta que estvamos procurando, to empoeirada e esquecida quanto oresto dos objetos naquela sala.

  • Snicket! eodora chamou mais uma vez, mas eu no respondi. Em vez disso, falei com aestatueta.

    Ol eu disse. O que voc faz aqui?Moxie me olhou e sorriu. Acho que o seu mistrio est resolvido, Snicket ela disse, mas essa, tambm, era a coisa

    errada a se dizer.

  • 4 Enquanto voc perdia seu tempo com aquela garota de p chato disse Theodora, dandoa partida no esportivo e vestindo seu capacete , eu estava resolvendo o mistrio. Tenho motivospara acreditar que a Fera Ressonante est precisamente naquele farol.

    Est mesmo eu disse. Ento estamos de acordo disse eodora. Tive uma boa conversa com aquele senhor

    Mallahan. Ele me disse que costumava trabalhar no ramo dos jornais, mas ultimamente anda numamar de m sorte! Aha!

    Minha tutora me olhou como se quisesse que eu respondesse com outro aha!, mas tudo que eupude dizer foi um ah tmido. Mais tarde eu mandaria o ha que cou faltando. Passamos pelamanso no caminho at o centro do vilarejo. Moxie tinha razo. Era um lugar abandonado.Manchado-pelo-mar parecia ter sido uma cidade normal algum dia, com lojas cheias de coisas,restaurantes cheios de comida e pessoas procurando uma coisa ou outra. Mas agora a cidade todahavia se tornado cinza. Muitos prdios tinham janelas quebradas ou vedadas com tbuas, as caladashaviam sido deixadas de lado e agora tinham enormes rachaduras, com garrafas e latas vazias rolandoao sabor de uma brisa montona. Quarteires inteiros estavam completamente vazios, sem nenhumcarro alm do nosso, e ningum caminhando pelas ruas. Um pouco mais adiante havia um prdiono formato de uma caneta, que se erguia sobre a cidade, como se Manchado-pelo-mar estivesseprestes a ser riscada do mapa. Eu no gostava daquela situao. Parecia que qualquer um poderia semudar pra l e fazer o que bem entendesse sem ningum para impedir. A Floresta Aglomerada quaseparecia mais amigvel.

    Sem trabalho, sem mulher, um homem nessa situao pode car desesperado eodoradizia. Desesperado o suciente para roubar uma estatueta valiosa de um de seus inimigos.Quando perguntei a ele se havia alguma coisa na casa que valia muito dinheiro, ele me olhou de umjeito estranho e disse alguma coisa sobre sua nica lha. Acho que ele deve ter escondido em algumlugar bem longe dali.

    Est l em cima eu disse , numa mesa coberta por um lenol.

  • O qu? eodora parou no sinal vermelho. Eu no tinha visto outros carros na rua. S ossemforos estavam ali, dizendo a ningum alm de ns quando parar e quando seguir. Como foique voc a encontrou?

    A lha dele me mostrou eu disse. Os ps dela no so chatos, por sinal. Seus sapatos que so pesados.

    No seja bobo disse Theodora. Como voc fez para que ela mostrasse a esttua a voc? Eu pedi respondi. Ela deve ter sacado o que estamos fazendo disse eodora, franzindo a testa. melhor

    agirmos rpido se quisermos roub-la de volta. E como que a gente sabe que foi mesmo roubada? perguntei. No seja cabea-oca, Snicket. A senhora Sallis nos disse que foi roubada de sua prateleira. Moxie disse que a estatueta pertencia famlia dela. A fera era o mascote do Farol Manchado. Aquele farol no est manchado, s precisa de uma demo de tinta. Precisamos investigar mais eu disse. No, no precisamos disse eodora, com rmeza. No vamos chamar uma distinta

    senhora de mentirosa e acreditar na palavra de uma garotinha. Especialmente uma com um nometo ridculo.

    Isso me lembra... eu disse. O que o S quer dizer? Engraadinho ela disse, sacudindo a cabea enquanto estacionava o carro. Paramos na

    frente de um prdio com o telhado todo arqueado e a varanda cheia de plantas mortas em vasosquebrados. Em uma placa de madeira, que deve ter sido deslumbrante quando foi pintada, no sculopassado, lia-se braos perdidos.

    Esse vai ser o nosso quartel-general disse eodora, tirando o capacete e sacudindo acabeleira. Este lugar ser nosso alojamento, nosso centro nervoso, nosso escritrio e nosso postode comando. aqui que vamos ficar. Leve as malas, Snicket.

    Ela subiu as escadas saltitando. Sa do esportivo e dei uma boa olhada naquela rua triste. Algunsmetros abaixo, tinha um lugar aberto, um restaurante que parecia solitrio chamado Famintos. Parao outro lado, a rua terminava num beco, onde havia um grande edifcio com pilares cinzentosesculpidos nos dois lados da entrada. No havia ningum por perto, e o nico outro carro que vi foium txi amarelo meio amassado, estacionado na frente do restaurante. Eu estava faminto de novo,ou talvez ainda estivesse faminto. Alguma coisa dentro de mim com certeza estava vazia, mas quantomais eu cava ali parado, menos certeza tinha de que era o meu estmago. Ento, eu me inclinei etirei as duas malas do banco traseiro: a que eodora disse que era minha e a outra, maior, quedevia ser a dela. Foi extremamente difcil subir a escada com elas, e quando entrei no lobby doBraos Perdidos, eu as coloquei no cho por um minuto, para recuperar o flego.

    O salo tinha um aroma complexo. Era como se muitas pessoas estivessem ali, mas, ao mesmo

  • tempo, havia muito pouca coisa no lugar. Tinha um pequeno sof ao lado de uma mesa aindamenor, e daquele ngulo era difcil dizer qual dos dois era o mais encardido. Provavelmenteempatavam. Sobre a mesa havia uma pequena tigela de madeira cheia de amendoins que ou eramsalgados ou empoeirados. Uma pequena cabine telefnica num canto, dentro da qual um homemalto sem chapu estava falando ao telefone. Por um instante, olhei tristemente para ela, torcendopara que o homem desligasse e me desse a chance de us-la. No outro canto cava o balco darecepo, onde estava eodora falando com um sujeito magrinho que esfregava as mos. E bem nomeio do salo havia uma grande esttua de gesso de uma mulher sem roupas e sem braos.

    Acho que voc est pior do que eu eu disse a ela. Chega de enrolao, Snicket disse eodora. Ento me arrastei com as malas at a

    recepo. O magrinho deu duas chaves Theodora e ela me entregou uma delas. Bem-vindo ao Braos Perdidos disse o homem, numa voz to ninha quanto ele. Seus

    trejeitos me lembraram de uma palavra que eu conhecia mas havia esquecido. Estava na ponta dalngua, assim como uma ltima migalha de biscoito. Sou Prspero Perdido, dono e gerente desteestabelecimento. Podem me chamar de Prspero, e podem me chamar sempre que tiverem umproblema. O telefone fica bem ali.

    Obrigado eu disse, imaginando que provavelmente viria direto recepo em vez de caresperando pelo telefone.

    Conforme vocs solicitaram ele continuou , reservei o quarto mais barato, a SuteExtremo Oriente, que ca no segundo andar. Acredito que o elevador no esteja funcionando hoje,ento infelizmente vocs tero de subir pelas escadas. Posso perguntar quanto tempo vocs planejamficar?

    Por enquanto disse minha tutora, e partiu rapidamente em direo escadaria acarpetada,com um corrimo que parecia frgil demais at para ser tocado. No precisei que eodora ouqualquer outra pessoa me explicasse que por enquanto era uma expresso que no queria dizerabsolutamente nada. Eu a segui pelas escadas, arrastando as malas, e depois por um corredor estreitoat o quarto onde se lia sute extremo oriente. eodora fez a chave brigar com a fechadura,mas aps alguns minutos a porta se abriu, e entramos em nosso novo lar.

    Provavelmente voc nunca esteve na Sute Extremo Oriente do Braos Perdidos em Manchado-pelo-mar, mas decerto voc j esteve num quarto de hotel no qual no tinha a menor vontade decar, o que mais ou menos a mesma coisa. A maior parte do quarto era ocupada por uma camagrande e outra pequena, separadas uma da outra por uma cmoda vagabunda que mais parecia umacarranca. Havia uma porta que levava ao banheiro e uma mesinha num canto, com uma chapa demetal ligada na tomada, provavelmente para esquentar comida. Pendurada no teto, a luminriaparecia uma estrela cheia de pontas e, nas paredes, a nica coisa que havia era um quadro, sobre acama menor, com uma garotinha segurando um co com a pata enfaixada. O quarto era meio

  • escuro, e mesmo quando abri a nica janela, a Sute Extremo Oriente no ficou mais clara. Vamos dividir o quarto? perguntei. No seja bobo, Snicket disse eodora. Podemos trocar de roupa no banheiro. Por que

    voc no ena sua mala embaixo da cama agora e desce at o lobby para brincar ou algo assim? Voudesfazer minha mala e tirar um cochilo. Isso sempre me ajuda a pensar, e eu preciso pensar emcomo que vamos botar as mos naquela estatueta.

    Tem uma boa eu disse que vai do farol at a manso dos Sallis. Boa? um tipo de cabo eu disse. Eu j sabia. Sabia mesmo? no consegui deixar de perguntar. Precisei que uma garotinha me

    ensinasse o que era.Theodora deu um longo suspiro e sentou na cama grande passando as mos em sua cabeleira. Me deixe descansar, Snicket ela disse. Volte na hora do jantar. Acho que jantaremos

    mais tarde esta noite. Mais tarde do que quando? Mais tarde do que o normal. Mas ns nunca jantamos juntos. Voc no est me ajudando a descansar, Snicket.Eu tambm no estava conseguindo descansar, ento enei minha mala embaixo da cama e deixei

    o quarto, fechando a porta ao sair. Em um minuto eu estava de volta calada, observando a ruavazia com as mos cheias de amendoins que eu havia pegado no lobby. Eu tinha mais privacidadefora do Braos Perdidos do que dentro da Sute Extremo Oriente. Era bom ter privacidade, masainda no sabia o que fazer para me ocupar at a hora do jantar. Ento, caminhei at o prdio comos pilares, que parecia a melhor aposta para encontrar alguma coisa interessante.

    Eu era aquele jovem, com quase treze anos, caminhando sozinho por uma rua vazia numa cidademeio desbotada. Eu era aquela pessoa, comendo amendoim ranoso e pensando num objetoestranho e empoeirado, que havia sido roubado ou esquecido, e que pertencia a uma famlia ou outra ou aos seus inimigos ou seus amigos. Antes, fui uma criana que recebeu uma educaoincomum e, antes disso, fui um beb que, segundo me contaram, gostava de se olhar no espelho eenar os dedos do p na boca. Eu era aquele rapaz, e aquela criana, e aquele beb, e o prdio queestava minha frente era a prefeitura. minha frente havia minha vida de adulto, e depois umesqueleto, e depois mais nada, exceto, talvez, uns poucos livros na estante.

    Mas agora o que havia diante de mim era um gramado maltratado, e uma grande esttua demetal, to desgastada pela chuva e pelo tempo que eu nem conseguia entender o que era, mesmochegando perto o suciente para toc-la. As sombras dos pilares eram sinuosas, e o prdio parecia ter

  • sido estapeado vrias vezes por um gigante que perdera a pacincia. Os pilares sustentavam um arcocom as palavras manchado-pelo-mar escritas em letras que j tinham sido mais escuras. Naparede estava gravada a palavra prefeitura, muito embora fosse difcil l-la, j que haviamcolocado outras duas placas em cima dela. Na placa acima de prefei dava pra ler delegacia, eacima de tura se lia biblioteca. Subi a escada e fiz a escolha mais sensata.

    A biblioteca era um salo enorme, com longas estantes de metal e aquele silncio perfeito que asbibliotecas oferecem a quem procura respostas. Um mistrio se resolve com uma histria, e ahistria comea com uma pista. O problema que geralmente voc no tem ideia do que seja apista, mesmo achando que sabe. A minha pista era a Fera Ressonante, escondida debaixo de umlenol numa sala esquecida do farol, e quei pensando no que faria para descobrir mais sobre aquilo.Percorri o salo procurando pelo bibliotecrio, e logo o encontrei atrs de um balco, espantandoalgumas traas com um leno xadrez. As traas estavam voando sobre uma pequena placa que diziadashiell qwerty, sub-bibliotecrio. Ele era mais jovem do que eu imaginava que umbibliotecrio seria, mais jovem do que o pai de qualquer um que eu conhecia, e tinha o cabelo igualao de algum que tivesse sido atacado por um manaco com tesouras e sobrevivido para contar ahistria. Usava uma jaqueta de couro com vrios pingentes metlicos pendurados nas mangas quechacoalhavam quando ele espantava as traas.

    Com licena eu disse , voc o bibliotecrio?Qwerty agitou seu leno contra as traas uma ltima vez, e desistiu. Sub-bibliotecrio ele disse, com a voz to profunda que, por um instante, pensei estarmos

    no fundo de um poo. Manchado-pelo-mar no pode bancar um bibliotecrio em tempointegral, por isso estou aqui.

    H quanto tempo voc est aqui? Desde que substitu o outro cara ele disse. Como posso ajud-lo? Estou procurando informaes sobre lendas locais respondi. Acho que a Dama Sally Murphy a atriz mais famosa de Manchado-pelo-mar sugeriu

    Qwerty. Deve haver um livro sobre a sua carreira na seo de teatro. No esse tipo de lenda eu disse. Estou falando de histrias antigas sobre criaturas

    estranhas.Qwerty saiu detrs do balco. Permita-me lev-lo seo de mitologia ele disse, e sem hesitar me levou at uma leira de

    estantes bem no meio do salo. Tambm temos uma boa seo de Zoologia e Oceanograa, sevoc estiver interessado em animais de verdade.

    Hoje no, muito obrigado. Nunca se sabe. Dizem que em toda biblioteca existe um livro capaz de responder uma questo

    que queima como fogo em sua mente.

  • Pode ser, mas hoje no. Muito bem. Posso ajud-lo em mais alguma coisa, ou voc gostaria de explorar a biblioteca

    por sua conta? Explorar por minha conta, por favor eu disse.Qwerty assentiu com a cabea e se afastou sem dizer mais nenhuma palavra. A seo de Mitologia

    tinha vrios livros que pareciam interessantes e um que parecia ser til. Infelizmente, no era um dosque pareciam interessantes. Encontrei uma mesa num canto distante, na qual eu poderia ler sem serperturbado, e abri Mitos de Manchado.

    De acordo com o captulo sete, a Fera Ressonante era uma criatura mitolgica metade cavalo,metade tubaro muito embora alguns relatos a descrevessem como metade crocodilo e metadeurso , que cava espreita nas guas que banham Manchado-pelo-mar. Tinha grande apetite porcarne humana e, quando caava, fazia um terrvel som ressonante tive de levantar da mesa epegar um dicionrio para descobrir que ressonar uma palavra que quer dizer propagar umsom. Eu tinha cado com a impresso de que Moxie era uma garota meio estranha, mas no umamentirosa, e de fato havia uma histria sobre como lady Mallahan havia matado a Fera Ressonantecentenas de anos atrs, muito embora o autor armasse que, provavelmente, lady Mallahanencontrara apenas um leo-marinho morto na praia ao p do penhasco do farol, e os comentriosdas pessoas teriam deixado a histria cada vez mais interessante. Outros relatos falavam sobre comoas pessoas podiam domar a Fera Ressonante se imitassem seu rosnado assustador, e havia ainda ocaso de um mago que teve a besta sob o seu comando apenas mantendo o terrvel monstroalimentado. Nos tempos antigos, um gongo era tocado na praa central para alertar sobre a presenada fera em noites sem luar. J no tinha gongo h muito tempo, mas a lenda persistia. Mes aindadiziam aos lhos e maridos que a Fera Ressonante os pegaria caso no comessem a verdura, e aspessoas ainda se vestiam de Fera Ressonante no Dia das Bruxas e no feriado judaico de Purim, commscaras que no eram muito diferentes da que eu tive de usar no esportivo, pelo menos de acordocom as ilustraes do livro. Supostamente, marinheiros ainda avistavam a Fera Ressonante nadandopor a, com seu corpo sinuoso como uma interrogao submerso, muito embora, com o mardrenado, eu no conseguia imaginar que isso pudesse ser verdade, pelo menos no mais.

    O livro no dizia nada sobre a estatueta, valiosa ou no, ento parei de ler sobre a Fera Ressonantee me interessei pelo captulo que falava sobre as bruxas de Manchado, que tinham tinta correndo emsuas veias em vez de sangue. Fiquei me perguntando o que elas colocavam nas canetas.

    Li por mais algum tempo at ser distrado por um barulho que parecia o de uma pedraarremessada contra a parede, bem acima da minha cabea. Olhei a tempo de ver um pequeno objetocair sobre a mesa. Era uma pedra, que havia mesmo sido arremessada contra a parede, bem acima daminha cabea. Seria bom pensar em alguma coisa inteligente pra dizer quando algo assim acontece,mas acabo dizendo sempre a mesma coisa.

  • Ei eu disse. Ei repetiu uma voz, em tom de chacota, e um garoto mais ou menos da minha idade

    esticou o pescoo atrs de uma das estantes. Ele parecia resultado do cruzamento entre um humanoe um tronco, com o pescoo muito grosso e um corte de cabelo que parecia uma tigela ao contrrio.Ele tinha um estilingue no bolso e me encarava de um jeito muito desagradvel.

    Voc quase me acertou eu disse. Estou tentando melhorar ele respondeu, aproximando-se. Ele quis crescer pra cima de

    mim, mas no era alto o suficiente. No posso querer atingir meu alvo toda vez. Essa a sua diverso? perguntei. Atirar pedras nas pessoas que esto na biblioteca? Eu preferiria atirar nuns pssaros ele disse , mas no tem mais muitos por aqui. No consigo imaginar por que eles no iriam querer se divertir com um cara to legal quanto

    voc eu disse. Fica parado ele disse, puxando o estilingue. Deixa eu ver se consigo acertar esse seu

    sorrisinho idiota l do outro lado da sala.Qwerty apareceu do nada. Stew ele disse, palavra que soou ainda mais assustadora naquela voz profunda. Saia

    imediatamente daqui! Mas tenho o direito de estar aqui disse Stew, encarando o bibliotecrio. Esta biblioteca

    pblica. E voc uma perturbao da ordem pblica retrucou Qwerty, pegando Stew pelo brao e

    o arrastando at a porta. Fora. Vejo voc em breve disse Stew, olhando pra mim de forma ainda mais desagradvel. Ele

    saiu sem proferir nenhum outro insulto, e Qwerty voltou para examinar a parede. Peo desculpas por isso ele disse, observando o local da pedrada e o esfregando com o

    dedo. Stew Mitchum como um resto de lixo que cou preso no fundo da lata. Ns tentamosnos livrar dele, mas ele continua vindo aqui, e vai cando cada vez mais velho. Voc encontrou oque estava procurando?

    Mais ou menos eu disse. Posso retirar livros no morando aqui? Lamentavelmente, no disse Qwerty. Mas a biblioteca abre bem cedo todos os dias, e

    voc bem-vindo para ler o que quiser. No sempre que encontramos algum interessado emteatro.

    No me preocupei em relembr-lo de que aquela famosa atriz no era o tipo de lenda que euestava pesquisando.

    Obrigado eu disse. Acho que preciso ir. Mas ele disse se voc tiver um carto de biblioteca, vai poder pedir livros da biblioteca

    mais prxima da sua casa.

  • Quer dizer que a biblioteca da minha cidade pode mandar pra c livros que eu vou poderretirar?

    No disse Qwerty , mas voc pode preencher a papelada aqui, e o livro estar esperandopor voc na sua cidade.

    No sei quando vou voltar pra l eu disse. A cidade e as pessoas de quem eu mais gostavapareciam ainda mais distantes.

    Qwerty tirou um carto em branco de um bolso de sua jaqueta. Funciona assim: voc escreve o seu nome e o ttulo do livro, e a pessoa que estiver trabalhando

    no balco vai saber qual o livro que voc est pedindo.Pensei rpido: Ento, a pessoa que fica no balco vai saber o ttulo do livro que eu quero? Sim. Ou o seu assistente? Acho que sim disse Qwerty. Voc mudou de ideia? Sim eu disse. Gostaria de pedir um livro da filial de Fourier. Fourier? repetiu Qwerty, tirando o lpis que estava na orelha. No perto daquele lugar

    onde esto construindo a esttua nova? No tenho certeza eu disse, com muita certeza. E qual o seu nome? ele perguntou.Disse a ele, e disse que se escrevia como se falava. Ele anotou tudo em cuidadosas letras de forma,

    e ento fez uma pausa, segurando o lpis no ar. E qual o nome do autor do livro que voc procura? Desculpe eu disse, depois de hesitar por alguns instantes. Desculpe o nome do autor? Sim balbuciei. Acho que belga. Belga ele disse, olhando pra mim, e ento anotou e depois voltou a olhar para mim. E o

    ttulo do livro? ele perguntou, e era uma pergunta perfeitamente razovel. Torci para que minharesposta tambm soasse razovel.

    Mas no posso encontr-la no chafariz.Qwerty olhou para mim com o rosto em branco, como uma daquelas pginas no nal dos livros

    que servem para anotaes ou segredos. Ento ele disse , o seu pedido completo Desculpe, Mas no posso encontr-la no

    chafariz. Isso mesmo e Qwerty me olhou por mais um segundo antes de anotar tudo lentamente.

  • 5Caminhei de volta ao Braos Perdidos me sentindo bem mais leve. A biblioteca havia sidorestauradora, palavra que uma aliada minha usava para descrever atividades que limpavam a mente edeixavam o corao alegre. Sorvete misturado com refrigerante restaurador, assim como conseguirabrir uma porta trancada. Eu tinha esperanas de que essa aliada recebesse logo o meu pedido nafilial de Fourier, o que lhe pouparia um incmodo.

    Incmodo era o que me esperava na porta do Braos Perdidos, e qualquer um poderia ver isso aum quarteiro de distncia, j que havia um carro estacionado bem na frente com uma luz vermelhaem cima. Parecia um carro de polcia, mas quando cheguei perto vi que era s uma perua todaarrebentada com uma lanterna presa no teto com ta adesiva. Mas havia dois adultos de uniformeem p na escada do Braos Perdidos, onde eodora estava sentada. Ela precisava olhar para cimapara falar com eles, e seus olhos pareciam srios e preocupados embaixo daquela cabeleira. Comoparte de minha educao, aprendi que nunca se deve ter uma conversa sria numa posio em queuma das pessoas tenha de olhar para cima. Achei essa uma coisa ridcula para se ensinar a umacriana, que costuma ser menor do que qualquer outra pessoa, e eu disse o que pensava. Comocastigo por ter falado em sala de aula, me botaram sentado sozinho num canto. A professora pareciaainda mais alta de l.

    Snicket disse eodora quando me viu chegando perto do hotel , estes so os policiaisMitchum.

    Os dois policiais se viraram na minha direo, e eu me vi encarando um homem e uma mulherto parecidos que poderiam ser gmeos, ou duas pessoas que eram casadas h muito tempo. Ambostinham corpos no formato de peras, com pernas curtas e grossas e os braos meio tortos, como setivessem experimentado cabeas que eram pequenas demais e estivessem prestes a pedir ao balconistapara trocarem por cabeas maiores.

    Minha esposa e eu gostaramos de fazer algumas perguntas disse o primeiro policialMitchum, em vez de ol ou prazer em conhec-lo ou achei que voc poderia estar com fome,ento tomei a liberdade de trazer umas costeletas de cordeiro.

  • Harvey disse a outra policial, de forma cortante. Voc no deve me chamar de suaesposa quando estamos em servio.

    Mimi, voc minha esposa, estando ou no em servio disse o primeiro policial,suspirando.

    No precisa me lembrar respondeu ela. Meu dia j est ruim o bastante. Era a sua vezde tirar os pratos da lavadora, Harvey, mas voc esqueceu, como sempre, e sobrou para mim.

    Mimi, pare de me aborrecer. Eu no estou aborrecendo voc. Sim, voc est. Harvey, chamar gentilmente a ateno sobre uma coisa no aborrecer. E isso foi gentil? J vi bandos de lobos mais gentis. Quando foi que voc j viu um bando de lobos? Bem, no eram exatamente lobos, mas j visitei a casa da sua irm com aqueles filhos todosNo imagino que precise dizer a qualquer um que esteja lendo isso que quando um casal de

    adultos comea uma discusso ela pode se estender por horas, ou at mesmo dias, e que a nicamaneira de dar um fim nisso interrompendo-os:

    Voc disse que tinha perguntas pra me fazer? eu disse. Ns que fazemos as perguntas por aqui disse Mimi Mitchum. Somos a lei em

    Manchado-pelo-mar. Capturamos os bandidos e os colocamos no trem para serem presos na cidade.Dos subrbios da zona rural at o limite da Floresta Aglomerada, sabemos de cada coisinha queacontece neste vilarejo. Ento, quando chegam forasteiros, sentimos que nosso dever dar-lhes asboas-vindas e perguntar o que exatamente vieram fazer aqui.

    Somos loucos por tinta tentou Theodora. Voc disse ao senhor Mallahan que eram loucos por faris. Somos loucos por tudo disse Theodora, com um sorriso desesperado. O que minha tutora quer dizer eu disse que, ainda que estejamos aqui a trabalho,

    esperamos conhecer alguns lugares fantsticos desta maravilhosa comunidade. Eu estava admirando asua delegacia de polcia, por exemplo.

    Foi o prprio Harvey quem pendurou aquela placa disse Mimi, com orgulho. verdade disse o policial Mitchum masculino , mas estamos aqui para dizer que um

    lugar que esperamos que vocs no conheam o interior da nossa nica cela. No podemos ignorarque, logo aps a chegada de dois forasteiros, este vilarejo foi acometido por um crime. Um crimepequeno, diga-se de passagem, mas ainda assim um crime.

    O que aconteceu? perguntei. Um poste foi vandalizado disse Harvey Mitchum. Algum estilhaou a lmpada com

    uma pedra bem na esquina da biblioteca. Ainda muito cedo para tirar concluses, mas eu no

  • ficaria surpreso se esse crime estivesse ligado a vocs. Onde voc esteve na ltima hora, Snicket? Na biblioteca respondi. Algum poderia confirmar isso? Dashiell Qwerty, o bibliotecrio. Aquele pilantra resmungou Mimi Mitchum. No cono em ningum que no cuida da

    prpria aparncia. Eu diria que ele cuida e muito eu disse. Aquele corte de cabelo parece ter levado horas

    para ser feito. Ele e eu fomos interrompidos por um garotinho com um estilingue. Qwerty disse queseu nome era Stew.

    Os dois policiais Mitchum me lanaram um olhar severo, retorcendo a boca num mesmorosnado.

    Nosso lho, Stewart disse a mulher Mitchum , um gnio e um cavalheiro. Comcerteza no um criminoso. Alis, ele implorou para vir conosco s para lhes dar as boas-vindas.

    Ela apontou para a perua, e foi s ento que vi o rosto grotesco e sarcstico de Stew saindo pelajanela. Quando os adultos olharam para ele, Stew tirou um enorme sorriso de algum lugar eestampou na cara.

    Prazer em conhec-lo, Lemony ele disse, num tom falsamente amigvel. Adoroconhecer gente legal da minha idade! Tomara que a gente vire melhores amigos!

    Viu s? disse Harvey Mitchum, enquanto Stew mostrava a lngua pra mim sem queningum visse. Um garoto encantador.

    Um amor de garoto disse Mimi Mitchum. Ultimamente ele anda interessado porpssaros.

    Aposto que vai se tornar um cientista brilhante quando crescer disse o marido. Ou um mdico disse a esposa. Um mdico brilhante. Mas claro, Harvey. Voc sabe que eu quis dizer um mdico brilhante. No precisa me

    envergonhar desse jeito. No quis envergonh-la. Bem, ento voc s estava perdendo tempo. Eu no estava perdendo tempo! S levou um segundo! Ento o que que voc estava tentando fazer? Por que voc diria uma coisa dessas se no

    estivesse tentando envergonhar sua esposa? Voc disse que eu no deveria cham-la de minha esposa quando estamos em servio! E voc disse que eu ainda era sua esposa, estivssemos ou no em servio. Com licena eu disse , mas se vocs no tm mais nenhuma pergunta, eu gostaria de ir

    para o meu quarto.

  • Os policiais Mitchum ficaram irritados por eu ter interrompido a discusso. Vamos car de olho em vocs dois disse Mimi, apontando um dedo surpreendentemente

    longo, e, aps uma breve discusso sobre quem ia dirigir, a perua saiu rua abaixo fazendoestardalhao. Theodora levantou-se e olhou para mim.

    No faz nem um dia que estamos neste vilarejo ela disse e voc j se meteu numaencrenca com a polcia. Estou desapontada com voc, Snicket.

    Eu no vandalizei aquele poste eu disse. Isso no importa ela disse, balanando a cabeleira. Precisamos nos mexer esta noite. Vamos procurar um lugar com dois quartos separados. No, quis dizer que esta noite teremos de ser usurpadores ela disse , palavra que quer

    dizer que vamos roubar a Fera Ressonante e devolv-la aos seus legtimos donos. Acho que a estatueta j est com seus legtimos donos eu disse, sem acrescentar que j sabia

    o signicado de usurpadores desde quando tinha dez anos e li um conto escrito por um britnicocom um nome falso muito engraado. Pesquisei um pouco na biblioteca, e as lendas locais dizemque a Fera Ressonante tem sido associada famlia Mallahan h geraes. E quando Moxie Mallahana mostrou para mim, a estatueta estava muito empoeirada, como se ningum mexesse nela h anos.

    Lendas no passam de histrias inventadas disse eodora, com desdm , e qualquer umpode jogar poeira em cima de alguma coisa para faz-la parecer mais velha. Uns anos atrs tive umcaso em que dois irmos discutiam por causa de uma coleo de conchas. O mais novo derramoupoeira sobre as conchas tentando provar que eram suas, mas eu consegui desmascarar sua fraudebarata. De qualquer forma, est tudo acertado. Liguei para a manso dos Sallis esta tarde e combineialgumas coisas com o mordomo. Vamos pegar a estatueta no farol e sair pela janela, para chegar manso usando a boa. O mordomo vai deixar a janela da biblioteca aberta e, como sinal, vaiacender uma vela quando a barra estiver limpa. Entregaremos a estatueta a ele e o caso estarencerrado.

    Pensei que talvez no fosse p, mas sal o que havia sobre as conchas, ento era bem provvel queo irmo mais novo fosse o verdadeiro dono da coleo. Mas tambm me ocorreu que no era boahora para dizer isso. Minha tutora inclinou-se, aproximando-se de mim.

    O que voc tem que fazer ela disse invadir o farol hoje noite e me esperar l dentro.Exatamente meia-noite voc abrir a porta e me levar at o objeto em questo. No podemosfalhar, Snicket. Estamos sendo observados.

    Voc est falando dos policiais Mitchum? Eu estou falando de algum da nossa organizao disse eodora, sacudindo a cabea.

    Onde quer que um tutor v, sempre tem algum de olho no que est acontecendo. Voc no sabia,Snicket, mas estou posicionada em dcimo numa lista de cinquenta e dois tutores. Se eu resolver estecaso, minha posio vai melhorar. Agora v. Encontro voc no farol meia-noite.

  • Mas e o jantar? perguntei. J jantei, obrigada. E quanto ao meu jantar? Pergunta errada, Snicket. Existem coisas mais importantes do que o jantar. Concentre-se no

    caso disse ela me olhando feio, e em seguida subiu a escada.Eu a vi entrar no Braos Perdidos. verdade que existem coisas mais importantes do que o

    jantar, mas difcil ter essas coisas em mente quando a gente no jantou. Dei um tempo para queeodora chegasse ao quarto, e ento entrei no Braos Perdidos, imaginando quem naquele vilarejominsculo e decadente poderia estar nos vigiando. Prspero Perdido estava perto da esttua damulher sem braos, com um sorriso impaciente no rosto. Agora me lembrei da palavra que estava naponta da minha lngua. Era obsequioso, que se refere s pessoas que se comportam comoempregados mesmo quando no so. Pode at parecer que isso agradvel, mas na verdade no .

    Bonita noite, senhor Snicket ele me disse. Mais ou menos concordei, olhando atravs do lobby. edora disse que ligou para a

    manso, o que signicava que a cabine telefnica esteve desocupada. Eu esperava que tambmestivesse agora, mas uma mulher com uma enorme estola de pele a estava ocupando. Tem algumoutro telefone aqui por perto? perguntei.

    Infelizmente, no disse Prspero Perdido dando de ombros. Ser que voc poderia me dar carona at um certo lugar? Felizmente, sim disse Prspero , por uma pequena taxa, claro.Talvez exista um vilarejo no qual os apos soltos do meu bolso fossem o equivalente a uma

    pequena taxa, mas eu sabia que Manchado-pelo-mar no era esse lugar. Eu disse a Prspero umobrigado que no signicava voc me ajudou muito mas por favor, v embora, e ele se foi. Samais uma vez do Braos Perdidos e quei parado na rua pensando no que fazer, quando um carrodobrou a esquina e parou bem na minha frente. Era o txi amarelo meio amassado que eu tinhavisto antes. De perto os amassados eram ainda piores, com uma das portas to detonada que quaseno consegui ler as palavras txi belerofonte impressas na lateral.

    Precisa de txi, amigo? perguntou o motorista, e demorei um pouco para perceber que eleera um pouco mais novo do que eu. Tinha um sorriso amigvel e uma pequena ferida na bochecha,como se algum tivesse lhe dado um tremendo cutuco, e usava um chapu azul grande demais parasua cabea com as palavras txi belerofonte impressas de forma um pouco mais ntida.

    Infelizmente no tenho dinheiro eu disse. Ah, tudo bem respondeu o garoto. Do jeito que as coisas vo nesta cidade,

    normalmente trabalhamos s pelas gorjetas. Eles deixam voc dirigir com essa idade? perguntei. Estamos substituindo nosso pai esta noite ele respondeu. Ele est doente.

  • Ns? Como assim, ns?O garoto fez um sinal me convidando a entrar no carro, eu entrei e vi que ele estava sentado

    numa pilha de livros para alcanar o volante. Logo abaixo, agachado no assoalho do carro, umgaroto que parecia pouco mais novo estava com as mos nos pedais do carro. Seu sorriso eralevemente perverso, como se fosse o tipo de pessoa que eventualmente cutuca o irmo com fora.

    Ns somos meu irmo e eu ele disse numa voz bem ninha. Sou Pecuchet Belerofonte eeste o meu irmo, Bouvard.

    Disse a eles o meu nome e tentei pronunciar os deles. Nada pessoal, mas seus nomes do um n na minha lngua. Como que as pessoas costumam

    chamar vocs? Me chamam de Juca disse o que segurava o volante , e ele o Chico. Porque controlo os freios completou Chico. claro eu disse. Bem, Juca e Chico, preciso ir at o farol. A casa dos Mallahan? perguntou Juca. Claro, entra a.Dei uma olhada nos livros em que ele estava sentado. Pareciam ser da biblioteca, e alguns eram

    livros de que eu gostava muito. Voc tem certeza de que tem idade para dirigir? perguntei. E voc, tem idade para ir at a periferia do vilarejo sozinho? Juca respondeu. Vamos,

    entre a.Entrei, e Chico empurrou o acelerador. Juca dirigiu habilidosamente pelas ruas destrudas e

    semidesertas de Manchado-pelo-mar. Vi uma mercearia, vazia mas aberta, e uma loja dedepartamentos com manequins na vitrine que pareciam querer ir pra casa. O sol estava comeando ase pr atrs do prdio em formato de caneta. Eu tentava me concentrar na estatueta da FeraRessonante, mas minha mente me levava para outros lugares. Primeiro para as cavernas que eu tinhavisto, onde polvos assustados soltavam sua tinta, depois para um buraco maior e mais profundo l nacidade. Disse a mim mesmo para parar de pensar nessas coisas, j que no podia fazer absolutamentenada a respeito delas, e permaneci olhando pela janela enquanto o txi passava pela manso dos Sallise seguia colina acima.

    O pai de vocs j levou a senhora Sallis a algum lugar? perguntei. Acho que no disse Juca. Quando a famlia Sallis ainda morava aqui, eles tinham seu

    prprio chofer. Eles no moram mais aqui? Se moram, ningum nos avisou disse Chico, l de baixo.Em poucos minutos tnhamos deixado o chal branco pra trs, e Chico freou o carro com grande

    habilidade, bem na frente da entrada do farol. Voc quer que a gente que por aqui e depois o leve de volta para o vilarejo? perguntou

  • Juca. No, obrigado eu disse. Bem, espero que voc saiba o que est fazendo, vindo at aqui sem ter como voltar disse

    Juca, esticando-se para abrir a minha porta. E quanto gorjeta? Tem alguma coisa para ns? Tenho uma coisa para vocs eu disse. uma dica. Da prxima vez que forem

    biblioteca, procurem um livro sobre um campeo mundial. Daquele autor com todo aquele chocolate? Sim, mas esse ainda melhor. Tem uns captulos muito bons nele. uma boa dica disse Chico. O Juca costuma ler pra mim entre as corridas.Bati a porta e me despedi dando um soquinho na janela do txi. Juca acenou, e o txi se foi.

    Esperei o som do motor desaparecer e quei parado, por um momento, olhando para o farol. Euesperava o mesmo que os dois motoristas do Txi Belerofonte: que soubesse o que estava fazendo.Mas eu duvidava muito. Ouvi o vento soprar, sinistro, por entre as algas da Floresta Aglomerada,bem abaixo. E ento, na minha frente, o som ordinrio de uma porta se abrindo.

    Lemony Snicket disse uma voz.Me virei para olhar a garota que havia falado. Quais so as novas, Moxie? Voc quem tem que me dizer ela disse. Foi voc quem apareceu na minha porta.Olhei para o cu escuro com o canto do olho e pude ver a linha grossa e discreta da boa esticada

    sobre a minha cabea, descendo pela colina. Por que no?, pensei, e encarei mais uma vez MoxieMallahan.

    Queria te fazer um convite eu disse. Ah, ? Convite para qu? ela perguntou dando um sorrisinho. Para um furto que vai acontecer esta noite na sua casa eu disse, entrando pela porta.

  • 6 Muito gentil de sua parte, Snicket disse Moxie , mas no sei se conta como furtoquando o objeto que vai ser roubado no tem valor para o dono.

    Do que voc est falando? perguntei. Voc sabe do que eu estou falando, Snicket. Voc veio at aqui para roubar a Fera Ressonante,

    no ? ela disse e piscou sob a aba do chapu. Como voc sabe?Moxie foi em direo mquina de escrever, que estava no lugar de costume, na escada, e com

    uma folha dentro. Ela examinou o papel, procurando algo que havia escrito antes. Um estranho bateu em minha porta ela disse , com uma mulher mais velha que ngiu

    por um momento ser sua esposa. O estranho pediu para ver um objeto em particular e couclaramente surpreso quando o mostrei a ele. E aqui est voc, falando sobre um furto. Que tal?

    Voc mesmo uma excelente jornalista eu disse. Elogios me entediam, Snicket. Voc veio roubar a estatueta ou no? Sim resolvi dizer. Voc se importaria muito? De forma alguma ela disse, sorrindo ainda mais e se encostando na porta do farol para

    fech-la. Ela ajustou o papel na mquina e ento me olhou bem nos olhos. No era mais alta do queeu, mas precisei levantar a cabea para que nossos olhares se cruzassem, exatamente como medisseram para jamais fazer. Lemony Snicket, acho que hora de voc me dizer exatamente o queest acontecendo.

    Voc vai mesmo escrever isso em seu jornal? perguntei. Pensei que O Farol Manchadotivesse falido.

    s para manter a prtica ela disse. Assim, um dia, quando sair deste vilarejo, estareipronta para trabalhar em um jornal.

    Quando sua me a chamar eu disse. Pare de me enrolar, Snicket. O que est acontecendo exatamente? H algum interessado na estatueta da Fera Ressonante eu disse, protegendo a identidade

  • do meu cliente, como havia sido orientado a fazer. Essa pessoa disse que a estatueta dela e quevale muito dinheiro. No acho que isso seja verdade. Creio que a estatueta est na sua famlia hmuito tempo, desde a poca de lady Mallahan, e acho que se fosse mesmo to valiosa no estariadebaixo de um lenol junto com um monte de objetos esquecidos e empoeirados. Mas no importao que eu acho. Ento, carei aqui at a meia-noite, minha parceira chegar e, juntos, roubaremos aFera Ressonante e escaparemos descendo a colina pela boa. E ento terei cumprido minha tarefa.

    Moxie escrevia mquina num ritmo furioso, mas ento parou e passou a olhar para mim. Essa pessoa ela disse , interessada na Fera Ressonante, ela mora em Manchado-pelo-mar? Sim eu disse, incorretamente. Por que voc pergunta?Moxie atravessou a sala at uma escrivaninha e, com alguma diculdade, abriu a gaveta repleta de

    papis. H uma gaveta como aquela em todas as casas do mundo. Ela investigou a papelada comateno at finalmente encontrar o que procurava.

    Olha isto aqui ela me disse.Isto aqui era um telegrama, com data de seis meses antes da minha formatura. Era endereado ao

    pai de Moxie e havia sido enviado de uma cidade que eu nunca tinha ouvido falar. Escrita comoantigamente, com o nal de cada frase marcado pela palavra ponto, a mensagem cou ainda maisconfusa do que j era.

    saudaes senhor pontoestou muito interessado em certa esttua que acredito estar em sua casa pontoacredito que se chama fera ressonante ponto se estiver disposto a vend-la a mimeu acredito que car contente com o preo que estou disposto a pagar pontopor favor responda o mais rpido possvel ponto fim da mensagem Acredito estar em sua casa li em voz alta. Acredito que se chama Fera Ressonante

    Acredito que voc ficar contente. Mas como essa pessoa acredita! E o que o seu pai respondeu? Meu pai nunca leu este telegrama disse Moxie. Quando ele foi enviado eu j tinha

    comeado a cuidar de sua correspondncia. Bem, e voc respondeu? No tive como. O nico servio de telgrafo de Manchado-pelo-mar fechou suas portas, por

    falta de tinta, um dia depois que o telegrama chegou. At onde voc sabe, essa pessoa deve ter tentado enviar muitos outros telegramas. At onde eu sei, sim. E voc chegou a investigar? No havia muito o que investigar disse Moxie, sacudindo a cabea. O telegrama no

    est assinado, e essa cidade ca bem longe daqui. E, francamente, seis meses atrs eu tinha outros

  • assuntos bem mais importantes para tratar do que uma estatueta com a qual ningum se importa.No quis importun-la perguntando sobre seus assuntos importantes. O autor do telegrama e a pessoa que me contratou podem ser a mesma pessoa. Quem quer que sejam disse Moxie , eles podem car com aquela velharia. Ningum

    precisa se dar ao trabalho de praticar um furto. No o que pensa a minha tutora eu disse. Bom, nesse caso, o que vamos fazer at a meia-noite?At que enfim uma pergunta que eu podia responder. Esperava que a gente pudesse jantar eu disse. No comi praticamente nada o dia todo. Acho que no tem quase nada aqui em casa disse Moxie. Meu pai falou que iria ao

    mercado hoje, mas ele passou o dia inteiro de roupo. Acho que tudo que temos aqui um montede manjerico murcho.

    Voc tem um dente de alho, um limo, uma xcara de nozes, queijo parmeso, algum tipo demassa e uma boa quantidade de azeite de oliva?

    Acho que sim disse Moxie , se bem que o queijo talvez seja asiago. Melhor ainda eu disse, e a segui at a pequena cozinha do farol, que estava cheia de pratos

    sujos e pilhas de pginas datilografadas. Moxie limpou a baguna, e eu coloquei as nozes no fornopara tostar junto com alguns dentes de alho cobertos de azeite de oliva. Pus uma panela de gua paraferver, enquanto Moxie procurava algo para beber na geladeira. Torcia para que tivesse umagengibirra, mas ela s conseguiu encontrar um suco de mirtiloframboesa, que tinha gosto aceitvel,mas apenas aceitvel. Juntos, separamos as folhinhas dos galhos do manjerico, ralamos o queijo eesprememos os limes, removendo as sementes com um garfo decorado com uma imagem da FeraRessonante. Pus ento a massa na gua fervente, misturei os ingredientes restantes, e logo estvamossentados em uma mesinha de madeira, meio bamba por causa de uma perna lascada, comendograndes pratos de orecchiette al pesto. Era exatamente do que eu precisava. Terminei, limpei a boca eme inclinei para trs na cadeira, que tambm era bamba.

    E a? disse Moxie ao terminar seu suco. Voc sabia perguntei que orecchiette, em italiano, quer dizer orelhinhas? Sei que s o

    formato da massa, mas algumas pessoas no gostam da ideia de comer um prato de No era disso que eu estava falando, Snicket, e voc sabe. Por que algum ia querer uma

    estatueta esquecida por todos? No saberia dizer eu disse.Ela foi at a mquina e escreveu mais algumas frases no seu texto. Tem alguma coisa acontecendo que a gente no est conseguindo enxergar. Geralmente esse o caso eu disse. O mapa no o territrio. O que isso quer dizer?

  • uma expresso que os adultos tm para a confuso em que estamos metidos. Os adultos nunca dizem nada s crianas. As crianas tambm nunca dizem nada aos adultos eu disse. As crianas e os adultos

    deste mundo esto navegando em barcos completamente separados, s se aproximam uns dos outrosquando algum de ns precisa de uma carona ou quando algum deles quer que lavemos nossas mos.

    Moxie sorriu e comeou a datilografar. Pensei em colocar os pratos sujos n